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A Eficácia Direta dos Direitos Fundamentais nas

Relações Entre Particulares

Eduardo Ribeiro Moreira

Professor Adjunto de Direito Constitucional da UFRJ

Pós-Doutor e Professor Visitante da Universidad Castilla la Mancha

Doutor pela PUC-SP em Direito Constitucional

Livre Docente pela USP

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Definindo Elementos Teóricos do Direito Civil-


Constitucional – 3. Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares – 4.
Conclusão – 5. Bibliografia.

1. Introdução

O presente texto divide-se em duas partes. Na primeira faz-se uma


revisão na doutrina civil-constitucional com a finalidade precípua de nominar
suas teorias estruturais conhecidos como elementos teóricos do direito civil
constitucional. Não está aqui tentando relacionar seus desdobramentos
práticos, como a função social do contrato, mas, sim, os seus elementos
teóricos que permitem enxergar uma base comum em torno do direito civil-
constitucional. Neste texto, essa base comum é apenas enumerada e
contextualizada para a abrir portas para o segundo tema: os direitos
fundamentais nas relações entre particulares. Estes serão explorados, tanto
nas objeções encontradas quanto a adoção da teoria, passando pela sua
classificação prática, a fim de encontrar o modelo mais adequado tanto para
aplicação da teoria, quanto na verificação dos seus resultados práticos no
direito brasileiro.
2. Definindo Elementos Teóricos do Direito Civil-Constitucional

O Direito Civil-Constitucional é fruto da reunião dos campos mais


importantes para o Estado e para a sociedade, desde o ponto de vista clássico;
Roma e Grécia, enfim encontram-se unidas1. A constitucionalização do sistema
jurídico passou a ser um dado respeitado e concreto com o Direito Civil
constitucionalizado. Para o Direito Constitucional foi um grande benefício, pois
não há maior prova de invasão da Constituição, do que no ramo da autonomia
da vontade por excelência atravessando dogmas milenares. Melhor ainda para
o Direito Constitucional foi mostrar que é uma matéria prática presente em
qualquer causa civil, e, não apenas reservado às decisões do Tribunal
Constitucional, como os estudos de controle concentrado e tudo que o circunda
poderiam levar a crer.
Tal união, para o Direito Civil foi revitalizadora por três razões. Primeiro,
pela supremacia das normas constitucionais de natureza civil, como as de
conteúdo de Direito de Família, que operaram uma revolução no ordenamento;
todo o plano de aplicação judicial baseou-se na leitura constitucional do Direito
Privado. Tais princípios são encontrados em toda causa civil, principalmente
sobre propriedade e família.
Segundo, pela revolução legislativa, com novas leis de Direito Privado,
que se tornaram necessárias após a promulgação da Constituição; desde
então, seguiram-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de
Defesa do Consumidor, as leis de união estável, o Estatuto do Idoso, entre as
mais destacadas. A partir da quebra da percepção direito público e privado são
antagônico passou-se a olhar no campo de avanço do direito civil-
constitucional, pois boa parte da tarefa está na detecção dos problemas
reiterados no direito privado e da tranposição para as necessidades coletivas,
seja como forma de reforma – elaboração legislativa de direito privado – seja
como forma de política pública, com proteção a direitos fundamentais, alguns

1
Parafraseando a frase cunhada por Eros Grau, no recebimento da medalha Teixeira
de Freitas, no Instituto dos Advogados Brasileiros, com sede no Rio de Janeiro, sobre a
supremacia do Direito Constitucional: – “ontem os Códigos; hoje as Constituições. A revanche
de Grécia contra Roma”. A primeira parte da frase fora concebida por Paulo Bonavides, ao
assinalar que as Constituições prevalecem sobre os códigos. O Direito Civil-Constitucional
concretiza a reunião com técnica e aplicabilidade.
dos quais tradicionalmente concebidos como do direito privado. Bom exemplo
ante a desproteção do direito de intimidade, consequente da detecção da
carência em reiterados e diversos setores privados, foi a política pública
resultante, que justificou na Espanha a agência de proteción de dados
personales, a qual também foi adotada na Itália, com igual teor. É resposta
pública aos interesses individuais fundamentais e concretização da
transposição privado-público garantizadora; verdadeira ferramenta a serviço
do direito civil-constitucional.
O novo Código Civil, para muitos não acompanhou a Constituição,
limitando-se a algumas cláusulas abertas, que revelam certa socialização do
direito e, ainda, um pequeno capítulo referente aos direitos da personalidade,
porém desatualizado, em relação à Constituição Federal de 1988. Deveria, pelo
ano que foi promulgado ter avançado mais; porém o longo trâmite fez com que
já nascesse velho. O novo Código Civil sofre diversas críticas, resumidamente,
porque não se orientou a partir de um pensamento teórico do Direito Civil-
Constitucional, o único a condicionar o Direito Privado às exigências do direito
constitucional contemporâneo. Tais críticas podem ser notadas na autoridade
de Gustavo Tepedino, um ano antes do projeto do novo Código Civil ser
aprovado:

“Daí o desajuste maior do projeto: ele é retrógrado e demagógico. Não


tanto por deixar de regular os novos direitos, as relações de consumo,
as questões da bioética, da engenharia genética e da cibernética que
estão na ordem do dia e que dizem respeito ao Direito Privado. E não
apenas por ter como paradigmas os códigos civis do passado (da
Alemanha, de 1896, da Itália, de 1942, de Portugal de 1966), ao invés
de buscar apoio em recentes e bem sucedidas experiências (como, por
exemplo, os Códigos Civis de Quebec e da Holanda, promulgados nos
anos noventa). O novo Código Civil nascerá velho principalmente por
não levar em conta a história constitucional brasileira e a corajosa
experiência jurisprudencial, que protege a personalidade humana mais
que a propriedade, o ser mais que o ter, os valores existenciais mais do
que os patrimoniais.”2

2
Cf. Gustavo Tepedino, o Novo Código Civil: duro golpe na recente experiência
constitucional brasileira, p. 57.
A leitura dogmática do novo Código Civil Brasileiro inclui muito e muito
pouco – uma excessiva regulamentação e proteção do interesse da
propriedade minunciosamente regulado, por um lado e, por outro uma proteção
insuficiente dos interesses dos idosos, dos deficientes, dos analfabetos e
hipossufientes culturalmente, juridicamente e financeiramente e que são partes
em diversas situações em que a lei (direito privado) se projeta na sociedade
civil.
A terceira, e principal mudança, entretanto não foi sentida pelas normas
infraconstitucionais de direito civil, mas pelos direitos fundamentais, irradiados
para a órbita civil, metaforicamente falando, um novo centro de gravidade entra
na órbita do planeta (o direito privado) e o sol (a Constituição), em que a luz
que irradia corresponde aos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais
com aplicação direta e imediata, expressamente estabelecida (§1º do art. 5º), e
de forma imutável – pois são cláusulas pétreas –, reordenaram a matéria civil.
Essa invasão dos direitos fundamentais nas relações entre particulares3 é a
questão de primeiro plano do Direito Civil-Constitucional. Civilista ou
constitucionalista que seja adepto as transformações ocorridas no direito
constitucional dos últimos anos há de trabalhar o tema. As múltiplas
possibilidades concretas podem ser resumidas a uma finalidade só: transformar
a ordem privada, exigindo uma postura constitucional de todos os indivíduos,
em especial respeito aos direitos fundamentais. Isso não quer dizer que todos
serão controlados pelo Estado, muito pelo contrário, todos serão livres, desde
que respeitem, integralmente, os direitos fundamentais de terceiros. É essa a
nova – e correta – leitura da liberdade. A noção que abarcava o Estado liberal,
de que ao particular tudo é lícito, desde que não seja proibido por lei, e, ao
administrador e seus agentes só é lícito fazer o que a lei proclama, acabou.
Todos – públicos e privados – no seu agir devem fazê-lo com uma postura
compatível com os direitos fundamentais. Essa é a medida e o fim da liberdade
no direito constitucional contemporâneo.

3
Cf. Para saber por que entre particulares e não relações privadas, bem como a
questão terminológica, consultar nosso primeiro livro, ‘Obtenção dos Direitos Fundamentais
nas Relações entre Particulares, p. 132-134’.
As relações verticais, de autoridade entre o poder público e o particular
são cada vez mais reduzidas (limitando-se as relações especiais de poder,
como militar em serviço sujeito ao comando militar). Os direitos fundamentais
são as pautas a guiarem as relações jurídicas, por isso, hoje, fala-se de
horizontalidade dos direitos fundamentais, como uma aplicação eqüitativa, para
todas as relações, sem implicar primazia a uma relação desigual. Essa
igualdade manifesta-se no recebimento dos direitos fundamentais. A vinculação
dos particulares entre si aos direitos fundamentais é (I) plena, pois não tem
relação de autoridade ou verticalidade; (II) direta, pois não tem necessidade de
intermediação legislativa, e, conseqüentemente, o direito fundamental pode ser
usado diretamente da Constituição; (III) e irradiante, atuando em todos os
campos jurídicos indistintamente, com força invasora e preenchendo o
conteúdo dos direitos fudamentais nas relações empresariais, civis,
consumistas, trabalhistas4, advindas do biodireito, só para citar a interação do
Direito Privado a partir da Constituição.
Dois avisos, um dirigido aos civilistas e o outro a constitucionalistas. Aos
civilistas, que exploram muito bem as normas de Direito Civil na Constituição, o
Código Civil, com suas potentes cláusulas gerais e a multidisciplinariedade do
Direito, é importante que a todo o momento remontem a obtenção dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares. É essa teoria-elemento5 do
neoconstitucionalismo, que maximiza os direitos fundamentais e pode
transformar a ordem social. Tanto se fala que o Direito muito discute e pouco
consegue mudar a ordem social de fato – essa é uma das críticas do
movimento norte-americano critical legal studies – que quando ocorre uma

4
O Direito do Trabalho ora é classificado como ramo do Direito Privado, ora
considerado, por uns, ramo do direito misto e, ora considerado por outros, ramo do Direito
Público. Fato é, que independentemente dessa discussão as relações trabalhistas são
compostas por partes privadas, geralmente repartidas entre empregador e empregado e,
portanto, aplicáveis, plenamente a teoria dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares com eficácia direta e imediata.

5
Riccardo Guastini, considera a vinculação das partes privadas aos direitos
fundamentais um dos principais (7) elementos do Neoconsitucionalismo. Cf. Riccardo Guastini,
La Constitucionalización del Ordenamiento Jurídico, p. 55.
potente teoria capaz de transformar a sociedade, não se valoriza quanto se
deveria. Estamos a falar da potencialidade da vinculação direta dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares, como teoria apta a desenvolver
mudanças na sociedade (I). Conseguir penetrar os direitos fundamentais,
fartamente previstos pela Constituição, em todas as relações sociais, de forma
direta e imediata é possibilitar, por meio do Poder Judiciário, mais liberdade e
igualdade no mundo da vida. Um dos seus maiores fatores é acabar com a
desigualdade discriminatória, muitas vezes escamoteada pela lei (II).6 As
outras inovações do Direito Civil Constitucional têm de ter esse ponto de
encontro, os direitos fundamentais nas relações entre particulares, interação
vital junto com a transposição e redução entre o espaço privado e o espaço
público, garantizador (III). Dois pontos basilares do direito civil-constitucional
que funcionam em prol da dignidade humana7 (IV). Outro ponto a ser
destacada, que apesar de partir do direito civil italiano, o direito civil-
constitucional brasileiro se reformou e, hoje, é uma expansão e produção
autenticamente nacional.
Gustavo Tepedino, chama à atenção que o ordenamento, hoje, não se
resume ao direito positivo, pois é sistemático, axiológico e centralizado em
torno da Constituição, com seus princípios jusfundamentais conformando a
unidade jurídica8 e a fusão dos horizontes privados se materializa através dos
direitos fundamentais, por isso mesmo incide a teoria com irradiação.
Outros temas, de reconhecida importância, operam em uma dimensão
secundária. Primeiro a Constituição, com sua abertura irradiante, invade o
Direito Privado – aí incluídos os direitos fundamentais implícitos, como o direito
à solidariedade ou as ações existenciais – depois em uma segunda dimensão,
o civilista parte para trabalhar os dispositivos do Direito Civil, mesmo aqueles
principiológicos não deduzidos do texto constitucional. A revisão das fontes e a

6
Cf. Juan Maria Ubillos, Proibição de Discriminação e Relações entre Particulares, p.
399.
7
Cf. Maria Celina Bodin de Moraes, A Constitucionalização do Direito Civil e seus
Efeitos sobre a Responsabilidade Civil, p. 439.
8
Cf. Gustavo Tepedino, Normas Constitucionais e Direito Civil na Construção Unitária
do Ordenamento, p. 315.
multidisciplinariedade do Direito Privado – seria melhor falar em
intercomunicabilidade, como no caso do biodireito – completam as mudanças9
que o neoconstitucionalismo causou no Direito Privado, agora conhecido e
respeitado como Direito Civil-Constitucional. Sim, o termo criticado por parte da
doutrina constitucional é preciso. Primeiro transmite a idéia de correlação e
comunicação entre Direito Civil e constitucional, não é mais primazia de uma e
isolamento do outro. Segundo, é exatamente a leitura do Direito Civil, em todo
o momento, à luz da Constituição, sem possibilidade de contornar essa
conexão. A neomenclaura civil-constitucional é o maior atestado dessa
realidade.
Virgílio Afonso da Silva crítica a expressão Direito Civil-Constitucional
por entender que as normas de Direito Civil não deixam de ser de Direito Civil,
pelo simples fato de estarem consagradas no texto constitucional.10 Também
entende equivocada a expressão porque remete a uma parte do Direito Civil
constitucionalizado, entendendo que outra não constitucionalizada poderia
subexistir, alegando, ainda, que se visto o Direito Civil como um todo
constitucionalizado a expressão perde o sentido, porque aí só existiria um
Direito Civil, o constitucionalizado.
Não parece que seja assim, a sutileza da linguagem não afasta o uso
correcional da expressão Direito Civil-Constitucional. É todo Direito Civil
constitucionalizado e não só uma parte, e, ainda que continuem de natureza
civil, ao terem sido constitucionalizadas, muda-se o paradigma, de
interpretação e aplicação do Direito. É a mudança de enfoque, de espírito
interpretativo que a expressão civil-constitucional tenta assinalar. A serem

9
O primeiro tema, em importância, de direito civil-constitucional é a obtenção dos
direitos fundamentais nas relações entre particulares, logo seguido pela transposição entre
espaço privado para política pública garantizadora, então, depois, vem a revisão das fontes do
direito, matéria que afeta intensamente o direito privado, para depois relacionar-se a
multidiciplinariedade dos campos privados, bem como o preenchimento das cláusulas gerais, e,
dos conceitos indeterminados no direito privado, e, por último, as teorias que relacionam as
regras de direito privado. Essa é a leitura do direito civil-constitucional, onde o último momento
é aquele que era tido como o único e principal, as regras de direito civil.

10
Cf. Virgílio Afonso da Silva, a Constitucionalização do Direito, p. 170-171
seguidas as críticas de Virgílio Afonso da Silva, qualquer terminologia
acrescentada (civil constitucional), que deixasse a passada ter efeitos somente
de Direito Civil, estar-se-ia a radicalizar os usos dos termos jurídicos, sempre
no sentido de superação completa do paradigma anterior, e, sabemos que não
é assim. A expressão civil-constitucional tem propriedade jurídica inestimável,
pois coloca o Direito Civil conectado, a toda causa a toda interpretação, à
Constituição, e, o Direito Constitucional coloca-se mais presente na sociedade.
Os motivos que levaram ao desenvolvimento não são novos; potências
privadas que muitas vezes não realizam atos frontalmente à lei, mas induzem a
uma situação de fato que atinge a um direito fundamental, pela realidade
demonstrada. Quem mais pode produzir prejuízo à vida alheia, o Estado ou
outros entes particulares? Bancos, organizações sindicais, grupos de pressão,
a mídia, clubes privados, têm, conjuntamente, muito mais poder do que o
Estado, já limitado nas suas atribuições11. Vincular os particulares as mesmas
limitações é matéria constitucional por essência e finalidade, e os direitos
fundamentais representam a pauta objetiva para alcançar tal telos,e,

“a exigir que o princípio da dignidade do Homem, que serve de


estrutura ao edifício das Constituições da Era Moderna, venha
fundamentar a extensão da eficácia dos direitos fundamentais às
relações privadas, ou seja, a eficácia externa, também denominada
direta ou imediata, que na prática coincide com o chamado efeito
horizontal do elenco dos direitos, de liberdades e de garantias que
através dos tempos granjearam assento nos Estatutos Supremos das
nações. (grifo original do autor)12.

11
A grande conquista do positivismo jurídico foi limitar os poderes do Estado, além de
dar cientificidade ao direito. Para dar garantias, trabalhar o conteúdo material dos direitos
fundamentais, e, limitar o particular, o positivismo se mostrou ineficaz.

12
Cf. Carlos Roberto Siqueira Castro, Aplicação dos Direitos Fundamentais às Relações
Privadas, p. 41.
3. Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares

A construção histórica da obtenção dos direitos fundamentais entre os


particulares desejou limitar a liberdade excessiva dada a certos particulares,
que, se tornavam verdadeiros poderes privados, porque sempre se defendiam
respaldados na autonomia da vontade, norteadora do Direito Civil, e, com
certos ajustes (por vezes distorções), quase nunca se encontravam fora da lei.
Os direitos fundamentais não se encontram em um estreito objeto traçado,
como as vedações civis. A abertura do texto permite enxergar situações antes
não imaginadas e a pretensão de correção agir sobre esse dado. A intensidade
da eficácia vai mostrar a baila o grau de pretensão de correção almejado e
atribuído pelo Poder Judiciário. As gradações dos direitos fundamentais
penetram diversamente nos momentos da vida privada, pois a autonomia da
vontade do século XXI é bem mais restringível do que aquela concebida nos
Códigos do século XIX.

São as causas individualizadas, submetidas ao Poder Judiciário, que


poderão modificar os efeitos na sociedade civil com o correto uso da teoria. As
situações provocadas, muitas vezes, se baseiam em leis constitucionais, mas é
no ato privado, na atitude do particular ou no negócio jurídico privado, onde se
contraria um direito fundamental, sem que a lei correspondente seja
inconstitucional. Se o poder público violar o direito fundamental será impelido a
cessar a lesão e reparar o dano. Por que o particular não teria a mesma
limitação? A liberdade de agir, fundada na autonomia privada, não pode
justificar uma resposta constitucional diversa, uma quando o Estado é violador
dos direitos fundamentais, e outra quando o particular é quem realiza ato
nocivo a direito fundamental.

“Tal significaria legitimar a contraposição de duas éticas fincadas no


mesmo e único fundamento da dignidade humana: a ética pública
sujeita ao dever de respeito aos direitos fundamentais, ao lado da ética
privada, liberada de semelhante dever. Por isso o autor de superior
qualificação – JEAN RIVERO – arremata sustentando que numa
sociedade não há lugar para duas concepções opostas do homem, uma
delas válida nas relações de Direito Público, a outra nas relações de
Direito Privado.”13

Tal lógica de relacionar os particulares à Constituição, na mesma


medida com que fazia ao Estado, aos poucos, foi implementada, em especial
na Alemanha, onde três das quatro teorias sobre o tema foram desenvolvidas.
O debate se iniciou em 1950, no pós Segunda Guerra Mundial, com a
produção de vanguarda do Tribunal Constitucional alemão. A visão do governo
como grande vilão da sociedade passou a ser tida como arcaica e, cabia ao
Judiciário a função de combater as inconstitucionalidades praticadas pelos
poderes privados.

“Deste modo nova doutrina nasce já marcada com um cunho ideológico


preciso cuja finalidade era favorecer ativismo judicial para procurar a
realização efetiva da Constituição” 14

A teoria embrionariamente surgida, na década de 50, na Alemanha,


causou sério embate entre civilistas e constitucionalistas. A eficácia direta dos
direitos fundamentais nas relações entre particulares, permitia que já aquela
época os direitos fundamentais fossem aplicados diretamente, num caso civil,
derrogando, se fosse o caso leis civis, ainda que no caso em concreto pleos
efeitos produzidos, sem que legislador fosse consultado, bastando o
julgamento do juiz, que na Alemnha era do Tribunal Constitucional. Muitos se
mostraram temerosos ao enfraquecimento do direito civil tradicional, atacado
no seu seio, a autonomia privada. Agora seria regido pelos princípios
constitucionais, dotados, além de tudo de supremacia constitucional.

E a partir da efetivação da eficácia direta, muitas objeções foram


criadas, tanto assim, que se mantiveram legitimadoras da eficácia indireta,
adotada hoje, na mesma Alemanha. Não dava para negar mais, alguma
eficácia às normas constitucionais na órbita civil, então se criaram objeções

13
Cf. Carlos Roberto Siqueira Castro, A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais,
p. 258.
14
Cf. Alexei Estrada, La Eficácia de los Derechos Fundamentales Entre Particulares, p.
95.
desconstrutivas para que a alternativa, a eficácia indireta, fosse adotada. É
oportuno verificar, em um primeiro momento, as principais objeções à eficácia
direta e imediata, que já apareceram com força em 1958.

A primeira das objeções é do salto sobre o legislador15, isto é, que o


legislador ficaria usurpado das atribuições de tratar a matéria, com a aplicação
direta dos direitos fundamentais. Essa objeção pode ser facilmente, rebatida,
percebendo-se que o legislador não pode disciplinar nada de forma contrária à
Constituição, e, nem todas as condutas humanas podem ser taxativamente
previstas, portanto, haverá sempre alguma que escape do legislador e seja
inconstitucional, por contrariar direitos fundamentais. O que nos leva a
perceber que a teoria dos direitos fundamentais aplicados aos particulares
serve, especialmente, em face ao agir privado inconstitucional.

A omissão legislativa se converteria recorrentemente em


inconstitucionalidades no campo do Direito Privado, caso o legislador tivesse
que atuar em todos os espaços. Bom exemplo ocorreu com o Código Civil de
1916 que tentou, sem sucesso, suprir todos os espaços de enriquecimento
sem causa, fixando inúmeras regras. Tudo por não disciplinar expressamente o
princípio. Ciente da falha, que era a todo o momento corrigida pela
jurisprudência, o Código Civil de 2002 disciplinou, em capítulo próprio, o
enriquecimento sem causa, agora de modalidade principiológica.

A segunda objeção refere-se à perda da autonomia privada, com a


invasão dos direitos fundamentais em qualquer órbita. Essa objeção, repetida
até hoje, perde em força argumentativa, quando se atribui um peso a
autonomia privada, na ponderação em face ao outro direito fundamental
supostamente violado no caso concreto. Mesmo que se entenda pela eficácia
direta forte, não há que a autonomia privada ser o direito fundamental a impedir
a aplicação dos demais direitos fundamentais, pois é ela mesma a causadora
do problema que levou a criação da teoria: o excesso de autonomia da
vontade, regendo as relações entre particulares, levou a necessidade da
aplicação direta dos direitos fundamentais, para humanizar as relações

15
Cf. Gustavo Tepedino, Normas Constitucionais e Direito Civil na Construção Unitária
do Ordenamento, p. 316.
jurídicas postas na sociedade. A causa não pode servir de escusa a própria
torpeza. Ainda assim, o núcleo essencial da autonomia continua preenchível
via ponderação e sempre que não violar direito fundamental. Assim, a prática
constitucional acolheu a segunda objeção mitigando seus efeitos.

A terceira objeção que se faz à projeção dos direitos fundamentais nas


relações entre particulares é o excesso de poderes conferido ao juiz. Esta
objeção é também oposta ao neoconstitucionalismo e, valem os mesmos
argumentos de maior estaque a atividade judicial para agora; em suma, o
neoconstitucionalismo aposta no Poder Judiciário e no Ministério Público com
mais poderes e meios de atuação. O uso manifesto de maior atividade judicial
deve ser justificado, argumentativamente, nos princípios da Constituição, e nos
limites de sua teoria, bem como composto pela teoria contemporânea da
separação dos poderes e com forte carag justificativa apoiada em uma boa
teoria da argumentação jurídica e nos demais critérios de racionalidade prática
que são responsáveis por diminuir a racionalidade prática.

A quarta objeção, da instabilidade das Constituições em contrapartida à


estabilidade do Código Civil, não prospera mais pela afirmação constitucional
brasileira e européia continental – dos Estados Unidos nem se fala – e pela
constante alteração das leis privadas, em que a legislação especial é a fuga,
para não se promulgar um novo Código a cada vinte anos.

A quinta objeção é a possibilidade de menção meramente retórica ao


direito fundamental que, na verdade, é ausente, pois falsamente alegado no
caso concreto. A essa objeção, cabe pontualmente reconhecer que o direito
fundamental alegado, para derrubar práticas civis, deve ser preenchido
argumentativamente e a teoria da argumentação, ao lado do subprincípio da
adequação opera papel de destaque na observância dos limites à aplicação
dos direitos fundamentais. Tais limites não são suficientes para afastá-la de
plano, servindo apenas para delimitá-la, nos momentos que seria excessiva ou
resultaria em contrariar outro princípio. Ainda que perdesse no caso, poderia
ser legitimamente invocada. A ponderação é, intrinsecamente, a operação
trabalhada muitas vezes na eficácia direta e a teoria da argumentação
corretamente sustentada é a outra operação.
A sexta a e última objeção, a de ingerência no espaço privado,
conseguiu, em outros países, limitar a eficácia direta a uma intensidade direta
fraca, e, em outros, afastá-la para se adotar a eficácia indireta. A justificativa
para não acolher tal objeção é encontrada na situação fática brasileira, em que
o direito tenta corrigir. Em países com acentuada desigualdade, como o Brasil,
a ingerência que coincida com o conteúdo dos princípios jusfundamentais é
necessária. Uma eficácia moderada ou indireta16, que não invada o espaço
privado, somente é possível, quando a disputa no espaço privado é alcançada
com natural respeito aos direitos fundamentais e, quando possível, mediante
consenso. Em países com uma base de igualdade, respeito à lei, e solução
pacífica dos conflitos, pode-se pleitear uma eficácia indireta. Em países como o
Brasil, a defesa da eficácia direta é sentida porque necessária socialmente e
exemplificativa da pretensão de correção. Ainda que todas as objeções sejam
destacadas, um último argumento de autoridade: a eficácia direta foi a que a
Constituição adotou de forma perene, pois que cláusula pétrea (§1º, artigo 5º).
Não aplicá-la é negar frontalmente o texto constitucional, e, não apenas a
preferência da doutrina. A construção teórica é estrangeira, mas o texto
constitucional gravado como clausula imutável é brasileiro e estende-se a
todos os direitos e garantias fundamentais. Ademais, uma carterística material
do neoconstitucionalismo é a eficácia direta e onipresente das normas
constitucionais jusfundamentais17.

Dois componentes a mais são importantes na compreensão da opção


pelo grau de eficácia. O primeiro é a forma de controle de constitucionalidade.
Em países onde a jurisdição de matéria constitucional é exclusiva ao Tribunal
Constitucional, fica dificultada uma adoção da eficácia direta, pois o Tribunal

16
A eficácia indireta opera por meios de cláusulas gerais do Direito Privado, costumes e
boa-fé, que fazem o intercambio entre Direito Constitucional e Direito Privado, o que poderia,
no Brasil, levar, perigosamente, a uma inversão do Direito Civil-Constitucional, isto é,
interpretar o Direito Constitucional à luz dos valores civis, o que é claramente indesejado.
Ficaria até surpreendente, aplicar os direitos fundamentais travestidos de princípios do Direito
Privado, ainda mais sem termos por aqui cultura constitucional de apontar uma omissão
(inconstitucional) do legislador, termo essencial na teoria indireta.
17
Cf. Ricardo Guastinni. La “constitucionalizacíon” del ordenamiento jurídico: el caso
italiano.
Constitucional seria revisor máximo de toda a matéria de direito privado,
consequentemente, toda a matéria seria submetível a ele. A questão
constitucional, quando relevante, seria submetida ao único órgão que pode
decidir a matéria. Aqui todos os juizes decidem sobre a matéria civil-
constitucional. Por isso, artifícios, – como os observados pela teoria dos
deveres de proteção, que remete a questão civil, pela via da ação de
inconstitucionalidade por omissão, ao Tribunal Constitucional18 –, não seriam
necessárias e nem viáveis no Brasil. O reconhecimento da omissão legislativa
encontra, em solo brasileiro, sérias dificuldades de reconhecimento e plena
efetividade.

Já a possibilidade de controle difuso, com ampla aplicação do Direito


Constitucional nos juízos ordinários, permite a eficácia direta e imediata em
qualquer caso de Direito Privado, do mais simples ao mais complexo, do juiz
recém empossado, ao Supremo Tribunal Federal; todos podem aplicar
diretamente os direitos fundamentais nas relações entre particulares, sem
necessidade de qualquer intermediação, legislativa, consulta judicial, ou
eficácia indireta. O controle de constitucionalidade, nos moldes brasileiros –
que também veicula a teoria dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares no controle concentrado – não necessita de firulas teóricas,
facilitando a concretizaçao da opção do legislador constituinte, contida no §1º
do artigo 5º.

A segunda questão, sobre a matéria refere-se às ações cabíveis.


Também no Direito brasileiro toda e qualquer ação pode veicular direito
fundamental, não importando sequer o nome da ação – embora importe outros
condicionantes processuais, como o procedimento apropriado – em respeito ao
livre acesso a justiça. Nosso sistema só não é o ideal para vincular os
particulares aos direitos fundamentais de forma direta, porque não existe uma
ação com o fim específico de tutelar os direitos fundamentais, como o recurso
de amparo do direito espanhol e mexicano. Já não é sem tempo, em pleno
desenvolvimento do neoconstitucionalismo de se adotar uma ação

18
Para ver mais sobre a teoria dos deveres de proteção, Cf. Daniel Sarmento, A
Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais no Direito Comparado e no Brasil, p.
237.
constitucional plena e incondicionada, como o recurso de amparo espanhol ou
o recurso de proteción chileno. Nosso mandado de segurança é velho, em
idade e espírito, pois traz muitas condicionantes – prazo de 120 dias, limitação
da matéria probatória, necessidade de apontar autoridade coatora do poder
público ou delegada, entre outras –, que não se coadunam com nossa
Constituição axiológica e democrática. A justificativa de uma ação nos moldes
do recurso de amparo é derradeira: os direitos fundamentais são os direitos
mais especiais do ordenamento, então merecem um tratamento especial. Uma
ação que impeça qualquer violação ou ameaça a direito fundamental, com rito
célere e especial é, sem duvida concretizadora de tais direitos e completa a
teoria dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Vale lembrar,
que na Espanha, a teoria da eficácia direta teve grande recepção pela
facilidade do seu uso, e, especial atenção para a resposta processual,
chegando à teoria a ser confundida com a própria potencialidade do instituto
processual do recurso de amparo.19 Superadas essas duas questões, de
controle de constitucionalidade e de acesso à justiça e proteção processual, a
opção, no Brasil, pela eficácia direta não é mais uma questão de escolha, mas
de correta interpretação constitucional.

Não acreditamos que no Brasil, se possa defender, como se faz até hoje
nos Estados Unidos, que as normas constitucionais não se aplicam
diretamente às relações entre particulares. Com o passar da história norte-
americana essa vedação foi gradativamente atenuada, mas até hoje, mostra-se
presente. Resumidamente e simplificadamente, caso os particulares não
pratiquem racismo, nem estejam tratando de prévias eleitorais, e, sobretudo,
não se valham do Estado para nada, nem mesmo para um benefício fiscal, ou
para uma autorização da Administração Pública, então eles são livres para
atuar respeitando apenas seus precedentes e Statutes20. Nesse espaço
privado, sem qualquer relação com os poderes públicos norte-americanos, as
normas constitucionais não penetram nas relações entre particulares. Só há
vinculação das normas constitucionais se ficar provado, no caso concreto, que

19
Cf. Juan Maria Ubillos, la Eficácia de los Derechos Fundamentales Frente a
Particulares, p. 77. Sem dúvida alguma, é o livro mais completo e dinâmico sobre o tema.

20
Cf. Jane Reis, Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais, p. 476.
o particular se utilizou de alguma ligação com o Estado. Caso o contrário, não
poderá a Constituição ser invocada – e ainda não se tratar de racismo ou de
casos sobre partidos políticos. O espaço público e privado será decisivo, para
saber se há de fato ou de direito, ligação do particular com o Estado. Essa
teoria tem reconhecimento em um país com grande respeito a autonomia da
vontade, cunhado no liberalismo, no capitalismo de mercado, no sistema dos
precedentes, e nas statutes estaduais, em respeito ao peculiar federalismo
norte-americano – em que Estados-Membros da federação do tamanho de
países europeus e de muitos dos nossos vizinhos sul-americanos, legislam
autonomamente em diversas matérias civis –; fatores ligados a condição de
formação dos Estados-membros dos Estados Unidos. Esses não são valores
brasileiros, nem práticas comuns aqui. Somente por isso a State Action
doctrine deve ser descartada para o Brasil, além dos óbvios motivos já
referidos.

A eficácia direta passa, no Brasil, por um período de conhecimento do


público em geral e de primeiras manifestações na jurisprudência, sempre com
adesões registradas. Ao mesmo tempo é importante divulgar a eficácia direta, é
muito importante, pois, aferir a intensidade pragmática de sua medida. Wilson
Steinmetz classifica três posições acerca da intensidade da eficácia imediata e
direta: a fraca, a intermediária e a forte:

“Segundo a versão forte, nas relações entre particulares, os direitos


fundamentais operam eficácia geral, plena e indiferenciada; em uma
expressão, eficácia absoluta. Essa versão é atribuída a Nipperdey.
Conforme a versão fraca, os direitos fundamentais operam eficácia
imediata entre particulares, sobretudo nas relações marcadas pela
desigualdade fática, quando, de um lado, está um particular em posição
de supremacia econômica e/ou social. Por fim, há uma versão
intermediária, segundo a qual a eficácia de normas de direitos
fundamentais entre particulares é imediata, porém não é ilimitada,
incondicionada e indiferenciada. Se o problema da eficácia de normas
se apresenta como um problema de colisão de direitos fundamentais,
então a solução deve resultar da aplicação do princípio da
proporcionalidade, de modo especial do princípio da proporcionalidade
em sentido estrito (a ponderação de bens), terceiro elemento ou test do
princípio da proporcionalidade.”21

21
Cf. Wilson Steinmetz, a Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais, p.
169.
Os três graus de intensidade podem ser resumidos, segundo a minha
percepção, da seguinte maneira. A eficácia direta fraca verifica-se quando for
atribuída eficácia direta nas relações entre particulares somente nos casos em
que esteja presente a hipossuficiente de uma das partes, técnica, financeira ou
intelectual, funcionando nos termos do Código de Defesa do Consumidor. Para
as partes que operam em condição de igualdade, como contratantes
equivalentes, não poderiam ser invocadas as normas constitucionais. É uma
tentativa de se mitigar a teoria, sem fugir do reconhecimento da eficácia direta,
como opção constitucional inafastável. Traz, contudo, um inconveniente, de
complicar a questão processual, ao exigir mais um requisito, o da verificação
da hipossuficiência. Como não existem condicionamentos na Constituição ao
§1º do artigo 5º, essa não parece ser a melhor opção teórica. Tampouco
parece ser compatível com o neoconstitucionalismo, com princípios sempre
presentes, independentemente da fraqueza da parte, pois a pretensão de
correção age conduzindo os direitos fundamentais. Em suma, não há que se
primeiro averiguar desigualdade fática entre os particulares para se aplicar a
teoria.

Na eficácia direta de intensidade média a ponderação faz-se necessária,


toda vez que a teoria for invocada. A autonomia privada, como direito
fundamental, sempre se oporá a outro direito fundamental. Não faz sentido
incluir a autonomia privada como direito fundamental sempre protegido
justamente porque a razão da elaboração teoria da eficácia direta é o excesso
e mau uso da autonomia privada, a qual criou situações, em concreto
violadoras de direitos fundamentais. A aceitação da intensidade direta e média
importa em considerar que toda vez que a eficácia direta for invocada, haverá
ponderação, e a autonomia privada poderá prevalecer. Isso pode, mas não
deve, necessariamente, acontecer, primeiro porque a ponderação não é um
critério corriqueiro, é exceção, usada apenas nos casos difíceis e trágicos. Não
nos parece que toda vez que se fale em proteger um direito fundamental
invocado por particular diretamente da Constituição para casos de Direito
Privado, deva se ponderar face a autonomia privada. Se a autonomia for
utilizada na ponderação, ela deverá ter força mitigada prima facie, isto é,
atribui-se menor peso a autonomia privada em abstrato, e o exercício
argumentativo pela sua prevalência é, conseqüentemente, maior. Esse é o
parâmetro da ponderação específico para a obtenção dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares.

Os casos decididos pelo Supremo Tribunal Federal na matéria ilustram


bem essa afirmação. Ao se reconhecer a eficácia direta ao funcionário expulso
da cooperativa, o Supremo não teve de sopesar com a autonomia privada, pois
existem limites imanentes e derivados da melhor compreensão do texto
constitucional. Usar sempre a ponderação é abusar desse recurso e emperrar
a eficácia direta, permitindo por vezes, que a autonomia reapareça para tentar
vedar a eficácia direta, o que se usada sempre, levaria a um possível colapso
da própria eficácia direta a mercê de seu próprio problema. Seria o caso do
veneno se voltar contra a cura, legitimado pela aplicação jurídica. Defendemos
que como parâmetro da ponderação, o próprio motivo de fundamento da teoria
da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, não pode ser usado
sempre; quando presente a ponderação será realizada por outros direitos
fundamentais em conflito, como a liberdade de contratação (de demitir) e a
liberdade individual (de usar barba); quando necessária, porque a autonomia
privada repercute juridicamente e ela aparece só, então a ela éa atribuído peso
menor em concreto para solucionar a teoria. Aí, sim, em casos como esses
dois, haverá ponderação. Somente pela invocação da autonomia privada não,
exceto se atingir o seu núcleo essencial.

Deve-se verificar a adequação da autonomia privada me primeiro lugar.


Caso tenha fundamentos para a ponderação de um direito fundamental em
face da autonomia privada, esta deva prima facie ser mitigada, em respeito a
um parâmetro da ponderação. A questão fica ajustada com outro parâmetro da
ponderação da própria eficácia direta, a da localidade; quanto mais for privado
o local onde o Direito está em discussão, menos o direito fundamental há que
prevalecer, do contrário, quanto mais público for o local, mais ele terá de se
protegido. Uma desigualdade em uma escola é muito mais grave do que uma
desigualdade com seus filhos, exemplo máximo da órbita privada, que é a casa
e a família. Mesmo assim, há quem defenda participação democrática dos
filhos na decisão da família, por respeito aos princípios do Estatuto da Criança
do Adolescente, e quem lembre das disposições testamentárias, que garantem,
por lei, metade para os herdeiros necessários, mesmo contra autonomia da
vontade. Neste caso, não tem cabimento igualar os filhos em todos os
momentos da vida, por um juízo de razoabilidade. Os parâmetros da
ponderação, quando cabíveis para compor a teoria da eficácia direta devem
ser divulgados e lembrados, e o espaço em que se destina o ato privado
questionado é vital para tal elo.

Por fim, a eficácia direta forte é aquela sem barreiras; se violado o direito
fundamental, o mesmo é protegido de plano, sem restrições, em respeito a
tutela da máxima efetividade. É essa a busca do neoconstitucionalismo;
maximizar os direitos fundamentais para corrigir as falhas do sistema.

A decorrência prática da eficácia direta e forte é que uma parte pode se


defender apenas alegando um direito fundamental violado, sem necessidade
de apontar correspondente lei violada. Basta na parte “dos direitos”, contida na
petição, alegar um direito fundamental argumentativamente e verdadeiramente
preenchido, que ele poderá se sobrepor a regras infraconstitucionais. Não há
intermediação, nem por apontamento, e isoladamente o direito fundamental é
capaz de derrubar regras.
Em sentido contrário ao nosso entendimento, André Tavares, afirma a
impossibilidade da aplicação única do princípio no caso concreto, pelos perigos
do subjetivismo. Sobre os princípios o autor afirma que a “mera opção por certo
princípio, em detrimento do ordenamento jurídico restante, não se comporta em
nenhuma teoria constitucional aceitável.”22 Vale lembrar que o resto do
ordenamento traduz-se em regras.
Completamos esclarecendo que a opção pelo único princípio é derivada
da teoria do direito neoconstitucional, e da supremacia da Constituição e negar
seu aproveitamento máximo é negar a eficácia direta, por aceitar uma das
críticas, a do salto sobre o legislador, ainda que de forma mitigada.
A jurisprudência constitucional brasileira, em poucas oportunidades se
manifestou expressamente sobre o tema da vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais, e, quando o fez, sempre adotou a eficácia direta e

22
Cf. André Tavares, Fronteiras da Hermenêutica Constitucional, p. 88.
imediata, muitos vezes sem menção explícita sobre a intensidade da eficácia
direta. A simples opção pela eficácia direta, não significa, a contrário senso,
que em outra oportunidade ela pode mudar de opinião e se manifestar pela
eficácia indireta; acredito que a menção a eficácia direta, seja para estar em
acordo com a doutrina constitucionalista; se, por sua vez, a jurisprudência
constitucional fica silente sobre o tema, recebe críticas de que não faz uso das
técnicas avançadas de interpretação constitucional – o que não acontece no
Brasil, pois o Supremo Tribunal Federal tem mencionado em suas decisões, as
técnicas mais atuais de interpretação constitucional –, então o Supremo
Tribunal Federal23, discorre sobre o tema da eficácia direta, e o tem feito com
todo o acerto.

4. Conclusão

Neste pequeno apartado, tentamos agrupar importantes teorias (macro)


do direito civil-constitucional, para tanto a reconstrução dentre a aimportnacia
delas foi necessária. Nomeamos a obtenção dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares como a mais importante e destacamos outras que
serão trabalhadas futuramente e serevem de ponto de conexão para
pesquisadores e interessados no tema. É importante, pois, conectar teorias de

23
Casos em que o Supremo Tribunal Federal se manifestou sobre a matéria: Re 201.819-
8 (sobre o direito da ampla defesa e do contraditório de associado expulso de associação civil.
Destaque-se que a Ministra Relatora Ellen Grecie votou contra a eficácia direta e ao que tudo
indica pela não aplicabilidade das normas constitucionais nas relações entre particulares,
sendo voto vencido); Re 158.215-4 (sobre a exclusão de associado da cooperativa aplicando-
se no caso concreto o devido processo legal e a ampla defesa); Re 161.243-6 (em que
trabalhadores brasileiros tiveram seus direitos equiparados a trabalhadores franceses
favorecidos na mesma empresa francesa, por sua nacionalidade). Esses casos em que uma
norma constitucional processual (como o devido processo legal) invocada como direito
fundamental age no caso concreto, não há que se falar em autonomia da vontade para efeito
de ponderação. A eficácia direta dos princípios constitucionais satisfaz sozinha a resolução do
caso, nestes exemplos, não há que realizar juizo de ponderação. Por isso defendemos acima
que nem sempre a autonomia da vontade terá de se invocada inaugurando juízo de
ponderação. A norma fundamental agirá, em casos como esses, sozinha, concretizando a
eficácia direta das normas constitucionais nas relações entre particulares.
direito civil constitucional que permitam uma base para expansão dos temas
correlatos. Uma sintética menção às principais teorias encontrada e que não é
reproduzidas pela doutrina – ao menos na ordem e na enumeração posta – foi
tarefa que tentamos preencher na primeira parte.
Na segunda parte trabalhamos o tema da eficácia direita dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares, o tema de maior articulação entre
constitucionalistas e civilistas, sendo também de grande aplicabilidade prática e
de projeção da doutrina civil-constitucional.
A defesa da eficácia direta e imediata é um dos elementos do direito civil
constitucional que mais possibilita a transformação no plano social. Com a
aceitação, relativa do Direito Civil-Constitucional no Brasil, é hora de
aprofundar as opções e materialidade da obtenção dos direitos fundamentais
nas relações entre particulares com a defesa, irrestrita, da eficácia direta e
sempre que possível forte – somente quando presente direito fundamental à
autonomia privada (no seu núcleo essencial) deve-se admitir a eficácia direta
média – nunca a fraca. O neoconstitucionalismo total propugna pela
intensidade forte da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações
jurídicas particulares e com isto intenta alcançar aprimoramentos signficativos
nas relações sociais; basta para tanto aaprofundar esta ferramente jurídica: a
eficácia direta forte como teoria de mudança social.

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