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1. Introdução
1
SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Teoria do Direito. São Paulo: Saraiva. 2009.
própria República. Nesse sentido, comentam Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan de
Morais2:
2
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Federação. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.;
STRECK, Lenio L. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
3
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1.
Não seria equivocado afirmar que o Direito Empresarial é o ramo mais afetado pelo
dinamismo social, haja vista o caráter permanentemente inovador e competitivo do
mercado empresarial, como consequência direta dos princípios a ele inerentes, a saber:
livre iniciativa, livre concorrência, propriedade privada e autonomia da vontade.
Com frequência é possível verificar o descompasso entre o direito posto e as práti-
cas empresariais implementadas pelo mercado. Diante desse hiato, o Poder Judiciário é
sempre chamado para resolver lides, amalgamando conceitos jurídicos consagrados, fatos
presentes do caso concreto e valores indissociáveis do mundo empresarial, de modo que
a própria jurisprudência acaba por amoldar determinado instituto jurídico, num proce-
dimento claramente marcado pelo pós-positivismo ora inserto em nossa cultura jurídica.
O contrato de factoring ou fomento mercantil é um contrato socialmente típico,
modalidade surgida pela reiterada utilização de determinada forma de contratação no
meio empresarial, em razão de sua aceitação no meio econômico e, também, pelo seu
reconhecimento pela doutrina jurídica e pela jurisprudência. Paula A. Forgioni4 enumera
três requisitos para que um contrato possa ser socialmente típico:
2. Noções históricas
4
FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
5
MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
6
DE LUCCA, Newton. Contrato de factoring. In: BITTAR, Carlos Alberto (coord.). Novos contratos empresariais. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1990.
7
SOARES, Marcelo Negri. Contrato de factoring. São Paulo: Saraiva, 2010.
Muito embora não exista lei específica que regulamente a atividade de fomento
mercantil através do contrato de factoring8, com específico propósito empresarial, é
perfeitamente possível aproveitar os termos da legislação revogada, bem como de demais
atos normativos9, para delinearmos um conceito ao instituto.
8
Fábio Vieira Figueiredo (Contrato de Factoring, objeto, função e prática de fomento mercantil. São Paulo: Saraiva, 2016.
p. 24) assim trata dos conceitos de fomento mercantil e factoring:
“O contrato de factoring é, portanto, uma avença que tem por conteúdo o fomento mercantil. Nessa avença, o faturizador
obriga-se a fomentar o negócio do faturizado, com auxílio financeiro, na medida em que, na esmagadora maioria dos contratos
praticados no Brasil, o que se apresenta é o conventional factoring, sem descurar da aplicação de técnicas administrativas,
financeiras e econômicas de análises e consultoria, de modo a atingir o seu tríplice objeto.
É evidente que o termo factoring, arraigado e mundialmente disseminado, pode ser utilizado até mesmo para que não se
perca de vista o efetivo objeto do pacto havido entre as partes. Entretanto, parece-nos que a terminologia mais adequada
a ser empregada é contrato de fomento mercantil, posto que é disso que se trata. Neste trabalho, aplicaremos de modo
indistinto os termos factoring e fomento mercantil, explicitando, sempre que se fizer necessário, se tratamos do tipo con-
tratual ou do objeto da avença”.
9
Embora não exista lei regulamentadora do contrato de factoring em seus aspectos puramente empresariais, tal atividade
é disposta em diversas leis e atos normativos. Assim, o tema é tratado, como mencionado anteriormente, em legislação
de âmbito tributário, como no anexo dos serviços passíveis de ISSQN, mas também na esfera da normatização da atividade
bancária, por intermédio de previsão em circulares e resoluções do Banco Central e na esfera penal, conforme se depreende
da leitura dos arts. 17,18 e 44§ 7º, da Lei 4.595/1964 e arts. 1º ao 16 da Lei 7.492/1986.
Além de socialmente típico, o factoring pode ser classificado como contrato bilateral/
sinalagmático, oneroso, comutativo, misto e empresarial.
Bilateral ou sinalagmático, porquanto estabelece direitos e deveres recíprocos entre
as partes, com equivalência de prestações. É contrato oneroso, pois para ambas as partes
remanescem proveitos e sacrifícios em relação às prestações pactuadas. Comutativo,
porque as partes, de antemão, já sabem quais são e em que momento suas prestações
hão de ser adimplidas. É misto porque envolve diversas espécies de contratos, nomina-
dos ou não, numa mesma relação jurídica complexa. É empresarial, pois seu objeto é o
fomento mercantil, através da prestação de serviço de análise dos negócios empreendidos
pelo faturizado para escorreita avaliação dos riscos dos créditos a serem adquiridos pelo
faturizador através de cessão civil.
Há divergência acerca da natureza real e bancária do instituto.
Fábio Vieira Figueiredo11 assevera ser o contrato de factoring “um contrato consen-
sual, não formal e não solene. A praxe mostra que o contrato de fomento mercantil pode,
até mesmo, ser firmado verbalmente”.
10
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, contratos, falência, recuperação de empresa. 17. ed.
São Paulo: Saraiva, 2016.
11
FIGUEIREDO, op. cit., p. 73.
12
RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
13
Ibid., p. 1.399.
14
COELHO, op. cit., p. 163-164.
Art. 295. Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não
se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do
crédito ao tempo em que lhe cedeu; a mesma responsabilidade lhe
cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé.
Como exposto acima, poderá ou não haver a antecipação dos valores inerentes aos
créditos cedidos pelo faturizado ao faturizador, posto ser característica imprescindível
ao contrato de factoring a prestação dos serviços de assessoria creditícia, seja na análise
dos riscos a envolver os recebíveis futuros, seja na promoção da cobrança dos títulos
adquiridos perante os primitivos devedores.
Quando o contrato de factoring envolver apenas atividades de prestação cumulativa
e contínua de serviços de gestão de crédito, com a seleção de títulos e avaliação dos seus
respectivos riscos, além da administração de contas a pagar e a receber, por intermédio
da cobrança a ser feita contra os devedores, temos a espécie de maturity factoring,
15
VENOSA, Silvio d Salvo. Direito Civil: contratos em espécie responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2001. p. 475.
16
SOARES, op. cit., p. 47.
17
FIGUEIREDO, op. cit., p. 280-281.
Nos casos concretos envolvendo factoring que chegam nas mais variadas espécies nos
tribunais, raramente o faturizador esclarece a forma de composição de sua remuneração,
o que dá ensejo à abusividade tanto na cobrança da parcela ad valorem, resultante dos
serviços prestados pelo fomentador, como na parcela relativa ao fator, que remunera as
outras prestações da faturizadora.
18
Ibid., p. 282.
Logicamente não podemos entender que, se o fator geral de deságio superar a taxa
de 1% ao mês de juros, haverá abusividade no caso concreto, posto ele ser composto
de juros compensatórios e muitos outros elementos que lhe integram. Mas para que
cheguemos a esta conclusão, é preciso a obtenção de informações precisas e claras sobre
o percentual ou quantia que é cobrada pelo faturizador nos outros componentes do fator
geral de deságio.
De mais a mais, a instituição de instrumentos legítimos no contrato de factoring,
tal como a modalidade de endosso para transferência dos títulos do faturizado para o
faturizador, também mascara a remuneração do negócio e pode dar ensejo à abusividade
contra o empresário contratante do fomento mercantil, através da indevida transferência
do risco do inadimplemento do título cedido ao faturizado, posto tal responsabilidade do
faturizador compor o núcleo intangível do fomento mercantil.
Com muita parcimônia, sobretudo diante da economia de nosso país, é possível
verificar se há abusividade ou não na cobrança do fator geral de deságio em determi-
nado contrato de fomento mercantil, através de uma análise das regras que vem sendo
utilizadas no mercado (usos e costumes). Mas, como foi dito, tal análise deve ser bem
parcimoniosa, haja vista a volatilidade da economia brasileira impingir diferentes práticas
nos diferentes contextos históricos de nossa economia.
Outro critério segundo o qual podemos inferir pela abusividade ou não da remunera-
ção do faturizador é a análise apurada das condições subjetivas do faturizado, que pode
ensejar maior ou menor risco de inadimplemento de seus recebíveis.
19
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc; SZTAJN, Rachel. Direito comercial, teoria geral do contrato: Fundamentos da teoria
geral do contrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. v. 4.
Não raro, pode ser observada em diversas situações a imposição de cláusulas contra-
tuais por um dos contratantes que possui posição econômica, técnica e jurídica mais
avantajada frente ao outro, ao qual somente caberá aceitar ou rejeitar por completo o
pacto.
Nestas situações, há preponderante intervenção estatal, através do dirigismo contra-
tual, cuja conciliação com a regra de autonomia de vontade pode ser obtida bastando
a presença de intenção das partes em constituir, regular e extinguir negócios jurídicos,
mesmo diante de regras cogentes estabelecidas pelo Estado para aqueles casos; ou seja,
não há exclusão de um pelo outro.
A faturização, por ser contrato socialmente típico e misto, tem uma alta carga de
intensidade da autonomia de vontade, pela liberdade de conformação do quanto pode
nele ser objeto de pactuação entre as partes, levando-se em consideração o modo da
operação e procedimento entre os contratantes.
No entanto, diante de diversos abusos cometidos, caracterizados pela tentativa de
desnaturação dos elementos imanentes a tal contrato e pela ausência de regulação legal
sobre o tema, a jurisprudência tem colocado contornos obrigatórios ao factoring, para
permitir a higidez do pacto proposto.
Um dos casos mais emblemáticos é aquele segundo o qual os títulos repassados do
faturizado ao faturizador se dão através de endosso, modo de transferência de cambiais,
em que remanesce a responsabilidade do transferidor pela solvência do título.
Como fora salientado anteriormente, ao faturizador se transfere a responsabilida-
de pela solvabilidade dos títulos, sem que possa haver direito de regresso em face do
faturizado. Tal característica imanente ao factoring se reflete na própria remuneração
paga ao faturizador, bem como na taxa de juros cobrada pelo aporte financeiro realizado.
Logo, permitir a transferência dos títulos por endosso seria uma burla à comutati-
vidade do contrato de fomento mercantil.
O Colendo Superior Tribunal de Justiça, em momentos anteriores, permitia a aposição
da cláusula de endosso para transferência de títulos entre faturizador e faturizado, com
base na autonomia da vontade. Cito o seguinte julgado:
estruturais do contrato de factoring, é que eventual pessoa jurídica não autorizada pela
Lei n. 4.595/1964 pratique atividade circunscrita às instituições financeiras e cobre juros
usurários no caso concreto.
Pergunta-se: é possível o exercício de empresa sem qualquer risco? A resposta é
negativa.
A ordem constitucional vigente reconheceu o regime de livre iniciativa capitalista
de nossa economia, mas, ao mesmo tempo, estabeleceu o objetivo que por ela deve ser
buscado, a saber, existência digna a todos, segundo os ditames da justiça social (art. 170,
caput, CF).
Desse modo, no âmbito do direito, o exercício de empresa deve ser analisado numa
perspectiva pós-positivista, na qual haja respeito ao direito posto, ao lado de valores
éticos reconhecidamente consagrados na doutrina, como boa-fé, lealdade, probidade e
transparência.
De outro lado, a justificativa para a busca do lucro, através dos empreendimentos
empresariais, se justifica na medida em que o empresário assuma os riscos de sua ativida-
de, para evitar que eventuais equívocos ou danos sejam suportados de maneira coletiva
pelo meio social.
Paula Andrea Forgioni20, comentando obra de Visconde de Cairu (Princípios de direi-
to mercantil e leis de marinha, p. 469 et seq.), bem explica ser o risco algo inerente à
percepção de lucro no campo do direito empresarial:
20
FORGIONI, op. cit., p. 253.
7. Conclusão
Diante dos pontos tratados, podemos verificar que a jurisprudência aplicada no contra-
to de factoring busca delinear determinados limites ao exercício da autonomia privada,
para evitar abusos e preservar a comutatividade das prestações dos seus integrantes.
Dentro da ótica constitucional vigente, o dirigismo contratual exercido pelo Poder
Judiciário guarda consonância com a perspectiva pós-positivista, ao agregar elementos
extrajurídicos na solução dos litígios, através da percepção da realidade dos fatos, de
modo a evitar que práticas proibidas sejam levadas a efeito através da roupagem do
contrato de fomento mercantil.
Mas não se pode dizer que a autonomia de vontade restou afastada, pois o Poder
Judiciário, nos casos mencionados, limitou-se a declarar a nulidade de determinadas
cláusulas, de forma a preservar a essência do contrato de factoring, segundo parâmetros
já consolidados pela doutrina, não obstante a atipicidade do pacto.
O resultado proporciona segurança jurídica, ao esclarecer aos interessados os limites
sobre os quais podem atuar, o que, certamente, traduzirá maior interesse na busca pela
realização do fomento mercantil e, quem sabe, maiores facilidades no incremento da
atividade empresarial como um todo.
21
VERÇOSA; SZTAJN, op. cit., p. 64.