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Ética judicial

A dignidade da pessoa humana e os valores da verdade,


justiça e amor

Fabio Luiz de Oliveira Bezerra

Sumário
1. Introdução. 2. O conceito de ética. 3. A
ética e a sociabilidade. 4. Fundamento da ética
judicial: dignidade da pessoa humana. 5. A ver-
dade. 6. A justiça. 7. O amor. 8. Conclusão.

1. Introdução
A estrutura e o funcionamento dos
Estados contemporâneos mostram-se ina-
dequados para a realidade da sociedade
contemporânea, notadamente em países
carentes de concretização efetiva de direitos
do cidadão. É o que ocorre atualmente no
Brasil, que prometeu atender a todas as ne-
cessidades de seus cidadãos, mas não tem
cumprido efetivamente essa missão.
Dentro dessa crise do Estado brasileiro,
constata-se que o Poder Judiciário não vem
acompanhando o mesmo ritmo da socieda-
de, a qual tem pressa na realização plena
dos direitos fundamentais do indivíduo.
Além das causas de natureza estrutural,
processual e conjuntural para a lentidão
do Poder Judiciário (NALINI, 2008), não
se olvide que a indeterminabilidade das
normas jurídicas tem ocasionado a ação
desse Poder em quase todas as matérias do
cotidiano da sociedade atual e a teoria da
Fabio Luiz de Oliveira Bezerra é Juiz Federal
Substituto da 7a Vara Federal em Natal/RN. dogmática jurídica, dominada pelo pensa-
Mestre pela UFPE. Ex-Procurador da Repúbli- mento positivista, não tem sido capaz de
ca. Ex-Promotor de Justiça/RN. Ex-Procurador proporcionar soluções rápidas e justas para
Judicial do Município do Recife. os desafios da contemporaneidade.

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Contribui para esse quadro de ine- do magistrado na resolução dos conflitos da
ficiência do Poder Judiciário a falta de complexa sociedade contemporânea.
protagonismo do magistrado brasileiro,
na denominação de Nalini (2008), diante
2. O conceito de ética
das novas atribuições conferidas ao Poder
Judiciário pela Constituição de 1988. A ética é doutrina da boa vida ou da
Uma das estratégias para superar a vida correta, aquela digna de imitação pelo
formação intelectual da magistratura, de indivíduo e pela comunidade política.
cunho dogmático, passa por O termo ética provém da palavra grega
“mudar a metodologia de abordagem éthos, que é o hábito ou comportamento
do direito, substituindo-se a dogmáti- pessoal decorrente da natureza, das con-
ca, fechada à realidade social, política venções sociais ou da educação. O plural de
e econômica, por uma metodologia éthos é éthe, conjunto desses hábitos e com-
interdisciplinar que (...) abre a possi- portamentos da coletividade, incluindo os
bilidade de estabelecer uma comuni- próprios costumes da civilização (BITTAR;
cação articulada entre o direito e as ALMEIDA, 2001, p. 445).
outras ciências da realidade social, Em que pese esse significado etimoló-
circunstância a permitir aos magistra- gico, a ética não se confunde com a moral.
dos uma permanente harmonização A ética e a moral partem de premissas
do direito às aspirações da socieda- diversas: “a moral tem como fundamento
de” (ROCHA, 1995, p. 122). o próprio comportamento social e a éti-
Note-se que é característica da pós- ca, uma reflexão sobre ele” (ALMEIDA;
modernidade a compreensão da realidade CHRISTMANN, 2006, p. 27).
por meio de enfoques com base em diversas O estudo das regras morais é apenas
ciências e métodos. Daí por que a reflexão uma das preocupações do saber ético. A
ética a partir dos magistrados, sem sombra ética “abrange o conjunto dos sistemas de
de dúvida, potencializa a tomada de deci- dever-ser que formam, hoje, os campos dis-
sões judiciais, haja vista que possibilita ao tintos – e, na maioria das vezes, largamente
aplicador do direito a análise da situação contraditórios – da religião, da moral e do
por diversos prismas. direito” (COMPARATO, 2006, p. 18), mas
A expansão das tarefas do Poder Judiciá- não se dedica exclusivamente à investiga-
rio implica necessariamente uma ampliação ção do dever-ser ético.
da responsabilidade ética dos magistrados. Comporta o campo da ética o estudo
E, nas palavras de Nalini (2008, p. 15), o não apenas dos preceitos relativos ao com-
referido “protagonismo (...) só poderá advir portamento humano, como também das
de consciência sensível e desperta para o tramas e problemas da ação moral e ques-
exercício ético da função”. tões correlatas, até porque “o conjunto de
Os desafios éticos do juiz na atualidade regras definidas como morais é, no fundo,
não se restringem à formação profissional a abstração das experiências morais hauri-
continuada, aliada à responsabilidade de- das pela prática vivencial sócio-humana”
mocrática, abrangem também a práxis ética (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 445).
individual do juiz. A ética pode ser compreendida em
É nesse particular da atuação prática diferentes planos. O primeiro referente à
do juiz que assume relevo a identificação indagação acerca do agir de um sujeito
do fundamento da ética judicial e de seus autônomo e consciente de si. O segundo
principais valores, a qual consubstancia o relativo à reflexão sobre os critérios da
objetivo do presente estudo, para o fim de ação idealmente correta. O último concer-
fixar parâmetros para a conduta cotidiana nente à orientação normativa em situações

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concretas e aos efeitos/consequências das Os valores coletivos, muitas vezes,
ações. vigoram na consciência das pessoas, antes
Embora possam ser identificadas as mesmo de existirem normas expressas de
diferenças entre normas jurídicas e normas conduta. Para introdução de novos valores
morais, ética e Direito, pelo fato de terem ou manutenção de valores já reconhecidos
por escopo a ação humana, convivem lado pela sociedade, o recurso à força tem sido
a lado, com fronteiras muitas vezes tênues. insuficiente. Como a consciência do que
Reale (1999, p. 219) chega a dizer, inclusi- é certo ou errado moralmente é inerente
ve, que “o Direito, momento essencial do à condição humana, torna-se imperiosa
processo ético, representa a sua garantia uma justificação ética para as tomadas de
específica”, vale dizer, a garantia da ética. decisões da sociedade, notadamente pelas
instituições de poder do grupo social e
por seus agentes públicos, como o Poder
3. A ética e a sociabilidade
Judiciário e seus membros (COMPARATO,
De modo aproximado, podemos apre- 2006, p. 23).
sentar a estrutura de um grande grupo so- Percebe-se, então, que a ética é elemento
cial organizado ou uma sociedade política, incindível da sociedade, embora não se
na esteira das lições de Comparato (2006, tenha tido a mesma compreensão sobre a
p. 22), por meio de fatores determinantes ética ao longo da história.
que comandam a vida social (valores cole- No mundo antigo, a reflexão ética impu-
tivos e instituições de poder) e de fatores nha a prevalência do coletivo sobre o sin-
condicionantes que estabelecem limites ao gular, do público sobre o privado. A ação
desenvolvimento da civilização (patrimô- individual, nessa época, estava limitada
nio genético, meio ambiente e estado da pela tradição e pelo sagrado. A preocupa-
técnica). ção maior era a busca da felicidade e bem-
Os citados fatores determinantes se estar como negação da ordem pública.
entrecruzam. Enquanto as instituições O mundo contemporâneo foi marcado
de poder são estruturadas com base nos pela crescente aproximação geográfica dos
valores coletivos, tais valores acabam por povos e pelos conflitos culturais e entre as
serem utilizados para constituição e até civilizações. A convivência entre os povos,
mesmo para preservação das instituições dada a diversidade cultural, tornou-se cada
de Poder. Em outras palavras, Möller (2006, vez mais difícil.
p. 232) assenta que Para reduzir a probabilidade de ocor-
“as comunidades culturais têm nos rência de conflitos culturais e interculturais
fins e valores incorporados nas e pelas entre as sociedades, há que se preservar o
tradições que propagam a expressão valor da tolerância, o qual, como bem des-
de vínculos político-sociais que favo- taca Möller (2006, p. 233), ganha especial
recem a instituição e a preservação relevo
de seu modo peculiar de agregação e “quando o espaço e meio ao qual
para a constituição de sua estrutura ocorre a atitude ou (manifest)ação
(arranjo) de poder, dentre os quais, os cultural ultrapassa um campo de-
considerados como mais importantes cisório que abarca conseqüências
acarretam comprometimentos ético- exclusivamente privadas, no qual o
políticos recíprocos entre os indiví- que se pode sustentar razoavelmen-
duos (cidadãos), sendo convertidos, te é a recomendação da prática da
estabelecidos e reconhecidos sob a tolerância como uma abertura para
forma de compromissos jurídicos o conhecimento e como possibilida-
(leis, normas regras e direitos)”. de para esclarecimento dialético, e

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alcança um campo decisório público meio da ciência deve voltar a ser normati-
ou mesmo se situe em um campo ti- vamente indisponível por meio do controle
picamente privado quando, em vista social” (DAELE apud HABERMAS, 2004).
do conteúdo sobre o qual se trata na Assim, a moralidade, que antes estava res-
atitude ou (manifest)ação, deve pre- trita ao âmbito pessoal e religioso, compre-
valecer o interesse público, ocasiões ende, na sociedade contemporânea, uma
em que o valor da tolerância deve categoria de moralidade pública, de uma
ser também percebido como uma ética social.
necessidade”.
A invenção do espaço social da indi-
4. Fundamento da ética judicial:
vidualidade concretiza, em certa medida,
o valor da tolerância, possibilitando a
dignidade da pessoa humana
convivência dos indivíduos no mundo O fundamento da ética não tem sido o
contemporâneo. mesmo ao longo da história e nas diferentes
Por outro lado, o progresso das ciências civilizações. As doutrinas orientais, por
biológicas e o desenvolvimento das biotec- exemplo, fundaram a ordem ética sobre
nologias têm trazido ao debate questões um princípio impessoal, comum a toda a
relativas à ética da espécie. O que antes era realidade, como é o caso da Via ou Caminho
dado como natureza orgânica (organismo da filosofia chinesa. No mundo moder-
humano) hoje está no campo da intervenção no, preponderou a rejeição de qualquer
humana. Daí por que Habermas (2004, p. fundamento absoluto ou transcendental
17) considera que a para a vida ética. A escola positivista, por
“distinção fenomenológica de Hel- exemplo, assevera que o direito não deve
muth Plessner entre ‘ser um corpo confundir-se com a moral e a religião.
vivo’ e ‘ter um corpo’ adquire uma A ideia de que os indivíduos e grupos
atualidade impressionante: a fron- humanos podem ser reduzidos a um con-
teira entre a natureza que ‘somos’ e ceito ou categoria geral foi sendo desenvol-
a disposição orgânica que ‘damos’ a vida de forma gradual.
nós mesmos acaba se desvanecendo”. No período axial da história, nasce a
Acrescenta o ilustre filósofo (HA- ideia de uma igualdade essencial entre os
BERMAS, 2004, p. 29): “Na medida homens. Na filosofia grega, segundo a tese
em que a produção e utilização de de Aristóteles, é possível identificar um
embriões para fins de pesquisa na elemento comum a todos os indivíduos,
área médica se disseminam e se nor- que lhe é próprio, a racionalidade.
malizam, ocorre uma mudança na No começo do século VI, inaugura-se
percepção cultural da vida humana nova fase da elaboração do conceito de
pré-natal, e, por conseguinte, uma pessoa. Assevera Comparato (2006, p. 457)
perda de sensibilidade moral para que, segundo Boécio, “diz-se propriamente
os limites dos cálculos do custo-de- pessoa a substância individual da natureza
benefício”. racional”. Pela doutrina cristã, o conceito
Segundo Habermas (2004, p. 36), a de pessoa foi sistematicamente elaborado
manipulação genética pode alterar nossa como substância.
compreensão como únicos autores da nossa Kant assinalou a superioridade ética
história de vida. absoluta dos seres humanos sobre as coisas,
Nesse contexto, alguns estudiosos já daí decorrendo a igualdade absoluta entre
preconizam a necessidade de uma morali- as pessoas. O ser humano, para este filóso-
zação da natureza humana, pela qual “aquilo fo, existe como um fim em si mesmo, não
que se tornou tecnicamente disponível por simplesmente como meio da vontade. Por

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isso, nessa linha, o homem tem dignidade cional e democrático de Direito e no
e não preço. Bittar (2007, p. 158) destaca exercício de sua função jurisdicional,
que Kant “faz depositar toda a responsa- os juízes têm o dever de transcender
bilidade ética na consciência individual, o âmbito do exercício de dita função,
encontrando na idéia do dever-pelo-dever buscando fazer com que a justiça seja
(imperativo categórico) o pilar sobre o feita em condições de eficiência, qua-
qual faz assentar todo o fundamento do lidade, acessibilidade e transparência,
agir ético”. com respeito à dignidade da pessoa
A pessoa humana, então, é modelo trans- que venha a demandar o serviço”.
cendente e imanente à visão humana. No preâmbulo da Carta de Direitos das
Na sociedade contemporânea, Compa- Pessoas perante a Justiça no Espaço Judi-
rato (2006, p. 494), ao propor uma recons- ciário Ibero-americano (ATIENZA; VIGO,
trução ética capaz de sucumbir a corrente 2008, p. 60), também há menção especial à
histórica da dominação tecnológica e da dignidade da pessoa humana no sentido
concentração do poder econômico, assevera de que “a dignidade da pessoa e os direitos
que o fundamento supremo da ética é a dig- que lhe são inalienáveis reclamam a insti-
nidade da pessoa humana e acrescenta: tucionalização de princípios básicos que
“o movimento de aproximação de protejam as pessoas quando demandem
todos os povos na construção comu- justiça”.
nitária de um mundo livre, justo e so- Tem-se, então, como fundamento da éti-
lidário, fundado no respeito integral ca judicial a dignidade da pessoa humana,
dos direitos humanos, vem crescendo por meio do respeito integral aos direitos
sem descontinuar, e já começa a tecer humanos.
uma densa rede de organizações Desse fundamento supremo da ética
transnacionais de resistência à domi- judicial desdobram-se vários princípios
nação capitalista. A sua capacidade de que conformam e concretizam a dignidade
expansão, ao contrário do que sucede da pessoa humana. São os denominados
com o movimento antagonista, existe princípios éticos ou virtudes judiciais, os
não em função do poder – tecnológi- quais possuem dupla função, pois, além
co, econômico ou militar –, mas da vi- de constituírem normas axiológicas com
gência efetiva dos grandes princípios objetivo de impor padrões de condutas so-
éticos no mundo todo”. ciais, também visam à proteção da própria
Como a ética judicial representa uma dignidade da pessoa humana.
forma específica e integrada da ética geral Recorde-se que, na doutrina jusfilosófi-
e o Poder Judiciário tem a missão precípua ca contemporânea, denomina-se princípios
de garantir o respeito dos direitos humanos éticos os
pelos Poderes constituídos e pelos particu- “núcleos concentrados da ética, nos
lares, maior razão se tem para estabelecer, quais não se explicitam os supostos
nesse primado da dignidade da pessoa fatos que se pretende regular nem
humana, o fundamento maior da ética as conseqüências que a sua geração
judicial. acarretaria” [sem eliminar, contudo]
A propósito, constata-se que o Código “a possibilidade de se desenharem
Ibero-americano de Ética Judicial, especi- as exigências em termos de virtudes
ficamente no art. 37 do Estatuto do Juiz judiciais, e alguns códigos de ética
Ibero-americano, traz referência expressa judicial (como o do México) estão
à dignidade da pessoa humana: baseados notadamente nessa idéia
“Art. 37. Serviço e respeito às partes: das “virtudes judiciais” (ATIENZA;
No contexto de um Estado constitu- VIGO, 2008, p. 11).

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Com efeito, o juízo ético não é realizado 2006, p. 522). No mundo moderno, essa
apenas pela razão, mas essencialmente acepção eminentemente ética de verdade
pela emoção, pelos sentimentos, haja vista foi resgatada por Mahatma Gandhi, como
que se está enveredando pelos campos dos ressaltado por Comparato (2006, p. 523):
valores. “Para encontrar a verdade, disse Gan-
Até o mundo moderno, principalmente dhi, não é preciso ir muito longe, pois
na filosofia grega e na teologia medieval, os ela se acha em cada um de nós, como
valores eram considerados algo de objetivo uma pedra preciosa encoberta pela
e geral, sem referência à condição humana. ganga de nossas impurezas pessoais.
Após a modernidade, podemos dizer que Para fazê-la aparecer é preciso muita
os valores passaram a ser qualidades pró- humildade e um esforço contínuo e
prias do ser humano. Em outras palavras, metódico para eliminar de si toda
“os valores são qualidades do ser, mas que raiva, ódio ou egoísmo”.
só existem para os homens; são, portanto, Para Gandhi, não obstante a verdade e
realidades intencionalmente humanas” o amor sejam duas faces da mesma moeda,
(COMPARATO, 2006, p. 508). a verdade deve ser procurada em primeiro
Tais qualidades humanas podem ser lugar. Daí por que asseverar que o amor é
agrupadas, conforme lição de Comparato expressão da verdade.
(2006), em três grandes valores éticos, que No Direito, o valor da verdade está
serão abaixo abordados sob o ângulo da correlacionado ao método de reconstrução
atividade jurisdicional, quais sejam, a ver- histórica dos fatos e à teoria jurídica de
dade, a justiça e o amor. interpretação das normas jurídicas.
No que tange à teoria jurídica, a doutri-
na já não tem dúvida sobre a inadequação
5. A verdade
do modelo subsuntivo de aplicação das
Os princípios éticos são normas objeti- normas jurídicas do positivismo. Não
vas correlacionadas a virtudes subjetivas, obstante, ainda é presente a utilização, na
com conteúdo axiológico, cujo sentido é praxe judiciária, desse modelo ultrapassa-
orientado pelos grandes valores éticos, ten- do. É o caso de fundamentação de peças
do como paradigma supremo a dignidade iniciais, pareceres e sentenças a partir de
da pessoa humana. ementas jurisprudenciais sem nenhum
Para que o homem seja conduzido à contexto que possa indicar a similitude
felicidade, deverá pautar suas condutas e da situação, o que só “reafirma o caráter
sua vida na verdade e em duas outras vir- positivista da interpretação jurídica, pois
tudes que se associam à primeira, a justiça esconde a singularidade dos ‘casos concre-
e o amor, os quais, em última análise, são tos’ e retroalimenta a cultura manualesca
expressões da verdade. estandardizada, enfraquecendo a reflexão
Para a filosofia grega, a verdade tem um crítica”, como afirma o ilustre doutrinador
sentido preponderantemente intelectual. A Streck (2006, p. 251).
verdade seria a correlação entre o pensa- O juiz da sociedade contemporânea já
mento e a realidade. Essa acepção é a base não pode se limitar a ser a boca da lei, e fazer
do saber científico no mundo moderno e apenas a subsunção dos fatos às normas
contemporâneo. gerais. O juiz atualmente é agente de paci-
Por outro lado, a concepção semítica as- ficação social e a ele cabe proceder a uma
socia a verdade, não ao pensamento, mas a interpretação das normas jurídicas visando
uma vida ética. “Verdadeiro é o que inspira o atendimento dos fins sociais.
confiança e fidelidade; falso, em contraste, Enquanto no positivismo há separação
é sinônimo de infiel” (COMPARATO, entre direito e moral, no pós-positivismo a

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atividade de interpretar as normas jurídicas essencialmente de fins sociais, com obje-
está impregnada, necessariamente, pelos tivos que concretizam valores coletivos,
valores morais da sociedade. A superação como a busca pelo desenvolvimento e pela
do positivismo torna-se mais evidente superação das desigualdades sociais.
com o advento do neoconstitucionalismo, Assim, entendemos que as teorias
em que se ressalta o papel transformador substancialistas, que não se confundem
e interventivo do direito e da jurisdição com os ativismos judiciais, potencializam
constitucional, de forma que não se sus- a atuação do magistrado na busca da
tenta mais o modelo de direito fundado verdade,1 estando mais condizente com a
apenas em regras. complexidade dos conflitos da sociedade
Verifica-se, nesse contexto atual, o contemporânea, especialmente em países
embate de dois grupos de teorias sobre o em desenvolvimento,
valor da verdade: teorias substancialistas e “porque trabalham com a perspectiva
teorias procedimentalistas. de que a implementação dos direitos
Segundo as teorias procedimentalistas, e valores substantivos afigura-se
das quais Habermas é o grande defensor, a como condição de possibilidade da
verdade não tem conteúdo, é uma idealiza- validade da própria Constituição,
ção necessária, fruto do consenso obtido ao naquilo que ela representa de elo
longo do processo, judicial ou legislativo. conteudístico que une a política e
Em outras palavras, direito” (STRECK, 2006, p. 262).
“Habermas propõe um modelo de de-
mocracia constitucional que não tem
como condição prévia fundamentar- 6. A justiça
se nem em valores compartilhados, Várias são as dimensões ou concepções
nem em conteúdos substantivos, mas da justiça.
em procedimentos que asseguram a Os sofistas afastaram as definições
formação democrática da opinião e absolutas e todos os tipos de ontologia ou
da vontade” (STRECK, 2006, p. 19). metafísica sobre os valores sociais, rela-
Contudo, tais teorias não devem ser tivizando a justiça, sob o pressuposto da
aplicadas em países de modernidade tardia, contingência das leis.
como é o caso do Brasil. Nesse sentido é o Para Sócrates, a justiça compreende
magistério de Lenio Streck (2006, p. 15): também a dimensão política, pela qual
“difícil sustentar as teses processuais- cada pessoa deve cumprir na sociedade
procedimentais em países como Bra- a função que lhe incumbe, de forma que
sil, em que parte considerável dos di- estabelece o primado da ética do coletivo
reitos fundamentais-sociais continua sobre a ética do individual. A virtude está
incumprida, passados dezoito anos no conhecimento, base do agir ético, por
da promulgação da Constituição. Dito isso a felicidade das pessoas só será atin-
de outro modo: parece muito pouco gida com a erradicação da ignorância por
destinar ao Poder Judiciário tão-so- meio, principalmente, da educação.
mente a função de zelar pelo respeito Para os romanos, a justiça tem uma es-
aos procedimentos democráticos para sência altruísta individual, é voltada para
a formação da opinião e da vontade
política, a partir da própria cidadania, 1
No Código Ibero-americano de Ética Judicial,
como quer, por exemplo, o paradigma encontram-se diversos dispositivos correlacionados
com a verdade, como o relativo à observância do de-
procedimental habermasiano”. vido processo legal (art. 39), à legitimidade dos meios
A Constituição brasileira cuida não de prova (art. 40), à necessidade de fundamentação
apenas de meios, de procedimentos, mas (art. 41) e à boa-fé processual (art. 41).

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os outros, significando que devemos evitar aduz que “a interface desse princípio ético
fazer aos outros o que não queremos que explica a união indissolúvel das duas gran-
eles nos façam. des categorias de direitos humanos: a dos
Aristóteles, por sua vez, desenvolveu direitos e liberdades individuais e a dos
sua teoria considerando a justiça como uma direitos econômicos e sociais”.
virtude da pessoa humana, sendo que a éti- A justiça, pois, como expressão da
ca, como ciência prática, incumbir-se-ia em verdade, busca concretizar o fundamento
definir o que é justo e o que é injusto. Mas da ética, qual seja, a dignidade da pessoa
apenas o conhecimento em abstrato do con- humana, por meio da realização integral
teúdo da virtude não basta para se chegar à dos direitos humanos.2
felicidade, necessária a realização da virtude,
que se adquire pelo hábito. Imprescindível,
pois, a prática ética. Segundo ele, cumpre ao 7. O amor
juiz equalizar as diferenças surgidas das de- A virtude do amor, em certa medida,
sigualdades, atentando-se para os diversos nasce da solidariedade, pois esta também
tipos particulares de justiça, como destacam é uma manifestação de altruísmo e de res-
Bittar e Almeida (2001, p. 119): ponsabilidade para com a humanidade.
“A justiça total destaca-se como sen- A propósito, asseveram Almeida e Christ-
do a virtude (total) de observância da mann (2006, p. 58) que
lei. A justiça total vem acompanhada “ser solidário com a humanidade
pela noção de justiça particular, quer dizer sentir-se parte desse cole-
corretiva, presidida pela noção da tivo que habita todo o planeta Terra.
igualdade aritmética (comutativa, Dessa forma, a pessoa que se engaja
nas relações voluntárias; reparativa, na ação humanitária, mais do que sua
nas relações involuntárias) ou dis- ligação jurídica com a comunidade da
tributiva, presidida pela noção de qual é nacional, sente-se integrante
igualdade geométrica”. da comunidade de todos os homens
Há também a dimensão da justiça como e mulheres da Terra. Esse sentimento
equidade, ou seja, a justiça do caso concreto. de fazer parte implica uma responsa-
Toda lei tem um enunciado geral, daí dis- bilidade perante o coletivo chamado
tinguindo-se da decisão judicial, que atende humanidade, acima de interesse de
a situações específicas e concretas, de sorte toda e qualquer nação”.
que, em uma situação não contemplada na E pelo fato de a justiça ter uma dimen-
lei, cabe ao magistrado interpretar a letra são da solidariedade, o amor se aproxima
da lei, atendendo-se mais a sua finalidade daquela. Não obstante, o amor não se
(ARISTÓTELES, 2004). confunde com a solidariedade nem com a
Atienza (2001, p. 173) sintetiza as teo- justiça. O dever de amar, ao contrário do
rias modernas da justiça, asseverando que dever de ser justo, não implica exigência
“afirmar que um determinado direito é de outra parte.
justo vem a ser a forma sintética de decidir Não há que se confundir também amor
que satisfaz uma série de valores como a com amizade. Das várias manifestações de
igualdade, a liberdade e a segurança jurí-
dica”, que nada mais são que os direitos 2
O Código Ibero-americano de Ética Judicial
fundamentais da pessoa humana, os quais faz expressa menção à necessidade de o juiz levar
substanciam “o banco de prova para uma em conta as consequências pessoais, familiares ou
sociais desfavoráveis para atingir a finalidade social
teoria da justiça” (Idem, 2001, p. 206). da norma, como forma de encontrar fazer justiça (art.
Nessa linha, comentando sobre a vir- 43 do Estatuto do Juiz Ibero-Americano Estatuto) e à
tude da justiça, Comparato (2006, p. 528) observância da igualdade entre as partes (art. 39).

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uma e de outra virtude trazidas por Aristó- O amor não é apenas em relação ao
teles (2004, p. 172) extrai-se que a amizade outro ser humano, é também manifestação
exige reciprocidade de tratamento, ou seja, em relação ao estudo, ao trabalho e à capa-
não existe amizade unilateral, ao passo que citação (BITTENCOURT, 1982).
o amor é, em regra, incondicional. Para Comparato (2006, p. 535), o amor é
Para Mahatma Gandhi, o amor é a dis- uma doação integral, incondicional e sem
posição permanente de fazer o bem, em reservas das coisas e da própria pessoa que
ação incessante contra a injustiça, abalizada doa. Conclui o referido autor:
sempre pela verdade (COMPARATO, 2006, “A grande função social do amor
p. 521). consiste em atuar como fator de per-
Dalai Lama (2000, p. 146-147) também manente aperfeiçoamento da justiça.
considera o amor uma das fontes primor- É o impulso constante no sentido de
diais das virtudes do homem. E vai além. uma não-acomodação com as formas
Segundo ele, o amor e a compaixão são de justiça já existentes; a procura de
campos férteis para o desenvolvimento uma ampliação ilimitada do prin-
da ética: cípio de dar a todos e a cada um o
“A compaixão e o amor não são arti- que a consciência ética sente como
gos de luxo. Como origem da paz inte- devido”.
rior e exterior, são fundamentais para O amor é, pois, elemento de autocrítica
a sobrevivência de nossa espécie. Por do próprio valor da justiça e expressão da
um lado são as fontes de todas as qua- verdade, não podendo nunca desta última
lidades espirituais: a capacidade de se dissociar.3
perdão, a tolerância e todas as demais
virtudes. (...) Então, para aqueles que 8. Conclusão
disseram que o Dalai-Lama não está
sendo realista ao defender esse ideal O aumento de atribuições conferidas
de amor incondicional, insisto para ao Poder Judiciário pela Constituição de
que mesmo assim o experimentem. 1988 e pela pós-modernidade provoca
Vão descobrir que o coração se enche uma ampliação da responsabilidade ética
de força quando se consegue ultra- dos magistrados, sendo imprescindível a
passar os limites do interesse pessoal identificação do fundamento e dos valo-
egoístico. A paz e a alegria tornam-se res principais da ética, o que certamente
companheiros constantes. Rompem-se consubstanciará subsídio para atuação
barreiras de todos os tipos e, no final, cotidiana do magistrado.
desaparece a noção do interesse pró- A ética, por abordar preceitos relativos
prio independente do interesse alheio. ao comportamento humano como também
No que se refere à ética, contudo, o das tramas e problemas da ação moral, está
mais importante é que, onde o amor intimamente ligada ao Direito, representan-
pelo próximo, a afeição, a bondade e do este a garantia do primeiro.
a compaixão estão vivos, verificamos De fato, ao contrário da separação to-
que a conduta ética é espontânea. A tal entre Direito e ética preconizada pelo
prática de ações eticamente íntegras positivismo, atualmente, na sociedade
é natural onde há compaixão”. contemporânea, marcada pela crescente
Em outras palavras, “olhar de modo aproximação geográfica dos povos e pelos
equânime nossos amigos e inimigos e os 3
No Código Ibero-Americano de Ética Judicial,
que nos são indiferentes não é uma ati- o valor do amor pode ser vislumbrado nos deveres
tude espiritual, e sim ética” (ALMEIDA; éticos de independência (art. 38) e de sigilo profis-
CHRISTMANN, 2006, p. 27). sional (art. 44).

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 273


conflitos culturais e entre as civilizações, Referências
somente com o entrelaçamento entre o
Direito e a ética poder-se-á alcançar uma ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro
Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004.
verdadeira pacificação social.
Na sociedade contemporânea, o funda- ALMEIDA, Guilherme; CHRISTMANN, Martha Och-
mento primeiro da ética judicial é a digni- senhofer. Ética e direito: uma perspectiva integrada. 2
ed. São Paulo: Atlas, 2006.
dade da pessoa humana, cabendo ao Poder
Judiciário a missão precípua de garantir o ATIENZA, Manuel. El sentido del derecho. Barcelona:
respeito integral dos direitos humanos. Editora Ariel, 2001.
Do fundamento da dignidade da pessoa ______; VIGO, Rodolfo Luís. Código Ibero-americano de
humana decorrem vários princípios éticos, ética judicial. Brasília: CJF, 2008.
que podem ser compreendidos como virtu- BITTAR, Eduardo. C. B. Curso de ética jurídica: ética
des judiciais, destacando-se três: a verdade, geral e profissional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
a justiça e o amor. ______; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de
A verdade está correlacionada ao méto- filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001.
do de reconstrução histórica dos fatos e à
BITTENCOURT, Edgard Moura. O Juiz. 2 ed. São
teoria jurídica de interpretação das normas Paulo: Leud Ed., 1982.
jurídicas. O juiz da sociedade contemporâ-
COMPARATO, Fabio Konder. Ética: direito, moral e
nea deve deixar de ser apenas a boca da lei, religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia
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compreendendo a verdade não apenas
HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a
como fruto do consenso obtido ao longo do caminho de uma eugenia liberal? Tradução Karina
processo, mas como mecanismo de concre- Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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LAMA, Dalai. Uma ética para o novo milênio. Rio de
das desigualdades sociais. Janeiro: Sextante, 2000.
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MÖLLER, Josué Emílio. A fundamentação ético-política
busca concretizar e realizar o fundamento
dos direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2006.
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humana, a partir da satisfação de diversos NALINI, José Renato. A rebelião da toga. 2 ed. Campi-
nas: Millennium Editora, 2008.
valores sociais que consubstanciam os
direitos fundamentais da pessoa humana, REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19 ed. São Paulo:
tais como igualdade, liberdade e segurança Saraiva, 1999.
jurídica. ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o poder
O amor implica doação incondicional judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995.
das coisas e da própria pessoa em prol STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição,
do outro, apresentando-se também como hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro:
manifestação em relação ao trabalho e ao Lumen Juris, 2006.
estudo, como a busca de constante aper-
feiçoamento.

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