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A justiciabilidade dos direitos

fundamentais sociais
Uma avaliação crítica do tripé denegatório de sua
exigibilidade e da concretização constitucional seletiva

Liana Cirne Lins

Sumário
1. Introdução: o tripé denegatório da justicia-
bilidade das normas de direito social e a concre-
tização constitucional seletiva. 2. A vinculação
dos direitos sociais: formalmente reconhecida e
veladamente negada. 3. Densidade normativa
e exigibilidade dos direitos sociais. 3.1. Desi-
deologizando a densidade normativa. 3.2. As
normas de direito social já foram densificadas.
4. Os custos dos direitos sociais e a reserva do
possível. 4.1. Todos os direitos são positivos. 4.2.
A reserva do possível: da mística à técnica. 5. A
separação de poderes como óbice à aplicação
judicial dos direitos sociais. 5.1. A separação
de poderes no marco do Estado Constitucional
Democrático. 5.2. Por um ativismo judicial de-
mocraticamente responsável.

“E em primeiro lugar é evidente que a lei, em


geral, não é um conselho, mas uma ordem.”
Thomas Hobbes. Leviatã, p. 226.

1. Introdução: o tripé denegatório


da justiciabilidade das normas de
direito social e a concretização
constitucional seletiva
À exigibilidade das normas de direitos
fundamentais sociais opõem-se, em espe-
Liana Cirne Lins é Doutora em Direito Públi- cial, três obstáculos, razão pela qual são
co/UFPE e mestra em Direito/UFSC, advogada, aqui chamados de tripé denegatório, que se
diretora acadêmica da SAPERE AUDE, profes-
constitui pela sua suposta baixa densidade
sora de Direito Processual Civil da Faculdade
Damas e dos Cursos de Pós-Graduação da Sa- normativa, pela reserva do financeiramente
pere Aude, ASCES e da Escola da Magistratura possível e, finalmente, pelas reservas do
de Pernambuco. legislador e do administrador.

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O objeto do presente trabalho é promo- mensão utópica e os esforços voltados à sua
ver discussão acerca da vinculação dessas realização, dimensão abstrata. Pensar os
normas no ordenamento constitucional direitos sociais em um processo, em juízo,
pátrio e uma avaliação crítica dos argumen- força-nos inclusive a melhor delimitá-los no
tos configuradores do tripé desabonador plano material. De qualquer sorte, falar em
do que seria a consequência jurídica da justiciabilidade dos direitos sociais sem se
vinculação: sua justiciabilidade. fazer acompanhar por uma teoria proces-
Essa avaliação crítica implicará também sual representaria descaso com seu acesso
comparar a estrutura jurídica das normas à justiça, já tão restrito. Embora o tema aqui
de direito social com as de liberdade. Essa estudado tenha foco material, será possível
metodologia comparativa visa identificar verificar uma contínua preocupação sobre
as razões que justificariam – ou não – a como devem ser tratados os direitos sociais
discrepância quanto à justiciabilidade de processualmente.
umas e de outras.
Partimos, desde logo, da constatação de 2. A vinculação dos direitos
que aos direitos de liberdade reconhece-se sociais: formalmente reconhecida
uma muito maior eficácia e aplicabilidade,
e veladamente negada
o que já levou a se falar em nominalidade
dos direitos sociais em contraposição à É crucial iniciar esta avaliação pela
normatividade dos direitos de liberdade constatação, pacífica, tendo em vista os
(Cf. CLÈVE, 1999, p. 210). contornos normativos da Constituição bra-
Obviamente, não se pretende, por qual- sileira, da fundamentalidade dos direitos
quer modo, oferecer ameaça à normativi- sociais, uma vez que o constituinte os con-
dade consagrada aos direitos de liberdade, sagrou expressamente como fundamentais,
mas, em vez disso, contribuir para tornar reconhecendo-lhes eficácia vinculante em
plena a concretização constitucional que, relação ao Poder Público (Cf. MENDES,
em nossa análise, em razão do deficit de 1999, p. 46).
normatividade que marca os direitos so- Por isso, o reconhecimento de que os
ciais e do contraste de eficácia entre uns e direitos sociais são direitos fundamentais
outros, configura um inaceitável quadro de “com todas as conseqüências dessa nature-
concretização constitucional seletiva. za” (KRELL, 2002, p. 49) implica compre-
Impõe-se, ainda, a seguinte anotação ender quais são essas consequências. Con-
metodológica: este artigo decorre de tese cordando com as teses de Borowski (2003,
de doutoramento cujo norte foi o proces- p. 148) e Alexy (1997, p. 484-500), afirma-se
so constitucional1. Estamos convencidos que somente pode ser considerada norma
de que os direitos fundamentais sociais, de direito fundamental a posição que esti-
pensados fora do processo, assumem di- ver protegida por uma norma vinculante.
Assim, uma norma só pode ser chamada de
1
A tese, intitulada “Exigibilidade dos direitos vinculante quando for possível que a sua
fundamentais sociais e tutela processual coletiva das
omissões administrativas”, foi apresentada ao Pro-
lesão seja conhecida pelos tribunais, ou seja,
grama de Pós-Graduação em Direito da Universidade que seja justiciável2.
Federal de Pernambuco em março de 2007, tendo sido
agraciada com a distinção. A tese foi dividida em duas 2
É essa, aliás, a razão que nos leva a falar em
partes. Na primeira, estudou-se o regime jurídico dos justiciabilidade e não em exigibilidade. A despeito de
direitos fundamentais sociais sob o aspecto material as duas expressões serem comumente apresentadas
constitucional, em que se desenvolveu, inclusive, como sinônimas, acreditamos que justiciabilidade seria
a presente avaliação crítica ao tripé denegatório da espécie de que a exigibilidade é gênero. Ao passo que
sua exigibilidade. Na segunda parte, desenvolveu- a exigibilidade de um direito, mormente um direito
se estudo do Direito Processual Constitucional e do social, pode dar-se contra inúmeras instâncias (públi-
tratamento processual dos direitos sociais. cas de todas as esferas e mesmo privadas) pelas mais

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Porém, ao tratarmos da vinculatividade A vinculatividade e a exigibilidade
dos direitos fundamentais em sua dimen- das normas de direito social devem ser
são social, surge a necessidade de retomar articuladas e compreendidas na dimensão
o significado da chamada “programatici- de sua programaticidade. Uma leitura
dade” das normas de direito social, uma conservadora do sentido da programatici-
vez que, não raro, as duas categorias são dade nos conduziria a não retirar nenhuma
tidas pelo senso comum jurídico como justiciabilidade imediata daquelas normas;
antípodas e excludentes entre si. É certo entretanto, não é essa a leitura que se quer
que a qualificação das normas sociais como propor.
programáticas correspondeu à recepção Como bem afirma Canotilho (1999,
doutrinária e jurisprudencial duvidosa p. 1101 e ss.), as normas constitucionais
quanto à sua eficácia, espelhando o ciclo de programáticas – sejam elas princípios cons-
baixa normatividade que lhe foi consignada titucionais impositivos, regras determina-
(Cf. BONAVIDES, 2006, p. 564). doras de fins e tarefas do Estado ou regras
Reconhecer que os direitos sociais constitucionais impositivas4 (apresentadas
apoiam-se na programaticidade consti- em ordem crescente de densidade norma-
tucional, significando isso dizer que eles tiva) – “valem como lei”, pois o “direito
vinculam o legislador infraconstitucional constitucional é direito positivo” e porque
ao futuro e estabelecem uma dimensão a Constituição utiliza termos e meios do
visível de um projeto de justo comum e de direito para instrumentalizar o governo,
direção justa (Cf. CANOTILHO, 2001, p. garantir direitos fundamentais e individu-
21-22), pode parecer insuficiente para deles alizar fins e tarefas.
extrair-se qualquer exigibilidade digna de Por essa razão, pode-se dizer que seu
nota e, em especial, qualquer exigibilidade valor jurídico de modo algum é menor que
passível de articular-se em juízo3. o do ius cogens vigente (Cf. HÄBERLE, 2002,
p. 165). Mormente quando lhes é reconheci-
distintas formas, a justiciabilidade caracteriza-se como
forma específica de exigibilidade em juízo. Uma vez traz entre seus textos o entre nós já conhecido Rever
que admitimos que é essencial à fundamentalidade ou romper com a constituição dirigente? defesa de um
dos direitos a possibilidade de que sua lesão seja constitucionalismo moralmente reflexivo) (CANOTI-
conhecida pelos tribunais, então necessariamente LHO, 2006), retoma-se a tese de que Canotilho matou
fazemos referência à sua justiciabilidade. suas ideias. Parece haver entre nós um certo fetiche
3
Mediante uma estratégia hermenêutica astuta, em querer que esse autor rejeite as próprias teses, mas
alguns intérpretes apressaram-se em atestar o óbito como disse Canotilho, “estes ideais não se enjeitam,
da Constituição dirigente quando da publicação de porque os filhos não se abandonam” (CANOTILHO
Direito constitucional e teoria da constituição (CANOTI- apud COUTINHO, 2003, p. 43).
LHO, 1999). Embora ao leitor atento essa conclusão 4
Os princípios constitucionais impositivos são aque-
seja totalmente desautorizada, remete-se também à les que compreendem todos os princípios que impõem
leitura do elucidativo Canotilho e a constituição dirigente, a realização de fins e tarefas aos órgãos do Estado,
colóquio entre o Professor de Coimbra e destacados ju- sobretudo ao legislador. Eles traçam as linhas diretivas
ristas pátrios, organizado pelo Prof. Jacinto Coutinho da atividade política e legislativa, sendo chamados
(2003), para que se possa entender em que contexto também, por isso, de “normas programáticas”. As re-
[global] a Constituição dirigente “morreu” e em que gras determinadoras de fins e tarefas do Estado associam-se
contexto ela ainda dirige (por fugir ao objeto deste aos princípios constitucionais impositivos e englobam
tópico), resumidamente dir-se-á que as revisões ela- os preceitos constitucionais que fixam, abstrata e glo-
boradas por Canotilho dizem respeito, em especial, à balmente, os fins e as tarefas prioritárias do Estado,
complexidade da integração das nações, sobremodo relacionando-se, em alguns casos, com os direitos
da União Europeia – na qual se inclui Portugal, com sociais. As regras constitucionais impositivas relacionam-
todos os benefícios concernentes (da União Europeia, se tanto com os princípios constitucionais impositivos
para os europeus) – e ao contexto da “dirigência” po- como com as regras definidoras de fins e tarefas. Elas
lítica e jurídica supranacional, no qual a Constituição impõem um dever concreto e permanente, material-
de um Estado-nação não pode mais, evidentemente, mente determinado, que, em caso de inadimplemento,
dirigir de forma isolada). Aliás, por ocasião da publi- origina uma omissão inconstitucional (CANOTILHO,
cação de Brancosos e Interconstitucionalidade (que 1999, p. 1092 e ss.).

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da aplicabilidade imediata, fortalecendo a fundamentais, inclusive os sociais, são
tendência de que os direitos sociais tornem- vinculantes, sendo inadmissível sua qua-
se tão exequíveis quanto os de liberdade lificação como “meras exortações morais”,
(Cf. BONAVIDES, 2006, p. 565). E assim mas finalizam opondo obstáculos à sua justi-
deve ser porque a Constituição não é sim- ciabilidade que são apresentados como intrans-
ples ideário e nem as normas jurídicas são poníveis. Ora, se são justiciáveis os direitos
conselhos, mas sim a conversão desse ide- sociais, que espécie de vinculatividade é
ário em regras impositivas para todos (Cf. essa que lhe é reconhecida? Bem se vê que,
MELLO, 1981, p. 236). Logo, se a constituição quando o tema é assim exposto, esse reco-
vale como lei, “às ‘normas programáticas’ é nhecimento é meramente nominal, vez que
reconhecido hoje um valor jurídico cons- não se podem retirar quaisquer consequên-
titucionalmente idêntico ao dos restantes cias concretas da vinculação formalmente
preceitos da constituição. Não deve, pois, reconhecida, mas veladamente negada.
falar-se de simples eficácia programática Como foi dito, os obstáculos comumente
(ou directiva), porque qualquer norma opostos à sua vinculação e que constituem
constitucional deve considerar-se obriga- o tripé denegatório de sua justiciabilidade
tória perante quaisquer órgãos do poder consistiriam prioritariamente na sua baixa
político” (CANOTILHO, 1999, p. 1102). densidade normativa, nas reservas do
É possível verificar, portanto, que a financeiramente possível e na separação
concepção de norma programática como de poderes (reservas do legislador e do
mera exortação moral destituída de nor- administrador). É do primeiro que se pas-
matividade foi historicamente ultrapassada sa, a partir de agora, a tratar, verificando
(Cf. BARROSO, 2002, p. 120). em que grau pode-se afirmar que a baixa
Logo, pode-se afirmar que toda norma, densidade de uma norma de direito social
mesmo programática, é vinculante e possui car- enfraqueça ou retire a vinculatividade que
ga eficacial, restando analisar as condições lhe é nominalmente reconhecida.
de vinculação de cada norma em particular.
A questão da vinculação dos direitos sociais
3. Densidade normativa e exigibilidade
é, parece, o ponto central do tema: toda a
classificação dos direitos sociais consiste,
dos direitos sociais
no fundo, na discussão sobre se esses di- A densidade normativa corresponde à
reitos podem ser exigidos judicialmente, ideia de se definir, em nível constitucional,
por quem e em quais condições. Em sendo com certo grau de precisão, o objeto ou con-
historicamente ultrapassado o entendimen- teúdo principal da norma (Cf. SARLET,
to da programaticidade como ausência de 2001, p. 269). Logo, considera-se densifica-
vinculação dessas normas, vive-se um pa- da, em nível constitucional, a norma que
radoxo consistente no fato de que, a despeito fornece critérios claros e precisos para sua
da suposta superação do entendimento de que as concretização.
normas sociais são destituídas de juridicidade, Conforme seja maior ou menor o grau
esse entendimento persiste tanto na jurispru- de precisão (ou determinação) do objeto
dência quanto na doutrina, o que nos leva a da norma no próprio texto constitucional,
concluir que há uma negação mascarada da diz-se que há maior ou menor densidade
normatividade desses direitos, sobre os quais normativa, razão pela qual se diz que
há um consenso velado de que “vinculam, da densidade normativa têm-se reflexos
mas não vinculam”. quanto à vinculação, aplicabilidade e jus-
Chega-se a essa conclusão porque não ticiabilidade.
são poucos os autores que iniciam seu Ora, sabe-se, entretanto, que os textos
estudo afirmando que todos os direitos constitucionais caracterizam-se por sua

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textura aberta, cujas normas são “rendas, periódicas do eleitorado, apurando-se a
malhas com pontos largos” (MÜLLER, projeção e o sentido essencial de cada direi-
2000, p. 67), cuja interpretação dá-se nas to na ordem constitucional (Cf. MIRANDA,
“penumbras” (Cf. ANDRADE, 2004, p. 2000, p. 113). Isso significa que deva haver
187). Porém, afirma-se que alguns preceitos um espaço de conformação normativo extenso
constitucionais possuem maior densidade que preponderantemente seja determinado
normativa do que outros. pelo legislador democraticamente eleito.
Se a abertura textual é, como se disse, Há ainda que dizer que, entre as razões
um proprium dos textos constitucionais, que justificam a interposição do legislador
pode-se afirmar que essa sua caracterís- ordinário, sobressai-se a necessidade de ter
tica potencializa-se em seara dos direitos uma visão sistemática e geral não só dos custos,
fundamentais sociais, ou seja, que esses mas igualmente dos potenciais afetados pelo be-
se caracterizam geralmente pela sua baixa nefício (Cf. PECES-BARBA, 2006, p. 164).
densidade normativa. Assim, embora se Disso resulta, muitas vezes, portanto,
reconheça aos direitos sociais força norma- indispensável a interposição mediadora
tiva, também, por outro lado, reconhece-se do legislador infraconstitucional, a fim de
que ostentam caráter organizador, planifi- conferir àqueles preceitos constitucionais
cador, diretivo e dirigente, razão pela qual indeterminados ou pouco densos a nor-
são menos densos que o ius cogens, em matividade necessária à configuração de
grande parte devido à necessária margem sua plena eficácia e permitir que a inter-
de elasticidade requerida para seu adimple- mediação do legislador infraconstitucional
mento pela Administração (Cf. HÄBERLE, agregue valores políticos às escolhas que
2002, p. 165). devem ser feitas na individualização das
Nesse sentido, Ingo Sarlet (2001, p. prestações que devem ser cumpridas. Esta
269) afirma que as normas programáticas necessidade justifica-se, portanto, não so-
caracterizam-se por reclamar interposição mente do ponto de vista técnico-jurídico,
do legislador para que possam gerar a a fim de permitir que as consequências
plenitude de seus efeitos, vez que possuem jurídicas dos preceitos constitucionais
densidade normatividade insuficiente para possam ser exaradas adequadamente,
permitir seja atingida sua plena eficácia5. mas, especialmente, do ponto de vista da
Assim, a realização dos direitos sociais é legitimação das escolhas e das opções pelas
indissociável da política econômica e social quais a concretização daqueles preceitos
de cada momento, sobretudo em um siste- vai dar-se.
ma pluralista, de modo a permitir distintas Por outro lado, com isso não se quer
concretizações, de acordo com as escolhas dizer ser democraticamente ilegítima a
intervenção judicial nesta área, mas ape-
5
A ilustração do argumento é primorosa: “Com nas que há preponderância da atuação do
efeito, como poderiam, por exemplo, juízes e tribunais
definir e regulamentar a forma da participação dos
legislador. Se, de outra forma, há inércia do
empregados nos lucros das empresas sem promover, legislador, evidentemente outros órgãos do
além de uma análise de cunho técnico, um amplo e Estado apresentam-se legitimamente para
aberto debate envolvendo os segmentos interessados garantir o cumprimento dos fins estatais.
(entidades sindicais dos trabalhadores e dos em-
pregadores, etc.)? Que tipo de atividades, na esfera
Em linha oposta à que defendemos,
cultural, poderiam compulsoriamente ser impostas porém, há quem afirme que os direitos
ao Estado, no sentido de gerar, em contrapartida, um sociais dependem da interposição legis-
direito subjetivo individual a uma prestação concreta lativa para gerarem qualquer exigibilidade
(por exemplo, um direito de livre acesso aos espetá-
culos culturais para a população carente às expensas
ou justiciabilidade da prestação neles contida,
do Estado ou da entidade promotora)?” (SARLET, donde concluem serem direitos meramente
2001, p. 271). derivados de que somente poderia decorrer

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a exigibilidade do dever estatal de legislar os critérios de seu adimplemento –, pois o
(Cf. ANDRADE, 2004, 393 e ss.). objetivo de contribuir para a atribuição de
Somando-se a essa a ideia de que a ine- maior eficácia aos direitos sociais não pode
xistência de um direito em sentido estrito ser atingido por meio da supremacia de pres-
em nível constitucional teria por consequ- supostos ideológicos em detrimento da estrutura
ência a limitação de sua justiciabilidade, o técnico-jurídica dos direitos em exame, sob
que acabaria por impor a “autocontenção” pena de recair-se na mesma conduta que
dos juízes que, caso assumissem o papel de aqui se critica.
“defensores da Constituição”, “iriam susci- Isso impõe uma dupla cautela: (a) evitar
tar o aparecimento de situações freqüentes as armadilhas de uma leitura que ignore as
de inconstitucionalidade, tendo em conta dificuldades inerentes à concretização dos
o caráter generoso do programa de longo direitos sociais e (b) evitar as armadilhas
prazo contido nos preceitos relativos aos de uma leitura acrítica que não se aperceba
direitos sociais” (ANDRADE, 2004, p. 397 de que algumas das dificuldades atribuídas
e ss.), teremos a baixa densidade normativa à concretização dos direitos sociais são
como uma prévia desautorização genérica para fictícias.
que tais direitos possam ter a prestação Assim, torna-se necessário “desideo­
social neles contida reclamados via judicial, logizar”6 as leituras dos direitos sociais
deixando-os ao encargo exclusivo do juízo para então se compreender em que termos
de conveniência e oportunidade do legis- lhes podem ser atribuídos aplicabilidade e
lador que, embora obrigado, não estaria justiciabilidade.
sujeito ao controle por outro órgão que se
entenda competente. 3.1. Desideologizando a densidade normativa
Não é difícil inferir que esse tipo de
A despeito de a densidade normativa
argumentação leva às conclusões mais
de cada preceito constitucional em concreto
conservadoras, no sentido de uma leitura
ser determinante para verificação objetiva
paralisante e estática quanto à realização
do grau de aplicabilidade direta que dele se
do conteúdo dos direitos sociais. Nela está
pode inferir, afirmamos que a leitura dessa
implícita a negação do caráter vinculante dos
densidade normativa é ideologizada.
direitos sociais, bem como está pressuposto
Mesmo que se reconheça a importância
que “as situações frequentes de inconsti-
da mediação concretizadora do legislador
tucionalidade” não seriam antijurídicas no
infraconstitucional, inclusive para fins de
“sentido estrito”, uma vez que, em relação
manterem-se abertas as opções democráticas
a elas, devem os juízes abster-se de suscitá-
de realização dos direitos sociais, é necessá-
las. E tudo isso com base em uma razão, ao
rio admitir que a vagueza e a fluidez textual
que parece, quantitativa (fundada na frequ-
nunca consistiram, por si só, em empecilho
ência com que as situações de inconstitucio-
à concretização de quaisquer direitos, sendo
nalidade surgiriam) e não qualitativa (vez
mesmo inerentes ao labor jurídico.
que a inconstitucionalidade da omissão não
Tomem-se, por exemplo, os conceitos de
pode ser descaracterizada pelo simples fato
boa-fé, negligência, abusividade, dano irre-
de que é comum que se deixe de cumprir
a Constituição)! 6
Todo conhecimento está imbuído de condicio-
Por outro lado, é necessário reconhecer namentos políticos, sociais, culturais e econômicos
também as dificuldades específicas que o (LÖWY, 1994). O reconhecimento desse condicio-
adimplemento dos direitos sociais implica namento é o primeiro e indispensável passo rumo a
maior objetividade possível que, em não sendo nunca
– e que, em relação à densidade norma- a idealizada, é tanto maior quanto maior for o exer-
tiva, faz sobressair a necessidade de que cício de distanciamento crítico persistente e contínuo
escolhas políticas democráticas informem do intérprete.

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parável, entre tantos outros. Por essa razão, marcada de outra cegueira igualmente
afirma-se ser “puramente ideológica – e não inadmissível: a que impede se veja o quanto
científica – a tese que faz depender de lei a classificação dos direitos fundamentais,
a fruição dos poderes ou direitos configu- no tocante à sua eficácia e aplicabilidade,
rados em termos algo fluídos” (MELLO, dispensa a análise objetiva da estrutura dos
1981, p. 245). direitos fundamentais para atender uma
Por outro lado, o grau de densidade classificação prévia, já dada, em que se
normativa de um direito social, conside- encontram tanto os direitos de liberdade
rado suficiente a ensejar aplicabilidade como os direitos sociais.
direta da norma, é um dos pontos mais Logo, a classificação quanto aos efeitos
polêmicos quando se discute a eficácia dos dos direitos sociais preexiste em relação à sua
direitos sociais. estrutura e é mesmo dela, em alguns casos, inde-
De acordo com Alexy (1997, p. 494), pendente e calcada em critérios arbitrários.
a questão acerca de quais são os direitos Assim, usualmente atribui-se baixa
fundamentais sociais que podem ser atribu- densidade normativa aos direitos sociais
ídos a um indivíduo é definitivamente uma quase sempre em comparação à estrutu-
questão de ponderação entre princípios. ra normativa dos direitos de liberdade,
Assim, o modelo proposto por Alexy indagando-se sobre se seria certo dotar os
(1997, p. 484 e ss.) comporta oito níveis (ou direitos sociais da mesma aplicabilidade
graus) de exigibilidade diferentes, a partir que têm os direitos de liberdade, apesar de
da combinação dos elementos de vincula- suas diferenças estruturais (Cf. BÖCKEN-
ção e não vinculação das dimensões sub- FÖRDE, 1993, p. 75).
jetivas e objetivas e da outorga de direitos Sugere-se aqui uma inversão desse
definitivos ou prima facie. Por meio desse questionamento: quão diferentes, objetivamen-
modelo, pode-se compreender, desde logo, te, são as estruturas dos direitos sociais e
que, em sede de interpretação de direitos de liberdade, que justifiquem o tratamento
fundamentais (como um todo), não se está diferenciado quanto à sua aplicabilidade?
diante de um método de interpretação por Ora, a vagueza textual dos direitos de
subsunção, de tudo ou nada, mas de um liberdade é frequentemente apontada pela
método de ponderação e de gradação, que doutrina, pois os direitos de liberdade tam-
torna sempre necessariamente mais com- bém são marcados por formulações abertas
plexa a tarefa de reconhecer o grau maior e vagas, sem que deixem de ser diretamente
ou menor de determinação de uma norma aplicáveis pelo Judiciário, “mediante o
(Cf. DWORKIN, 2002, p. 35 e ss.). recurso à interpretação, sem que se cogite
Porém, o aspecto de maior relevância – neste particular – de ofensa ao princípio
que se quer destacar ao se fazer referência da separação de poderes” (SARLET, 2001,
à ideologização da densidade normativa p. 270). Assim, tal como os direitos sociais,
é o de que dois preceitos constitucionais com também os direitos de liberdade englobam
mesma baixa densidade normativa são interpre- diferente conteúdo, variável estrutura e são,
tados de forma diferenciada quanto à sua força por isso, passíveis de diversa concretização
normativa, vinculatividade e aplicabilidade, (MIRANDA, 2000, p. 107).
conforme se trate de um direito de liberdade ou Porém, apesar de reconhecida a abertura
de um direito social. e vagueza textual também das normas dos
Assim, se não se quer adotar uma postu- direitos de liberdade, a esses uma muito
ra marcada de uma cegueira inadmissível, maior eficácia é de plano reconhecida. O am-
recusando as dificuldades óbvias ineren- plo reconhecimento doutrinário da vague-
tes à concretização dos direitos sociais, za e indeterminação textual dos preceitos
tampouco pode ser admitida a postura constitucionais consagradores dos direitos

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de liberdade permite conduzir à conclusão Finalmente, por que se pode entender
de que seu tratamento díspar quanto à sua haver um direito individual à proteção
aplicabilidade provém, antes, do fato de os policial e não se pode falar em um direito
direitos de liberdade já terem ultrapassado individual à educação, por exemplo? Qual
seu momento histórico de afirmação, sendo é a significativa diferença, do ponto de
hoje plenamente consagrados no plano po- vista da estrutura e densidade normativa,
lítico, e não propriamente em razão de sua que justificaria a um ser exigível e ao outro,
estrutura jurídica. não?
Assim, é sua consagração política que Tudo indica que as respostas a essas
lhe permite a dotação de um regime jurí- perguntas teriam de desbordar do mero
dico que consiste na sua plena eficácia ime- plano da densidade normativa e da abertu-
diata e que é tido pela doutrina tradicional ra textual da norma para encontrar guarida
como completamente distinto do regime em motivos outros que não os da estrutura
jurídico dos direitos sociais (Cf. BARROSO, normativa dos preceitos constitucionais de
2002, p. 106). liberdade ou sociais. Aliás, é por essa singu-
A respeito, tome-se um exemplo apto a lar razão que se tem de recorrer à ambígua
ilustrar o que se tem dito: categoria de um “consenso pressuposto”.
“Ainda que todos os preceitos cons- Disso resulta que a inoperância dos
titucionais se manifestem através de preceitos de direito social deva-se, muito
conceitos indeterminados: nos direi- mais, à incorreta compreensão de sua força
tos, liberdades e garantias, trata-se de normativa do que propriamente à pretensa
concretizar decisões constitucionais, debilidade jurídica que lhe é imputada, cujo
de modo que o juiz pode definir os propósito é a função dissimuladora da frus-
conceitos, que devem considerar-se in- tração que se lhe impõe. A negação sutil da
diretamente determinados por remissão vinculação dos direitos sociais ganha peso
para um consenso pressuposto (...) já se com o recurso à interpretação ideologizada
podem considerar direitos determi- da densidade normativa, permitindo que a
nados os direitos concretos a presta- prática judicial seja conivente com sua siste-
ções individualizadas, quando essas mática violação7.
dependem de uma atuação legislativa Além disso, parece ter razão Ingo Sarlet
que, além de obrigatória, é vincula- (2001, p. 270) ao definir que a interposição
da. Assim, pode haver um direito dos legislativa somente é vista como indispen-
indivíduos à protecção policial, fundado sável não com base em motivos estruturais
na garantia do dever estadual de e normativos, mas antes pelo fato de que
organizar uma polícia de segurança a realização dos direitos sociais demanda,
com determinadas características.” em regra, elevados encargos financeiros
(ANDRADE, 2004, p. 194) (item 4).
Há que se indagar, com esse exemplo, 7
“Em vez de tutelar o Executivo, condicionando
por que há um consenso pressuposto que suas políticas públicas, disciplinando seus gastos
permite ao juiz definir os conceitos indeter- sociais e evitando distorções clientelísticas, tais
minados dos direitos de liberdade? Qual é a declarações se limitam a propósitos meramente
diferença estrutural que justifica transmudar legitimadores. (...) Trata-se de uma negação sutil, que
costuma se dar por via de uma ‘interpretação dogmática’
um conceito indeterminado em conceito do direito, enfatizando-se, por exemplo, a inexistência de
indiretamente determinado? leis complementares que regulamentem os direitos e as
Igualmente: Por que tal pressuposto prerrogativas assegurados pela Constituição. Sem a
devida ‘regulamentação’ por meio de uma lei com-
consensual não pode ser conferido aos di-
plementar, esses direitos e essas prerrogativas têm
reitos sociais, a fim de suprir-lhes a baixa vigência formal, mas são materialmente ineficazes”
densidade normativa? (FARIA, 2002, p. 98-99, grifos do autor).

58 Revista de Informação Legislativa


3.2. As normas de direito social à concretização das normas de direitos so-
já foram densificadas ciais, cuja vagueza da redação é manifesta
– para além do reconhecimento de outros
Finalmente, a discussão em torno à
problemas inerentes à sua concretização, es-
densidade normativa dos direitos sociais
pecialmente seus custos –, o que se está aqui
requer análise sobre a produção norma-
a chamar atenção é que essas dificuldades
tiva infraconstitucional no ordenamento
são potencializadas quando se tratam dos
jurídico pátrio. De fato, a necessidade de
direitos sociais e diminuídas, ou mesmo
integração do texto constitucional, na época
ignoradas, quando se tratam dos direitos
de sua promulgação, impôs ao legislador
de liberdade cuja redação seja marcada pelo
ordinário a tarefa de elaborar duzentas e
mesmo grau de vagueza textual.
quarenta e duas normas regulamentadoras
A densidade normativa das normas
(Cf. PIOVESAN, 2003, p. 121). Hoje, porém,
de direito social deve ser verificada em
a maior parte das normas constitucionais de
concreto, observando-se as peculiaridades
cunho social já foi densificada, tendo sido de cada situação em particular e tendo-se
“devidamente integradas na maior parte em conta que a vagueza textual inerente a
por legislação infraconstitucional” (FRIS- tais normas implica critério hermenêutico
CHEISEN, 2000, p. 83)8. mais complexo do que as normas jurídicas
Isso quer dizer que, em grande medida, enquadráveis no esquema tradicional da
o problema da densidade normativa só “subsunção”, impondo ao intérprete neces-
subsiste no plano retórico e não é mais um sária ponderação dos valores em jogo.
problema que se possa seriamente conside- Assim, recusar a fórmula de uma con-
rar um obstáculo à atividade jurisdicional. cretização constitucional seletiva requer a
As escolhas do legislador democraticamente adoção de uma postura crítica e isenta, fun-
eleito já se realizaram, faltando apenas que dada na estrutura objetiva de cada direito e
tais escolhas sejam concretizadas. motivada pela pretensão de imprimir eficácia
Como conclusão, é preciso dizer que, aos direitos fundamentais como um todo.
longe de se negar as dificuldades inerentes Disso resulta a negação da utilização do
argumento da baixa densidade normativa
8
A maior parte das políticas públicas constitucio-
– comum a todos os direitos fundamentais,
nalmente estabelecidas foi implementada em nível
infraconstitucional, “compreendendo disposições de liberdade ou sociais, repita-se – como
atinentes: a) à seguridade social: artigos 194/204 da desautorização genérica apriorística da exigibi-
Constituição Federal; saúde: Leis n. 8.080/90 e n. lidade dos direitos fundamentais sociais.
8.142/90 (Sistema Único de Saúde); previdência social: O proposto exercício “desideologiza-
Leis n. 8.212/90 e 8.213/90 (Custeio e Benefícios Previ-
denciários); assistência social: que contém disposições
dor” das dificuldades inerentes à aplicação
às pessoas portadoras de deficiência e idosos que não dos direitos sociais consiste, portanto, não
podem se manter por si e por suas famílias: Lei n. na negação dessas dificuldades, mas na
8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social) e Lei n. recusa de sua potencialização com base em
8.909/94 (Lei das Filantrópicas); b) à educação: artigos
critérios arbitrários.
205/214 da Constituição Federal e Leis n. 9.394/96
(Diretrizes e Base), 9.424/96 (Fundo de valorização do
magistério – FUNDEF); c) à cultura: artigos 215/215 4. Os custos dos direitos sociais e a
– Lei 8.813/91 (dispõe sobre incentivos fiscais); d) ao
desporto: artigo 217 – Lei n. 9.615/98; e) à ciência e reserva do possível
tecnologia – artigos 218/219; f) à comunicação social
4.1. Todos os direitos são positivos
– artigos 220/224 – Lei n. 9.472/97 e Lei n. 9.612/98;
g) ao meio ambiente – artigo 225 – Lei n. 9.605/98; h) à Há quem esgrima contra a exigibilidade
família, criança, adolescente e idoso – artigos 226/230
dos direitos sociais o argumento liberal da
– Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e Adolescente) e
Lei n. 8.842 (Política Nacional do Idoso); i) aos índios – neutralidade e não intervenção do direito
artigos 231/232” (FRISCHEISEN, 2000, p. 81 e ss.). e do Estado no domínio econômico. A

Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009 59


pretensa ingenuidade de acreditar que o que não se possui.(...) Os direitos a prestação
direito seja, ou deva ser, neutro acerca da peculiarizam-se, sem dúvida, por uma de-
intervenção governamental na ordem eco- cisiva dimensão econômica. São satisfeitos
nômica há muito vem sendo desmascarada, segundo as conjunturas econômicas, segundo
com pontos de vista os mais distintos, tendo as disponibilidades do momento” (BRANCO,
em comum a observação de que Estado e 2002, p. 146, grifos do autor).
direito, em relação à ordem econômica, Sem dúvida, como alerta Luís Roberto
podem ser tudo, menos neutros9-10. Barroso (2001, p. 107), a norma jurídica não
Por outro lado, a ninguém é dado duvi- tem o condão de, per se, conformar a realida-
dar que a concretização dos direitos sociais de ao dever-ser por ela disposto, da mesma
envolve largo dispêndio financeiro, visto forma como “ignorar as dificuldades não
que exige implementação e manutenção impede que elas se produzam”.
de serviços públicos, nos quais consistem Por outro lado, há que se considerar
as prestações fáticas de cunho social. O con- que os obstáculos financeiros à concre-
teúdo econômico desses direitos é, diz-se, a tização dos direitos sociais, tal como a
sua principal distinção em relação a outros discussão acerca da densidade normativa,
direitos, que não envolvem alocação de foi ideologizado ao extremo, impedindo
recursos para sua implementação. a discussão objetiva dos problemas que o
Com base no conteúdo econômico dos tema suscita.
direitos prestacionais, parte significativa Assim, se de um lado não se pode
da doutrina fixou entendimento de que a descurar dos obstáculos concretos que
eficácia desses direitos está condicionada se impõem à concretização dos direitos
à reserva do financeiramente possível, ou sociais, também não se pode descurar do
seja, à disponibilidade financeira do Esta- desenvolvimento da consciência jurídica
do para arcar com os custos da realização sobre a real impositividade que os mesmos
desses direitos. O princípio da reserva do ensejam.
possível permitiu a alguns juristas negar Certamente não há que cair nas arma-
categoricamente a competência dos juízes, dilhas do “modelo teórico da utopia” de
dado seu deficit de legitimidade democrá- que fala Flavio Galdino (2002, p. 169-171)
tica, para dispor acerca de políticas sociais e que consiste na premissa da inesgotabi-
que exijam gastos orçamentários (Cf. lidade dos recursos públicos e na irrestrita
KRELL, 2002, p. 52). separação entre o caráter jurídico e os
Exemplo claro tem-se na afirmação de pressupostos econômicos de realização
que “os direitos, aqui, se submetem ao natural dos direitos.
condicionante de que não se pode conceder o Porém, tomando-se como verdadeira a
tese esgrimida por Robert Alexy (1997, p.
9
Eros Grau (2001, p. 28) é um dos que afirma que a 187-188) de que as relações jurídicas não são
implementação de políticas públicas pelo Estado “en-
riquece suas funções de integração, de modernização
mais do que uma designação abreviada de
e de legitimação capitalista”. um conjunto de direitos a algo, a liberdades
10
É pertinente relembrar a lição de Gramsci e a competências, conclui-se que todos os
(1989, p. 96): “Em virtude do fato de que se atua es- direitos são positivos e implicam custos
sencialmente sobre forças econômicas, reorganiza-se
e desenvolve-se o aparelho de produção econômica,
pagos pelos contribuintes.
inova-se a estrutura, não se deve concluir que os ele- O que vale dizer que nenhum direito
mentos da superestrutura devam ser abandonados a si se encerra em prestações negativas: todo e
mesmos, ao seu desenvolvimento espontâneo, a uma qualquer direito possui conteúdo econômi-
germinação casual e esporádica. O Estado, inclusive
neste campo, é um instrumento de ‘racionalização’, de
co, razão pela qual a escassez de recursos
aceleração e de taylorização, atua segundo um plano, não afeta apenas as premissas da justiça so-
pressiona, incita, solicita e pune”. cial, mas, da mesma forma, as liberdades.

60 Revista de Informação Legislativa


Como demonstram Stephen Holmes e processo legal. Ou melhor, imaginemos tão-
Cass Sunstein (2000, p. 35 e ss.), é errôneo somente os custos decorrentes do princípio
pensar que um direito que implica tão-so- do duplo grau de jurisdição. O mesmo se
mente uma garantia contra invasão da seara dá em relação à garantia (negativa) de que
estatal, por consistir em uma inação, não ninguém será obrigado a fazer ou deixar
tem custos, ou seus custos são relativamen- de fazer alguma coisa senão em virtude da
te baixos. Ocorre, porém, que uma gama lei e a manutenção (extremamente custosa)
considerável de recursos estatais destina-se das esferas legislativas federal, estadual e
à proteção dessa sorte de direitos. municipal que tornam possível o princípio
Em razão disso, Holmes e Sunstein (2000, da legalidade. Ou nos custos de registro
p. 59 e ss.) afirmam peremptoriamente que dos direitos autorais e da propriedade
todos os direitos são positivos e qualificam intelectual. Os exemplos são inacabáveis.
como fútil a dicotomia que classifica os Basta ler o rol de direitos assegurados pelo
direitos em negativos e positivos. Essa dico- art. 5o da Constituição Federal e imaginar
tomia não faz sentido, explicam, pois não há quantos deles subsistiriam sem custos di-
como pensar sistematicamente uma classe retos e indiretos relativos à sua observação
de direitos tão distintos entre si. A ideia de pelo Estado.
que os direitos negativos protegem a liber- No fim das contas, como afirma Canoti-
dade ao passo que os positivos promovem a lho (apud COUTINHO, 2003, p. 36), trata-se
igualdade também é prejudicada, pois todo de “jogo de sombras”, pois um direito pri-
e qualquer direito, inclusive aqueles acerca macialmente prestacional, como o direito
dos quais nos acostumamos a associar a uma à jurisdição, não explica a razão pela qual
inação estatal, requer uma complexa rede de é incluído entre os direitos, liberdades e
atuação do Estado. Isso é demonstrado com garantias quando possui a mesma estrutura
a exemplificação do paradigmático direito de outros direitos prestacionais.
de propriedade que, ao contrário do que Assim, a reflexão acerca dos custos dos
se supõe, tem elevadíssimos custos para o direitos deve ser revista levando-se em
Estado e isso apenas para fins de proteção/ consideração que a tradicional oposição
manutenção daquele direito na esfera jurídi- entre direitos de liberdade e direitos sociais,
ca e patrimonial de um indivíduo. quanto à intervenção estatal, cai por terra.
No mesmo sentido, Abramovich e Sem dúvida, tais observações são impres-
Courtis (2003, p. 135 e ss.) afirmam não ser cindíveis para compreensão do problema do
possível traçar uma distinção qualitativa conteúdo econômico dos direitos sociais e
entre o valor normativo de direitos de de- do quanto a alocação de recursos como óbice
fesa e direitos sociais com base na suposta à realização dos direitos sociais tomou, mais
isenção de custos de uns e na alocação de uma vez, contornos ideológicos. Não é ino-
significativos recursos de outros. portuna a comparação entre a argumentação
De fato, se os direitos sociais possuem que afasta a normatividade dos direitos
marcado conteúdo econômico, o mesmo sociais pela ausência de reserva financeira
se diga em relação aos demais direitos de àquela denunciada por Karl Marx, em O
liberdade: imaginem-se os enormes custos Capital, acerca também dos “embustes” que
requeridos para implementação do sistema se impuseram aos direitos sociais, tocantes
eleitoral que assegura o direito ao voto ou à regulamentação da jornada de trabalho de
mesmo o conteúdo econômico envolvido crianças, adolescentes e mulheres.
no asseguramento do direito à prestação Tal como hoje se esgrime a inviabilidade
(positiva) jurisdicional que viabiliza o direi- financeira do Estado como óbice ao cum-
to (negativo) a que ninguém seja privado de primento da lei, àquela época esgrimia-se,
sua liberdade ou de seus bens sem o devido do mesmo modo, a inviabilidade financeira

Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009 61


da indústria ao cumprimento da lei que para o exercício de determinado direito
impunha limites ao sistema de turnos de estão submetidas à ‘reserva do possível’”
trabalho. Por essa razão, foram os inspeto- (MENDES, 1999, p. 47-48).
res fabris instruídos para “não interferirem Essa decisão ganhou enorme reper-
contra os fabricantes por infração à letra da cussão doutrinária no Brasil, nem sempre
lei”, uma vez que não se admitia fossem de forma responsável, o que fez com que
“os grandes interesses industriais deste Andreas Krell (2002, p. 51 e ss.) a ela se
país ser tratados como coisa secundária” referisse como uma falácia da reserva do
(MARX, 2001, p. 332, 320 e ss.). Passados possível que é fruto de um direito consti-
cento e cinquenta anos, tem-se a impressão tucional comparado equivocado. A falácia
de que mudam os problemas, mas não as de que trata Krell consiste no evidente
maneiras de combatê-los. descompasso entre as realidades brasileira
Mais uma vez, o tratamento díspar e alemã, notoriamente sobre o problema da
quanto às consequências dos custos en- exclusão social, redundando em que o con-
volvidos para concretização dos direitos ceito alemão de redistribuição da riqueza
fundamentais provém do fato de os direi- (Umvertailung) – que serve de fundamen-
tos de liberdade terem sua legitimidade tação à ideia de reserva do possível – tenha
consagrada aprioristicamente, ao contrário conotação completamente distinta da que
dos direitos sociais que, em regra, a priori, tem no Brasil. Daí decorre que a discussão
têm contra si uma profunda desconfiança sobre os limites do Estado Social e a conten-
que culmina numa desautorização prévia e ção das prestações estatais que se trava na
genérica em relação aos mesmos. Alemanha não possa ser transplantada para
cá, em razão de não se haver concretizado
4.2. A reserva do possível: um Estado de Bem-Estar.
da mística à técnica Parece-nos que uma adequada interpre-
Somente conscientes desta potenciali- tação desse princípio impõe três observa-
zação, em nível ideológico, dos problemas ções. Em primeiro lugar, deve-se salientar
relacionados aos custos dos direitos é que que a Corte alemã negou que o Estado fosse
se pode, então, compreender o Princípio da obrigado a criar vagas nas universidades
Reserva do Possível (Der Vorbehalt des Mögli- públicas suficientes para atender a todos
chen). Topos da jurisprudência constitucio- os candidatos.
nal alemã, segundo a qual os direitos sociais Em segundo lugar, que o direito cons-
somente consistem em direitos subjetivos à titucionalmente garantido do cidadão que
prestação material de serviços públicos pelo satisfaz às condições subjetivas de admis-
Estado quando houver disponibilidade de são ao estudo universitário de sua escolha
recursos financeiros para tanto, colocam a encontra-se “sob a reserva do possível, no
decisão acerca da disponibilidade de tais sentido do que o indivíduo pode esperar
recursos no campo da discricionariedade razoavelmente da sociedade” (BVERFGE,
governamental e parlamentar para compo- p. 333 apud ALEXY, 1997, p. 425, grifo do
sição dos orçamentos públicos, esvaziando autor).
o papel do Poder Judiciário a esse respeito Em terceiro lugar, o Tribunal expressou
(Cf. KRELL, 2002, p. 52). haver um direito prima facie de todo cidadão
É paradigmática a decisão do Tribunal que tenha sido aprovado a ser admitido em
Constitucional Federal da Alemanha acerca uma instituição educacional de sua escolha,
do “numerus clausus de vagas nas Universi- deixando em aberto os termos em que tal
dades (numerus-clausus Entscheidung), [que direito prima facie pode converter-se em
reconheceu] que pretensões destinadas a um direito definitivo (Cf. ALEXY, 1997,
criar os pressupostos fáticos necessários p. 425).

62 Revista de Informação Legislativa


Em síntese, salienta-se que o Tribunal o fato de ter a Corte Constitucional alemã
rejeitou pedido de criação de vagas nas entendido que a exigibilidade do direito
universidades públicas para atender a todos social deva pautar-se pela razoabilidade, não
os candidatos, pedido que, para além de se podendo exigir, independentemente da
fugir à reserva do financeira e faticamente disponibilidade financeira do Estado, o cumpri-
possível, afigurou àquele Tribunal como mento de prestação que supere aquilo que
desarrazoado, ou seja, acima da expectativa razoavelmente dele se pode cobrar.
social aceitável, reconhecendo, entretanto, Mais acertada, portanto, é a posição de
um direito prima facie que poderia, sob cer- Ricardo Lobo Torres (2003, p. 29 e ss.) que
tos pressupostos, converter-se em direito a impõe ao adimplemento dos direitos sociais
prestações por parte do Estado. A reserva a sujeição ao princípio da razoabilidade,
do possível deve ser entendida, portanto, tido não somente como “técnica de balance-
não como inviabilidade a priori de realiza- amento de interesses”, mas como princípio
ção dos direitos sociais, mas antes como legitimador apto a conferir proporcionali-
necessidade de ponderação dos bens em jogo dade e equilíbrio às decisões judiciais. Se se
(ALEXY, 1997, p. 498). admite que os direitos sociais são direitos
No Brasil, entretanto, o princípio da fundamentais na medida em que atendem
reserva do possível tem, muitas vezes, exer- ao mínimo existencial, continua o autor, o
cido função de mero topos retórico destinado princípio da razoabilidade adquire papel
à desqualificação a priori dos direitos sociais, central na determinação do que pode e
visto que é lançado mão à revelia mesmo do que não pode ser exigido como direito
da verificação da disponibilidade efetiva do fundamental social. Somente o que sobreex-
livro-caixa do Estado, como se se partisse cedesse o mínimo razoável é que poderia ser
do pressuposto de que o Estado não terá limitado pela reserva orçamentária.
recursos financeiros suficientes à efetivação Finalmente, mas não menos importante,
daqueles direitos. A pressuposição de que Flavio Galdino (2002, p. 213) chama atenção
a alegação de ausência de recursos não ne- para que a negação dos direitos sociais, com
cessita de demonstração acaba por conferir base na limitação orçamentária, pressupõe
ao instituto certos contornos místicos. um orçamento determinado, ignorando que os
Aliás, o princípio da reserva do possível, recursos públicos são captados em caráter
pensado no contexto do processo constitu- permanente e que a captação não cessa
cional, no mínimo, impõe como condição a nunca, nada impedindo, portanto, que um
que se alegue a reserva do possível, num orçamento posterior assuma a despesa
eventual impedimento à concretização de relativa aos gastos sociais.
um direito social, a demonstração da inca- Assim, há que se guardar cautela quanto
pacidade financeira do Estado, ou seja, o à apropriação do princípio alienígena da
ônus de provar que o Estado não pode arcar reserva do possível, pois, enquanto a Alema-
com os custos da implementação do serviço nha já superou o modelo de Estado de Bem-
público no qual consiste o direito social. Estar Social, o Brasil nem atingiu a Moderni-
Afinal, como é regra em processo, essa não dade, não tendo cumprido minimamente as
pode ser abstratamente pressuposta. promessas de liberdade e de igualdade para
Além disso, a interpretação equivocada a parcela mais significativa da população11
da ideia da reserva do possível no Brasil, (Cf. ARRUDA JR., 1997, p. 82).
ao pretender a limitação da eficácia dos
direitos sociais exclusivamente à disponi- 11
Aliás, evidencia-se nisso uma ironia: O Brasil
vive ainda, em relação às conquistas do Iluminismo,
bilidade financeira do Estado na gestão dos numa pré-modernidade, ao mesmo tempo em que se
serviços públicos básicos em que consistem vê forçado a ingressar na pós-modernidade neoliberal,
aqueles, secundou (ou até mesmo ignorou) vendo-se compelido a retroceder quanto às políticas

Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009 63


Logo, a adoção acrítica da reserva do não tem o condão de esvaziar a pretensão
possível para o caso brasileiro representa a do titular de um direito social12.
legitimação cínica da omissão do Estado, dian- No plano processual, a capacidade
te do quadro crônico de falta de recursos financeira do devedor importará no mo-
financeiros para satisfação mínima das mento da fase executiva e somente nessa
áreas sociais, sobretudo quando se excluem fase. A razão disso é que a inexequibilidade
as vias de controle jurisdicional sobre os de um título judicial nunca teve o condão
gastos públicos. de invalidar o título. Da mesma forma, não
Diante, mais uma vez, dos contornos se tem notícia de que, na fase processual
ideológicos dados à reserva do possível, cognitiva, o juiz tenha deixado de reco-
contornos esses que fazem do instituto um nhecer a pretensão do autor e de declarar
argumento meramente retórico voltado à seu direito porque o réu não poderia, no
desautorização da exigibilidade dos direitos futuro, suportar a execução do decisum. A
sociais e, por outro lado, diante do fato de fase cognitiva e a fase executória guardam
que a reserva do possível aponta para um autonomia13 – inclusive no paradigma do
dado real de que os direitos sociais impli- processo sincrético – e a impossibilidade
cam alocação de recursos e que a ausência fática de executar o julgado não interfere na
desses recursos é óbice – ao menos momen- função que tem o juiz de declarar o direito
tâneo – ao seu adimplemento, parece-nos e entregar a prestação jurisdicional, dando
crucial o tratamento do princípio da reserva razão ao autor que tem direito, como apre-
do possível sob o aspecto jurídico, dando- goa a máxima chiovendiana.
lhe contornos técnicos que possam contri- Logo, esclarecido que a incapacidade
buir para definir em que casos e sob quais financeira, no plano processual, não tem o
condições a reserva do possível tornaria condão de afastar a declaração de direito
inexigível uma norma de direito social. do autor que tem pretensão fundada, resta
Iniciando pela comparação da reserva avaliar, aí sim, sua consequência na fase
do possível com outras esferas jurídicas, executiva.
nas quais a capacidade financeira do de- A incapacidade financeira do devedor,
vedor é levada em consideração, é possível tendo em vista que, de regra, a execução se
apontar para consequências no plano ma- dá sobre o patrimônio do próprio devedor,
terial e no plano processual. acarreta a inutilidade dos atos executórios.
No plano material, a capacidade fi- Ainda assim, essa inutilidade não é tida por
nanceira do devedor pode determinar o definitiva, uma vez que a inexistência de
vencimento antecipado da dívida (arts. bens é causa tão-somente de suspensão do
333 e 1.425 CC), justificar a recusa do cum- processo executivo, consoante regra do art.
primento da prestação até que a parte que 791, III, CPC.
teve seu patrimônio diminuído satisfaça a
prestação que lhe compete ou dê garantia 12
A pretensão decorre de um dever constitucional
à satisfação (art. 477 CC), bem como servir determinado (densificado). A respeito, sugerimos con-
sultar nossa classificação quanto à tipologia eficacial
à estipulação do quantum devido em inde- das normas de direito social. Da mesma forma, os
nização de cunho extrapatrimonial. Como temas relativos ao pedido e ao ônus da prova foram
se vê, em nenhuma circunstância a incapa- tratados na parte processual de nossa tese “Exigibili-
cidade financeira do devedor da obrigação dade dos Direitos Sociais...”.
13
Tome-se a explicação de Araken de Assis (2006,
volta-se contra o credor, donde nos parece p. 86) sobre eficácia executiva: “a satisfação do autor
lícito concluir que a reserva do possível vitorioso (...) não decorre do juízo positivo acerca da
sua razão, e conseqüente procedência da demanda
públicas que mal chegaram a ser implantadas, sem ajuizada. Ela depende da prática de atos materiais
nunca ter vivenciado a Modernidade. tendentes a outorgar ao vitorioso o bem da vida”.

64 Revista de Informação Legislativa


De regra, porém, a execução contra o a) O princípio da reserva do possível
Estado relativamente ao adimplemento dos pode tornar o direito social ineficaz e, portan-
direitos sociais consistirá em pedido de cum- to, inexigível quando, sob o aspecto material:
primento de obrigação de fazer e não em O pedido não se pautar pela razoabilida-
execução patrimonial indireta contra a Fa- de, que é condicionante do reconhecimento
zenda Pública. Assim, e tendo em vista que do dever do Estado no caso concreto, de
o tema concernente ao pedido que consiste um lado, e do direito definitivo, de outro.
no dever estatal de prestações fáticas decor- A razoabilidade é condicionante do reco-
rente de norma de direito social foi tratado nhecimento dos gastos que o Estado deve
em outro lugar e que desborda dos limites arcar para o adimplemento dos direitos
do trabalho aqui proposto, apenas para deli- (razoáveis) reconhecidos. Assim, o pedido
mitar os contornos jurídicos do princípio da que exigir o cumprimento de prestação
reserva do possível, dizemos que a execução que supere aquilo que razoavelmente se
lato sensu das obrigações de fazer implica pode cobrar do Estado ou, ainda, que so-
um fazer do devedor; nesse caso, porém, o breexceder o mínimo razoável deverá ser
fazer mostra-se complexo e com repercussão indeferido, sendo ineficaz e inexigível, em
patrimonial. Parece-nos que, analogamente, razão da reserva do possível.
a falta de recursos orçamentários pode sim b) O princípio da reserva do possível,
suscitar a suspensão do processo sincrético14 em sob o aspecto processual, pode suspender
que se pede o adimplemento do facere com o processo em que se exige o adimplemen-
repercussão patrimonial, de que o devedor to de direito social, diante das seguintes
não dispõe no momento. condições:
Tudo isso estaria em consonância com a Em sendo razoável o pedido, não pode
advertência de que a captação orçamentária a incapacidade financeira do Estado, como
estatal tem caráter permanente e dinâmico se viu, tornar inexigível um direito que,
– e não estático – e que recursos momenta- sob todos os aspectos jurídicos, é eficaz.
neamente inexistentes, num dado exercício Ora, se a captação de recursos por parte
financeiro, poderão estar previstos na do- do Estado tem caráter permanente, não
tação orçamentária seguinte. cessando nunca, isso equivale a dizer que
Feitas essas observações, entendemos a incapacidade financeira do Estado para
que o princípio da reserva do possível pode adimplir o direito social pleiteado somente
ter as seguintes consequências jurídicas: pode gerar um impedimento provisório.
(a) pode tornar o direito social ineficaz e, Assim, inexistindo recursos orçamentários
portanto, inexigível ou (b) pode gerar a suficientes para adimplir o direito social
suspensão do processo ou (c) não produzir que se exige, a reserva do possível, nessa
nenhuma consequência jurídica, perma- hipótese, vai gerar a suspensão do processo
necendo incólume a esfera de eficácia e em que se pleiteia o direito social.
exigibilidade do direito social pleiteado. A outra condição inafastável a que
Expliquemos melhor as três hipóteses. a alegação de reserva do possível possa
suspender a eficácia da norma de direito
14
A aplicação da hipótese de suspensão processual social é que o Estado cumpra o ônus da prova
é análoga porque fazemos menção à tutela inibitória
prevista no art. 461 do CPC que, a princípio, teria as
quanto à incapacidade imediata de arcar
hipóteses de suspensão previstas pelo art. 265 do CPC. com os custos relativos ao adimplemento
Como, entretanto, trata-se de processo sincrético, ou do direito social requerido.
seja, de processo em que as fases cognitiva e executiva c) Finalmente, o princípio da reserva do
fundam-se e, mais ainda, de hipótese que a doutrina –
não sem críticas, mas que se mostram neste momento
possível não produz nenhuma consequência
inoportunas – intitula de execução lato sensu, a regra do jurídica, sendo imediatamente exigível o
art. 791, III, CPC encontraria adequada aplicação. direito social quando:

Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009 65


Deixar o Estado de cumprir o ônus da breposição de competências que manifesta
prova que lhe compete, assim entendido a relativização daquele princípio em sua
tanto a perda da oportunidade probatória formulação clássica.
quanto quando as provas não demons- De um lado, têm-se as reservas do
trarem a desoneração do Estado em seu legislador e do administrador15, supos-
dever legal. tamente invadidas pelo controle judicial
O ônus de provar o fato que enseja um das omissões legislativas e, em especial
impedimento quanto à pretensão do autor, neste caso, administrativas. De outro, se
seguindo regra do art. 333 do CPC, é do réu. tradicionalmente o exercício do poder
Admitindo-se que a reserva do possível executivo jamais prescindiu de uma esfera
gera a suspensão do processo, tem-se a independente de regulamentação, a cres-
consequência necessária de que o ônus de cente complexidade da agenda política,
comprovar a incapacidade financeira da que demanda a articulação entre uma pauta
administração é dela própria. de reivindicações e atores conflitantes e
Aliás, nem se cogite de qualquer pre- mesmo antagônicos, torna muito mais
sunção, nesse ponto, a favor do Estado. árduo o processo de execução das leis e a
Mesmo porque, se houvesse que se falar implementação das políticas nelas adota-
em presunção, esta seria a de solvência das, exigindo ampliação daquela esfera ou
da administração (fiscus semper idoneus espaço livre para a disposição normativa
successor sit et solvendo). Some-se a isso a do executivo.
absoluta impossibilidade de o autor poder Diante desse quadro de redesenho das
desincumbir-se deste ônus caso se conjectu- funções estatais classicamente estabelecidas
rasse, por mero amor ao debate, na hipótese pelo princípio da separação de poderes,
de inversão do ônus da prova. pergunta-se se o mesmo encontra-se supe-
Logo, em sendo o ônus da prova um cri- rado, o que nos remete à sua configuração
tério para a formação do convencimento e da original, em Locke e Montesquieu.
decisão do juiz, tem-se que a mera alegação Locke engendrou a divisão de poderes
da reserva do possível em processo em que como princípio de limitação do poder mo-
se defende a administração-ré, desacompa- nárquico em razão da representação popu-
nhada de meios de prova suficientes para lar e como técnica de garantia de direitos e
demonstração da sua incapacidade financei- liberdades individuais.
ra imediata, não a isenta do cumprimento do Jeremy Waldron (2003, p. 78) afirma que
seu dever constitucional determinado, obri- Locke encerra um enigma: em sendo o de-
gando ao adimplemento da prestação fática fensor da legislatura limitada, defende ser
em que consiste o direito social exigido. a mesma suprema, nunca sujeita a nenhum
outro corpo. De fato, Locke por várias vezes
5. A separação de poderes como óbice à afirma, em seu Segundo tratado, que o poder
aplicação judicial dos direitos sociais legislativo é o poder supremo da sociedade
política16.
5.1. A separação de poderes no marco do
15
Por reservas do legislador e do administrador,
Estado Constitucional Democrático
fazemos, neste momento, referência ao que se chama
A avaliação crítica do último suporte do de reserva geral, calcada na própria noção de sepa-
ração de poderes e que indica o “núcleo essencial”
tripé denegatório da justiciabilidade dos ou a “função primária específica” de cada um deles.
direitos fundamentais sociais inicia por Adiante, essas categorias ganharão conceitos distintos
pensar o Estado Constitucional Democrá- (a ponto de se falar em “reservas de administração”,
tico de cunho social e novos paradigmas por exemplo) a serem oportunamente explicados. A
respeito, ver: CANOTILHO, 1999, p. 686-689.
à interpretação do princípio da separação 16
Veja-se: “esse legislativo é não apenas o poder
dos poderes nele forjados, em razão da so- supremo da sociedade política, como também é sa-

66 Revista de Informação Legislativa


Entretanto, é importante compreender contrapesos ao poder do rei (RIBEIRO apud
que Locke fundava-se na noção do poder MONTESQUIEU, 2005, p. 38).
legislativo como o “poder conjunto de Assim, Montesquieu (2005, p. 173,
cada membro da sociedade” e na noção 176) elabora sua defesa de que uma parte
de lei como expressão do bem público, do “prende a outra com sua mútua faculdade
“consentimento da sociedade”, sendo a de impedir”18. O princípio da separação
concepção do legislativo como poder su- de poderes por ele concebido idealiza um
premo uma consequência dessas premissas. poder estático: “Estes três poderes deve-
É para preservação dos fins desse poder riam formar um repouso ou uma inação.
que previa que aqueles que elaboram a lei Mas, como, pelo movimento necessário das
tivessem de a ela submeter-se, a fim de as- coisas, eles são obrigados a avançar, serão
segurar que a mesma fundasse-se naquela obrigados a avançar concertadamente”19.
vontade comum e não fosse a expressão Assim, é pela organização estatal es-
momentânea de uma vantagem particular. tanque provida pela teoria da separação
A submissão à lei seria, portanto, premissa de poderes e pela despersonalização do
de imparcialidade do legislador quanto aos poder que se concebe o Estado moderno
seus próprios interesses. Da mesma forma, como garantia dos direitos individuais e
para Locke a separação entre legislativo e contra o absolutismo.
executivo seria, fundamentalmente, uma Das muitas críticas feitas à tese da se-
garantia de transitoriedade daqueles que paração de poderes, destacamos a de Karl
detivessem o poder legislativo – e portanto Loewenstein (1986, p. 56), que vislumbrou
garantia de sua submissão às próprias leis a impossibilidade da distinção entre as
–, em contraposição à perenidade do poder funções legislativa e executiva, visto que
executivo17. seriam diferentes técnicas do exercício
Montesquieu, por sua vez, radicaliza da liderança política e da atividade de
a necessidade de que um poder contenha governo.
o outro. Com ele, a garantia de liberdade A atualidade dessa crítica faz-se sentir
política do cidadão contra a ameaça de exe- num momento em que há a preocupação
cução tirânica do poder concentrado em um com o esvaziamento das opções políticas
só homem decorre não apenas da limitação inerentes à administração. Afinal, não é
de cada poder, mas no exercício do controle injustificado o temor de substituição do
dessa limitação contido na fórmula “le pou- político pelo técnico. Se um rigoroso en-
voir arrête le pouvoir”, que encontraria quadramento técnico pode ser antitético ao
seu ideal num regime em que vigorassem convívio democrático, deve ser “a criativi-
dade do político que ‘atualiza’ as exigências
grado e inalterável nas mãos em que a comunidade
o tenha depositado”. Ainda: “para a preservação da 18
A tese de contenção mútua do poder fica evi-
comunidade não possa haver mais de um único poder dente em Montesquieu (2005, p. 173-174): “Se o poder
supremo, que é o legislativo” (LOCKE, 1998, p. 503, 518, executivo não tiver o direito de limitar as iniciativas do
grifos do autor). corpo legislativo, este será despótico; pois, como ele
17
“O poder legislativo é depositado nas mãos de poderá outorgar-se todo o poder que puder imaginar,
diversas pessoas que, devidamente reunidas em as- anulará os outros poderes. (...) Mas, se, num Estado
sembléias, têm em si mesmas, ou conjuntamente com livre, o poder legislativo não deve ter o poder de
outras, o poder de elaborar leis, e, depois de as terem frear o executivo, tem o direito e deve ter a faculdade
feito, separando-se novamente, ficam elas próprias de examinar de que maneira as leis que criou foram
sujeitas as leis que formularam (...). Porém, como as executadas”.
leis de imediato e em pouco tempo têm força constante 19
A propósito, a expressão “aller de concert”,
e duradoura, e requerem uma perpétua execução e aqui traduzida como “avançar concertadamente”
assistência, é necessário haver um poder permanente (tradutora Cristina Murachco), também é traduzida
que cuide da execução das leis”. LOCKE, 1998, p. 515, como ir ou avançar “em conjunto”, certamente mais
p. 503-504, grifos do autor). apropriado.

Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009 67


nas normas e, mesmo sob um controle pelo ção das relações entre poderes ao colocar a
Judiciário, o poder deve ter certos espaços justiça constitucional como catalisadora das
nos quais valora, à sua vontade, as decisões mais distintas articulações sócio – político
que toma” (SANTOS, 2004, p. 96). – culturais, o que igualmente desencadeia
Ora, se muito antes do desafio do plu- difíceis relações que se travam entre supre-
ralismo político constitucional já se previa macia constitucional e democracia.
uma esfera mínima necessária para que o Por tudo isso, ao mesmo tempo em que
executivo exercesse suas prerrogativas20, a noção de separação de poderes vem sendo
então muito mais razoável essa preocupa- desafiada e se lhe impõe reinvenção concei-
ção faz-se hoje. tual, por outro lado, ela deixa de ser apenas
Hoje, o paradigma de Estado Consti- um mecanismo de afirmação de direitos,
tucional, ao mesmo tempo em que exige alçando-se um sistema de preservação da
muito mais do poder executivo, também própria democracia.
sobre ele intervém e limita muito mais. O Como afirma Clèmerson Clève (1993, p.
pluralismo político e cultural acolhido pelo 42), se uma interpretação rígida e dogmáti-
modelo estatal constitucionalista impõe ca da separação dos poderes não funciona,
dificuldades que desafiam não só cada um por outro lado, como “idéia racionalizadora
dos poderes do Estado, mas em especial as do aparato estatal ou enquanto técnica de
relações que entre eles estabelecem-se21. organização do poder como garantia das
Somando-se a isso, a juridicização liberdades, não pode ser esquecido, nem se
e constitucionalização de toda sorte de encontra superado”.
prerrogativas, que se deixa entrever pelo Finalmente, se, de um lado, a separa-
rol crescente de dimensões dos direitos ção de poderes é garantia democrática, de
fundamentais – que cresce não só do ponto outro, não se esqueça, o sistema de freios
de vista numérico, mas também quanto à e contrapesos só funciona em regime de
sua complexidade22 –, acentua a sensibiliza- interdependência (e não de independência
dos poderes), com o necessário controle
20
“o bem da sociedade exige que diversas ques-
recíproco, nisso não residindo o exercício
tões sejam deixadas à discrição daquele que detenha
o poder executivo (...) muitas questões há que lei não de funções próprias de outro poder (GRAU,
pode em absoluto prover e que devem ser deixadas à 2001, p. 330).
discrição daquele que tenha nas mãos o poder execu- Aliás, talvez o principal embaraço que
tivo (...) é conveniente que as próprias leis, em alguns
casos, cedam lugar ao poder executivo” (LOCKE,
se apresente seja justamente o de redefinir
1998, p. 529). quais sejam as funções próprias de cada
21
Marcelo Neves (2006, p. 19) compreendeu per- poder e o quanto das funções próprias de
feitamente essas dificuldades: “Nesse tipo de Estado, outro poder é necessário absorver a fim de
Têmis deixa de ser um símbolo abstrato de justiça para
se tornar uma referência real e concreta de orientação desincumbir-se de suas próprias funções.
da atividade de Leviatã. Este, por sua vez, é rearticu-
lado para superar sua tendência expansiva, incompa- 5.2. Por um ativismo judicial
tível com a complexidade sistêmica e a pluralidade de democraticamente responsável
interesses, valores e discursos da sociedade moderna.
Não se trata apenas de uma fórmula para ‘domesticar’ Não é difícil, portanto, notar que a opo-
ou ‘domar’ o Leviatã. Antes, o problema consiste em sição do princípio da reserva de poderes à
estabelecer, apesar das tensões e conflitos, uma relação
construtiva entre Têmis e Leviatã”.
justiciabilidade dos direitos sociais merece
22
É errada a suposição de um desenvolvimento ser contextualizada.
histórico linear dos direitos fundamentais, no qual as
últimas dimensões expressariam a superação das pri- não somente na literatura acadêmica especializada,
meiras. Ao contrário, todas as dimensões se implicam mas também na agenda política, ao mesmo tempo
reciprocamente. No caso brasileiro, essa afirmação não cessam as preocupações em relação à tortura e,
é autoevidente, pois, ao passo que as preocupações em especial, o tema de que nos ocupamos: a imple-
com a bioética e com a biogenética ganham espaço mentação dos direitos sociais básicos.

68 Revista de Informação Legislativa


A favor das reservas do legislador e do igualmente não se quer um desgoverno.
administrador e contra o controle judicial Por isso, devem ser rechaçadas as omissões
das normas de direito social, sobremodo abusivas do legislador – e, acrescente-se, do
as programáticas, tem-se a complexidade administrador – em sede de direitos fun-
de critérios necessariamente envolvidos damentais, caso que dá ensejo ao controle
na solução, que desborda do esquema con- judicial da omissão (Cf. BÖCKENFÖRDE,
flitual individual tradicionalmente posto 1993, p. 66; ALEXY, 1997, p. 422). Assim,
em juízo. pode-se ver um impasse entre o governo
Uma decisão que envolva um direito de juízes e o que se chamou de desgoverno,
social vai seguramente deparar-se com o apresentando-se riscos de abusos dos dois
problema dos custos da efetivação desse lados.
direito e, em consequência disso, das prio- Além disso, a crítica à ausência de le-
ridades orçamentárias do Poder Público, gitimidade democrática dos magistrados
o que significa, em última análise, decisão não pode desconsiderar a necessária con-
acerca das prioridades na implementação textualização social da teoria democrática,
das próprias políticas públicas consagra- sob pena de reduzi-la a outro topos retórico
doras dos direitos sociais (e isso não na destituído de valor. Sobretudo numa de-
perspectiva individual, mas na análise mocracia marcada antes por ser delegativa
acerca das prioridades da coletividade, do que representativa, e isso justamente
vista como um todo). porque a extrema desigualdade social
Nesse sentido, é relevante a reflexão subtrai a capacidade de se fazer represen-
de que a intervenção judicial não deva tar, alimentando um ciclo de dependência
modificar a distribuição geral de recursos política no qual “há uma preponderância
de forma a prejudicar o conjunto de bene- de comportamentos e relações delegativas
ficiados pelos direitos sociais, chamando-se no interior de um padrão institucional
atenção para a relevância de uma visão definido pelo sistema representativo” (WE-
sistemática e geral dos custos e também FFORT, 1992, p. 108).
dos potenciais afetados pelo benefício23 (Cf. A relação entre ausência de políticas
PECES-BARBA, 2006, p. 164). públicas asseguradoras dos direitos sociais
Com razão, escreve Böckenförde (1993, e o enfraquecimento da democracia em seu
p. 79) que ninguém pretende a substituição sentido substancial não pode, portanto,
do ordenamento constitucional democráti- ser ignorada. Assim, se é correto o temor
co por um Estado judicial. Por outro lado, de que um ativismo judicial exacerbado
se não se deseja um governo de juízes, cujas incorreria em degradação da esfera política,
ferramentas decisórias tradicionais são ino- podendo constituir-se em ameaça à demo-
perantes para resolução de conflitos em que cracia, por outro lado, o problema maior do
se imponha resolução de impasses políticos argumento acerca dos riscos de um governo
e de interesses sociais coletivos e antagôni- de juízes é a forma conservadora com que, às
cos, para além do seu deficit democrático, vezes, é o mesmo manejado, chegando-se
ao extremo de falar em uma ditadura da
23
Que são também afetados pela decisão, mesmo Constituição (ANDRADE, 2004, p. 195).
quando em demanda individual, ao menos de forma
indireta. Se uma decisão determinar que o Estado
Ora, a resposta à ideia de uma ditadura
realize, de forma imediata, um transplante de órgãos da Constituição reside no fato de que, no
em paciente que demonstra urgência de tratamento, Estado de Direito, o poder estatal não pre-
isso certamente afetará os demais que estão na fila de existe à Constituição, mas é por ela consti-
espera que, por sua vez, já é organizada (também) pelo
critério da necessidade e da urgência. Esse é um dos
tuído e limitado, pois o princípio do Estado
motivos pelos quais se propugna a priorização da tu- de Direito não pressupõe unidade política
tela coletiva dos direitos sociais sobre a individual. e poder ilimitado, que só posteriormente é

Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009 69


necessário circundar de barreiras (HESSE, por ser prescrito legislativamente, cabe
1998, p. 159). exatamente aos juízes fazer respeitar”.
Igualmente, os poderes estatais não são No mesmo sentido, tem-se aponta-
independentes entre si. Se, de um lado, a se- do, em relação à dimensão política dos
paração de poderes é garantia democrática, direitos sociais, que a norma adquire co-
de outro, não se esqueça, o sistema de freios mensurabilidade de natureza política, vez
e contrapesos só funciona em regime de que é possível ponderar as prioridades
interdependência e não de independência governamentais e legislativas. O direito
dos poderes, com o necessário controle re- social assume contornos de instrumento
cíproco, cabendo ao Judiciário, justamente de governo e administração ao orientar os
“sempre que isso se imponha como indis- critérios legitimatórios das políticas sociais
pensável à efetividade do direito, integrar o e transforma a política numa moeda univer-
ordenamento jurídico”, nisso não residindo sal (MACEDO JR., 2005, p. 562-563)24.
o exercício de funções próprias de outro Certamente não desejamos um deslo-
poder. O que o princípio da supremacia da camento absoluto25 da arena política e do
Constituição determina ao Poder Judiciário espaço de conformação dos interesses cole-
é “assegurar a pronta exeqüibilidade de tivos para o Judiciário, o que implicaria um
direito ou garantia constitucional imedia- enfraquecimento e, portanto, um retrocesso
tamente aplicável, dever que se lhe impõe quanto às garantias democraticamente for-
e mercê do qual lhe é atribuído o poder” mais conquistadas historicamente.
(GRAU, 2001, p. 330-331). Por outro lado, dessa conquista históri-
Ora, pelo princípio da separação dos ca não pode resultar uma estagnação que
poderes, o poder detém o poder, cabendo
ao Judiciário a jurisdição e consequente-
24
O autor utiliza uma “situação” que ilustra bem
sua explanação: “Após perderem diversas batalhas
mente o controle jurisdicional, inclusive políticas (no Congresso) no sentido de limitar o uso
da Administração; não há que se falar em de tabaco, a política pública com relação ao setor
ingerência indevida quando se tem, ao parece estar se alterando em razão de ações judiciais
propostas pelos 18 Procuradores-Gerais de diversos
oposto, justamente exercício da função
Estados americanos que agora chegaram a um acordo
primária específica. no valor de 206 bilhões de dólares a serem pagos nos
Da mesma forma, permitir-se que as próximos 25 anos. A matéria critica o fato de que o
premissas constitucionais vinculantes fi- uso das ações como meio de pressionar os produtores
constitui-se em mecanismo não transparente e não
quem dependentes exclusivamente do juízo democrático para a elaboração de políticas de gover-
de oportunidade e conveniência do poder no” (idem, p. 559).
obrigado (devedor da prestação constitu- Também ilustra bem esta mutação nas esferas de
cionalmente estabelecida), sem nenhum decisão – utiliza-se a expressão mutação, e não sim-
plesmente transferência – o filme “O Júri”. Nesse filme,
controle dos demais poderes estatais, ao o advogado de uma viúva, cujo marido faleceu num
contrário de ser a consagração da separação destes inexplicáveis mass murderes dentro da empresa
de poderes, é justamente o rompimento em que trabalhava, litiga contra a indústria fabricante
da arma utilizada para matar a vítima. Claramente,
desse princípio, o desfazimento do sistema a disputa era de cunho político. O advogado, inter-
de freios e contrapesos. pretado por Dustin Hoffman, esclarecia ao júri que
Para Mauro Cappelletti (1999, p. 42), o aquela seria uma condenação inédita, a partir da qual
papel que se espera do juiz no Estado social a violência no país passaria a ser um problema da indústria
armamentista. A discussão dos jurados não deixou pas-
de direito é que, como “ramo” do Estado sar em branco o caráter predominantemente político
que são, contribuam com a “tentativa do que sua decisão assumiria, consistindo nisso o seu
estado de tornar efetivos tais programas”, principal dilema.
25
O termo “absoluto” é indispensável, uma vez
contribuição que se realiza na forma de
que, em sendo também política a atividade judicial
exigência “do dever do estado de intervir decisória, não há como vislumbrar-se (ou tampouco de-
ativamente na esfera social, um dever que, sejar) uma separação estanque entre as duas esferas.

70 Revista de Informação Legislativa


finda por ser, em termos práticos, um igual progressivamente para uma democracia
enfraquecimento e retrocesso da democra- substancial.
cia, sendo oportuno o alerta de Canotilho Em vista das tensões entre os poderes,
(apud COUTINHO, 2003, p. 30-31) quanto a necessidade de redefinição (e não de
à transmudação das esferas de poder no superação) da separação de poderes, com
contexto da globalização neoliberal, que preocupação com a democracia em seus
estabelece níveis privados de governança26, aspectos formal e substancial exige pos-
com forte impacto nas regulações econômi- tura dialética que coloca a própria atividade
cas, destituídos de quaisquer controles. judicial como objeto de ponderação do juiz,
Os índices de marginalização e exclusão que deve questionar a adequação da seara
social e de concentração da riqueza27 – mais judicial como arena de solução dos conflitos
de um terço da população brasileira não possui em pauta (vez que tal análise deve dar-se
saneamento básico28 – não admitem o con- sempre em concreto e não abstratamente),
formismo, mormente quando constitucio- norteado, porém, pela imposição consti-
nalmente (e mesmo supranacionalmente) tucional de realização gradual e crescente
reconhecidos os direitos sociais básicos à dos direitos que caracterizam o Estado de
existência digna: a impossibilidade de frui- Direito democrático. Recusa-se, de um lado,
ção dos direitos sociais mais elementares é, a absoluta obliteração das instâncias legisla-
por si só, a maior ameaça à democracia. tivas e administrativas e, de outro, recusa-
O desafio que um ativismo judicial demo- se igualmente a utilização – equivocada
craticamente responsável impõe é o de, em – do mote da separação dos poderes para
não abrindo mão das conquistas históricas, engessamento do papel do juiz na constru-
tampouco entregar-se à estagnação, ou ção – interdependente – da sociedade e do
seja, se não se quer retroceder em rela- Estado desenhados pela Constituição.
ção às conquistas da democracia formal, Sem dúvida, pode contribuir decisi-
igualmente não se quer deixar de caminhar vamente para a solução desse desafio a
existência de um direito processual constitu-
26
O documentário “A Corporação” aborda o pro- cionalmente adequado, que possa estruturar
blema da governança privada e da falta de controle
as tutelas conforme os efeitos que decorrem
sobre as corporações, indicando o quanto os direitos
fundamentais foram sendo, aos poucos, subvertidos especificamente de cada direito social em
em direitos à serviço das “pessoas jurídicas” (ACH- jogo, especialmente quanto ao controle das
BAR; ABBOTT; BAKAN, 2003). omissões administrativas, bem como o con-
27
De acordo com o Atlas da Exclusão Social no
trole judicial do orçamento público.
Brasil, 41,6% dos municípios brasileiros possuem o
menor Índice de Exclusão Social registrável (0.0 a 0.4), Finalmente, apresentam-se quatro argu-
sendo os piores resultados apresentados nas regiões mentos favoráveis à proposta de um ativis-
Norte e Nordeste (POCHMAN; AMORIM, 2003, p. mo judicial democraticamente responsável:
25). Por outro lado, no Atlas destinado ao estudo dos O primeiro é o de que o Judiciário não
ricos no Brasil, afirmam: “Tem sido marcante no Brasil
a inalteração do jogo distributivo, mesmo quando se pode suprimir ou substituir a esfera de
trata do aparecimento de novos jogadores e da mu- conformação das escolhas políticas ineren-
dança do perfil de geração e apropriação da riqueza” tes ao legislador no Estado democrático.
(Idem), verificando-se que a participação dos 10% Entretanto, essa não supressão do “espaço
mais ricos na riqueza total do país era de 75,4%, no
final da década de 90, havendo que constatar também
próprio” do legislador não pode ser tradu-
que esse percentual mostrou-se sempre crescente no zida em termos de inoperância e ineficácia
período entre o fim do século XIX até o fim do século total dos direitos sociais. Como se disse, a
XX (Ibidem, p. 28). função específica do Judiciário, em razão da
28
Os dados são do Instituto de Pesquisa Econô-
mica Aplicada (IPEA) e foram divulgados no Jornal
qual o poder estatal lhe é conferido, é a de
do Commercio de 31 de maio de 2008 (Caderno de assegurar a exequibilidade dos direitos, em
política, p. 9). clima de interdependência e não de inde-

Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009 71


pendência de poderes (Cf. GRAU, 2001, p. que a complexidade não para por aí. Em
330-331). É só quando o sistema de freios e verdade, reconhecer e respeitar a primazia
contrapesos funciona que se pode efetiva- do político nessa seara não aniquila, e nem
mente falar em separação de poderes. mesmo atenua, o aspecto jurídico de que se
O segundo é o de que não se admite revestem as normas de direito social. Por-
omissão abusiva dos poderes públicos (ALE- tanto, a posição que se quer marcar é que
XY, 1997, p. 422; BÖCKENFÖRDE, p. 66), a opção entre cumprir, ou não, os preceitos
razão pela qual caberá sempre, ao menos, constitucionais determinados não está
o controle das omissões legislativas e o dada: essa não é uma opção, nem política,
controle das omissões administrativas, nos nem jurídica.
casos em que a abusividade da omissão Muitas outras opções entre o cumprir e
ficar demonstrada (razão que propugna, o não cumprir, felizmente, persistem e a ne-
uma vez mais, para que tal análise seja cessidade de estabelecer critérios para sua
sempre em concreto e não abstrata). eleição desafia todos os poderes estatais a
O terceiro argumento é o de que, em cumprir novos papéis e a reordenar a ideia
havendo um direito processual constituciona- da sua harmonia.
mentel adequado e tutelas adequadas a tornar
acionáveis cada um dos efeitos que podem
decorrer das normas de direito social, em
Referências
cada caso concreto (sem converter toda
e qualquer pretensão de direito material ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Apun-
em direito subjetivo a ser reclamado no tes sobre la exigibilidad judicial de los derechos socia-
esquema tradicional individual conhecido), les. In: SARLET, Ingo Wolfang. Direitos fundamentais
as chances de um ativismo desmedido sociais. estudos de directo constitucional, internacional
e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
decrescem muito.
O quarto é o de se reconhecerem posi- ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales.
ções jurídicas exigíveis em caso de preserva- Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997.
ção do mínimo existencial, a fim de preservar ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos funda-
também o “espaço próprio” dos cidadãos mentais na constituição portuguesa de 1976. 3 ed. Coim-
e também para salvaguardar o Estado bra: Almedina, 2004.
constitucional, cujo proprium justamente é ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Direito moderno e
a existência de um tribunal constitucional mudança social: ensaios de sociologia jurídica. Belo
que fiscalize a vinculação das normas cons- Horizonte: Del Rey, 1997.
titucionais. Não se esqueça que o controle BARROSO, Luís Roberto. O Direito constitucional e a
jurisdicional de constitucionalidade chega efetividade de suas normas: limites e possibilidades da
a ser qualificado como “coluna de susten- constituição brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar,
tação do Estado de direito” (BONAVIDES, 2002.
2006, p. 301) e que o marco definitivo do BÖCKENFORDE, Ernst-Wolfang. Escritos sobre de-
Estado constitucional é precisamente a rechos fundamentales. Baden-Baden: Nomos Verlags-
existência de um procedimento efetivo de gesellschaft, 1993.
controle de constitucionalidade das leis ou, BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19
de forma mais ampla, do controle do poder ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
em geral (SANCHÍS, 1998, p. 33). BOROWSKI, Martin. La estructura de los derechos
Enfim, se a complexidade de fatores fundamentales. Bogotá: Universidad Externado de
que influenciam a tomada de decisões Colômbia, 2003.
políticas concernentes à destinação orça- BRANCO, Paulo Gonet; MENDES, Gilmar; COELHO,
mentária não permite a substituição do Inocêncio. Hermenêutica constitucional e direitos funda-
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