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1) A SOCIALIZAÇÃO
Porque os modos sociais que vai viver o indivíduo são cultura e não natureza é
que eles não lhe podem ser proporcionados pela herança biológica e sim pela
tradição social. A esse processo, que consiste em adaptar o indivíduo ao seu
grupo, os sociólogos denominaram socialização.
Para que cada um de nós desenvolva aqueles sentimentos e, mais ainda, se
comporte dentro dos cânones estabelecidos pela convivência é que, a cada
passo, do berço ao túmulo, a sociedade nos está socializando.
Tais instancias atuam ensinando-nos a colocar-nos em lugar dos outros, de
modo a antecipar e prever suas expectativas quanto ao nosso comportamento e
o dever que nele vai implícito, graças, especialmente, ao grupo e a tais
expectativas.
Como, não obstante esse tenaz esforço socializador da sociedade, nem todos
os indivíduos se socializam inteira ou suficientemente, [...], a sociedade há de
estar prevenida de que o antissocial pode ocorrer em seu seio, e prepara a
prevenção de sua ocorrência com urna série de normas coatoras que em seu
conjunto são conhecidas como o aparato de controle social. Em seu seio situam-
se as normas do trato social, as normas morais, a educação, as normas
religiosas e o direito.
O direito, centro de nossa atenção nesse trabalho, é, pois, o modo mais formal
do controle social formal. Sua função é a de socializador em última instancia,
pois, sua presença e sua atuação só se faz necessária quando já as anteriores
barreiras que a sociedade ergue contra a conduta antissocial foram
ultrapassadas, quando a conduta social já se apartou da tradição cultural,
aprendida pela educação para, superando as condições de mera descortesia,
simples imoralidade ou mesmo, pecado, alcançar o nível mais grave do ilícito ou,
tanto pior, do crime.
Por estar em acordo com o inteiro mecanismo do controle social que se lhe
antecipa o direito pode reservar sua atuação para a última "chance", aguardando
que antes dele os níveis anteriores e mais compreensivos do controle social
façam a sua parte como instancias primeiras da socialização.
Assim, como instrumento de socialização em última instancia, o direito cumpre
um papel conservador do status quo, também servindo a legitimar o poder
político e a favorecer o seu domínio sobre a opinião pública.
2) O DIREITO E AS NORMAS DE TRATO SOCIAL
Vimos no item anterior a existência de outros sistemas sociais normativos que
com o direito compõem o aparato do controle social formal. Tal é o caso dos
folkways ou normas do trato social ou usos e dos mores, costumes ou normas
morais, que nesses pode ser resumido o sistema normativo extrajurídico, uma
vez que a educação e a religião se expressam normativamente como normas do
trato ou moral.
Afirmando ser a imposição inexorável a nota distintiva do direito, por oposição
as outras normas sociais, o jusfilósofo e sociólogo hispano-mexicano Recaséns
Siches rejeita como critérios distintivos entre o direito e as normas do trato social,
tanto a origem (porque há direito consuetudinário), como uma suposta
diversidade essencial do conteúdo (desde que há assuntos em parte atinentes
ao direito, em parte as regras do trato), como a que se baseia na caracterização
das normas do trato como simples convite (porque é manifesto o seu caráter
obrigatório), como a que se fundamenta na existência de órgãos punitivos no
direito (porque nos ordenamentos primitivos nem sempre há tais órgãos), como
a distinção que se estabelece sob a alegação de que somente o direito possui
sanção como elemento essencial (pois, nos chamados códigos de honra, a
sanção das normas do trato pode estar contida previamente em a norma)".
Por imposição inexorável entende Recaséns a possibilidade que tem a sanção
jurídica de determinar a execução forçosa, assim restabelecendo a ordem
violada na situação anterior a violação. Aos que argumentam com a indenização
e o castigo, que são formas também de sanção jurídica, Recaséns o rebate
arguindo que tais outras formas de sanção jurídica são meros sucedâneos para
o caso em que a forma primária, que é a execução forçosa, se tenha feito
impossível de fato. Somente então aparecem os sucedâneos da indenização e
dos castigos, entre os quais sobressai a pena.
A essa distinção que Recaséns propõe poderíamos ajuntar uma outra, atinente
a bilateralidade da norma jurídica. Em que se A tem um dever de polidez para
com B, a sociedade não reconhece a B o direito de exigir essa polidez desejável
da parte de A. Apenas se limita a punir A com a sanção difusa da opinião pública,
e, nem por isso B logrou desfrutar da cortesia que A lhe devia. Ora, isso prova
que é da própria bilateralidade essencial do direito que advém a sua exigibilidade
por parte do titular do direito subjetivo, e, daí a característica sanção jurídica
como imposição inexorável ou execução forçosa. Esse critério de bilateralidade
- ou, no seu aspecto sociológico: exigibilidade - do direito é a própria base em
que se assenta a distinção proposta por Recaséns.
[...], então teremos ainda a possibilidade de separar o direito e as normas sociais
outras pelo tipo de sanção que utilizam: sanção organizada ou incondicionada,
aquele; sanção difusa ou condicionada, estas.
[...], as normas do trato configuram uma série de exigências muito mais
minuciosas e de extensão muito maior que as estabelecidas pelas normas
jurídicas. As transgressões individuais a tal sistema normativo não ficam
impunes, é certo, mas também não fazem jus a forma de coerção mais drástica
de que a sociedade pode lançar mão em dado momento. Elas são sancionadas
pela opinião pública, pelos mais variados processos, desde a irrisão e o escárnio
a perda da boa fama e ao ostracismo. Mas não costuma haver um órgão
sancionador. Ele é substituído pela opinião pública, motivo pelo qual esse tipo
de sanção é chamado de difuso ou condicionado.
Sem dúvida, eles têm uma considerável importância coexistencial, uma vez que
representam respostas prontas a determinadas urgências da convivência
humana. Mas uma transgressão a essas normas não pode ter o significado social
que há de ter uma transgressão jurídica.