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Choque entre direitos fundamentais

Consenso ou controvérsia?

João Carlos Medeiros de Aragão

Sumário
1. Introdução. 2. Contexto histórico na for-
mação dos direitos fundamentais. 3. Conceitos,
dimensões e limites (restrições) dos direitos
fundamentais. 3.1. Conceitos. 3.2. Dimensões.
3.3. Limites e restrições. 4. Colisão entre direi-
tos fundamentais: consenso ou controvérsia? 5.
Considerações finais.

“Enxergar mais longe só é possível quando se


pode estar nos ombros de gigantes.”
(Isaac Newton)

1. Introdução
Este trabalho visa examinar a questão
dos direitos fundamentais, notadamente no
que concerne tanto à restrição deles quanto
à colisão com outros direitos fundamentais,
embora não pretenda esgotar o tema, em
razão de sua relevância e sua abrangência.
Os direitos fundamentais, como cons-
truções normativas constitucionais basea-
das, sobretudo, no princípio da dignidade
da pessoa humana, são assegurados pelo
Estado, ao qual compete definir medidas
João Carlos Medeiros de Aragão é Assessor a fim de que o indivíduo não sofra restri-
Jurídico da Câmara dos Deputados, Mestre ções ilegítimas quando no exercício de tais
em Direito das Relações Internacionais, Pós- direitos.
-Graduado em Metodologia do Ensino Jurídi-
Entende-se por Direitos Fundamentais
co, em Advocacia nos Tribunais Superiores e
em Linguística do Texto. Professor de Direito
aqueles inerentes à própria condição hu-
Processual Civil no UniCeub e de Instituições mana previstos pelo ordenamento jurídico.
Legislativas Comparadas no Centro de Forma- Nota-se, porém, ser difícil se encontrar uma
ção, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara definição definitiva do que realmente se
dos Deputados. Também exerce a Advocacia. configura como Direitos Fundamentais

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do Homem, pela inexistência de consenso maioria das vezes, variável e somente pode
entre estudiosos do assunto. São utiliza- ser aferido quando se esquadrinha um caso
das diversas expressões tais como direitos concreto ou quando eles se relacionam en-
naturais, direitos humanos, direitos do tre si, ou até com outros valores protegidos
homem, direitos individuais, direitos pú- pela Constituição.
blicos subjetivos, liberdades fundamentais,
liberdades públicas e direitos fundamentais
2. Contexto histórico na formação
da pessoa humana.
dos direitos fundamentais
Além disso, costumava-se falar em
gerações de direitos fundamentais, iden- Os direitos fundamentais, historica-
tificando-as com os ideais de liberdade, mente, auxiliam a compreensão do Estado
igualdade e fraternidade consagrados na de Direito e da própria Democracia, no
Revolução Francesa. Essa terminologia tem pensamento de Ferrajoli (1999, p. 32). Du-
sido considerada imprecisa, haja vista a rante muito tempo, debateram-se as bases
noção transmitida ser a de que cada geração ideológicas dos direitos fundamentais; para
substituiria outra, defasada esta. Assim, Norberto Bobbio (2004, p. 52), porém, “[...]
atualmente, a doutrina tem adotado o ter- os direitos humanos são o produto não
mo “dimensão”, por denotar coexistência, da natureza, mas da civilização humana”,
ou seja, cada nova dimensão dos direitos construção jurídico-social e filosófica criada
fundamentais se coaduna com a existente, para preservar elementos vitais à harmo-
sem obstá-la, em um processo cumulativo, nização entre indivíduos e Estado e entre
aberto e mutável. Inicialmente, definiram- os próprios indivíduos. Essa construção
-se três dimensões de direitos fundamen- teórico-prática dos direitos fundamentais
tais, mas já existem estudiosos defendendo acarreta a dificuldade de conceituá-los com
o estabelecimento de uma quarta dimensão. precisão.
Quanto aos limites e restrições, há dis- Caso se considerem os direitos fun-
tintas teorias, as quais vão desde a noção damentais como o conjunto de direitos e
de limites “imanentes” até a definição dos liberdades institucionalmente reconhecidos
tipos de restrição. Uma das formas em e garantidos pelo ordenamento jurídico
que se evidencia a limitação ao exercício de um Estado em determinado tempo,
dos direitos fundamentais ocorre quando os direitos fundamentais se originam no
existe colisão entre eles, ou seja, quando um direito natural. Há juristas, porém, os
direito fundamental, em mesma situação, quais entendem que só se criaram direitos
choca-se com outro direito fundamental. fundamentais com a positivação deles nas
No que tange à colisão entre direitos primeiras Constituições (LUÑO, 2003 apud
fundamentais (ou princípios, segundo SARLET, p. 40). Conforme Perez Luño
Virgílio Afonso da Silva), constata-se haver (2003 apud SARLET, p. 40),
problemática e controvérsia, a qual tem “A positivação dos direitos funda-
ocupado boa parte da doutrina moderna, mentais é o produto de uma dialé-
sôfrega por desenvolver soluções para tais tica constante entre o progressivo
conflitos. Na prática, a ausência de consen- desenvolvimento das técnicas de seu
so a respeito de possíveis choques entre reconhecimento na esfera do direito
direitos fundamentais remete o intérprete positivo e a paulatina afirmação, no
a operações mais complexas que a simples terreno ideológico, das idéias da li-
subsunção, utilizada para a interpretação berdade e dignidade humana.”
de normas com estrutura de regras. Isso Destaca-se, entretanto, que o Jusnatu-
decorre da heterogeneidade dos direitos ralismo clássico contribuiu para o reco-
fundamentais, pois seu conteúdo é, na nhecimento, na atualidade, dos direitos

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fundamentais pela ordem positiva, há tais correspondem a direitos subjetivos,
muito entendidos como direitos naturais universalmente garantidos a todos os seres
pelos jusfilósofos. Nesse sentido, o direito humanos, Entende-se por direito subjetivo
natural pode ser então considerado como qualquer expectativa positiva ou negativa
uma espécie de pré-história dos direitos ligada a um sujeito por determinada norma
fundamentais. A doutrina jusnaturalista, jurídica, inserido no ordenamento positivo
influenciada por preceitos morais e reli- constitucional. Ainda para Alexy, existe
giosos, notadamente do Direito Canônico, posição de dada liberdade jurídica para
concebia o ser humano dotado de direitos realizar determinadas ações, a de um direi-
imutáveis e inalienáveis, o que constituía to perante o Estado, a fim de que este não
uma ordem jurídica pré-estatal ou até su- impeça algumas, ou seja, a de um direito a
praestatal. Esses direitos limitavam o poder ações negativas e a de um a ações positivas
estatal, além de legitimar seu exercício. do Poder Público.
A partir do século XVII, as teorias con- Acresce-se que, no Estado Democrático
tratualistas, agregadas ao racionalismo de de Direito, o processo de democratização
Kant e Grocio, estimularam o processo de realmente sobressai, afetando significati-
laicização do direito natural, inspirando o vamente o tema dos direitos fundamentais,
movimento iluminista do Estado Liberal, porquanto enaltece garantias de igualdade
preconizador do apelo à razão como fun- nas relações dos indivíduos entre si e entre
damento do Direito. Nessa fase se começa a o Estado soberano. O paradigma garantista
pensar sobre a noção de universalidade dos imposto pelo Estado constitucional expres-
direitos naturais, culminando na Declara- sa dupla sujeição do Direito ao Direito, a
ção de Direitos da Virgínia e na dos Direitos qual afeta a legitimação formal e substan-
do Homem, em 1789, na França. Com a cial das normas jurídicas. A Democracia,
Revolução Francesa e a posterior criação assim, torna-se ao mesmo tempo condição
do Estado Liberal, iniciou-se movimento e garantia dos direitos fundamentais, que
de progressiva recepção de direitos, liber- constituem a base moderna do princípio da
dades e deveres individuais que podem igualdade (ANDRADE, 2001, p. 52).
ser considerados como precursores dos
direitos fundamentais (LUÑO, 2004, p. 33). 3. Conceitos, dimensões e limites
Sabe-se, porém, que os direitos não são (restrições) dos direitos fundamentais
imutáveis, mas aperfeiçoados enquanto as
sociedades e os indivíduos se tornam mais
3.1. Conceitos
críticos e inclinados a identificar direitos e
violações a eles. Desse modo, variam igual- Pérez Luño (2004, p. 43) define os direi-
mente seu conceito e sua terminologia. Ao tos fundamentais como “[...] um conjunto
longo da história dos direitos fundamentais de faculdades e instituições que, em cada
até hoje, utilizaram-se inúmeros termos momento histórico, concretizam as exi-
para defini-los, como direitos naturais, gências da dignidade, da liberdade e da
direitos humanos, direitos do homem, igualdade humanas, as quais devem ser
direitos públicos subjetivos, direitos indi- reconhecidas positivamente pelos orde-
viduais, direitos fundamentais do homem, namentos jurídicos a [sic] nível nacional e
direitos humanos fundamentais, entre internacional”.
outros (BRITO, 2009). Todas essas nomen- A UNESCO (2003 apud MORAES, p. 46-
claturas refletem, de algum modo, o que se 47), por sua vez, em 1978, expôs a seguinte
pretendeu transmitir e conceituar. definição de direitos fundamentais:
Atualmente, segundo explica Robert “[...] considera-os por um lado uma
Alexy (2001, p. 241), direitos fundamen- proteção de maneira institucionali-

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zada dos direitos da pessoa humana de liberdade, isto é, todos aqueles
contra os excessos do poder come- direitos que tendem a limitar o poder
tidos pelos órgãos do Estado e, por do Estado e a reservar para o indiví-
outro, regras para se estabelecer con- duo, ou para os grupos particulares,
dições humanas de vida e desenvol- uma esfera de liberdade em relação
vimento da personalidade humana”. ao Estado; num segundo momento,
Os direitos fundamentais, na condição foram propugnados os direitos polí-
de institutos de Direito Constitucional Po- ticos, os quais – concebendo a liberda-
sitivo, possuem, no entender de Miranda de não apenas negativamente, como
(1983, p. 8), dois sentidos: o formal e o ma- não-impedimento, mas positivamen-
terial, tais quais firmados na Constituição te, como autonomia – tiveram como
em sentido formal ou na Constituição em conseqüência a participação cada vez
sentido material. ampla, generalizada e freqüente dos
Na opinião de Luigi Ferrajoli (1999, p. membros de uma comunidade no
38-39), os direitos fundamentais consti- poder político (ou liberdade no Esta-
tuem normativamente direitos de todos os do); finalmente, foram proclamados
membros de certa coletividade; assim, não os direitos sociais, que expressam o
são alienáveis ou negociáveis, já que corres- amadurecimento de novas exigências
pondem a prerrogativas não contingentes – podemos mesmo dizer, de novos
e inalteráveis de seus titulares e a outros valores –, como os de bem-estar e
limites e vínculos inarredáveis para todos da liberdade através ou por meio do
os poderes, tanto públicos como privados. Estado”.
Além desses, existem os sentidos Bonavides (1995, p. 27) leciona que,
objetivo e subjetivo para os direitos fun- atualmente, já se defende a existência de
damentais. Objetivamente, os direitos direitos fundamentais de quarta dimensão:
fundamentais podem ser pensados como “A globalização política na esfera da
estrutura que produz efeitos jurídicos e re- normatividade jurídica introduz os
força a imposição dos direitos individuais. direitos da quarta geração, que, aliás,
Subjetivamente, os direitos fundamentais correspondem à derradeira fase de
manifestam as faculdades, a proteção e as institucionalização do Estado social.
garantias institucionais de defesa (MIRAN- São direitos de quarta geração o
DA, 1983, p. 9). direito à democracia, o direito à in-
Tais definições sintetizam todos os di- formação e o direito ao pluralismo.
reitos fundamentais conquistados pelo ser Deles depende a concretização da
humano ao longo de sua história, indepen- sociedade aberta do futuro, em sua
dentemente de sua natureza. Discorrer-se-á dimensão de máxima universalidade,
a seguir acerca das dimensões dos direitos para a qual parece o mundo inclinar-
fundamentais. -se no plano de todas as relações de
convivência.”
3.2. Dimensões Virgílio Silva (2009, p. 185-186), por sua
Bobbio (2004, p. 76 apud MENEGAT- vez, discorre sobre as dimensões objetiva e
TI, 2009) explicitou, resumidamente, as subjetiva dos direitos fundamentais nestes
diferentes dimensões dos direitos funda- termos:
mentais: “A partir de uma dimensão estrita-
“[...] como todos sabem, o desen- mente objetiva, o conteúdo essencial
volvimento dos direitos do homem de um direito fundamental deve ser
passou por três fases: num primeiro definido com base no significado
momento, afirmaram-se os direitos desse direito para a vida social como

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um todo. Isso significaria dizer que por exemplo, cidadãos detentores de di-
proteger o conteúdo essencial de um reitos ou interesses comunitários a serem
direito fundamental implica proibir sopesados para que uma pessoa possa
restrições à eficácia desse direito que usufruir certo direito fundamental ou tê-lo
o tornem sem significado para todos restringido (SILVA, 2009, p. 183).
os indivíduos ou para boa parte deles. Virgílio Silva (2009, p. 185-186) cita Ca-
[...] notilho para explicar os limites dos direitos
Se se pretende, com o recurso à ga- fundamentais. Para este autor, “limites
rantia de um conteúdo essencial dos imanentes” representam o produto do
direitos fundamentais, proteger tais sopesamento entre direitos colidentes, não
direitos contra uma restrição exces- como limites revelados pelo intérprete. De
siva e se os direitos fundamentais, acordo com Canotilho, “[...] os chamados
ao menos em sua função de defesa, ‘limites imanentes’ são o resultado de
têm como função proteger sobretudo uma ponderação de princípios jurídico-
condutas e posições jurídicas indivi- -constitucionais conducente ao afastamento
duais, não faria sentido que a prote- definitivo, num caso concreto, de uma
ção se desse apenas no plano objetivo. dimensão que, prima facie, cabia no âmbito
Isso porque é perfeitamente possível prospectivo de um direito, liberdade ou
– e provável – que uma restrição, ou garantia”. Canotilho se refere a limites ou
até mesmo uma eliminação da pro- restrições constitucionais.
teção de um direito fundamental em Embora Silva concorde com a tese de
um caso concreto individual não afete Canotilho (1999 apud SILVA, 2009, p. 166),
sua dimensão objetiva, mas poderia critica o uso do termo “imanente”, uma
significar uma violação ao conteúdo vez que o termo já é compreendido como
essencial daquele direito naquele oposto à ideia de restrição resultante de um
caso concreto.” sopesamento ou uma ponderação, além de
não ser adequado qualificar como imanente
3.3. Limites e restrições um limite o qual depende e surge de um
Antes de discorrer sobre limites e res- caso concreto. Tanto Silva (2009, p. 166)
trições a direitos fundamentais, ressalta-se quanto Canotilho (1999) advertem que a
qual o conceito de restrição. A palavra res- restrição ocorre posteriormente, ou seja,
trição é originária do latim (restrictio onis) e é constitutiva e não declaratória. Desse
denota moderação em realizar algo, atuar modo, quando houve intervenção externa
moderadamente. Conforme o Dicionário ao direito, sucedeu restrição, não declara-
Houaiss (2001, p. 2443), a restrição signi- ção de limite imanente (CANOTILHO, 1999
fica o “[...] ato ou efeito de restringir(se); apud SILVA, 2009, p. 167).
condição restritiva; imposição de limite; Sarlet (2003, p. 9-10) leciona a respeito
condicionante”. Juridicamente, constitui dos limites aos direitos fundamentais. De
“[...] limitação ou condição que a lei impõe acordo com ele, há 3 tipos de limitações aos
ao livre exercício de um direito ou de uma direitos fundamentais: o primeiro sucede
atividade; reserva, ressalva”. quando a própria constituição limita o exer-
Nesse sentido, a restrição a um direito cício do direito fundamental; no segundo,
fundamental constitui limitação da esfera a constituição autoriza a limitação, mas ela
de proteção ou pressuposto de fato desse deve ser implementada pelo legislador; o
direito. A definição de limites para o exercí- último tipo prevê limites implicitamente
cio de dado direito fundamental é motivada autorizados (ou limites implícitos) que não
pela existência de valores e circunstâncias estão previstos explicitamente na constitui-
em jogo no ordenamento jurídico. Existem, ção, mas advêm do sistema constitucional,

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mormente quando há colisões entre direitos fundamentais. Alexy (2001, p. 276-286), por
fundamentais. sua vez, reporta-se a restrições diretamente
O autor continua, explicando que atual- constitucionais (explícitas e implícitas) e
mente existe consenso que a própria limi- indiretamente constitucionais: as primei-
tação aos direitos fundamentais também se ras estão diretamente definidas no corpo
subordina a limites. Ele assim se expressa: do texto constitucional, ao passo que as
“II – Limites dos limites. segundas não estão previstas no texto
Hoje é unânime que os direitos fun- constitucional – este concede ao legislador
damentais estão sujeitos a limites a faculdade de estabelecê-las mediante leis
(dessas três espécies), mas a limitação infraconstitucionais.
dos direitos fundamentais também Silva (2009, p. 129) apresenta também
está sujeita a limites. Não se pode as Teorias Interna e Externa no que diz
limitar um direito fundamental de respeito às restrições (ou limites) a direi-
qualquer jeito. Fala-se em limites dos tos fundamentais. Explica, inicialmente,
limites. Quando se limita um direito, que ambas as teorias não são produto da
deve-se observar certos critérios que dogmática dos direitos fundamentais, em-
servem para limitar a limitação. bora integrem o âmbito do Direito Civil há
É claro que os limites dos limites vão muito e provoquem discussões na França,
depender de cada sistema constitu- principalmente. No Brasil, pouco se fala
cional. Cada sistema constitucional sobre elas; Gilmar Mendes tem sido um
acaba criando os seus critérios, não dos juristas a discorrer sobre tal temática.
havendo uma uniformidade disso Conforme prega a Teoria Interna, os
no direito comparado, embora haja direitos fundamentais e a extensão deles,
alguma uniformidade. Varia confor- se delimitados por ela, não podem sofrer
me o tipo de limite que estiver sendo sopesamento – quando determinado indiví-
aplicado. duo exercita algo garantido por um direito
Quando estivermos diante de limi- fundamental, a garantia é definitiva, não
tes do tipo A, em princípio não se apenas prima facie. Nessa Teoria, não há dis-
questiona a constitucionalidade do tinção entre “direito prima facie” e “direito
limite, porque ele está previsto na definitivo”, pois esta decorre diretamente
própria constituição. Foi o próprio da unificação dos limites imanentes com a
constituinte que estabeleceu o limite. determinação do direito relativo a eles. Para
O máximo que a legislação infracons- ele, só existe um objeto: o direito e os seus
titucional pode fazer é regulamentar, limites (SILVA, 2009, p. 130).
implementar o limite diretamente Ou seja, na esfera da Teoria Interna, não
estabelecido com aquela margem de se pode dizer que dada ação seja prima facie
liberdade que a própria constituição e garantida por uma norma de direito fun-
deixa em aberto. [...] A possibilidade damental; a ação pode, entretanto, deixar
de controlar as restrições é muito de ser protegida em razão das circunstân-
maior, porque a constituição já ex- cias fáticas e jurídicas do caso concreto.
pressa os limites. A lei ordinária esta- Desse modo, a Teoria detém o ônus de
rá restringindo um direito” (SARLET, demonstrar que se pode fundamentar a
2003, p. 11). limitação a direitos “a partir de dentro”,
Alguns estudiosos da matéria apre- sem necessidade de se recorrer a restrições
sentam outras teses. Andrade (2001, p. externas; no caso, é comum se valer dos
214), a respeito das espécies de restrição, limites imanentes (Idem).
discorre sobre limites imanentes, colisão A Teoria Externa, por sua vez, divide o
de direitos e leis restritivas de direitos objeto no direito em si, em primeiro lugar,

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e nos limites imanentes a ele (restrições), damentais quando o exercício de um
em segundo. A distinção, embora pareça direito fundamental por parte do seu
insignificante, acarreta efeitos práticos e titular colide com o exercício do di-
teóricos. Com base em tal diferença, é pos- reito fundamental por parte de outro
sível se atingir o sopesamento, como meio titular. Aqui não estamos diante de
para solucionar colisões entre direitos fun- um cruzamento ou acumulação de
damentais, e a regra da proporcionalidade. direitos (como na concorrência de
Para tal Teoria, as restrições, seja qual for direitos), mas perante um choque, um
sua natureza, não influenciam o conteúdo autêntico conflito de direitos.”
do direito; embora possam restringir o Canotilho acrescenta haver distinção
exercício deste, no caso concreto. Caso haja entre concorrência e colisão entre direitos
colisão entre princípios, um deles tem de fundamentais. Para o Constitucionalista, a
ceder em favor do outro sem serem afetadas primeira categoria existe quando certo com-
sua extensão prima facie nem sua validade portamento do mesmo titular preenche os
(Ibidem, p. 138-139). pressupostos de fato de vários direitos fun-
Além disso, constata-se que a Teoria damentais. No entender dele, “considera-se
Externa e a Teoria dos Princípios se rela- existir uma colisão autêntica de direitos
cionam intimamente – esta defende que, fundamentais quando o exercício de um
geralmente, uma norma a qual consagra um direito fundamental por parte do seu titular
direito prima facie garante direitos funda- colide com o exercício do direito funda-
mentais. Aquela, por seu turno, manifesta mental por parte de outro titular. Aqui não
que há diferença entre direito prima facie e há cruzamento ou acumulação de direitos
direito definitivo: o definitivo não é deter- (como na concorrência de direitos), mas
minado a priori e internamente. Em casos perante um ‘choque’, um autêntico conflito
concretos, apenas o sopesamento ou a regra de direitos” (CANOTILHO, 1992, p. 293).
da proporcionalidade podem estabelecer Alexy (2001, p. 295), por seu turno, in-
o que realmente vale, com a definição do fluenciado por Dworkin, elaborou uma tese
conteúdo do direito em si “a partir de fora” no que concerne ao conflito existente entre
(SILVA, 2009, p. 139-140). regras de direito: o choque entre princípios,
assumidos como direitos fundamentais,
deve ser resolvido por critérios de valora-
4. Colisão entre direitos fundamentais:
ção, ao passo que o conflito de regras deve
consenso ou controvérsia?
ser solucionado mediante a declaração de
Uma vez que o tema dos direitos funda- invalidade de uma das regras conflitantes
mentais assume cada vez mais relevância, ou a aplicação da cláusula de exceção.
muito se debate e se teoriza sobre eles. Prossegue afirmando que, na ocorrência de
Muitos defendem que, a partir do momento colisão entre princípios, o reconhecimento
em que são definidos, pode ocorrer o que da preponderância de um sobre outro não
foi qualificado como colisão entre direitos resulta na declaração de invalidade do que
fundamentais – casos em que princípios possui menor “peso”. Não se pode pensar
se situam em mesma direção, embora com em aplicar a cláusula de exceção, pertinente
sentidos opostos. às regras.
Recorre-se novamente às lições de Ca- Dessa maneira, fica determinado o
notilho (1999, p. 1191), o qual caracteriza critério de ponderação ou precedência:
a colisão de direitos fundamentais nestes pela ponderação, há interesses resguar-
termos: dados por princípios colidentes. Esse
“De um modo geral, considera-se critério busca avaliar qual dos interesses,
existir uma colisão de direitos fun- “abstratamente do mesmo nível”, possui

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“maior peso diante das circunstâncias do do princípio da proporcionalidade e
caso concreto”. Quando há dois princípios a argumentação jus fundamental.”
equivalentes abstratamente, prevalecerá, Virgílio Afonso da Silva se vale das te-
no caso concreto, o que tiver maior peso orias de Inocêncio Mártires Coelho, o qual
diante das circunstâncias. A tensão entre se apoiou nas ideias de Bergmann Ávila,
ambos os princípios não pode ser resolvida para sugerir que a colisão entre princípios,
com a atribuição de prioridade absoluta de ou seja, entre direitos fundamentais, não
um sobre o outro (ALEXY, 2001, p. 295). possui embasamento e, portanto, só pode
Farias (1996, p. 90 apud MENEGATTI, ser aparente. Consoante Silva,
2009) expõe outra perspectiva acerca do “O fundamento da afirmação é
assunto. Explica que existem duas situa- simples: os princípios não possuem
ções em que se pode destacar a colisão de uma hipótese e uma conseqüência
direitos fundamentais: abstratamente determinada; se não
“(1) o exercício de um direito funda- há conseqüência determinada, não há
mental colide com o exercício de ou- como haver colisão. Mas esse pressu-
tro direito fundamental (colisão entre posto é falso, pois os princípios têm,
os próprios direitos fundamentais); sim, conseqüências abstratamente
(2) o exercício de um direito fun- determinadas. A liberdade de expres-
damental colide com a necessidade são, por exemplo, é um princípio que
de preservação de um bem coletivo deve ser realizado na maior medida
ou do Estado protegido constitu- possível, segundo as condições fáti-
cionalmente (colisão entre direitos cas e jurídicas presentes. Ou seja, a
fundamentais e outros valores cons- liberdade de poder se exprimir deve
titucionais)”. ser otimizada. Diante disso, é fácil
Steinmetz (2001, p. 69), a princípio, afir- perceber que essa otimização pode
ma que os direitos fundamentais vivem em colidir com a otimização do direito à
permanente tensão, limitando-se reciproca- privacidade, que também é um prin-
mente – ora um prevalecerá em detrimento cípio. Há, portanto, poucos indícios
do outro, ora o contrário. Sob outra ótica, de que a colisão aqui seja apenas
subdivide as circunstâncias dos direitos aparente” (COELHO, 2000, p. 47-70
fundamentais em casos fáceis ou duvidosos apud SILVA, 2003, p. 607-630).
ou difíceis. Segundo esse autor, os choques Na visão de Bergmann Ávila (1999, p.
entre direitos fundamentais exemplificam 151-179 apud SILVA 2003, p. 607-630), o
os casos difíceis e duvidosos. Assim se conflito é aparente pois a questão na aplica-
classificam, porquanto o que colide ção dos princípios se encontra mais em re-
“[...] são direitos fundamentais ex- conhecer qual dos princípios será aplicável
pressos por normas constitucionais, e qual a relação que mantêm entre si. Nesse
com idêntica hierarquia e força vin- contexto, todas as colisões são aparentes,
culativa, o que torna imperativa uma exceto as irresolúveis, problema que deve
decisão, legislativa ou judicial, que ser discutido com base na distinção entre
satisfaça os postulados da unidade direito prima facie e direito definitivo.
da Constituição, da máxima efeti- Ávila (Idem) prossegue, em aparente
vidade dos direitos fundamentais e contradição, ressaltando haver quatro ca-
da concordância prática. A solução tegorias de possibilidade de colisões entre
da colisão é necessária além da uti- princípios:
lização dos princípios ou postulados “(1) a realização do fim instituído por
específicos da interpretação constitu- um princípio leva à realização do fim
cional, exige, sobretudo, a aplicação determinado pelo outro: nesse caso,

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não haveria que se falar em máxima simples impossibilidade de aplicação de um
medida, mas somente em realização dos princípios para a solução de problemas
na medida necessária. concretos, o que não significa que, em outros
(2) a realização do fim instituído por casos, o mesmo princípio afastado não possa
um exclui a realização do fim de- ser aplicado e, mais importante, não possa
terminado pelo outro: nesse caso, o inclusive prevalecer sobre aquele princípio
problema só poderia ser solucionado que, no primeiro caso, prevaleceu sobre ele.
com a rejeição de um dos princípios.
Esse tipo de colisão seria, segundo
5. Considerações finais
ele, semelhante aos casos de conflito
entre regras. Isso o leva a afirmar que Os direitos fundamentais são essenciais
‘a diferença não está no fato de que as para se realizarem plenamente as atividades
regras devem ser aplicadas no todo e os e as potencialidades do ser humano. Conso-
princípios só na máxima medida. Am- ante Dalmo de Abreu Dallari (1998), “esses
bas as espécies de normas devem ser direitos são considerados fundamentais por-
aplicadas de modo que o seu conteúdo que sem eles a pessoa humana não consegue
de dever ser seja realizado totalmente’. existir ou não é capaz de se desenvolver e
(3) a realização do fim instituído por participar plenamente da vida”. Assim, é
um só leva à realização de parte do necessário que todos os indivíduos contem
fim determinado pelo outro. com as condições para seu desenvolvimento.
(4) a realização do fim instituído por Nesse contexto, a colisão entre direitos
um não interfere na realização do fim fundamentais ocorre quando o exercício
buscado pelo outro.” de um direito de certo titular impede ou
Virgílio da Silva (2003, p. 607-630) prejudica o exercício de outro direito de
discorda desse posicionamento de Ávila. outro titular. Os conflitos sucedem, pois
Para aquele, apenas na segunda hipótese as normas de direito fundamental não se
está configurada colisão de princípios. Nas esgotam na teoria; assim, quando se con-
outras três, não existe colisão e, como não o cretizam na vida social, colidem.
há, nada impede que eles sejam realizados O tema é de complexa resolução – pri-
na máxima medida. Na primeira, não cabe meiramente, porque não existe acordo
afirmar que o fato de que a realização de um quanto a se existem ou não conflitos entre
princípio leve à realização de outro implica- direitos fundamentais; em seguida, porque
ria, como afirma Ávila, que o primeiro deva estes estão expressos por normas consti-
ser realizado apenas na medida necessária à tucionais e possuem mesma hierarquia e
realização do fim instituído pelo segundo. força vinculativa.
Tal afirmação pressupõe não apenas que o No caso, torna-se fundamental deli-
primeiro princípio exista exclusivamente near-se certa uniformidade das decisões
em função do segundo, mas também que envolvendo conflitos entre direitos funda-
o primeiro seja só instrumento para a rea- mentais, em prol da unidade e da coerên-
lização do segundo. cia do sistema; da segurança jurídica e da
Ainda consoante Silva (Idem), quando dignidade da pessoa humana.
Ávila classifica como colisão total entre
princípios, a hipotética não realização
de um princípio em nada se aproxima
Referências
da solução dada ao conflito entre regras,
pois o princípio afastado não é declarado ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos fundamentales.
inválido; por isso, não deixa de pertencer Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro
ao ordenamento jurídico. O que ocorre é de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001.

Brasília a. 48 n. 189 jan./mar. 2011 267


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