Você está na página 1de 59

FICHA Nº1

Comente as seguintes afirmações:


1. “Os direitos fundamentais nas Constituições Portuguesas fizeram o caminho da trilogia
liberdade-segurança-propriedade de 1822 à trilogia da dignidade-liberdade-igualdade de
1976.” (Jorge Miranda)
RESPOSTA: A trilogia liberdade-segurança-propriedade tem origem na Revolução
Francesa. Os DESC são os direitos que associamos aos valores da dignidade e da igualdade,
aliás o art. 1º e o art. 13º CRP remetem para uma ideia de “igualdade e dignidade social”.
Por exemplo, a CRP no que toca ao direito à educação, diz que é obrigação do Estado
promover igual acesso a esta prestação social, de maneira a ultrapassar obstáculos
económico-sociais.
No âmbito da pandemia, tem-se falado do conceito da solidariedade e da fraternidade, ou
seja, de uma ideia de deveres recíprocos.
As constituições portuguesas sempre previram direitos fundamentais. Contudo, na
Constituição portuguesa de 1933, estes estavam previstos, mas o legislador remetia à
administração o seu modo de garantia e exercício, ou seja, a lei dispunha dos direitos
fundamentais.
Hoje em dia, o valor dos direitos fundamentais é consagrado constitucionalmente, logo
uma lei que os desrespeite é inconstitucional.

2. “A ciência dos direitos fundamentais (…) converteu-se numa medida apreciável, numa
ciência da jurisprudência constitucional.” (Alexy)fat
RESPOSTA: Para conhecermos os direitos fundamentais temos de estudar a jurisprudência
constitucional, ou seja, a forma como os Tribunais aplicam as normas aos casos concretos.
Isto acontece porque hoje em dia o tipo de normas presentes nas Constituições não são
especificas e determinadas; as normas constitucionais são normas abertas (princípios) e, em
última análise, é o Tribunal Constitucional que no fundo acaba por proceder à sua
interpretação. Por exemplo, a vida humana é um princípio – não quer dizer que não sejam,
simultaneamente, regras.
Em Portugal, não cabe apenas ao Tribunal fazer esta interpretação, também cabe esta
função ao poder legislativo (Assembleia da República e Governo). Podem surgir, no
entanto, alguns conflitos e colisões entre estes direitos. Falamos de colisões quando
estamos perante um confronto entre um direito individual e um interesse público – por
exemplo, a vacinação obrigatória). A solução para estes confrontos é estabelecida pelo
artigo 18º n.2 da CRP, artigo relativo às restrições de direitos.
Como temos normas constitucionais que têm a tal estrutura de princípios, podem surgir
determinadas dúvidas quanto à sua interpretação. Normalmente, são apresentadas duas
posições. Há quem considere que cabe ao legislador fixar esta interpretação. Por sua vez,
há quem considere que são os tribunais que têm a função de fixar o sentido da
Constituição. Os direitos fundamentais não são estáticos: por isso é que falamos no
conceito de gerações de direitos. A primeira geração diz respeito aos direitos, liberdades e
garantias; a segunda refere-se aos direitos económicos, socais e culturais; a terceira está
relacionada com, por exemplo, o direito do ambiente e da proteção de dados; por última, a
quarta geração diz respeito, por exemplo, à identidade de género. Uma geração não elimina
a sua anterior – temos novos problemas, novos desafios e, por isso, novos direitos.

3. “No que respeita à previsão dos direitos fundamentais, não é o passado, mas o futuro o
problema da constituição.” (Kirchof)
RESPOSTA: A evolução das gerações dos direitos reflete a ideia de que embora os direitos
fundamentais possam ter sido pensados para um contexto específico, eles têm capacidade
evolutiva, podendo ser aplicados a novas realidades e a novos desafios.
Por exemplo, a questão da identidade genética do ser humano é uma norma que não estava
inicialmente prevista, sendo um direito que é reclamado por novas preocupações sociais.
O art. 35º, por exemplo, para a altura em que foi consagrado era inovador no que toca à
proteção de dados. Contudo, hoje em dia, pode-se discutir se estará ultrapassado ou não.
Outra questão que surge é a de sabermos se, por exemplo, o art. 13º n.2 deveria incluir a
idade. Esta questão é complexa, uma vez que o elenco do artigo é exemplificativo.
No âmbito da revisão constitucional não nos podemos esquecer que esta tem limites
materiais previstos no art. 288º (alínea d) relativamente aos Direitos, Liberdades e
Garantias). Neste caso, o que o legislador pretende com este artigo é certificar-se que não
há uma degradação do nível de proteção dos DLG.

4. “O problema actual dos direitos sociais (…) ou direitos a prestações em sentido restrito
está em “levarmos a sério” o reconhecimento constitucional de direitos como o direito ao
trabalho, o direito à saúde, o direito à educação, o direito à cultura, o direito ao ambiente.
Independentemente das dificuldades (reais) que suscita um tipo de direitos subjectivos
onde falta a capacidade jurídica (poder jurídico, competência) para obter a sua efectivação
prática (accionabilidade), não podemos considerar como simples “aleluia jurídico” (C.
Schmitt) o facto de as constituições (…) considerarem certas posições jurídicas de tal modo
fundamentais que a sua garantia ou não garantia não pode ser deixada aos critérios (ou até
arbítrio) de simples maiorias parlamentares.” (Gomes Canotilho)
RESPOSTA: O Estado, perante os direitos económicos, sociais e culturais, tem de ter uma
posição ativa. Para concretizar e efetivar estes direitos, são precisos meios, tem de ser tida
em conta a reserva do possível, ou seja, a concretização destes direitos vai depender do que
for económica, financeira e tecnologicamente possível. Uma estratégia utilizada para se dar
força jurídica a estes direitos é a utilização da “proibição do retrocesso” – impedir que uma
vez concretizados, os direitos não possam ser simplesmente destruídos. Todavia, o
Tribunal Constitucional tem preferido utilizar o fundamento da proteção de expetativas e
do princípio da certeza e segurança jurídica para justificar a proteção atribuída aos DESC.
As prestações são ações do Estado que são fácticas, concretas. Para haver direitos
positivos, têm de existir meios e instituições que os efetivem. Os direitos económicos,
sociais e culturais são mais frágeis, precisam de meios para a sua efetivação, daí que alguns
autores lhes chamem de pretensões. Posto isto, não são apenas aleluias jurídicos – a
Constituição da República Portuguesa exige que todos os direitos tenham, pelo menos, um
mínimo de concretização. Este “mínimo” é um meio de defesa contra as maiorias
parlamentares, uma vez que caso tal não existisse, as forças no Parlamento teriam total
discricionariedade, arbitrariedade nesta matéria.
A inconstitucionalidade por omissão dá-se quando o legislador não concretizou um direito,
mas já tinha meios e recursos para o fazer.
Quando alguém preenche os requisitos para obter uma prestação social (exemplo:
habitação) mas essa é-lhe negada administrativamente, o cidadão pode suscitar a questão da
discriminação. Em suma, uma vez que os DESC são normas programáticas e não
exequíveis por si mesma, é necessário que haja previsão legal (mediação do legislador) para
que eles se concretizem, ou seja, os cidadãos podem exercê-los plena e livremente quando,
por exemplo, o legislador cria um Serviço Nacional de saúde, de educação, segurança
social, etc.

5. A centralidade do papel dos Direitos Fundamentais nas democracias contemporâneas


não só acarretou a crise da tradicional contraposição entre “direitos de defesa” e “direitos a
prestações”, como introduziu uma exigência procedimental que abrange os direitos das
várias gerações a ponto de se constituir num “direito fundamental ao procedimento”.
RESPOSTA: Das aulas teóricas, já sabemos que existem várias teorias quanto aos direitos
fundamentais. Há uma conceção clássica, que vê os direitos fundamentais como direitos de
defesa (por exemplo, direito à vida). Outros, vêm os direitos como direitos a prestações
(por exemplo, direito à saúde). Contudo, as prestações podem tanto ser criar uma estrutura
administrativa ou criar uma lei.
O direito à saúde (art. 64º CRP) que consiste nas condições preventivas e na
cura/tratamento de doenças, está intimamente relacionado com o direito a não sermos
perturbados na nossa saúde, que por sua vez se reconduz ao direito à integridade física.
Para além disso, há teorias que defendam que os direitos fundamentais são direitos
procedimentais (perspetiva dinâmica). Por exemplo, a tutela jurisdicional efetiva e
administrativa que prevê o direito de participação dos particulares no contencioso (art. 268º
CRP)), realça a ideia de que se as pessoas forem envolvidas no processo de tomada de
decisão, elas serão mais justas.

6. “No que tange aos direitos fundamentais, a liberdade não foi ultrapassada pela
socialidade, o liberalismo é que foi posto em causa pela socialização.” (Ingo Sarlet)
RESPOSTA: Hoje em dia, a liberdade é complementada pela socialidade. Para termos
dignidade, não nos basta a nossa liberdade de consciência ser respeitada, temos de ter
também meios e recursos para efeitos de efetivação (concretização) dos direitos
fundamentais.
Nós não deixamos de ter liberdades por termos direitos sociais. Contudo, os direitos
económicos, sociais e culturais surgiram porque o Estado Liberal era insuficiente para dar
conta de certas questões sociais. As gerações de direitos sucedem-se, mas umas não se
sobrepõem às outras (lógica de acumulação e não de substituição). A teoria clássico-liberal
diz que a pessoa só por ser pessoa tem direitos e que estes limitam a atuação do Estado.
Contudo, atualmente sabemos que o Estado tem de intervir para garantir condições
mínimas de igualdade efetiva (teoria social diz que os direitos fundamentais deixam de ser
mecanismos de defesa contra o Estado e passam a ser tarefas do Estado).
Houve essa necessidade de um Estado, interventivo em vários domínios, para a resolução
de situações de insuficiência e carência, tendo de ter um papel de prestador, e assegurando
que certos bens cheguem a todos.
7. “O esplendor da abstracção jurídica sempre viveu em boa harmonia com a miséria do
real, e as letras maiúsculas dos textos sagrados com as inumeráveis e minúsculas angústias
que entretecem e dilaceram a vida, dia a dia. (…) Como ideia moral, a liberdade é um
absoluto. Não há nada de mais elevado. Mas como realidade política, uma liberdade
absoluta é uma liberdade imaginária, pois não leva em conta as condições materiais que
determinam a existência social de um indivíduo. (...) Só há liberdade em comum, em grupo,
em comunidade. E é precisamente o sentido, a substância da comunidade, das múltiplas
comunidades no interior das quais os homens nascem, que gostaríamos de encontrar. Não
para as limitar, mas para fixar as nossas liberdades pessoais.” (Robert Badinter)
RESPOSTA: Nós podemos ter direitos enquanto proclamações abstratas, mas o modo
como as pessoas os exercem dependem de circunstâncias materiais e das condições de vida
de cada um (exemplo: ensino à distância). Por outras palavras, as condições de vida
efetivas são aquilo que nos permite ou que nos limita a possibilidade de nos
desenvolvermos e realizarmos enquanto pessoas. Alguns exemplos de comunidades ou
grupos a que o autor se refere são: associação política, família, grupo desportivo, etc.
Segundo a teoria institucionalista, os Direitos Fundamentais perduram, permanecem no
tecido social e devem ser encarados como instituições.
Os direitos fundamentais não se aplicam apenas a pessoa singulares, aliás o art. 12º n.2 diz
que as pessoas coletivas, por exemplo, não têm direito a contrair casamento, mas têm
direito ao bom nome.
As pessoas não vivem no vazio e há uma constante tensão entre o indivíduo e a
comunidade, o que nos faz pensar se a comunidade pode ou não limitar as nossas
liberdades pessoais.
Os direitos fundamentais têm uma dupla dimensão, objetiva (valor fundamental da
comunidade) e individual-subjetiva (direitos das pessoas). Estas duas dimensões podem,
por vezes entrar em conflito. Por exemplo, o direito de propriedade era um direito
absoluto, mas agora é um direito social, podendo ser afetado em benefício da comunidade.
Em suma, aquilo que nós consideramos o exercício de um direito, a comunidade pode
considerar não ser um exercício legítimo do direito.
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------
a) A lei no x/2010 proíbe os funcionários públicos de participar em qualquer
manifestação ou reunião de carácter político-partidário sem autorização do superior
hierárquico, ficando os infratores sujeitos a pena disciplinar de repreensão escrita
ou multa consoante os casos.
RESPOSTA: Neste caso, estão em causa os direitos de liberdade ideológica e os direitos de
liberdade de reunião e manifestação (artigo 45º da CRP), bem como o direito à associação
(artigo 46º) e o direito de participação política (artigo 48º CRP). O artigo 45º estabelece
restrições ao direito, no entanto, não estabelece nenhuma autorização necessária para o
exercício do direito como é referido na lei n.º x/2010.
O art. 50º n.2 e o art. 269º n.2 refletem o princípio da não discriminação (princípio da
igualdade – art. 13º), sendo para este caso relevante a questão dos “direitos políticos” e da
“opção partidária”.
Para além disso, uma vez que se trata de uma lei, temos que ter em conta a restrição ao
exercício de direitos prevista no artigo 270º CRP e temos de verificar se é compatível com
os requisitos materiais do art. 18º n.3 (“caráter geral e abstrato e não podem ter efeito
retroativo”).

FICHA Nº 2
Analise as seguintes situações:
a) A lei nº x/2010 proíbe os funcionários públicos de participar em qualquer
manifestação ou reunião de carácter político-partidário sem autorização do superior
hierárquico, ficando os infractores sujeitos a pena disciplinar de repreensão escrita
ou multa consoante os casos;

b) Tomando em consideração um grave surto de terrorismo em Portugal, a


Assembleia da República aprovou um diploma no sentido de permitir – havendo
dificuldades de obtenção de provas – o recurso à tortura física para extorquir aos
suspeitos da prática daqueles crimes as necessárias confissões;
RESPOSTA: O recurso à tortura física aqui enunciado, viola o direito previsto no art. 25º
n.2. Para além disso, o art. 32º n.8 também diz que “são nulas todas as provas obtidas
mediante tortura”. Neste caso, o recurso à tortura choca com a segurança, que é um bem
jurídico da sociedade que o Estado deve proteger e garantir. Também podemos dizer que a
tortura é contrária à dignidade da pessoa humana e que se trata de uma restrição do direito
à integridade física. A tortura enquanto meio para obtenção de provas é ilegítima, uma vez
que é proibida pela Constituição.

c) A Assembleia da República aprovou uma lei que estabelece que todos aqueles que
tiverem sido condenados por tráfego de droga não podem sair do território
nacional, nem deslocar-se entre o continente, os Açores e a Madeira sem parecer
favorável das autoridades sanitárias;
RESPOSTA: Neste caso, estamos perante uma restrição do direito previsto no art. 44º.
Este artigo apresente duas dimensões: direito de todos os cidadãos se deslocarem dentro
do território nacional e direito de poderem sair do território nacional. O parecer que aqui é
exigido cria um entrave à livre circulação das pessoas, embora não fiquem totalmente
impedidas porque há a possibilidade de o parecer ser favorável. Contudo, podemos dizer
que há uma carga coativa sobre o direito. Segundo o art. 18º n.3, estes tipos de restrições
têm de revestir caráter geral e abstrato, não podem ter efeito retroativo, e têm de ser
necessárias, adequadas e proporcionais. Neste caso, os principais objetivos que poderiam
justificar a aprovação desta lei seriam: combate ao tráfico de droga e a proteção da saúde
pública (conflito de direitos). Todavia, com isto estaríamos a presumir que aqueles que
tiverem sido condenados por tráfego de droga serão sempre perigosos, porque ou seja, esta
restrição é excessiva por se poder perpetuar para além da condenação (Art. 30º n.1 e n.4).
Aqui também podemos discutir se a dignidade da pessoa humana é afetada e se o núcleo
essencial do direito é posto em causa.
Por fim, também poderia estar em causa a aplicação da lei no tempo, uma vez que no
enunciado não diz se a restrição se aplicaria apenas aos que forem condenados depois da
entrada em vigor da lei, ou se também se aplicaria aos que já haviam sido condenados antes
da entrada em vigor da lei.

d) Natália está indignada com o conteúdo do testamento da sua bisavó, porque o


testamento da dita senhora, feito em 1940 e aberto em 1953, continha uma cláusula
do seguinte teor: “A minha quota disponível deve ser dividida entre os meus netos,
desde que nascidos de uniões abençoadas pelo matrimónio”;
RESPOSTA: Com a Constituição de 1976, os filhos fora do casamento deixaram de ser
alvo de discriminação, graças ao art. 36º n.4. Este artigo trata-se de uma garantia de não
discriminação que resulta diretamente da Constituição. Neste caso, a bisavó está a dispor
dos seus bens, ou seja, está a exercer a sua autonomia privada, que está intimamente
relacionada com a ideia de livre desenvolvimento da personalidade. Tal como sabemos, os
Direitos Fundamentais também vinculam entidades privadas (eficácia horizontal), ou seja,
também se aplicam a relações entre particulares (art. 18º n.1).
Neste caso, o fim e o fundamento não são adequados porque trata-se de uma diferenciação
ilegítima, ou seja, as diferenças de tratamento apresentadas põem em causa o princípio da
dignidade da pessoa humana.
Neste sentido, também devemos olhar para o artigo 2186º do Código Civil, que consiste
numa cláusula geral que permite a articulação com o princípio da igualdade enquanto
norma imperativa.

e) A Jorge, de 40 anos, foi recentemente diagnosticada a doença de Parkinson.


Sabendo de um tratamento novo praticado num hospital, ainda que sem garantia de
resultados, Jorge pretende experimentá-lo;
RESPOSTA: Aqui estamos perante uma autolimitação do direito à integridade física. O
“tratamento novo” aqui referido tem um risco a si associado, pelo facto de ser um
tratamento meramente experimental; ou seja, pode não resultar ou até pode agravar a
situação de Jorge. Tal como sabemos, a integridade física é um direito disponível, mas que
tem limites (restrição ou autolimitação não pode ser contrária à ordem pública nem
ofensiva dos bons costumes). Por outras palavras, nós podemos consentir em afetações da
nossa integridade física, desde que essas não sejam contrárias à ordem pública e aos bons
costumes (art. 149º CP).
Para além disso, não nos podemos esquecer da questão do consentimento. O
consentimento deve ser livre e esclarecido, o que implica que o agente conheça todos os
factos da situação (art. 38º CP).
Por fim, deve ser feita uma ponderação de riscos e de interesses entre o direito à
integridade física e o direito à saúde (art. 64º). Através de uma apreciação casuística, deve-se
considerar qual a melhor opção, ou seja, qual é que fere “menos” os bens jurídicos em
causa.
Nota: ver o artigo 5º da Lei dos Ensaios Clínicos.

f) A Assembleia da República aprovou uma lei com uma norma única com a seguinte
redacção: Durante o período de campanha para o referendo sobre a despenalização
da interrupção voluntária da gravidez, os sacerdotes deverão abster-se de fazer,
durante a missa, qualquer referência à posição da Igreja Católica sobre práticas
abortivas.
RESPOSTA: Neste caso, estamos perante a liberdade de expressão (art. 37º) exercida num
momento de culto (liberdade de consciência - art. 41º). Para além disso, uma vez que se
trata de uma campanha para um referendo, o direito de participação na vida pública
também pode ser invocado.

Em adição, também será importante dizer que, uma vez que há uma reserva relativa no que
diz respeito à legislação que verse sobre direitos fundamentais, devemos lembrar-nos que a
Assembleia da República pode legislar sobre esta matéria, assim como pode o Governo,
mediante autorização.
Por fim, também podemos referir a violação do princípio da igualdade (art. 13º), uma vez
que a medida apenas se destina aos sacerdotes da Igreja Católica e dado que a eliminação
de certos discursos da esfera pública discrimina determinadas ideias relativamente a outras.
Em suma, aqui podemos estar perante uma colisão e um conflito de direitos.

g) A empresa privada Z contratou a Senhora X para o seu serviço de informática, mas


condicionou a manutenção do contrato de trabalho a três cláusulas, que a Senhora
X aceitou: (i) Sujeitar-se a exames sanguíneos para rastreio de HIV; (ii) sujeitar-se a
testes de despistagem de consumo de estupefacientes e (iii) aceitar como justa causa
de despedimento o facto de futuros exames de rastreio de HIV e consumo de
estupefacientes virem a ser positivos;
RESPOSTA: Neste caso, estamos perante um condicionamento de direitos, porque as
cláusulas referidas apresentam obstáculos ao direito, mas não o impedem de se realizar.
Em causa estão o direito ao trabalho (art. 58º) e a segurança no emprego (art. 53º). A causa
do despedimento apresentado no enunciado é legítima quanto ao consumo de
estupefacientes, mas não quanto ao exame de rastreio de HIV ser positivo. Isto deve-se ao
facto de o consumo de estupefacientes poder alterar os comportamentos/a performance
do trabalhador, enquanto que o exame para rastreio de HIV põe em causa o direito à
integridade física do trabalhador injustificadamente, uma vez que mesmo que apresente um
resultado positivo não representa um risco para aqueles com quem a senhora X irá
trabalhar (serviço de informática). Por outras palavras, a primeira cláusula pode ser
classificada como discriminatória.
Contudo, também temos de ter em conta que a empresa beneficia de liberdade contratual.
No entanto, esta liberdade não pode servir de justificação para a adoção de
comportamentos discriminatórios por parte da empresa.
Para além disso, aqui em causa está o direto à reserva da vida privada.
Os dados de saúde fazem parte da nossa esfera pessoal e nós devemos poder controlar o
acesso a eles, uma vez que dizem respeito à nossa identidade pessoal. Posto isto, estamos
perante um conflito de direitos entre o empregador e o trabalhador. Nos art. 14º e
seguintes do Código de Trabalho, encontramos os direitos de personalidade que devem ser
reconhecidos e respeitados numa relação hierárquica em que há uma superioridade por
parte do empregador e uma defesa por parte do trabalhador.

A forma de se resolver esta questão é ter os trabalhadores a realizar os testes e exames


médicos perante um médico, onde este apenas diria se o trabalhador está ou não apto para
desempenhar a atividade; salvaguardando-se assim os dados pessoais do mesmo.

h) A recente aprovação, pelo parlamento britânico, da utilização de embriões híbridos,


criados mediante a introdução de DNA humano em óvulos de animais;
RESPOSTA: Neste caso, está em causa o direito à identidade genética (proteção do
embrião – art. 26º n.3 CRP). Em última análise, a questão é saber se este meio, apesar de
ter um fim legitimo de investigação científica, é legítimo também ou se é violador da
dignidade humana.
Ver Convenção de Oviedo – art. 24º

i) A vontade de Timothy Mc Veigh de que a execução da sua pena de morte fosse o


mais amplamente divulgada e televisionada;
RESPOSTA: Tal como sabemos, a pena de morte é proibida nos termos do art. 24º n.2.
Neste caso, visto que falamos em televisão, o direito à imagem de Timothy seria posto em
causa. Contudo, se ele consentir com a divulgação e transmissão televisiva da execução da
sua pena de morte, já não será assim tão linear. Para além disso, caso o Estado não aceda
ao pedido de Timothy, a sua liberdade de expressão e informação é posta em causa (art.
37º).
Em adição, também teríamos que referir o direito à honra e o princípio da dignidade da
pessoa humana, uma vez que a divulgação da execução ia ofender e chocar para além do
necessário (desrespeito pelo princípio da proporcionalidade). Para além disso, a divulgação
também poderia afetar a moral pública/política (dimensão subjetiva dos direitos
fundamentais).
Todavia, o Direito tem de respeitar a liberdade individual, mesmo que algumas condutas
sejam consideradas desrespeitadoras de um padrão mínimo de dignidade. Porém, esta ideia
contrapõe o previsto no art. 25º n.2.
Não obstante, neste caso nós podemos escolher não ser confrontados com a execução,
visto que podemos mudar de canal se assim entendermos.
Por fim, podemos concluir que a divulgação da execução da pena de morte de Timothy
desobedece ao princípio da proporcionalidade.
NOTA: o conceito de dignidade da pessoa humana não é algo inequívoco, estando em
constante evolução.

j) O facto de o alpinista português João Garcia ter alcançado o cume do K2 nos


Himalaias - a segunda maior montanha do Mundo -, uma vez mais com perigo da
própria vida e da integridade física;
RESPOSTA: Aqui podemos invocar o direito à vida e à integridade física (art. 24º, art. 25º).
Contudo, estamos perante uma autolimitação desses mesmos direitos. A questão central é:
a pessoa pode ou não se colocar numa situação de perigo extremo? Caso ele precise de
assistência, o Estado pode se abster de socorrer porque o João sujeitou-se a essa situação?
Neste caso teríamos de avaliar se o direito à saúde (art. 64º) deve prevalecer sobre a
possibilidade de a equipa de salvamento ser posta em risco para lhe prestar assistência, e se
o Estado está ou não obrigado a alocar recursos para socorrer pessoas que voluntariamente
se colocam em risco (conflito de direitos).

k) Carolina, que se encontra detida num estabelecimento prisional, escreveu ao


Provedor de Justiça apelando à sua intervenção na solução de um diferendo
existente entre si e o director do estabelecimento prisional, já que este ordenou que
a não a deixassem falar com ninguém sem a presença de um guarda, o que Carolina
considera atentatório do seu direito à privacidade;
RESPOSTA: Carolina recorre ao Provedor de Justiça para apresentar queixas por ações do
poder público (art. 23º n.1). Aqui temos em causa o direito à liberdade de expressão (art.
37º) e o direito à reserva da intimidade privada (Art. 26º n.1). Para além disso, devemos
prestar atenção ao artigo 27º n.2, segundo o qual “ninguém pode ser total ou parcialmente
privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela
prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de
segurança”. Contudo, o fundamento por detrás da ordem do diretor do estabelecimento
prisional pode se encontrar na necessidade da garantia da boa execução da pena (interesses
conflituantes). Posto isto e segundo o art. 30º n.5, Carolina mantém a titularidade dos
direitos fundamentais, mas isso não significa que não possa vir a ter que suportar afetações
desses direitos para se assegurar o cumprimento e o objetivo da pena (30º n.5).
Qualquer restrição tem sempre de ser devidamente justificada e de obedecer ao princípio
da proporcionalidade.

l) O acesso dos cidadãos naturais ou residentes nos Açores aos arquivos e registos
administrativos daquela região autónoma foi definido por decreto legislativo
regional;
RESPOSTA: Todos os direitos exigem algum tipo de obrigação por parte do Estado
(positivas e negativas). O direito previsto no art. 268º é considerado um direito
fundamental “fora do catálogo” (direito com natureza análoga a direitos fundamentais –
art. 17º). De modo a garantir a efetividade deste direito, o Estado pode estabelecer um
horário em que os cidadãos podem aceder aos arquivos e registos administrativos, pode
anunciar como é que os cidadãos podem ter acesso, podem divulgar a quem é que os
cidadãos podem solicitar esse acesso, etc.
Para além disso, é necessário verificarmos que as Assembleias Legislativas Regionais têm
competência para legislar sobre esta matéria. Para este efeito, devemos consultar o art.
161º, seguido do art. 227º alínea b). Posto isto, podemos ver que a Assembleia da
República tem reserva relativa de competência legislativa, ou seja, é o único órgão de
soberania que pode legislar sobre Direitos, Liberdades e Garantias, assim como o Governo,
mediante autorização desta.

m) O Governo Regional da Madeira aprovou um decreto regulamentar regional que


estabelecia que durante o mês de Agosto e tendo em conta a necessidade de
combater incêndios florestais, poderiam ser convocados para trabalhar nas zonas
de montanha os cidadãos masculinos entre os 20 e os 25 anos.
RESPOSTA: Aqui podemos invocar o art. 13º n.2, uma vez que estamos perante uma
discriminação em razão de género e de idade. No que toca à idade, o limite entre os 20 e 25
anos pode ter sido imposto com o fim de se assegurar que os trabalhadores são pessoas
que têm capacidade física para combater os incêndios florestais nas montanhas. Contudo,
talvez fosse mais indicado que o requisito fosse um teste de robustez física, ou seja,
podemos discutir se esta medida é adequada e necessária. Para além disso, também
podemos invocar o art. 58º n.2 alínea b) (direito ao trabalho), uma vez que os cidadãos
convocados veriam a sua liberdade de escolha de emprego afetada. Porém também
devemos ter em conta que o Estado ao aprovar esta medida, teria em vista garantir a
segurança da comunidade e a proteção do ambiente que a rodeia (colisão de direitos).
Por fim, também temos de ter em conta que o art. 18º n.2 diz “a lei”, ou seja, para que os
direitos, liberdades e garantias sejam restringidos um regulamento não basta, é necessário
um ato legislativo.

-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Se o princípio jurídico da dignidade da pessoa humana for violado, estamos perante
uma inconstitucionalidade. Este princípio é o fundamento de legitimidade do sistema. Por
exemplo, em Portugal a República baseia-se na dignidade, segundo o art. 1º CRP. Para além
disso, o poder do Estado está ao serviço da dignidade da pessoa humana, ou seja, a
dignidade da pessoa humana é o denominador comum de todos os direitos.
Este princípio não está subjacente apenas aos direitos que existem, podendo também servir
para revelarmos direitos que não estando expressamente consagrados, estão implicitamente
presentes no texto fundamental.
ACÓRDÃO TC 509/2002: afetação do conteúdo dos direitos. Os maiores de 18 anos,
mas menores de 25 anos estariam a ser privados de um subsídio que lhes permitira ter
condições básicas de existência. Tal como sabemos, a CRP protege o direito ao “mínimo
de existência condigna”, logo esta medida foi considerada inconstitucional.
Este acórdão também faz referência ao princípio da proibição ao retrocesso social de
Gomes Canotilho, que está intimamente relacionado com a ideia de que assim que as
pessoas ficam desprotegidas (sem recursos), a sua dignidade é posta em causa (art. 63º n.1 e
3 – segurança social e solidariedade – impõe um dever de proteção ao Estado).

ACÓRDÃO 177/2002: conflito entre direitos de crédito e o direito ao “mínimo de


existência condigna”. O devedor sofreria um encurtamento do salário através de uma
penhora para que o credor visse a sua dívida satisfeita. Esta medida foi considerada
excessiva e inconstitucional, porque o Tribunal reconheceu que ninguém pode ficar abaixo
do limiar do “mínimo de existência condigna”. Posto isto, aqui estávamos perante um
conflito entre o direito previsto no art. 62º e o direito previsto nos artigos 59º n.2 alínea a),
e 63º n.3.
Com isto em mente, podemos concluir que a dignidade da pessoa humana funciona como
uma “linha vermelha” que nunca podemos cruzar.

ACÓRDÃO 486/2003: pedido de fiscalização proposto pelo Procurador-Geral da


República. Está em causa uma Portaria cujas normas fixavam prémios de montantes
desproporcionadamente inferiores aos que estão previstos para os praticantes de desporto
“não portadores de deficiência”. O Procurador invoca uma violação do princípio da
igualdade (art. 13º), estando também em causa o direito à cultura física e desporto (art. 79º).
O autor das normas disse que a razão subjacente a elas era o facto de certas competições
atraírem mais atenção dos media, mais projeção internacional, mais investimentos
monetários do que outras. Contudo, se olharmos para o art. 71º n.2, percebemos que o
papel do Estado é desenvolver políticas que promovam a plena capacitação destes cidadãos
e que combatam a sensação de inferioridade que estes sentem. Este artigo também serve
para sensibilizar a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles,
ou seja, devia-se admitir situações de discriminação positiva, não negativa (Estado deveria
criar uma política de compensação para combater o tratamento desigual de que estes
cidadãos são alvo). Neste caso, o princípio da dignidade da pessoa humana é invocado,
devendo-se tratar todos e todas de forma igual, ou seja, não se devendo permitir a
discriminação com base numa deficiência.
ACÓRDÃO TC 306/2005: processo por incumprimento do acordo de regulação do
exercício do poder paternal (pensão de alimentos): Neste caso estamos perante um conflito
entre dois direitos de igual natureza. Como sabemos, o progenitor tem obrigação de dar
uma pensão de alimentos aos filhos. Contudo, neste caso, o pai não exerce qualquer
atividade remunerada, o único rendimento que tem é uma pensão por invalidez atribuída
pelo Centro Nacional de Pensões, é toxicodependente e o seu paradeiro é desconhecido. A
questão aqui é: devemos retirar ao pai esse pouco rendimento para dar aos filhos, ficando o
progenitor sem como sobreviver, ou os filhos não recebem este subsídio que lhes permite
viver em melhores condições? Neste caso, o TC decidiu que o pai deveria prestar a pensão
de alimentos aos filhos.
Em suma, a pensão de alimentos tem por finalidade dar um apoio aos filhos. Todavia, aqui
temos o direito material dos filhos de um lado, e o direito do pai de ter um “mínimo de
existência condigna” do outro. Posto isto, o pai não pode ficar privado de condições
básicas de existência, ou seja, não pode ver a sua dignidade ser posta em causa. Por fim, o
tribunal recorreu ao princípio da concordância prática e decidiu que a norma constante da
Organização Tutelar de Menores era inconstitucional.
ACÓRDÃO TC 359/2009: Neste caso, 2 mulheres queriam casar, mas viram o seu pedido
indeferido e por isso recorrem ao Tribunal Constitucional para que este apreciasse a
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1577.º do Código Civil. Aqui estamos
perante uma situação de discriminação em razão de orientação sexual, que se encontra
prevista no elenco exemplificativo do art. 13º, ou seja, temos uma violação do princípio da
igualdade. Para além disso, também temos uma violação do princípio da liberdade de
constituir família e do princípio da liberdade de contrair casamento (Art. 36º). Este artigo
36º remete para a lei os requisitos e efeitos do casamento e da sua dissolução, mas não
impõe nem exclui quaisquer modalidades de casamento. O TC pronunciou-se e veio dizer
que, neste caso, o conteúdo da dignidade da pessoa humana “é algo que necessariamente
tem de concretizar-se histórico-culturalmente”, cabendo primacialmente ao legislador essa
concretização; e que os tribunais devem controlar a constitucionalidade dessas mesmas
soluções jurídico-normativas. Contudo, apesar do artigo 1577.º do CC na parte em que
determina que casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente,
prive o titular do direito previsto no artigo 36.º, n.º 1, segunda parte, da CRP em razão da
sua orientação homossexual, o que é constitucionalmente ilegítimo (artigo 13.º, n.º 2), o TC
decidiu “negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que toca à
questão da inconstitucionalidade.”
ACÓRDÃOS ANALISADOS
Avaliação distribuída

Ressalva: os textos que encontram aqui não são a forma “correta” ou “errada” de se
analisar o acórdão em questão; são apenas apreciações feitas por estudantes do 2º ano que
pretendem dar resposta às questões colocadas pela professora Anabela Leão. Posto isto,
como preparação para o exame, recomenda-se a todos os estudantes da unidade curricular
de Direitos Fundamentais que estejam presentes nas aulas práticas, para que possam ouvir
as apresentações e daí tirarem as suas conclusões.

TEXTO DE: MARCO MOREIRA


TC, Acórdão n.º 424/2020 (habeas corpus, confinamento e liberdade)
Questão para discussão: O direito ao habeas corpus foi invocado para amparar que direito
ou direitos fundamentais? Que direito(s) é (são) afetado(s) pela imposição do
confinamento, e qual o tipo de afetação e seu regime? E de que forma é que isso relevou
em sede de controlo da constitucionalidade?
Desde logo, e ainda que de forma muito breve, pois este não é, de todo, o foco principal da
pergunta, há que mencionar que o habeas corpus vem previsto nos artigos 31º CRP e 220º
CPP e poderá ser invocado mediante o preenchimento cumulativo de 2 requisitos:
• Abuso de poder das autoridades policiais – não pode ser qualquer abuso de
poder, mas o abuso de poder deve afetar o direito à liberdade física, ou seja, à
liberdade de movimentos, o que tem por consequência o direito a não ser detido,
aprisionado ou confinado a um espaço.

• Existência de uma prisão ou detenção ilegal – a ilegalidade da prisão ou


detenção significa que eles são contrários aos princípios da constitucionalidade e da
legalidade das medidas restritivas da liberdade, porque, como sabemos, a restrição
de direitos apenas pode ser feita por lei (artigo 18º nº2 CRP).

No caso, parece que efetivamente o habeas corpus foi utilizado como um direito para
salvaguardar outros direitos, nomeadamente o direito à liberdade, previsto no artigo 27º
CRP. Daí que o professor Gomes Canotilho diga que o habeas corpus “testemunha a especial
importância constitucional do direito à liberdade”. No caso, o recorrido acredita que esta medida,
além de não ser da competência da RAA, viola também o princípio da proporcionalidade
que, como sabemos, é um princípio basilar para se poder restringir qualquer DLG, nos
termos do artigo 18º nº2 CRP. Isto do ponto de vista do recorrido.
Do ponto de vista da Autoridade de Saúde Regional, não há qualquer sacrifício absoluto da
sua liberdade, mas apenas um condicionamento, no sentido de salvaguardar a vida e a
saúde, que são simultaneamente dois bens da sociedade e dois direitos, previstos no artigo
24º e 64º CRP, pelo que a medida será proporcional. O que estava em causa seria uma
afetação do direito de circulação, admissível em estado de calamidade (porque, entretanto,
o estado de emergência tinha cessado). No entanto, a juíza do tribunal de Ponta Delgada
entendeu que essa afirmação era redutora, no sentido de que o direito de circulação estava
limitado, porque estava limitada a própria liberdade.
A imposição do confinamento obrigatório afeta direito à liberdade (artigo 27º CRP),
nomeadamente a nossa liberdade de deslocação (artigo 44º CRP). Está em causa um
direito à liberdade física que, como dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros, se entende
como “liberdade de movimentos corpóreos, de ir e vir, a liberdade ambulatória ou de locomoção”. O
próprio TC tem sustentado este entendimento em diversos acórdãos, como o caso
nº479/94 (onde se procurou clarificar o conceito de privação total ou parcial da liberdade).
Ora, podemos, então, concluir que temos uma situação de concorrência de direitos.
Efetivamente parece-me que o confinamento será um tipo de afetação de direitos, não sob
a forma de restrição, mas de suspensão, na medida em que temos uma autêntica privação
da liberdade e não uma mera limitação. E, como diz Maunz-Durig (e que até é citado pelo
TC neste acórdão), a privação da liberdade existe quando alguém contra a sua vontade é
confinado coativamente através do poder público a um local delimitado, de modo que a
liberdade corporal-espacial de movimento lhe é subtraída, traduzindo-se numa afetação do
núcleo do direito à liberdade física, ao passo que a limitação da liberdade existe quando
alguém é impedido, contra a sua vontade, de aceder a um certo local que lhe seria jurídica e
faticamente acessível ou de permanecer num certo espaço, ou seja, a liberdade não é
subtraída, mas apenas limitada numa dada direção, afetando-se apenas perifericamente o
direito.
No fundo, o que distingue a privação da limitação tem a ver com a amplitude do direito
que é afetada: é a diferença entre ficar impedido de aceder a um determinado local e ter que
estar confinado num determinado local. É isto que, para mim, distingue a restrição da
suspensão de direitos e é exatamente por isso que considero que o confinamento seja, não
uma medida de restrição, mas de suspensão do direito à liberdade.
Assim sendo, de acordo com o artigo 19º CRP, a suspensão de direitos apenas pode
acontecer em estados de exceção constitucional, nomeadamente em estado de sítio ou
estado de emergência, não podendo ultrapassar o período de 15 dias de suspensão e não
podendo nunca afetar os direitos previstos no nº6 do mesmo artigo, no qual não consta o
direito à liberdade, pelo que, durante o estado de sítio ou estado de emergência, o núcleo
essencial do direito à liberdade pode ser efetivamente afetado.
No entanto, também a suspensão de direitos tem de estar subordinada ao princípio da
proporcionalidade, nos termos do artigo 19º nº4 CRP. Isto compreende-se claramente,
até por maioria de razão, na medida em que, se a restrição de DLG, nos termos do artigo
18º nº2 CRP, tem que estar sujeita ao princípio da proporcionalidade, a suspensão de
direitos, que afeta o seu núcleo essencial e, por isso, é mais gravosa, mais ainda deverá
obedecer a este princípio. Além disso, a CRP prevê no seu artigo 164º alínea e) que o
regime de estado de sítio ou estado de emergência está sob reserva absoluta da
competência legislativa da AR. Esse regime revestirá a forma de lei orgânica, nos
termos do artigo 166º nº2 CRP, e a declaração do estado de sítio ou estado de emergência é
o único ato do PR que está sujeito a fiscalização da constitucionalidade por parte do
TC, o que demonstra a sensibilidade destas matérias.

No que concerne ao controlo da constitucionalidade no caso concreto, desde logo há


que destacar o facto de que, em Portugal, a fiscalização da constitucionalidade é normativa,
ou seja, o TC não decide casos concretos, mas apenas verifica a conformidade de normas
com a CRP. No caso, o TC julgou inconstitucional (fiscalização sucessiva concreta da
constitucionalidade) algumas normas da Resolução do Conselho de Governo nº77/2020,
de 27 de março, e da Resolução do Conselho do Governo nº123/2020, de 4 de maio, por
violação dos artigos 165º nº1 alínea b) e 227º CRP (inconstitucionalidade orgânica e
formal). Há quem vá ainda mais longe (Gomes Canotilho e Vital Moreira), no sentido de
que esta reserva de competência legislativa da AR nesta matéria não vale apenas para as
restrições, mas para toda e qualquer intervenção legislativa no âmbito dos DLG.
Assim, efetivamente esta afetação do direito à liberdade teve alguma relevância na decisão
do TC, desde logo porque a própria inconstitucionalidade orgânica tem exatamente por
fundamento o facto de que qualquer restrição a DLG depende de lei da AR ou DL do
Governo autorizado. Ora, isto significa que as RA não têm competência em matéria de
restrição de direitos.
Contudo, considero que a decisão do TC peca por defeito, no sentido de que a juíza do
tribunal do qual a decisão foi recorrida considerou que a inconstitucionalidade incidia, não
só na vertente orgânica, mas também em termos materiais, no sentido de que a afetação
do direito à liberdade do recorrido era desproporcional. Ora, o TC não adotou qualquer
tipo de posição clara e objetiva em relação a essa eventual desproporcionalidade, o que me
parece insuficiente para este caso, porque a questão material parece ser sempre a mais
importante, na medida em que não se está a violar uma competência ou uma forma, mas a
própria essência da CRP, que é pautada pelo princípio da dignidade da pessoa humana,
sendo a nossa liberdade uma decorrência clara desse princípio.

TEXTO DE: RITA MAIA


Acórdão STA Proc. 088/20.8BALSB, de 10/09/2020 (direito de reunião, pandemia
COVID, intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias)
Questão para discussão: Como é configurado o conflito ou colisão de direitos em causa,
e a “afetação” do direito de reunião, pelo requerente e pelo Tribunal? Indique que direitos
estão a ser amparados, e porquê, se há ou não afetação desses direitos, e que
conflitos/colisões existem. Porque se invoca o direito de reunião? Em que medida está a
ser posto em causa? Como decide este, tendo em conta os princípios da proporcionalidade
e igualdade no contexto do que se apelida de “Estado de Direito de Emergência sanitária”?

Neste acórdão releva o direito à reunião, entendido pelo requerente como direito
fundamental a reunir-se com familiares e amigos para jantares, piqueniques, sessões lúdicas,
tertúlias, apresentando-se, assim, como um direito de liberdade de titularidade individual,
mas de exercício coletivo, tal como Jorge Miranda refere. No entendimento do requerente,
o seu direito à reunião está a ser afetado, restringido pelas normas proibitivas da Resolução
de Conselho de Ministros já que estas limitam, consoante o local seja de alerta ou de
contingência, a concentração de pessoas a nº não superior a 20 ou 10, respetivamente.
Como tal, o direito à reunião, previsto no art. 45º da CRP, está a ser posto em causa na sua
vertente de liberdade de realização concreta e atual de reuniões, condicionando outros
direitos e liberdades previstos na CRP, por exemplo a liberdade sindical, a liberdade
religiosa e até em último caso, a liberdade de expressão, uma vez que as reuniões são para
se debater, falar e instituir orientações. Do ponto de vista do tribunal, é muito difícil
encarar esta situação no âmbito das restrições de DLG, devido à excecionalidade e
temporalidade destas medidas, que são extremamente importantes e adequadas para travar
um vírus totalmente desconhecido e com grande impacto, mas antes considera como uma
ação egoísta do requerente pelo que nesta situação nunca antes vivida e que diversas
pessoas já pereceram vítimas do COVID-19, os cidadãos devem-se unir e entender que
neste caso, restringimos uma pequena parte de um direito, para futuramente termos a
liberdade e autodeterminação de exercermos os nossos DF.
Apesar de falar em dois direitos, penso que está em causa uma situação de colisão, uma vez
que existe por parte do requerente um direito à reunião e um interesse do Estado, que é
designadamente controlar a pandemia, de forma a proteger a saúde de terceiros, ou seja, o
interesse de assegurar, garantir a saúde pública.
Quanto à segunda parte da questão, o tribunal decide improceder a ação do
requerente por considerar que, atendendo aos princípios da proporcionalidade e da
igualdade, não existe uma violação de DLG. Explicitando os seus argumentos, tendo por
base os requisitos enumerados no nos 2 e 3 do art. 18º da CRP:

1. Quanto às diversas vertentes do princípio da proporcionalidade, as medidas


restritivas, no entendimento do tribunal, demonstram-se adequadas, isto é,
conformes ao fim de interesse público de controlar o risco de propagação e de
infeção do vírus visto que se tão-só vigorasse a regra do distanciamento social para
a concentração de pessoas em zonas públicas poderia ser não só insuficiente, mas
também impraticável, considerando a insuficiência de espaços públicos para todas
as aglomerações e ainda a carência de recursos efetivos de controlo; também
necessárias, apresentando-se como o meio menos oneroso para o cidadão uma vez
que com grandes eventos e aglomerações advêm enormes dificuldades e entraves
para a rastreabilidade dos casos de infeção e repercussões para a saúde pública; por
fim, apresentam-se não excessivas, sendo que se pesarmos as desvantagens das
medidas restritivas em comparação às vantagens do fim de assegurar a saúde
pública, as primeiras são de nº inferior e como tal, apenas se limita uma margem do
direito à reunião com o fim de se reduzir o nº de pessoas afetadas na sua saúde ou
até mesmo salvaguardar a vida. Assim, não existe qualquer violação do princípio da
proporcionalidade.

2. No que diz respeito ao princípio da igualdade, o requerente alega existir uma


violação deste princípio, por não haver uma distinção no tratamento consoante a
maior probabilidade de infeção. Como sabemos a premissa do princípio da
igualdade é uma igualdade material, tratar-se de modo igual ou diferente situações
que se apresentem, correspetivamente, iguais ou diferentes entre si, e apenas existe
uma violação quando existe uma diferenciação sem justificação válida, o que não se
conclui da argumentação do requerente. Antes este justifica a violação com o facto
de o critério para a proibição de concentrações de pessoas deveria de não ser o nº
de pessoas, no entanto considera o tribunal que para além do critério se mostrar
como adequado, o debate sobre outros critérios não passa pelo controlo
jurisdicional da igualdade, nem pelo controlo judicial das medidas administrativas.

Concluindo, do ponto de vista do tribunal, os requisitos previstos nos nos 2 e 3 do art. 18º
da CRP encontram-se respeitados e consequentemente a restrição é validamente realizada.
TEXTO DE: RITA RIOS
TC, Acórdão n.º 394/2019 (investigação de paternidade)
Sendo a possibilidade de investigar a paternidade uma dimensão do direito à
identidade pessoal, que outros direitos ou interesses poderão (se é que podem)
justificar a sua restrição e em que medida?

• Direito à Identidade Pessoal


Artigo 26º nº1 CRP → o direito à identidade pessoal é um direito fundamental de
aplicação direta (falamos de uma norma percetiva que beneficia de uma execução imediata
sem necessidade de intervenção da atividade política ou do legislador), constitucionalmente
consagrado.
Podemos associar, face ao disposto do Acórdão em estudo, esta dimensão da identidade
pessoal referente à investigação da paternidade ao lado do filho (o investigante).

• Outros direitos ou interesses conflituantes?

Interesses:
1. A certeza e a segurança jurídica do pretenso pai e dos seus herdeiros (uma vez que
não será do seu interesse ver protelada uma situação de incerteza quanto à sua
potencial paternidade) → O investigado não terá, à partida, interesse em ver uma
situação de dúvida quanto a uma potencial paternidade omissa na sua dimensão
jurídica (uma vez que, se se confirmar a paternidade) verá recair em si
responsabilidades legais, e na dimensão social quanto à garantia da honra e do
bom nome.

2. O perigo de passado o prazo indicado pelo artigo 1817º nº1 CC, vir a ser requerida
uma investigação da paternidade tardia com o único intuito de alcançar vantagens
patrimoniais (a questão da herança como um direito do filho).
Na infância e na juventude falamos de fases de crescimento. Nesta fase o direito a ter um
Pai assume um conteúdo valorativo e é um bem pessoal indispensável à formação da
criança ou do jovem. Ex.: Proteção, saúde, educação…
Com a passagem do tempo este direito poderá assumir uma dimensão tão só patrimonial
– assume a forma obrigacional de pensão de alimentos em vida do pai (artigos 2003º,
nº1 + 2004º + 2009º nº1 a. (c) CC), e de direitos sucessórios após a sua morte (artigo
2157º CC).

Direitos:
1. A paz e harmonia da família constituída pelo pretenso pai → Artigo 67º CRP.
Este direito trata a instituição “Família” como um elemento fundamental da sociedade que
merece proteção e cooperação do próprio Estado quanto à realização pessoal dos seus
membros através de medidas de integração e unificação.
A questão da investigação da paternidade colide de forma expressa com o direito disposto
no artigo 67º CRP uma vez que, a confirmar-se a pretensa paternidade, a estabilidade de
uma potencial família já constituída ficará lesada.

2. A reserva da intimidade da vida privada do pretenso progenitor → Artigo 26º nº1


CRP.
O artigo 26º nº1 adota uma “dupla vertente” na situação da investigação da paternidade.
Poderá ser invocado no lado do investigante (filho):
Na sua dimensão de direito à identidade pessoal + ao desenvolvimento da
personalidade + e proteção legal de quaisquer formas de discriminação.
Mas é importante compreender que também adota uma dimensão amplamente significativa
no lado do investigado (pretenso pai):
Na sua dimensão de direito ao bom nome e reputação + direito à reserva da
intimidade da vida privada e familiar.
“Se é que podem”
Opinião pessoal meramente interpretativa dos factos retirados da leitura do Acórdão
394/2019 TC

A restrição:
Só podemos referir-nos a uma situação de restrição de Direitos Fundamentais quando
estamos perante um caso de conflito ou de colisão de Direitos. Neste caso concreto
falamos de um conflito de direitos (dois ou mais direitos de particulares conflituam entre
si).
A restrição de DF é feita com base constitucional no artigo 18º nº1 e nº2 da CRP –
cumprindo os requisitos dispostos no artigo.

Sim.
Pode haver uma restrição do direito à investigação da paternidade (através da
caducidade imposta pelo artigo 1817º nº1 CC) uma vez que estamos a tratar de uma
situação de conflito de direitos nos termos do artigo 18º nº1 e nº2 CRP.

“Em que medida?”


Dos vários requisitos para proceder à restrição de DF aquele que me parece mais relevante,
no caso concreto, será o Princípio da Proporcionalidade referido com a passagem
“necessário” no nº2 do artigo 18º CRP.
Na parte final do Acórdão há diversos argumentos que justificam esta restrição fazendo
exclusivamente referência à sua fundamentação com base no Princípio da
Proporcionalidade:
➔ Adequação: é uma restrição apta a assegurar a tutela jurisdicional efetiva tanto do
investigante como do investigado + permite que a constituição jurídica da relação
de filiação se estabeleça atempadamente + garante uma investigação instaurada na
infância e na juventude.

➔ Proporcionalidade: a questão da indispensabilidade do Pai na formação da


personalidade e da identidade pessoal em idade menor + a proteção de uma
intenção meramente patrimonial na constituição do vínculo de filiação + a
satisfação, em primeira linha, dos interesses do filho.
Como resolvemos?
1. Princípio da Proporcionalidade

2. Concordância Prática → Acórdão 401/2011 → O vínculo de filiação não é um


direito absoluto que não possa ser harmonizado e o objetivo é atingir um
maximalismo (a proteção do direito do filho em simultâneo com a proteção da
esfera de vida privada do pretenso pai) – a opção será atingir um maximalismo
através da concordância prática não dando primazia a um dos direitos mas
protegendo simultaneamente aqueles direitos com os quais incompatibiliza.

Opinião final:
No estabelecimento dos prazos de caducidade para a investigação da paternidade o
legislador em momento algum desrespeita as fronteiras da suficiência da tutela uma vez que
se trata de uma limitação que não impede ao titular do direito o seu exercício
impondo-lhe apenas o ónus de o exercer no prazo PROPORCIONAL, ADEQUADO e
RAZOÁVEL para o efeito.

TEXTO DE: MIGUEL SILVA


Acórdão TRL, Proc. 1783/20.7T8PDL.L1-3 de 11/11/2020 (habeas corpus,
liberdade, testes de diagnóstico, pandemia)
Questão para discussão: O direito ao habeas corpus foi invocado para amparar o direito
à liberdade do artigo 27.º CRP, discutindo-se se e em que medida este direito pode ser
restringido para salvaguardar a saúde pública em caso de doença contagiosa, tendo em
conta que o artigo 27.º não prevê, entre as medidas privativas de liberdade, o internamento
ou confinamento compulsivo de portador de doença contagiosa. Se e em que medida pode
então determinar-se tal confinamento?
Resposta:
No acórdão em questão, temos um recurso feito pela Autoridade de Saúde Regional (ARS),
contestando a decisão do tribunal de 1ª instância, que concedeu o pedido de habeas corpus
requerido por quatros cidadãos alemães, confinados num quarto de hotel na Ilha de S.
Miguel no Açores, há 16 dias, depois de um destes ter testado positivo à COVID-19. Neste
acórdão o tribunal indefere o pedido de recurso da ARS, concordando com a posição do
tribunal de 1ª instância relativamente à inconstitucionalidade das medidas adotadas,
relativamente à falta de norma habilitante e à violação do princípio da proporcionalidade
das mesmas.
Analisando o artigo 27º CRP, deve-se desde de logo identificar a regra geral que estabelece
no seu nº 2; “Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em
consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena
de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.”, que é seguida pelas exceções à
mesma no nº3. Verificadas as exceções do nº3, nota-se a ausência de qualquer alínea
relativa à restrição do direito à liberdade motivada por questões de saúde pública. Seria
então lógico considerar que, nos termos do nº 2 seriam inconstitucionais quaisquer
restrições ao direito à liberdade. Porém, sabemos que o artigo 18º da CRP prevê a
possibilidade de restringir direitos fundamentais, nos termos do nº 2 e 3. Cumpridos os
requisitos deste artigo 18º (seguindo o entendimento doutrinal relativamente à
interpretação flexível do requisito “nos casos expressamente previstos na Constituição”),
seria possível restringir o direito à liberdade. Acrescenta-se também o artigo 19º da CRP e a
sua previsão do estado de emergência e de sítio, que permitem ao legislador suspender
direitos fundamentais no seu nº1; “Os órgãos de soberania não podem, conjunta ou
separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de
estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição.”
No caso em questão a norma habilitante da ordem de confinamento dos requerentes
invocada pela ARS é a Resolução do Conselho de Governo 207/2020 de 31 de julho, que
no seu nº1 prevê o confinamento de pessoas que tenham estado em contacto com
pacientes infetados com COVID-19, e no nº6 o isolamento profilático a aplicar a pacientes
de COVID-19. Invocam também a norma 015/2020 da DGS. A ARS enquadra também
estas duas normas no regime de “normas excecionais” previsto no artigo 17º da Lei
81/2009 (Lei das doenças infeciosas). Já o Ministério Público (MP), considera a Resolução
do Conselho de Governo inconstitucional, e que, consequentemente, o confinamento
carece de qualquer fundamento legal, violando, portanto, o artigo 18º da CRP.
O tribunal sobre esta questão, depois de exposto os preceitos do artigo 27º suprarreferido,
afasta desde logo qualquer juízo relativamente a uma possível inconstitucionalidade da
Resolução do Conselho de Governo, apontando questões de celeridade. Considera, porém,
que, tanto esta Resolução como a norma da DGS, são normas com eficácia interna, já que
os destinatários são entidades administrativas, e o seu propósito é estabelecer orientações
de conduta relativas ao confinamento ou isolamento profilático de pacientes infetados com
COVID-19 ou que tenham estado em contacto com portadores da doença. Portanto afasta
o argumento que a ARS atuou conforme a Resolução, esta que estaria ao abrigo do artigo
17º da Lei 81/2009, porque as duas não têm eficácia externa.
Finaliza o acórdão por explicitamente apontar quais os meios constitucionalmente
previstos para se restringir o direito à liberdade, na sua vertente física, restrição esta sobre a
forma de confinamento ou isolamento profilático, Meios estes, através de uma lei sob
reserva relativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165º nº1 alínea b), e no
estrito âmbito do estado de emergência ou de sítio.

TEXTO DE: RICARDO VIEIRA


TC, Acórdão n.º 394/2019 (Investigação de Paternidade)
Questões para discussão:
1. Em que medida a possibilidade de investigar a paternidade biológica pode
ser considerada uma dimensão do direito à identidade pessoal e do direito a
constituir família?
Resposta: O direito à identidade pessoal é um direito fundamental previsto no art.º 26/1 de
que todas as pessoas são titulares por ser uma qualidade intrínseca da pessoa humana e da
sua necessidade de autoconhecimento e autodefinição, assim sendo, a investigação de
paternidade biológica é a única forma possível de garantir esse direito fundamental.
A identidade genética permite-nos conhecer o nosso material, logo a possibilidade de
investigar a paternidade biológica pode ser fundamental em situações, por exemplo: em que
sofremos de uma doença que pode ser hereditária e precisámos de a compreender;
situações em que seja necessário, por exemplo: um transplante que nos pode salvar a vida e
o conhecimento biológico pode revelar-se essencial nesses momentos.
A identidade pessoal é mais ampla que a identidade genética, no sentido em que o
conhecimento das nossas origens, a situação familiar, a nossa inserção e definição a nível
social, cultural e o nosso bem-estar revela um peso fundamental no desenvolvimento da
nossa personalidade.
Dando um exemplo: por vezes crianças que não têm conhecimento das suas origens, acaba
por viver em situações precárias, ou a ter de enfrentar confusão e o estigma social durante
toda a sua vida e poderá ouvir especulações que vão deturpar a sua estabilidade emocional.
Relativamente ao direito a constituir família, acredito que o desconhecimento da verdadeira
origem pode ingerir neste direito, no aspeto em que é essencial às pessoas saberem de onde
vêm, quem são e quem é a sua família.
Como é proferido na declaração de voto de Maria Clara Sottomayor e passo a citar:
“Por dizerem respeito à dignidade mais profunda do ser humano – o direito a saber quem é
e de onde veio – o Estado não tem legitimidade para avaliar e hierarquizar estes motivos
em função do decurso do tempo (ou de qualquer outro critério), fixando um prazo para o
exercício do direito da ação de investigação da paternidade.”
Na minha opinião comparo o exercício deste direito ao conhecimento e ao
reconhecimento da paternidade biológica, por exemplo: ao direito a constituir família, uma
pessoa pode constituir família a qualquer momento da sua vida, ou seja, um homem não
abdica do direito de constituir família só porque não o exerce, não existe um prazo para
constituir, e se nunca o chegar a fazer não está a limitar, restringir ou a renunciar de exercer
esse direito, assim sendo, um filho também não está a limitar ou a renunciar ao exercício do
direito de ação de investigação de paternidade só porque não cumpriu um prazo.
2. Considerando o conceito de família presente na constituição e a dissociação
entre a filiação “jurídica” e “biológica”, e.g. na adoção ou em sede de PMA,
que peso tem o “argumento biológico” no confronto com outros direitos ou
bens constitucionalmente protegidos?

Resposta: O argumento biológico tem uma grande importância, pois, a partir dele temos
acesso à nossa posição na sociedade, na família, é este argumento que contém a nossa
identidade enquanto seres humanos e que também nos vai possibilitar o desenvolvimento
da nossa personalidade, uma passagem do acórdão que comprova a importância do
“argumento biológico” é a seguinte e passo a citar:
“O que o filho perde, em identidade e liberdade de ser, com o estabelecimento de prazos de
caducidade, é desproporcionalmente mais valioso do que aquilo que o pretenso pai ganha
em segurança e privacidade com tal compressão temporal, não havendo razão jurídico-
constitucional válida que justifique tamanha perda e imponha tão diminuto ganho”
O conceito de família previsto na CRP pauta-se pelo art.º 67 CRP que no nº 1 diz
expressamente que “A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à
proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que permitam a
realização pessoal dos seus membros.”, sendo assim, será aqui importante referir que o
direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade biológica assume um papel
central na ideia expressa no nº 1 do art.º 67 CRP, no ponto em que se faz referência à
efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.
A filiação é uma questão biológica, e só é suscetível de tratamento jurídico no que diz
respeito à sujeição a registo, portanto:
• Filiação jurídica – Corresponde apenas a um reconhecimento na ordem jurídica.
• Filiação biológica – Corresponde a uma descendência do filho que desencadeia
laços de paternidade e maternidade

Processo de filiação socio-afetiva:


Adoção – Ato jurídico no qual um individuo é permanentemente assumido como filho por
uma pessoa ou por um casal que não são os pais biológicos do adotado
Procriação Medicamente Assistida – Contempla o uso de diferentes técnicas médicas
para auxiliar a reprodução humana em determinados casos da vida dos correspondentes
progenitores. Vale a pena ainda fazer uma distinção relativamente à PMA, esta divide-se em
duas modalidades por assim dizer:
• Inseminação homóloga: Feita com gâmetas dentro do casal, o sémen é do
homem do casal – Neste caso, é havido como pai da criança que nascer
biologicamente e juridicamente
• Inseminação heteróloga: Feita com sémen de material genético masculino fora
do casal como dador de sémen. – Neste caso, é havido como pai da criança que
nascer apenas biologicamente, não o sendo juridicamente – art.º 10/2 da lei
32/2006 “2 - Os dadores não podem ser havidos como progenitores da criança que
vai nascer.”
Art.º 1990 – A – Acesso ao conhecimento das origens
“Às pessoas adotadas é garantido o direito ao conhecimento das suas origens”
Acórdão 225/2018 – Constitucionalidade da lei da Procriação Medicamente Assistida
“Declarou inconstitucionalidade do princípio-regra do anonimato dos dadores de
gâmetas”

TEXTO DE: MARIA EDUARDA FERNANDES


TEDH, Evans c. Reino Unido, 10 de abril de 2007 (privacidade, autonomia pessoal,
decisão procriativa)
Questão para discussão: Considerando que a CEDH não refere expressamente direitos
reprodutivos resultantes de procriação medicamente assistida como a fertilização in vitro,
como pôde o TEDH pronunciar-se sobre a questão? Qual o fundamento normativo para
discussão da pretensão da Sra. Evans?
Resposta: Antes de começar gostaria de deixar uma nota de que, por forma a responder à
questão colocada, resolvi inverter a ordem da mesma, começando por apresentar o
fundamento normativo invocado que esteve no cerne de toda a discussão judicial.
Este caso tem início com uma ação judicial intentada nos tribunais ingleses pela Sra. Evans,
que, vendo a sua pretensão não ter provimento, vem alegar que a Lei de 1990 violava, nos
termos do artigo 2.º da CEDH, o direito à vida dos embriões, bem como, nos termos do
artigo 8.º e 14.º CEDH respetivamente, o direito ao respeito pela vida privada e familiar e a
proibição da discriminação.
Dissecando cada um destes fundamentos, diga-se que, no tocante à proteção dos embriões,
levanta-se uma das questões mais controversas nesta matéria, uma vez que, tal como diriam
Jorge Miranda e Rui Medeiros, uma resposta una implicaria a determinação do “terminus
a quo (e o terminus ad quem) do próprio direito à vida”. O certo é que aqui a doutrina se divide
entre aqueles que consideram que o homem é pessoa desde o primeiro momento da sua
existência embrionária e, por outro lado, aqueles que consideram que o homem se torna
progressivamente pessoa, não o sendo ainda no momento da própria conceção. Os
tribunais ingleses detêm que o embrião não é uma pessoa com direitos protegidos nos
termos da CEDH. Neste âmbito é importante ter-se em atenção a posição do TEDH que
considerou que o tratamento de fertilização in vitro deu origem a questões morais e éticas
muito sensíveis, uma vez que as mesmas se imiscuíam em domínios em relação aos quais
não existia um consenso comum europeu. Assim determina que a margem de apreciação a
dar ao Estado-Membro deveria ser ampla.
Como diria a Dra. Anabela Leão “A doutrina da margem de apreciação é utilizada pelo
TEDH em diversos domínios, mas o âmbito desta margem de apreciação varia em função
de diversos fatores, podendo ser mais ou menos amplo”. Desta feita, poder-se-ia afirmar
que, dependendo da legislação que vigore, no tempo e no espaço, em cada um dos
ordenamentos jurídicos, o Tribunal poderá tomar uma ou outra conclusão. Neste âmbito o
TEDH seguiu a posição tomada pelo Reino Unido e determinou unanimemente que não
houve violação do direito à vida.
Não obstante tudo isto, o cerne da argumentação da requerente é o artigo 8.º CEDH e é já
aqui que vamos estabelecer uma ponte com a primeira parte da questão. Ora, é certo que a
CEDH não refere expressamente os direitos reprodutivos resultantes da fertilização in vitro,
mas, tal como referido pela professora num artigo sobre PMA, o próprio artigo 8.º CEDH
tem funcionado como um “berço de ‘novos’ direitos, ou de novas concretizações de
direitos antigos”.
Devemos neste âmbito atender sobretudo à noção de vida privada – o próprio Acórdão
vem dizer que a vida privada é um termo amplo que engloba aspetos da identidade física e
social de um indivíduo, o direito à autonomia e ao desenvolvimento pessoal, bem como ao
estabelecimento e desenvolvimento de relações com outros seres humanos e com o mundo
exterior, incorporando o direito ao respeito pelas decisões de se tornar ou não pai.
Assim, segundo a Dra. Luísa Neto, esta noção de vida privada “impõe a ligação com a
liberdade corporal que se define como a exclusão de toda a intervenção não consentida de
terceiro na vida física do indivíduo”, o que se relaciona, inclusive, com a contestação de
uma paternidade não desejada. É atendendo a isto que podemos afirmar que, embora na
CEDH não refira expressamente direitos reprodutivos resultantes de procriação
medicamente assistida, o TEDH pôde pronunciar-se sobre a questão.
Por outro lado, no n.º 2 deste mesmo artigo 8.º temos uma cláusula que permite a
ingerência de autoridades públicas no exercício deste direito, nomeadamente para a
‘proteção dos direitos e liberdades de terceiros’. Ora, é percetível, de facto, a existência de
um conflito de direitos, dado que este direito ao respeito pela vida privada e familiar
protege não só a posição da Sra. Evans, como a do seu ex-companheiro, podendo falar-se,
nomeadamente, na oposição entre o direito (positivo) daquela a ser mãe biologicamente
relacionada e o direito (negativo) deste de não querer ser o progenitor.
A verdade é que este conflito é tal que temos duas posições completamente antagónicas,
pelo que satisfazer o interesse de um significaria a frustração total do interesse de outro.
Neste âmbito, pese não se vá agora fazer um grande desenvolvimento, discute-se se se
deverá tratar o caso como uma ingerência do Estado no direito da requerente ou se se trata
aqui do cumprimento de obrigações positivas do Estado – certo é que a consagração e
efetivação deste direito requer do Estado mais do que um mero dever de abstenção, mas
também obrigações positivas, de intervenção no sentido da proteção dos direitos
garantidos pelo artigo 8.º CEDH.
Não obstante, citando o meu colega Francisco Godinho “as medidas positivas exigidas
aos Estados (…) não devem traduzir-se num fardo insuportável, devendo ressalvar-se um
justo equilíbrio entre o interesse geral e o interesse do indivíduo”. E esta referência ao
interesse geral faz aqui sentido, na medida em que se denota, a par dos interesses
particulares, outros interesses públicos, tais como a defesa do primado do consentimento e
a promoção da clareza e certeza jurídica.
Neste âmbito, não houve, dentro do TEDH, unanimidade, sendo que 4 juízes vêm, em
primeira linha, invocar a violação do princípio da proporcionalidade – de facto, a meu ver,
pese embora a medida tomada fosse necessária e adequada, não parece que a dimensão da
não excessividade fosse cumprida, uma vez que a decisão de J. de não se tornar pai naquela
situação implicaria uma eliminação absoluta e definitiva da pretensão da requerente de ter
um filho geneticamente associado.
Por fim, a requerente refere a existência de um fator discriminatório entre mulheres com
capacidade para conceber naturalmente e mulheres que, como ela, tinham a necessidade de
assistência médica para tal, referindo que enquanto ela estava sujeita à ‘vontade do dador’,
as primeiras não se sujeitavam a qualquer controlo sobre os embriões que se desenvolviam
desde o momento da fertilização.
Diga-se só, que, mais uma vez, não houve aqui uma opinião unânime e que, a meu ver,
Natallie poderia ter invocado um forte argumento de discriminação em razão do sexo ao
abrigo do artigo 14.º CEDH, uma vez que as tecnologias de reprodução medicamente
assistida parecem, hoje, prejudicar a mulher (argumento de Ana Gabriela Ferreira
Rocha – in. O Congelamento de Embriões: o caso Evans no TEDH)
TEXTO DE: MARIANA CRUZ
TEDH, Evans c. Reino Unido, 10 de abril de 2007 (privacidade, autonomia pessoal,
decisão procriativa)
Questão para discussão: Considerando que a CEDH não refere expressamente direitos
reprodutivos resultantes de procriação medicamente assistida como a fertilização in vitro,
como pôde o TEDH pronunciar-se sobre a questão? Qual o fundamento normativo para
discussão da pretensão da Sra. Evans?
Resposta: Direito à vida e saúde reprodutivas, podendo incluir o direito ao planeamento
familiar, a utilizar métodos contracetivos, a ter acesso a serviços de saúde reprodutora, etc.
A procriação medicamente assistida pode ser inserida dentro deste termo e é um conjunto
de técnicas e tratamentos médicos destinados a favorecer a gravidez em caso de problemas
de fertilidade masculina, feminina ou ambos.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
Art. 14º - O TEDH considerou não ser necessário apreciar a questão do ponto de vista do
artigo 14.º da CEDH, ou seja, determinar se permitir a revogação do consentimento para a
utilização de embriões obtidos no âmbito de FIV implicava ou não uma discriminação das
mulheres que deles dependam para ter filhos biológicos
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
Em suma, a proteção dos direitos fundamentais tem de levar em conta a realidade de
pluralismo social, normativo, cultural das nossas sociedades, favorecendo uma abordagem
pluralista assente no diálogo entre sistemas e níveis de proteção e um modelo
“descentralizado” e “dialético” de guarda dos direitos, que tem nos tribunais, mas não
apenas nestes, instâncias fundamentais de concretização. O impacto da jurisprudência do
TEDH na esfera interna dos Estados Membros deve ser sublinhado, não apenas pela via
do cumprimento interno das decisões do TEDH, mas igualmente pela via da influência que
a jurisprudência de Estrasburgo possa, dada a prática de diálogo interjurisprudencial, ter na
conformação dos ordenamentos jurídicos nacionais, ainda que modelado pelo sistema de
relevância da Convenção no direito interno e no sistema de fontes.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos tem como objetivo claro a proteção dos
direitos fundamentais, mas, desde a data da sua aprovação em 1950, foi sendo confrontada
com novos desafios na sua aplicação e interpretação, colocados pela evolução das ciências e
da sociedade. Em especial no contexto do desenvolvimento da biomedicina e da bioética, o
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem sido confrontado com inúmeras questões
relativas aos direitos reprodutivos, como acontece no acórdão em questão, relativamente à
procriação medicamente assistida.
Estas realidades podem ser enquadradas no art. 8º da Convenção, relativo ao respeito pela
vida privada e familiar. Neste como noutros domínios, o artigo 8.º tem funcionado como
berço de “novos” direitos ou das suas novas concretizações, como referido pela própria
professora.
No caso Evans c. Reino Unido, a Sra. Evans recorreu à fertilização in vitro com o seu então
companheiro, antes de ter os seus ovários removidos devido a um cancro. No entanto,
quando a relação terminou, o seu companheiro revogou o consentimento para o
armazenamento e utilização dos embriões que tinham sido gerados, o que determinava a
sua destruição de acordo com a lei inglesa. A Sra. Evans invocou perante o tribunal uma
violação dos artigos 2º, 8º e 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, dizendo
que esta disposição legal negava o direito à vida dos seus embriões, interferia com o seu
direito à vida privada e impedia-a de ter filhos biológicos, relacionando-se isto com uma
discriminação baseada na sua incapacidade face a mulheres que não necessitariam de
recorrer à fertilização in vitro para ter filhos.
O Tribunal decidiu que o art. 2º não seria aplicável, considerando que não estava em causa
o direito à vida dos embriões, dado que a determinação do momento em que iniciava a vida
pertencia aos Estados-Membros e não havia consenso europeu nesta matéria. Segundo a lei
inglesa, um embrião não é titular de interesses e não pode reivindicar nem ver reivindicado
em seu nome o direito à vida. Considerou também que não era necessário apreciar a
questão do ponto de vista do art. 14º, opinião criticada pela doutrina, que afirma que a
igualdade formal que foi aplicada ignora as várias situações e as suas consequências no caso
da falta de consentimento de uma das pessoas, em geral, e no caso da Sra. Evans
particularmente.
Este caso prende-se, assim, com o direito da requerente ao respeito pela vida privada,
previsto no art. 8º da Convenção. O conceito de vida privada é bastante amplo e inclui,
entre outros, o respeito pelas decisões de vir ou não a ser progenitor.
A questão que se levanta é saber se existe uma obrigação positiva para o Estado de
assegurar a uma mulher no papel da requerente a possibilidade de prosseguir o tratamento
independentemente ou apesar da revogação do consentimento pelo seu ex-companheiro,
contrariamente ao que era permitido pela Lei de 1990, o Human Fertilisation and Embryology
Act, onde está consagrado um regime jurídico muito detalhado nesta matéria. O Tribunal
entendeu estar perante um caso com uma grande margem de apreciação e onde não havia
consenso entre os Estados, seja quanto à decisão de regular ou não a FIV, seja quanto aos
detalhes da respetiva disciplina normativa. A Lei de 1990 obriga todas as clínicas de
fertilização a explicar a quem inicia o tratamento que todo o dador tem a liberdade de pôr
termo ao processo a todo o tempo, antes da implantação e, caso haja revogação do
consentimento, a clínica deve destruir os embriões que foram gerados.
O Tribunal confirmou que a norma permitia a retirada do consentimento pelo ex-
companheiro da requerente e que esta realizava uma ponderação justa dos interesses, ao
abrigo do art. 8º. Considerou que o facto de a regra ser absoluta, não atendendo às
circunstâncias do caso, protegia a dignidade da pessoa humana e a liberdade da vontade,
bem como a segurança jurídica, não deixando a decisão sujeita a uma abordagem casuística.
Assim, entendeu que o direito da requerente ao respeito pela sua decisão de ser mãe
geneticamente não devia prevalecer sobre o direito contrário do seu ex-companheiro.
Podemos também levantar a questão de saber se o Parlamento inglês excedeu ou não a
margem de apreciação que lhe está conferida nos termos do art. 8º. Ao consagrar na Lei de
1990 regras claras e precisas, de que o casal tinha conhecimento e com que consentiu, o
Tribunal defende que o Reino Unido não excedeu a sua margem de apreciação nem
perturbou o justo equilíbrio exigido pelo artigo, pelo que não houve violação da
Convenção. Alguns dos juízes do Tribunal discordaram desta decisão, considerando que
tinha havido uma interferência desproporcionada do Estado no direito da requerente,
afirmando ainda que este deveria ter prevalecido sobre o do sue ex-companheiro. A fixação
na lei de “linhas intransponíveis”, citando o acórdão, pelo Estado não permitiram ter em
atenção os contornos desta situação em especial, impedindo um equilíbrio justo dos
interesses.
Para os juízes que ficaram vencidos, o reconhecimento de uma margem de apreciação ou
de um consenso não devia impedir o Tribunal de exercer o seu controlo sobre a
ponderação de interesses realizada nos Estados, a seu ver feita de forma desadequada,
sobretudo quando estão em causa interesses individuais, dando prevalência a considerações
de ordem pública. Na sua opinião, uma norma que, por um lado, reconhece a uma mulher
o direito de ter um filho geneticamente relacionado consigo, mas, por outro, a priva de
voltar a estar nessa posição, causa-lhe graves problemas físicos e morais de tal forma
desproporcionados que se tornam incompatíveis com o artigo 8.º e com a dignidade
humana e a autonomia protegidas pela Convenção.
Concluindo, o fundamento normativo que serviu de base à pretensão da requerente
relaciona-se, principalmente, com o art. 8º e com o amplo conceito de “vida privada” que
ele apresenta. Em matéria de procriação medicamente assistida, que exige uma sensibilidade
ética e social mais elevada, é comum a ausência de consensos entre os Estados Membros, o
que faz com que geralmente lhes seja reconhecida uma ampla margem de apreciação – isto
pode ter efeitos tanto positivos como negativos nas suas decisões, como se viu pela
discordância neste caso.

TEXTO DE: MARIA FRANCISCA PEREIRA


TC, Acórdão no 465/2019 (gestação de substituição)
Questão para discussão: Em que medida a fixação de limites à revogação do
consentimento pela gestante (a) afeta direitos fundamentais e (b) de forma
desproporcionada?

Resposta: Para responder a esta questão, importa começar por referir que o
consentimento da gestante cobre um significativo período de tempo, portanto, a aceitação
do contrato de gestação de substituição por parte da gestante não garante necessariamente
a continuidade do seu consentimento durante todo o tempo de execução do contrato.

A gestante pode pretender revogar o seu consentimento por diferentes motivos:

➢ Não querer levar a gestação até ao fim (e nesse caso realiza uma IVG enquanto
legalmente permitida)
➢ Pretender assumir o projeto parental

Direitos Fundamentais em causa:

1. O direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o


princípio da Dignidade da Pessoa Humana:

A participação no processo de gestação de substituição, enquanto consentido pela gestante,


reflete o exercício do direito ao desenvolvimento da personalidade, à luz do art. 26º
nº1. No entanto, a partir do momento em que a gestante não consinta, o processo deixa de
ser uma exteriorização da sua personalidade, passando aliás a ser atentatório da mesma e da
própria dignidade da gestante- e aqui importa destacar o art. 67º nº2 alínea e) da CRP, que
exclui de forma clara as formas de PMA lesivas da dignidade da pessoa humana.

Apesar de os beneficiários terem o direito a constituir família, a verdade é que não parece
admissível, do ponto de vista constitucional, que estes procurem assegurar o interesse que
têm em exercer esse seu direito às custas da dignidade da gestante, instrumentalizando-a.
Portanto, os beneficiários não têm um direito a ver tal direito fundamental concretizado
através da gestação de substituição, mas tão só um interesse (não parece, portanto, que
esteja em causa uma situação de conflito, e, por conseguinte, não será constitucionalmente
admissível a restrição do direito ao livre desenvolvimento da personalidade da gestante,
considerando que não está a conflituar com nenhum outro direito).

Assim sendo, percebemos que a fixação de limites à revogação do consentimento pela


gestante afeta o seu direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado à luz do
princípio da dignidade da pessoa humana, sendo que restringe de forma desproporcionada
este direito (atendendo ao art 1º e 26º N1, em conjugação com o art 18º n.2 CRP).
2. Direito a Constituir Família:
Nos termos do art. 8º nº 7 da LPMA determina-se que "a criança que nascer através do
recurso à gestação de substituição é tida como filha dos respetivos beneficiários”.
Não obstante, e como já referi, a gestante poderá pretender assumir o projeto parental e
exercer o seu direito a constituir família. Mas acontece que o facto de estar prevista a
irrevogabilidade do consentimento após o início dos tratamentos de PMA (e a própria
regra especial de filiação) fazem com que, caso a gestante de substituição pretendesse
assumir o projeto parental, tal não lhe fosse permitido - sendo assim restringido o seu
Direito a Constituir Família.
Não podemos deixar de considerar que, apesar do vínculo contratual que é criado, deve
então admitir-se que a gestante possa revogar o seu consentimento até ao momento da
entrega da criança (de forma a assegurar-se o respeito pelo seu direito a constituir família e
pelo direito ao desenvolvimento da personalidade).
Evidentemente que admitir a revogabilidade do consentimento pela gestante até à entrega
da criança potenciará um concurso entre projetos parentais (e como apenas será possível a
concretização de um deles, teremos uma situação de conflito entre o direito a constituir
família da gestante e o direito dos beneficiários).
Por estarmos num caso de conflito de Direitos Fundamentais admite-se a possibilidade de
uma restrição, desde que sejam cumpridos os requisitos previstos no art 18º nº2 CRP.

De acordo com o art. 3º nº 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança “a partir do nascimento, o


interesse da criança deve ser o principal critério de todas as decisões que sejam tomadas em relação ao destino
da mesma”. Isto só será possível através de uma avaliação casuística – portanto, não deverá
ser previamente estabelecida a prevalência absoluta de nenhum dos projetos parentais.

No entanto, considerando que esta solução da avaliação casuística atendendo ao interesse


da criança ainda não foi consagrada, percebemos que o direito da gestante a constituir
família estará a ser restringido de forma desproporcionada (atendendo ao art 36º n.º 1, em
conjugação com o art 18º nº 2).
A título de conclusão: o facto de não se admitir a revogabilidade do consentimento da
gestante até à entrega da criança, mas tão só até ao início dos Tratamentos de PMA, não
respeita o princípio da proporcionalidade previsto no art 18º nº 2, restringindo
excessivamente os direitos fundamentais previstos nos artigos 26º n.1 e 36º n.1 CRP.
De acordo com o próprio TC “a revogabilidade do consentimento inicialmente prestado será a única
garantia de que o cumprimento das obrigações específicas de cada fase daquele processo continua a ser
voluntário e, por isso, a corresponder ao exercício do direito ao desenvolvimento da personalidade”.

Apesar de o Tribunal na sua apreciação focar essencialmente estes dois direitos que referi, a
meu ver existem outros direitos e aspetos que poderão estar a ser afetados por esta
limitação à revogabilidade do consentimento pela gestante:
• Liberdade (prevista no art 27º CRP)
• Direito ao arrependimento: sendo que nos termos do art 81º n.2 do Código Civil a
limitação voluntária de direitos de personalidade, quando lícita, é sempre revogável.
• A questão da autodeterminação em matéria reprodutiva.

TEXTO DE: MIGUEL MARTA


TC, Acórdão no 465/2019 (gestação de substituição)
Questão para discussão: Em que medida a fixação de limites à revogação do
consentimento pela gestante (a) afeta direitos fundamentais e (b) de forma
desproporcionada?
Resposta: Contrato de gestação de substituição – possibilidade de a gestante revogar o
consentimento a todo o tempo; análise dos princípios e direitos em conflito; restrição de
direitos fundamentais com recurso ao princípio da proporcionalidade. Qual os direitos
afetados, gestante, beneficiários, criança.
Princípios e direitos – Princípio da legalidade, princípio da liberdade e autodeterminação,
princípio da igualdade, direito a saúde, direitos de personalidade, desenvolvimento,
liberdade de constituir família.
Interesses conflituantes e afetados - dos beneficiários, da gestante, da criança?

Neste caso em análise, tive como ponto de partida a declaração de inconstitucionalidade do


TC, pois o mesmo entendeu existir uma violação clara no direito ao desenvolvimento da
personalidade, de acordo com o princípio da dignidade humana e o direito de constituir
família, por entrar numa restrição excessiva dos preceitos constitucionais e desde logo, o
princípio estabelecido no artigo 1 da CRP, o princípio da dignidade humana e outros
direitos pessoais como o direito a identidade pessoal, desenvolvimento da personalidade, e
por outro lado, a reserva da intimidade a preservação da identidade genética, art.º 26.º CRP
e direito de constituir família nos termos do art.º 36.º CRP.
E isto porquê? Por o TC ter entendido que ao permitir a revogação do consentimento dado
pela gestante até ao início de tratamentos de PMA e não até a entrega aos beneficiários da
criança assim gerada, diminuíam os direitos da gestante no que diz respeito à dignidade da
pessoa humana e ao livre desenvolvimento da personalidade desta, que ficava impedida de
revogar o consentimento e consequentemente não assegurava o seu direito à interrupção da
gravidez.

É assim que se coloca a questão neste problema: de e em que medida com a fixação de
limites à revogação do consentimento da gestante vamos então afetar direitos
fundamentais. De facto, e nas últimas décadas, temos assistido a um aumento crescente do
recurso da procriação medicamente assistida e, mais recentemente, da gestação de
substituição. A Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto, admitiu no ordenamento jurídico
português o acesso à Gestação de Substituição, ainda que a título excecional e em situações
específicas de infertilidade, com o intuito de alterar o paradigma de uma sociedade que, até
então, criminalizava permanentemente qualquer modalidade de gestação por conta de
outrem. A gestação de substituição é vista como um mecanismo disponível para mulheres
com problemas associados ao órgão reprodutor, e pode ser entendida como uma mulher
solidária e com um nobre espírito altruísta, se dispõe a suportar uma gravidez por conta de
outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da
maternidade. Como seria de esperar, a aprovação do referido diploma traz à tona diversas
questões de cariz ético, social e jurídico. Vulgarmente conhecida como “barrigas de
aluguer”, o legislador optou pela utilização do termo “gestação de substituição”, como
referência a conduta da mulher que, mediante a celebração de um contrato elaborado e
supervisionado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA),
“se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o
parto, renunciando todos os poderes e direitos próprios da maternidade”. Isto posto que
neste contrato obrigacional a gestante ficará obrigada não só a um facere, num primeiro
momento - através do suportar da gravidez, como também a um dare - entrega da criança
aos beneficiários, após o parto.

Sabemos que as técnicas de PMA estão alicerçadas em princípios fundamentais, como é o


caso do princípio da subsidiariedade, não sendo por isso um método alternativo à
reprodução natural para suprir caprichos pessoais, uma vez que apenas permite a sua
admissibilidade nos termos do art.º 8. ° n.º 2 da LPMA, isto é, em “casos de ausência de
útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a
gravidez da mulher, bem como em situações clínicas que o justifiquem”.
Por outro lado, o n.º 3 do referido preceituado – então, no artigo 8 número 3 LPMA -
introduz-se outra limitação, ao consagrar que “a gestação de substituição só pode ser
autorizada através de uma técnica de procriação medicamente assistida com recurso aos
gâmetas, de, pelo menos, um dos respetivos beneficiários”.
Estabeleceu também que “todos aqueles que, por alguma forma, tomarem conhecimento
do recurso a técnicas de PMA, incluindo nas situações de gestação de substituição, ou da
identidade de qualquer dos participantes nos respetivos processos, estão obrigados a
manter sigilo sobre a identidade dos mesmos e sobre o próprio ato da PMA” – número 1
do art.º 15.º da LPMA. A celebração do contrato de substituição, é, certamente uma
manifestação do indivíduo no exercício do seu poder de autodeterminação, quando age de
forma livre com o intuito de alcançar interesses próprios, tendo como alicerce a liberdade
contratual, art. 405. Código Civil, ainda que esta esteja sujeita a certas limitações, dado que,
como sabemos, o regime da liberdade contratual comporta algumas restrições,
nomeadamente, quando estamos diante de negócios jurídicos que são contrários à ordem
pública e aos bons costumes, nos termos do art.º 280.º do CC.
Nesse sentido, poderíamos desde logo questionar que tipo de contrato que se forma no
âmbito da gestação de substituição, e qual o objeto do negócio jurídico. A meu ver, é
inconcebível enquadrar o contrato de gestação de substituição no âmbito dessas
modalidades, por entender que uma criança não pode ser objeto de qualquer negócio
jurídico, nos termos do art.º 66.º do CC e, como tal, não devemos falar de “transferência de
propriedade”, por se tratar de um ser humano, mas esta é só uma das questões que aqui se
levanta.
Assim, nada invalida que a gestante como ser humano que é revestida de vontades e
desejos, que estão em constante mutação, não esteja imune a eventuais alterações, posto
que com a gestação de substituição não se pode excluir por completo a hipótese de uma
das partes mudar a sua posição/vontade, antes ou depois do parto. É nesse sentido que
falamos em direito ao arrependimento, correspondendo ao direito das partes em mudarem
de opinião daquela em que se vincularam.
Dito isto, consideramos haver um justo fundamento para concluir pela invalidade do
acordo de gestação de substituição, não só pela sua contrariedade com a ordem pública,
mas também na medida em que a indecisão dos contraentes e posterior revogação do
consentimento é suscetível de colocar em risco o destino daquela criança.
Para Oliveira Ascensão, “a gestação provoca por natureza uma relação entre a gestante e o
ser que cresce dentro dela, levando a laços de afeição profundos”. Ora, tal conexão pode
ser suscetível de modificar também o consentimento inicialmente prestado pela gestante,
fazendo com que esta queira manter a gravidez, mas como um projeto parental próprio e
não em benefício do casal contratante.
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Aliás, o próprio legislador reconheceu a influência da gestante durante todo o processo de
gestação, bem como o papel importante que esta desempenha para o feto, consagrando que
no âmbito do consentimento, se devem conter informações quanto ao “significado da
influência da gestante de substituição no desenvolvimento embrionário e fetal”, como por
exemplo, a epigenética, conforme resulta do art.º 14.º n.º 6 da Lei da PMA. Por outro lado,
também nada menciona quanto a influência que a afeição ao feto pode desenvolver sobre a
própria gestante. Por sua vez, o casal beneficiário também pode, após o início do processo
terapêutico, desistir do seu projeto parental, cujas razões podem ser de naturezas diversas,
sendo que existe um completo vazio quanto ao procedimento a ser adotado nesta situação.
Deste modo, o TC entendeu que obrigar a gestante de substituição a cumprir forçosamente
o contrato, quando esta já não pretende participar do projeto parental em que se vinculou,
resultaria na sua instrumentalização da mulher e no seu direito à autodeterminação e
dignidade humana, pelo que entendeu ser fundamental “acautelar a permanência de tal
vontade ao longo de todo o processo, o que só é possível mediante a admissão da livre
revogabilidade do consentimento da gestante até ao cumprimento integral de todas as
obrigações essenciais do contrato de gestação de substituição”.
Podemos dizer ainda, que relativamente à desproporção, e comparando as expectativas dos
beneficiários, protegidas pela irrevogabilidade do consentimento da gestante, com o
sacrifício do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade da gestante,
determinado por tal irrevogabilidade, os inconvenientes e frustrações dos beneficiários não
justificam a instrumentalização da gestante, em ordem a evitá-los; pois a verificar- se tal
instrumentalização, seria violado o direito fundamental da gestante, relativo ao princípio da
personalidade e da dignidade da pessoa humana.

TEXTO DE: SOFIA FERREIRA


TC, Acórdão n.º 465/2019 (gestação de substituição)
Questão para discussão: Em que medida a fixação de limites à revogação do
consentimento pela gestante (a) afeta direitos fundamentais e (b) de forma
desproporcionada?
Resposta: O acórdão 465/2019 vem declarar a inconstitucionalidade das normas que
consagram a possibilidade de revogação do consentimento até ao início dos processos
terapêuticos de PMA, por violação do direito ao livre desenvolvimento da gestante (artigo
26º/1 CRP), interpretado à luz da dignidade da pessoa humana, e do direito a constituir
família (artigo 36º CRP) [havendo uma restrição excessiva dos mesmos à luz do artigo
18º/2].
Os referidos direitos conflituam com o direito a constituir família, por parte dos
beneficiários.
A questão central sobre a qual versa o acórdão em análise, é a revogação do consentimento.
Podemos dizer, desde logo, que o consentimento é um pressuposto essencial para a
formação do contrato de gestação, sendo este um negócio jurídico unilateral que tem de ser
prestado por ambas as partes.
A gestante, tal como os beneficiários, depois de prévia e devidamente informados, por
escrito (dever de informação) – relativamente a todos os benefícios e riscos conhecidos
resultantes da utilização das técnicas de PMA, bem como das suas implicações éticas,
sociais e jurídicas e, para além disso, relativamente ao significado da influência da gestante
no desenvolvimento embrionário e fetal – prestam o seu consentimento:
1. A gestante consente numa restrição continuada de direitos fundamentais –
integridade física, direito à saúde, direito a constituir família;
2. Os beneficiários consentem na recolha do material genético necessário para a
concretização da gestação de substituição e à transferência uterina do embrião
criado.
Vemos, desde logo aqui, a assimetria existente no consentimento prestado por ambas as
partes.
A gestante envolve-se num projeto parental, que não é próprio, de modo a satisfazer o
desejo dos beneficiários em ter uma criança sua, por puro altruísmo. Revela aqui um
espírito de solidariedade ativa para com os beneficiários.
Contudo, podemos afirmar que a intervenção no projeto parental alheio não traz apenas
benefícios para os beneficiários, trazendo também para a gestante, uma vez que ela atua
num projeto de vida próprio exprimindo assim a sua personalidade. Há aqui uma “elevação
da gestante de substituição, perante si mesma e os beneficiários e (…) perante o círculo dos
seus mais próximos”.1
Esta é, portanto, uma forma de exercício do seu direito ao livre desenvolvimento da
personalidade (consagrado constitucionalmente no artigo 26º/1, desde a revisão
constitucional de 1977), sendo assim esta ação vista como “exercício da liberdade de
exteriorização da personalidade”.2
Pode suceder, no entanto, que, a gestante, quer por insuficiência da informação prestada
inicialmente, quer pela alteração superveniente e imprevisível da sua vontade em razão de
vicissitudes ocorridas durante a gestação ou parto (porque, como sabemos, a gravidez é um
processo dinâmico e imprevisível, que varia de mulher para mulher), pode alterar a sua
intenção de participação naquele projeto parental alheio.
A gestante pode desistir deste projeto por duas razões:
1. Pode não querer levar a gravidez até ao fim, realizando uma interrupção
voluntária da gravidez
Neste caso, temos com conflito de direitos entre o direito ao livre desenvolvimento
da pessoa, interpretado à luz da dignidade da pessoa humana, com o direito a
constituir família dos beneficiários.
A partir da análise da LPMA, vemos que a lei não consagra a possibilidade de a
gestante, por si só, e sem consequências indemnizatórias, decida abortar, nas

1
Acórdão 225/2018
2
Acórdão 225/2018
situações em que a mesma se encontra legalmente garantida, nos termos do artigo
142º/1 do Código Penal.
A decisão de interromper a gravidez deve caber sempre, única e exclusivamente, à
gestante, devendo aqui prevalecer o direito a dispor do próprio corpo sobre os
direitos dos progenitores.
Da mesma maneira que não podem ser exigidas indemnizações à gestante. As
indemnizações poderiam consistir num condicionamento à revogação do
consentimento, não garantindo assim que a atuação da gestante no processo fosse
completamente livre e voluntária.
2. Pode querer levar a gravidez até ao fim, mas realizar um projeto parental próprio
Aqui temos um concurso positivo de pretensões quanto à parentalidade da criança.
Esta situação já é distinta da mencionada anteriormente, na medida em que temos a
vontade de realização de um projeto parental da gestante que concorre com o dos
beneficiários.
Há aqui um conflito entre o direito a constituir família da gestante e dos beneficiários.
A solução, neste caso, não pode deixar de ter em conta que temos uma terceira parte, a
criança. Portanto, a solução passará por uma avaliação casuística que terá como critério o
superior interesse da criança.
Em ambos os casos, haverá uma frustração das legítimas expectativas dos beneficiários.
Contudo, se compararmos o peso destas legítimas expectativas dos beneficiários com a
restrição de direitos fundamentais da gestante, vemos que há uma manifesta desproporção,
dizendo-nos o tribunal constitucional no acórdão 225/2018, que “os inconvenientes e
frustrações dos primeiros não justificam a instrumentalização da segunda em ordem a
evitá-los”.
Portanto, é necessária a consagração da possibilidade de revogação do consentimento até
ao momento da entrega da criança, de modo a garantir a dignidade da pessoa humana da
gestante e a sua não instrumentalização.
Também os beneficiários poderiam desejar revogar o consentimento (por exemplo, em
casos de divórcio, doença incurável, morte de um deles, malformações do feto, doenças
fetais). Contudo, esta alteração da vontade não pode suceder no caso dos beneficiários,
desde logo devido às assimetrias das obrigações assumidas. Acrescentamos a isto o facto de
não poderem os beneficiários exigir que a gestante faça uma interrupção voluntária da
gravidez contra a vontade da mesma.
Depois de analisado tudo isto, concluímos que a lei, ao consagrar a revogação do
consentimento apenas até ao início dos processos terapêuticos de PMA, faz com que os
interesses dos beneficiários prevaleçam de modo absoluto. Isto poderá ter, como
consequência, em caso de arrependimento da gestante, a instrumentalização da gestante,
sendo esta vista apenas como um meio para atingir um fim, e não um fim em si mesma – o
que é contrário ao princípio da dignidade da pessoa humana, princípio basilar do
ordenamento jurídico português.
Em jeito de conclusão, cito Mariana Canotilho no seu voto de vencido, dizendo “O seu
consentimento (da gestante) – para ser, a todo o tempo, livre – não pode deixar de ser um
consentimento permanentemente renovado, em cada momento, dando-lhe o direito ao
arrependimento, ou seja, à revogação do consentimento até à entrega da criança aos
beneficiários.” Isto sob pena de estarmos perante uma restrição excessiva dos direitos da
gestante, nomeadamente o direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado à luz
da dignidade humana, e o seu direito a constituir família.

TEXTO DE: PAULA FERREIRA


TEDH, Pretty vs. Reino Unido, 29 de julho de 2002 (privacidade, suicídio assistido,
autonomia pessoal)
Questão para discussão: A Sra. Pretty invocou, em apoio da sua pretensão, entre outros,
o direito à vida e a proibição de tratamento degradante. Qual o entendimento do TEDH
sobre a relevância destes dois direitos no caso? E como caracteriza o Tribunal os
correspondentes deveres do Estado?

Resposta: O TEDH reiterou a importância do artigo 2º enquanto disposição basilar da


Convenção alegando impossibilidade de considerar uma vertente negativa do direito à vida,
em harmonia com a sua jurisprudência.

O direito à vida é, realmente um direito prioritário, caracterizado por Gomes Canotilho e


Rui Medeiros, enquanto “condição de todos os outros os direitos fundamentais”, é o bem
de ter e ser vida. Todos os outros direitos fundamentais existem com a função e na
derivação deste.

O Tribunal Europeu dispõe ainda que a vida humana, enquanto bem jurídico corporizado
em direito fundamental prioritário, beneficiando de regime de proteção alargado.
Impondo-se perante todos e também perante o Estado: “(a) não poder dispor da vida das
pessoas, a qualquer título que seja; (b) obrigação de proteger a vida das pessoas contra os
ataques ou ameaças de terceiros; (c) dever de abster-se de ações ou da utilização de meios
que criem perigo desnecessário ou desproporcionado para a vida das pessoas”. E caso haja
alegações de violação deste direito, deverão ser tomadas todas as diligências necessárias,
através de uma resposta a nível processual adequada com o objetivo de apurar e punir os
responsáveis.

No parágrafo 39 do acórdão, o Tribunal, interpreta o artigo 2o da Convenção, no sentido


de este não contemplar aspetos que tenham a ver com qualidade de vida, ou com as
escolhas que uma pessoa faz com a sua vida.

Logo, neste entendimento, não conferindo qualquer direito a morrer, o tribunal acaba por
declarar que não houve uma violação do artigo 2º da Convenção, como alegado pela
requerente.

Cumpre problematizar uma questão: o respeito pelo princípio da dignidade da pessoa


humana. O professor Vital Moreira, diz-nos que o “Direito à vida significa direito a viver,
mas não uma obrigação de viver em qualquer circunstância”, ou seja, 1 reconhecendo o
valor fundamental e indiscutível da vida, mas até que ponto não é ofensivo da dignidade da
pessoa humana obrigá-la a manter-se viva, contra a sua própria vontade, a vivenciar um
sofrimento intolerável.

E agora fazendo referência à Petição Pública da Morte assistida, que diz que “O direito à
vida faz parte do património ético da Humanidade e, como tal, está consagrado nas leis da
República Portuguesa. O direito a morrer em paz e de acordo com os critérios de dignidade
que cada um construiu ao longo da sua vida, também tem de o ser.”

A PROIBIÇÃO DO TRATAMENTO DEGRADANTE, encontra-se prevista no


artigo 3º da Convenção. No entendimento do Tribunal este artigo 3º, deve ser juntamente
com o artigo anterior, encarado como uma das cláusulas primordiais da Convenção,
consagrando um dos valores fundamentais das sociedades democráticas. Este último
caracteriza-se por ser um direito absoluto, que se traduz numa proibição universal, o que
quer dizer que não encontram justificação alguma na Convenção Europeia.

Este artigo consagra uma obrigação negativa aos Estados, a de se absterem de infligir danos
graves a pessoas na sua jurisdição. O Tribunal é claro, quando prevê que os Estados,
devem adotar medidas adequadas para impedir que as referidas pessoas sejam submetidas a
torturas ou a penas ou tratamento desumanos e degradantes, mesmo que sejam
administrados por particulares;

Do ponto de vista, da requerente, o sofrimento pela qual estava a passar, caracterizava-se


como um tratamento degradante, logo, era obrigação positiva do Estado protegê-la deste.
No entanto, o Tribunal entende que quando surgem neste artigo 3º, obrigações positivas,
as mesmas não são absolutas devendo ser interpretadas de forma a não impor às
autoridades encargos impossíveis ou desproporcionais.

E até agora, constatou-se que as obrigações positivas surgem em três situações, quando o
Estado tem o dever de proteger a saúde de uma pessoa privada de liberdade, onde o
Estado é obrigado a tomar medidas para garantir que as pessoas sob sua jurisdição não
sejam submetidas a tortura ou outro tratamento proibido nas mãos de particulares e
quando o Estado se proponha a tomar medidas em relação a um indivíduo que resulte na
aplicação de tratamento desumano ou degradante por outro. Nenhuma destas
circunstâncias foi relevante no caso da requerente.

Perante isto, o TEDH, no presente caso, acaba por afirmar que o sofrimento coberto pelo
artigo 3º, é aquele que “quando é, ou corre o risco de ser, exacerbado pelo tratamento, por
força de detenções, expulsão, ou outras para as quais as autoridades podem ser
consideradas responsáveis”. O TEDH, no Acórdão de Keenan v.UK definiu o tratamento
degradante, apontando para tratamentos suscetíveis de causar nas vítimas sentimentos de
medo, angústia e inferioridade de forma a humilhá-las e revoltá-las.

Portanto, no entendimento do Tribunal não existe qualquer obrigação positiva, nos termos
do artigo 3º, de forma a exigir ao estado que se comprometa a não processar o marido da
requerente no caso de ele a ajudar no seu suicídio.

Em modo de conclusão, neste caso assistimos a dois direitos primordiais da Convenção


Europeia dos direitos do homem, que se caracterizam por ser valores fundamentais de uma
sociedade democrática. Tanto o direito à vida, como a proibição da tortura, do tratamento
degradante, visam proteger os cidadãos, e a sua própria vida. Não obstante, é importante
refletir que numa sociedade democrática importa ter em atenção a dignidade da pessoa
humana, pessoa essa que pode ser responsável pelo fim da sua vida, e a decisão dos outros
não pode, substituir as suas intenções e vontades.
TEXTO DE: FILIPA LEMOS
TEDH, Pretty vs. Reino Unido, 29 de julho de 2002 (privacidade, suicídio assistido,
autonomia pessoal)
Questão para discussão: A Sra. Pretty invocou, em apoio da sua pretensão, entre outros,
o direito à vida e a proibição de tratamento degradante. Qual o entendimento do TEDH
sobre a relevância destes dois direitos no caso? E como caracteriza o Tribunal os
correspondentes deveres do Estado?
Resposta: Tanto o direito à vida como a proibição de tratamento degradante, consagrados
nos artigos 2.º e 3.º CEDH, respetivamente, são fundamentais para salvaguarda dos valores
essenciais das sociedades democráticas atuais, pelo que não devem ser violados, de modo
algum.

A Sra. Pretty entendia que o artigo 2.º protegia, não a própria “vida”, mas o “direito à
vida”. Dessa forma, deveria garantir-se um “direito a morrer”, que seria, não a antítese do
direito à vida, mas o seu corolário.

Nesta medida, afirmava que o mesmo artigo incluía o direito do indivíduo à


autodeterminação em relação às questões de vida ou morte, pelo que caberia a cada
pessoa, por si mesma, decidir se deseja ou não viver.
Na perspetiva da requerente, o artigo 2.º CEDH protege (ou deveria proteger) ambos os
direitos, tendo o Estado também essa obrigação positiva.

O TEDH reiterou, desde logo, o primado do artigo 2.º, enquanto disposição basilar da
Convenção, e enquanto “pressuposto fundante” de todos os demais direitos e liberdades
garantidos pela CEDH, os quais, sem este, não teriam sentido.

Da análise do artigo 2.º CEDH, o Tribunal determinou que surge uma dupla obrigação
para o Estado:
- Uma obrigação negativa, que se traduziria no dever de o Estado se abster da prática de
atos que, intencional e ilegalmente, possam resultar na privação da vida de alguém.
- Por outro lado, a obrigação positiva, que consistia na tomada as medidas necessárias
para a proteção da vida das pessoas sob a sua jurisdição.

De tal modo, o TEDH considerou que o artigo 2.º não poderia ser interpretado, sem
distorção da linguagem, como conferindo um direito diametralmente oposto ao direito à
vida (i.e., o direito de morrer), nem poderia criar o direito à autodeterminação de qualquer
indivíduo optar pela morte em detrimento da vida”

Ora, este entendimento do TEDH de que não pode derivar do artigo 2.º da Convenção um
direito à morte, quer com ajuda de terceiro, quer com recurso às autoridades públicas, é
confirmado pela Recomendação 1418 da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa,
que insta os Estados Membro a respeitar e proteger a dignidade dos doentes terminais ou
moribundos, e reconhece que a vontade de morrer destes não pode constituir uma
justificação legal para levar a cabo ações com intenção de provocar a morte.

Todavia, a Sra. Pretty argumentou ainda que a obrigação positiva decorrente do artigo 2.º
CEDH visava proteger os indivíduos de terceiros, nomeadamente o Estado e as
autoridades públicas, não deles próprios.
O TEDH admite que, em circunstâncias apropriadas, resulta do artigo 2.º uma obrigação
positiva, sobre as autoridades, que consiste na tomada de medidas preventivas para
proteger um indivíduo cuja vida está em risco, devido aos atos criminosos de outro
indivíduo ou, em certas circunstâncias particulares, contra si mesmo (cfr. foi apreciado no
Acórdão Perevedentsevy c. Rússia).

A este propósito, faz-se referência também ao caso Keenan c. Reino Unido, que admitiu que
poderia surgir, para as autoridades prisionais, a obrigação de proteger um prisioneiro que
tentou tirar a própria vida. Contudo, nesse caso, tal obrigação surgiu apenas porque ele era
um prisioneiro e, em virtude da sua doença mental, carecia da capacidade de tomar uma
decisão racional para acabar com sua vida.

Ou seja, esta situação é completamente diferente da situação da Sra. Pretty, que, não era
uma prisioneira, e possuía todas as suas faculdades mentais intactas.

Mas as queixas de Sra. Pretty centram-se principalmente no artigo 3.º CEDH.


A requerente considerou que a recusa do Director of Public Prossecutions de se comprometer a
não processar o seu marido, se ele a ajudasse a cometer suicídio, e a própria proibição penal
do suicídio assistido denunciavam tratamentos desumanos e degradantes pelos quais o
Estado era responsável.

A Sra. Pretty afirmou que o sofrimento que enfrentava era qualificado como tratamento
degradante e que, devido à sua doença, inevitavelmente, morreria de maneira angustiante e
indigna.

Ao não permitir o suicídio assistido, o Estado não estaria a protegê-la do terrível fim que a
aguardaria.

Entende-se que o artigo 3.º impõe aos Estados também uma dupla obrigação.
A obrigação negativa de não se infligir tratamentos ou penas desumanos e degradantes,
mas também a obrigação positiva de adotar medidas para proteger de tais tratamentos as
pessoas sob a sua jurisdição.

A obrigação negativa, no fundo é uma proibição, absoluta e universal e que, por força do
artigo 15.º/2 CEDH, é inderrogável, não lhe sendo admitidas quaisquer restrições ou
exceções, independentemente das circunstâncias em questão.

Isso já não acontece com a obrigação positiva. Esta deve ser interpretada de forma a não
impor às autoridades encargos impossíveis ou desproporcionados.
No caso da requerente, nenhuma das circunstâncias previstas foi relevante, visto que:
• não estava a ser maltratada por ninguém
• não se queixava da ausência de tratamento médico adequado
• não estava a ser intentada qualquer ação do Estado contra ela

Neste caso, a obrigação positiva invocada pela requerente seria a tomada de medidas
para protegê-la do sofrimento que teria de suportar, nos estágios finais da doença — e que
se traduziria no não sancionamento das ações destinadas a pôr fim à vida.

O TEDH considerou que o artigo 3.º deveria ser interpretado de modo a coincidir com os
objetivos fundamentais da CEDH, e em harmonia com o artigo 2.º CEDH, que não
confere aos indivíduos qualquer direito de exigir que o Estado permita ou facilite a sua
morte.

Portanto, o Tribunal entendeu que não derivava do artigo 3.º CEDH qualquer obrigação
positiva que exigisse ao Estado que concedesse uma imunidade para não perseguir
criminalmente quem pretendesse auxiliar outrem no suicídio, ou que providenciasse as
condições para a legalidade de qualquer outra forma de suicídio assistido.
Assim sendo, o TEDH pronunciou-se pela não violação dos artigos 2.º e 3.º CEDH, o que,
a meu ver, não foi uma decisão correta.

TEXTO DE: TATIANA MOREIRA


TEDH, Pretty vs. Reino Unido, 29 de julho de 2002 (privacidade, suicídio assistido,
autonomia pessoal)
Questão para discussão: Em que medida a proibição genérica ("blanket ban") de suicídio
assistido pode afetar o direito à reserva da vida privada e, mesmo, o direito a expressar
convicções? Analise a argumentação da Sra. Pretty e o entendimento expresso pelo
TEDH.

Resposta: Vamos então dividir a questão em duas partes, que coincidem com duas das
alegações de Pretty perante o TEDH: por um lado, a violação do Artigo 8º da Convenção
Europeia dos Direitos Humanos, quanto à reserva da vida privada e, por outro lado, a
violação do Artigo 9º da mesma convenção, quanto à liberdade de pensamento, religião e
consciência.
Quanto às alegações sobre o Artigo 8º devemos entender que este Artigo é a porta de
entrada, por assim dizer, de novos direitos que surjam no âmbito da evolução, tecnológica,
social, jurídica etc. Nessa medida, o Artigo 8º estende o seu âmbito de proteção a várias
realidades, nomeadamente, à disposição sobre o próprio corpo. Importava saber se, no
âmbito da disposição sobre o próprio corpo, era possível existir um direito a escolher como
viver no momento da morte, ou melhor dizendo, um direito a dispor sobre o próprio
corpo no sentido da sua degradação total. A jurisprudência R. vs. Reino Unido já tinha
apontado no sentido de sim, existir esse direito, tal como veio confirmar, mais, tarde a
jurisprudência Has. vs. Reino Unido, pelo que, de forma abstrata, sublinho, Pretty tinha um
direito à morte assistida com fundamento no Artigo 8º.
No entanto, este Artigo 8º admite restrições, nos termos do Nº2 do mesmo Artigo, se estas
forem previstas legalmente, tiverem uma finalidade social e democrática imperiosa e,
obedecerem ao princípio da proporcionalidade. A restrição do Artigo 8º pelo Reino Unido,
através do Suicide Act de 1961, foi fundada na proteção dos mais vulneráveis, isto é, aqueles
que não conseguem de forma livre, consciente e informada expressar, inequivocamente, a
sua vontade, bem como no potencial abuso de direito caso a proibição do suicídio assistido
fosse levantada, aludindo para problema da rampa deslizante que já se fazia sentir noutros
países. O TEDH considerou, também, proporcional a proibição do suicídio assistido, na
medida em que, a sua proibição total era a única idónea e não excessiva para a proteção dos
mais vulneráveis e, para prevenir o abuso de direito caso a proibição fosse levantada.
Quanto ao Artigo 9º, o TEDH esclareceu que nem todas as convicções ou opiniões, como
a de Pretty de acreditar no suicídio assistido, cabem no âmbito do Artigo 9º da CEDH. No
entanto, os argumentos de Pretty no âmbito do Artigo 9º da Convenção eram passiveis de
ser enquadrados no princípio da autonomia pessoal, que decorre já do Artigo 8º, pelo que o
Tribunal não considerou existir qualquer violação do Artigo 9º.
Assim sendo, e respondendo mais concretamente à questão colocada para esta aula, é
importante desde logo relembrar que abstratamente o suicídio assistido não é proibido pelo
Artigo 8º da Convenção, mas, através das possibilidades de restrição deste direito, grande
parte dos países proíbe totalmente qualquer pratica eutanásica ou assistência ao suicídio.
O TEDH deixou à discricionariedade dos Estados Membros da União a proibição ou
legalização destas páticas, por não haver consenso no espaço europeu. Apesar de em
jurisprudência mais recente, o TEDH enunciar as vantagens da legislação sobre a matéria, a
vontade política mantém-se reticente face ao fenómeno da rampa deslizante.
A mim parece-me que esta proibição total colide com aquela que tem que ser a
interpretação da dignidade humana, como princípio democrático fundamental, na medida
em que esta não pode ficar estagnada na interpretação histórica e, não pode de todo, tal
como a Professora Luísa Neto diz, ser um “conversation stopper” para estas questões.
A legalização ou despenalização de práticas eutanásicas e/ou do suicídio assistido apela aos
nossos sentidos mais profundos como humanos, cidadãos, e no nosso caso, juristas. Basta
problematizar a seguinte questão: Será mais digno para um humano mantê-lo num
sofrimento tal que a vida da pessoa se resuma a sobreviver mais um dia com o fundamento
de que são pessoas vulneráveis ou, cumprir a sua vontade dando-lhe uma morte sem
sofrimento, pacífica, tal como define a etimologia da palavra eutanásia?
Em jeito de conclusão, é necessário deixar de encarar a despenalização de práticas
eutanásicas e do suicídio assistido como conferir um direito a morrer. Pelo contrário, trata-
se de um direito ainda em vida, de decidir como passar os últimos momentos da vida, e
nada me parece reiterar mais a autonomia da pessoa, que caracteriza a dignidade humana,
que permitir a uma pessoa decidir sobre como passar os últimos momentos da sua vida. E
isto não descora quaisquer preocupações legitimas com o consentimento, como é obvio, na
medida em que é ele que garante a verdadeira realização da vontade e autonomia da pessoa.
Tal como a professora Luísa Neto teve oportunidade de dizer e, passo a citar “fazer uma
pessoa morrer de uma maneira que outros aprovam, mas que ele mesmo acredita ser uma terrível
contradição na sua vida, é uma forma de tirania devastadora e odiosa, precisamente porque a dignidade de
uma pessoa é normalmente relacionada com a capacidade de auto-respeito”.

TEXTO DE: TERESA FERREIRA


TEDH, Pretty vs. Reino Unido, 29 de julho de 2002 (privacidade, suicídio assistido,
autonomia pessoal)
Questão para discussão: Em que medida a proibição genérica ("blanket ban") de suicídio
assistido pode afetar o direito à reserva da vida privada e, mesmo, o direito a expressar
convicções? Analise a argumentação da Sra. Pretty e o entendimento expresso pelo
TEDH.

Resposta: O Caso Pretty V. Reino Unido foi concluído em julho de 2002, tendo a Sra.Pretty
falecido em maio desse mesmo ano, sem conhecer o veredito por parte do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). Apesar disto, a verdade é que este é um
acórdão incontornável na discussão da morte assistida, levantando questões jurídicas, bem
como de ordem ética, moral e social.
No âmbito da questão levantada pela Professora Anabela, cabe-me desenvolver as
interpretações diferenciadas por parte da Sr. Pretty e do Tribunal dos artigos 8º e 9º da
CEDH
Quanto ao artigo 8º da CEDH:
O direito à reserva da vida privada encontra-se previsto no artigo 8º da CEDH. - Este
protege um direito ao livre desenvolvimento e autodeterminação da pessoa. Admitindo que
a escolha de um indivíduo quanto ao modo de passar os momentos finais da sua vida é
ainda parte do ato de viver, tal como Lord Hope indica no próprio Acórdão, e que cada um
de nós tem o direito de exigir que a sua escolha seja respeitada, a proibição total do auxílio
ao suicídio não é desproporcionada, não sendo, também, arbitrária a lei que o estabeleça.
Para que possa, efetivamente, haver uma limitação do artigo 8º da CEDH é necessário
que essa ação levada a cabo esteja de acordo com a lei e que, simultaneamente, seja um ato
necessário e em prol da sociedade democrática. Tendo em conta esta ideia, o Tribunal
considerou, então, que a limitação do direito à vida privada e familiar, no caso em apreço, é
necessária e justificada para a proteção dos direitos de terceiros.
No cerne de cada direito fundamental verifica-se a existência de uma dimensão de
autodeterminação que se projeta num poder de disposição sobre as faculdades que o
integram ou de um autónomo direito geral de liberdade. Assim, podem-se configurar duas
hipóteses distintas, tal como indica a Dr. Benedita MacCrorie:
I. O direito à vida abrange um “direito à morte”, tratando-se esta opção ainda
uma forma de exercício do direito em questão;
II. O direito à eutanásia e ao suicídio assistido decorrem de um qualquer outro
direito, como por exemplo, o respeito pela vida privada e familiar, prevista
no artigo 8º da CEDH. – Este artigo tem sido interpretado de uma forma
ampla, abrangendo uma série de interesses individuais. A meu ver, na
definição do conteúdo deste direito abrange-se não só os aspetos relativos à
reserva da vida privada, bem como a própria liberdade da vida privada.
Um Estado-membro que assuma uma posição contrária à eutanásia e/ou ao suicídio
assistido, na minha opinião, está a restringir o artigo 8º do CEDH, razão pela qual, terá de
respeitar todos os requisitos necessários para que se possa verificar uma restrição destes
direitos.
Apesar disto, contrariamente, a Sra.Pretty acredita que este direito consagra um direito à
autodeterminação, que é acompanhado de um direito/faculdade de tomar decisões quanto
ao próprio corpo, bem como quanto ao que lhe acontece, assim sendo, neste direito, na
ótica da requerente, inclui-se o direito a definir quando e como se vai morrer.
Ainda assim, o Tribunal sublinhou que, na situação em questão, poderiam estar em causa as
exceções que se encontram previstas no nº2 do artigo 8º da CEDH. Na análise da
proporcionalidade da medida, o Tribunal determinou que uma margem de apreciação
deve ser deixada às autoridades nacionais, tal como indica a Dr. Benedita McCrorie, ainda
que essa decisão possa ser revista pelo Tribunal se for desconforme aos requisitos que a
Convenção impõe.
Neste âmbito, a argumentação das partes focou-se, fundamentalmente, na
proporcionalidade da interferência nesta esfera da vida da Sra. Pretty:
1. Segundo a Sra. Pretty – A impossibilidade de o seu marido a ajudar a cometer
suicídio estava a colocar, totalmente, de parte o facto de esta se tratar de uma adulta
capaz e livre de quaisquer pressões, que tomou um decisão totalmente informada e
voluntária quanto a esta matéria, não podendo ser tida como vulnerável.
2. O Tribunal – Não considerou que a Sra. Pretty se enquadrasse na categoria de
vulnerável. Apesar disto, considerou, de igual modo, considerou que quanto mais
sério seja a dolo/dano envolvido, mais pesará este na “balança” onde, por um lado,
se colocam considerações se saúde pública e segurança e, por outro lado, se coloca
o princípio da autonomia.
Artigo 9º da CEDH:
O artigo 9º da CEDH refere, em termos sumários, que todas as pessoas têm o direito ao
pensamento, consciência e religião.
No artigo 9º da CEDH, o Tribunal apresenta uma posição bastante concreta e sintética,
dado que estabelece que, apesar de as convicções da Sra. Pretty relativamente ao suicídio
assistido serem válidas e deverem ser respeitadas, estas não se incluem no lote de opiniões e
convicções que merecem proteção por parte deste artigo, dado que as suas pretensões não
se tratam da manifestação de uma religião ou crença. - Na verdade, o Tribunal defende que
o ponto de vista da requerente relativamente a esta matéria acaba, de certo modo, por
refletir as suas crenças relativamente ao princípio da autonomia, daí que se conclua que as
suas pretensões se tratam, verdadeiramente, de resquícios da alegada violação do Artigo 8º
da Convenção.
Do ponto de vista da requerente, o artigo 9º da CEDH protege o direito/liberdade de
pensamento. Na busca da Sra. Pretty pela ajuda do seu marido para cometer suicídio, a
requerente defende e, de certo modo, acabou por criar uma noção própria de suicídio
assistido. Posto isto, o DPP ao negar o seu pedido de não condenação caso o seu esposo a
ajudasse estava a interferir com o seu direito, não tendo em atenção o seu caso, em
particular.

TEXTO DE: MARIA JOÃO ANDRADE


TEDH, Carl Jóhann Lilliendahl v. Iceland, 12 de maio de 2020, n.º 29297/18
(Liberdade de expressão, discurso homofóbico, hate speech)

Questão para discussão: Que critérios utilizou o TEDH para considerar que, no caso em
apreço, a interferência com a liberdade de expressão, protegida pelo artigo 10.º CEDH, era
legítima?

Resposta: Antes demais importa mencionar que para o TEDH (Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos) o direito á liberdade de expressão é uma das bases de uma sociedade
democrática. Contudo o artigo 10.º da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos do
Homem) reconhece que o exercício desta liberdade implica deveres e responsabilidades,
podendo sofrer interferências.
A condenação do requerente claramente constituí uma interferência á sua liberdade de
expressão, pelo que é imperativo o TEDH determinar se esta é conforme á lei, se é
adequada e proporcional ás circunstâncias do caso, se tem como objetivo prosseguir
um fim legítimo (de acordo com artigo 10 nº2 CEDH), e se numa sociedade
democrática é necessária para alcançar esse mesmo fim.
Ainda que de forma breve, importa perceber a natureza do comentário feito pelo
requerente, sobretudo, se este comentário pode ser classificado como discurso de ódio
(“hate speech”).
O artigo 233 (a) do GPC, isto é, o artigo que o requerente é acusado de violar, claramente
diz que quem gozar, difamar ou ameaçar uma pessoa ou grupo de pessoas através de
comentários ou expressões de qualquer outra natureza por causa da sua orientação sexual
deverá ser condenado a pagar uma multa ou a uma pena de prisão até 2 anos.
O artigo não falar diretamente em discurso de ódio, contudo tendo em consideração os
instrumentos legais internacionais em que se inspirou (como a Convenção Internacional sobre
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial das Nações Unidas), e que este artigo foi
introduzido com o intuito de proteger a orientação sexual e a identidade de género, é
evidente que a conduta descrita pode ser considerada sinónimo de discurso de ódio.
Segundo a jurisprudência do tribunal podemos distinguir duas categorias de discurso de
ódio.
1. A primeira categoria de discurso de ódio é a mais grave, sendo que nestes casos o
TEDH considerou que o artigo 17.º da CEDH (abuso de direito) era de aplicar,
consequentemente está completamente excluída do campo de proteção do artigo
10º.

2. A segunda categoria engloba as formas menos graves de discurso de ódio. O


TEDH considera que esta não está totalmente fora do âmbito de proteção do
artigo 10.º da CEDH. Nesta categoria cabe não só o discurso que explicitamente
incite violência, mas também ataques através de insultos com vista a ridicularizar ou
difamar certos grupos da sociedade.

Assim como o Supremo Tribunal, o TEDH entende que o comentário do requerente cai
na segunda categoria, pois promove intolerância e ódio a pessoas homossexuais.
No entender do TEDH o critério da previsão legal implica que a interferência tenha base
legal na legislação doméstica (nacional), mas também que a lei em questão seja acessível e
que os seus efeitos sejam previsíveis.
O TEDH concorda com a aferição do Supremo Tribunal, de que o artigo 233 (a) do GPC
está escrito de forma clara o suficiente de modo a tornar a sua aplicação previsível no caso
concreto. Por isso mesmo concluiu que a interferência á liberdade de expressão do
requerente preenche o critério da previsão legal.
O artigo 233 (a) do GPC visa proteger o direito da reserva da vida privada e o direito de
desfrutar de forma plena dos direitos humanos, assim como pretende salvaguardar direitos
de grupos sociais que foram vítimas de discriminação. Entende então o TEDH que a
interferência cumpre o critério do fim legítimo previsto no artigo 10 nº2 da CEDH.
Artigo 10.º nº2 CEDH: O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades,
pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam
providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial
ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a
proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou
para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.
O TEDH reconhece que o Supremo tribunal ponderou bastante acerca dos interesses e
direitos em conflito (por um lado a liberdade de expressão do requerente, e por outro
direito á reserva da vida privada das pessoas homossexuais e direito á não discriminação em
função da identidade sexual).

O Supremo Tribunal considerou que a proteger grupos sociais contra ataques aos seus
direitos humanos era compatível com a tradição democrática da Islândia. Argumentou
ainda que o comentário era pouco ou nada relevante para criticar a decisão do Conselho
Municipal e que o seu conteúdo ofensivo era desnecessário para a participação do
requerente na discussão.
Note-se que o TEDH defende que a intolerância e preconceito visíveis no comentário não
parecem ter sido provocadas pela decisão do Conselho Municipal, isto é, pelo tópico da
discussão. Acrescentou que, no caso concreto, os interesses da vida privada em questão
eram manifestamente superiores á liberdade de expressão do requerente,
consequentemente, no quadro de uma sociedade democrática, a interferência á sua
liberdade era justificada e necessária para a combater a discriminação e ódio que o
comentário promovia.

O TEDH reforça que a discriminação com base na orientação sexual é tão grave como
discriminação com base na raça, nacionalidade e cor de pele. A verdade é que o requerente
não foi condenado a pena de prisão, embora o crime que cometeu preveja essa
possibilidade. Considero, assim como o TEDH, que a intromissão na liberdade do Sr.
Lilliendhal é adequada e proporcional á sua conduta.

Em suma, no caso em apreço o TEDH considera que a interferência á liberdade de


expressão é legítima uma vez que cumpre o critério da conformidade com a lei, é
proporcional e adequada, tem um fim legítimo e é necessária numa sociedade democrática.

TEXTO DE: MADALENA ALMEIDA


Acórdão TJUE, C-336/19, 17/12/2020 (abate ritual, proteção dos animais, liberdade
religiosa)
Questão para discussão: Havendo uma colisão entre a liberdade religiosa e a proteção do
bem-estar animal, que papel é desempenhado pelo princípio da proporcionalidade? E em
que medida se reconhece uma margem de apreciação estadual?

Resposta: Neste acórdão entra-se numa questão que tem vindo a ganhar cada vez mais
relevância, que é a proteção do bem-estar animal (que se trata de um princípio comunitário
consagrado no artigo 13º do TFUE, anteriormente protocolo nº 33, anexo ao Tratado que
institui a Comunidade Europeia e, indiretamente, no artigo 66º nº2 da CRP), sendo que
este acórdão se foca no momento do abate. Segundo o disposto no artigo 4º nº1 do
Regulamento (CE) número 1099/2009 do Conselho, relativo à proteção dos animais no
momento da occisão, um animal só pode ser abatido após atordoamento, sendo esta uma
forma de minimizar ao máximo o seu sofrimento.
A situação de conflito neste acórdão surge com base nas disposições de um decreto belga,
também sobre matéria de proteção dos animais e métodos de abate, que proíbe
expressamente o abate de animais sem atordoamento prévio. Isto entra em conflito com
certos rituais judaicos e muçulmanos tradicionais, que exigem que o animal esteja em
perfeita condição física no momento do abate. Isto levou a que considerassem esta norma
uma violação não só da arte liberdade religiosa, que é um direito consagrado no artigo 10º
da CDF e no artigo 41 nº1 da CRP, mas também do direito à igualdade e da não
discriminação (respetivamente artigo 20º e 21º CDF e 13º CRP).
Para resolver este tipo de situações em que estão em conflito direitos fundamentais e
princípios consagrados nos tratados da UE, é imperativo ter em conta o princípio da
proporcionalidade, porque só com ele será possível conciliar as exigências de cada um dos
lados e alcançar equilíbrio. Tamanha é a importância do princípio da proporcionalidade,
que este é tido em conta na própria elaboração de Tratados e regulamentos. Exemplo disso
é o próprio Regulamento 1099/2009 já referido. Este, no seu artigo 4º nº4 refere que os
requisitos previstos no seu n1 não se aplicam a animais que são objeto de métodos
especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos, desde que o abate seja
efetuado num matadouro”. Assim, vemos que a norma já respeitava os crentes islâmicos e
judaicos, tanto que lhes concedia esta exceção para que pudessem continuar a praticar a sua
religião.
Apesar disto, o que consta é que estas normas nem sempre são seguidas conforme o
planeado, chegando a ser interpretadas num sentido em que não se oponham a certas
regulamentações impostas por um Estado Membro. Novamente, o próprio Regulamento
1099/2009) salienta a necessidade de respeitar as disposições legislativas e administrativas e
os costumes dos Estados‑Membros, nomeadamente no que toca aos rituais religiosos ou
tradições culturais na hora de aplicar as políticas da União. No seu artigo 26º nº2 refere
mesmo que “os Estados Membros podem adotar disposições nacionais destinadas a
garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão do que as previstas
no regulamento, nomeadamente no domínio do abate e operações previstas no artigo 4
nº4”.
Permite-se assim uma margem de apreciação estadual, que é assegurada pelo princípio da
subsidiariedade, sobre o qual não se pode deixar de falar, sendo que está previsto no art5
do TUE juntamente com princípio da proporcionalidade. Como já se sabe, este princípio
existe de modo a garantir que a intervenção da UE nas competências que partilha com os
Estados membros seja feita de forma pertinente, concedendo aos Estados a liberdade de
aplicar normas da união europeia da forma que lhes seja mais eficiente, porque todos os
Estados são diferentes. Cada estado é diferente nas suas tradições, no povo que o constitui,
nas comunidades religiosas dentro de cada Estado, até nas formas de pensar e é
precisamente isso que se deve ter em conta ao apreciar um caso destes. Convém esclarecer
que esta subsidiariedade não pode ser desmesurada e deve ter sempre em vista a
salvaguarda ao máximo dos direitos fundamentais e princípios da União, especialmente
quando se trata de casos de conflito.
Por exemplo, em prol da salvaguarda do bem-estar animal, é possível limitar o exercício do
direito à liberdade de manifestação da religião, segundo o artigo 52º nº1 da CDF, na
medida em que seja necessário de modo a atingir objetivos de interesse geral. (neste caso o
bem-estar animal). Por outro lado, todas e quaisquer restrições impostas não devem
ultrapassar os limites do que é de facto necessário para garantir os objetivos pretendidos,
sendo que perante várias medidas possíveis se deve escolher a menos restritiva, que cause o
mínimo de inconveniência. Assim, o Tribunal entende que se uma regulamentação nacional
impõe a obrigação de atordoamento prévio do animal no abate ritual, mas ao mesmo
tempo prescreve que esse atordoamento seja reversível e não provoque a morte do animal
(através de processos como a eletronarcose), respeita o conteúdo essencial do artigo 10.° da
Carta e os requisitos previstos no artigo 52.°, números 1 e 3, da Carta, lidos em conjugação
com o artigo 13.° TFUE, atingindo deste modo uma conciliação entre as partes em
conflito.

TEXTO DE: PEDRO VARA


TC, Acórdão n.º 262/2020 (liberdade de informação e imprensa, direitos dos pais à
educação dos filhos, deveres estaduais de proteção das crianças)
1. A INVOCADA RESTRIÇÃO INCONSTITUCIONAL DO DIREITO DOS
PAIS A EDUCAR OS SEUS FILHOS SEM A INTROMISSÃO DO
ESTADO NA VIDA FAMILIAR:
Nos termos da recorrente, a medida resultante da interpretação normativa adotada traduz-
se numa limitação desnecessária e desproporcional do direito dos pais a educar os seus
filhos sem a intromissão do Estado na vida familiar, visto que a aplicação de outras
medidas alternativas seria igualmente eficaz para proteger os fins da medida, e seriam
menos restritivas do direito em questão. A vantagem marginal retirada da aplicação desta
medida não justifica o sacrifício dos direitos dos pais
2. O DIREITO DOS PAIS IMPLICA UM DEVER DE INTERVENÇÃO
MÍNINA DO ESTADO:
É necessário sublinhar que este

O tribunal acredita que esta argumentação não procede. Defende que a tese da recorrente
assenta na restrição de um direito cuja verificação não se confirma.
3. EM QUE CONSISTE O DIREITO DOS PAIS:
O direito de os pais educarem os seus filhos é expressamente reconhecido na Constituição,
no artigo 36º, nº5: «
Contudo, este não consiste verdadeiramente um direito individual. Trata-se de um “poder-
dever”, poderes atribuídos aos pais para serem exercidos de acordo com os interesses dos
filhos, no decorrer das suas relações familiares.
Como é salientado por Vieira de Andrade,
NÃO EXISTIU RESTRIÇÃO NO
ENTENDER DO TRIBUNAL.
Para que se verificasse uma restrição relevante daquele direito, a norma teria de afetar os
interesses do menor, a compressão do poder de educar dos pais não é suficiente.

Infelizmente,
nem sempre estão alinhados.
É de salientar que a norma em questão não desvirtua o primado dos pais na manutenção e
educação dos filhos, nem a prevalência da família na orientação do seu desenvolvimento.
4. O ESTADO INTERVÉM APENAS QUANDO HÁ SÉRIO RISCO DE OS
INTERESSES DA CRIANÇA NÃO ESTAREM DEVIDAMENTE
ACAUTELADOS
Contudo, esta conclusão não postula uma ausência de controlo de constitucionalidade da
opção legislativa em causa.

A função desempenhada pelos artigos 36º, nº5 e


67º, nº2 é subsidiária em relação ao desenvolvimento das crianças. Defende Rui Medeiros
que

Assim, mesmo verificando-se a restrição de um direito fundamental, o princípio da


proporcionalidade ou da proibição do excesso ainda é convocável para a discussão. O
princípio da proporcionalidade pode ser aplicável ao caso, enquanto princípio geral de
direito conformador dos atos do poder público, decorrente do princípio do Estado de
Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.

Com efeito, como foi afirmado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 187/2001, do
Plenário, ponto 15, se, no que diz respeito «às restrições a direitos, liberdades e garantias,

«o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de


limitação do poder público,
Efetivamente, «impõem-se, na realidade, limites resultantes da avaliação da relação entre os
fins e as medidas públicas, devendo o Estado-legislador e o Estado-administrador adequar
a sua projetada ação aos fins pretendidos, e não configurar as medidas que tomam como
desnecessária ou excessivamente restritivas». A afirmação do princípio da
proporcionalidade como princípio fundamental geral da ordem constitucional da República
Portuguesa, decorrente do princípio do Estado de direito democrático consagrado no
artigo 2.º da Constituição, limitando o poder público na sua liberdade de atuação mesmo
fora do âmbito do artigo 18.º, n.º 2, tem vindo a ser reafirmado pela jurisprudência do
Tribunal Constitucional.
Como referido no Acórdão n.º 651/2009, do Plenário:
«5. O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, enquanto princípio vinculativo das
ações dos poderes públicos, tem referência expressa no texto constitucional apenas em dois lugares: na parte
final do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, a propósito dos limites que devem ser observados pelas leis
restritivas de direitos, liberdades e garantias, e no n.º 2 do artigo 266.º, a propósito dos princípios
fundamentais que regem a atuação da Administração Pública.
No entanto, e como o tem afirmado o Tribunal, o princípio decorre antes do mais das próprias
exigências do Estado de direito a que se refere o artigo 2.º da Constituição, por ser consequência dos valores
de segurança nele inscritos.
Tendo assim a proibição do excesso uma sede material que se revela bem mais vasta do que aquela que
é coberta pelas suas referências textuais explícitas, natural é que ela possa ser invocada como parâmetro
constitucional em outras situações, que não apenas as referentes, nomeadamente, às leis restritivas de
direitos, liberdades e garantias. É que o princípio vale, não apenas como limite constitucional das ações do
legislador, mas como limite das acuações de todos os poderes públicos; e, quanto à função legislativa, não
vinculará apenas aquela que se cifrar em instituição de restrições aos direitos, liberdades e garantias. Como
os direitos fundamentais desempenham, no nosso ordenamento jurídico, também uma importante função
“valorativa” ou objetiva, por certo que o princípio poderá ser invocado como instrumento de ponderação
sempre que estiverem em causa “valores” jusfundamentais que entre si, objetivamente, conflituem. Ponto é,
no entanto, que se tenha demonstrado previamente que, ainda nessas situações, o legislador, não agindo no
âmbito da sua liberdade de conformação política, se encontrava constitucionalmente vinculado a decidir de
um certo modo, e não de outro, o “conflito” entre os bens ou valores em colisão.»
No Acórdão n.º 387/2012, do Plenário, ponto 9.1., reconhece-se que é certo que «as decisões
que o Estado (lato sensu) toma têm de ter uma certa finalidade ou uma certa razão de ser, não podendo ser
ilimitadas nem arbitrárias e que esta finalidade deve ser algo de detetável e compreensível para os seus
destinatários. O princípio da proibição de excesso postula que entre o conteúdo da decisão do poder público e
o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma “justa medida” e encontra sede
no artigo 2.º da Constituição. O Estado de direito não pode deixar de ser um “Estado proporcional”»
É à luz de um Estado informado pela ideia de Direito de onde decorre a proibição do
excesso, da atuação arbitrária ou injusta do Estado, da adoção de soluções desnecessárias
ou excessivamente onerosas ou restritivas,
NÃO EXISTIU VIOLAÇÃO.
Ora, considerando o quadro normativo em que se insere, o tribunal não entende como a
norma em questão possa desrespeitar qualquer um dos testes em que se desdobra a
aplicação do princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade
em sentido restrito).
5. ADEQUAÇÃO E NECESSIDADE DA MEDIDA PARA A PROTEÇÃO
DOS INTERESSES DA CRIANÇA
Em primeiro lugar, a norma é adequada e necessária para acautelar o superior interesse da
criança, nomeadamente quando o seu e o dos pais colidam. Nesta situação,

A existência deste perigo justifica-se pelo facto


a Convenção n.º 138 da OIT, sobre a idade mínima de admissão ao emprego, no seu artigo
8.º, e a Diretiva 94/33/CE, no seu artigo 4.º, preverem a
O interesse publico de proteger o menor de potenciais perigos
só pode ser garantido através da intervenção de um terceiro imparcial, com a competência
de autorizar a participação do menor no programa, atuando sempre em sintonia com
superior interesse da criança.
A autoridade competente em Portugal é a CPCJ, que autoriza a participação do menor se a
atividade, o tipo de participação e o correspondente número de horas por dia e por semana
não prejudicarem a segurança, a saúde, o desenvolvimento físico, psíquico e moral, a
educação e a formação do menor. A estes critérios acrescentam-se outros previstos nas
demais disposições previstas na Lei n.º 105/2009 (cfr. o seu artigo 7.º, n.º 2).
6. SOLUÇÃO ALTERNATIVA PROPOSTA PELA RECORRENTE
O tribunal não encontra nenhuma medida mais eficaz que acautele aquele interesse. A
recorrente propõe que se imponha às entidades promotoras do programa de televisão em
que participem os menores que assegurem um acompanhamento destes por um psicólogo
especializado independente, para proteger os seus interesses.
No entender do tribunal, esta medida não se compadece com o grau mínimo de
cumprimento do dever do Estado de proteção das crianças estabelecido na Constituição.
Estaria a condicionar-se a intervenção de uma autoridade imparcial encarregue de acautelar
o superior interesse da criança – no caso, a CPCJ – ao entendimento do psicólogo
assegurado pelas entidades promotoras. Poderiam levantar-se aqui questões relativamente á
independência e imparcialidade da atuação deste psicólogo.
7. A PARTICIPAÇÃO DOS MENORES (LEI N.º 105/2009) É UMA
EXCEÇÃO À PROIBIÇÃO DO TRABALHO INFANTIL (ART. 69/3 CRP
E ART. 59/2 E LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL)
Por último, mas não menos relevante, a avaliação da conformidade desta norma com o
princípio da proporcionalidade, decorrente do Estado de direito democrático consagrado
no artigo 2.º da Constituição, não pode ignorar que a participação do menor em
espetáculos ou qualquer atividade de natureza cultural, artística ou publicitária a que se
reporta a Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, trata-se de uma exceção ao princípio geral
da proibição do trabalho infantil igualmente consagrado na nossa Constituição, no artigo
69.º, n.º 3, que deve ser lido em conjugação com os deveres especiais do Estado de regular
o trabalho do menor, quando este é legalmente admissível (artigo 59.º, n.º 2, alínea c), da
Constituição), e em consonância também com os diversos instrumentos internacionais que
o Estado português subscreveu.
Esta

Para o tribunal, foi cumprido pelo legislador esse cuidado, relativamente á norma em
questão, quando prevê que a participação do menor está sujeita a autorização da CPCJ,
como prevê, aliás, a Diretiva n.º 94/33/CE.

8. OS PAIS NÃO FICAM INIBIDOS DE FAZER VALER A SUA POSIÇÃO


EM TRIBUNAL (Art.º 11.º LEI 105/2009)
É fulcral afirmar que os pais não ficam inibidos de fazer valer o seu ponto de vista contra a
decisão da CPCJ, quando estes não concordem com a posição da mesma. O artigo 11º
prevê que em situação de conflito, os tribunais terão sempre a última palavra. Tal previsão
sustenta que não se verificou qualquer violação do princípio da proibição do excesso. Posto
isto, o tribunal não considera a norma como desproporcionada em relação à proteção dos
direitos e valores referidos.

TEXTO DE: MARIA JOÃO AZEVEDO


TEDH, Papageorgiou e Outros v. Grécia, de 31 de outubro de 2019, Queixas n.º
4762/18 e 6140/18 (Educação Religiosa, Direitos dos pais à educação dos filhos)
Questão para discussão: Como entende o TEDH a possibilidade de ensino religioso, por
um lado, e o regime da isenção de frequência, por outro, à luz do direito à instrução
(Protocolo n.º 1) e da liberdade religiosa (artigo 9.º)?

Resposta: A posição do TEDH relativamente à existência de um ensino religioso,


fornecido pelo Estado, e o respetivo regime de isenção de frequência é, tal como não
poderia deixar de ser, bastante diferente.
➔ Do ART.2º DO PROTOCOLO Nº1 (“Direito à Instrução”), considerado pelo
TEDH como o artigo mais relevante do caso, podemos aferir duas normas – o DIREITO
à instrução, e o DEVER do Estado de respeito pelo direito dos pais a assegurarem a
educação consoante as suas convicções religiosas e filosóficas.
Em matéria de educação e de ensino, este artigo é, em princípio, LEX SPECIALIS
em relação ao art.9º da Convenção, sobretudo quando está em causa a obrigação dos Estados
de respeitar esse direito dos pais.
A SEGUNDA FRASE deste artigo tem como objetivo salvaguardar um pluralismo
educativo, sempre ligado ao direito fundamental dos filhos à educação, reforçando outras
normas da Convenção, nomeadamente os seus artigos 9º e o 14º.
O ESTADO, ao exercer as suas funções na área da educação e ensino, tem o dever
de se manter NEUTRO E IMPARCIAL, mantendo a educação da criança e o ensino
ministrado, tanto quanto possível, conformes às convicções religiosas dos pais – e é aqui
que respondemos à primeira parte da questão acerca da possibilidade de um ensino
religioso - o Estado não está impedido de difundir informação de caráter religioso ou
filosófico, desde que esse conhecimento seja difundido de um modo OBJETIVO E
PLURALISTA, que permita o desenvolvimento de espírito crítico nos estudantes. Este
dever de respeito pelas convicções dos pais, implica do Estado uma certa obrigação
positiva de agir, não exigindo, no entanto, meios específicos de ensino para satisfazer uma
ou outra convicção, ou seja, os pais não podem exigir que o Estado organize o ensino de
uma determinada forma.
Neste caso, o Estado foi acusado de promover uma educação religiosa
CONFESSIONAL, com o objetivo de desenvolver uma certa “personalidade religiosa”, e
não apenas fornecendo informação e conhecimento de forma imparcial.
O Tribunal já tem optando por analisar outros casos à luz deste artigo, tal como
aconteceu no caso Folgerø e Outros vs. Noruega, onde estava em causa a recusa de conceder
isenção total da instrução do cristianismo nas escolas, havendo o TEDH considerado que o
sistema de isenção parcial poderia sujeitar os pais a um pesado encargo, com o risco de
exposição indevida da sua vida privada, e que o potencial de conflito poderia impedi-los de
apresentar tais pedidos, decidindo também pela violação do art.2º do Protocolo nº1 – estes
foram os argumentos invocados também pelo requerentes do caso Papageorgiou, que
afirmaram ter sido dissuadidos de apresentar o pedido de isenção, não só por medo de
revelar que não eram cristãos ortodoxos num ambiente em que a grande maioria da
população deve fidelidade a essa religião, mas também porque não havia outro curso
oferecido aos alunos isentos e eles foram obrigados a perder o horário escolar apenas pelas
suas crenças declaradas.
Na opinião do TEDH, o que importa no que diz respeito a este artigo 2.º é verificar
se as condições de isenção impostas são suscetíveis de sobrecarregar indevidamente os pais
e de os obrigar a divulgar as suas convicções religiosas para que os seus filhos sejam isentos
do curso de educação religiosa.
Quanto à sua decisão, este optou por declarar que existiu sim a violação deste art.2º do
Protocolo nº1, interpretado à luz do art.9º da Convenção.
➔ Quanto ao ART.9º (“Liberdade de pensamento, de consciência e de religião”), este
ocupa-se essencialmente da proteção das convicções pessoais e das crenças religiosas,
incluindo a liberdade de aderir, ou não, a uma religião. Na sua feição externa, a liberdade
religiosa está condicionada nos termos do nº2 deste artigo que nos diz que esta APENAS
pode ser restringida quando isso constituir “disposições necessárias, numa sociedade
democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à
proteção dos direitos e liberdades de outrem”, algo que parece não se verificar aqui.
Deste artigo, podemos ainda retirar que no uso do seu poder de regulamentação e
na sua relação com as diversas religiões, cultos e crenças, o Estado deve permanecer
NEUTRO E IMPARCIAL – algo que não acontece quando o mesmo cria um curso
obrigatório de educação religiosa de natureza CONFESSIONAL, como aparenta ser o
caso.
No caso Alexandridis vs. Grécia, situação em que um jovem advogado que se viu
obrigado a revelar que não era cristão ortodoxo no momento de realizar o juramento de
posse, o TEDH afirmou que havia a violação deste art.9º, pois a liberdade de manifestar a
sua religião continha um aspeto negativo, nomeadamente, o direito do individuo de não ser
obrigado a manifestar as suas crenças religiosas, e de não ser obrigado a agir de forma a
permitir que se extraiam conclusões sobre se ele detinha, ou não, tais crenças – no caso
Papageorgiou sucede-se o mesmo, através da exigência de declarar expressamente que não se
é cristão ortodoxo, tendo o Tribunal decidido exatamente da mesma forma.
A posição do TEDH parece, assim, clara e reiterada pelas suas sucessivas decisões
no mesmo sentido, quanto à ilegalidade de obrigar um indivíduo a revelar aspetos
sobre as suas crenças religiosas, ou seja, a ilegalidade do procedimento de isenção
em causa, que impõe condições opressivas aos pais, obrigando-os a revelar as suas crenças
religiosas e submetendo essas crenças ao escrutínio por terceiros.
Concluindo: Nada impede um Estado de fornecer informações de caráter religioso aos
estudantes, desde que as mesmas sejam apresentadas de forma objetiva, neutra e pluralista,
eliminando-se assim a necessidade de existência de um procedimento de isenção, suscetível
de colocar em causa a liberdade religiosa, o direito à reserva da vida privada, o direito à
educação e a proibição de discriminação – direitos de todos os cidadãos.

TEXTO DE: MARIA INÊS ALVES


TEDH, Papageorgiou e Outros v. Grécia, de 31 de outubro de 2019, Queixas n.º
4762/18 e 6140/18 (Educação Religiosa, Direitos dos pais à educação dos filhos)
Questão para discussão: Como entende o TEDH a possibilidade de ensino religioso, por
um lado, e o regime da isenção de frequência, por outro, à luz do direito à instrução
(Protocolo n.º 1) e da liberdade religiosa (artigo 9.º)?

Resposta: O caso teve início com as queixas nº4762/18 (a 5 de janeiro de 2018) e 6140/18
(8 de janeiro de 2018) contra a Grécia, apresentadas ao TEDH.
Os requerentes são 5 cidadãos gregos- os 2 primeiros querentes na 1ª queixa são os pais do
3º requerente, um estudante. Na 2ª queixa a 1ª requerente é a mãe do segundo requerente,
outro estudante.
Os pais alegaram que o curso de educação religiosa dos seus filhos era de natureza
confessional e favorecia a religião predominante, que era o cristianismo ortodoxo neste
caso. Havia uma opção através da qual os seus filhos ficariam dispensados de frequentar
estas aulas, o sistema de isenção, em vigor através da circular de 23 de janeiro de 2015, mas
os requerentes afirmavam que violava vários dos seus diretos, nomeadamente o direito ao
respeito pela vida privada e familiar, do artigo 8, e a liberdade religiosa do art.9. Isto
poderia levar a uma situação de estigmatização por se identificarem de forma diferente da
maioria. Segundo este sistema quem pretendia obter isenção do curso era obrigado a
apresentar uma declaração solene por escrito que indicasse o facto de que o aluno não é um
cristão ortodoxo. Esta declaração tinha de ser assinada pelo professor de educação
religiosa, e ainda verificada pelo diretor da escola de forma a assegurar que correspondia à
verdade, estando assim o estudante e os seus pais a expor informação privada e sensível. O
diretor tinha também de advertir os pais da seriedade da declaração solene, pois, de acordo
com a legislação grega “se declarassem conscientemente factos falsos podiam ser punidos
com pena de prisão, de pelo menos, três meses”.
Os requerentes alegaram violação do artigo 8 (Direito ao respeito pela vida privada e
familiar), artigo 9 (Liberdade de pensamento, de consciência e de religião) e 14 (Proibição
de discriminação) e do artigo 2 do protocolo nº1 (Direito à instrução) da CEDH.
O tribunal optou por analisar as queixas com base no artigo 2 do protocolo nº1 da
convenção, mas ainda tendo em mente outros artigos, principalmente o artigo 9 da
convenção, que garante a liberdade de pensamento, consciência e religião.
O tribunal afirmou que os órgãos da convenção não consideram uma educação que
contenha informação religiosa como sendo contrária à convenção, mas ainda assim
verificam se os estudantes foram expostos a doutrinação religiosa, a qual é proibida.
De acordo com o artigo 2º todos têm direito à educação, mas o tribunal frisa a segunda
frase deste artigo que nos diz que os pais podem exigir ao Estado que, no âmbito da
educação, respeite as suas convicções religiosas e filosóficas. Por outras palavras, o Estado
está proibido de doutrinar de forma que não respeite as convicções dos pais.
Ainda assim, o estado tem uma grande margem de decisão quanto às medidas a ser
tomadas quanto ao seu sistema educativo, desde que respeite este artigo 2. A segunda frase
do art.2, como afirma o tribunal, assegura a possibilidade de uma educação pluralista, ou
seja, o Estado deve assegurar que a informação é transmitida de forma objetiva, crítica e
pluralista. No entanto, isto não pode ser interpretado no sentido de os pais poderem pedir
uma forma particular de ensino para os seus filhos.
Através destes argumentos/aspetos vemos que o tribunal não proíbe de modo algum o
ensino religioso, mas reitera que o estado tem de o fazer de um modo inclusivo e objetivo.
O tribunal vem dizer que o principal problema neste caso é a obrigação imposta aos pais de
submeter uma declaração solene onde declarem que os seus filhos não são cristãos
ortodoxos. Posto isto, o tribunal aponta que quando um Estado inclui educação religiosa
no currículo, é preciso que evite colocar os estudantes numa posição de conflito, onde têm
de escolher entre a educação religiosa dada pela escola, ou as convicções religiosas dos seus
pais.
Quanto ao sistema de isenção, segundo o tribunal o que importa é, respeitando o art.2º,
averiguar se as condições impostas pelo sistema de isenção colocam um fardo indevido
sobre os pais.
O tribunal declarou que sim, este sistema da circular de 23 de janeiro de 2015 coloca um
fardo indevido sobre os pais, uma vez que os coloca em risco de exporem informação
sensível da sua vida privada, dado que a religião é uma questão de consciência individual.
Para além disso, tal como os requerentes argumentaram, havia um risco de estigmatização
elevado nas ilhas onde viviam, por serem pequenas e com uma população maioritariamente
ortodoxa.
De acordo com o tribunal a liberdade religiosa do art.9º contém uma vertente negativa que
é o direito individual de não manifestar as suas crenças. Deste modo, o tribunal conclui que
as autoridades estatais não tinham o direito de intervir na esfera de consciência individual e
averiguar as crenças dos indivíduos ou obrigá-los a revelar as suas convicções.
Concluindo, o tribunal entende o ensino religioso como uma possibilidade se o Estado
assim o entender, e nos moldes que este entender, desde que não entre em conflito com as
crenças dos estudantes e dos seus pais, e dando-lhes sempre um regime através do qual
podem optar por isentar-se da frequência dessas aulas, isto à luz da segunda frase do artigo
2º do protocolo nº1, lido em concordância com o artigo 9º.

TEXTO DE: JOSEFA MANÉ


TEDH, Çam vs. Turquia, Queixa n.º 51500/08, 23 de fevereiro de 2016 (portadores
de deficiência, acomodação, ensino)
Questão para discussão: Em que medida se verificam, no caso em apreço, uma
discriminação proibida pela Convenção e uma violação de um dever de acomodação?
Como são fundamentados pelo Tribunal?

Resposta: O TEDH declarou que houve uma violação dos direitos da requerente, no
âmbito do artigo 14º da CEDH e do artigo 2º do Protocolo nº13.
Por um lado, há uma violação do direito à instrução consagrado no artigo 2º do Protocolo
nº1. Reconhecendo a centralidade deste direito, o Tribunal declara que privar a sua fruição
a uma cidadã é incompatível com a Convenção.
O TEDH afirmou claramente que o objeto do artigo 2º do Protocolo nº1 deve ter em
consideração todas as regras e princípios devidamente estabelecidos no seio da CEDH,
devendo ser interpretado no sentido de a harmonizar com outras normas de Direito
Internacional em vigor para o Estado Parte, nomeadamente a Carta Social Europeia e a
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) - dois textos que
realçam a importância de uma educação inclusiva. A CDPD deve ser considerada para a
interpretação em evolução do objeto deste direito à instrução, salientando que o objeto e
fim da CEDH, enquanto instrumento de proteção dos seres humanos, exige que as suas
disposições sejam interpretadas e aplicadas de uma forma que as torne práticas e efetivas.
O foco do acórdão reside, sobretudo, na violação ao artigo 14º e no conceito de
discriminação. À dimensão tradicional da discriminação – abstenção estatal de violar os
direitos consagrados na Convenção – o Tribunal vem acrescentar uma nova dimensão, a
dimensão “positiva” -adoção de medidas efetivas por parte do Estado para promover o
gozo dos direitos. Então, se por um lado, discriminação significa que o tratamento
diferenciado de pessoas em situações análogas só é justificado se prosseguir um objetivo
legítimo e mediante uma relação de proporcionalidade entre os meios empregados e o
objetivo pretendido; por outro lado, o Tribunal não nega a necessidade de ingerência
estatal, com vista a colmatar as desigualdades fácticas. É nesta visão de Estado Social que
reside o cerne da questão.
Nesta linha de raciocínio, o TEDH vem dizer que é importante interpretar o artigo 14º da
CEDH à luz da CDPD, concluindo que a falta de adaptações razoáveis consubstancia uma
forma de discriminação. Assim, se as adaptações razoáveis constituem numa espécie de
ajuste com vista a colmatar as desigualdades existentes, a negação de adaptações razoáveis
por parte do Estado implica a perpetuação de uma situação de desigualdade, pelo que viola
substancialmente o princípio da não-discriminação do artigo 14º da CEDH.
Em momento algum, terão as autoridades nacionais tentado identificar as específicas
necessidades da requerente, nem clarificar de que forma a sua deficiência prejudicou o seu
acesso a uma educação musical. Tampouco terão considerado a hipótese de adaptações
razoáveis com vista a atender às suas necessidades educacionais especiais.
Para o TEDH, cada indivíduo, com ou sem deficiência, tem as suas próprias necessidades
de aprendizagem, pelo que cabe a cada Estado Parte dar resposta e satisfazer as
necessidades das pessoas com deficiência. Enfim, sob uma perspetiva de não discriminação
e tendo em conta a particular vulnerabilidade das pessoas com deficiência, o Estado Parte
não pode ignorar as suas necessidades, persistindo em situações de falta de adaptação
razoável.
A importante ligação à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência:
Neste Acórdão, o Tribunal vem estabelecer uma (importante) “ponte” entre a CEDH e a
CDPD, no sentido de que as normas da CEDH devem ser interpretadas à luz da CDPD.
• Adaptação razoável:
O dever de promover adaptações razoáveis resulta conjugadamente dos artigos 2º e 5º da
CDPD:
Por “adaptação razoável” entende-se “a modificação e ajustes necessários e apropriados
que não imponham uma carga desproporcionada ou indevida, sempre que necessário num
determinado caso, para garantir que as pessoas com incapacidades gozam ou exercem, em
condições de igualdade com as demais, de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais”. A negação de adaptações razoáveis constitui discriminação com base na
deficiência (artigo 2º). Nos termos do nº3 do artigo 5º, os Estados Partes obrigam-se a
tomar “todas as medidas apropriadas para garantir a disponibilização de adaptações
razoáveis”.
De acordo com o Comité dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CoDPD), este
entendimento de adaptações razoáveis implica um juízo de conformidade à luz do princípio
da proporcionalidade e convoca uma interpretação constitucionalmente adequada para a
promoção de medidas possíveis e eficazes para efeitos de eliminação de obstáculos à
inclusão das pessoas com deficiência, devendo assegurar-se que a razoabilidade e
proporcionalidade das medidas adotadas é feita de uma forma completa e objetiva,
avaliando-se todos os elementos pertinentes, antes de se concluir se as respetivas medidas
constituem ou não uma carga desproporcionada ou indevida para o Estado.
O dever de adaptação cessa se representar uma carga ou impacto excessivo para quem a
realiza, sendo para este efeito relevantes, não apenas custos financeiros, mas também os
recursos disponíveis e a dimensão e características da entidade prima facie obrigada à
acomodação.
• Violação do princípio da dignidade da pessoa humana:
Mencione-se, por fim, ainda que brevemente, a violação do princípio da dignidade da
pessoa humana da requerente, na medida em que “a discriminação contra qualquer pessoa
com base na deficiência é uma violação da dignidade e valor inerente à pessoa humana”,
conforme afirma a CDPD, logo no seu Preâmbulo [alínea h) do Preâmbulo].
Por isso, e conforme esclarece o Dr. Filipe Venade: “[...] a dignidade da pessoa humana
inerente às pessoas com deficiência encontra-se frequentemente ao longo do texto
convencional, logo, por isso, é um dos valores estruturantes do Direito da Convenção [...],
porquanto é tratada como valor transversalmente axiológico e, por isso, este valor da
dignidade está juridicamente primordial, e multifuncionalmente complementar aos demais
valores fundamentais do Direito da Convenção.” Nesta medida, ao denegarmos o gozo do
direito à educação da requerente de modo discriminatório, estaremos, de certa forma, a
violar a sua dignidade.
A igualdade e dignidade da pessoa humana estão intimamente relacionadas, pelo que
qualquer forma de discriminação acaba por, direta ou indiretamente, atentar contra a
dignidade da pessoa humana. Escreve o Dr. Jorge Reis Novais, a este propósito: “é porque
todos têm igual dignidade que devem ser tratados como iguais”. Desta forma, a igualdade
humana e a dignidade inerente complementam-se mutuamente na materialização e
concretização da existência condigna enquanto ser humano na sociedade onde se insere e
se participe plenamente. Ainda a este propósito, o Dr. Filipe Venade diz que “a dignidade
de toda e qualquer pessoa é condicionante das atuações dos Estados Partes; ou melhor, o
respeito pela dignidade inerente é absoluto, não se sujeitando a critérios discricionários dos
Estados Partes que pretendem, eventualmente, excecionar, em razão da deficiência, a lesão
da dignidade [...]”.
Em jeito de conclusão, numa palavra, impende sobre os Estados, não apenas a dimensão
negativa da não discriminação, mas também, e, sobretudo, uma dimensão positiva, que
passa, não só, mas também, pela adoção de adaptações razoáveis, tendo em vista a
promoção do acesso às pessoas com deficiência a uma sociedade inclusiva e a obtenção de
uma situação de igualdade de facto. Os cidadãos portadores de deficiência consubstanciam
um grupo vulnerável, o que se traduz numa situação de desvantagem em relação a quem
não faz parte desse grupo. Este tratamento diferenciado de que estas pessoas têm sido
vítimas ao longo dos anos é contrário à sua própria dignidade. Neste sentido, urge aos
Estados envidar esforços acrescidos, no sentido de promover a inclusão e o pleno
reconhecimento dos seus direitos fundamentais: é o chamado dever de cuidado cometido
ao Estado, vigente no paradigma social e solidário do regime constitucional de direitos
fundamentais hodierno.
Como diz a Dra. Luísa Neto, “o que se vislumbra como essencial é que se evite a
segregação, filosofia que se põe em prática mediante a provisão de uma variedade de
alternativas que torna necessário diferenciar e diversificar a intervenção, dinamizando e
adequando métodos, estratégias e atividades de aprendizagem, recursos humanos e
materiais e espaços de realização especial – e o direito a participar na sociedade num
ambiente integrado, bem como mais valias para as pessoas que não têm deficiência,
experienciando a sensibilidade para as diferenças individuais que faz parte do (aprender a)
ser pessoa.” Deste modo, é do interesse de todos nós que todas as pessoas possam
participar ativamente na sociedade, numa partilha de realidades, conhecimentos e
experiências, que nada representam se não uma oportunidade enriquecedora para todo e
cada um de nós.

TEXTO DE: SOFIA MARQUES


TEDH, Çam vs. Turquia, Queixa n.º 51500/08, 23 de fevereiro de 2016 (portadores
de deficiência, acomodação, ensino)
Questão para discussão: Em que medida se verificam, no caso em apreço, uma
discriminação proibida pela Convenção e uma violação de um dever de acomodação?
Como são fundamentados pelo Tribunal?

Resposta: Como sabem, este é um caso sobre uma jovem, Çam, a quem foi recusada a
possibilidade de estudar música apenas por causa de uma condição: a sua cegueira.

ARTIGO 14.º
Primeiramente, importa explicar que a argumentação do TEDH se baseia no artigo 14.º da
CEDH e no artigo 2.º do Protocolo adicional n.º 1 à Convenção. No artigo 14.º vemos
consagrada a proibição da discriminação. Ora, constitui uma prática de discriminação o
tratamento diferenciado, sem justificação, de duas situações análogas, bem como o
tratamento diferenciado baseado num certa característica de determinado grupo ou
indivíduo. Para além da clara importância do artigo 14.º, ele releva também por causa da
interpretação inovadora das suas variadas dimensões. Ou seja, para além de o Tribunal
afirmar que existe uma proibição da discriminação tal como vem consagrada na letra da lei,
ele, pela primeira vez, associa ao artigo 14.º a necessidade de criação de medidas positivas
que garantam às pessoas portadoras de deficiência acessos condignos e não
discriminatórios. O Tribunal declara, então, de forma inovadora, que a negação de
acomodações razoáveis é uma forma de discriminação que viola o artigo 14.º da
Convenção. Como afirma Damamme (autor do artigo referente ao caso do Starsbourg
Observers) «o TEDH examina o caso sob uma dimensão ‘positiva’ do princípio da não
discriminação».
Por palavas simples, as acomodações razoáveis são mecanismos que ajudam a corrigir as
desigualdades factuais que são injustificadas e que constituem, portanto, formas de
discriminação. Estas estão imperativamente submetidas às exigências da proporcionalidade
e são não só um dever do Estado como também um direito das pessoas com deficiência.
No entanto, o tribunal entendeu que, em momento algum, as autoridades nacionais turcas
encararam o provimento de acomodações razoáveis como uma obrigação, quando, de
facto, o era. É verdade que Çam nunca apresentou nenhum pedido de acomodações
razoáveis, mas isto não importa, pois, a discriminação com base na deficiência não
acontece apenas com a negação de acomodações razoáveis, mas sim também com a falta
das mesmas.
O Tribunal afirma ainda que as regras da CEDH relativas à proibição da discriminação
devem ser conformes às normas internacionais, nomeadamente à CDPD. Neste sentido,
foi relevante para a fundamentação do Tribunal o n.º 3 do artigo 5.º da presente
Convenção, que passarei agora citar: de modo a promover a igualdade e eliminar a
discriminação, os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas para garantir a
disponibilização de adaptações razoáveis. Isto não aconteceu, tendo havido então uma
violação do dever de acomodação, o que constituiu uma forma de discriminação. Çam foi
discriminada unicamente por ser cega.

ARTIGO 2.º
Acrescento ainda que o artigo 2.º do Protocolo adicional que consagra o direito à instrução
também é relevante na fundamentação do Tribunal.
A verdade é que os termos do artigo 2.º são indissociáveis do dever do Estado de
concretização de determinadas obrigações positivas, sendo isto relevante no caso de Çam.
Como afirma Miguel Assis Raimundo, «se o direito à educação consagrado no artigo 2.º do
Protocolo n.º 1 não exigisse do Estado qualquer medida positiva, isso torná-lo-ia, em
muitos casos, simplesmente inexequível e inoperante». Ora, ainda que estas obrigações não
aparentem estar logo relacionadas com deveres de acomodação, basta que se faça uma
ponte com o artigo 24.º, n.º 2 da CDPD para que se entenda que, no caso das pessoas com
2 deficiência, o Estado tem a obrigação positiva de proporcionar um acesso à educação
justo, igualitário e sem discriminação, o que não se verificou.

RELATÓRIO MÉDICO – A FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DO TRIBUNAL:


Mesmo a terminar, menciono ainda a problemática do relatório médico exigido a Çam para
que esta frequentasse a academia. Apesar de o relatório não ser um dos pontos de
fundamentação do tribunal, na minha opinião este constitui uma forma de discriminação
indireta, pois estamos perante uma prática que é aparentemente neutra, mas que tem um
impacto desproporcionado em pessoas com determinada deficiência, tal como Çam.
Não pude deixar de fazer este apontamento pois a obrigatoriedade de apresentar um
relatório médico pode efetivamente ter resultados altamente prejudiciais para pessoas com
deficiência, podendo esta prática facilmente constituir uma forma de discriminação.

CONCLUSÃO:
Por fim, após ter exposto brevemente a fundamentação do Tribunal, termino relembrando
as palavras de Saramago: «Se podes olhar, vê̂. Se podes ver, repara.». Já que Çam,
infelizmente, não consegue ver, ainda bem que o TEDH pode não só ver por ela, como
também reparar nela, tal como é justo e merecido.
Notas adicionais:
➔ Não se poderá deixar de mencionar a importância do artigo 2.º do Protocolo
adicional n.º 1 à CEDH, pois Çam viu, efetivamente, o seu direito à instrução a ser-
lhe negado. Realça-se que, quando falamos deste direito à instrução, não estamos
apenas a pensar na dimensão formal de alguém se poder, por exemplo, candidatar a
uma determinada escola, pois está também consagrada no presente artigo uma
dimensão material da garantida das condições efetivas para que se possa frequentar
essa mesma escola. Ora, no caso de Çam, será de questionar a existência desta
dimensão material, visto que não foram criadas condições efetivas (acomodações
razoáveis) para que a mesma pudesse frequentar a Academia.
➔ Como já é sabido, o Tribunal sublinha, então, a importância da existência de
acomodações razoáveis, de modo a garantir a igualdade no acesso à educação a
cidadãos portadores de deficiência. Para tal, fundamenta que devem ser tidas em
conta as inovações dos instrumentos jurídicos internacionais e europeus, tais como
o artigo 15.º da Carta Social Europeia e os artigos 2.º e 24.º da CDPD. O TEDH
reconhece ainda que as acomodações razoáveis podem assumir variadas formas:
físicas, não físicas, educacionais, organizações, arquitetónicas, escolares, adaptações
curriculares, entre outras. No entanto, fundamenta, por fim, que não cabe ao
Tribunal definir os recursos para a implementação das mesmas acomodações, mas
sim às autoridades nacionais.
➔ É ainda importante perceber que o dever de acomodação razoável está
imperativamente submetido às exigências da proporcionalidade. Como afirma a
Professora Anabela, «não se trata de apenas garantir que as leis e as políticas
estaduais não estabelecem discriminações para as pessoas com deficiência, mas de
adotar medidas destinadas a garantir a igualdade de oportunidades no acesso às
proteções e benefícios existentes, através da concretização da acessibilidade ou de
acomodações razoáveis». As acomodações razoáveis são um dever do Estado e, por
outro lado, um direito dos cidadãos portadores de deficiência. O Tribunal entendeu
que, em momento algum, as autoridades nacionais turcas encararam o provimento
de uma acomodação razoável às necessidades escolares de Çam como uma
obrigação, quando, de facto, o era. A adaptação das secções e cursos escolares à
condição da jovem nunca foi feita, nunca tenso sido a mesma sequer discutida pelas
autoridades nacionais. Não havia nenhuma dificuldade materialmente insuperável
que não pudesse ser suportada pelas mesmas, sendo que seria então exigida à
Academia de Música uma atitude positiva para a realização das adaptações
necessárias, o que não se verificou.

TEXTO DE: SOFIA FARIA


TEDH, Acórdão Brunet-Lecomte e SARL Lyon Magazine contra a França de 20 de
novembro de 2008 (liberdade de expressão vs. direito à honra)
Questão para discussão: Como caracteriza o TEDH a liberdade de expressão? Se e em
que medida pode sofrer limites, resultando por exemplo da proteção da honra e reputação?

Resposta: Hodiernamente, os conflitos de direitos entre liberdade de expressão e o direito


à honra são recorrentes. Neste caso, como foi explicado anteriormente, verifica-se um
conflito entre a liberdade de expressão de uma revista local e do direito a resposta de um
professor universitário que viu o seu trabalho ser analisado pela mesma, em dezembro de
2001.
Os requerentes foram alvo de uma sentença por parte do tribunal francês que considerou a
atitude da revista uma injuria perante L. sendo um funcionário público, pelo que estes
foram condenados a uma indemnização. Adicionalmente, os requerentes interpuseram uma
ação no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem contra o Estado Francês por alegarem
que esta condenação afetara o respetivo direito, mais especificamente a liberdade de
expressão que é protegida por dois artigos principalmente o 6º e 10º na CEDH.
O artigo 10º prevê a liberdade de expressão sem limites que abrange múltiplos cenários,
não obstante no nº2 observa-se uma tentativa de controlo da liberdade de expressão, isto é,
desde a segurança nacional até à proteção de honra ou dos direitos de outrem.
Assim sendo, regressando ao caso concreto, importa salientar que a questão se baseia na
forma como foi introduzida o direito de resposta por parte do professor, nomeadamente
do termo “energúmeno” utilizado pelos requerentes. Estes defendem que a sua
condenação não é necessária numa sociedade democrática.
O TEDH entende que pode haver uma divisão entre L. enquanto professor universitário e
seu estatuto como individuo. Existiria então, a possibilidade de os requerentes exercerem
principalmente a sua liberdade de expressão em relação à profissão do mesmo. O tribunal
interpreta que o direito aqui exercido é de interesse público e por isso tem um intuito
legitimo de demonstrar como funciona qualitativamente o ensino superior, sendo que o
termo tão discutido metia em causa principalmente as funções por ele exercidas. É possível
constatar quase como uma tolerância por parte do tribunal devido aos motivos que levaram
os requerentes a escreverem tal artigo.
Paralelamente, essa argumentação permite justificar os termos utilizados pelo facto do
artigo se dirigir à população de Lyon e incidir num serviço publico que estava a ser
realizado enquanto professor. Considera ainda que a “atitude polémica pode ter
influenciado o tom utilizado para o descrever e, portanto, não passou a linha do exagero e
provocação”.
Nos termos do Tribunal, entende-se que a liberdade de expressão não sofre limites e,
utilizando uma interpretação exata do art. 10 nº1, é possível exercer este direito de forma
ilimitada. Como referido anteriormente, a Convenção prevê no art. 10º nº2 uma proteção
dessa ilimitação.
Não se pode negar que os limites deste direito são difíceis de definir. A linha entre a
liberdade de expressão e os direitos que esta confronta são muito ténues e tal acresce uma
dificuldade de separação motivada pela força e poder atuais. Reutilizando o caso em mãos,
o direito à resposta pode ser na verdade um meio de proteção e controlo da liberdade de
expressão, assim como o direito à retificação.
De seguida, o Direito à honra e reputação é de facto um direito com uma dimensão
consideravelmente menor que a liberdade de expressão, pois é um direito que está
protegido pela liberdade de desenvolvimento de personalidade e autonomia. Tal constitui
uma forma de controlar a imagem que passa para a sociedade que rodeia o individuo. No
entanto, esse controlo pode não só fugir através da liberdade de expressão que é utilizada
por outros, como também por ser um direito geral que prevalece como o caso em analise
sobre o direito individual.
A expressão “who wacthes the watchers” apresenta a ideia que é preciso haver um
regulamento relativa à forma como a imprensa exerce a liberdade de expressão. Por vezes
isto pode apresentar uma ameaça à democracia tendo em conta que há novas formas de
media, visto que a verificação de informação é muito frágil e os direitos individuais são
postos em causa, tais como o direito à honra.
Em conclusão, o direito à informação, com todas as suas implicações, é uma garantia de
um estado direito democrático. Este direito, colide muitas vezes com o direito à honra,
dado que são ambos considerados garantias fundamentais com o mesmo valor hierárquico.
Quando se verifica uma colisão entre os dois, o TEDH tem entendido que se deve dar
primazia ao direito da liberdade de expressão, não só quando está em causa o interesse
público legítimo, mas também quando é utilizado sob forma de direito à critica. No
entendimento do Tribunal, o direito à critica não conhece limites, quanto ao teor da carga
depreciativa e mesmo da violência das expressões utilizadas. No entanto, é possível
constatar que existe uma consciencialização social acrescida dos limites associados a este
direito, face às novas realidades e a facilidade com a qual é exercida a liberdade de
expressão em função de alguém. Assim novos desafios emergem na nossa sociedade
democrática com o intuito de estender estes limites para uma maior proteção do individuo
enquanto pessoa e cidadão europeu que está sobre uma proteção de princípio de
proporcionalidade que não pode ser comprometida por uma liberdade acrescida e recente
partilhada por todos.

Você também pode gostar