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2017 - 02 - 10

Revista de Arbitragem e Mediação


2016
RARB VOL. 50 (JULHO - SETEMBRO 2016)
DOUTRINA NACIONAL
23. REGULAMENTAÇÃO PRIVADA OU PÚBLICA DA ÉTICA: O JUIZ E O ÁRBITRO

23. Regulamentação privada ou pública da ética: o juiz e o


árbitro

Ethics public or private regulation: the judge and the


arbitrator
(Autor)

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR

Professor Titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, Professor emérito da Faculdade de Direito da
USP-Ribeirão Preto, Professor da Faculdade de Direito da PUC-SP.

Sumário:

1 O público e o privado na contemporaneidade


2 Due process of law
3 Codificação ética das condutas
4 Confiança e código moral
5 Da arbitragem como instituição

Área do Direito: Processual

Resumo:

O atual sentido que tomam os princípios do devido processo legal mediante jurisdição, com a
aceitação, diante do aparecimento, de fato e por força de novas exigências valorativas, de outras
formas de realização da justiça, tem proporcionado a possibilidade de que se possa prescindir de
uma decisão judicial propriamente dita na resolução de conflitos, como a conciliação, a transação, a
arbitragem. Isso traz para as relações entre direito e moral novas perspectivas, a merecer a reflexão
teórica mais detida no que se refere às diferenças entre a ética jurisdicional e arbitral com base nas
exigências de impessoalização do julgador. Um juiz é um terceiro institucionalizado mediante
mecanismos de impessoalização próprios: concurso (como forma de acesso à condição de terceiro),
carreira (como estabilização face ao tempo: promoção), independência (mediante neutralização
política do cargo: função do princípio da divisão dos poderes), donde forte presunção de
imparcialidade: função jurisdicional impessoalizada como presunção. Já o árbitro é também um
terceiro, mas sua institucionalização exige outros requisitos éticos. A condição de imparcialidade do
árbitro pressupõe exigências éticas próprias. Ele é também um outro, mas cuja institucionalização é
estabilizada por outros fatores: conhecimento técnico, prestígio profissional, donde a importância de
ser um terceiro que não seja qualquer um. Por isso sua imparcialidade é sujeita a condições mais
exigentes: ele é escolhido, para um procedimento escolhido, de uma câmara escolhida, donde ser o
árbitro um terceiro ad hoc, com função jurisdicional personalíssima.

Abstract:

The current sense taking the principles of due process of law by jurisdiction, with the acceptance, on
the appearance, in fact, by virtue of new value requirements, other forms of realization of Justice,
creates the possibility that we can do without a court decision itself in conflict resolution, such as
conciliation, transaction, arbitration. This brings to the relationship between law and moral new
perspectives, to theoretical reflection more held as regards the differences between the judicial
ethics and arbitration based on the requirements of impessoalização of the judge. A judge is a third
by impessoalização own mechanisms institutionalized: contest (as a way to access the third
condition), career (as against the stabilization time: promotion), independence (by undermining the
policy position: according to the principle of Division of powers), where strong presumption of
impartiality for the judicial function A judge is a third by institutionalized mechanisms: contest (as a
way to access the third condition), career (as against the stabilization time: promotion),
independence (by undermining the policy position: according to the principle of division of powers),
where strong presumption of impartiality: no personal judicial function as presumption. Already the
referee is also a third, but its institutionalization requires other ethical requirements. The condition
of impartiality of the arbitrator assumes ethical requirements. He is also another, but whose
institutionalization is stabilized by other factors: technical knowledge, professional prestige, hence
the importance of being a third party other than anyone. So their impartiality is subject to more
stringent conditions: he is chosen, for a chosen procedure, of a Chamber, where referee a third ad
hoc, with extremely typical judicial function.

Palavra Chave: Ética - Público e privado. Devido processo legal - Arbitragem.


Keywords: Ethics - Public and private - Due process of law - Arbitration.

1. O público e o privado na contemporaneidade

Note-se, inicialmente, que, numa sociedade relativamente pouco complexa (no Brasil, ainda
existente quando do advento do Código de Processo Civil de 1973), ainda estaticamente concebida
como produtora de conflitos sociais enquanto conflitos interindividuais, os pressupostos da tradição
constitucionalista pareciam confiáveis e assim capazes de realizar a congruência das funções
expressiva e instrumental como condição de exigência do devido processo legal e da indeclinável
prerrogativa judicial (que os alemães designam como Richtervorbehalt). Hoje, porém, essa percepção
acabou sendo nitidamente solapada pelo advento de uma sociedade em transformação, em que as
fronteiras entre o público e o privado se tornam porosas nas diversas tentativas de enfrentamento
de riscos sociais potencialmente expansivos (medicinal, de engenharia, financeiro, econômico,
ambiental, de massa, etc.), revelando a ineficiência dos mecanismos tradicionais. 1

Observa-se, assim, atualmente, uma nova tendência, que ganha força no acento depositado na noção
de povo na expressão: soberania popular. Nela, o poder deixa de ser percebido exclusivamente como
uma res do Estado, uma coisa que se tem, detém, transmite, e precisa ser limitado pela lei, para ser
tomado como uma forma de relação social (no sentido weberiano de dominação), donde a soberania
não mais restrita a um poder de império enquanto um poder qualitativamente capaz de imposições
contra as vontades particulares e, portanto, estatal (imperatividade estatal: proibições e obrigações),
para tornar-se regulação, isto é, capacidade de fazer com que as vontades sejam conformadas (pela
lei) antes de serem exercidas (autorizações, permissões expressas). O que, consequentemente, faz da
imperatividade (poder de império) menos um poder centrípeto, mais um poder centrífugo.

Isso traz duas consequências importantes no entendimento e interpretação constitucionais: uma


externa, no sentido de que as constituições veem arrefecer sua conexão com um território; outra
interna, que se observa, na literatura especializada, com o aparecimento cada vez mais frequente da
ideia de uma “desestatização” das exclusivas funções públicas (significativo, nesse sentido, o
aparecimento de privatizações de estradas, aeroportos, impensáveis até o início da década de 90 do
século passado).

De um lado, “estendem” seu alcance, como se observa em decisões soberanas que, por exemplo, nos
EUA, vieram a proibir a instituições financeiras norte-americanas, em todo o mundo, relações com
qualquer cidadão constante de uma determinada lista, mas, ao mesmo tempo, geram problemas
complexos de administração: administração sem soberania. 2

De outro, veem-se marcadas pela concepção de uma “constituição civil”, teoricamente baseada ou
estruturada sob forte influência do direito privado, em que despontam os problemas a gerar o
crescimento de atores privados preenchendo em maior ou menor extensão funções usualmente
denominadas “públicas”. 3

Trata-se de um questionamento que atinge o Estado em suas principais configurações, seja o Estado
percebido como fonte de organização política (fenômeno da descentralização das fontes), seja o
Estado como esfera pública (fenômeno da diferenciação orgânica e a privatização da
administração), seja o Estado como monopólio do império (fenômeno da redistribuição das
prerrogativas de julgamento), seja o Estado-nação (fenômeno da internacionalização). 4

Essas transformações têm, além de um fundamento social, suas consequências jurídicas.

Chama a atenção, nessa linha de transformação, que o novo CPC, ao invés de iniciar-se mediante
distribuição organizada de técnicas processuais (em atenção ao seu papel meramente instrumental:
função jurisdicional de conhecimento, de execução e cautelar), começa por estabelecer um elenco de
princípios (Das normas fundamentais do processo civil), de modo a ressaltar, mesmo reafirmando
que não se possa excluir da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito, o papel da
arbitragem e da solução consensual dos conflitos (art. 3.º, § 2.º O Estado promoverá, sempre que
possível, a solução consensual dos conflitos).

Donde decorre uma ação normativa inteiramente nova quando se olha para os antigos padrões do
Estado de Direito e, neles, para o modo restrito com que se concebia o due process of law.

2. Due process of law

Esse dado é importante para o entendimento do due process of law em seu novo contexto e para o
entendimento da prerrogativa do juiz (Richtervorbehalt) em face do árbitro, na atualidade. O que, na
verdade, acabou por acontecer foi uma alteração do mundo dos fatos, a exigir da função
jurisdicional, de um lado, uma forma nova de atuação e, de outro, uma abertura para a
extrajudicialidade dos processos.

Antes a função jurisdicional se colocava como uma relação de império monopolizado entre o juiz e o
jurisdicionado, e como não havia ainda a atual premência da gerência eficiente da questão
econômica e social, aquela relação era exterior, isto é, a administração da justiça (“fazer justiça”) era
o objeto do exercício judicante, como algo externo à política. Agora, surge uma situação em que o
Poder Judiciário não se destaca, como um outro, da própria justiça administrada: sua
responsabilidade não é apenas condicional (julgar conforme a lei e a Constituição), mas finalista
(realizar objetivos legais e constitucionais).

Se, tradicionalmente, o direito era concebido como um sistema fortemente integrado


(Legislativo/Executivo/Judiciário), cujas normas eram prescritas e sujeitas à simplicidade racional da
subsunção (uma espécie de ideal modelar que se impõe à realidade), agora a paisagem mudou, quer
pelo surgimento de novas fontes, quer pela multiplicidade e variabilidade de “padrões” à disposição
até mesmo do juiz: princípios, cláusulas gerais, guide lines de natureza técnica (estado da arte,
sujeito mais favorecido, melhores práticas...) etc. E isso tem obrigado a uma reconsideração do
princípio da hierarquia e o aparecimento de hierarquias descontínuas, que se enredam como
alternativas, transformando o processo de predeterminação legal que marcava o devido processo.
Com essa transformação, surge uma visão menos “imperativista” do direto, pela percepção de que
normas constituem menos regras de conduta e mais regras para as ações decisórias, inclusive, mas
não exclusive, dos juízes.

Na verdade, observa-se que, na complexa sociedade tecnológica de nossos dias, as exigências de


controle mediante o devido processo legal se alteram por força de uma mudança de vetor, deixando
de voltar-se primordialmente para o passado, para ocupar-se basicamente do futuro. A questão não
está mais em submeter o controle do desempenho comportamental apenas tal como foi realizado,
mas, sobretudo, como ele se realizará. A civilização tecnológica, nesses termos, joga sua capacidade
criativa em fórmulas de gestão, cujos máximos valores são a eficiência dos resultados e a alta
probabilidade de sua consecução.

Ou seja, o poder jurisdicional vê o atributo da sua imperatividade atrelado a um exercício de atos de


gestão (julgar como gerenciar), tudo conforme uma lógica tecnocrática de eficiência gerencial, em
cujo cerne, aliás, acaba por se estabelecer um novo triângulo estrutural: império, ato judicante e
gestão socioeconômica.

É justamente nessa linha de transformação que se observa o atual sentido que tomam os princípios
constitucionais garantidores do devido processo legal mediante jurisdição, com a aceitação, diante do
aparecimento, de fato e por força de novas exigências valorativas, de outras formas de realização da
justiça, da possibilidade de que se possa prescindir de uma decisão judicial propriamente dita na
resolução de conflitos, como a conciliação, a transação, a arbitragem.

Isso traz para as relações entre direito e moral novas perspectivas, a merecer a reflexão teórica mais
detida no que se refere aos seus fundamentos e consequências.

3. Codificação ética das condutas

O que chamamos de direito e de moral é um código. Trata-se de códigos (código jurídico, código
moral) que regulam condutas (ethos). Daí o significado que o código ganha para as relações
chamadas éticas, em que estamos uns perante os outros.

Na vida social, cada presente situação entre uns e outros tem seu futuro, que está na prospectiva
ilimitada de possibilidades de comportamento. Mas, a partir do presente, nada impede que se
conceba o futuro de tal modo que só uma possibilidade possa converter-se em presente no futuro.
Na medida em que os presentes atuais e futuros permanecem idênticos, uma escolha de
possibilidades cria estabilidades; na medida em que gera descontinuidades, cria instabilidades.
Nesse jogo, as relações precisam de códigos capazes de mediar. Essa mediação exige um terceiro.

Árbitro e juiz são terceiros institucionalizados. O terceiro é, por definição, aquele que não participa
de uma relação comunicativa. Numa sessão do tribunal do júri, aqueles que circulam pelas ruas da
cidade absolutamente distantes do que lá se passa, são terceiros. Como são terceiros, numa outra
perspectiva, os membros do júri. Ou também aqueles autorizados a entrar na ação mediante
embargos de terceiros. Muito genericamente, terceiros são os outros.

Ora, há um certo paradoxo na arbitragem como instituição quando confrontada com o Poder
Judiciário. Enquanto o Estado julgador goza de uma presunção forte de ser um terceiro neutro,
independente e imparcial em face de interesses em conflito e da mesma presunção goze uma
arbitragem, a voluntariedade nessa presente, já pela opção pelo procedimento, já pela escolha dos
julgadores pelos que vão ser julgados, parece repousar numa expectativa de que a personalização da
instituição (função jurisdicional personalíssima), conquanto menos apta a agasalhar os atributos do
agente estatal, é conduzida por mecanismos do ethos social que, justamente ao contrário, garantem
até mais fortemente aqueles atributos.

Esses requisitos de independência e imparcialidade exigem, em termos de código moral da


arbitragem, um peculiar entendimento do sentido da confiança depositada no julgador.

4. Confiança e código moral

A confiança é um mecanismo necessário para lidar com a segurança/risco das relações éticas. 5

A confiança se apresenta, assim, como uma forma de criar segurança apesar dos riscos, a qual tem
que ser alcançada desde o presente. O problema está em que nem o futuro incerto nem o passado
podem assegurar confiança, já que o sucedido no passado não elimina a possibilidade do
descobrimento, no futuro, de outros antecedentes alternativos. O problema enfrentado mediante a
confiança consiste no fato de que o futuro contém muitas possibilidades, mais do que poderiam
concretizar-se desde o presente e do presente transferir-se para o passado.

Nesse sentido, a confiança pode ser gerada pela ciência, desde que, mediante experimentação, o que
já aconteceu e foi comprovado pode, com regularidade, minimizar em alto grau a ocorrência, no
futuro, de outras alternativas. Mas a confiança, como mecanismo de absorção de incerteza e
insegurança, não se reduz ao aspecto cognitivo (verdadeiro/falso).

A prática de estabelecer metas (planejar) como exercício antecipatório do futuro, por exemplo,
mediante promessas, e a prática de “manter” o passado, não permitindo que seu sentido possa ser
alterado com a passagem do tempo, mediante memória, institutos como boa-fé, pacta sunt servanda,
tem a ver com o mecanismo da confiança enquanto um redutor dos riscos de incerteza e de
insegurança. Mas, de um modo diferente da díade verdadeiro/falso.

Em termos gerais, no plano ético (ethos), no direito como na moral, o desenvolvimento de confiança
é um fator essencial. A confiança, nesses modos sociais de interagir/comunicar, tanto mais ostensiva
quanto mais uma expectativa confiável, faz alguma diferença para uma decisão: comprar/vender,
mandar/obedecer, verificar se veraz ou mentiroso, punir/absolver. A confiança, como mecanismo de
convivência social, reflete, assim, uma contingência (risco) que tem de ser eliminada ou
enfraquecida para tornar-se suportável. Como a confiança, porém, é um mecanismo que sempre
extrapola os dados (causas, condições, hipóteses etc.) a partir de evidências disponíveis desde o
presente, ela aparece como uma curiosa combinatória de conhecimento e ignorância: confiamos
pelo que conhecemos e apesar do que ignoramos.

Nessa combinatória, a confiança, in genere, se apresenta na forma de um deslocamento contínuo do


problema do risco de um ângulo interno para o externo e vice-versa (análise da consciência – eu –
por suas exteriorizações – outros – e vice-versa), que exige, para funcionar, de um lado, um processo
de aprendizagem (experiência, conhecimento dado, conhecimento buscado: por exemplo, numa
decisão de adquirir, due diligence), mas, de outro, uma resolução simbólica das expectativas e de
resultados possíveis dentro das circunstâncias (texto e contexto, critérios de relevância em
valorações, prognósticos etc.).

Nesse sentido, a confiança, in genere, não é nem subjetiva nem objetiva, não se transfere a objetos
nem a pessoas (subsiste num contínuo deslocamento do interno para o externo e vice-versa),
exigindo aprendizagem para que possa ser generalizada (quer quanto aos conteúdos quer quanto
aos destinatários), constituindo-se mediante uma simbólica sempre sujeita à interpretação.

Mas aqui se fazem necessárias algumas distinções capazes de tornar inteligível o sentido da
confiança como mecanismo jurídico e como mecanismo moral (plano do ethos) para absorção de
riscos na convivência. Assim, quando falamos em confiança no plano ético, é preciso distinguir
percepções diferentes.

Quando pensamos na relação confiança/contingência, podemos pensar em situações em que


confiança põe em relevo o tema do conhecimento (probabilidades). Para gerar confiança é preciso
lidar com expectativas cognitivas. Assim, a experiência (passado) gera confiança na medida em que
produz expectativa de probabilidade (em circunstâncias normais: coeteris paribus). Ou seja, o
esquema da normalidade gera confiança em termos estatísticos: probabilidade. Os riscos gerados
pela contingência são minimizados pelo grau de normalidade e, no limite, são desprezados: confia-
se!

Trata-se do que se pode chamar de confiança cognitiva. A confiança cognitiva não é alheia ao direito
e aparece em discussões relevantes como nas referentes ao sentido e alcance da cláusula rebus sic
standibus, da previsão de força maior, do significado de contratos aleatórios etc. Mesmo nesses
casos, porém, é indispensável a percepção da presença da confiança no sentido peculiar de fidúcia
(confiança fiducial).

Por isso, se o tema da confiança, no direito, pudesse ser reduzido ao aspecto cognitivo, a moral seria
um código dispensável, cabalmente substituído por uma teoria lógica das normas. Há, no entanto,
diferenças relevantes a ser apontadas no mecanismo da confiança. Um exemplo pode ajudar.

Se estivermos num ponto de ônibus, contamos com atrasos, contamos com a possibilidade de o
ônibus passar lotado e não parar, mas desprezamos a possibilidade de o motorista perder a direção
e jogar o veículo sobre quem esteja esperando o ônibus. No plano cognitivo, esse risco até existe e
sua ocorrência é minimizada em termos do esquema regra/exceção. A probabilidade ínfima de um
atropelamento produz confiança em termos de uma expectativa cognitiva garantida pela
experiência: ninguém espera o ônibus com a expectativa cognitiva do atropelamento. Nesse caso,
confiança (cognitiva) e evidência (grau de evidência) correm juntas. A expectativa cognitiva
(experiência) gera confiança (cognitiva) tanto maior quanto maior é a evidência.

Mas é possível pensar a relação confiança/contingência para além de esquemas cognitivos. Ou seja,
situações em que, apesar da normalidade, expectativas cognitivas não dão conta inteiramente do
risco. Trata-se da hipótese de expectativas de risco apesar da normalidade, isto é, expectativas
contra a evidência (e se acontecer o atropelamento?...). Uma expectativa contra a evidência desloca o
tema do risco, de tal modo que o esquema regra/exceção não funciona satisfatoriamente. Trata-se de
um risco que se alimenta da exceção. Nesse sentido, exige um mecanismo capaz de enfrentar a
contingência apesar da evidência, um mecanismo de confiança fundado numa expectativa
contrafática. Não se trata de expectativa cognitiva até porque uma expectativa cognitiva contra a
evidência parece nos jogar no campo das neuroses ou de comportamentos psiquicamente estranhos.
No exemplo de quem aguarda um ônibus no ponto, teríamos a situação do sujeito que, no limite, não
anda mais de ônibus, pois acha que poderia ser atropelado. Não desejo argumentar na mera
extensão do exemplo. O exemplo, porém, serve para mostrar que o mecanismo da confiança, no
campo ético, exige outros fundamentos.

Confiança, nesse caso, lida outro tipo de expectativa que poderíamos chamar de normativa. Trata-se
de uma expectativa contra o risco da exceção, contra a evidência. Nesse sentido, o direito se
expressa mediante regras que não expressam normalidade, mas normatividade, isto é, expectativas
garantidas contra a evidência ou contra o risco da ruptura da evidência. Trata-se da manutenção de
expectativas mesmo contra a evidência. Dito simplesmente, não importa a (baixa) probabilidade de
assaltos em cidades pequenas: ainda que ocorram, não serão jamais aceitos. Nesses termos, um
ordenamento jurídico é um sistema capaz de criar condições especiais para o desenvolvimento de
um mecanismo de confiança sui generis.

Ou seja, a confiança gerada pela normatividade (pode-se falar em ethos social) lida com o risco da
evidência enquanto (apesar da) evidência. Para distinguir essa confiança (normativa) da confiança
na normalidade (empírica, estatística) é que se pode usar o termo fidúcia: confiança fiducial. A
palavra tem uma raiz próxima de fides (fé) que corresponde, no inglês, à expressão trust em
oposição a confidence (termo mais apropriado à confiança cognitiva). Nesse primeiro sentido (fides)
falamos em um documento fidedigno, em fé pública etc.

Nesse caso, a confiança (fiducial) tem a ver com uma espécie de encargo que alguém assume perante
alguém e vice-versa, isto é, perante o outro de quem se espera um comportamento correspondente,
posto que é um mecanismo de convivência. E aqui entra o código moral, donde boa-fé, de um lado,
lealdade de outro, como verdadeiro corpo de regras e princípios que atingem as próprias
consciências como objeto de mediação.

Essa forma de confiança precede, eticamente, a confiança cognitiva, como a validade das normas
precede sua eficácia. Sem confiança fiducial o direito viraria um mero mecanismo probabilístico de
controle de riscos. Trata-se, pois, de uma construção tipicamente ético-normativa que tem a
consciência em intersubjetividade como seu núcleo. Ou, dito de outro modo, a confiança (fiducial)
exige confiança na confiança dos outros. 6 Tem natureza preceptiva, cujo endereçado é aquele
(outro) em quem se confia e aquele que no outro mostra confiança (outro/outrem na primeira
acepção). Não há confiança em alguém (outrem) sem que aquele que confia mostre, ele próprio,
confiança.

Daí o sentido peculiar que ganha a noção de confiança como fidúcia. Não se reduz a ver a
consciência mediante efeitos objetivos (intenções que se presumem, atos que expressam intenções),
mas exige o caráter justo das manifestações de consciência como um paradigma moral, ao tomar a
consciência como núcleo de seus preceitos.

A confiança fiducial pode ser afetada pela desconfiança cognitiva, como a validade das normas, pela
ineficácia. Esse tipo de problema aparece, por exemplo, na valoração do testemunho como prova.
Mas, juridicamente, a confiança fiducial prevalece até mesmo quando a confiança cognitiva é
abalada. É o que sustenta a presunção de relação contratual de trabalho mesmo sem a evidência de
qualquer documento, ou o brocardo in dubio pro reo.

Os sistemas sociais desenvolvem, assim, em termos de um ethos, mecanismos de estabilização


(códigos éticos), isto é, centros integradores de sentido que conferem à variedade (de opiniões, de
situações, de diferenças no tempo etc.) certa unidade aceitável para as interações sociais.

O código jurídico, nesses termos, nos permite dizer, por exemplo, que, embora alguém reconheça ter
comprado um binóculo de um camelô (código verdade), não teve a intenção deliberada de cometer
um crime de receptação (código jurídico penal), ainda que você seja visto por seus conhecidos como
uma pessoa mentirosa e inconfiável (código moral). E vice-versa: ainda que alguém seja visto como
uma pessoa honesta, nada impede que seja condenado por uma ação criminosa.

As últimas considerações levantam o problema do correto em sede do direito e da moral no que diz
respeito à figura do árbitro.

5. Da arbitragem como instituição

Paul Ricoeur nos fornece uma fecunda discussão sobre a figura do outro, quando encontra ao menos
duas acepções distintas de outro ou de outros. 7 Existe um outro que se apresenta diante de mim,
designando-me como tu, isto é, na segunda pessoa do singular. Esse é o outro com quem me
relaciono na primeira pessoa (eu).

O outro, nessa primeira acepção, parece-me designar qualquer um que não seja eu. Mas para quem
também eu sou um outro. Nesse sentido, mesmo de tu para tu somos outros. E enquanto
permanecemos outros, um é para o outro um terceiro. Desse terceiro, porém, enquanto um outro,
falamos na terceira pessoa quando está ausente: ele. Em vários graus de reconhecimento, esse outro
é e permanece um terceiro que se identifica perante mim como o outro das relações interpessoais.

Há, no entanto, uma segunda acepção, que na gramática portuguesa designamos como sujeito
impessoal, muitas vezes indicado pelo se: fala-se muito e se faz pouco. E que na velha tradição
jurídica dos romanos aparecia no conhecido adágio latino suum cuique tribuere. Aí o outro é cada
qual (cuique), indistinta e indiferentemente qualquer um. Esse outro é também um terceiro, que não
se identifica perante mim, mas do qual presumo expectativas sobre aquilo que se passa entre mim e
os outros na primeira acepção. É o que exprimo, ao relacionar-me com um outro (na primeira
acepção), quando conjecturo: que vão pensar os outros?

Ora, ambos, na primeira e na segunda acepção, são terceiros que podem ser institucionalizados como
tais, isto é, como terceiros. Institucionalizados no sentido de que são revestidos na função de
terceiros, isto é, ganham por presunção social a condição de terceiros e nessa condição gozam de
legitimidade social para agir como terceiros (nesse sentido, por exemplo, o Ministério Público é, no
campo sócio-jurídico, um terceiro).

Podemos entender, nesses termos, a figura do árbitro e do juiz como terceiros institucionalizados.
Mas sua condição de outro não é a mesma. Enquanto o árbitro, escolhido pelas partes, é outro na
primeira acepção (consta de uma lista, é um advogado conhecido e respeitado, tem experiência etc.),
o juiz é, por definição, um outro na segunda acepção (seu saber é presumido – por ter feito concurso
público –, sua experiência é levada em conta por critérios impessoais – como tempo de serviço ou
grau funcional –, não é escolhido, mas designado por razões impessoais etc.).

Em consequência, sua respectiva legitimidade, que repousa em uma simetria de comportamento


(ethos) que o terceiro deve guardar enquanto terceiro perante outros, guarda características
diferentes. Ou seja, os mecanismos sociais que legitimam aquela simetria (permanecer terceiro
enquanto terceiro) e são conhecidos como códigos éticos são diferentes. Vale dizer, como os terceiros
institucionalizados são outros em acepções diferentes, diferentes são os códigos éticos para o árbitro
e para o juiz. Afinal, por tratar-se de uma “jurisdição” voluntária, o ethos/mos institucional do árbitro
na arbitragem não se reduz ao do juiz togado no processo.

Um juiz é um terceiro institucionalizado mediante mecanismos de impessoalização próprios:


concurso (como forma de acesso à condição de terceiro), carreira (como estabilização face ao tempo:
promoção), independência (mediante neutralização política do cargo: função do princípio da divisão
dos poderes), donde forte presunção de imparcialidade: função jurisdicional impessoalizada como
presunção.

Já o árbitro é também um terceiro, mas sua institucionalização exige outros requisitos éticos. A
condição de imparcialidade do árbitro pressupõe exigências éticas próprias.

Ele é também um outro, mas cuja institucionalização é estabilizada por outros fatores: conhecimento
técnico, prestígio profissional, donde a importância de ser um terceiro que não seja qualquer um. Por
isso sua imparcialidade é sujeita a condições mais exigentes: ele é escolhido, para um procedimento
escolhido, de uma câmara escolhida, donde ser o árbitro um terceiro ad hoc, com função
jurisdicional personalíssima.

Por isso, diferentemente do juiz no processo judicial, é comum, na arbitragem, falar-se do “árbitro da
parte”.

E daí o sentido muito mais forte na arbitragem, que adquire a independência como condição de
presunção de imparcialidade.

Isso se reflete nos julgamentos judiciais quando tratam do assunto. Reporto-me a uma
jurisprudência paradigmática do TJSP, citada por Carmona, 8 em que se lê:

Não é possível, nos estritos limites do agravo de instrumento, se distinguir o aspecto moral dos atos
humanos no procedimento do árbitro. Em se tratando de método extrajudicial de solução de
controvérsia, instituída pela Lei 9.307/1996, o árbitro, em princípio, recebe das partes o poder de
decidir. Se o seu comportamento ético ultrapassou ou não as fronteiras da legislação, não cabe aqui o
exame se ele agiu ou não com independência, imparcialidade, competência, diligência e discrição,
tornando ineficaz uma decisão de mérito equivalente a uma sentença judicial, quando ela está
fundamentada. (Grifei).

E a conclusão do acórdão mostra bem a peculiaridade estrutural da confiança de caráter fiducial na


apreciação de causas de nulidade que, em se reconhecendo que o processo arbitral é flexível, “não
podem de antemão aniquilar a sentença arbitral tornando-a inexigível”.

Isso explica também que a Lei 9.307/1996, em seu art. 14, ao tratar de impedimento e suspeição, ao
contrário do disposto no processo judicial, não venha a fazer distinção entre ambos para efeito da
obrigação do árbitro de afastar-se, mas não para efeitos do art. 32 – II, que trata da nulidade de
sentença arbitral.

No plano processual referente ao juiz, a distinção pretende ser nítida. A suspeição é gerada por
elementos definidos na lei em que se expressam motivos eminentemente subjetivos, enquanto, no
impedimento, os fatos são de caráter objetivo. Nos dois casos há a implicação de parcialidade do juiz
(fere-se o ethos da guarda de simetria enquanto um terceiro). Por força da distinção infere-se,
porém, que a suspeição é base para uma verdadeira exceção oferecida pela parte preclusivamente,
ao passo que o impedimento pode ser alegado a qualquer momento.

Mas os casos de impedimento e suspeição não são, in totum, acolhidos pela Lei 9.307/1996, cujo
dispositivo (art. 14) determina que estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que
tenham com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que
caracterizam os casos de impedimento ou suspeição dos juízes.

Essa dicção da Lei de Arbitragem abre espaço para uma percepção das diferenças da codificação
ética do árbitro em face do juiz.

Assim, tendo em vista o papel da confiança fiducial como base da imparcialidade no processo
judicial e no arbitral, essa distinção está mais no grau de confiabilidade (fiducial) do que em
atributos cognitivos (confiança cognitiva). E aí a diferença em face do juiz. Tanto que, se, de um lado,
o motivo (impedimento ou suspeição) que levaria ao impedimento do árbitro, sendo desconhecido
por alguma das partes, não poderia ser relevado por consenso presumido na sua escolha, também é
verdade que, por outro lado, dependendo essa hipótese do silêncio do nomeado sobre fatos que
poderiam gerar seu afastamento, não se pode desconsiderar a possibilidade de o árbitro, de boa-fé,
ignorar o fato ou a gravidade do fato a provocar o seu afastamento. 9

Afinal, mesmo diante de hipóteses claras de impedimento (e, a fortiori, de suspeição) nada obsta que
as partes depositem confiança na pessoa e a indiquem como árbitro. O que, certamente, afeta a
condição do árbitro em comparação com a do juiz. Tanto que a Lei de Arbitragem manda aplicar ao
árbitro os mesmos deveres e responsabilidades do juiz no que couber. A expressão em itálico mostra
que o legislador não equipara totalmente as figuras, até porque a confiança fiducial é
institucionalizada em ambos de modo diferente. Parece claro que os motivos de afastamento de
árbitros estão muito mais fortemente calcados no sentido intersubjetivo da confiança, mesmo em se
tratando de casos de impedimento, do que ocorre no processo judicial.

Não por outra razão os códigos éticos em sede de arbitragem ganham igualmente perfis próprios e
conteúdos específicos.

Por exemplo, a American Arbitration Association estabeleceu em suas Regras de Arbitragem


Internacional de 2003 essa comunicação com o árbitro ou com o candidato a árbitro é vedada, salvo
para informar o candidato sobre a natureza geral da controvérsia ou para discutir a nomeação do
terceiro árbitro quando as partes ou seus árbitros participam dessa seleção.

De modo semelhante, nos Guidelines da International Bar Association de 1987, admite-se como
aceitável que o árbitro ouça a parte que o indicou na indicação do terceiro árbitro. Mas se espera
das partes um comportamento leal, de modo que a confiança (fiducial) não venha a ser posta em
questão. 10 E a IBA, nos seus Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration de 2004,
traçou linhas mestras de orientação, contidas em três conhecidas listas de situações que poderiam
gerar afastamento de um árbitro, com previsão ou não de revelação de fatos relevantes. As listas
criam uma graduação de situações mais e menos graves, o que indica, no mínimo, a dificuldade de
regulamentar, cognitivamente, uma confiança de estrutura fiducial.

Assim, essas regras, não obstante mostrarem um esforço normativo para lidar com a confiança
fiducial, acabam por encontrar, com ostensiva dificuldade, algum paralelo convincente de apoio
com regras pertinentes à confiança cognitiva. E por isso, na doutrina, terminam por apontar para
situações em que, para se lidar com elas, a intersubjetividade, não menos e até mais que a
objetividade, tem de ser encarada frontalmente (cf. Lowenfeld, p. 59 e ss.).
Por tudo isso se entende o esforço em distinguir a imparcialidade da independência. Afinal, a
exigência de independência tangencia a confiança fiducial com a confiança cognitiva. Pois a
independência é um atributo com características aparentemente mais objetivas, que se referem às
relações entre o árbitro e as partes. Por isso algumas legislações, como a da Suíça, ao cuidar da
recusa de árbitro só falam de independência. Mas a questão não se resolve assim tão singelamente,
tanto que outras, como a da Suécia, apontam para hipóteses de imparcialidade como motivo de
recusa, que, no entanto, parecem ter mais a ver com independência (como o árbitro ter motivos para
esperar benefício ou prejuízo do resultado da disputa), o que mostra certa interpenetração dos
conceitos na manifestação da confiança. 11

Pesquisas do Editorial

A SELEÇÃO DE ÁRBITROS NOS PROCEDIMENTOS ARBITRAIS: UMA ABORDAGEM


PRÁTICA, de Victor Madeira Filho - RArb 20/2009/193

ÁRBITRO, de Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo - Doutrinas Essenciais Arbitragem e


Mediação 2/2014/771

DA INVESTIDURA AO ENCERRAMENTO DA JURISDIÇÃO ARBITRAL, de Natália


Parmigiani Merlussi - ReDE 3/2014/295

DAS BOAS RELAÇÕES ENTRE OS JUÍZES E OS ÁRBITROS, de Carlos Alberto Carmona -


RePro 87/1997/81

© edição e distribuição da EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.

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