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Titulo original: THE SHOCK DocTRINE: THE RrsE OP DISASTER CAPITALISM

Copyright © 2007 by Naomi Klein

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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

K72d Klein, Naomi


A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desas-
tre/ Naomi Klein; tradução Vania Cury. - Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2008.

Tradução de: The Shock Doctrine: The Rise of Disaster


Capitalism

ISBN 978-85-209-2071-8

!. Livre iniciativa. 2. Crises financeiras. 3. Capitalismo.


1. Título.

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4
5 [an Bruce, "Soldier of Fortune Deaths Go Missing in lraq", Hera/d (Glasgow), 13 de janeiro de 2007;
Brian Brady, "Mercenaries to Fill Iraq Troop Gap", Scotland on Sunday (Edimburgo), 25 de fevereiro de
2007; Michelle Roberts, "Iraq War Exacts Toll on Contractors", Associated Press, 24 de fevereiro de 2007.
55
Departamento de Informação Pública das Nações Unidas, "Background Note: 31 de dezembro d(I
2006", Operações das Forças de Paz das Nações Unidas, www.un.org; James Glanz e Floyd Norris,
"Report Says Iraq Contractor Is Hiding Data from U.S.", New York Times, 28 de outubro de 2006; ....
Brady, "Mercenaries to Fill Iraq Troop Gap".
56
PARTE 7 •
NOTA DE RODAPÉ: James Boxell, "Man of Arms Explores New Areas of Combat", Finm1cial Times
(Londres), 11 de março de 2007.
57
Inspetor-Geral Especial para a Reconstrução do Iraque, Iraq Reconstruction: Lessons ir. Contracting
and Procurement, julho de 2006, páginas 98-99, www.sigir.mil; George W. Bush, State of the Union A ZONA VERDE MÓVEL
Address, Washington, DC, 23 de janeiro de 2007.
58
Guy Dinmore, "US Prepares List of Unstable Nations': Financial Times (Londres), 29 de março de 2005.
ZONAS AMORTECEDORAS E MUROS DETONADOS

Diante da possibilidade de começar de novo, pode-se iniciar, fundamentalmente,


pelo principal limite, o que é uma coisa muito boa. Essa oportunidade é um pri -
vilégio, pois há outros lugares que não têm sistemas como esse ou estão presos
a sistemas que se encontram ultrapa ssados há cem ou duzentos anos. De certo
modo, essa é uma vantagem para o Afeganistão: começar de novo, de modo dife-
rente, com as melhores idéias e o melhor conhecimento técnico.
- Paul O'Neill, secretário do Teso uro dos Estados Unidos, em novembro de 2002,
após a invasão de Cabul.
.•

CAPÍTULOº 19

ESVAZIANDO A PRAIA

"O SEGUNDO TSUNAMI "

O tsunami que desobstruiu a beira-mar, como uma máquina de terraplenagem


gigantesca, presenteou os incorporadores imobiliários com uma oportunidade
jamais sonhada, e eles se mexeram rapidamente para abocanhá-la.
- Seth Mydans, International Hera/d Tribune, 10 de março de 2005 1

Fui ATÉ A PRAIA NO AMANHECER, com a esperança de encontrar alguns pescadores antes
que eles entrassem nas águas de cor turquesa para mais um dia de trabalho. Era o mês
de julho de 2005 e a praia estava quase deserta, embora houvesse ali alguns catamarãs de
madeira, pintados à mão, tendo ao seu lado uma pequena família que se preparava para
partir. Roger, de quarenta anos de idade, estava sentado no chão com seu sarongue, sem
camisa, consertando uma rede vermelha emaranhada, junto com seu filho Ivan. Jenita,
mulher de Roger, circundava o barco balançando uma latinha com incenso sendo quei-
mado. "Estou pedindo sorte", explicou assjm o seu ritual, "e segurança''.
Pouco tempo atrás, aquela praia e d~zenas de outras iguais a ela, de cima a baixo da
costa do Sri Lanka, tinham sido objeto de uma grande missão de salvamento, após o
desastre natural mais devastador dos últimos tempos - o tsunami de 26 de dezembro
de 2004, que tirou a vida de 250 mil pessoas e deixou 2,5 milhões de seres humanos desa-
brigados por toda a região. 2 Seis meses depois, vim para o Sri Lanka, um dos países mais
duramente afetados, para ver como os esforços de reconstrução ali podiam ser compa-
rados aos do Iraque.
Minha companheira de viagem foi Kumari, ativista de Colombo que havia participado
do esforço de salvamento e reabilitação e concordara em servir de guia e intérprete na
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região devastada pelo tsunami. Nossa rota começou na Baía de Arugam, uma vila destro- nosos, comida bem temperada, mves sob a lua cheia (... ) "uma região de festa animada", de
çada de pescadores e de veraneio, na costa leste da ilha, que estava sendo encarada pela acordo com a publicação Lonely Plan et. 3 E a Baía de Arugam se torno u o centro da ação.
equipe governamental encarregada da reconstrução como vitrine de seus planos para "re- , Ao mesmo tempo, a abertura ele postos de co ntrole significo u que pesca dores de todo o
co nstruir melhor". país podiam retornar, em grande número, para algumas das águas mais fartas ela costa
Roger, qu e conhecemos ali, nos deu uma versão muito diferente, em apenas cinco leste, inclusive a Baía de Arugam .
minutos. Ele o denominou ele "um plano para tirar os pescadores da praia". E ainda A praia estava ficando lotada. A Baía ele Aru ga m foi zo neada como porto de pescaria,
argumentou que aquele plano de retirada maciça antecedera a onda gigante, mas o mas os proprietários dos hotéis loca is começaram a reclamar que as cabanas atrapa-
tsunami, como muitos outros desastres, es tava se ndo exp lorado para fazer avançar um lhava m sua vista e que a fragrância da secagem dos pei xes enj oava seus clientes (um
projeto profundamente impopular. Roger nos con tou que, durante quinze anos, sua hoteleiro, que era holandês expatriad o, me disse que "há uma coisa chamada poluição
fa mília passo u a temporada de pesca numa caba na de palha, na praia da Baía de Aru- de cheiro") . Alguns hoteleiros inici aram uma campa nha junto ao governo loca l, para
ga m, perto de onde estávamos se ntados. Junto com dezenas de outras famílias, guar- realocar os barcos e as cabanas dos pescado res num a ou tra baía, que fosse menos po-
davam seus barcos ao lado das cabanas e secava m se u pescado em folhas de bananeira, pular entre os estrangeiros. Os moradores lutaram co ntra , argum entand o que viviam
co locadas sobre a fina areia branca. Coex istiam facilmente com os turista s, formado s naquelas terras há gerações e que a Baía de Aru gam era mais do qu e um anco rado uro
na maior pane por surhstas australianos e europeu s, que se hospedava m em albergues de barcos - ela tinha água fresca e eletri cid ade, esco las para se us fi lhos e co mpradores
em torn o d<t pra!a, com sua s redes puíclas penduradas na porta e música dos clubes para se u pescado.
not urn os ele Londres tocando em alto-falantes colocados no topo das palmeiras. Os Essas tensões ameaça ram ex plodir cerca de se is meses antes do tsunami, qu and o ocor-
res taurantes compravam peixes diretamente dos barcos, e os pescadores, co m seus co- reu um misteri oso incên di o na praia, no meio ela noite. Vi nt e t.' quatro caba nas de pes-
lorid os estilos de vicia tradicionai s, forneciam o brilho de autenticidad e que a mai or ia cadores foram red uzidas a cin zas. Co mo Roger me co ntou , ele e sua famíli a "perdemos
dos viajantes rú sticos es ta va procu rando . tudo, todos os nossos pertences, nossa redes e cordas". Kumari e eu falamos co m muitos
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Durante muito tempo, não houve conflitos específicos entre os hotéis e os pescadores pescadores na Baía de Arugam, e todos afirmaram que o incêndio foi cr imin oso. E culpa-
da Baía de Ar ugarn, em parte 'porq'l1e a guerra civil que prosseguia no Sri Lanka não per- ram os proprietários de hotéis, que, obviamente, queriam a praia só para eles.
mitia que nenhuma atividade crescesse além de uma pequ ena escala. A costa leste da ilha No entanto, se o incêndio fora um artifício para ass ustar os pescadores, não fun-
assistiu a uma elas piores batalhas, pois era reivindicada por ambos os lados - os Tigres cionou; os moradores do lu ga r se torn ara m mais determinados do que nunca a fi car, e
Liber tadores elo Tamil Eelam (conhecidos co mo Tigres do Tamil), ao norte, e o governo aq ueles que perdera m suas cabanas rápidamente as reergueram .
central singalês em Colombo-, mas não chegou a se r totalmente controlada por ne- Quando o tsunami chego u, fez o trabalh o que o incêndio não havia co nseguido rea -
nhuma das partes. Para chegar à Baía de Arugam, era preciso navegar por um labirinto lizar: limpou a praia por completo. Todas as frá geis estruturas fora m arrastadas - cada
· de postos de controle e correr o risco de ser apanhado num tiroteio ou num bombardeio barco, cada cabana de pescadoi:, assim como ca banas e bangal ôs turísticos. Numa comu-
suicida (os Tigres do Tamil são apontados como inventores cio cinto de explosivos sui- nidade de apenas quatro m~l. pessoas, 350 haviam morrido, e muitas delas er·am como
cida). Todos os g uia~ turísticos continham advertências rigorosas para que se evitasse a Roger, Ivan e Jenita, que ganhavam a vicia no mar:' Ainda assim, sob os escombros e
instável costa leste do Sri Lanka; suas ondas eram reconhecidamente boas, mas só valiam detritos, jazia aquilo que a indústria do turismo há muito esperava - uma praia ima-
a pena em .casos muito especiais. culada, completamente livre da incômoda e poluidora presença de pessoas trabalhando,
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· O grande evento ocorreu em fevereiro de 2002, quando Colomb? e os Tigres assi- um Éden para as férias. De cima a baixo da costa, estava tudo igual: uma vez que a sujeira
nara m um acordo ele cessar-fogo. Não foi exa tamente a paz, mas Lima pausa tensa nas fosse retirada, o que restaria era .. . um paraíso.
ações, pontuada por bombardeios ou assassinatos ocasionais. Apesar dessas condições Quando a situação de emergência amainou, as famílias de pescadores voltaram para os
precárias, assim que as estradas foram abertas, os guias turísticos começaram a retratar a locais onde antes ficavam suas casas, mas foram recebidas pela polícia, que as proibiu de re-
costa leste como a próxima Phuket: surfe es petacular, praias maravilhosas, hotéis moder- construírem. "Novas regras", disseram a elas - nada de casas na praia, e tudo tinha ele ficar
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pelo menos duzentos metros atrás da marca da água. Muitos teriam aceitado construir em estrelas, chalés para ecoturismo ao custo de trezentos dólares a diária, ancoradouro para
pontos mais distantes da água, mas não havia terras disponíveis ali, deixando os pescadores hidroaviões e heliporto. O relatório enfatizava que a Baía de Arugam deveria servir de
sem ter para onde ir. A nova "zo na amortecedora" estava sendo imposta não apenas na Baía> modelo para cerca de trinta novas "zonas turísticas" próximas, convertendo a costa leste
de Arugam, mas em toda a costa leste. As praias estavam interditadas. do Sri Lanka, anteriormente abalada pela guerra, na Riviera do Sudeste Asiático.5
O tsunam i matou cerca de 35 mil hab itantes do Sri Lanka e desabrigou quase urn As vítimas do tsun ami - centenas de famílias de pescadores, que costumavam viver
milhão. Pequenos pescadores, como Roger, constituíram 80% das vítimas; em algumas e trabalhar na praia - foram excluídas das impressões e dos planos daqueles "artistas da
áreas, esse número subiu para 98%. Para receber rações alimentares e pequenas quantias reconstrução". O relatório explicou que os· inbradores das vilas seriam removidos para
em dinheiro, milhares de pessoas se mudaram das praias para os acampamentos tempo- outras localidades adequadas, algumas a muitos quilômetros de distância do oceano. Para
rários no interior do país. Muitos deles eram formados por barracões amplos e soturnos, tornar as coisas ainda piores, o projeto de desenvolvimento de oitenta milhões de dólares
feitos de lata , onde o calor era tão insuportável que muitos preferiam dormir do lado de seria fin anci ado com dinheiro de aj uda, levantado em nome das vítimas do tsunami.
fora. Com o passar do tempo, esses acampamentos foram se tornando sujos e as doen ças Foram os rostos chorosos dessas famílias de pescadores e outras como elas, na Tai-
proliferaram, sob a mira de soldados armados com metralhadoras. lândia e na Indon ésia, que mobilizaram o histórico afluxo de generosidade internacional
Oficialmente, o governo declarou que a zona amortecedo ra era uma medida de se- após o tsunam i - parentes empilhados em mesquitas, mães em prantos tentando iden-
gurança, criada para impedi r a repetição do ataqu e devastador de outro tsunami. Na tificar um bebê afogado, filhos tragados p elo tnar. Todavia, para comunidades como as da
aparência , fazia sen tido, mas hav ia um problema óbvio nos argumentos utilizados para Baía de Arugam, "reconstrução" significou apenas a destruição deliberada de sua cultura
justificá- la - ela não estava sendo aplicada à ind ústria do turismo. Ao contrário, os ho- e modo de vida e o roubo de sua terra. Como disse Kumari, todo o processo de recons-
téis eram encorajados a se expandir na vali osa orla oceânica, onde os pescadores vivera m trução resultaria na "vitimização das vítimas, na exploração dos explorados".
e trabalharam. Os resorts foram completam ente isentados das regras da zona amortece- Quando o plano se tornou conhecido, espalhou ódio por todo o país, e mais ainda na
dora - enquan to classificassem suas construções como "reparos", não importando quão Baía de Arugam. Assim que Kumari e eu chega01os à cidade, fomos arrastadas por um a
próximas da água estivessem, ficariam livres e limpos. Assim, ao longo de toda a Baía de multidão de centenas de manifestantes, vestidos numa mistura caleidoscópica de saris,
Arugarn , operá ri os da construção civil martelavam e furavam . "Os turistas não precisam sarongues, hijabs e chinelos. Eles se juntaram na praia e estavam começando a marcha:
temer um tsunami ?", Roger queria saber. que passa ria na frente dos hotéis, na cidade vizinha de Pottuvil, sede do governo local.
Para ele e seus co mpanheiros, a zona amortecedora se parecia muito mais com um a Enquanto marchavam diante dos hotéis, um jov~m de camiseta branca co m um
desculpa para o governo fazer o que gostaria de ter feito, antes da onda: expulsa r os pes- megafone vermelho liderava os manifestantes com palavras de ordem. "Não queremos,
cadores da pra ia. O pescado que eles tiravam da água era suficiente para o sustento de não queremos ...", gritou ele, e a multidãO respondeu: "Hotéis turísticos! " Depois, ele·.
suas famílias, mas não contribuía para o cresci mento econômico, segundo a avaliação bradou : "Brancos ...", e o povo retrucou: "Vão embora!" (Kumari traduziu do tâmil,
de instituições como o Banco Mundial, e a terra que antes fora ocupada por suas caba- com suas desculpas.) Um outro jovem, com a pele. curtida pelo sol e o mar, pegou o
nas podia ser destinada, sem dúvida, a usos mais lucrativos. Um pouco antes de minha microfone e berrou: "Nós queremos, nós queremos ...", e ;s respostas vieram voando:
chegada, um documento denominado "Plano de Desenvolvimento dos Recursos da Baía "Nossas terras de volta! Nossas casas de volta! Um porto pesqueiro! Nosi;ô dinheiro da
de Arugam" vazou para a imprensa e confirmou os piores temores da comunidade de ajuda!" "Fome, fome! ", o jovem soltou a voz, e a multidão redargüiu: "Os pescadores
pescadores. O governo federal havia contratado uma equipe de consultores internacio- estão com fome!"
nais para desenvolver um proj etv de reconstrução da Baía de Arugam, e esse plano era Fora dos portões do distrito gove,namental, os líderes da marcha acusaram seus re-
o seu resultado. Embora somente as propriedades localizadas na beira da praia tivessem presentantes eleitos de abandono, corrupção e desperdício do dinheiro da· ajuda, que
sido destruídas pelo tsunami, e ainda que a cidade continuasse de pé, a proposta deter- era destinado aos pescadores, "com dotes para suas filhas e jóias para suas esposas". Eles
minava qu e a Baía de Arugam fosse aplanada, reconstruída e transformada de vilarejo à falaram ainda de favores especiais que foram feitos a singaleses, da discriminação contra
beira-mar com charme hippie "em destino turístico de boutique" - com resorts de cinco os muçulmanos e do fato de que "estrangeiros lucravam com a nossa miséria".
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Era pouco provável que seus·gritos surtissem algum efeito. Em Colombo, eu conversei ligiosos fi zera m coleta de roupa s, cobertores e dinheiro. Os ciclad<ios, então, exigiram que
com o dirigente do Conselh o ele Turismo do Sri Lanka, Seenivasagam Kalaiselvam, um se us governos correspondesse m à sua ge nerosidade, com ajuda oficial. Em se is meses,
burocrata de meia-idade, que tinha o mau hábito de se beneficiar dos milhões de dólares. foram levantados treze bilhões de dóla res - um recorde mundial.''
que chegavam ao país. Perguntei-lhe o que se ria feito dos pescadores de lugares como Nos primeiros meses, grande parte elo dinh eiro ela reconstrução chegou aos desti-
a Baía de Arugam. El.e se recostou na cadeira de vime e explicou: "No ~assado, na orla natários pretendidos: ONGs e agências de ajuda leva ram comida e água de emergência,
oceânica, havia muitos estabelecimentos não-autorizados ( ...) construídos fora das nor- barracas e macas; os países ricos mandaram equipes médicas e sup rimentos. Os campos
mas do plano turístico. Com o tsunami, o que aconteceu de bom para o turismo foi que foram construídos como paliativos, para dar um teto às pessoas, enq uanto seus lares per-
a maioria desses estabelecimentos não-autorizados [foi] afetada, e os prédios não estão manentes estavam sendo edificados. Sem dúvida, havia dinheiro sufic iente para erguer
mais lá." Se os pescadores voltarem e reconstruírem, explicou ele, "nós seremos forçados aquelas casas. No entanto, quando cheguei ao Sri Lanka, seis meses depois, o progresso
a demolir novamente.( ... ) A praia vai ficar limpa". havia parado; quase não existiam lares permanentes, e os campos temporários começa-
va m a se parecer menos com abrigos emergenciais e mais com favelas entrincheiradas.
Não tinha começado assim. Qua ndo Kumari foi pela primeira vez à costa leste, nos dias Pessoas que trabalhavam na ajuda recla mavam que o governo do Sri Lanka estava
seguintes ao tsunami, ninguém da ajuda oficial havia chegado ainda . Isso significava que erguendo barreiras a todo momento - primeiro, ao determinar a zo na amortecedo ra;
qualquer pessoa podia ser trabalhador substituto, médico, coveiro. As barreiras étnicas depois, ao se recusa r a provid en ~ipr terrenos alternativos para construção; e, em seguid a,
que dividiam aquela região foram subitamente eliminadas. "Os muçulmanos corriam ao enco mendar uma séri~ 'interminá vel de es tudos e planos inteligentes de especialistas
para a zo na t5mei s para enterrar os mortos", recordou ela, "e o povo tâm eis corria para ex ternos. Enquanto os bL~rncratas di sc utiam , os sobreviventes do tsunami esperava m em
o belo muçulmano para comer e beber. Habitantes do interior do país mandavam dois seus campos sufocante; do interior, vivendo de raçi'><:'S, muito lon ge do mar para vo lta -
embrulhos de comida por dia, cada um, o que era bastante, tendo cm vista sua pobreza. rem a pescar. As demoras eram atribuídas à burocracia e :1 1rní administração, mas, de
Não queriam nada em troca; era apenas o sentimento de 'ajudar um vizinh o; ajudar ir- fato, havia muito mais coisas em jopº·
mãs, irm ãos, filhas, mães'. Apenas isso".
Ajudas interculturais semelhantes ocorriam em todo o país. Adolescentes do povo Antes da onda: planos frustrados
tfuneis dirigiam seus tratores para fora das fazendas, a fim de encontrar cadáveres. Crian-
ças cristãs doavam seus uniformes escolares para servirem de mortalhas brancas nos O grande plano para refazer o Sri Lanka antecedia o tsunami em dois anos. Começou
funerais muçulmanos, enquanto nrnlheres hindus entregavam os seus saris brancos. Era quando a guerra civil terminou e os atores habituais chegaram ao país para planejar sua
como se aquela invasão de {1gua sa lgada e entulho fosse tão poderosamente humilhante entrada na eco nomia mundial - os mais proeminentes foram a USAID, o Banco Mun-
que, além de destruir lares e estradas, também levasse junto consigo ódios intratáveis, dial e sua ramificação, o Banco Asiático de Desenvolvime nto. Criou-se um co nsenso de
feudos de sangue e a disputa para saber quem havia matado quem por último. Para Ku- que a vantagem competitiva mais significativa elo Sri Lanka era o fato de que a região
mari, que trabalh ara durant~ anos com grupos ele paz que tentaram fazer a ponte entre as não tinha sido colonizada pela global ização eni curso, em deco rrência de sua gue rra du-
linhas divisó rias, era impréssionante ver aquela tragédia sendo enfrentada com tamanha rado ura. Mesmo sendo um país tão pequeno, o Sri Lanka ainçla possuía um co nsiderável
decência. Em vez de falar incansavelmente so bre a paz, os habitantes cio Sri Lanka, em seu montante ele vida selvagem - leopardos, macacos, milhares de elefa ntes. Suas praias
momento de maior tensão, estavam de foto vivendo-a como realidade. não continham edificações alt as e suas montanha~ eram pontuadas por templos e locais
Parecia que o país também podia contar com ajuda internacional em seus esforços de sagrados ele hindus, budistas e muçulma1i os. O melhor de tutio, como exaltou a USAlD,
recuperação. No princípio, o auxílio não ve io dos governos, que foram lentos em suares- era "que tudo estava contido num espaço do tamanho da Virgínia Ocidental". 7
posta, mas partiu ele indivíduos que viram o desastre na televisão: em escolas na Europa, No plano, as florestas do Sri Lanka, que represe ntavam abrigo efetivo para os com-
crianças arrecadaram fundos com a venda de bolos e doces e o recolhimento de garrafas batentes da guerrilha, seriam abertas aos eco turistas aventureiros, que montariam nos
PET para reciclagem; músicos organizaram concertos cheios de celebridades; grupos re- elefantes e saltariam nos cipós feito o 'farzan , da mesma forma que fazem na Costa Rica.
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1 A DOUTRINA DO CHOQU E ESVAZIAN DO A PRAIA 467
\ 466

Suas reli giões, que foram cú mplices em inúmeros derramamentos de sangue, seriam multimifonários e bilionários, que é vista por Wall Street como o grupo dos "supercon-
recondicionadas para alimentar as necessidades espirituais dos visitantes ocidentais - sumidcres", capaz de carregar sozinha a demanda dos consumidores. Ajay Kapur, antigo
monges budistas cuidariam de centros de meditação, mulheres hindus dançariam com, dirigente do grupo Smith Barney de estratégia global de investimentos, de Nova York,
exuberância nos hotéis, clínicas de medicina aiurvédica amenizariam dores e males. pertencente ao Citigroup, estimula seus clientes a investirem em sua "cesta plutonômica"
Em suma , o resto da Ásia podia continuar com as fábricas em que os operários de ações, destacando companhias como Bulgari, Porsche, Four Seasons e Sotheby's. "Se a
trabalh ava m em péssimas co ndições, recebendo baixos salários, com os centros de te- plutonomia continuar, e nós acreditamos que continuará, se a desigualdade de renda for
lem arketing e com os frenéticos mercad_os ·de ações; o Sri Lanka estaria lá, esperando autorizada a persistir e aumentar, a cesta plutonômica ficará muito bem."9
pelos capitães dessas indústrias, quando eles precisassem de um lugar para se recupe- Tod:ivia, antes que o Sri La11ka pudesse cumprir seu papel de parque de diversões do
rar. Em razão, justamente, da enorme riqueza criada nos outros postos avançados do círculo plutonômico, algumas áreas precisavam de drásticos melhoramentos - e rápido.
capitalismo desregulado, o dinheiro não seria objeção quando chegasse a hora de apro- Em primeiro lugar, para atrair os hotéis de alta qualidade, o governo deveria eliminar
veitar a combinação perfeitamente calibrada de luxo e rusticidade, aventura e atendi- as barreiras à propriedade privada da terra (cerca de 80% da terra do país pertenciam
mento solícito. Os consultores estrangeiros estavam convencidos de que o futuro do ao Estado). 1º Eram necessárias leis trabalhistas mais flexíveis, pelas quais os investidores
Sri Lanka repousava em cadeias co mo a Aman Resorts, que havia aberto, recentemente, contratariam pessoal para seus resorts. E também era preciso modernizar a infra-estru-
dwrs prop ri eda des maravilh os as na co~ ta sudoeste, co m di árias de oi toce ntos dólares e tura - rodovias, aeroportos, sistemas de água e eletricidade. No entanto, como o país
pisci nas em cada suíte. estava ~ ndividado pela compra de armas, o governo não podia arcar com o pagamen-
O governo dos Estados Unidos fi.cou tão entusiasmado co m o potencial do Sri Lanka to desses aprimoramentos. Os negócios habituais entraram em oferta: empréstimos do
como des tin ação turística de alto nível, com todas as possibilidades para cadeias de ho- Banco Mundial e do FMI, em troca de acordos para abrir a economia à privatização e às
téis e agências de viagens, que a USAJD lançou um programa para organizar a indús- "parcerias público-privadas".
tria de turismo local, nos moldes dos poderos9s grupos de lobistas de Washington. É Todos esses planos e termos foram cuidadosamente organizados no Regaining Sri
de sua responsabilidade o aumento do orçamento destinado à promoção do turismo, Lanka, o programa de terapia de choque do país aprovado pelo Banco Mundial e fi-
"de menos de quinhentos mil dólares por ano para aproximadamente dez milhões de nalizado no começo de 2003. Seu principal defensor local foi um político e empresário
dól ares an uais".ª Enquanto isso, a embaixada dos Estados Unidos implantou o Programa chamado Mano Tittawella, que tinha grande semelhança com Newt Gingrich, tanto física
de Co mpetitividade, um posto avançado destinado a ampliar os interesses econôrllicos quanto ideologicamente.11
estadunidenses no país. O diretor do programa, um ec~nomista grisalho chamado John Como todos os demais planos de terapia de choque, o Regaining Sri Lanka exigiu mui-
Varley, me disse que co nsid erou pequeno o pensamento da Agência de Turismo do Sri · tos sacrifícios em nome da partida rumo ao rápido crescimento econômico. Milhões de
Lanka quando esta planejou atrair um milh ão de turistas por ano, no final daquela dé- pessoas teriam de abandonar as vilas tradicionais, a fim de liberar as praias para os turis-
cada. "Pessoalmente, acho que esse número poderia s'er dobrado." Peter Harrold, o inglês tas e a terra para os hotéis e estradas. O que restasse da pesca seria dominado por grandes
que diri ge as operações do Banco Mundial no Sri Lanka, me disse: "Sempre pensei em pesqueiros industriais, que operariam de portos de águas profundas - e não por percos
Bali como o termômetro perfeito." de ma:leira lançados a partir das praias. 12 E, é claro, como foi o caso em circunstâncias
Não resta dúvida de que o turismo de alto nível é um mercado em franca expansão. similares, de Buenos Aires a Bagdá, haveria demissões maciças nas empresas estatais, e os
Os rendimentos gerais dos hotéis de luxo, em que as diárias custam, elT! média, 405 dó- preços dos serviços teriam de ser aumentados.
lares, subiram cerca de 70% entre 2001 e 2005 - nada' mal para um período que inclui a O problema, p.ara os defensores do plano, foi que muitos habitantes do Sri Lanka
recessão do pós-11 de Setembro, a guerra no Iraque e a elevação dos preços dÓ combustí- simpltsmente não acreditaram que seu s~crifício valeria a pena. Era o ano de 2003, e a fé
vel. Sob vários aspectos, o crescimento fenomenal do setor é um subproduto da extrema cega na globalização já havia sido extinta, •em especial depois dos horrores da crise eco-
desigualdade que resultou do triunfo generalizado da economia da Escola de Chicago. nômica da Ásia. O legado da guerra também se transformou num obstáculo. Milhares de
Alheia ao estado geral da economia, agora existe uma grande elite composta por novos pessoc:.s tinham perdido suas vidas,.em nome de "nação", "pátria" e "território". Agora que
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a paz tinha chegado, enfim, pedia-se aos mais pobres que deixassem os pequenos lotes ele - o tsunami como castigo divin o pela in ca pa cidad e de ve nder as praias e fl ores tas do
terra e propriedades que poss uíam - urna horta, uma casa simples, um barco - para Sri Lanka.
que as redes Marriott ou Hilton pudessem construir um campo de golfe (enq uanto os A penitência começou imediatam en te. Apenas quatro dias depo is do impa cto ela
habitantes dos vilarejos podiam seguir ca rreira co mo vendedores ambulantes nas ru as de onda, o governo ele Kum ara tunga aprovou uma lei que pavim entou o cam inh o para
Colombo) . Parecia um negócio horroroso, e os nativos do país reagiram à altura. a privatização da água , um plano contra o qual os cidadJos resistiam há anos. É claro
O projeto Regaining Sri Lcmka foi rejeitado, primeiro, por meio de uma onda de greves que, agora, com o país ainda enlameado pela água cio mar e as covas ainda por cava r,
militantes e protestos de rua , e·depois, de modo decisivo, pelas eleições. Em abril de 2004, poucos sequer sabiam que isso tinha aco ntecido - um senso de oportunidade parec ido
os habitantes do Sri Lanka desa fiaram todos os es pecialistas estrangeiros e seus parceiros com a da nova lei cio petróleo, no Iraque. O governo também escolheu esse momen to
loca is e votaram numa coalizão de centro-esquerda e ele marxistas, que prometeu rasgar ele extrema dificuldade para tornar a vida ainda mai s dura, elevando o preço da gasolina
em pedaços o texto integral do Regaining Sri Lanka. 13 Na época, alguns dos principais - um gesto destinado a mandar, aos credores, uma mensagem inconfundível sobre a
esquemas de privatização ainda não haviam sido aprovados, inclusive os de água e ele- responsabilidade fiscal de Colombo. E começou, além disso, a desenvolver um a legislação
tricidade, e os projetos das rodovias estavam sendo contestados na justiça. Para aqueles para fragmentar a companhia nacional de eletricidade, com planos de abri-la ao setor
que so nharam em construir um parque de diversões para a plutonomia, foi um grande privado. 15
revés: 2004 deve ria ter sido o A~l!J Zero do novo Sri Lanka, amigável co m os investidores Herman Kumara, chefe do Movimento de Solidari edade Nacional dos Pesqu eiros, que
e privatizado; agora, tod1ls as apostas estavam suspensas. representa os barcos pequenos, se refer iu à reco nstrução como "um segundo tsunami da
Oito meses depois d~ssa.'> eleições fatídicas, oco rreu o tsun ami. Entre aqueles que la- globa li zação corpo rativa". Ele a viu como uma tentati va deliberada de explora r os cons-
me nta ram o hm do l?~goi11i11g Sri Lc111ka, o significado do evento foi rap idamen te com- tituintes, na hora em que se encontrava m mai s ma chuca dos e enfraq uecidos - assim
preendido. O gove rno recrntern ente eleito precisaria ele bilhões ele dólares dos credores como a pilhagem sucede a guerra, este segundo tsunami se apresso u a seguir o primeiro.
est range iros para n:construir os l:ires, estrad as, escolas e ferrovias do país, que foram "O povo foi veementemente cont rári o a essas políticas no passado", di sse-me ele. "Mas
destruídos pela tem pestad e - e os credores sa biam bem que, diante de uma crise de- ago ra ele passa fome nos campos e só pensa numa forma de sobrev iver, no dia seguinte
vastadora , até mes mo os nacionalistas mais co mprometidos s ubitame nt~ se torn ava m - não tem lugar para dormir, não tem luga r para estar, perdeu sua fo nte de renda , não
flexíveis. Quanto aos agricultores e pescadores militantes, que bloquearam rodov ias e tem idéia de como vai se alimentar no futuro. É nessas circunstâ ncias que o govern o
encenaram manifestaçües p<1ra barrar as primeiras tentativas de desocupar a terra para o prossegue com seu plano. Quando o povo se recuperar, vai descobrir o qu e fo i decidido,
desenvolvim ento, bem, eles estavam ocupados co m outra co isa naq uele momento. mas aí o estrago já terá sido feito."

Depois da onda: uma segunda chance Se os emprestadores ele Washington foram capazes de se mexer rapidamente para explo-
rar o tsunami, foi porque já tinham feito um a coisa bastante se m e lh a nt~ anteriormente.
Em Colombo, o governo nacional mudou imediatamente, para provar aos países ri cos, O ensa io final para o capitalismo ele desastre pós-tsunami aconteceu ~u.im episódio pou-
que co ntrolava m os dólares ela ajuda; que es tava pronto par.<Henun ciar ao se u passado. co examinado, que se segui u ao furacão Mitch.
A presidente Chanclrika Kumaratunga, eleit a com uma platafo rm a abertamente con- Em outubro de 1998, por toda uma interminável semana, o Mitch es tacionou sob re a
trária à privatização, declarou que o tsunami ha\lia sido, p_ar~ ela, uma es pécie de epi fa- América Ce ntral, varrendo a costa e as mont anhas ele Honduras, Guatemala e Nicarágua ,
nia religiosa, qu e a ajudara a ver a lu z dó livre mercado. Ela viajou até a costa devastada engolindo vilas inteiras e matando mais de nove mil pessoas. Aqueles países já empobre-
pela tempes tade e, pisando sobre os esco mbros, proclamou: " N"M somos um país aben- cidos. não conseguiriam se reerguer sem uma aj uda externa generosa - e ela veio, mas
çoa do co m inúmeros rec ursos naturais e não fazemos uso integral dos mes mos. (... ) a um custo bastan te alto. Nos dois meses que se seguiram ao impacto do Mitch, tendo
Assim, a própria natureza eleve ter pensado 'i~so é o bastante' ·e nos atingiu por todos os o país entulho, cadáveres e lama até os joel hos, o (ongresso hondurenho aprovo u leis
lados, ensinando-nos um a lição para ficar mos juntos." 1·1 Era uma inter pretação in édita que permitiram a privatização cios aeroportos, portos e rodovias, e ap resso u os planos
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para priva tiza r a companhi a estatal de telefone, a companhia elétrica nacional e partes tinha varrido a costa, ela criou um órgão inteiramente novo, chamado de Força-Tarefa
do setor de água. Também suprimiu as leis progressistas de reforma agrária, tornando para Reconstruir a Nação. Esse grupo, e não o Congresso do Sri Lanka, teria poder total para
muito mais fácil, para os estrangeiros, a compra e a venda de propriedades, e aceitou uma, desenvolver e implementar um plano inteligente para um novo país. A força-tarefa era
nova lei radicalmente favor úvel às min erad oras (elaborada pela indústria), que reduziu formada pelos executivos empresariais mais poderosos do país, de bancos e indústrias.
os padrões de proteção ambi ental e facil itou a retirada de pessoas cuj as casas ficassem no E não apenas de qualquer indústria - cinco dos dez membros da força-tarefa tinham
caminho das novas minas.16 holdings no setor de turismo praiano, representando alguns dos maiores resorts do país. 20
Aconteceu a mesma coisa nos países vizinhos: nos dois meses .s·eguintes ao Mitch, a Não havia ninguém dos setores de pesca ou agricultura na força-tarefa, nenhum expert
Guatemala anunciou os plan os para vender seu sistema de telefonia, e a Nicarágua fez o em meio ambiente ou cientista, ou mesmo especialista em reconstrução de desastres.
mesmo com sua empresa elétrica e o seu setor de petróleo. De acordo com o Wal/ Street O presidente era Mano Tittawella, ex-czar da privatização. "Essa é a oportunidade para
]ourna/, "o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional jogaram todo o seu peso construir uma nação-modelo", declarou ele.21
na venda [da telefonia], tornando-a urna co ndição para liberar quase 47 milhões de dó- A criação da força-tarefa era um novo tipo de golpe de Estado corporativo, realizado
lares de ajuda anual pelos próx im os três anos e vincu.lando-a, no caso da Guatemala, por meio da força de um desastre natural. No Sri Lanka, assim como em muitos outros
ao abatimento de 4,4 bilhões de dólares da dívida externa do país".17 A privatização da países, as políticas da Escola de Chicago vinham sendo bloqueadas pelas regras normais
telefo nia não tinh a nada a ver com a reconstru ção pos terior ao.fu racão, é claro, a não ser da democracia; as eleições de 2004 provaram "isso. Mas, com os cidadãos do país se reu-
dentro da lógica dos cap italistas de desastre das instituições fi~anceiras de Washington. nindo para enfrentar uma emergência nacional, e os políticos desesperados para desblo-
Nos anos seguintes, as ve ndas con tinuaram freqü enterpente com preços abaixo do quear o dinheiro da ajuda, os desejos exp ressos dos eleitores podiam ser sumariamente
va lor de mercado. Os compradores, em sua maioria, eram antigas co mpanhias esta tais de colocados de lado e substituídos pelo comando direto, não eleito, da indústria - um
outros países, que havi am sido priva tizadas e agora corriam o mundo em busca de novas primeiro passo para o capitalismo de desastre.
aquisições que pudesse m aum entar o preço de suas participações. A Te)mex, co mpanhia Assim sendo, em apenas dez dias, e sem sa ir da cap ital, os líderes empresariaü da for-
telefônica mexica na privatizada, arrematou a empresa de telecomunicações da Guate- ça- tarefa foram capazes de elaborar um projeto completo de reconstrução nacional, que
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mala; a Un ión Fenosa, empresa de energia espanhola, ficou com as firmas energéticas da ia de co nstrução de moradias a auto-e tradas. Foi esse plano que exigiu as zonas amorte-
Nicarágua; o Aeroporto Internaci onal de São Francisco, agora privatizado, co;nprou os cedoras e, gentilmente, isentou os hotéis. A força-tarefa também redirecionou o dinheiro
quatro aeropor tos hondurenhos. A Nicarágua vendeu 40% de sua companhia ~e telefone da ajuda para as super auto-estradas e portos pesqueiros industriais, que haviam enfren-
por apenas 33 milh ões de dólares, embora a PricewaterhouseCoopers houvesse estimado tado tanta resistência antes da catástrofe. "Enxergamos essa agenda econômica como um
o seu valor em oitenta milhões de dólares.18 "A destrui ção traz co nsigo a opo rtunidade desastre ·~inda maior do que o tsunami, e foi por isso que lutamos tanto para evitá-la
para investim entos estrangeiros", anunciou o ministro das Relações Exteriores da Guate- antes, e a derrotamos nas eleições", disse- me Sarath Fernando, um ativista pelo direito à
mala, numa viagem ao Fórum Econôm ico de Davos, em 1999.19 • terra do Sri Lanka. "Mas agora, apenas três semanas depois do tsunami, eles nos dão o
mesmo plano. É óbvio que eles tinham tudo pronto antes." ·
Na ocasião do baque do tsunami , Washington estava pronto para conduzir o modelo- Washington apoiou a força-tarefa com o tipo de ajuda para reconstrução que já tinha se
Mitch ao próximo nível - objetivando não apenas novas leis individuais, mas o controle tornado familiar no Iraque: megacontratos para suas próprias companhias. A CH2M Hill,
direto das corporações sobre o processo de reconst rução. Qualquer país afeta.do por tml gigante de engenharia e construção do Colorado, foi agraciada com 28,5 milhões de dólares
desastre, na escala do tsunami de 2004, precisa de um plano completo de reconstrução, para supervisionar outros grandes contrat~nte~ no Iraque. Apesar de seu papel central no
capaz de fazer uso inteligente dos fluxos de ajuda externa e de garantir que º"
recursos ·fiasco da reconstrução de Bagdá, a empresa ·recebeu um contrato adicional de 33 milhões
cheguem aos destinatários desejados. Contudo, a presidente do Sri Lanka, sob pressão
dos emprestadores de Washington, decidiu que o plano não poderia ser confiado aos Fernando é o cabeça do Movimento pela Reforma da Terra e da Agricultura (MONLAR) , uma
políticos eleitos de seu governo. Em vez disso, apenas uma semana depois que o tsunami coalizão de ONGs do Sri Lanka, que começou a demand.ar ·"urn processo de reconstrução popular"
imediatamente após o desastre.
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de dólares no Sri Lanka (depois aumentado para 48 milhões de dólares), basicamente para que aguardava, junto a outras pessoas, o elevado r ele Va rley. Sua filha mais nova tinha
trabalhar em três portos de águas profundas para frotas pesqueiras industriais e para cons- seis meses de idade, e nascera dois dias após o tsun ami. Renuka juntou fo rça s sobre-
truir uma nova ponte para a Baía de Arugam, parte do plano destinado a transformar a ci, . humanas para pegar seus dois menin os e correr, grúvicla de nove meses e co m água até
dade num "paraíso turístico''. 22 Esses dois programas - implementados em nome do alívio o pescoço, para longe da onda. Ainda assim, depois desse fe ito extraord in ár io de sobre-
para o tsunami - foram desastrosos para as principais vítimas do desastre, que pegavam vivência, el~ e sua famí lia estavam ago ra , silenciosa mente, passando fome num pedaço
os seus peixes com redes, as quais os hotéis não queriam mais ver na praia. Como disse árido de terra no meio do nada. Duas canoas doadas por uma ONG bem-intencionada
Kumari: "Não é só que a 'ajuda' não está ajudando, é que está machucando." compunham uma triste visão: a três qui lômetros da água, e sem sequer uma bicicleta
Quando lhe perguntei por que o governo cios Estados Unidos estava gasta nd o seu di- para fazer o transporte, elas nada mais eram do que a lembrança cruel d~ uma vida ante-
nheiro de aj uda em projetos que promoviam o deslocamento forçado dos sobreviventes rior. Renuka nos pediu para levar uma mensage m a todos que estavam tentando aj udar
do tsunami, John Varley, diretor do Programa de Competitividade da USAIO, explicou os sobreviventes do tsunami . "Se você tiver alguma coisa para mim", disse ela, "coloque
que "não se quer restringir a ajuda para que chegue apenas às víti mas do tsunami. (... ) na minha mão".
Que seja em benefício de todo o Sri Lanka; que possa contribuir para o crescimento".
Varley compa rou o plano a um elevador num edifício muito alto: na primeira viagem, A onda mais ampla
este leva um grupo de passageiros até o topo, onde criam riqueza que permite ao eleva- ..
dor descer e pegar mais pessoas. As criaturas que esperam no chão devem saber que o O Sri Lanka não fo i o único país abatido por essa segunda onda .!....'.. hi stórias seme-
elevador voltará para busc.í- las também - finalmente. lhantes de apropriação da terra e da lei aconteceram na Tail;\ndia, nas Ma ldi vas e na
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O único dinheiro que os Estados Unid os est avam gasta ndo diretamente com os Ind onésia . Na Índia, sob rev ive ntes do tsunami de Tamil Nadu se vi ram abandonados
pescadores de pequ eno porte era uma verba de um milhão de dólares, para "melh o- em tal es tado de miséria , qu e 150 mulh eres foram leva da s '' ve nd er se us rins para
rar" os abrigos temporários cm que eles es ta va m se ndo armazenados, enquanto as co mprar comida. Um voluntário expl icou ao Guarrlin 11 que o governo do Estado "pre-
praias iam sendo reorganizadas.23 Era uma boa indi cação de que os abrigos iguais feriu que a costa fosse utilizada para a const rução de hotéis, mas o resultado é um
a latas de sa rdinha eram temporários apenas no nome; e estavam mesmo destina- povo desespe rado". Todos os países afe tados pelo tsunami im puseram "zo nas amor-
dos a se tornarem favelas permanentes - que marca m as grandes cidades do Sul tecedoras", que impediram os moradores da s vi la s de reconst rui r a costa, de ixa ndo a
global. Não há grandes lenitivos para aj udar as pessoas que vivem nessas favelas, é terra livre para o crescente desenvolvimento. (Em Acch, Indonésia, as zo nas tinham
claro, mas as vítimas do tsunami de ve riam ser diferentes. O mundo assistiu ao vivo, dois quilômetros de largura , embora o governo tivesse sido forçado, fina lm ente; a
pe la televisão, a perda de suas casas e meios de vida, e a imprevisibilidade de se u suspe nder o edito.)1·1
destino provocou um se ntim ento visceral, globa l, de que o que havia sido perdido Um ano após o tsunami, a respeitada ONG ActionAi<l, que monitora o gasto do
precisava e merecia ser recuperado - não por meio de truques ec9 nômicos, mas din heiro de ajuda estrange iro, publicou os resultados de um extensivo leva ntamento
diretamente, com aj uda de corpo a corpo. No entanto, o Banco Mundia l e a USAID de cinqüenta mil sobreviventes do desastre, em cinco países. Os mesmos padrões se
compreenderam uma coisa que nos escapou quase por comp leto: em pouco tempo, repetiram em todos os lugares: os moradores foram impedidos de reconstruirº, ma s
a especific id ade dos sobrevive ntes do tsunami desaparecer ia e eles seriam integra - os hotéis receberam grandes incentivos; os campos temporúrios se tornaram currais
dos aos bilhões de pobres sem rostos elo mundo inteiro, muitos dos quais já vivem miserá.veis militarizados, e quase nenhuma recon stru ção permanente fo i realizada;
em barracos de lata, sem água. A proliferação desses barracos se tornou uma carac- modos de vida inteiros estavam se ndo extintos. O relatório conclu iu que os obstác u-
terísti.ca· tão ace it ável da economia globa l quanto a explosão dos hotéis com diárias los não poderiam ser vencidos, em razão elos vilões habituais de falta de comunica-
ele oitoce ntos dólares. ção, carê ncia de recursos para investimento e corrupção. Os problemas eram estru-
Num dos campos do interior mais desolados, na costa sudoeste elo Sri Lanka, eu co- turais e propositais: "Os governos fracassaram tota lm ente em sua respo nsabilidade
nheci uma jovem mãe chamada Renuka, arrebatadoramente bela, mes mo em farrapos, de prover terra para a construção de moradia s perman entes'', arrematava o texto
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do relatório. "Permitiram ou foram cúmplices, enquanto a terra estava sendo apro- Com os críticos fora da vista, encarcerados nas prisões ilhéus, Gayoom e seu entourage
priada e as comunidades costeiras iam sendo deslocadas em benefício dos interesses ficaram livres para voltar sua atenção para os negócios do turismo.
comerciais." 25
Quando se tratou do oportunismo pós-tsunami, contudo, nenhum lugar se compa- Antes do tsunami, o governo das Maldivas tinha pensado em expandir o número de ilhas
rou às Maldivas, talvez o menos compreendido de todos os países afetados. Ali, o governo resorts, a fim de atender à crescente demanda p>or refúgios luxuosos. Contudo, enfrentou
não ficou satisfeito apenas com a retirada das pessoas pobres da costa - usou o tsunami um obstáculo rotineiro: o povo. Os maldívios são pescadores de subsistência, muitos dos
para tentar tirar seus cidadãos da maior parte das zonas habitáveis do país. quais habitam vilarejos tradicionais espalhados pelos atóis das ilhas. Esse tipo de vida
As Maldivas, que compõem um arquipélago de aproximadamente duzentas ilhas ina- criava alguns desafios, porque o charme rústico de observar os peixes sendo descamados
bitadas no litoral da Índia, são uma república turística, do mesmo modo que certos paí- na praia, definitivamente, não era o cená rio das Maldivas. Muito antes do tsunami, o
ses da América Central costumavam ser chamados de repúblicas de bananas. Seu produ- governo de Gayoom vinha tentando convencer seus cidadãos a mudar para um punhado
to de exportação não são frutas tropicais, mas lazer tropical, sendo que 90% das receitas de ilhas maiores e mais populosas, que os turistas raramente visitam. Naqueles lugares,
governamentais, espantosamente, provêm de balneários de férias .26 O lazer vendido pelas eles teriam melhor proteção contra a subida das águas causada pelo aquecimento global.
Maldivas é do tipo especialmente decadente, atraente. Cerca de uma centena de suas No entanto, foi difícil até mesmo para um regime repressor 'arrancar dezenas de milhares
ilhas são "ilhas resorts", terrenos cobertos de vegetação ex uberante, cercados de auréolas de pessoas de suas ilhas ancestrais, e o programa de "co nsolidação populacional" acabou
de areia branca, inteiramente controlados por hotéis, linhas marítimas transatlânticas e sendo muito malsucedido. 29
indivíduos abastados. Algum as estão arrendadas por cinqüenta anos. As mais luxuosas Após o tsunami, o governo de Gayoom anunciou, de imediato, que o desastre havia
das ilhas Ma ldivas se dedica m a uma clientela de elite (To m Cruise e Kate Holmes, em sua provado que muitas ilhas eram "inseguras e inadequadas à moradia" e deslanchou um
lua-de-mel, por exemplo), que é atraída não apenas pela beleza e pelos mergulhos, mas programa de realocação mais agressivo do que os anteriores, declarando que qualquer
pela promessa de total reclusão que somente ilhas privadas podem oferecer. pessoa que desejasse obter ajuda estatal, para recuperação do desastre, deveria se mudar
Com uma arquitetura "inspirada" nas vi las de pescadores, os spa-resorts competem para uma das cinco "ilhas seguras" discriminadas. 30 Toda a população de diversas loca-
para'saber quem pode encher suas cabanas montadas sobre estacas com os aparatos mais lidades já tinha sido evacuada e ainda havia mais em curso, liberando, de modo conve-
excitantes de brinquedos e vantagens plutonômicas - equipamentos de som~ vídeo da niente, mais terra para o turismo.
Bose Surrou nd Sound, apetrechos para banheiros ao ar livre da Philippe Starck, lençóis O governo rnaldívio argumenta que o Programa Ilha Segura, apoiado e financiado
tão fino s que praticamente se desmancham ao menor toque. As ilhas ainda superam pelo Banco Mundial e outras agências, tem sido direcionado pela demanda popular de
umas·as outras na eliminação das fronteiras entre a terra e o mar - as mansões de Coco viver em "ilhas maiores e mais seguras". No entanto, muitos ilhéus dizem que preferiam
Palm f~ram erguidas sobre a lagoa e têm escadas de corda do <leque para dentro da água, ter ficado em sua terra natal, caso a infra-estrutura tivesse sido restaurada. Como afir-
os aposentos do Four Seasons "flutu am" sobre o oceano, e o Hilton se gaba de ter o pri- mou a ActionAid: "O povo fica sem escolha, pois a mudança é uma pré-condição para
meiro restaurante submerso, construído numa barreira de corais. Muitas suítes possuem .obter ajuda de moradia e subsistência."31
quarto de empregada, e, numa das ilhas privativas, há um "dedicado mordomo maldívio O fato de que a preocupação governamental tenha se evaporado diante de todos os
- um 'Thaku ru"' que, durante as 24 horas do dia, toma conta de detalhes como "de que hotéis construídos com arquitetura precária, na parte baixa das ilhas, conferiu ainda mais
modo prefere seu martíni - batido ou mexido?". As mansões nesses resorts de estilo Ja- cinismo à argumentação apoiada na idéia de segurança. Não só os resorts ficaram isentos
mes Bond cobram diárias de até cinco mil dólares.27 da evacuação de proteção, como também , em dezembro de 2005, um ano após o tsuna-
O hom em que controla esse reino d.e ·prâzer é o governante mais antigo da Asia, o pre- mi, o governo de Gayoom anunciou que 35 novas ilhas estavam disponíveis para serem
siden te Maumoon Abdul Gayoom, que subiu ao poder em 1978. Durante seu mandato, o arrendadas a resorts, por mais cinqüenta anos. 32 Enquanto isso, nas ilhas chamadas de
governo colocou na prisão os líderes da oposição e foi acusado de torturar os "dissiden- seguras, o desemprego crescia assustadoramente, e a violência explodia entre os recém-
tes", por crimes como escrever páginas de internet contrárias à administração pública. 28 chegados e os antigos habitantes.
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Valorização imobiliária militarizada muitos deles ergueram suas facas de descamar peixes e juraram "juntar sua gente e sua
força", para lutar por sua terra. No começo, eles disseram que apreciaram a chegada dos
Num certo sentido, o segundo tsunami foi apenas uma dose particularmente chocante da hotéis e restaurantes. "Mas agora", disse um pescador chamado Abd ul , "só porque demos
terapia de choque econôm ico: a tempestade fez um trabalho tão efetivo de limpeza das a eles um pedaço de nossa terra, eles querem tudo". Um outro, de nome Mansoor, apon-
praias, que
. oo processo de deslocamento e valor ização imobiliária, normalmente realizado tou sobre a cabeça para as palmeiras que nos davam sombra e tinham sido fo rtes a ponto
ao longo de anos, ocorreu em questão de dias ou semanas. O que se viu foram centenas de agüen tar o tsunami. "Foram meus tataravós que plantaram essas árvores. Por que
ele milhares de pessoas, de pele marrom-escura (os pescadores qualificad.os como "im- deveríamos nos mudar para outra praia?" Um de seus parentes fez uma promessa: "Só
produtivos" pelo Banco Mundial), sendo removidas co ntra sua von tad~ para dar lugar sairemos daqui quando o mar secar."
aos ultra-ricos, na maior parte de pele clara (os turistas de "renda elevada"). Os dois O fluxo de ajuda para reconstrução do tsunami deveria gara ntir ao Sri Lanka a chance
pólos econômicos da globalização, que parecem viver não em países, mas em séculos de co nstruir uma paz duradoura, depois de tanto sofrimento causado pela dor da perda.
diferentes, foram colocados em conflito, subitamente, por causa de pedaços da orla ma- Na Baía de Arugam, e em toda a costa leste, parecia estar começando um novo tipo de
rítima, uns reclama ndo o direito de trabalhar, outros defendendo o direito de se divertir. guerra, para saber quem se beneficiaria desses financiamentos - singaleses, tàmeis ou
A valorização imobiliária militarizada, garantida pelas armas da polícia local e da segu - muçulmanos - e, acima de tudo, se os verdadeiros benefícios iriam para os estrangeiros,
rança privada, era luta de classes na praia. .. às custas dos nativos.
Alguns dos choques mais diretos aconteceram na Tailândia, para C11Íde, 24 horas após Co mecei a ter uma nítida se nsação de déjà vu, como se o vento estivesse mudando e
a o nda , os incorporadores imo bi liári os enviaram guardas de segura_nça pri vada arma- este fosse se tran sformar em outro país "recon struído", tomando o caminho da destru i-
dos, a fim de colocar ce rcas nas terras que eles cobiçavam para Ós resorts. Em alguns ção perpétua. Eu tinha escutado queixas seme lhantes no Iraque, um ano an tes, sobre
casos, os guardas nem sequer deixaram os sobrevive ntes procurarem, dentro de suas co mo a reconstrução favorecera os curdos e certos xiitas privilegiados. Muitos volun-
antigas propriedades, os corpos de seus filhos. 3.1 O grupo denominado Sobreviventes e tários que conheci em Colombo me disseram que gostavam mais de trabalhar no Sri
Voluntários do Tsunami na Tailândia foi rapidamente formado para enfrentar as apro- Lanka do que no Iraque ou no Afega nistão - aq ui, as ONGs ai nda eram vistas como
priações de terra. Numa ele suas primeiras declarações, foi afirmado que, para "políticos neutras, e mesmo solidárias, e reconstrução ainda não era uma palavra suja. Mas aq uil o
e homens el e negócios, o tsunami foi uma re,posta às suas preces, pois deixou aquelas estava mudando. Na capi tal, vi quadros que ex ib iam Laricaturas rústicas de voluntários
úreas costei ras literal mente limpas da~ comunidades que antes ficavam no caminho ele ocide ntais se enchendo de dinheiro, enquanto habitantes do Sri Lanka passavam fome .
se us planos para res'vrts, hoté is, cassinos e criações de camarão. Para eles, toda essa orla As ONGs sofreram as conseqüências da raiva con tra a reconstrução, porque eram
marítima agora é terra aberta! "1'1 intensa mente visí·veis, exibindo suas marcas em qualquer super'íície disµonível ao longo
Terra aberta. Nos tempos colo niais, isso era uma doutrina quase legal - terra nullius. da costa, enquanto o Banco Mundial, a USAID e os funcionários do governo que so nha-
Se a terra fosse declarada vazia ou "desperdiçada", podia ser tomada e seu povo elimina- vam com planos para Bali raramente saíam de seus escritórios urbanos. Era um a ironia,
do sem remorso. Nos países abatidos pelo tsunami, a idéia de terra aberta foi reforçada porque os organizado res da ajuda eram os únicos que ofereciam algum tipo de auxílio
co m essa feia ressonância histórica, que evocou riqueza roubada e tentativas violenias de -.mas também era inevitável, pois suas ofe rtas eram muito inadequadas. Parte do pro-
"civilizar" os nativos. Nijam, um pescador que conheci na praia, na Baía ele Arugam, não blema advinha do fa to de que o complexo de ajuda tinha ficado tão gra nde e tão isolado
via diferenças reais. "O governo acha nossas redes e nossos peixes feios e incômodos e por gas. pessoas a quem deveria servir, que os estilos de vida de seu pessoal se tornaram uma
isso nos quer fora das praias. Para agradar os estra ngeiros, está tratando seu próprio povo obsessão nacional no Sri Lanka. Quase todos que conheci comen taram acerca daquilo
como se fosse incivilizado." Ao que parecia, o entulho era a nova terra nullius. que u"nrpadre chamou de "a vida excitante da ONG'i: liotéis ca ríssi mos, mansões à beira-
Quando conheci Nijam, ele estava com um grupo de pescadores que acabara de vol- mar e 0 ímã mais fundamental para atrair a ira popular, os novíssimos veículos util itários
tar do mar, e se us olhos estavam avermelhados pela água salgada. Assim que mencionei esportivos de co r branca. Todas as organ izações de aj uda possuíam esses carros, coisas
o plano governamental de mudar os pescadores de barcos pequenos para outra praia, monstruosas que eram muito largas e potentes para as estradas de chão estreitas cio país.
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Eles passavam o dia inteiro pelos campos, obrigando todas as pessoas a comerem sua raízes no Sri Lanka, precisaria suplantar os benefícios da guerra, inclusive os proveitos
poeira e balançando suas marcas nas flâmulas ao vento - Oxfam, World Vision, Save econômicos tangíveis que resultam de uma economia de guerra, na qual o Exército toma
the Children -, como se fossem visitantes de um distante Mundo das ONGs. Num país conta das famílias de seus soldados e os Tigres do Tamil cuidam das familias de seus
quente como o Sri Lanka, esses carros, com suas janelas pintadas e ar-condicionado ba- combatentes e homens-bomba.
rulhento, eram mais do que meios de transpo111te; eram microclimas rodantes. O enorme afluxo de generosidade pC'sterior ao tsunami guardou a rara oportunidade
Vendo esse ressentimento crescer, não pude deixar de imaginar quanto tempo levaria de um genuíno dividendo de paz - os recursos para imaginar um país mais equânime,
para o Sri Lanka seguir o caminho do 1raque e do Afeganistão, onde a reconstrução se as- para consertar comunidades devastadas, de modo a reconstruir a confiança, junto com
semelhava tanto à ladroagem que os voluntários se transformaram em alvos. Aconteceu a recuperação dos prédios e estradas. Em vez disso, o Sri Lanka (como o Iraque) recebeu
logo depois que eu parti: dezessete nativos do Sri Lanka, que trabalhavam no auxílio às aquilo que o cientista político da Universidade de Ottawa, Roland Paris, denominou de
vítimas do tsunami para a ONG internacional Action Against Hunger, foram massacra- "uma penalidade de paz" - a imposição de um modelo econômico implacável e com-
dos em seu escritório, perto de Trincomelee, uma cidade portuária da costa leste. Aquilo bativo, que tornou a vida mais difícil para a maioria das pessoas, no exato momento em
acendeu a fagulha de uma nova ond a de lutas brutais e deteve a reconstrução que estava que o que elas mais precisava m era reconciliação e diminuição das tensões. 37 Na verdade,
em curso. Muitas organizações de ajuda deixaram o país, temendo pela segurança de seu a espécie de paz que foi oferecida ao Sri Lanka foi o seu próprio tipo de guerra. A vio-
pessoa l, após inúm eros outros ataques. Outras mudaram seu foco para o sul, a área con- lêpcia contínua era a promessa de terra, soberania e glória. O que foi ofertado pela paz
trolada pelo governo, deixando as zonas do leste, que foram as mais atingidas, e o norte das corporações, além da falta de terra, no curto prazo, e do elevador de John Varley, no
dominado pelos tâmeis sem auxílio. Essas decisões apenas aguçaram o sentimento de que . longo prazo?
os fundos da reconstrução estavam sendo gastos de modo injusto, especialmente depois Em todos os lugares em que a Escola de Chicago triunfou, ela criou uma subclasse
que um estudo realizado em 2006 descobriu que, embora todos os lares atingidos pela permanente formada por cerca de 25% a 60% da população. É sempre um tipo de guer-
onda estivessem em ruínas, a única exceção era o distrito eleitoral do próprio presidente, ra. Todavia, quando esse modelo econômico de desapropriação em massa e eliminação
no sul , onde miraculosos J 73% dos lares tinham sido reconstruídos. 35 de culturas, organizado como uma operação de g~erra, é imposto a um país que já está
Os voluntários que permaneceram no leste, próximos à Baía de Arugam, agora pre- arruinado pelo desastre e ferido pelo conflito étnico, os perigos são ainda maiores. Como
cisavam lidar com uma nova onda de pessoas deslocadas - centenas de milhares que Keynes argumentou, há muitos anos, existem conseqüências políticas nesse tipo de paz
foram forçadas a abandonar suas casas por causa da violência. Como noticiou o New punitiva - inclu~ive a eclosão de guerras ainda mais sangrentas.
York Times, trabalhadores das Nações Unidas, "que originalmente tinham sido contra-
tados para reerguer as escolas destruídas pelo tsunami, foram redirecionados, a fim de
construir banheiros para pessoas deslocadas pelos combates". 36
·Em julho de 2006, os Tigres do Ta mil anunciaram que o cessar-fogo estava oficial-
.mente suspenso; a reconstrução tinha acabado e a guerra estava de volta. Menos de um
ano depois, mais de quatro mil pessoas haviam sido assassinadas nas lutas que sucederam
o tsunami. Apenas uma fração dos lares destruídos pela onda tinha sido reerguida em
toda a costa leste, mas, entre as novas estruturas, centenas estavam furadas com buracos
de bala, janelas recém-instaladas estavam estilhaçadas pelos explosivos, e telhados novís-
simos tinham sido detonados.
É impossível dizer até que ponto a decisão de usar o tsunami como oportunidade para
o capitalismo de desastre contribuiu para o retorno da guerra civil. A paz sempre fora
precária, e havia má-fé em todos os lados. Contudo, uma coisa era certa: se a paz fincasse
ESVAZIANDO A PRAIA 481

18
NOTAS DO CAP ÍTULO 19 . "Mexico's
. ,. Telmex Unveils Guatema la 1elecom Alliancc"·, "Spa in's Fe11osa l:luys Ni·c aragua Energy
D1stnbutors, Reuters, 12 de setembro de 2000; "San Francisco Group Wins Honduras Airport Deal",
1
Seth Mydans, "Builders Swoop in, Angering Thai Survivors", Internntional Hera/d Tribune (Paris), Reuters, 9 de março de 2000; "CEO-Govt. to Sell Rem ai ning Enitel Stake This Year", Bi1 siness Neivs
1Ode março de 2005. Arnericas, 14 de fevereiro de 2003.
2 19
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4
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6 zn /11dones1a and Srr Lanka Exceed lnitial Cost and Schedule Est imates, and Face Further Risks, Relatório
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8
Ibid. Físico, Arugam Bay Reso11rce Develop111e11t Plan: Reco11structio11 Towarr.ls Prasperity, Relat ório Fin al, 25
9
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23
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24
10
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11
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25
200 1, e, nesse período, supervisionou a priva ti zação das co mpanhias Sri L.anka Telccom (agosto de 1997) ActionAid lnternational et ai. , Tsuna111i Respo11se, 9.
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2
e Sri Lanka Air l.incs (março de 1998). Depois das eleições de 2004, foi nomeado presidente e CEO da 2
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16
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32
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' .
482 A DOUTRINA DO CHOQU E

36 Shimali Senanayake, "An Et hnic War Slows Tsun ami Recovery in Sri Lanka", New York Times, 19 de
outu bro de 2006.
37 Roland Paris, At War's End: Building Peace Afier Civil Conflict (Cambridge: Cambridge University

Press, 2004 ), 200. '

CAPÍTULO 20 °

O APARTHEID DO DESASTRE

UM MUNDO DE ZONAS VERDES E ZONAS VERMELHAS

Reza a longa tradição que os desastres não discriminam - que eles esmagam
tudo, em sua trajetória, com "democrático" menosprezo. As epidemias castigam
os despossuídos, aqueles que são forçados a construir suas vidas na rota do peri-
go. A aids não é diferente.
- Hein Marais, escritor sul-africano, 2006 1

O Katrina não foi inesperado. Ele resultou de uma estrutura política que subcon-
trata sua responsabilidade para empresas privadas e abdica inteiramente de suas
obrigações.
- Har ry Belafonte, mt'.1sico estadunide nse e ativista dos direitos civis, setembro
de 2005'

NA SEGUNDA SEMANA DE SETEMBRO DE 2005, f'.ui a Nova Orleans com meu marido, Avi, e
também com Andrew, com quem viajei para ci Iraque. Nosso objetivo era gravar cenas para
um documentário na cidade ainda parcialmente inundada. Quando soou o toque de reco-
lher noturno, às seis horas, ficamos dirigindo em círculos, sem conseguir encontrar nosso
caminho. Os sinais de tráfego estavam desligados e metade das sinalizações das ruas tinha
sido levada ou entortada pela tempestade. Escombros e água obstruíam a passagem em mui-
tas avenidas, e a maioria das pessoas que procurava se desviar dos obstáculos era formada
por visitantes, como nós, que não tinham a menor idéia do percurso que estavam fazendo.
O acidente foi grave: uma colisão frontal em grande velocidade, no meio de um cru-
zamento importante. Nosso carro arrastou um sinal de tráfego, atravessou urna grade de
484 A OOUTHINA DO CI IOOUE
O /\P/\Rl/f[IO DO DESASTRE 485

ferro e parou num pórtico. Os ferimentos das pessoas, em ambos os carros, feli zmente as pessoas já especulavam que, com os estragos causados pela úgua , provavelm ente jamais
foram pequenos, mas antes que eu so ubesse disso fui amarrada num a maca e levada reabriria. "É melhor reabri-lo", disse ele. "Não podemos tratar aquelas pessoas aqui ."
embora. Apesar do atordoamento decorrente da pancada, eu tinha consciência de que Então me ocorreu que esse afável jovem médico, e o cuid ado de sa úde parecido com
aonde qu er que a ambulância fosse, não seria bom. Eu me lembrava nitidamente das um spa que eu acabara de receber, eram a co rporificação da cultura que havia tom ado
cenas horrorosas da clínica improvisada no aeroporto de Nova Orleans - havia tão pou- possíveis os horrores do furacão Katrina e deixa ra os moradores mais pobres ~ e Nova
cos médico.s e ~nfe rmeiras, que os idosos desabrigados permaneciam sem atendimento Orleans se afogarem. Tendo se formado numa escola de medicina privada e depois setor-
durante horas, jogados em suas cadeiras de rodas. Pensei no Charity Hospital, principal nado residente num hospital privado, ele fora treinado para, simplesmente, não enxergar
ambulatóri o de emergência da cidade, pelo qual havíamos passado mais cedo. Ele tinha os habitantes majoritariamente afro-descendentes de Nova Orleans, que não tinham se-
sido inundado durante a tempestade, e seu pes5oal lutara sem forças para manter os pa- guro-saúde, como pacientes em potencial. Isso era ve rdadeiro antes da tormenta e conti-
cientes vivos. Pedi aos paramédicos que me dei xassem sair. E me lembro de dizer a eles nuava sendo, mesmo depois que toda a cidade se transfo rmou num grande ambulatório
que estava bem, de verdade, e então devo ter desmaiado. de emergência: ele tinha simpatia pelos desabrigados, mas isso não mudava o fato de que
Voltei a mim quando chegamos ao hospital mais moderno e calmo que eu já tinha visto. ele ainda não podia enxergá-los como seus pacientes em potencial.
Ao contrário das clínicas lotadas de desab rigados, no Ochsner Medical Center - que ofe- Quando o Katrina chegou, a linha divisória entre os mundos do Charity Hospital e do
recia "d1idados de sa úde com paz de espírito" - , médicos, enfermeiras e atendentes eram Ochsner Hospital subitamente se generalizou. Os qu e es tava m eco nomi camente seguros
mais numerosos do que os pacientes. De fato, parecia haver apenas uma meia dúzia de saíram da cidade, se hospedaram em hotéis e telefonaram para suas companhias segura-
outros doentes na enfermaria imaculada. Em poucos minutos, fui colocada num espaçoso doras. As 120 mil pessoas de Nova Orlea ns que não tinham carros e dependi am do Es-
quarto privado, no qual meus cortes e hematomas fora m tratados por um pequeno exérci- tado para organizar sua evacuação esperaram pela aj uda que não chego u, fazendo sinais
to de pessoal méd ico. Três enfermeiras logo me leva ram para tirar uma radiografia dopes- desesperados de SOS ou transform ando as por tas de suas geladeiras cm canoas. Aquelas
coço; um gen til médico sulista retirou al guns fra gmentos de vidro e fez alguns curativos. imagens chocaram o mundo, porque, embora nos res ign~í ssc mo s ~s desigualdades do
Para uma veterana do sistema público de saúde do Ca nadá , essas experiências não dia-a-dia, que discriminam os que têm acesso aos serviços de sa úde e às escolas dotadas
era m nada familiares; normalmente, es'!Jero quarenta minutos para ver meu clínico geral. de equipamentos decentes, hav ia uma suposição ge neralizad a de que com os desastres
E isso era no centro ele Nova Orleans - marco zero da maior emergência de sa úde pú- deveria ser di fere nte. Era tido co mo certo que o Estado - pelo menos num país rico
blica da história recente dos Estados Unidos. Um gerente educado veio até meu quarto e - viria socorrer as pessoas, na ocorrência de eve ntos catastróficos. As imagens de Nova
explicou que "na América, nós pagamos pelos serviços de saúde. Sinto muito, querida - é Orleans mostraram que essa crença geral-=- de que os desastres são uma espécie de tré-
realmente terrível. Gosta ríamos de ter o -~e u sistema. Por favor, preencha este formulário''. gua do capitalismo implacável, quando todos se juntam e o Estado se torna o condutor
Em poucas horas, eu estaria livre para sa ir, não fosse pelo toque ele recolher que pa- - já havia sido abandonada, e sem nenhum deba te público.
ralisava a cidade. "O maior problema", contou-me um guarda de segurança, no saguão Houve um pequeno intervalo, de çluas ou três semanas, em qu e pareceu que a inunda-
onde aguatclávamos o tempo passa r, "são os viciados em drogas; eles mostram o dinheiro ção de Nova Orleans provocari a L~ma crise na lógica económica que exacerbou tremen-
e querem entrar na farrn!íGia". damente o desastre humano, co m seus ataqu es in ca n sáve i s~ es fera pública. "A tormenta
Co mo a farmácia ficava trancada, um residente médico foi suficientemente amável demonstrou as conseqüências das mentiras e mistificações do neo liberalismo, num úni-
para me dar alguns an~lg~sicos. Perguntei-lhe co mo tinha sido, ali, no auge da tempesta- co local e de uma só vez'', escreveu o cienti sta político natural de Nova Orleans Adolph
de. "Eu não estava em serviço, graças a Deus", respondeu ele. "Moro fora d? cidade." Reed Jr. 3 Os fatos dessa demonstração são bastante conhecidos - os diques que jamais
Quando indaguei se ele tínha ido aos abrigos para ajudar, ele pareceu· chocado com a foram consertados, o sistema de tran sportes falid o por falta de investimentos públicos, e
pergu1ita e um pouco envergonhado. "Não pense i nisso", falou. Rapidamente mudei de as- o fato de que a idéia de preparação para o desast re dominante na cidade era tran smitir às
sunto, para um tópico que imaginei ser terreno mais seguro: o destino do Charity Hospi - pessoas, por meio de DVDs, a recomendação de qu e, diante da chegada de um furacão,
tal. Antes ela tormenta, estava tão precariamente dotado de recursos que mal funcionava, e elas deixassem a área.
A DOUTRINA DO CHOQUE O APARTHEID DO DESASTRE 487
486

Depois, veio a Agência Federal de Administração de Emergências (FE.MA), um labora- adeptos intransigentes, como Jonah Goldberg, começaram a pedir um "governo robusto"
tório para a idéia da admin istração Bush acerca de um governo comandado pelas corpora- para conduzir o socorro: "Quando uma cidade está afundando sob o mar e os tumultos se
ções. No verão de 2004, mais de um ano antes da ocorrência do Katrina, o estado da Loui, tornam constantes, o governo deve tomar para si a responsabilidade."6
siana fez uma requisição de fundos à FE!VlA, para desenvolver, em profundidade, um plano Esse tipo de exame de consciência não aconteceu na Fundação Heritage, onde os ver-
contingencial contra furacões violentos. O pedido foi recusado. A "mitigação de desastres" dadeiros discípulos do friedmanismo sempre podem ser encontrados. O Katrina foi uma
- implementação de medidas governamentais para tornar os efeitos dos desastres menos tragédia, mas, como escreveu Milton Friedman em seu editorial no Wall Street Journal,
devastadores - era um dos programas desprezados por Bush. Naquele mesmo verão, a também seria uma "oportunidade". No dia 13 d·e setembro de 2005 - quatorze dias
FEMA agraciou a firma privada ln nova tive Emergency Management com um contrato de depois que os diques tinham sido arrebentados - , a Fundação Heritage patrocinou
quinhentos mil dólares. Sua tarefa era elaborar um "plano de desastre catastrófico causado um encontro de ideólogos e congressistas republicanos que compartil havam as mesmas
por furacão para o sudeste da Louisiana e para a cidade de Nova Orleans". 4 idéias. Eles vieram com uma lista de "Idéias Pró-Livre Mercado para Dar Resposta ao
A empresa privada não fez econom ia. Juntou mais de cem especialistas e, quando o Furacão Katrina e à Subida dos Preços da Gasolina" - 32 medidas, no total, todas ex-
dinheiro acabou, voltou à FEMA para pedir mais; por fim, a conta do exercício dobrou traídas do manual da Escola de Chicago e rotuladas de "alívio contra o furacão". Os pri-
para um milhão de dólares. A firma elaborou cenários para evacuação em massa, co- meiros três itens recomendavam "a suspensão automática, nas áreas do desastre, das leis
brindo tudo, da distribuição de água à instrução das com unidades vizinhas para iden- salariais Davis-Bacon, que estavam em vigo(, numa referência à legislação que obrigava
tificar lotes vazios, que pudessem ser rapidamente transformados em estacionamentos os contratan tes federais a pagarem salários 'de subsistência; "a transformação de toda a
para trailers destinados aos desabrigados - todas as coisas racionais que não acontecem, região afetada em zona de livre empresa _isenta de impostos"; e "a conversão de todo o
quando um furacão das dimensões que eles imaginavam realmente se abate. Foi por isso, território atingido em zona de competitividade (incentivos fiscais amplos e renúncia às
em parte, que, oito meses depois da apresentação do relatório pela firma contratante, regulações)". Outra recomendação demandava a entrega de vouchers aos pais, para que
nada tinha sido feito . "O dinheiro não estava disponível para executar o projeto", explicou os utilizassem nas escolas li cenciadas.; Todas essas m~didas foram anun ciadas pelo pre-
Michael Brown, presidente da FEMA na época. 5 Essa é uma história típica do Estado de- sidente Bush no prazo de uma semana. Finalmente, ele foi forçado a restituir os critérios
sigual que Bush construiu: um setor público fraco, mal financiado e ineficaz, de um lado, trabalhistas, que foram completamente ignorados pelos contratantes.
e uma infra-estrutura de co rporações ricamente dotada , em para lelo, do outro. Quando O encontro produziu mais idéias que receberam aprovação presidencial. Os cientistas
se trata de pagar aos contratantes, o céu é o limite; quando se trata de financiar as funções do clima tinham estabelecido vínculos diretos entre o aumento da intensidade dos fura-
essenciais do Estado, os cofres estão sempre vazios. cões e o aquecimento da temperatura dos oceanos. 8 Essa co~exão, no entanto, não im-
Assim como a autoridade de ocupação dos Estados Un idos no Iraque se tornou urna pediu que o grupo de trabalho da Fundação Heritage pedisse ao Congresso dos Estados
concha vazia, o governo federal também se esvaziou, dentro de casa, quando o Katrina Unidos que repelisse as regulações ambientais na Costa do Golfo, dando permissão para
atingiu a região. De fa to, ele foi tão significativamente ausente que a FEMA não pôde se- novas refinarias de petróleo no país e luz verde para "expedições de exploração na área de
quer alugar o estádio de Nova Orleans, em q1,1e 23 mil pessoas foram mantidas, sem água Proteção Nacional da Vida Selvagem do Ártico". 9 Todas essas providências agravariam o
nem comida, apesar do destaque dado pela mídia internacional por muitos dias . efeito estufa, principal contribuição humana à mudança ·climática, mas foram imediata-
Para muitos ideólogos do livre mercado, esse espetáculo que o colunista do New York mente encampadas pelo presidente, sob a máscara de resposta ao desastre do Katrina .
Times, Paul Krugman, chamou de "o governo do não posso fazer" provocou uma crise de Em algumas semanas, a Costa do Golfo se transformou num laboratório .dQméstico
fé . "Os diqu es destruídos de Nova Orleans terão conseqüências para o neoconservadoris- para o mesmo ti po de governo comandado por contratantes, que havia sido inaugurado
mo, tão longas e profundas quanto foram, para o comunismo soviético, as conseqüências no Iraque. As companhias que abocanharam os maiores contratos foram as da conhecida
da queda do Muro de Berlim", escreveu o fiel seguidor arrependido Martin Kelly, num gangue de Bagdá: a unidade KBR da Halliburton recebeu sessenta milhões de dólares para
ensaio bastante difundido. "Felizmente, todos os que encorajaram a ideologia, inclusive reconstruir bases militares ao longo da costa. A Blackwater foi empregada para proteger
eu próprio, terão bastante tempo para considerar o erro de nossas escolhas." Mesmo os os funcionários da FE.MA contra saqueadores. Parsons, notório por seu trabalho desleixa-
488 A DOUTRINA DO CHOQUE O /\ PARTHEIO DO DESASTRE 489

do no Iraque, foi trazido para o projeto de construção da principal ponte do Mississippi. Uma outra similaridade com a Zo na Verde: ex peri ências relevantes, com freqüênci a,
Fluor, Shaw, Bechtel, CH2M Hill - a nata dos contratantes do Iraque - foram cha- pareciam não ter nenhuma relação com a forma pela qual os contratos tinham sido
madas pelo governo para providenciar trai/ers para os desabrigados, dez dias depois que , alocados. AshBritt, a empresa agraciada com meio milhão de dólares para remover os
os diques estouraram. Seus contratos acabaram por totalizar 3,4 bilhões de dólares, sem esco mbros, sabidamente não possuía nenhum cami nh ão ele entulho e repasso u todo o
exigência de licitações abertas.10 0
trabalho a contratantes.14 Ainda mais impressionante foi a empresa que a FEMA em-
Corno foi observado por muitas pessoas , poucos dias depois da tormenta, era corno pregou, ao custo de 5,2 milhões ele dólares, para desempenhar o papel crucial de cons-
se a Zona Verde de Bagdá tivesse sido levantada de sua margem do Tigre e pousado truir acampamentos para os trabalhad ores vol untários ele St. Bernard Parish , subúrbio
sobre o bayou do su l dos Es tados Unidos. Os paralelos eram irrefutáveis. Para liderar ele Nova Orleans. Essa construção ficou aquém cio cronograma e jamais foi co ncluída.
sua operação Katrina, a Shaw empregou o ex-dirigente do escritór io de reconstrução do Quando se realizou a invest igação, foi descoberto que a empresa Lighthouse Disaster
Iraque, do Exército dos Estados Unidos. A Fluor mandou seu diretor de projetos mais Relief era, na verdade, um grupo religioso. "A coisa mais parecida com isso, que eu já
experiente do Iraque para a zona inundada. "Nosso trabalho de reconstrução no Iraque tinha feito , foi organiza r um acampamento de jovens com minh a igreja", confessou o
es tá mais lento, o que disponibilizou algumas pessoas para atuar na Louisiana", explicou diretor ela Lighth ouse, pastor Ga ry Heldreth .1>
um representante da empresa. joe Allbaugh, cuja firma New Bridge Strategies promete- Assim como no Iraque, o governo desempenhou, mais uma vez, o papel de caixa
ra leva r a Wa l-Mart e a 7-Eleven para o Iraque, era o lobista de inúm eros negócios. As registrad ora , equipada tanto para reti.ri1clas qua nto para depós itos. As co rp orações re-
semelhan ças eram tão impress ionantes que alguns so ldados mercenários, recé m-chega - tiravam fundos imensos por m'e.io de co ntratos e depois ree mbol sava m o gove rno , não
dos de Bagdá, estavam enfrentand o prob lemas de adaptação. Quand o o repórte r David co m trabalho co nfüí vel, mas ~0.111 co ntribui çôes de campanha e/o u cabos elei torais para
Enders perguntou se tinh a havido muito combate a um guarda armado na porta de um as próximas eleições. (Segundo o New York rimes, "us principais vi nte co ntratant es gas-
hotel de Nova Orleans, ele respond eu: "Não. Isso aqui é a Zo na Verde." 11 taram aproximadamente trezentos milhões de dólares, desde 2000, fazendo lobby, e doa -
Outras co isas também lembravam a Zo na Verde. Em contratos avaliados em 8,75 bi - ram 23 milh ões ele dólares para ca mpanh?s políticas". A administração Bush, po r sua vez,
lh ões de dólares, investigado res parlamentares descobriram "co nsideráveis superfa tura- aumentou a qu antia despendida co m co ntratos em ce rca de duzentos bilhões de dólares,
mentos, desperdícios ou má aclminist ração".12 (O fato de qu e exatamente os mesmos entre 2000 e 2006.)16
erros co metidos no Iraque se repetiram em Nova Orleans, de imediato, deve ria colocar Uma outra coisa também era familia r: a aversão dos con tratantes a emprega r traba-
em xeque a alegação de que a ocupação cio Iraque foi apenas uma seqüência ele enganos e lh adores locais, que deveriam ter enxergado a reconstru ção de Nova Orleans não so men-
infortúnios, ca racterizados por inco mpetência e falta ele supervisão. Quando as mesmas te como uma fonte de emprego, mas como parte da recuperação e do forta leci mento de
incorreções se repetem, inclefiniclam ente, é hora ele considerar a possib ilidade de que não suas comunidades. Washington poderia, facilm ente, ter estabelecid o como condição que
sejam erros de maneira nenhuma .) todas as empresas que tivessem contratos do Katrina empregassem pessoas do loca l," com
Em Nova Orleans, assi m como n_o Iraque, nenhuma chance ele lucro foi clespercliçacla. sa lários decentes, para aj udá-las a recompor suas vidas. Em vez disso, os moradores da
Kenyon, uma divisão cio megacooglomeraclo ele serviços funerais Service Corporation Costa cio Golfo, assim como o povo cio Iraque, ficaran1 ass istindo ao surto ele crescimento
International (uma das princip <~i s doadoras à campanha ele Bush), foi contratada para econômico criado pelos contratantes, com b'ase no dinheiro f<ícil d9!1 contribuintes e no
retirar os mortos das casas e elas ruas. O trabalho foi feito com extrema lentidão, dei- afrouxamento das regulações.
xando cadáveres expostos ao so l escaldante por muitos dias. Voluntários ele emergência De modo previsível, o resultado foi que, depo is ele ·tGclos os. S l~bco n tratantes pega-
e cios serviços funerári os locais foram proibidos de ajudar, pois lidar com os corpos era rem sua parte, praticamente nada foi deixado para as pessoas que executavam seu traba -
a tarefa comercial da Kenyon . A empresa responsabilizou o Estado, em média cobrando lho. Por exemplo, o escritor Mike Dav is rastreou o pagamento ele 175 aólares por metro
12.500 dólares por vítima, e foi acusada de não embalar os cadáveres ele modo apro- quadrado, fei to pela FEMA à empresa Shaw, para instal ar lonas ele proteção azui s em
priado. Quase um ano depois da enchente, corpos decompostos ainda es tavam sendo telhados danificados, ainda que essas coberturas tivesse m sido fornecidas pelo govern o.
descobertos nos sótãos. 13 Depois que todos os subcontratantes pega ram seu quinhão, os operários que realmente
490 A DOUTRINA DO CHOQU E O APARTHEID DO DESASTRE 491

pregaram as lonas receberam apenas dois dólares por metro quadrado. "Cada etapa da de petróleo e seu hospital muito bem equipado, com salas de cirurgia imaculadas - tudo
cadeia alimentar dos co nt ratos, em outras palavras, é grotescamente superalimentada, protegido por muros de cinco metros de largura. Estranhamente, ela se parece com um
exceto a parte de baixo", escreveu Davis, "na qual o verdadeiro trabalho é realizado". 17 gigantesco navio transatlântico fortificado, estacionado no meio de um mar de violência
De acordo com um estudo realizado, "um quarto dos que trabalharam na reconstru- e desespero, a efervescente Zona Vermelha que é o Iraque. Se você puder subir a bordo,
ção da cidade eram imigrantes ilegais, na maioria hispân icos, ganhando menos do que há drinq14es na beira da piscina, filmes de Hollywood de má qualidade e máquinas Nau-
os trabalhadores legais''. No Mississippi, uma ação coletiva obrigou diversas companhias tilus para fazer ginástica. Se você não estiver entre os escolhidos, pode ser baleado, só por
a pagar milhares de dólares em salários atrasados para operários imigrantes. Alguns não chegar muito perto do muro.
foram sequer remunerados. Num local de trabalho da Halliburton/KBR, imigrantes não- No Iraque, em todos os lugares, os valores distintos, insensatamente atribuídos adi-
registrados relataram que foram acordados por seu empregador (um sub-subcontratan- ferentes categorias de pessoas, são grosseiramente evidentes. Os ocidentais e seus colegas
te), no me io da noite, sob a alegação de que os agentes da Imigração estavam a caminho. iraquianos têm postos de controle na entrada de suas ruas, mu ros contra explosões na
Muitos fugiram para não serem presos; afinal de contas, eles poderiam acabar parando frente de suas casas, coletes à prova de bala e outros acessórios de proteção, e guardas
numa das novas prisões para imigrantes, que o governo fed eral contratara a Halliburton/ de segurança privada à disposição, a qualquer hora. Eles viajam pelo paí~ em comboios
KBR para construir.· 18 armados ameaçadores, com mercen ários apontando armas pelas janelas e seguindo sua
Os ataqu es contra os desamparados, perpetrados em nome da reconstrução e do alí- primeira diretiva de "proteger o chefe". Com cada um de seus gestqs, eles -p ropagam a
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vio, não pararam aí. Para contraba lançar as dezenas de bilhões que migravam para as mesma mensagem sem remorsos: somos os esco lhid os; nossas vid as são infinitamente
empresas privadas, na forma de contratos e isenções tributárias, em novembro de 2005, mais valiosas. Enquanto isso, os iraquianos de classe média se agar.ram ao próximo de-
o Congresso dos Estados Unidos, controlado pelos republicanos, anunciou que precisava grau de baixo da escada: eles podem pagar pela proteção das milícias locais e pelo resgate
realizar um corte de quarenta bilhões de dólares no orçamen to federal. Entre os progra- pedido pelos seqüestradores, para ter um membro da família libertado. No entanto, a
mas que foram atingidos , encontravam -se bolsas de estu dos , aj ud a médica e auxílio ali- ampla maioria dos iraquianos não possui nenh uma proteção. Eles andam ni\S ruas ex-
mentação.1 9Em outras pa lavras, os cidadãos mais pobres do país subsidiaram a bonança postos a qualquer tipo de violência possível, sem que haja qualquer coisa entre eles e o
dos contratantes duas vezes - primeiro, quando o alívio do Katrina se metamorfoseou próximo carro-bomba, a não ser uma fina camada de tecido. No Iraque, os sortudos têm
em doações para as corporações desreguladas, deixando de oferecer empregos decentes e coletes à prova de bala, e o resto leva consigo contas de rezar.
serviços públicos funcionais , e, segundo, quando alguns programas de assistência direta No princípio, pensei que o fenômeno da Zona Verde fosse exclusivo da guerra_no
aos desempregados e trabalhadores pobres, em toda a nação, foram suprimidos para Iraque. Hoje, depois de anos passados em outras áreas de desastre, percebi que a Zona
pagar aquelas contas infladas. Verde emerge em todos os lugares em que o capitalismo de desastre se implanta, com as
mesmas divisões gritantes entre incluídos e excluídos, protegidos e desgraçados.
Não faz muito tempo, os desastres constituíam períodos de nivelamento social, momen- Isso aconteceu em Nova Orleans. Depois da enchente, uma cidade já dividida se trans-
tos raros em que comu nidades atom izadas colocavam de lado suas .divisões e juntavam formou no campo de batalhas entre zonas verdes cercadas e zo nas vermelhas enfl!recidas
forças. De modo crescente, contudo, os desastres têm se transformado no oposto: eles - resultantes não do estrago da água, mas das soluções de "livre mercado" adotadas pelo
abrem janelas para um futuro dividido, cruel e implacavelmente, no qual o dinheiro e a presidente. A administração Bush se recusou a permitir que os fundos de emergência
raça compram a sobrevivência. servissem para pagar os salários do setor público, e a cidade de Nova Orleans, que ~avia
A. Zona Verde de Bagdá é a expressão mais viva dessa ordem mundial. Ela tem sua perdido sua base tributária, teve de demitir três mil trabalh adores nos meses seguintes
própria rede elétrica, seus próprios sistemas de telefone e esgoto, seu próprio suprimento ao Katrina. Entre eles, encontravam-se dezesseis membros da equipe de planejamento
da cidade - com tons de "desbaa th ificação", eles foram demitidos no momento exato
· Não foram realizados estudos extensivos sobre as condições de trabalho em Nova Orleans, mas em que Nova Orleans precisava desesperadamente de planejadores. Em vez disso, mi-
o Advancement Project, um grupo popular de advogados de Nova Orleans, estima que 60% dos lhões de dólares do dinheiro público foram destinados a consultores de fora, muitos dos
trabalhadores imig.rantes da cidade não tenham sido pagos por seu trabalho, pelo menos em parte.
492 A DOUTRINA DO CHOQU[ OAPART/IEID DO DESASTRE 493

quais eram incorporado res im obiliários poderosos. 10 E, é claro, milhares de professores enfre ntando um desgaste sem precedentes, com o aumento da freqüência e da intensi-
também fora m dispensados, pavimentando o ca minh o para a conversão de dezenas de dade de furacões, ciclones, enchentes e incêndios fl orestais. É fác il imaginar um futuro
esco las públicas em escolas li ce nciadas, co mo Friedm an havia recomendado. em que um número crescente de cidades tenh a suas fnígeis e longa mente negligenciadas
Quase dois anos após a tormenta, o Charity Hospital ai nda permanecia fechado. O in fra-es truturas abatidas por desastres e depo is seja deixado à míngua, com se us princi-
sistema judiciári o mal fun cionava e a co mpa nhia pr iva tizada de eletricidade, Entergy, pais serviços jamais consertados ou reabilitados. Enqu anto isso, os afortunados irão se
não tinh a co nseguido con ectar toda a cidade à rede. Depois de ameaçar subir as tarifas esconder em co munidades fechadas, tendo as suas necessid ades at endidas po r provedo-
dra maticame nte, a compan hia consegLJi-u extrair um polêmico fi nanciamento de duzen- res privatizados.
tos milhões ele dólares do governo federal. O sistema público de trânsito estava arrasa- Sinais desse futu ro já estavam em evidência, na tem porada de furacões de 2006. Em
do e tinha perdido quase metade de se us funcionários. A gra nde ma ioria dos projetos apenas um ano, a ind ús tria de reação ao desastre explodiu , co m o ingresso, no mercado,
de co nstrução de mora di as, de pro priedade pública, estava lac rada ou vazia, sendo que de uma plêiade de novas corporações, que pro metem salva mento e segurança no caso de
cinco mil uni dades estavam marcadas para de molição pela autoridade federal de habi- um novo grande impacto. Um dos projetos mais ambiciosos fo i lançado por um a compa-
tação.11Ass im co mo o lobby do turismo, na Ásia, ansiara por se livrar das vil as de pesca- nhia aérea, em West Palm Beach, na Flórida. O Help Jet fo i aprese ntad o como "o primeiro
do res à be ira- mar, o poderoso lobby do tu rismo de Nova Orlea ns também fi cara de olho plano de escape ele fu racões, que transfo rma a retirada das pessoas em fé rias pa ra mil ioná-
nos proje tos de co ns tru ç~lo de m or~ di as._n.rni tos dos quais estava m situados em terras de rios". Quando a tempestade se aproxim a, a emp resa aérea faz a reserva ele férias pa ra seus
primeira, próx imas ao Frcnch Quãrter, o Quarteirão Francês, ímã turístico da cidade. membros, em reso rts de golfe cinco estrelas, spas ou Disneylândi a. Com todas as reservas
Endesha Juakal i aj udou a m? qt ar um aca mpa mento de protes to, do lado de fora de fe itas, as pessoas em risco são, em seguid a, ret iradas da zo na do furacfo num jato ele lu xo.
um dos proje tos lacrad os, o Hab itação PC1bli ca de St. Bern ard , explica ndo qu e "há mu ito "Se m espera nas filas, se m disputas na multi dfo, apenas uma expe ri ência de primeira
tempo eles tinham uma agenda para St. Bernard , mas enqu anto as pessoas morava m classe, que transfo rma um problema em vera neio. (...) Aproveite o pri vilégio de ev itar o
aq ui , eles não puderam im plementá- la. E n t~o, eles usara m o desast re como um meio de pesadelo roti neiro do escape pós-fu racões." 1;
limpar o bair ro, na hora em que a vizinhança está mais fraca.( ... ) Es ta é um a excelente Para as pessoas qu e fi ca m para trás, há um tipo di fe rente ele so lu ção privatizada. Em
localização para mansões e co ndomíni os. O úni co problema é que essa ge nte poBre e 2006, a Cru z Vermelha assin ou um a nova parceria de reação ao desastre co m o Wal-
negra está se ntada em cima!" 12 Ma rt. "Tudo va i se tra nsformar em empresa privada, antes que acabe", disse l3ill y Wagner,
Em meio a escolas, lares, hosp itais, sistema de trânsito e falt a de água potável em vá- chefe da adm ini stração de emergência ele Florid a Keys. "Eles possuem a quali ficação.
rios pontos da cidade, a esfera pública de Nova üileans não estava sendo reconstruída, E os recursos." Ele estava fa lando na Con fe rência Nacional sobre Furacões, em O rl a 1~ ­
e, si m, apagada , co m a utilização da tormenta co mo desculpa. Numa fase anterior. da clo, na Flórida, um espetáculo co mercial an ual, em rápid o cresc im ento, orga niza do para
"destruição criadora" do ca pitalismo, gra ndes faixas dos Estados Unidos perd eram sua companhias qu e vendem qualquer co isa que possa se r útil no próx im o desastre. "Algun s
base manu fa tureira e se transform aram em cinturões enferruj ados de fáb ri cas fechadas companheiros aqui dissera m: 'Ca ra, este é um grande negócio - es te é meu nO\'. O negó-
e ba irros negligenciados. A Nova Orlea ns poster ior ao l<atrina pode estar mostrando a cio. Não estou mais à procura de empreendimentos; vo u me torn ar um co n ~ r.a t a nte de
primeira image m oci dental de um novo tipo éie paisagem urbana d~gra d a d a: o cintu- escombros de fu racões"', declarou Dave Bland fo rd , um dos ex positores da conferência, ao
rão de lama, des tru ído pel a co mb inação mortal ele infra-estrutura pública desagregada e mostrar seus "alimentos com sistema de auto-aquecim ent o".15
condições cl imáticas extremas.
A Sociedade America na de Engenheiros Civ is aisse, em 2007, que os Estados Unidos Grande parte _da eco nomi a de desastre paralela fo i co nstru ída co m dinheiro dos contri-
hav iam fica do tão aq uém elas necessid ades de ma nutenção de sua infra-esirat ura pública buintes, graÇ<ts a·o surto de crescimento da reco nstrução privatizada nas zo nas de guerra.
- estradas, pontes, esco las, ba rrage ns -, que custaria mais de 1,5 trilhão de dólares e Os co ntratantes gigantes, que servira m como "os pri meiros" no Iraque e no Afega nistão,
leva ria cinco anos para recolocá- la nos padrões. Em vez disso, esses tipos de gastos estão passaram a so frer constantes ataques políticos po r gas tar grandes so mas da rece ita pro-
se ndo co rtados.23 Ao mesmo tempo, a in fra -estrutura pública, no mundo inteiro, está veniente dos contratos governamentais com despesas gera is de suas próprias co rporações
494 A DOUTRINA DO CHOQUE O APARTHEID DO DESASTRE 495

- cerca de 20% a 55%, de acordo com uma auditoria de contratantes do Iraque. 26 Um como o Estado real é frágil e fraco. Essa sombra de Estado corporativo foi construída quase
grande montante desses fundo s se destinou , legalmente, à realização de vultosos investi- exclusivamente com dinheiro público (90% das receitas da Blackwater são prov-enientes de
mentos na infra-estrutura corporativa - os batalhões de máquinas de terraplenagem da> contratos governamentais), inclusive o treinamento de seu pessoal (esmagadoramente for-
Bechtel, os aviões e as frotas de caminhões da Halliburton e a arquitetura de vigilância mado por antigos funcionários públicos, políticos e soldados). 29 Mesmo assim, essa vasta in-
construída por L-3, CACI e Booz Allen. fra-estr:itura está totalmente sob controle e propriedade do setor privado. Os cidadãos que
O investimento realizado pela Blackwater em sua infra-estrutura paramilitar foi ainda financiaram não possuem nenhum direito sobre essa economia paralela ou seus recursos.
mais dram ático. Fundada em 1996, a empresa utilizou o fluxo contimio de :ontratos O Estado real, por sua vez, perdeu a capacidade de desempenhar as funções essenciais
da era Bush para montar um exército privado de vinte mil soldados mercenários, man- sem ajuda dos contratantes. Seu equipamento próprio está obsoleto, e os melhores es-
tidos na reserva, e uma base militar enorme, na Carolina do Norte, avaliada rntre qua- pecialista> migraram para o setor privado. Quando o Katrina atingiu a região, a FEMA
renta e cinqü enta milhões de dólares. De acordo com um relatório, a capacidade atual da precisou admitir um contratante para ceder contratos a contratantes. De modo seme-
Blackwater inclui o seguinte: "Uma operação de logísti ca florescente, capaz de despachar lhante, qaando foi a vez de atualizar o Manual do Exército, nas regras para lidar com
de ce m a duzentas ton eladas de ajuda humanitária, em embalagens completa~, mais ra - contratar_tes, as forças armadas empregaram uma de suas maiores contratantes para o
pidamente do que a Cru z Vermelha. Uma divisão de aviação na Flórida, com 26 platafor- serviço. a MPRI - elas não detinham mais o próprio know-how. A CIA vem perdendo
mas diferentes, de heli cópteros el e co mbate a um Boeing 767. A empJesa possui inclusive tantos funcionários para o setor de espionagem privado paralelo, que precisou barrar o
um Ze ppelin. A pistil mai s larga para direção tática do país. ( ...) Um la go artificial de recrutam ento feito pelos contratantes, no próprio refeitório da agência. "Um fun cionário
vinte acres, dotado de cont êin eres marítimos qu e siio adaptados para parece rem navios recentem ente aposentado co ntou qu e foi abordado duas vezes, enquanto esperava na fila
e flutu am sobre pl ataforma s, utilizados para treinam ento de abordagem a embarcações pelo café", noticiou o Los Angeles Times. Quando o Departamento de Segurança Nacio-
inimi gas. Uma instala ção el e treinam ento K-9 que, norm alm ente, possui oitenta equipes nal deciruu que precisava construir "cercas virtuais" nas fronteira s dos Estados Unidos
de cachorros distribuídas pelo mundo todo.( ... ) Uma área de aproximadamente 110 mil com o .'vl ~xico e o Canadá, Michael P. Jackson, subsecretário do departamento, disse aos
metros, para treinamento de tiro .'" 27 contratantes: "Este é um convite incomum.( ... ) Estamos pedindo a vocês para voltarem
Um jornal de direita, nos Estados Unidos, apontou a Blackwater como a "Al-Qaeda e nos di zer~m como devemos fazer nosso trabalho." O inspetor-geral do departamento
dos bons moços".28 É uma analogia impress ionante. Onde quer que o capitalismo de explicou que a Segurança Nacional "não tem a capacidade necessária para efetivamente
desastre tenha desembarcado, promoveu a proliferação de grupos armados, fora do ?sta- planejar, >upervisionar e executar o programa [de Iniciativa de Fronteira Segura]". 3º
do. Isso não causa surpresa: quando os países são reconstruídos por indivíduos que não Com Bush, o Estado ainda tem todos os ornamentos de um governo - prédios impo-
acreditam nos governos, os Estados que eles montam, invariavelmente, são fracos e criam nentes, encofl.tros presidenciais com a imprensa, batalhas políticas -, mas não executa as
mercado para forças de segurança alternativas, sejam elas o Hezbollah, a Blackwater, o verdadeiras funções de governar mais do que os empregados da Nike em Beaverton, que
Exército Mahdi ou uma gangue numa rua de Nova Orleans. costuram tênis de corrida.
O surgimento dessa infra-estrutura privatizada paralela vai muito além do polic)amento.
Quando se observa a infra-estrutura de contratantes erguida na era Bush como um todo, o · ·As imrlicações da decisão tomada pela atual patota de políticos, de sistematicamente
que se vê é um completo "fatado dentro do Estado", articulado, que é robusto e capaz, assim terceiLz<.r as responsabilidades para as quais foram eleitos, vai se estender além de
uma única administração. Uma vez c;ue se criou um mercado, é preciso protegê-lo. As
Um dos aspectos mais preocupant es dessa indústria é seu partidarismo desavergonhado. A Blackwater, companhias no interior do complexo do capitalismo de desastre enxergam, de modo
por exemplo, é intimamente alinhada com o movimento contra o aborto e outras causas da direita. ~re.scente, o Estado e os não-lucrativos com~ êo~petidores - na perspectiva das cor-
Faz doações quase exclusivamente para o Partido Republicano, em vez de disfarçar suas apostas, como
a maioria das corporações. A Halliburton destina 87% de suas contribuições de campanha para os
. poraçc·e~, sempre que os governos e as instituições de caridade cumprem seus papéis
republicanos, e a CH2M Hill manda 70%. Estaria além do reino da imaginação a possibilidade de que, tradicionais, estão negando aos contratantes o trabalho que poderia ser feito visando
um dia, os partidos políticos irão contratar essas empresas para espionar seus adversários, durante uma ao lucro.
campanha eleitoral - ou para se envolver em operações clandestinas, mais obscuras do que as da CJA?
496 A DOUTRINA DO CHOQUE OAP/t/ITllFIODODE~/\S"I RE 497

"Defesa Negligenciada: Mobilizando o Setor Privado para Dar Suporte à Seguran- dos Estados Unidos inicialm ente tentou responsabili za r se us cidad ãos pelos custos da
ça Nacional", um relatório ele 2006 cujo com itê consultivo incluiu algumas elas maiores própria reti rada, embora ten ha sido força do, no fi nal , a voltar atr<Ís. 3·1 Se continuarmos
empresas do seto r, adve rtiu que "o impulso piedoso do governo federal para oferecep nessa direção, as imagens de pessoas imobilizad as nos tel had os de Nova Orlea ns não
assistência emergencial às vítimas ele desastres afeta a abordagem de mercado, que admi- serão apenas um lampejo cio passado de desigualdade raci al não reso lvido da Am érica,
nistra a exposição ao ri sco". 31 Publicado pelo Co nselho de Relações Exteriores, o relatório mas, também, a an~evisão de um futuro coletivo de apartheid do desastre, no qual a so-
argumentou que, se o povo sabe que o governo vem em seu socorro, não tem incentivo brevivência é determinada pela ca pacidad e de paga r pelo escape.
para pagar pela proteção privatizada. De modo si milar, um ano após o Katrina, CEOs de Olhando para os desastres vindouros, ecológicos e políticos, se mpre acreditatrn?s que
trinta das maiores corporações estadunidenses se juntaram sob a cobertura da Business vamos enfren tá- los juntos, que é necessá ria a ex istência de líderes que reconheçam o cur-
Roundtable, que tinha entre seus membros Fluor, Bechtel e Chevron. O grupo, que se so destrutivo em que es tam os. Mas cu não tenho ce rteza. Talvez parte da razão pela qual
autodenominou Parceria para Reação ao Desas tre, reclamou da "falsa missão" do setor muitas de nossas elites, tanto políticas quanto co rporativas, são tão otimistas quanto à
não-lucrativo na seq üência dos desastres. Aparentemente, as instituições de caridade e mudança climática é sua confiança de que serão capazes de comprar seu próprio resgate.
ONGs estariam infringindo seus mercados, ao doarem material de construção, em vez Em termos, isso também pode explicar por qu e tantos defensores de Bush são cristãos
de oferecerem suprimentos a serem pagos. As fir mas mercenárias, por outro lado, têm que acreditam no fim do mundo. Não é que eles precisa m acreditar que há uma rota de
esbravejado que são mais bem equipadas do que as Nações Unidas para se engajar na fuga do mundo que estão criando, apenas. É que a Revelação é um a parábola para o .que
manutenção da paz em Darfur. 32 eles estão construindo aqui embaixo - um sistema que convida à destruição 'e. ao desas-
Boa parte dessa nova agressividade é decorrente do fato de que o mundo co rporativo tre e depois ofe rece helicópteros privados para levá- los, junto co m seus an;i gos, ru mo à
sabe que a era ele ouro dos contratos federais ilimitados não vai durar muito. O governo segurança divina.
cios Estados Unidos ava nça na direção ele uma crise econômica, em certa medida, gra-
ças ao défic it gerado pelo financi amento da economia do desastre priva ti zada. Isso quer Co mo os co ntratantes se apressam a desenvolver fontes alternativas e estáveis de rendi.-
dizer que, mais cedo cio que tarde, os co ntratos irão minguar ele modo significativo. No mentos, um caminho é credenciar outras co rpo rações para o desas tre. Essa fo i a linha
final de 2006, analistas de defesa começaram a prever que o orça mento de comp ras do de trabalho de Paul Bremer, antes ele sua ida para o Iraqu e: transfor mar multin acionais
Pentágono poderia encolher até 25% na próxima década.33 em bolhas de segurança, ca pazes de funciona r tranqüilamente, mes mo em Es tados que
Quando a bolha do desastre explodir, firmas como Bechtel, Fluor e Blackwater perde- estejam se despedaçando ao seu redor. Os primeiros res ultados podem ser vistos nos
rão boa parte dos se us principais flu xos de receitas. Elas ainda terão todos os motores-e saguões dos grandes edifícios de escritórios de Nova York ou Londres - registros de
equipamentos de alta tecnologia, comprados às custas dos contribuintes, mas precisarão identificação completos, como nos aeropo rtos, co m ex igê ncia de documento dotado
encontrar um novo modelo de negócios, uma nova maneira de cobrir os seus custos de fotografia e máquinas de raios X - , mas a indústria tem ambições ainda maiores,
elevados. A próxima fase do complexo cio ca pitalismo de desastre está bem clarª: com a incluindo a priva tização das redes globais de comunicação, das emergências de sa úde e
ascensão das emergências, os governos incapazes de pagar a conta e os cidad?os imobi - da eletricidade, além da capacidade de alocar e tran sporta r uma força de trabalho global
lizados pelos seus "Estad os de não posso faze r", o Estado corpora tivo paralelo _va i alugar em meio a grand es desastres. Uma outra .írea de potencial crescimento identifi cada pelo
sua infra-estrutura de desastre a qualquer um que possa pagar, pelo preço que o mercado complexo do capitalismo ele desastre é o governo mun ici pal: a entrega dos contratos dos
determinar. Tudo es tará à venda, do resgate por helicópteros em telhados a água potável departamentos de polícia e corpo de bombeiros para companhias de segurança privada.
e camas em abrigos. "O que eles fazem para as forças armadas no cen tro de Faluja, podem fazer para a polícia
A riqueza fá proporciona uma janela de fu ga para a maioria dos desastres - ela com- no centro de Reno", disse um porta-voz da Lockheed Martin, em novembro de 2004. 35
pra sistemas de av iso com antecedência nas regiões sujeitas a tsunamis, e estoques de A indústria prevê que esses novos mercados vão se expa ndir, dramaticamente, na
1àmiflu para a próxi ma epidemia. Co mpra água engarrafada, geradores, telefones por próxima década. Uma visão honesta da direção que essas tendências estão tomando é
sa télite e guardas de aluguel. Durante o ataque de Israel ao Líbano, em 2006, o governo oferec ida por John Robb, um an tigo co mandante em missões secretas do Delta Force
498 A DOUTRINA DO CHOQUE O APARTHEID DO DESASTRE 499

que se transformou em consultor de negócios bem-sucedido. Num manifesto de ampla companhias de segurança, diretamente. Entre os dois tipos de Estados sober~nos priva-
circulação para a revista Fast Company, ele descreveu o "resultado final" da guerra contra tizados, fi cava a versão de Nova Orleans para a Zona Vermelha, onde as taxas de homi-
o terror como "uma nova e mais resistente abordagem da segurança nacional, erguida. cídio subiram bastante e bairros como o histórico Lower Ninth Ward se transformaram
não em torno do Estado, mas de empresas e cidadãos privados. ( ... )A segurança se tor- numa espécie apocalíptica de "terra de ninguém". Uma canção famosa do rapper Juvenile,
nará um a função do lugar em que você mora e da pessoa para quem você trabalha, assim lançada no verão posterior ao Katrina, resumiu bem essa atmosfera: "Estamos vivendo
como já é feita a alocação dos se rviços de saúde, agora". 36 como no Haiti, sem governo" - Estado falido dos Estados Unidos da América.37
Robb escreve: "Indivíduos ri cos e corporações multinaci onais serão os primeiros a Bill Quigley, advogado e ativista local, observou: "O que está acontecendo em Nova
sa ir fora dos nossos sistemas coletivos, optando por contratar companhias militares pri- Orleans é apenas a versão mais concentrada e explícita do que está se passando em todo
vadas, como Blackwater e Tripie Canopy, para proteger seus lares e estabelecimentos e o nosso país. Toda cidade de nosso país tem alguma séria semelhança com Nova Orleans.
implantar um perímetro de proteção em torno da vida cotidiana. Redes paralelas de Toda cidade tem alguns bairros abandonados. Toda cidade de nosso país abandonou um
transpor te - como a Warren Buffett's NetJets, que voa fora dos horários compartilhados pouco a educação pública, a construção pública de moradias, asaúde pública e a justiça
pelas companhias aéreas - vão cuidar dessas pessoas, levando seus membros de uma criminal. Aqueles qu e não suportam educação pública, saúde pública e moradias públi-
casa segura e bem decorada com lírios para a próxima." Essa elite mundial já se encontra cas vão co ntinuar transformando nosso país num grande Lower Ninth Ward, a menos
situ ada, mas Robb acredi ta que a classe média logo vai segui -la, "fo rmando coletivos que os detenhamos." 38
suburbanos para dividir os custos da seguran ça". Esses '"subúrbios armados' vão manter
e dispo r de geradores de emergência e linhas de comuni cação" e serão patrulhados por O processo já está em curso. Outro lampejo de um futuro de apartheid do desastre pode ser
milíc ias privadas, "que receberam trein amento nas corporações e se gabam de seus siste- observado num subúrbio republicano abastado, nos arredores de Atlanta. Seus moradores
mas ultramodernos de reação a emergências". decidiram que estavam cansados de ver os impostos cobrados sobre suas propriedades
Em ou tras palavras, um mund o de Zonas Verdes suburbanas. Quanto aos que fi carem servirem para subsidiar escolas e polícia, nos bairros de afro-descendentes de baixa renda
fora do perímetro de segurança, "eles terão que se virar com o que sobro u do sistema do município. Eles votaram na transformação de Sandy Springs em cidade, que passaria
nacional. Eles vão gravi tar em torn o das cidades da Améri ca, onde estarão sujeitos a a gastar seus impostos com serviços para os cem mil habitantes, deixando de red istribuir
vigil ância perman en te e serviços precários ou não existentes. Para os pobres, não haverá suas receitas por tod o o grande muni cípio de Fulton County. A única dificuldade era qu e
ou tro refúgio". Sandy Springs não possuía estruturas governamentais e precisava construí-las a partir do
O futuro descrito por Robb se parece muito co m o presente de Nova Orleans, onde zero - de coleta de impostos a zoneamentos, parques e recreação. Em setembro de 2005,
dois tipos d i~erent es de co munid ades cercadas emergiram dos escombros. De um lado, o mesmo mês em que Nova Orleans fo i inundada, os moradores de Sandy Springs foram
ficavam as chamadas vilas da FEMA: aca mpamentos desolados e afastados de trailers abordados pela gigante de construção e consultoria CH2M Hill, com uma única conver-
para os desabrigados de baixa renda, construídos por subcontratantes de Bechtel e Flu or sa: deixern-nos fazer isso para vocês. Ao preço inicial de 27 milhões de dólares por ano, a
e administrados por compan hi as de segurança privadas, que patrulhava m os montes de constn.rtora prometeu erguer uma cidade completa, a partir do chão.39
. ·brita, restrin giam as vis itas, mantinham distantes os jornalistas e tratavam os sob reviven- Alguns meses depois, Sandy Springs se tornou a primeira "cidade de contrato". Apenas
tes co mo criminosos. De outro, havia as comunidades fechadas erguidas nas áreas ricas quatro pessoas trabalhavam diretamente para a nova municipalidade - todos os demais
da ci dade, como Audubon e Ga rd en District, bolhas de funcionalidade que pareciam eram contratantes. Rick Hirsekorn, que dirigia o projeto da CH2M Hill, descreveu Sa ndy
:ompletamente cindidas do resto. Algumas se.rna~as depois da tormenta, seus moradores Springs como "uma folha branca de papel s~m nenhum processo governamental no lu-
tinnarn água e geradores elétricos sobressalenºtes. Seus doentes eram tratados em hos- gar". Ele disse a outro jornalista que "ninguém de nossa indústria criou uma cidade com-
. pitais privados e suas crianças entraram nas novas escolas licenciadas. Como sempre, pleta, deste tamanho, anteriormente". 40
não tinham necessidade de transporte público. Em St. Bernard Parish, subúrbio de Nova O jornal TheAtlanta]ournal-Constitution noticiou que "quando Sandy Spririgs contra-
Orleans, a DynCorp assum iu grande parte do. policiamento; ·Outros bairros contrataram tou empregados das corporações para administrarem a cidade, seu experimento foi consi-
500 A DOUTRINA DO CHOQUE

derado audacioso". No prazo de um ano, entretanto, a mania de cidades de contrato estava NOTAS DO CAPÍTULO 20

correndo todos os subúrbios abastados ele Atlanta e se tornara "procedimento padrão no


1
norte cio [condado ele] Fulton''. Comunidades vizinhas se inspiraram em Sandy Spring5' Hein Marais, "A Plague of Inequality'', Mail & Guardia11 (Joanesburgo), 19 J e maio de 2006.
2
"Names and Faces'', Washington Post, 19 de setembro de 2005.
e também votaram na sua transformação em cidades independentes e contrataram seus 3
Adolph Reed Jr., "Undone by Neoliberalism", The Nation, 18 de setembro de 2006.
governantes. Milton, uma das novas cidades, logo empregou a CH2M Hill para fazer o tra- 4
Jon Elliston, "Disaster in the Making'', 1i.1cson ~\leckly, 23 de setembro de 2004; lnnovative Emergency
balho - afinal de contas, a empresa tinha toda a experiência. Em pouco tempo, começou Management, "!EM Team to Develop Catastrophic Hurricane Disastcr Plan for New Orleans & Southeast
Louisiana'', press release, 3 de junho de 2004, www.ieminc.com.
uma campanha para juntar todas as cidades corporativas e forma r um condado próprio, 5
Ron Fournier e Ted 13ridis, "Hurricane Simulation Predictcd 61,290 Dead", Associated Press, 9 de
o que significaria que nenhum de seus dólares pagos em impostos iria para as vizinhanças setembro de 2005.
6
mais pobres. O plano enfrentou oposição furiosa, fora do enclave proposto, pois os polí- Paul Krugman, "A Can't Do Governmen t'; New York Times, 2 de setembro de 2005; Martin Kelly,
"Neoconservatism's 13erlin Wall '',TheG -Gnome RidesOut blog, 1°desetembrodc 2005, www. theggnomeridcsout.
ticos afirmam que, sem o dinheiro dos contribuintes, não poderão mais manter o grande
blogspot.com; Jonah Goldberg, "The Feds'; the Comer blog on the National Rcvicw Online, 31 de agosto de
hospital e o sistema de transportes públicos; aquela repartição dentro do condado criaria 2005, www.nationalreview.com.
7
um Estado falido, de um lado, e um Estado com superávit de serviços, de outro. O que Milton Friedman, "The Promise ofVo uchers': Wall Strcet Journal, 5 de dezembro de 2005; John R. Wilke e
Brody Mullins, "After Katrina, Republicans 13ack a Sea of Conserva tive ldeas'', Wal/ Strcet ]011ma/, 15 de setembro
estavam descrevendo soava muito a Nova Orleans e um pouco a Bagdá.~ 1
de 2005; Paul S. Teller, vice-diretor, Comitê de Estudos Republicanos do Co ngresso, "Pro-Free-Market ldeas
Nesses subúrbios abastados de Atlanta , a cruzada corporatista de três décadas, desti- for Responding to Hurricane Katrina and High Gas Priccs'', e-mail enviado <'m 13 de setembro de 2005.
nada a tornar o Estado cada vez mais raso, foi completa: não realizou apenas a terceiri- 8
Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, Climate Changc 2007: ·111~ Pl1ysiml Scicncc I311sis,
Síntese para Formuladores de Políticas Públicas, feve reiro de 2007, p•ígina 16, www.ipc(.( h.
zação de todos os serviços governamentais, mas das próprias funções do governo, que 9
Teller, "Pro-Free-11.farket ldeas for Responding to Hurricane Katrina and High (~as l'riccs''.
significam governar. Foi especialm ente apropriado o fato de que a CH2M Hill tenha 10
Eric Lipton e Ron Nixon, "Many Contracts fo r Storm Work Raise Qucstions'', Nnv \'cnk Ti111cs, 26 de setembro
aberto o camin ho. A corporação era uma contratante de muitos milhões de dólares no de 2005; Anita Kumar, "Speedy Relief Effort Opens Door to Fraud'', St. JJctmlm1s 'fon es, 18 de setembro de
Iraque, paga para desempenhar as funções essencialm ente governamenta is de supervi- 2005; Jeremy Scahill, "ln the 131ack(water)", T/1e N11tio11, 5 de junho de 200Ci; Spencer S. Hsu, "$400 l\'lillion
FEMA Contracts Now Total $3,4 Billion", Washington Post, 9 de agosto de 2006.
sionar outros contratantes. No Sri Lanka, após o tsunami, ela não apenas ergueu portos 11 Shaw Group, "Shaw Announces Charles M. Hess to Head Shaw's FEMA Hurricane Recovcry Program'', press

~ pontes, mas foi "responsável pela administração integral do programa de infra-estru- release, 21 de setembro de 2005, www.shawgrp.com; "Fluor's Slowed lraq Work Fm:s li for Gulf Coast'', Reuters,
tura".'12 Na Nova Orleans posterior ao Katrina, foi agraciada com quinhentos milhões 9 de setembro de 2005; Thomas B. Edsall, "Former FEMA Ch ief Is at Work nn Gulf Coast'', Wnshi11gto11 Post,
8 de setembro de 2005; David Emlcrs, "Surviving New Orlcans'', !V/otlicr /011.:s, 7 de setembro de 2005, www.
de dólares para construir as vilas da FEMA e colocar-se de sobreaviso, para o caso de 111otherjones.com.
precisar fazer o mesmo no próximo desastre. Mestre ela privatização do Estado sob cir- 12 Cámara dos Deputados dos Estados Unidos, Comitê de Reforma Governamental- Equipe de Minorias,

cunstâncias extraordinárias, a empresa agora estava fazendo a mesma coisa em situações Divisão de Investigações Especiais, 1\Inste, Fra11d and J\b11se i11 /-J11rrirn11c Katri11c1 Co111mcts, agosto de 2006,
p;ígina i, www.oversight.house.gov.
orâinárias. Se o Iraque era o laboratório da privatização extrema, a fase de testes estava 13 Rita J. King, CorpWatch, Big, Easy Money: Disaster Profiteeri11g on the A1ncrirn11 Gulf Coast, agosto de 2006,

claramente superada. www.corpwatch.org; Dan Barry, "A City's Future, anda Dead Man's Past", New York Times, 27 de agosto de
2006.
1'1 Patrick Danner, "Ash13ritt Cleans Up in W;ike of Storms'', Mia111i J-/erald, 5 de dezembro de 2005.
15 "Private Companies Rebuild Gulf'', PBS Ncws/-1011r wit/1 fim Lrlircr, ·I dt· outubro de 2005.
16 Scotl Shane e Ron Nixon, "ln W;ishington, Cont ractors Take on íliggest Role Ever", Ncw \'cirk Times, 4 de

fevereiro de 2007.
17 Mike Davis, "Who Is Killing New Orleans?'', J71e Na tion , l Ode abril de 2006.
18 Leslie Eaton, "lmmigr;ints Hired After Storm Sue New Orlea ns Hotel Executive·: New \'<Jrk Tim es, 17 de

agosto de 2006; King, CorpWatch, I3ig, Easy Monc)r, Gary Stoller, "Securit y Generates Multibillion 13usiness'',
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Hincapie et ai., A11d Injustice for Ali: Workers Lives in the Reco11structio11 of New Orlccms, Advancement Projed,
6 de julho de 2006, página 29, www.advancementproject.org.
19 Rick Klein, "Senate Votes to Extend Patriot Act for 6 Months'', Boston Glo/Je, 22 de dezembro de 2005.
502 A DOUTRINA DO CHOQU E

20 Jeff Duncan, "The Unkindest Cut'', Times-Picayune (Nova Orleans), 28 de março de 2006; Paul Nussbaum,
"City at a Crossroads'', Philadelphia lnquirer, 29 de agosto de 2006.
21 Ed Anderson, "Federal Money for Entergy Approved'', Times-Picayune (Nova Orleans), 5 de dezembro de

2006; Frank Donze, "146 N.O. Transit Layoffs Planned'', Times-Picayune (Nova Orleans), 25 de agosto ele 2006;
Bill Quigley, "Robin Hood in Reverse: The Looting of the Gulf Coast",justicefomeworleans.org, 14 de novembro
de 2006. o
22 Coal.izão Asiática Pelo Direito À Moradia , "Mr. Enclesha Juakali'', www.achr.net. CAP fTULO 21
23 Bob Herbert, "Our Crumblíng Founclat ion'', New York Times, 5 de abril de 2007.
24
Help )et, www.helpjet.us.
25
Seth Borensteín, "Private Jnclustry Responding to Hurricanes'', Associateci Press, 15 de abril de 2006.
26
James Glanz, "lclle Contractors Ade! Millions to lraq Rebuilding", New York Times, 25 de outubro de 2006. A PERDA DE INCENTIVO PARA A PAZ
27
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)eremy Scahill, "Blackwater Down'', I71e Nation, 10 de outubro de 2005; Centro de Política Responsável, "Oil
& Gas: Top Contributors to Federal Candidates and Parties'', Ciclo Eleitoral de 2004, www.opensecrets.org; ISRAEL COMO ADVERTÊNCIA
Centro de Política Responsável, "Construction: Top Contributors to Federal Candidates and Parties'', Ciclo
Eleitoral de 2004, www.opensecrets.org.
28
Josh Manchester, "Al-Qaeda for the Good Guys: The Road to Anti-Qaeda'', TCSDaily, 19 de c.ezembro de
2086, www. tcsdaily.com. Gr~i;ides cercas formando divisas não pertencem ao mundo dos gulags, mas sim ao
29
Bill Size more e )oanne Kimberlin , "Pro fitab le Patri otism", The Virginian-Pilot (No rfolk), 24 de mundo das barreiras acústicas ao longo das estradas, dos camarotes luxuosos nos
jlilho de 2006. estádios esportivos, das áreas de não-fumantes, das zonas de segurança nos ae-
30
Ki ng, CorpWatch, Big, Easy Mon e;r, Leslie Wayne,"An1erica's For-Profit SecretArmy'',New York Times, 13 de
roportos e das "comunidades fechadas'~ (... ) Elas tornam explícitos os privilégios
outubro de 2002; Greg Miller, "Spy Agencies Outsourcing to Fill Key Jobs", Los Angeles Times, 17 de setembro
de 2006; Shane e Nixon, "ln Washington, Contractors 'fake on Biggest Role Ever''. dos que têm e a inveja dos que não têm, de modo constrangedor para ambos. Mas
31
Entre as corporações que faze m parte do conselho consultivo, encontram-se a Lockheed Martin, a Boeíng e a isso não quer dizer que elas não funcionam.
Booz Allen. Stephen E. Flynn e Daniel B. Prieto, Conselho de Relações Exteriores,Negleded Deferis~: Mobilizing
- Ch ristopher Caldwell, editor sênior, The Weekly Standard, novembro de 2006 1
0

the Priva te Sector to Support Homcland Secu rity, CSR nº 13, março de 2006, página 26, www.cfr.org.
32
Mi ndy Fetterman, "Strategizing on Disaster Relief'', USA Today, 12 de outubro de 2006; Frank L1ngfitt,
"Private Military Firm Pitches Its Services ÍJ1 Darfur': Na tional Public Radio: AI/ I1iings Considered, 26 de
maio de 2006.
33
Peter Pae, "Defense Companies Bracu1g for Slowdown'', Los Angeles Times, 2 de outubro de 2006.
34
Johanna Neuman e Peter Spiegel, "Pay-as-You-Go Evacuation Roils Capitol Hill': Los Angeles Times, 19 de DURANTE DÉCADAS, o Sf.NSO COMUM ERA o de que a anarquia generalizada seria um dreno
julho de 2006. para a economia global. Choques individuais e crises podiam ser empregados como ala-
35
Tim Weiner, "Lockheed and the Future ofWarfare': New York Times, 28 de novembro de 2004. vancas para forçar a abertura de novos mercados, é claro; contudo, depois que o choque
36
As ui formações dos dois parágrafos seg11u1tes fora m retiradas de John Robb, "Security: Power to the People':
Fast Compa 11y, março de 2006. inicial tivesse feito seu trabalho, paz relativa e estabilidade se tornavam essenciais para o
37
Juvenilç,"Got Ya Hustle On", do álbum Reality Check, Atlan ta/selo WEA, 2006. cresc im en~o econômico sustentado. Essa era a explanação aceita para o fato de os anos
38
Bill Qt1igley, "Ten MonthsAfter Katrina: Gutting New Orlea ns': CommonDreams.org, 29 de junho de 2006, 1990 terem sido tão'prósperos: com o fim .da Guerra Fria, as economias foram liberadas
www.commondreams.org.
39
Doug Nurse, "New City Bets Milli ons on Priva ti za tion", Atlan ta fournal- Constitution, 12 de
para se concentrarem em comércio e investimento, e os países se tornaram tão enredados
novembro de 2005. e interdependen tes, que dificilmepte se inclinariam a bombardear uns aos outros.
Annie Gentile, "Fewer Cities lncrease Outso urced Servi~es': American City & County, 1° de setembro de
40
No entanto, no Fórum Econômico Mundial de 2007, em Davos, na Suíça, líderes políti-
2006; Nurse, "New City Bets Millions on Privatization''.
41 cos e corporativos estavam coçando suas cabeças, perplexos diante de um estado de coisas
Doug Nurse, "City Hall Inc. a Growing Busi:ness in North Fulton'', TI1e Atlanta fournal-Constitution, 6 de
setembro de 2006; Doug Gross, "Proposal to Split Georgia County Drawing Cries of Racisrn", Seattle Times, 24 que parecia desafiar tal senso comum. Ele começou a ser chamado de "Dilema de Davos"
de janeiro de 2007. e foi descrito pelo colunista do Financial Times Martin Wolf como "o contraste entre o
42
Departamento das Nações Un idas para Coordenação das Ações Humanitárias, "Humanitar:an Situation
mundo favorável da economia e o mundo turbulento da política". Segundo sua visão, a
Report - Sri Lanka'', 2-8 de setembro de 2005, www. reliéveb.u1t.
econo mia enfrentou "um a série de choques: o estouro do mercado de ações após 2000;
504 A DOUTRINA DO CI IOQUE A P~RDA DEINCEN nvo PARA A PAZ 505

os ataq ues terroristas do l l de Setembro ele 200 l; as guerras no Afegan istão e no Iraque; também era maior do que os orçame ntos somados do Departamento de Comércio, do
conflitos com as políticas dos Estados Unidos; um salto no preço real do petróleo para ní- Departamento do Interior, da Administração das Pequenas Empresas e de todo 0 corpo
veis jamais vistos desde os anos 1970; o fracasso das negociações da rodada de Doha [das. legislativo do governo". A própria Lockheed era um "mercado emergente". Co mpanhias
conversas da OMC]; e o confronto com as ambições nucleares do Irã" - e, ainda assim, como ela (cujas ações tiveram seu preço triplicado, entre 2000 e 2005) são, em grande
se encontro u "numa era de ouro de cresci1J1ento amplamente compartilhado''. Falando medida , a razão pela qual os mercados de ações dos Estados Unidos foram salvos de uma
com franqueza, o mundo estava a ca minho do inferno, não havia estabilidade à vista e a crise prolongada, depois do 11 de Setembro. Enquanto os preços das ações convencionais
economia global bradava sua aprovação. Logo depois, o secretário do Tesouro dos Estados tiveram desempenho abaixo do esperado, o índice Spade Defense Index, "um certificado
Unidos, Lawrence Summers, desereve u a "quase completa desconexão" entre política e de qualidade para ações dos segmentos de defesa, segurança nacional e aeroespacial",
mercados como "algo extraído de Dickens. Você fa la com especialistas em relações inter- subiu em média 15%, todos os anos, entre 200 l e 2006 - se te vezes e meia a média de
nacionais, e esse é o pior de todos os tempos. Então, você fala com investidores em poten- crescimento das quinhentas maiores da Standard & Poor, no mesmo período.'
cial, e esse é o melhor de todos os tempos". 2 O Dilema de Davos vem sendo ainda mais intensificado pelo modelo altamente lucra-
Essa tend ência confusa também foi observada po r meio de um indicador econôm ico tivo de reconstrução privatizada, forjado no Iraque. As ações da construção pesada, que
denominado "índice das armas-ao-caviar". O índice rastreia a venda de jatos de combate incluem as grandes firmas de engenharia que abocan ham suculentos contratos sem lici-
(armas) e de jatos exec utivos (caviar). Durante dezessete anos, co m grande coe rência , ele taçã?1 após guerras e desastres, subiram 250%, en tre 200 l e abril de 2007. A reconstrução
verificou que, quando os jatos de co mbate eram vendidos com rapidez, as vendas de jatos se tornou um negócio tão grande, que qualquer destru ição recente é recebida co m a exci-
executivos de luxo caíam e vice-ve rsa: quando subiam as vendas de jatos exec utivos, os de tação da oferta inicial de novas ações ao público: trinta bi lhões de dólares para a recons-
combate decl inavam. É claro que uma meia dúzia de especu ladores sempre dava um jeito trução do Iraque, treze bilhões de dólares para a reco nstrução do tsunami, cem bilhões de
de lucrar com a guerra e a venda de armas, mas eles eram in sign ificantes, economica- dólares para Nova Orleans e a Costa do Golfo, 7,6 bilh ões ele dólares para o Líbano.;
mente folando. Era um truísmo do mercado con temporâneo que não se podia ler grand e Os ~taq u es terroristas, que antes faziam as transações acion~íria s despencarem, ago-
surto de crescimento econômico em meio à violência e à instabilidade. ra têm uma recepção positiva semelh ante nos mercados. Depo is elo 11 de Se tembro, o
Entretan to, esse truísmo não é mais verdadeiro. Desde 2003 , ano da invasão do Iraque, índice Dow Jones despencou 685 pontos, logo ºassim que as atividades reiniciaram. Em
o índice verificou que os gastos têm crescido nos dois segmentos, jatos de co mbate e jatos nítido contraste, no dia 7 de julho de 2005, quando quatro bombas detonaram o sistema
executivos, com rapidez e simultaneidade, o que significa que o mundo es tá ficando me- público de transportes, em Londres, matando dezenas e ferindo centenas de pessoas, o
nos p;tcífico, enquanto se acumula mais lucro, ele modo impressionante. 3 O crescimento mercado de aÇões dos Estados Un idos fechou num nível mais alto do que o do dia an-
econômico galopante da China e ela Índia teve participação no aumento da demanda por terior, com a elevação de sete pontos no Nasdaq. No mês de agos to seguinte, no dia em
artigos luxuosos, mas a transformação elo restrito complexo ind ustrial-militar no espa- que as agências britân icas de execução da lei prenderam 24 suspeitos de planejarem a
_çoso complexo do capitalismo de desastre também teve. Hoje, a instabilidade global não explosão de·aviões comerciais com dest ino aos Estados Unidos, o índice Nasdaq fec hou
beneficia apenas um pequeno grupo ele negocia ntes de ar mas; ela gera lucros extraordi ná- l l,4 pontos aci ma; em grande parte graças à elevação das ações do segmento de segu-
rios para o setor de segurança ele alta tecn olo5:a, para a construção pesada, para as com- rança nacional.
panhias privadas de sa úde, que tratam dos soldados ferido s, para os setores de petróleo e Há ainda as fo rtunas ultrajantes do setor de petróleo - so mente a ExxonMobi l ob-
gasolina - e, é claro, para os contratantes de defesa. teve, em 2006, um luuo de q~ar~nta bilhões de dólares, a maior lucratividade jamais
O montante de receitas em jogo é suficiente para alimentar um surto ele crescimento registrada, e seus colegas nas co mpan hias rivais, como Chevro n, não ficaram atrás_. 6 Ta l
eco nômico. A Lockheed Martin, cujo ex-vice-presidente comandou o comitê bradando como as corporações ligadas à defesà, construção pesada e segura nça nacio nal , as fortu-
pela guerra no Iraque, recebeu, sozinha, 25 bi lhões de dólares do dinheiro dos contribuin - nas do setor de petróleo aumen tam co m cada nova guerra, ataq ue terrorista e furacão de
tes em 2005. O congressista democrata Henry Waxman observou que a quantia "excedia ca tegoria cinco. Além de colher os benefícios de curto prazo, como preços altos vincu-
o Produto Interno Bruto de 103 países, inclusive Islândia, Jordânia e Costa Rica( ... ) le] lados às in certezas das principais regiões produtoras de petróleo, a indústria petrolífera
A DOUTRINA DO CHOQUE A PERDA DE INCENTIVO PARA A PAZ 507
506

tem conseguido ainda transformar os desast res em vantagens de lon go prazo. Primeiro, pelo controle de recursos escassos (não somente no Iraque e no Afeganistão, mas tam-
ao garantir que grande parte dos fundos de reconstrução, no Afeganistão, fosse gasta na bém conflitos de baixa intensidade, como na Nigéria, Colômbia e Sudão), que acabam
custosa infra-estrutura rodoviária para um novo oleoduto (enquanto a maioria dos ou-. gerando reações terroristas (um estudo de 2007 calculou que o número de ataques terro-
tros projetos de reconstrução ficou estagnada); depo is, ao aprovar uma nova legislação ristas aumentou sete vezes, desde o início da guerra no Iraque). 8
de petróleo no Iraque, enquanto o país pegava fogo; e, em seguida, ao se aproveitar do Dadas as altas temperaturas, tanto climáticas quanto políticas, os futuros desastres
furacão Katrina para planejar as primeiras novas refinarias dos Estados Unidos, desde a não precisam ser fabricados em conspirações obscuras. Tudo indica que basta o pros-
década de .1970. A indústria de petróleo e gás está tão intimamente entranhada na eco- seguimento do atual estado de coisas para que eles continuem surgindo, cada vez com
nomia do desastre - tanto como causa primária de muitos infortúnios quanto como maior intensidade. A geração de catástrofes pode ser entregue à mão invisível do merca-
beneficiária destes-, que merece ser tratada como um apêndice honorário do complexo do. Esta é uma área que ela realmente domina.
do capitalismo de desastre. Enquanto o complexo do capitalismo de desastre não conspira para criar, de modo
deliberado, os cataclismos que o alimentam (embora o Iraque venha a ser uma notável
Conspirações não são necessárias exceção), há forte evidência de que as indústrias que o compõem trabalham duro para
assegurar que as tendências calamitosas atuais permaneçam incontestadas. As grandes
A séri e. rece11te de desastres se traduzi u em lu cros tão espetaculares, que muitas pessoas companhias petrolíferas financiaram o movimento de negação das mudanças climáticas
em to.do o mundo chegaram à mesma conclusão: os ricos e poderosos devem estar cau- durante anos; a ExxonMobil gastou cerca de dezesseis milhões de dólares nessa cruzada,
saH?Q essas catástrofes, deliberadamente, a fim de explorá-las. Em julho de 2006, uma na última década . Ao passo que esse fenômeno é bastante conhecido, a interação entre os
pesquisa nacional com habitantes dos Estados Unidos revelou que mais de um terço dos contratantes do desastre e a elite formadora de opinião é muito menos compreendida.
entrevistados acreditavam que o governo teve participação nos ataques do 11 de Setem- Muitos thínk tanks influentes de Washington - inclusive o Instituto Nacional de Polí-
bro, ou não fez _nada para impedi -los, "porque queria que os Estados Unidos entrassem ticas Públicas e o Centro para a Política de Segurança - são vultosamente financi ados
em guerra com o Oriente Médio". Suspeitas semelhantes persistem em relação à maioria pelos contratantes de armas e segurança nacional, que lucram em função da descrição in-
das catástrofes em anos recentes. Na Louisiana, logo após a passagem do Katrina, os findável, feita por essas instituições, do mundo como um lugar escuro e ameaçador, cujos
abrigos foram sacudidos pelos rumores de que os diques não se romperam, mas foram problemas só podem ser enfrentados pela força. O setor de segurança nacional também
explod id os secretamente, "para destruir a parte negra da cidade e deixar a parte branca está ficando cada vez mais integrado às corporações da mídia, e esse é um desenvolvi-
seca'', como sugeriu o líder da Nação Islâmica, Louis Farrak11an. 7 No Sri Lanka, ouvi com mento cujas implicações remetem a Orwell. Em 2004, a gigante da comunicação digital
freqü ência que o tsunami havia sido causado por explosões submarinas, detonadas pelos LexisNexis pagou 775 milhões de dólares pela Seisint, uma empresa de armazenamento
Estados Unidos, para que pudesse m mandar suas tropas ao Sudeste Asiático e estabelecer de dados que trabalha intimamente com agências federais e governamentais no segmen-
o controle sobre as economias da região. to de vigilância. Naquele mesmo ano, a General Electric, que é detentora da rede NBC,
A verdade é, ao mes mo ·tempo, menos sinistra e mais perigosa. Um sistema econô- comprou a ln Vision, principal produtora da cont.rovertida tecnologia de ponta para de-
mico que requer érescimento constante, .enquanto pratica quase todos os mais graves tecção de bombas, usada em aeroportos e outros espaços públicos. A ln Vision recebeu a
atentados à regulação ambiental, acaba originando uma torrente contínua de desastres soma estrondosa de quinze bilhões de dólares, em contratos de segurança nacional , entre
próprios, militares, ecológicos ou finan~ei ~os. O apetite pelo lucro fácil, im ediato, oferta- 2001 e 2006, mais do que qualquer outra companhia.9
do pelo investimento ·meramen te especulativo, transformou os mercados de ações, moe- A expansão sorrateira do complexo do capitalismo de desastre dentro da mídia pode
das e imóveis em máquinas de geração de desequilíbrios, como ficou demonstrado com acabar se tornando um novo tipo de si nergia corporativa, construída no modelo de in-
a crise financeira da Ásia, a crise do peso mexicano e o colapso das empresas pontocom. tegração vertical, que foi tão popular nos anos 1990. Ela parece fazer sentido no âmbito
Nosso vício rotineiro em fontes de energia sujas e não-renováveis garante o surgimento dos negócios. Quanto mais apavoradas se tornam nossas sociedades, convencidas de que
de novas emergências: desastres naturais (cerca de 430, desde 1975) e guerras travadas . há. terroristas à espreita em todas as mesquitas, maiores são os índices de audiência dos
508 /\ DOUTíllN/\ DO CHOOUI: A P[RD/\ DE ll~ C ENT IVO P/\RA A PAZ 509

notici<~rios e as vendas de identificadores biométricos e detectores de explosivos líquidos que trinta novas empresas desse tipo entraram no mercado em 2007. Da perspectiva
cio complexo, assim como as cercas ele alta tecnologia que ele constrói. Se o sonho ele um das corporações, esse desenvolvimento transformou Israel em modelo a ser copiado,
"peq ueno planeta" aberto e sem fronteiras era o bilhete ele ingresso para os lucros cios no mercado posterior ao 11 de Setembro. De uma perspectiva política e social, con tu -
anos 1990, o pesadelo cios continentes ocidentais fortificados e ameaçados, sob o cerco do, Israel deveria servir para outra coisa - uma séria advertência. O fato ele que Israel
cios imigrantes ilegais e cios membros do jihad, desempenha o mesmo papel no novo continua a usufruir grande prosperidade, mesmo que empreenda guerras contra se1,1s
milênio. A única perspectiva que põe em risco a economia cio desastre em franco cres- vizinhos e eleve progressivamente a brutalid ade nos territórios ocupados, demonstra
cimento, ela qual depende tanta riqueza - de armas a petróleo, engenharia, vigilância e quanto é perigoso construir uma economia baseada na premissa de guerra contínua e
·reméd ios patenteados-, é o alcance ele alguma medida ele estabilidade climática e paz desastres cada vez mais graves.
geopolítica.
A habilidade rotineira de Israel para combinar armas e caviar é o ponto culminante de
Israel e o Estado de permanente apartheid do desastre uma mudança dramática na natureza de sua economia, que foi realizada nos últimos
quinze anos e tem tido um impacto profundo e mal compreendid o na desintegração pa-
Enq uanto os analistas lutam para compreender o Dilema ele Davos, um novo consenso ralela das perspectivas de paz. A última vez em que houve uma proposta de paz com real
est~ ~urgi ndo . Não é que o mercado tenha ficado imune à instabilidade, pelo menos não creclibiliclacle, no Oriente Médio, foi no começo da déc1da de 1990, quando um grupo
exatamente. É que, agora, um fluxo crescente de desastres é tão aguardado, que o sem- de eleitores israelenses poderosos compreendeu que a co ntinuação dos conflitos já não
pre adaptável mercado mudou para se adequar ao novo status quo - a in stabilidade é era mais uma opção. O comunismo tinha desaparecido, a revo lu ção da informação esta-
a nova estabi lidade. Em discussões sobre esse fenômeno econô mico posterior ao 11 de va começando e havia uma convicção generaliza da, dentro da comunidade empresa ri al
Setembro, Israel é tomado, freqüentemente, como uma espécie de prova documental. israelense, de que a ocupação sangrenta de Gaza e Cisjorclü nia, acompanhada do boicote
Em grande parte da última década, Israel experimentou seu próprio Dilema de Davos dos países árabes a Israel, colocava o futuro econôm ico do país em perigo. Observando a
miniaturizado: guerras e ataques terroristas aumentaram, mas a Bolsa de Valores de Tel explosão cios "mercados emergentes", no mundo todo, as corporações israelenses se can-
Aviv tem subido a níveis sem precedentes, no •mesmo passo da violência. Como obser- saram de ficar para trás por causa da guerra; elas queriam fazer parte daquele mundo de
vou um analista de ações no canal Fox News, ~ pós as bombas de 7 de julho, em Londres, alta lucratividade sem fronteiras, em vez de ficarem enclausuradas em razão dos conflitos
"em Israel, eles lidam com a ameaça ele terror diariamente, e aquele mercado sobe o ano regionais. Se o governo israelense conseguisse negociar algum tipo ele acordo de paz com
inteiro".111 Til qual a economia global, como um todo, a situação política de Israel, dizem os palestinos, os vizinhos de Israel cessariam sells boicotes e o país ficaria em perfeitas
muitas pessoas, é desastrosa - mas sua econo1;nia nunca esteve tão forte, com taxas de condições para se transformar no centro do livre-comércio do Oriente Médio.
crescimento, em 2007, rivalizando com as da China e da Índia. Em 1993, Dan Gillerman, então presidente da Federação Israelense ele Câmaras de
O que torna Israel interessante, dentro de um modelo de "armas-e-caviar", não é Comércio, foi um ardoroso proponente des.sa postura. "Israel pode se tornar apenas mais
apenas a resistênóa de sua economia a grandes choques políticos, como a guerra contra um Estado (...) ou pode vir a ser o centro estratégico, logístico e comercial de toda a
o líbano,· em 2006, ou a tomad.a.de Gaza pelo Hamas, em 2007, mas também o fato região, como uma Cingapura ou Hong Kong do Oriente Médio, onde as companhias
de que o país moldou uma economia que se expande, claramente, em resposta direta multinacionais instalam seus escritórios centrais. (... )N ós esta mos falando de uma eco-
à esca lada de violência.. As razões pelas quais a indústria israelense se coaduna ao de- nomia completamente diferente. (... ) Israel deve atuar com rapidez para se ajus.tar, ou
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sas tre não são misteriosas. An°0S antes que as empresas estadunidenses e européias se essa oportunidade econômica, que pode se r a única numa vicia inteira, será perdida par;:i
apoderassem cio po tencial de crescimento ela segurança global, as firma s de techÔldgia que venhamos a dizer: 'bem que podíamos."' 11
israelenses construíram, de modo pioneiro, sua indústria ele segura nça nacional e conti- N;:iquele mesmo ano, Shimon Peres, então ministro das Relações Exteriores, explicou
nuam a dominar o setor até hoje. O Instituto Isra elense de Exportação estima que Israel a um grupo de jornalistas israelenses que a paz se tornara inevitável. Embora fosse um
tenha 350 corporações dedicadas à venda de produtos para segura nça nacional, sendo tipo muito espec ial de paz. "Não esta mos procurando uma paz de bandeiras", disse ele ,
A DOUTRINA DO CHOQUE A PERDA DEINCENTIVO PARA A PAZ 511
510

"estamos interessados numa paz de mercados". 12 Alguns meses depois, o primeiro-minis- da economia de segurança de alta tecnologia criou um enorme apetite dentro dos setores
tro israelense, ltzhak Rabin, e o presidente da Organização para a Libertação da Palestina, mais ricos e poderosos de Israel para abandonar a paz em troca da luta numa prolongada,
Yasser Arafat, apertaram as mãos, nos jardins da Casa Branca, para assinalar a inaugu~ e continuamente expansiva, Guerra ao Terror.
ração dos Acordos de Oslo. O mundo comemorou, os três homens dividiram o Prêmio
Nobel da Paz, em 1994 - e, depv is, deu tudo ~errivelmente errado. Por uma infeliz coincidência histórica; o começo do período de Oslo ocorreu no mesmo
Oslo pode ter sido o período de maior oti'mismo nas relações entre palestinos e is- momento da fase mais dolorosa do experimento da Escola de Chicago na Rússia. O aper-
raelenses, mas o famoso aperto d.e mãos não marcou o fechamento de um acordo. Foi to de mãos, nos jardins da Casa Branca, se deu em 13 de setembro de 1993; exatamente
apenas a concordância para começar um processo, com as questões mais polêmicas ainda três semanas depois, Yeltsin mandou os tanques bombardearem o prédio do Parlamento,
por resolver. Arafat estava numa terrível posição de barganha, tendo de negoo:iar o seu pavimentando o caminho para sua dose mais brutal de choque econômico.
próprio retorno aos territórios ocupados, e sem assegurar nenhum consenso quanto ao No curso dos anos 1990, aproximadamente um milhão de judeus abandonaram a antiga
futuro de Jerusalém, dos refu giados palestinos, dos assentamentos judeus ou oesmo do União Soviética e se mudaram para Israel. Os imigrantes que vieram da ex-União Soviética,
direito dos palestinos à autodeterminação. Como alegaram os negociadores, a estratégia naquele período, hoje representam mais de 18% da população judaica total de Israel. 14 Não
de Oslo era levar adi an te a "paz dos mercados", baseada na idéia de que tudo acabaria é preciso exagerar o impacto de uma transferência de população assim tão grande e rápida,
indo para seu devido lugar: ao çstabcl<ice rem fronteiras abertas e ade rirem à irrefreável num país tão pequeno como Israel. Proporcionalmente, isso equivaleri a a cada pessoa de
globa lização, israelenses e pa lestin os vivenciariam melh orias tão concretas em mas vidas Angola, Camboja e Peru arrumando as malas e se mudando para os Estados Unidos, todas
cotidianas, que seria criad o \llll novo contexto mais hospita leiro para a "paz ce bandei- de uma só vez. Na Europa, isso seria equivalente à mudança de toda a Grécia para a França.
ras" nas próximas negociações. Essa, pelo menos, era a promessa de Oslo. Quando a primeira leva de judeus soviéticos migrou para Israel, muitos estavam fa-
Muitos fatores contribu íram para o colapso subseqüente. Os israelenses tendem a cu l- zendo a escolha de viver num Estado judaico, após uma vida inteira de perseguição reli-
par os homens-bomba e o assassinato d<; Rabin. Os palestinos apontam a expmsão fre- giosa. Depois daquela onda inicial, todavia, o número de russos que emigraram para Is-
nética de assentamentos ilegais de Israel, durante o período de Oslo, como prcova de que rael aumentou dramaticamente, e em relação direta com a carga de sofrimento infligido
o processo de paz estava baseado, como disse Shlomo Ben-Ami, ministro das Relações ao povo russo pelos doutores do choque econômico. Essas últimas levas de im igrantes
Exteriores de Israel no governo trabalhista de Ehud Barak, "num princípio ntocolonia- soviéticos não eram formadas por sionistas idealistas (muitos, inclusive, apresentavam
1ista", no qual, "quand o finalmente chegasse a p~z entre nós e os palestinos, haveria uma alegações tênues de sua condição judaica), e sim por refugiados econômicos desespera-
situação de dependência, uma falta estruturada de eqüidade entre as duas entidades".13 dos. "Não é o lugar para onde estamos indo que é o mais importante, mas o lugar de o'nde
Os debates sobre quem malogro u o processo de paz, ou se a paz foi o verdadeiro obietivo estamos vindo", foi o que disse um emigrante, que esperava do lado de fora da embaixada
desse processo, são bem co nh ecidos e já foram exaustivamente explorados. Entretanto, de Israel, em Moscou, ao jornal Th e Washington Tim es, em 1992. Um porta-voz do Fórum
dois fatores que contribuíram para a escol hâ do unilateralismo, por Israel, foram mal Sionista de Judeus Soviéticos confessou, sobre o êxodo, que "eles não estão sendo atraídos
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compreendidos e raramente são discutidos! e estão ambos relacionados à forma exclu- por Israel, eles se sen tem expelidos da União Soviética, por causa da instabilidade política
siva pela qual a cruzada de livre mercado da Escola de Chicago se manifestou em Israel. e da deterioração econômica ali existentes". De longe, a maior de todas as levas ocorreu
Um fator foi o fluxo de judeus soviéticos, resultado direto do experimento da terapia de no início do golpe de Yeltsin, em 1993 - assim que o processo de paz estava começando
choque da Rússia. O outro foi a mudança bru~ca da ecônomia d~ exportação israelense, em Israel. Depois disso, um número adicional de seiscentas mil pessoas migrou dos anti-
de um padrão baseado em bens tradicionais e alta tecnologia , para outro desproporcio- gos Es tado~ soviéticos para Israel. 15
nalmente dependente da venda de perícia e equipamentos relacionados· ao contraterro- Essa transformação demográfica virou de cabeça para baixo a dinâmica de um acor-
rismo. Ambos os fatores tiveram grande influência na desagregação do procesrn de Oslo: do que já era precário. Antes da chegada dos refugiados soviéticos, Israel não podia se
a chegada dos russos reduziu a dependência de Israel em relação aos trabalhadores pa- apartar, por nenhum período de tempo, da população palestina de Gaza e Cisjordânia;
les tin os e permitiu o fechamento dos territórios ocupados, enquanto a rápidc. expansão sua econo111ia en\ tão dependente do trabalho dos palestinos quanto a da Califórnia em
512 A DOUTRINA DO CI IOQU~ A PERDA DE INCENTIVO PARA A PAZ 513

relação aos mexicanos. Todos os dias, cerca de 150 mil palestinos deixavam suas casas em versidade, um hotel e um curso de mini golfe do Texas - fizeram recru tamentos agres-
Gaza e na Cisjordânia para lim par as ruas e construir as estradas em Israel, ao mesmo sivos na an tiga União Soviética, enviando olheiros e divu lgando notícias pela internet,
tempo em que agricultores e comerciantes palestinos enchiam caminhões com produtos no idioma russo. O assentamento ele Ariel conseguiu dobrar sua população graças a esse
para vender em Israel e em outras partes dos territórios. 16 Cada um dos lad os dependia tipo de abordagem, e hoje se apresenta como uma espécie de pequena Moscou, com as
do outro, eco nomicamente, e Israel tomou medidas agressivas para impedir que os terri- 0 placas das lojas escritas tanto em russo quanto em hebraico. Me tade de seus habitantes
tórios palestinos dese nvolvessem relações comerciais autô nomas com os países árabes. é composta de novos imigrantes da antiga União Soviética. O grupo pacifista israelense
Contudo, assim que Oslo se efetivou, aq uela relação profundamente interdependente Peace Now estima que cerca de 25 mil cidadão.s- israelenses que vivem nos assentamen-
foi bruscamente interrompida. Diferentemente dos trabalhadores palestinos, cuja presen- tos ilegais pertencem a essa categoria e também observa que muitos russos se mudaram
ça em Israel desafiava o projeto sionista - ao fazer exigências ao Estado de Israel, de de- "sem uma noção clara do lugar para onde estava m indo''. 18 ·

volução da terra roubada e de direitos de cidadan ia equivalentes-, os milhares de russos Em Israel, os anos que se seguiram aos Acordos de Oslo trouxeram a promessa de trocar
que foram para Israel, naquela conj untura, tiveram um efeito oposto. Eles incrementaram conflito por prosperidade, em grande estilo. Em meados e no final dos anos 1990, as em-
os objetivos sionistas, ao elevar, claramente, o contingente de judeus em relação aos árabes, presas israelenses fora m muito bem-sucedidas em sua inserção na economia global, espe-
ao mesmo tempo em que representaram uma nova fonte de trabalho barato. De repente, cialmente as firmas de alta tecnologia especializadas em telecomu nicações e tecnologia de
Tel Aviv tinha p.oder para desencadear uma nova era nas relações com os palestinos. Em rede, sendo que Tel Avive Haifa se transfo rmaram. I} OS postos avançados do Vale do Silício
30 de março de 1993, Israel começou sua política de "fechamento", vedando as fronte iras no Oriente Médio. No auge da bolha do segn1ento pontocom, a alta tecnologia con tribuiu
entre o país e os territórios ocupados por dias .iu semanas seguidos, impedindo a popula- com 15% do Produto Interno Bruto de l sr~el e com metade de suas exportações. Isso tor-
ção palest ina ele chega r ao traba lho e vender seus produtos. O fechamento começou como nou a eco nomia israelense "a mais depe1{dente de tecnologia do mundo", de acordo com a
medida provisória, sob a alegação ele se r ~una respos ta ele emergência à ameaça ele terroris- revista Business Week- duas vezes mais dependente do que os Estados Uniclos. 19
mo. Rapidamente, porém, ele se tornou o novo status quo, com territórios separados por Ma is uma vez, os recém-chegados desempenh;:iram um p;:ipel decisivo nesse surto ele
barreiras, não apenas ele Israel, mas também uns dos outros, e policiados por um sistema crescimento. Entre as centenas de milhares de soviéÚcos que foram para Israel, nos anos
ainda mais elaborado e aviltante ele postos de controle. 1990, havia cientistas altamente qualificados, mais bem preparados do que aqueles que o
O ano de l 993 foi tomado como o alvorecer de uma nova era de esperanças; em vez melhor instituto técnico ele Israel tinha conseguido formar, em seus oitenta anos de exis -
disso, foi o ano em que os territórios ocupados se transformaram ele dormitórios pre- tência. Muitos deles eram os cientistas que haviam garantido a posição da União Soviética
cários, que abrigava m a classe pobre do Estado de· Israel, em prisões sufocantes. Nesse dura nte a Guerra Fria - e, como fa lou um economista is"raelense, eles se tornaram "o
mesmo período, entre l 993 e 2000, o número ele colonos israelenses nos territórios ocu- combustível para o fogue te da indústria de tecnologia 1de Israel J ". Shlomo Ben-Ami des-
pados dobrou. 17 Em muitos lugares, os rústicos postos ava nçados dos colonos viraram creve os anos posteriores ao aperto de mão na Casa Branca como "uma das eras mais emo-
subúrbios luxuosos e fortificados, com estradflS de acesso restrito, claramente destinados cionantes de crescimento econômico e abertura de mercados na história [de Israel ]''. 20
a se incorporar ao Estado de Israel. Durante os anos de Oslo, Israel também começou a Aquela abertura de mercados prometera beneficiar ambos os lados do conflito, mas,
reivindicar reservas de água estratégicas da Cisjo rdânia, alimentando os assentamentos e com exceção da elite corrupta que cercava Arafat, os pafestinos ficaram visiveh:wnte fora
desviando a água escassa de volta para Israel. do surto de crescime nto pós-Oslo. O maior obstáculo foi o fec hamento, um a política que
Os novos imigrantes também desempenharam aqu i um papel pouco examinado. jamais se suspendeu, durante quatorze anos, desde que foi imposta em 199~ . J?e acordo
Muitos habitantes ela ex-União Soviética - que chegaram em Israel sem um tostão após com a especialista de Harvard em Orien te Médio, Sa ra Rdy, quando as fronteiras foram
assistirem ao desaparecimento de suas poupanças, durante a desvalorização da terap ia subitamente fechadas , em 1993, resultaram em efei tos catastróficos sobre a vida econô-
de choque - foram facilme nte atraídos para os territórios ocupados, onde as casas e os mica palestina. "O fechamento foi o aspecto isolado mais prejudicial à economia durante
apa rtamentos eram muito mais baratos e se ofereciam empréstimos e bônus. Alguns dos o período de Oslo e, desde então, tem sido a medida que impôs o maior prejuízo a uma
assentamentos mais ambiciosos - como o de Ariel, na Cisjordânia, que exibe uma uni- economia já comprometida''. disse ela, em urna entrevista.
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Trabalhadores não puderam trabalhar, comerciantes não puderam vender seus pro- transigência atribuída a Arafat ou o gesto pessoal de Sharon destinado a criar um "Israel
dutos, agricultores não conseguira m chegar a seus campos. Em 1993, o PIB per capita nos ainda maior". Um deles estava relacionado ao nascimento da economia de tecnologia
territórios ocupados despencou quase 30%; no ano seguinte, a pobreza entre os palesti-. israelense. No começo dos anos 1990, as elites econômicas de Israel queriam a paz para a
nos subiu 33%. Em 1996, como observou Roy, que tem documentado, de modo extensi- prosperidade, mas o tipo de prosperidade que elas construíram, durante os anos de Oslo,
vo, o impacto econômico do fechamento, "66% da força de trabalho palestina estava ou acabou se basean4o menos na paz do que se presumira inicialmente. Quando as tecnolo-
desempregada ou cruelmente subempregada". 21 Longe de uma "paz de mercados", o qu e gias de informação se converteram no nicho de Israel, na economia global, a chave para
Oslo representou para os palestinos foi o desaparecimento dos mercados, menos traba- o crescimento estava no envio de softwares e chips de computador para Los Angeles e
lho, menos liberdade- e, de modo ainda mais crucial, conforme os assentamentos se ex- Londres, e não na remessa de carga pesada para Beirute e Damasco. O sucesso no setor
pandiram, menos terra. Foi essa situação completamente indefensável que transformou de tecnologia avançada não requeria o estabelecimento de relações amigáveis entre Israel
os territórios ocupados no barril de pólvora que pegou fogo quando Ariel Sharon visitou, e seus vizinhos árabes, nem o fim da ocupação dos territórios. No entanto, a ascensão da
em Jerusalém, o lugar chamado de al-Haram al-Sharif pelos muçulmanos (e de Monte economia de tecnologia de ponta foi 1 primeira etapa da transformação ernnômica fatal
do Templo, pelos judeus), em setembro de 2000, dando início à segunda intifada. de Israel. A segunda ocorreu quando a economia do segmento pontocom se desintegrou,
em 2000, e as principais companh ias de Israel precisaram encontrar um novo nicho no
Em Israel e na imprensa internacional, gera lm ente se argumenta que a razão do fracasso mercado global. .
do processo de paz foi que a oferta fe ita por Ehud Barak, em Camp David, em julho de Com a economia mais dependente de tecnologia do mundo, Israel fo i mais atingido
2000, representou o melhor acordo que os palestinos jamais poderiam obter, mas Arafat pela desintegração do segmento pontocom do que qualqu er outro lu ga r~ O país entrou
virou as costas para a generosidade israelense, provando que nunca tinha sid o sincero em em queda livre de imediato e, em junho de 200 1, anal istas previram que cerca de trezen-
sua busca pela paz. Depois daquela experiência, e com a erupção da segunda intifada, os tas firmas israelenses de tecnologia avançada iriam à falência, com dezenas de milhares
israelenses perderam a fé na negociação, elegeram Ariel Sharon e começaram a construi r de demissões. O jornal de assuntos econômicos de Tel Aviv, Globes, declarou numa m~n­
aquilo que chamaram de barreira de segurança, e os palestinos denominaram Muro do chete que 2002 foi "o pior ano para a economia israelense, desde 1953".24
Apartheid - a rede de muros de concreto e grades de aço que se projeta da linha verde A única razão pela qual a recessão não se tornou ainda pior, como observou o jornal,
fronteiriça de 1967, alcançando, com voracidade, os territórios palestinos e anexando foi a rápida intervenção do governo israelense, com uma poderosa taxa de crescimento
grandes parcelas de assen tamentos ao Estado de Israel, ass im como 30% das fontes de de 10,7% nos gastos militares, parcialmente financiados com o corte dos serviços sociais.
água em algumas áreas. 22 O governo também encorajou a indústria de alta tecnologia a migrar dos segmentos de
Não resta dúvida de que Arafat queria um acordo melhor do que aqueles que foram informação e comunicação para os de segurança e vigilância. Nesse período, as Forças
produzidos em Camp David ou Taba, em janeiro de 2001, mas esses pactos também não de Defesa Israelenses tiveram papel semelhante ao de uma incubadora de empresas. Jo-
foram as premiações prometidas. Embora fosse apresentada pelos israelenses como uma vens soldados israelenses, que gan haram experiência em sistemas de rede e equ ipamen-
oferta baseada em generosidade sem precedentes, Camp David não propicio.u quase ne- tos de vigilância enquanto cumpriam serviço militar obrigatório, transformaram suas .
nhuma compensação para os palestinos que foram retirados à força de suas casas e terras, descobertas em planos de empreendimentos, quando voltaram à vida civil. Um grupo
quando o Estado de Israel se criou, em 1948, e não chegou nem perto de satisfazer os di- de novos negócios foi lançado, com especialização em tudo que se relacionasse a "busca
reitos mínimos dos palestinos à autodeterminação. Em 2006, Shlomo Ben-Ami, um dos e provisão" de dados compilados, câmeras de vigilância e levantamento de informações
principais n~gociadores do governo de Israel, tanto em Camp David quanto em Taba, sobre terroristas. 25 Quando o mercado para esse tipo de serviços e equipamentos explo-
desobedeceu· à órientação do partido e ad mitiu que "Camp David não foi a oportunidade diu, nos anos posteriores ao 11 de Setembro, o Estado de Israel aderiu abertamente a uma
perdida pelos palestinos, e, se eu fosse palestino, também teria rejeitado Camp David".23 nova visão da economia do país: o crescimento propiciado pela bolha pontocom seria
Houve outros fatores que contribuíram para que Te! Aviv abandonasse as negociações substituído pelo surto de expansão da segurança nacional. Era o casamento perfeito da
sérias nas conversas de paz mantidas após 2001 - fatores tão poderosos quanto a in- inclinação autoritária do partido Likud com a aceitação radical da economia da Escola
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516 A DOUTRINA DO CHOQUE A PERDA DE INCENTIVO PARA A PAZ 517

de Chicago, corporificado pelo ministro da Fazenda de Sharon, Benjamin Netanyahu, e tares israelenses encenaram uma elaborada "simulação <le um desastre com vítimas em
pelo novo presidente do Banco Central de Israel, Stanley Fischer, principal arquiteto das massa, que começou na cidade de Ness Ziona e terminou no hospital de Asaf Harofeh",
aventuras da terapia de choque do FMI na Rússia e na Ásia. de acordo com os organizadores.27
Em 2003, Israel já havia realizado uma recuperação impressionante, e, em 2004, o país Essas conferências não são de ordem política, mas constituem exibições comerciais
parecia gerar um milagre: depois de um colapso calamitoso, estava atuando em condições altamente lucrativas, que se destinam a demonstrar a potência das firmas de seguran-
melhores cio que as de qualquer economia ocidental. Grande parte desse crescimento se ça de Israel. Em decorrência disso, as exportações israelenses de produtos e serviços de
deveu à habilidade do Estado de Israel para apresentar a si mesmo como uma espécie contraterro rismo aumentaram 15%, em 2006, e tinham uma elevaç.ão de 20% projetada
de shopping center de tecnologias de segurança nacional. O senso de oportunidade foi para 2007, totalizando 1,2 bilh ão de dólares por ano. As exportações de defesa do país
perfeito. Subitamente, governos de todo o mun ·io encontravam-se desesperados atrás de alcançaram a cifra recorde de 3,4 bilhões de dólares ~ comparados a 1,6 bilhão de dólares
ferramentas de caça a terroristas e de know-how de inteligência humana no mundo ára- em 1992) e transformaram Israel no quarto maior comerciante de armas do mundo,
be. Sob a liderança do Likud, o Estado de Israel alardeou a si mesmo como uma vitrine acima da Grã-Bretanha. O país tem mais ações de tecnologia listadas no índice Nasdaq
vanguardista do Estado de segurança naciona l, apoiado em suas décadas de experiência e - muitas delas relacionadas à segurança - do que qualquer outra nação estra ngeira e
destreza na luta contra as ameaças árabes e muçulmanas. O recado de Israel para os Esta- possui mais patentes tecnológicas registradas nos Estados Unidos do que China e lndia
dos Unidos e a Europa foi direto: a Guerra ao Terror.1p qual vocês acabaram de embarcar juntas. Seu setor de tecnologia, em grande parte vinculado à segurança, agora representa
tem sido nossa luta desde o nosso nascimenro·. Deixem nossas firmas de alta tecnologia e cerca de 60% de todas as exportações. 28
companhias privadas de espionagem mostra.rem a vocês como se faz. Len Rosen, um proeminente banq ueiro de investimentos israelense, disse à revista
Da noite para o dia, Israel se tornou, n;1s palavras da revista Forbes, "o país a ser pro- Fortune que "a segurança importa mais do que a paz". Durante u período de Oslo, "as
curado quando se trata de tecnologias antiterrorismo". 26 Todos os anos, após 2002, Israel pessoas estavam buscando a paz para promover o crescimento. Agora, estão atrás de se-
sediou pelo menos meia dúzia das principais conferências sobre segurança nacional, des- gurança, para que a violência não interrompa o crescimento". ~ 9 Ele poderia ter ido ainda
tinadas a legisladores, chefes de polícia, delega dos e CEOs de todo o mundo, com a am - mais longe: a atividade que promove "segurança" - em Israel e no mundo todo - tem
pliação anua l de seu tamanho e escopo. Na medida em que o turismo tradicional declinou sido responsável por grande parte do crescimento econômico meteó rico do país nus anos
diante da insegurança, esse tipo de turismo de contraterrorismo surgiu para preencher a recentes. Não seria exagero dizer qu e a indústria da Guerra ao Terror salvou a eco nomi a
lacuna, ao menos parcia lm ente. cambaleante de Israel, assim como o co mplexo do capitalismo de desas tre ajudou a recu-
Durante um desses encontros, em fevereiro de 2006, anúnciado como "uma turn ê pera r os mercados de ações globa is.
pelos bastidores da luta [Je Israe l] contra o terrorismo", representantes do FBI, da Eis um a pequena amostra do alcance da indústria:
Microsoft e do Sistema de Transporte de Massa de Cingapura (en tre outros) viaja- • Um telefonema dado ao Departamento de Polícia de Nova York será gravado e ana-
ram até alguns dos destinos turísticos mais populares de Israel: Knesset, Monte do lisado por tecnologia criada pela Nice Systems, uma firma israelense. A Nice também
Templo, Muro das Lamentações. Em cada um desses lugares, o·s visitantes examina- monitora a co municação para a polícia de Los Angeles e a Time Warner, assim como.
ram e admiraram os sistemas de segurança elaborados em estilo fortaleza, pa_ra ver o provê câmeras de vigilância para o Aeroporto Nacional Ronald Reagan , entre dezenas de
que podiam aplicar em seus países. Em maio de 2007, Israel recebeu os diretores de outros clientes importantes. 30
inúmeros grandes aeroportos dos Estados Unidos, que assistiram a seminá'.io.s sobre • Imagens capturadas no metrô de Londres são gravadas em câmeras de vídeo Verint,
os tipos de identificação e controle de passage iros agressiv"os utilizados no Aeroporto cuja proprietária é a Comverse, gigante israelense de tecnologia. O equipame nto de vi-
Internacional Ben Gurion, próximo de Tel Aviv. Steven Grossman, chefe da aviação do gilância ela Verint tarrib.éni é utilizado no Departamento de Defesa elos Estados Unidos,
aeroporto internacional de Oakland, na Califórnia, explicou que estava lá porque "os no Aeroporto Internacional Dulles e no prédio do Ca pitólio, em Washington , e no metrô
israelenses são famosos por sua segurança". Alguns eventos são macabros e tea trais. Na de Montreal. A companhia possui cli en tes em mais de cinqüenta países e também auxilia
Conferência Internacional sobre Segurança Nacional, em 2006, por exemplo, os mili- corporações gigantes, como Home Depot e Target, a vigiarem seus empregados."
A DOUTRINA DO CHOQUE A PERDA DE INCENTIVO PARA A PAZ 519
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· Funcionários das cidades de Los Angeles e Columbus, em Ohio, portam "ca rtões saram por um curso de treinamento intensivo oferecido pelo Grupo Golan. Esse grupo
inteligentes" de identificação eletrônica, feitos pela empresa israelense SuperCom, que foi fundado por ex-oficiais das Forças Especiais Israelenses e possui 3.500 empregados
se gaba de ter como presidente de seu conselho consultivo o ex-diretor da CIA James em sete países. "Em essência, inserimos o padrão israelense de segurança em nossos pro-
Woolsey. Um país europeu que não foi identificado negociou com a SuperCom um pro- cedimentos", explicou Thomas Pearson, diretor de operações da firma, sobre o curso de
grama nacional dt identificação; outro contratou um programa piloto para "pc.ssaportes treinamento, que incorporava desde combate corpo-a-corpo até prática de tiro ao alvo,
biométricos'', ambas iniciativas altamente controversas. 31 "a fim de torná-los realmente proativos com seus jipes utilitários". O Grupo Golan, agora
·As barreiras preve ntivas, colocadas nas redes de computadores de algumas das· maio- sediado na Flórida, mas ainda propagandeando sua vantagem israelense, também fabrica
res empresas elétricas dos Estados Unidos, foram construídas pela gigante te:::nológica máquinas de raios X, .detectores de metal e rifles. Além de muitos governos e celebrida-
israelense Check Point, embora as corporações tenham optado por manter seus nomes des, entre seus clientes também se encontram ExxonMobil, Shell, Texaco, Levi's, Sony,
sob sigilo. De acordo com a companhia, "89% das quinhentas maiores empres~s da lista Citigroup e Pizza Hut. 37
da Fortune utilizam as soluções de segurança da Check Point". 33 • Quando o Palácio de Buckingham precisou de um novo sistema de segurança, sele-
· Em 2007, nas vésperas da decisão do Super Bowl, o campeonato de futebol norte- cionou um projeto da Maga!, uma das duas companhias israelenses que mais se envolve-
americano, todos os trabalhadores do Aeroporto Internacional de Miami receberam treina- ram na construção da "barreira de segurança" de Israel. 38
mento para identifica r "pessoas más, e não apenas coisas ruins'; utilizando um si~tEma p~ico­ · Quando a Boeing começar a construir as "cercas virtuais" nas fronteiras dos Estados
0

lógico chamado de Reconhecimento de Padrão Comportamental, desenvolvido pela empresa Unidos com o México e o Canadá, orçadas em 2,5 bilhões de dólares - acrescidas de sen-
israelense New Age Security Solutions. O CEO da companhia é ex-dirigente qe.segurança do sores eletrônicos, aeronaves dirigidas por piloto automático, câmeras de vigilância e 1.800
Aeroporto Ben Gurion em Israel. Recentemente, outros aeroportos contrataram os serviços torres-, uma de suas principais parceiras será a Elbit. Elbit é a outra firma israelense que
da New Age para treinar funcion ários na identificação de passageiros, tais como B::iston, São mais se envolveu na edificação do e:,orme e controverso muro de Israel, que vem a ser
Francisco, Glasgow, Atenas e Londres (Heathrow), assim corno muitos outros. Trabalhaqo- "o maior projeto de construção na história do país" e que também custou 2,5 bilhões de
res portuários na região de conflito do Delta do Níger, empregados do Ministério da Justiça dólares. 39
holandês, guardas da Estátua da Liberdade e agentes do Escritório de Contraterrorismo do
Departamento de Polícia de Nova York também receberam treinamento da New Age. 34 Com a conversão de um número cada vez maior de países em verdadeiras fortalezas (mu-
· Quando Audubon Place, o bairro abastado de Nova Orleans, decidiu co11;tituir sua ros e cercas de alta tecnologia estão sendo erguidos nas fronteiras entre a Índia e a Caxe-
própria força policial, após o furacão Katrina , contratou a firma de segurança privada mira, entre a Arábia Saudita e o Iraque, entre o Afeganistão e o Paquistão), as "barreiras
israelense Instinctive Shooting lnternational.3 5 de segurança" podem se tornar o maior de todos os mercados do desastre. É por isso que
· Os oficiais da Real Polícia Montada do Ca nadá, agência canadense de polícia federal, Elbit e Maga! não se.importam com a publicidade negativa interminável que o muro de
receberam treinamento feito pela lnternational Security lnstructors, empresa ~ediada na Israel desperta em todo o mundo - na verdade, ambas a consideram propaganda gratui-
Virgínia e especializada no adestramento de soldados e grupos de combate ao crime. ta. "As pessoas acreditam que somos os únicos com experiência de testagem desse equi-
Sua propaganda menciona "a dura experiência adquirida em Israel'', seus instr;.1tores são pamento na vida real", explicou o CEO da Maga], Jacob Even-Ezra. 40 Os preços das ações
"veteranos das forças-tarefas israelenses especiais da (.. .) Força de Defesa de Israel, das de Elbit e Maga! mais do que dobraram desde o 11 de Setembro, um desempenho qu e se
unidades de contra terrorismo da Polícia Nacional de Israel [e] da General Security Services to~nou padrão para as companhias israelenses de segurança nacional. A Verint - apeli-
(GSS ou 'Shin Beit')". A lista de clientes de elite da empresa inclui o FBI, o Exército, o dada de "vovó do segmento de vídeos de vigilância" -.não era nada lucrativa antes do 11
Corpo de Fuzileiros Navais e a Marinha dos Estados Unidos, e o Serviço de Polícia Me- de Sete~õro, mas, entre 2002 e 2006, o preço de suas ãçoes mais do que triplicou, graças
tropolitana de Londres. 36 ao surto de crescimento da arte de vigiar. 41
• Em abril de 2007, agentes especiais da imigração do Departamento de Segurança A ~tuação extraordinária das companhias israelenses de segurança nacional é bem
Nacional dos Estados Unidos, que trabalhavam ao longo da fronteira com o México, pas- conhecida dos analistas do mercado acionário, embora rara.ment.e seja discutida como
520 A OOUTíllNA DO CHOQUE A PE11DA DE INCENTIVO PARA A PAZ 521

um fator na política ela região. Deveria ser. Não é coincidência que a decisão cio Estado tunidade ele divulgação para uma ele nossas maiores empresas de telefon es celulares, que
ele Israel ele colocar o "contraterrorismo" no centro ele sua economia de exportação te- a está utilizando para realizar uma enorme camp:mha promocional"."3
nha se dado no momento preciso em que optou por abandonar as negociações de paz. Tornara-se claro que a indústria israelense não tinha mais razões para temer a guer-
Ao mesmo tempo, essa estratégia foi empregada para descaracterizar seu conflito com os ra. Em contraste com o ano de 1993, quando o conflito foi visto como barreira para 0
palestinps, tratando-o não como uma batalha contra um movimento nacional com obje- crescimento, a Bolsa de Valores ele Tel Aviv subiu em agosto ele 2006, mês da devastadora
tivos específicos ele terra e direitos, mas como parte da Guerra ao Terror em escala global guerra contra o Líbano. No último quarto do ano, que também representou a escalada
- um combate contra forças fanáticas e ilegais, vencidas so mente com. a destruição. sangrenta em Gaza e na Cisjordânia, sucessiva à eleição do !-lamas, a economia israelense,
A economia não é, ele modo algum, a força propulsara da escalada de violência na em geral, cresceu a uma taxa impressionante ele 8% - mais do que o triplo da taxa de
região após 200 l . Sem dúvida, há bastante combustível para promover a fúria, em todos crescimento da economia cios Estados Unidos no mesmo período. A economia palesti-
os lados. Mesmo assim, nesse contexto que já é tão contrário à paz, a economia tem na, por sua vez, contraiu-se em torno de 10% a 15% em 2006, com as taxas ele pobreza
sido, em certos aspectos, um contrapeso, forçando líderes políticos relutantes a nego- alcançando 70%.44
ciar, co'mo foi o caso, no início dos anos l 990. O surto de crescimento da segurança Um mês depois que a ONU decretou o cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah, a Bolsa
nac ional mudou a direção dessa pressão, criando um outro setor poderoso que investe ele Valores de Nova York reali zo u urna conferência especial sobre investimentos em Israel.
na continuação da violência. Mais ele duzentas firmas israelenses co mpareceram ao evento, se ndo muitas delas do
Como aconteceu nas primeiras fronteiras ela Escola de C hicago; <~ onda de crescimen- setor de seguran ça nacional. No Líbano, naquele momento, a ativ id ade econô mica esta -
to em Israel, após o l l de Setembro, foi marcada pela rápida estra.tificação da sociedad e va quase parada, e aproximadamente 140 fabricas - manufaturciras de todos os tipos,
entre ricos e pobres dentro do Estado. A expansão ela segura~ça foi acompanhada de desde casas pré-fabricadas até med icamentos e leite - limpavam os escombros, depois
urna leva de privatizações e cortes no financiamento dos gas tos sociais que quase anulou ele serem atingidas pelas bombas e mísseis israelenses. Imun e ao impa cto da guerra, a
o legado cio Sionismo Trabalhista e criou uma epidemia ele desigualdades 9ue os israe- mensagem cios encontros ele Nova York era animadora: "Israel se encontra aberto para os
lenses desconheciam. Em 2007, 24,4% da população estavam vivendo abaixo ela linha de negócios - sempre esteve aberto para os negóc ios", anunciou o embaixado r isra elense
pobreza, com 35,2()/o das crianças na pobreza - em comparação com 8% elas crianças, nas Naçõ~s Unidas, Dan Gillerman , dando as boas-vindas aos participantes do even to.'15
vi nte anos antes:12 Ainda que os benefícios desse surto ele crescimento não tenham sido Apenas um a década antes, esse tipo de ex uberância própria ela guerra teria sido ini-
amplamente partilhados, foram tão lucrativos para uma pequena parcela ele israelenses, mag in ável. Foi Gill erman, na qualidade ele diretor da Federação Israelense das Câma-
es pecialmente para o segmento poderoso que está integrado, sem rupturas, ao governo ras ele Comé rcio, que apelou para que Israel agarrasse aqu ela oportunidade históric a
e às forças armadas (com todos os escândalos típicos elas corporações), que o incentivo e se tornasse "a Cingapura do Oriente Médio". Agora, ele era um dos mais inflam ados
crucial para a paz acabou sendo suprimido. falcões pró~guerra ele Israel, forçando uma escalada ainda maior. Na CNN, Gillerman
A mudança de direção política cio setor empresarial israelense foi dramáticà. A vi- disse que "embora possa se r politicamen te incorreto e talvez até inverídico di zer que
são que seduz a Bolsa ele Valores ele Tel Aviv, hoje, não é mais a ele Israel como núcleó todos os muçulmanos são terroristas, aco ntece que é ve rdade qu e quase todos os ter-
ele um comércio regional, mas a de uma fortaleza futurística, capaz de sobreviver mesmo roristas são muçulmanos. Então, essa não é uma guerra exclusiva ele Israel. Essa guerra
num mar ele inimigos determinados. Essa alteração de atitude foi mais acentuada no ve- é ele todo o mundo":16
rão ele 2006, quando o governo israelense transformou aquilo que deveria ser uma negocia- Essa receita de uma guerra mundial infindável é a mesma que o governo Bush ofe-
ção de troca ele prisioneiros com o Hezbollah numa guerra ilimitada. As grandes êorpo- receu, como perspectiva ele negócio, ao n asc~ nte complexo cio capitalismo ele desastre,
rações ele Israel não apenas apoiaram a guerra, como a patrocinaram. O Bank Leumi, ·depois cio 11 de Setembro. Não é uma gue'rta que pode ser vencida por nenhum país,
o novo megabanco israelense recém-privatizado, distribuiu adesivos para automóveis mas vencer não é a questão. A questão é criar "segurança" dentro dos Estados fortificado s,
com os dizeres "Seremos vitoriosos" e "Nós somos fortes", enquanto o escritor e jornalista fortalecidos pelos intermináveis conflitos de baixa intensidade do lado de fora de suas
Yitzhak Laor escreveu, na época, que "a guerra em curso é a primeira a se tornar uma opor- muralhas. De certo modo, é o mesmo objetivo que as companhias privadas ele segurança
522 A DOUTRINA DO CHOQUE A PERDA DE INCENTIVO PARA A PAZ 523

têm no Iraque: assegurar o perímetro, proteger o principal. Bagdá, Nova Orleans e Sandy bantustões originais tenham sido desmantelados na África do Sul, uma em cada quatro pes-
Springs oferecem lampejos de um tipo de futuro cercado, construído e administrado soas que vivem nos barracos das favelas em franca expansão também é excedente, na nova
pelo complexo do capitalismo de desastre. Foi em Israel, no entanto, que esse preces- , África do Sul neoliberal. 49 Esse desfazer-se de cerca de 25% a 60% da população tem sido a
so mais avançou: um país inteiro se transformou numa comunidade fortificada fecha- marca registrada da cruzada da Escola de Chicago, desde o momento em que os "povoados
da, circundada por pessoas trancadas do lado de fora, que vivem em zonas vermelhas miseráveis" começaram a proliferar em todo o Cone Sul, nos anos 1'970. Na África do Sul, na
permanentemente excluídas. É assim que fica uma sociedade que perdeu seu incentivo Rússia e em Nova Orleans, os ricos construíram muros à sua volta. Israel levou esse processo
econômico para a paz e que investe e lucra pesadamente numa infindável e invencível de descarte ainda mais adiante: ergueu muros em torno dos pobres ameaçadores.
Guerra ao Terror. Uma parte se assemelha a Israel; a outra, se parece com Gaza.
O caso de Israel é extremo, mas o tipo de sociedade que está criando pode não ser único.
O complexo do capitalismo de desastre prospera em condições de conflitos dolorosos de
baixa intensidade. Esse parece ser o ponto culminante em todas as zonas de desastre,
de Nova Orleans ao Iraque. Em abril de 2007, soldados estadunidenses começaram a imple-
mentar um plano para transformar diversos bairros instáveis de Bagdá em "comunidades
fechadas", cercadas por postos de controle e muros de concreto, onde os iraquianos seriam
investigados por meio da utili zação de tecnologia biométrica. "Ficaremos iguais aos pales-
tinos", previu um morador de Adhamiya, observando seu bairro sendo cercado pela bar-
reira.•; Depois que se tornar claro que Bagdá jamais será igual a Dubai, e Nova Orleans não
virará a Disneylândia, o plano B é implementar uma outra Colômbia ou Nigéria - uma
guerra sem fim, combatida em grande medida por soldados privatizados e paramilitares,
amenizada apenas para retirar os recursos naturais do solo, com o auxílio dos mercenários,
que protegem os oleodut~s, plataformas e reservas de água.
Já se tornou um lugar-comum comparar os guetos militarizados de Gaza e da Cisjor-
dânia, com seus muros de concreto, cercas eletrificadas e postos de controle, ao sistema
do bantustão, na África do Su l, que retinha os pretos nos guetos e exigia passes para auto-
rizá-los a sair de lá. "As l ei~~ práticas de Israel nos TPO [territórios palestinos ocupados],
sem dúvida, lembram aspectos do apartheid", disse, em fevereiro de 2007, John Dugard,
advogado sul- africano que trabalha para a ONU como relator especial de direitos huma-
nos nos territórios palestinos.'18 As semelhanças são grandes, mas há diferenças também.
Os bantustões da África do Sul eram, essencialmente, acampamentos de trabalho, uma
forma de manter os trabalhadores africanos sob estreita vigilância e controle e forçá-los
·a1rabalhar nas minas por baixos salários. Israel construiu um sistema destinado a fazer o
oposto: impedir que os trabalhadores trabalhem, com uma reçle de amplas cercas de con-
tenção, para ~ilhões de pessoas que foram classificadas coii-ió humanidade excedente.
Os palestinos não foram o único povo a ser classificado assim no mundo: milhões de
russos também se tornaram excedentes em seu próprio país e, por isso, muitos abandona-
ram suas casas na·esperança ele encontrar trabalho e uma vida .decente .em Israel. Embora os
li PE11l)A DE INCENTIVO PARA A PAZ 525

NOTAS DO CAPÍTULO 21 17
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48
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As pessoas do barrio constroem a cidade duas vezes: durante o dia, erguemos as
23 de fevereiro de 2007.
49 casas dos ricaços. À noite e nos fins de semana, com solidariedade, construímos
Michael Wines, "Shantytown Dwellers in South Africa Protest the Sluggish Pace of Change", New
York Times, 25 de dezembro de 2005. nossas próprias casas, nosso-barrio.
- Andrés Antillano; habitante de Caracas, 15 qe abril de 20043
--,.,

QUANDO MILTON FRIEDMAN MORREU, EM NOVEMBRO DE 2006, muitos de seus obituários


mostraram- se tomados pela sensação de medo de que sua morte representaria o fim de
uma era. No jornal canadense Nat ional Post, Terence Corcoran, um dos discípulos mais
devotos de Friedman, indagou se o movimento global que o economista havia deslancha-
do poderia prosseguir. "Como último grande leão da economia de livre mercado, Friedman
deixa um vazio ... Não há ninguém vivo, hoje em dia, de igual estatura. Será que os princí-
pios que Frie.d.man articulou e pelos quais lutou irão sobrev ive r, no longo prazo, sem uma
nova g~ração de líderes intelectuais sólidos, carismáticos e capazes? É difícil dizer."'
~ ~1valiação soturna de Corcoran nfo foi a primeira a abarcar a desordem na qual se
encontrava a busca pelo capitalismo desregulado naquele mês de novembro. Os herdeiros
intelectuais de Friedman, nos Estados Unidos, os neoconservadores que lança ram o com-
plexo do capital!smo de desastre, tinham atingido o ponto mais baixo de toda a sua histó-
ria. O auge do movimento tinha sido a conquista do Congresso dos Estados Unidos pelos
republicanos, em 1994; apenas nove dias antes da morte de Friedman, eles tornaram a
perdê-lo para a maioria democrata. As três questões mais importantes, que contribuíram
para a derrota republicana nas eleições legislativas de 2006, foram a corrupção política, a
imperícia na guerra dei Iraque e a percepção, bem articulada pelo candidato democrata
eleito para o Senado dos Estados Unidos, Jim Webb, de que o país havia sido jogado "num
sistema baseado em classes, do tipo que não possuíamos desde o século XIX". 5 Em todos
esses casos, os princípios cardeais da economia da Escola de Chicago - privatização, des-
regulação e cortes nos serviÇos públicos - ergueram as fundações para os colapsos.
Em 1976, Orlando Letelier, uma das pri\neiras vítimas da contra-revolução, insistiu que
as enormes desigualdades criadas pelos Garotos de Chica go, no Chile, eram "não um pas-
sivo econômico, mas um sucesso político. te1:nporário". Para Letelier, era óbvio que as regras
de "livre mercado" da" ditadura estavam cumprindo o papel para o qual foram destina-
das: não estavam gerando uma economia perfeitamente harmoniosa, mas convertendo os
endinheirados em super-ricos e a classe trabalhadora organizada em pobres descartáveis.
Esses padrões de estra tificação se repetiram em todos os lugares em que a ideologia da
Escola de Chicago triunfou. Na Chin a, apesar do impressionante crescimento econômico,
530 A DOUTRINA DO CHOQUE CONC LUSÃO 531

a diferença entre os rendimentos dos moradores das cidades e os dos oitocentos milhões acusação de "fraude na administração pública". Uma negociação da dívida que Cavallo
de pobres rurais dobrou, nos últimos vinte anos. Na Argentina, onde, em 1970, os 10% elaborou com ba ncos estrangeiros, em 200 l , custou ao país dezenas de bilhões de dólares;
mais ricos da população ganhava m doze vezes mais do que os mais pobres, em 2002, essa o juiz, que congelou dez milhões de dólares dos ativos pessoa is de Cavallo, afirmou que a
disparidade chegou a 43 vezes. O "sucesso político" do Chile foi realmente globalizado. Em administração agiu com "absoluta consciência" do resultado prejudicial. 7
dezembro de 2006, um mês após a morte de Friedman, um estudo da ONU apontou que. Na Bolívia, o ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, em cuja sala de estar foi cons-
"os 2% de adultos mais ricos ganham mais do que a metade da renda das familias de todo truída a "bomba atómica" econômica, era procurado por diversas acusações relacionadas à
o mundo juntas". A virada foi ai nda mais dura nos Estados Unidos, onde os CEOs ganha- repressão violenta contra manifestantes e à assínatura de contratos com empresas estran-
va m 43 vezes mais do que o trabalhador médio em 1980, quando Reagan deu a largada na geiras de gás, que supostamente violaram as leis bolivianas. 8 Na Rússia, não somente os Ho-
cruzada friedmanista. Em 2005, os CEOs recebiam 411 vezes mais. Para esses executivos, a mens de Harvard foram considerados culpados por fraude, mas também muitos oligarcas
contra-revolução que começou no porão do prédio das ciências sociais, na década de 1950, russos, empresários bem relacionados que ganharam bilhões nas privatizações realizadas
foi realmente um sucesso, mas o custo dessa vitória tem sido a perda generalizada da fé na da noite para o dia pelos Homens de Harvard, ou estavam na cadeia, ou no exílio. Mikhail
promessa central do livre mercado - de que o aumento da riqueza será compartilhado. Khodorbvsky, ex-presidente da gigante do petróleo Yukos, estava cumprindo pena de oito
Como disse Webb na campan ha para as eleições legislativas: "A teoria da distribuição auto- anos numa prisão da Sibéria. Seu colega e principal acionista, Leonid Nevzlin, se encontrava
mática dos benefícios económ icos de cima para baixo não se confirmou." 6 exilado em Israel, assim como o amigo ol~ga rca Vradimir Gusinsky, ao passo que o famoso
O açamba rcamen to de tamanha riqueza por uma parcela minoritária da população Boris Berezovsky estava estabelecido em Londres, impossibilitado de voltar a Moscou, com
mundial não se realizou por meios pacíficos, como vimos, nem fo i legítimo, em grande medo de ser preso sob acusação de fnwdes; ainda assi m, todos esses homens negam suas
medida. Corcora n estava certo ao questi onar o calibre dos líderes do movimento, embora o infrações. 9 Conrad Black, que, com sua cadeia de jornais, foi o mais poderoso propagan-
problema não fosse apenas a ausência de comandantes com a estatura de Friedman. O fato dista ideológico do friedmanismo no Canadá, enfrentava processos nos Estados Un idos
era que muitos daqueles homens, que estivera m na linha de frente da campanha internacio- por defraudação contra os acionistas da Hollinger International, por tratar a companhia, de
nal para libertar os mercados de todas as restrições, se encontravam, naquele mooento, me- acordo com os promotores, como "o banco de Conrad Black''. Também nos Estados Unidos,
tidos numa teia surpreendente de escâ ndalos e processos criminais, oriundos dos primeiros Ken Lay, da Enron - garoto-propaganda dos efeitos negativos da desregulação do setor
laboratórios da América Latina e dos mais recentes do Iraque. Ao longo de seus 35 anos de energético-, morreu em julho de 2006, tendo sido condenado por conspiração e fraude.
história, a agenda da Escola de Chicago ava nçou por meio da íntima cooperação de figuras E Grover No rquist, oriundo de um think tank friedmanista_, que deixou os progressistas de
empresa riais poderosas, ideólogos cruzadistas e líderês políticos linha- dura . Em "2006, agen- cabelo en pé quando declarou: "Não quero abolir o governo. Quero apenas reduzi-lo a um
tes fundamentais de cada um desses campos estavam ou na cadeia ou sendo acusados. tamanho que me permita arrastá-lo até o toalete e afogá-lo na banheira'', estava envolvido
Augusto Pinochet, primeiro líder a colocar em ação a terapia de choque de Friedman, até o pes:oço num escândalo de tráfico de influência en: torno do lobista de Washington
se encontrava em prisão domiciliar (embora tenha morrido antes dos julgamentos por Jack Abramoff, embora as acusações não tenham sido formaliza.das. 10
acusação de corrupção e assassinatos). N9·d ia seguinte à morte de Friedman, a polícia Apesar das tentativas de todos eles, de Pinochet ~ Cavallo a Berezovsky e Black, de
uru guaia executou mandado de prisão contra Juan María Bordaberry, pelas acusações retratarem a si mesmos como vítimas de perseguição política infundada, a listà, que per-
relacionadas à morte de qu atro proeminentes esquerdistas em 1976. Bordaberry governou manece incompleta, representa um claro afastamento em relação ao mito da criação
o Uru guai durante a brutal adoção, pelo país, da economi a da Escola de Chicago, tendo os neoliberal. Conforme avançou, a cruzada económica COf!Seguiu sé âtrelar a um verniz de
colegas e discípulos de Friedman servido como conselheiros importantes. Na Argentina, respeitabilidade e legalidade. Agora, aquele verniz estava sendo publicamente .despido,
as cortes despiram os antigos dirigentes da junta militar de sua imunidade e condenaram para revelar um sistema de desigualdade de riqueza gritante, em grande parte pro~ovido
o ex- presidente Jorge Videla e o almirante Emílio Massera à prisão perpétua . Domingo com a ajJda de grotesca criminalidade.
Cavallo, que presidiu o Banco Central durante a ditadura e prosseguiu, na democracia, Além do problema legal, havia outra nuvem no horizonte. Os efeitos dos choques,
com a imposição de um amplo programa de terapia de choque, também foi indiciado sob que haviam sido tão decisivos na criação da ilusão do consenso ideológico, estavam co-
532 A DOllTHINA DO o-1oour
CONCUJSAO 533

meçanclo a desaparecer gradativa mente. Rodo lfo Walsh, outra vítima precoce, enxergou correu co m uma platafor ma baseada no "Socialismo do Séc ulo XXI" e foi reeleito, em
a :iscensão da Escola de Chicago na Argentin a co mo um retrocesso, não como uma der- 2006, com 63% dos votos, para um terceiro mandato. Apesar das tentati vas do governo
ro ta definitiva. As táticas de terro r empregadas pela junta militar colocaram seu país , Bush de pintar a Venezuela de pseudodemocracia , uma pesq ui sa naquele mesmo ano
em es tado de choque, mas Walsh sabia que o choque, por sua própria natureza, é uma apurou que 57% dos ve nezuelanos estava m sa tisfei tos co m a situ ação de se u regim e de-
condição temporária . Antes qu e fosse alvejado nas ruas de Buenos Aires, Walsh estimou mocrático, uma taxa de aprovação no co ntinente aba ixo apenas da do Uruguai , ond e a
qu e leva ria de vinte a trinta anos para que os efeitos do terro r se dissipassem, e os argen- coalizão de centro-esquerda Frente Ampla foi eleita para governar e onde um a série de
tin os rec up~rasse m suas bases, coragem e confiança, tornando -se prontos, de novo, para referendos bloqueou privatizações importantes. 13 Em outras pabvras, nos dois Estados
lutar pela igualdade eco nômica e social. Em 200 l , 24 anos depois, a Argentina explodiu latino-americanos em que as eleições resultaram em desafios co ncretos ao Consenso de
em protestos contra as medidas de austeridade prescritas pelo FMI e impôs a retirada de Washington , os cidadãos renovaram sua fé no poder da democracia para melhorar suas
cinco presjdentes, em apenas três semanas. vidas. Em vivo contraste com esse entusiasmo, nos países em qu e as políticas econômicas
Eu estava morando em Buenos Aires, naquela época, e as pessoas continuavam excla- permaneceram as mesmas, apesar das promessas feitas durante as ca mpan has, as pesqui -
mando: "Terminou a ditadura!" Eu não conseguia compreender o sentido que estava por sas sempre revelam um traço co nsistente de decepção com a democracia, que se refl ete
trás daquele júbilo, pois a ditadura tinha sido deposta há dezessete anos. Agora, acho que no reduzido comparecimento às votações, no pro fundo cinismo em relação aos políticos
entendi: o estado de choque, finalm ente, havia desaparecido, do modo que Walsh previra. e no crescimento do fundam entalismo religioso.
De~cle entã~, o despertar da resistê;Kia ao choque se espalhou para muitos outros Mais desavenças entre livres mercados e povos li vres aco ntece ram na Europa, em
a ntigo~ labora tórios de choque - Chile, Bolívia, China , Líbano. E co mo as pessoas se 2005, quando a Co nstituição européia foi rejeitada em dois referen dos nacionais. Na
livr,;ram do medo coleti vo, que foi instilado por meio dos tanques e dos ferretes, das França, o documento foi visto co mo a codificaçüo ela ord em co rporatista . Pe la primeira
fu gas repentin as de capi tal e dos co rtes brutais, mu itos estão reivindicando mais demo- vez, os cidadãos foram chamados a res ponder se as regras do livre mercado deve riam
crac ia e ma is con trole sobre os mercados. Essas demandas representam a maior de todas rein ar na Europa, e eles agarraram a oportunidade de dizer não. Co mo afirmou a ativista
0

as ameaças ao legado de rriedman, porque desafiam sua principal alegação: a de que o e escritora parisiense Susan Geo rge: "As pessoas rea lmente não sabiam que toda a Europa
capitalismo e a liberdade são partes do mesmo projeto irtdivisível. tinha sido resumida, tinha sido escri ta num único docu men to. (... ) Quando você começa
O governo Bush está tão co mprometido co m a perpetuação dessa fa lsa união que, em a citá -lo e as pessoas descobrem o que está ali de ve rdade e va i se r constituci onalizado,
2002, inseriu-a na Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América. "As sem rev isões e emendas, elas ficam profundamente assustadas." 14
grandes lutas do século XX, entre a liberdade e o totalitarism o, terminaram com a vitória A vigorosa rejeição daquilo que os franceses chamam de "cap italismo selva gem" toma
decisiva das forças da liberdade - um único modelo sustentável para o sucesso nacional: diversas formas di fe rentes, inclusive algumas reac ionári as e ra cistas. Nos Estados Unidos,
liberdade, democracia e livre- iniciativa." 11 Essa afirmação, pronunciada com todo o peso das a raiva diante do encolhimento da classe média foi fa cilm ente redirecionada para a rei-
forças armadas dos 8 tados Unidos por trás, não foi suficiente para barrar a maré de cida- vindicação de cercas nas fronteiras , co m uma ca mpanh a conduzi da todas as noites pelo
dãos que usaram suas vá rias liberdades para rejeitar a ortodoxia cio livre mercado - mesmo apresentador da CNN, Lou Dobbs, contra a "invasã?.de alienígenas ilega is" que travavam
nos Estados Unidos.' Como bem expressou f1 m anchete do jornal Miami Hera /d, logo após "guerra contra a classe média america na" - roubando empregos, espalhando crim es e
as eleições legislativas de 2006, "Os democratas venceram com folga opondo-se aos acordos também trazendo "doenças altamente contagiosas''. 15 (Esse tipo de fabr icação de bode ex-
de livre-comércio". Uma pesquisa.do New York Times!CBS, realizada alguns meses depois, piatório provocou os maiores protestos pelos direitos dos imigrantes da história dos Es-
registrou que 64% cios êidadãos estadunid.en~es acreditavam que o governo deveria oferecer tados Unidos, com mais de um milhão de pessoas parti cipando de uma série de marchas,
serviços de saúde a todos e "demonstravam u1i1a admirável vontade (... ) de fazer acordos" em 2006 - outro sinal de ausência de medo entre as vítimas do choque econômico.)
para atingir esse objetivo, inclusive pagar quinhentos dólares anuais a mais, em impostos. 12 Na Holanda, o referendo de 2005 sobre a Co nstituição européia foi seqües trado pelos
No p l ~rn o internacional , os oponentes mai s ardorosos da eco nomia neoliberal es ta- partidos antiimigrantistas, que o transformaram num vo to co ntrário não à ord em cor-
vam ganhando uma eleição atrás da outra. Hu go Chávez, pres idente da Venezuela, con- poratista, mas ao espectro dos trabalh adores pobres poloneses, que inundavam a Europa
534 A DOUTRINA DO CHOQU E CONCLUSÃO 535

Ocid ental para baixar os sa lários. O qu e mobilizou muitos eleitores nesses referendos, nalismo e do protofascismo. Incidentes originados pela violência étnica crescem cerca de
tanto franceses quanto holandeses, foi o medo do "encanador polonês" - ou "fobia do 30% ao ano, sendo qu~ em !006 foram reportados quase diariamente. O bordão "A Rús-
encanador", corno disse o ex-co missá rio da União Européia Pascal Lamy. 16 sia para os russos" é apoiado por aproxim adamente 60% da população. 19 "As autoridades
Na Pol ônia, enquanto isso, a reação contrária às políticas que empobreceram tantas estão cientes de que suas políticas econômicas e sociais são inadequadas para garantir
pessoas, nos anos 1990, desencadeou urna série de preocupantes fobias. Quando o Soli- condições de vida aceitáveis para a maioria da população", disse Yuri Vdovin, militante
dariedade traiu os trabalhadores que haviam construído o movimento, muitos polone- antifascista. Assim, "todas as imperfeições são atribuídas à presença de outras pessoas de
ses se voltaram para novas orga nizações, firnilniente levando o partido ultraconservador religião errada, cor errada ou outros fundamentos étnicos". 20
Lei e Justiça ao pod er. A Pol ônia agora é governada pelo presidente Lech Kaczyriski, um Trata-se de uma amarga ironia que, quando a terapia de choque foi prescrita na Rús-
ativista romp ido com o Solidariedade que, quando foi prefeito de Varsóvia, se tornou fa- sia e na Europa Oriental, seus efeitos mais dolorosos foram justificados, sempre, como a
moso por impedir uma parada do orgulho gay e por participar de um evento de "orgulho única maneira de impedir a repetição das condições da Alemanha de Weimar, que leva-
das pessoas normais".' Kaczynski e seu irmão gêmeo, Jaroslaw (agora primeiro-minis- ram à ascensão do nazismo. A exclusão fortuita de milhões de pessoas, pelos ideólogos
tro ), ga nh aram as eleições de 2005 co m uma campanha fortemente baseada no ataque do livre mercado, reproduziu certas condições explosivas assustadoramente semelhantes:
retórico às políti cas da Escola de Chicago. Seus principais opositores prometiam acabar populações orgulhosas, que se viram humilhadas por forças estrangeiras e que, ao procu-
co m o sistema de previd ênci a públi ca e in~ rod uzir um imposto único de 15% - ambas rar recuperar seu orgulho nacional, alveja m os mais vulneráveis em seu meio.
medidas extraídas diretamente do manu;l de Frieclman. Os gêmeos observaram que es-
sas.políticas roubar iam os pobres para ~miquecer um a conexão de gra nd es em presários Na Améri::a Latina, o laboratório original da Escola de Chicago, a reação contrária assu -
e políticos oportunistas. Qu and o o partido Lei e Justiça chegou ao poder, no entanto, me uma fo rma distinta, mais esperançosa. Ela não se dirige aos mais fracos ou vulnerá-
dirigiu suas metas para alvos mais fáceis: gays, judeus, feministas, estrangeiros, comunis- veis, mas se concentra estritamente na ideologia que constitui a raiz da exclusão eco nô-
tas. Co mo afirmou um editor de jornal polonês: "Q projeto deles é, definitivamente, um mica. Diferentemente da situação da Rússia e da Europa Oriental, existe um entusiasmo
indiciamento cios últimos dezessete anos." 17 irreprimível de experimentar idéias que foram enterradas no passado.
Na Rú ssia, a era Putin é vista por muitos como uma reação semelhante contra a era Apesar da alegação do governo Bush de que o século XX findou com a "vitóri a deci-
da terapia de choque. Com dezenas ele milhares de cidadãos empobrecidos ainda excluí- siva" dos livres mercados sobre todas as formas de socialismo, muitos latino-americanos
dos da economia que cresce rapidamen te, os políticos não encontram dificuldades para compreendem perfeitamente bem que foi o comunismo autoritário que fracassou na
reavivar o se ntim ento público em relação aos acontecimen.tos do começo cios anos 1990, Europa Oriental e em parte da Ásia. O socialismo democrático, que representa não so-
freqü entemente retratados co rno uma conspiração estrangeira para aniquilar o império mente a chegada dos partidos socialistas ao poder, por meio de eleições, mas também a
soviético e colocar a Rússia "sob domin ação externa". 18 Embora as ações legais ele Putin administração democrática dos locais de trabalho e da terra, deu certo em muitas regiões,
contra diversos oli ga rcas tenh am si do, em grande parte, si mbólicas - com o surgimento da Escandinávia à região italiana da Emilia- Romagna, com sua economi a puj ante e his.-
de um novo ramo de "oli ga rcas estatais" em torno d~ Krernli~ - , a memória do caos toricamente cooperativa. Foi uma versão dessa combinação de socialismo e democr~Eia
dos anos 1990 torn ou os russos agradecidos a Putin por restabelecer a ordem, apesar que Allende tentou implem entar no Chile, entre 1970 e 1973. Gorbachev teve um a visão
das mortes misteriosas de um número crescente de jornalistas e outros críticos e da total semelhante, embora menos radical, de transformar a União Soviética numa "toch a so-
impunid ade que a polícia sec reta parece desfrutar. cialista» baseada no modelo escandinavo. A Carta da Liberdade, na África do Sul, sonho
Estando o socia lismo ainda associado às décadas de. brutalidade praticada em seu que animou a longa !uta pela libertação, era uma versão dessa mesma terceira via: não o
nome, a ira popular tem poucos escoado uros para se expressar, com exceção d~ ri acio- comunismo de Est~do,' mas os mercados coexistentes com a nacionalização dos bancos
e minas, e com o emprego da renda na construção de bairros confortáveis e escolas de-
Esse preco nceito não é excl usivo da Polônia. Em março de 2007, o prefeito de Londres, Ken centes - democracia econômica junto com democracia política. Os trabalhadores que
Livingstone, advertiu pa ra um a perigosa "ond a de reação contrária aos direitos dos gays e lesbicas, que fundaram o Solidariedade, .em 1980., prometeram lutar não contra o socialismo, mas a
se espalha pela Europa Oriental ".
536 A DOUTRINA DO CI IOQUE
CONCLUSÃO 537

seu favor, quando os operários chegassem, afi nal, ao poder, para adm inistrar democrati- capaz de eleger governos e destituí-los; no final de 2006, ela pra ticamente criou um efeito
camente seus loca is de trabalho e seu país. dominó. Luiz Inácio Lula da Silva foi reeleito presidente do Brasil , em grande medida, por-
O segredo sujo da era neoliberal era que essas concepções jamais foram derrotadas , que transformou a votação num referendo sobre a privatização. Seu opositor, do pa rtido
numa grande batalha de idéias, nem foram rejeitadas nas eleições. Elas foram tiradas do responsável pelas principais vendas de ativos estatais ocorridas no Brasil, na década de
caminho com brutalidade, sob conj unturas políticas decisivas. Quando houve resistên- 1990, se apressou a aparecer em público co mo se fosse um pil oto de Stock Car socialista,
cia feroz, elas foram derrotadas pela violência aberta - vinda dos tanques ele Pinochet, vestindo uniforme e boné cobertos com as siglas das empresas públicas que ainda não
Yeltsin e Deng Xiao ping. Em outras ocasiões, elas fo ram simplesmente traídas por meio tinham sido vendidas. Os eleitores não se convenceram,_ e Lula recebeu 6 1% dos votos,
daquilo que Joh n Will iamson chamou de "política ele vodu": com a eq uipe econômica apesar da desilusão com os escâ ndalos d~ corrupção qu e acometeram seu governo. Pou -
sec reta, escolhida após a eleição pelo presidente boliviano Víctor Paz Estenssoro (e o se- co tempo depois, na Nicarágua, Daniel Ortega, ex-comandan te dos sandin istas, usou os
qüestro em massa dos líderes sindicais); com as negociações de bastidores do CNA, que constantes blecautes do país como pilar de sua campa nha vitoriosa; a venda da companhia
abandonaram a Carta da Liberdade em benefício do programa econômico sigiloso de nacional de eletricidade para uma firma espanhola, Unión Fenosa, após a passagem do fu-
Thabo Mbeki; com a sucumbência dos partidários exaustos do Solidariedade à terapia racão Mitch, como ele afirmou, era a raiz do problema. "Vocês, irmãos, estão sofrendo os
de choque eco nômico, após a eleição, em troca de um auxílio financeiro. É exata mente efeitos desses cortes de energia todos os dias! ", bradou ele. "Q uem trouxe a Unión Fenosa
porque o so nho da igualdade econômica é tão popular, e tão difícil de derrotar numa luta para este país? O governo cios ricos, dos que estão a serviço_c!o cap italismo bárbaro."22
justa, qu e a doutrina do choque foi implem entada, em pr im eiro lugar. Em novembro de 2006, as eleições presidenciais·1io Equador se transformaram num
Washington se mpre enxe rgo u o socialismo democrát ico como ameaça muito mais campo de batalha ideológica semelh ante. Rafael C? rrea, eco nomista de esquerda de 43
poderosa do que o co munismo totalitário, que era fáci l de incriminar e transfo rm ar em anos, ga nhou a vo tação contra Álvaro Noboa, g·rande produtor de bananas e um dos
inimigo útil. Nas décadas de 1960 e l970, a tática empregada para lidar co m a popu lari- homens mais ricos do país. Com o sucesso das 1\vistecl Sisters denominado "We're Not
dade inco nveniente do desenvo lvimen tismo e do socialismo democrático foi a de tentar Going to Take lt" como sua ca nção oficial ele cam panh a, Co rrea apelou ao país para que
equipará-los ao stalinismo, borrando, de forma deliberada, as diferenças claras entre as "superasse todas as fal ácias do neoliberalismo". Quando ve11ceu, o novo presidente do
visões ele mundo. (A identificação de todas as opos ições ao terrorismo desempenha papel Equador declarou que "não era fã de Milton Fr iedman".23 Na época, o presidente boli -
semelh ante nos dias de hoje. ) Um exe mplo notável dessa estratégia emerge dos primei- viano Evo Morales já estava se aproximando do final de se u primeiro ano de mandato.
ros tempos da cruzada de Chicago, bem cio fundo dos documentos chilenos tornados Depois de enviar o Exército para tirar os ca mpos de gás da s mãos das multinacionais
públicos. Embora a propaganda financiada pela ClA retratasse Allende como um ditador "predadoras", ele se mobilizou para nacion aliza r partes do setor de n~inera ção. No Méxi-
nos moldes sovié ti cos, a verdadeira preocupação ele Washington co m a vitór ia eleitoral co, nesse mesmo período, os result ados fraudu lentos das eleições de 2006 estavam sendo
de Allend e foi definida por Henr y Kissin ger, num memorando para Nixon, em 1970: "O contestados por meio da criação de um "governo paralelo" do povo, sem precedentes,
exemplo bem-sucedido de um governo marxista eleito qo Chile certamente teria impacto com vo tações sendo realizadas no meio das ruas e praças, fora da centro de governo na
- e seri a mesmo um precedente valioso - em o utra~ partes do mundo, especialmente a Cidade do México. No Estado mexica no de Oaxaca, o governo de direita envio u tropas
Itália; a expansão imitativa de fe nômenos semelh.intes·, em out ros lugares, poderia afetar de de choque para encerrar uma greve de professores, qL. e reivi ndicavam o aumento anual d.e.
modo significativo o equilíbrio mundial e a nossa própria posição." 21 Em outras palavras, seus ordenados. Isso provocou uma rebelião estad ual de amplo alcance que durou meses,
AJlende precisava ser removido, antes que sua terceira via democrática se espalhasse. contra a corrupção do Estado corpora tista.
O sonho que ele representou jamais foi derrotado. Como observou Walsh, ele foi tem- O Chile e a Argentina são governados por políticos que se definen1 como opositores do~
porariamente 'silenciado, submergido pelo medo. Essa é a razão pela qual, na medida em experimentos de Chicago em seus países, embora a dimensão das alternativas genuínas que
que os latino-americanos emergem de suas décadas de choque, as velhas idéias estão re- eles oferecem ainda seja tema de intensos debates. O simbolismo, contudo, é um tipo pró-
tornando - junto com a "expansão imitativa" que Kissinger temia. Desde o colapso ar- prio de vitória. Muitos indivíduos participantes cio gabinete do presidente argentino, Nés-
gentino, en} 2001 , a oposição à privatização se tornou a questão dec isiva cio contin ente, tor Kirchner, inclusive ele mesmo, foram presos durante a ditadura. No dia 24 de março de
538 A DOUTRINA DO CHOQUE CONCLUSÃO 539

2006, trigésimo aniversário do golpe militar de 1976, Kirchner se dirigiu a manifestantes na a construir amortecedores de choques em seus modelos de organização. Eles estão, por
Praça de Maio, onde as mães dos desaparecidos realizavam suas vigílias semanais. "Estamos exemplo, menos centralizados do que nos anos 1960, tornando mais difícil desmobi-
de volta", declarou, referindo-se a uma geração que foi aterrorizada nos anos 1970. No meio, lizar movimentos inteiros com a eliminação de alguns líderes. Apesar do indiscutível
da imensa multidão, disse ele, estavam "os rostos dos trinta mil companheiros desapareci- culto à personalidade em torno de Chávez e de seus esforços para centralizar o poder no
dos que voltaram a essa praça, hoje".24 A presidente do Chile, Michelle Bachelet, foi uma âmbito do Estado, as redes progressistas da Venezuela são, ao mesmo tempo, altamente
das milh ares de pessoas vitimadas pelo reino de terror de Pinochet. Em 1975, ela e sua mãe descentralizadas, com seu poder disperso entre as bases e comunidades, em milhares de
foram presas e torturadas na Villa Grimaldi, conhecida por seus cubículos de madei ra para conselhos municipais e cooperativas. Na Bolívia, o movimento dos povos indígenas, que ·
isolamento, tão pequenos que os detentos só podiam se acocorar. O pai dela, oficial militar, colocou Morales no governo, funciona de modo similar e já deixou claro que o presiden-
se recusou a compactuar com o golpe e foi assassinado pelos homens de Pinochet. te não conta com seu apoio incondicional: as comunidades populares irão protegê-lo
Em dezembro de 2006, um mês após a morte de Friedman, os líderes da América enquanto ele for verdadeiro em seu mandato democrático, e nenhum minuto a mais. Foi
Latina se reuniram para um encontro histórico na Bolívia, na cidade de Cochabamba, esse tipo de organização em rede que permitiu a Chávez sobreviver à tentativa de golpe
onde um levante popular contra a privatização da água tinha forçado a Bechtel a deixar o em 2002: quando sua revolução foi ameaçada, seus defensores saíram das favelas em
país, alguns anos antes. Morales iniciou os trabalhos com a promessa de fechar "as veias torno de Caracas para exigir o reempossamento do presidente, um tipo de mobilização
abertas da América Latina". 25 Era uma referência ao livro de Eduardo Galeano, As veias popular que não aconteceu durante os golpes da década de 1970.
abertas da América Latina , relato lírico do saque violento que tornou pobre um continen- Os novos líderes da América Latina também estão tomando medidas audaciosas· para
te que era ri co. O livro fo i publicado em 197 1, dois anos antes de Allende ser derrubado impedir futuros golpes, apoiados pelos Estados Unidos, que possam solapar suas yitórias
pela ousadia de tentar fechar aquelas veias abertas, por meio da nacionalização das minas eleitorais. Os governos de Venezuela, Costa Rica, Argentina e Uruguai já anunciaram que
de cobre do país. Esse even to se deu numa nova era de pilhagem furiosa, duran te a qual não vão mais enviar estudantes para a Escola das Américas (agora denominada Insti tuto
as estruturas construídas pelos movim entos desenvolvimentistas do continente foram de Cooperação em Segurança para o Hemisfério Ocidental) - famoso centro de treina-
saqueadas, desmembradas e vendidas. mento militar e policial, em Fort Benning, Geórgia, no qual muitos dos notórios assassi-
Hoje, os latino-americanos estão retomando o projeto que foi tão brutalmente inter- nos do continente aprenderam as técnicas de contraterrorismo mais modernas e rapida-
romp id o há muitos anos. Muitas políticas que estão brotando são familiares: nacionali za- mente as utiliza ram contra os agricultores de EI Salvador e os operários de montadoras
ção de setores fundam entais da economia , reforma agrária , novos e maiores investimen - da Argentina.26 A Bolívia planeja cortar os laços com a escola, assim como o Equador.
tos em educação, alfabetização e serviços de sa úde. Tais idéias não são revoluóonárias, Chávez já deixou claro que, se algum elemento de extrema direita, na província bolivia-
mas, com sua visão equ ilibrada de um governo voltado para a busca da igualdade, sem na de Santa Cruz, ameaçar o governo de Evo Morales, as tropas venezuelanas ajudarão
dúvida, representam um a reprovação da afirmação feita por Friedm an para Pinochet, em a defender a democracia do país. Rafael Correa vai dar o passo mais radical de todos.
1975, de que "o principal erro, em minha opinião( ... ) é acreditar q~ e é possível fazer o A cidade portuária equatoriana de Manta abriga atualme,nte as maiores bases militares
bem com o dinheiro dos outros". dos Estados Unidos na América do Sul, que servem como depósito temporário de armas
e tropas para a "guerra contra as drogas", em grande parte combatida na Colômbia. O
Embora repousem numa longa história de militância, os movimentos contemporâneos governo de Correa anunciou que, quando o acordo para a manutenção das bases expirar,
da América Latina não são réplicas diretas de seus predecessores. De todas as diferenças, em 2009, não será renovado. "O Equador é uma nação soberana", declarou a ministra das
a mais impressio nan!e é uma consciência perspicaz da necessidade de proteção contra Relações Exteriores, María Fernanda Espinosa. "Não precisamos de tropas estrangeiras
os choques do passado:__ golpes, terapeutas do choque estrangeiros, torturadores trei- em nosso país." 27 Se as forças armadas dos Estados Unidos não possuírem bases ou pro-
nados nos Estados Unidos, assim como choques da dívida e colapsos monetários, carac- gramas de treinamento, seu poder para infligir choques será bastante reduzido.
terísticos das décadas de 1980 e 1990. Os movimentos de massa na América Latina, que Os novos líderes da América Latina também estão se tornando mais bem preparados
fortaleceram a onda de vitórias eleitorais dos candidatos de esquerda, estão aprendendo para os tipos de choque causados por mercados voláteis. Uma das maiores forças desesta-
540 A DOUTRINA DO CHOQUE
CONCLUSÃO 541

bilizadoras das últimas décadas tem sido a velocidade com que o capital pode ser desmo- A proteção mais importante da América Latina contra choques futuros (e, portanto, con-
bilizado e sair ou com uma queda brusca dos preços das commodities é capaz de devastar tra a doutrina do choque) vem da independência afluente do continente em relação às
um setor agrícola inteiro. No entanto, em grande parte da América Latina, esses choques já, instituições financeiras de Washington, resultante da maior integração entre os governos
aconteceram, deixando para trás subúrbios industriais abandonados e grandes extensões regionais. A Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA) é a resposta do continente
de terra não-cultivada. A tarefa da nova esquerda da região, portanto, tem sido extrair os para a Área de Livre Comércio das Américas, sonho corporatista, agora sepultado, de
detritos da globalização e colocá-los para funcionar. No Brasil, o fenômeno é bem ob- uma zona de livre-comércio que se estenderia do Alasca à Terra do Fogo. Embora a ALBA
servado com os cerca de um milhão e meio de agricultor.es do Movimento dos Trabalha- ainda se encontre em seus estágios iniciais, o sociólogo brasileiro Emir Sader descreve sua
dores Sem Terra (MST), que formaram centenas de cooperativas para reivindicar a terra promessa como "um exemplo perfeito de comércio genuinamente justo: cada país oferece
improdutiva. Na Argentina, ele é mais claro no movimento das "empresas recuperadas", o que produz melhor, em troca daquilo que mais precisa, independentemente dos preços
duas centenas de empreendimentos falidos que foram ressuscitados por seus empregados do mercado global".29 Desse modo, a Bolívia vende gás com desconto e preços estáveis; a
e transformados em cooperativas administradas democraticamente. Para os cooperados, Venezuela oferece petróleo fortemente subsidiado para os países mais pobres e compar-
não existe o medo ele enfrentar um choque eco nômico provocado pela saída dos inves- tilha sua perícia no desenvolvimento das reservas; e Cuba envia milhares de médicos para
tidores, porque eles já se foram. De certo modo, os experimentos ele recuperação ela ter- prover serviços de saúde gratuitos, em todo o continente, enquanto forma estudantes de
ra representam um novo tipo de reco nst rução pós-desastr_e.- reconstrução elo desastre outros pa íses em suas faculdades de medicina. Esse é um mod elo muito diferente do tipo
em câmera lenta elo neoliberalismo. Em gritante coh.traste com o modelo oferecido pelo de troca acadêmica que começou na Universidade de Chicago, em meados da década de
complexo do capitalismo de desastre no Iraque, no. Afeganistão e na Costa do Golfo, os 1950, quando os estudantes latino-americanos aprenderam uma única e rí gid a ideo logia
esfo rços de reconstrução dos líderes da América Latina são dirigidos aos habitantes mais e foram mandados de volta para casa a fim de impô-l a com uniformidade em todo o
afetados pela devastação. Sem surpreender, suas soluções espontâneas são muito parecidas continente. O principal benefício é que a ALBA é essencia lm ente baseada no escambo,
com a verdaçleira terceira via, que foi efetivamente tirada do :aminho pela campanha da deixando os países decidirem por si mesmos quanto vale cada mercadoria ou serviço, em
Escola de Chicago, em todo o mundo - democracia na vida cotidiana. vez de permitir que negociantes de Nova York, Chicago ou Londres definam os preços
Na Venezuela, Chá vez transformou as cooperativas em prioridades políticas, dando-lhes por eles. Isso torna o comércio muito menos vulnerável ao tipo de flutuação brusca
a preferência em contratos governamentais e oferecendo-lhes incentivos econômicos para de preços que devastou as econom ias latino-americ;inas no passado recente. Rodeada de
que negociem entre si. Em 2006, havia aproximadamente cem mil cooperativas no país, águas financeiras turbulentas, a América Latina está criando uma zona de relativa calma-
empregando mais de setecentos mil trabalhaclores. 18 Muitas são partês ela infra-estrutura ria econômica e previsibilidade, um feito considerado impossível na era da globalização.
estatal - cobrança de pedágios, manutenção de rodovias, clínicas de saúde-, entregue à Com essa integração crescente, quando um país enfrenta déficit financeiro, não pre-
gestão das q~munidades. Isso é uma reversão ela lógica de terceirização do governo - em cisa procurar o FMI ou o Tesouro dos Estados Unidos para obter um empréstimo de
vez de leiloar pedaços das grandes corporações estatais e perder o controle democrático, as emergência. Isso é bom, porque a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos,
pessoas que usam os serviços ganham o poder para administrá-los, criando, ao menos em em 2006, deixa claro que, para Washington , a doutrina do choque ainda es tá bastante
tese, tanto empregos quanto serviços públicos mais responsáveis.' Muitos críticos de Chá.- · viva: "Se ocorrer uma crise, a resposta do FMI deve ser a de reforçar a responsabilidade
vez, é claro, ridicularizaram essas iniciativas, chamando-as de esmolas e subsídios injustos. de cada país por suas próprias escolhas econômicas", declara o documento. "O redirecio-
Ainda assim, numa era em que a Halliburton vem tratando o governo dos Estados Uni~os? namento feito pelo FMI vai fortalecer as instituições do mercado e a disciplina do mer-
pelo menos nos últimos seis anos, como seu caixa automático pessoal - com retiradas cado em relação às decisões financeiras." Esse tipo de "disciplina do mercado" só pode
superiores a vinte bilhões de dólares só em contratos no Iraque, e depois expressando sua ser reforçado se os governos te~orrerem de fato a Washington para pedir ajuda - como
gratidão aos contribuintes estadunidenses com a mudança de seu escritório central para explicou Stanley Fischer, durante a crise financeira da Ásia, o FMI só pode auxiliar se for
Dubai (com todos os benefícios legais e isenção de impostos)-, os subsídios diretos de solicitado, "mas, quando [um país fica] sem dinheiro, não tem muitos lugares para onde
Chávez às pess.oas comuns parecem significativamente menos radicais. ir". 30 Esse já não é mais o caso. Graças aos altos preços cio petróleo, a Venezuela emergiu
542 A DOUTRINA DO CHOQUE CONCLUSÃO 543

como principal emprestadora para outros países em desenvolvimento, permitindo-lhes do Ba nco Mundial emitiam pareceres no mundo em desenvolvirne·nto, "eram motivo de
fazer uma última viagem a Washin gton. risada". 32 Com o fracasso das conversas na Organização Mundial do Comércio, em 2006
Os resultados têm sido dramáticos. O Brasil, que ficou algemado a Washington du, (que resultou imediatamente em declarações de que "a globalização está morta"), o futu-
rante tanto tempo, por causa de sua enorme dívida, se recusa a fazer um novo acordo ro das três principais instituições que impuseram a ideologia da Escola de Chicago, sob a
com o FMI. A Nicarágua ei;tá negociando para sair do fundo, a Venezuela já se retirou máscara da inevitabilidade econômica, corre o risco de extinção.
tanto do FMI quanto do Banco Mundial, e mesmo a Argentina, antiga "aluna-modelo" Faz sentido que a revolta contra o neoliberalismo esteja em seu estágio mais avançado
de Washington, também participa dessa tendência. Em seu discurso sobre o Estado da. na América Latina - os latino-americanos, como habitantes do primeiro laboratório
União, em 2007, o presidente Néstor Kirchn er afirmou que os credores estrangeiros do de choque, tiveram mais tempo para recuperar suas forças. Anos de protestos nas ruas
país lhe disseram: '"Você precisa fazer um acordo com o Fundo Monetário Internacional criaram novos agrupamentos políticos, que se fortaleceram não somente para tomar o
para se tornar capaz de pagar a dívida.' Pois nós dizemos a eles: 'Senhores, nós somos poder, mas para começar a transformar as estruturas de poder do Estado. Há indícios
soberanos. Queremos pagar nossa dívida , mas nem no inferno vamos fazer outro acordo de que outros antigos laboratórios de choque estão no mesmo caminho. Na África do
com o FMI."' Em conseqüência, o FMI, que foi tremendamente poderoso nos anos J980 Sul, 2005 e 2006 foram anos em que as favelas longamente negligenciadas abandonaram
e 1990, já não é mais uma fo rça no continente. Em 2005, a América Latina representava sua lealdade partidária ao CNA e começaram a protestar contra o descumprimento das
80% do total de empréstimos em ca rteira do FMT; em 2007, o continente passou a repre- promessas da Carta da Liberdade. Jornalistas estrangeiros comentaram que esse tipo
sen tar apenas l % - uma mudança radical, em apenas dois anos. "Há vida após o FMI", de levante não era visto desde que os bairros negros se ergueram contra o apartheid.
declarou Kirchner, "e é uma vida boa''. 31 Porém, a mais notável mudança de humor es tá ocorrendo na China. Durante muitos
A transformação vai além da América Latina. No espaço de três anos, os empréstimos anos, o terror brutal do massacre da Praça da Paz Celestial foi bem-sucedido na su-
em carteira do FMI no mundo todo haviam encolhido de 81 bilhões de dólares para 11 ,8 pressão da ira popular, diante da corrosão dos direitos dos trabalhadores e do apro-
bilhões de dólares, sendo que grande parte desse valor foi destinada à Turquia. O FMl, fundamento da pobreza rural. Já não é mais. De acordo com fontes oficiais do governo,
que atuou como pária em tantos países, nos quais tratou as crises como oportunidades em 2005 houve um número estarrecedor de 87 mil grandes protestos na China, que
de rea li zação de lucros, está começando a murchar. O Banco Mundial também enfrenta envolveram mais de quatro ~ilhões de trabalhadores e camponeses.' 33 A onda chinesa
um futuro igualmente sinistro. Em abri l de 2007, o presidente do Equador, Rafael Correa, de ativ ismo foi recebida com a mais extrema repressão estatal, desde J 989, mas resultou
revelou que suspendeu todos os empréstimos do banco e declarou o representante da em diversas vitórias concretas: maiores e novos investimentos nas áreas rurais, melhor
institui ção no seu país como persona 11011 grata - um passo extraordinário. Dois anos serviço de saúde, promessa de eliminação das taxas escolares. A China também está
antes, como Correa explicou, o Banco Mundial utilizou um empréstimo de cem milhões saindo do choque.
de dólares para derrotar a legislação econômica que promoveria a redistribuição dos
rendimentos do petróleo entre os mais pobres do país. "O Equador é um país soberano e qualquer estratégia baseada na exploração de novas janelas de oportunidade, abertas
nós não vamos tolerar a extorsão da burocracia internacional", disse ele. Na mesma épo- por um choque traumático, recai pesadamente sobre o elemento-surpresa. Um estado de
ca, Evo Morales anunciou que a Bolívia iria deixar a corte de arbítrio do Banco Mundial, choque é, por definição, o momento em que se forma uma lacuna entre os eventos que
órgão que permite que as corporações multin acionais processem governos nacionais no se sucedem rapidamente e a informação disponível para explicá-los. O teórico francês
caso de medidas que prejudiquem seus lucros. "Os governos da América Latina, e do Jean· Baudrillard descreveu os incidentes terroristas como "excesso de realidade"; nesse
mundo, creio eu, jamais vencem as causas. As multinacionais sempre saem vencedoras", sentido, os ataques do 11 de Setembro, na América do Norte, foq1m, em primeiro lugar,
declarou Morales. Quando Paul Wolfowitz foi forçado a anunciar sua renúncia ao cargo fatos puros, realid~dê crua, não processada pela história, pela n.ai-rativa ou por qualquer
de presidente do Banco Mundial, em maio de 2007, ficou claro que a instituição preci-
sava tomar medidas desesperadas para se salvar da profunda crise de credibilidade. Em · "Quatro milhões de trabalhadores!", exclamou um grupo de escritores estadunidenses sindicalizados.
meados do caso Wolfowitz, o Financial Times informou que, agora, quando os diretores "Nos Es tados Unidos, nós celebramos o nascimento de um novo movimento social global. quando
sessenta mil pessoas se ap resentaram para a 'Batalha de Seattle', em 1999.'; ..
544 A DOUTRINA DO CHOQUE
CONCLUSÃO 545

outra coisa que pudesse preencher a lacu na entre a realidade e a compreensão.l4 Sem uma em janeiro de 2007, para prometer 7,6 bilhões de dólares em empréstim os e verbas, eles
história, todos ficamos intensamente vulneráveis àquelas pessoas que estão prontas para certamente imaginaram que o governo libanês aceitaria qualquer amarra que fosse incorpo-
tirar proveito do caos em benefício próprio, como ficamos muitos de nós depois do 11, rada à ajuda. As condições eram rotineiras: privatizações de telefonia e eletricidade, elevação
de Setembro. Tão logo encontramos uma nova narrativa, que nos ofereça uma perspec- do preço do combustível, cortes nos serviços públicos e aumento de uma taxa já contro-
tiva sobre os inciden tes chocantes, começamos a nos reorientar e o mundo torna a fazer versa sobre compras no varejo. Kamal Hamdan, economista libanês, est imou que, como
sentido novamente. •
conseqüência, "as despesas das familias [iriam] aum entar 15%, por conta da elevação dos
Interrogadores nas prisões, que tentam induzir o choque e a regressão, entendem bem impostos e dos aj ustes de preços" - uma clássica penalidade de paz. Quanto à própria
esse processo. É por essa razão que os manuais da CIA enfatizam a importância de cortar reconstrução, os trabalhos seriam entregues às firmas giga ntes do capitalismo de desastre,
qualquer coisa que possa ajudar os detentos a estabelecer uma nova narrativa - suas sem necessidade de subcontratar no plano local. 36
próprias fontes sensoriais, outros prisioneiros, e mesmo a comunicação com os guar- Perguntaram a Condoleezza Rice, secretária de Estado dos Estados Unidos, se essas
das. "Os presos devem ficar imediatamente segregados", determina o manual de 1983. demandas inflexíveis constituiriam interferência est ran geira nos assuntos internos do
"O isolamento, tanto físico quanto psicológico, deve ser mantido desde o momento da Líbano. Ela respondeu: "O Líbano é uma democracia. Di to isto, o Líbano também está
ca ptura."35 Os interrogadores sa bem que os prisioneiros falam. Eles avisam uns aos ou- realizando algumas reformas econômicas importantes, que são cruciais para que tudo
tros o que vai acontecer; eles enviam notas através das grades. Quando isso acontece, os dê certo." Fo uad Siniora, primeiro-ministro libanês apoiado pelo Oc idente, concordou
cap tores perdem sua vantagem. Eles ainda têm poder para infligir dor física, mas deixam rapidamente com a afirmação, deu de ombros e declaro u que "o Líbano não inventou a
escapar suas ferramentas psicológicas mais efetivas para manipular e "qu ebrar" seus pri- privatização". Mais adiante, num a clara demonstração de que acei tara as regras do jogo,
sio neiros: confusão, desorientação e su rpresa. Sem esses elementos, não existe choque. ele con tratou a Booz Allen Hamilto n, gigan te de vigil Crncia li gad a a Bush, para promovet
O mesmo acontece em sociedades mais amplas. Uma vez que os mecanismos da dou- a priva tização das telecomunicações libanesas. 37
trina do choque são profunda e coleti,vamente compreendidos, comunidades inteiras Muitos cidadãos libaneses, no entan to, foram bem menos cooperat ivos. Embora inú-
ficam mais difíceis de surpreender, de confundir - tomam -se resistentes ao choque. meros lares ainda estivessem em ruínas, milhares de pessoas participaram de uma greve
A versão extraordinariamente violenta do capitalismo de desast re, que se tornou do- geral, organizada por uma coalizão de sindicatos e partidos políticos, inclusive o partido
minante depois do 1l de Setembro, surgiu, em parte, porque os choques mais brandos islâmico Hezbollah. Os manifes tantes insistiram que, se para recebe r os fundos de re-
- crises da dívida, colapsos monetários, ameaça de ficar para trás "na história" - já construção era preciso aumentar o custo ele vida de um povo já casti gado pela guerra,
estavam perdendo sua potência, em grande medida por excesso de uso. Mesmo hoje, os não se tratava de ajuda. Assim, enqu an to Sini ora tranq üili zava os doadores cm Paris, gre-
choques cataclísmicos de guerras e desas tres naturais nem sempre provocam o nível de ves e barricadas nas estradas paralisavam o país - a primeira revolta nacional cujo alvo
desorientação requerido para impor uma terapia de choque econôm ico indesejada. Há especí fi co era o capitalismo de desastre do pós-guerra. Os manifestantes também realiza -
muitas pessoas no mundo que já tiveram experiência direta com a doutrina do choque: ram uma demonstração de protesto, que durou dois meses, tran sfo rm ando o centro de
elas sabem co mo funciona, conversaram com ou tros prisioneiros, passaram notas en tre Beirute numa mistura de acampamento co m carnaval de rua . A maioria dos repórteres
as grades; o elemento crucial da surpresa está desaparecendo. caracterizou aqueles eventos co mo exibições de fo rça do Hezbollah, mas Mohamacl Bazzi,
Um exemplo impressionante é a resposta de milhões de libaneses às tentativas dos cre- chefe do escri tór io do jornal de Nova York Newsday no Oriente Médio, disse que essa
dores internacionais de impor "reformas" de livre mercado, como condição da aj uda para interpretação deixava de lad o o verdadeiro signifi ca do: "A grande força motivadora , qu e
a reconstrução depois dos ataques israelenses de 2006. Era certo supor que o esquema iria mobiliza muitos dos que es tão acampados no centro da cidade, não é o Irã ou a Síria, ou
funcionar: o país estava dese5perado em busca de financiamentos. Mesmo antes da guerra, o a oposição entre xi itas e sunitas. É a desigualdade eco nôm ica que assombra os libaneses
Líbano tinha uma das dívidas mais pesadas do mundo, enquanto as novas perdas decorren- xiitas há muitas décadas. Essa é uma revolta dos pobres e da classe trabalhadora."38
tes dos bombardeios sobre estradas, pontes e pistas de aeroportos eram estimadas em nove A localização da demonstração de protesto dava a explanação mais eloqüen te de por
bilhões de dólares. Assim, quando os delegados de trinta países ricos se reuniram em Paris, que o Líbano se mostrava tão resistente ao choque. A manifestação estava situ ada na par-
546 A DOUTRINA DO CHOQUE CONCLUSÃO 547

te do centro de Beirute que os moradores chamam de Solidere, nome da incorporadora queriam outra reconstrução no estilo da bolha da Solidere e dos subúrbios destruídos
imobiliária que detém todos os im óveis ali existentes, e que foram construídos por ela. - ou zonas verdes fortificadas e zonas vermelhas furiosas-, mas sim uma reconstru-
Solidere foi o resultado do último esforço de reconstrução do Líbano. No começo dos , ção para todo o país. "Como podemos aceitar esse governo que rouba?", perguntou um
anos 1990, depois da guerra civil que durou quinze anos, o país se encontrava devastado dos participantes. "O governo que construiu esse núcleo central e acumulou uma dívida
e o Estado, endividado, sem dinheiro para a reconstrução. O empresário bilionário (e imensa? Quem vai pagá-la? Eu terei de pagar, e meu filho também vai oontinuar pagando,
ex-prim eiro-ministro) Rafiq Hariri fez uma proposta: se lhe fossem dados os direitos de depois de mim." 1º
propriedade territorial de todo o núcleo central da cidade, sua empresa imobiliária, Soli- A resistência ao choque, no Líbano, foi além do protesto. E se expressou também num
dere, o transformaria na "Cingapura do Oriente Médio". Hariri, que morreu na explosão esforço de reconstrução de amplo alcance. Poucos dias após o cessar-fogo, os comitês de
de um carro, em fevereiro de 2005, demoliu quase todas as estruturas que estavam de pé, bairro do Hezbollah visitaram muitas casas que foram atingidas pelos ataques aéreos,
tornando a cidade um espaço vazio. Marinas, condomínios luxuosos (alguns mm eleva- avaliaram os estragos e disponibilizaram doze mil dólares, em dinheiro, para as fa-
dores para limusines) e shopping centers suntuosos substituíram os antigos mercados. 39 mílias desabrigadas gastarem com um ano de aluguel e mobílias. Como observaram as
Quase tudo que se situa no distr ito empresarial - edifícios, praças, forças de segurança jornalistas independentes Ana Nogueira e Saseen Kawzally, de Beirute: "Isso representa
- é de propriedade da Solidere. seis vezes o valor que os sobreviventes do furacão Katrina receberam da FEMA." E, com
Para o resto do mundo, a Solidere era o símbolo brilhante do renascimento do Líbano palavras que soariam como música aos ouvidos dos desabrigados do Katrina, o líder do
no pós-guerra, mas para muitos libaneses sempre representou uma espécie de testamen- Hezbollah, xeque Hassan Nasrallah, prometeu ao país, numa fala pela televisão: "Vocês
to hológrafo. Fora do núcleo ultramoderno da área central, a maior parte de Beirute não precisarão pedir nenhum favor a ninguém, nem ficarão em filas em lugar nenhum ."
carecia de infra-estrutura, de eletricidade a transporte público, e os buracos de balas nas A versão do Hezbollah para a ajuda não foi filtrada pelo governo ou pelas ONGs est ran -
fachadas de muitos prédios nunca foram consertados. Foi nessas áreas negligenciadas, geiras. Não foi dirigida para a construção de hotéis de cinco estrelas, como em Cabul, ou
que circundavam o centro resplandecente, que o Hezbollah construiu sua base leal, ins- de piscinas olímpicas para os treinamentos policiais, como no Iraque. Ao contrário, o
talando geradores e transmissores, organizando coleta de lixo, oferecendo segurança - Hezbollah fez o que a sobrevivente do tsunami no Sri Lanka, Ranuka, me disse que gosta-
tran sformando-se no vilipendiado "Estado dentro do Estado". Sempre que os moradores ria que alguém tivesse feito por sua família : colocasse a ajuda em suas mãos. O Hezbollah
dos subúrbios empobrecidos se aventuravam no enclave da Solidere, eram expulsos pelos também incluiu membros da comunidade na reconstrução - contratou equipes locais
guardas de segurança de Hariri; sua presença assustava os turistas. de construção civil (que trabalharam em troca dos entu lhos de metal que recolhiam),
Raida Hatoum, ativista pela justiça social em Beirute, contou-me que, quando a So- mobilizou 1.500 engenheiros e ·organizou grupos de voluntários. Toda essa ajuda con-
lidere começou sua reconstrução,_ "as pessoas ficaram muito contentes porque a guerra tribuiu para que, uma semana depois que os bombardeios cessaram, a reconstrução já
tinha acabado e as ruas começaram a ser refeitas. Quando nos demos conta de que as estivesse sendo feita .41
ruas tinham sido vendidas, que se tornaram propriedade privada, já era tarde demais. Na imprensa dos Estados Unidos, tais iniciativas foram quase sempre tratadas como
Nã~ sabíamos que o dinheiro era emprestado e que teríamos de pagá-lo depois". Aquele se fossem suborno ou dientelismo - a tentativa do Hezbollah de comprar o apoio po-
brusco despertar, d~corrente da descoberta de que o povo menos favorecido tinha sido pular, depois de ter provocado o ataque que sacudira o país (David Frum até sugeriu que
responsab ilizado pelo pagamento das obras que beneficiaram apenas uma pequena elite, as notas que o Hezbollah estava distribuindo eram falsas).42 Não resta dúvida de que o
tornoú os libaneses verdadeiros especialistas na mecânica do capitalismo de desastre. Foi Hezbollah está enfronhado na política, tanto quanto na caridade; e que fundos iranianos
essa experiência que ajudou a manter o país orientado e organizado, depois d<:.. guerra de tornaram possível a generosidade do Hezbollah. No entanto, a posição do Hezbollah
2006. Ao escolher a b~lha da Solidere como local de suas manifest~Ções de prctesto, com como organização local, nativa, que nasceu dentro dos bairros que estavam sendo recons-
refugiados palestinos acampados do lado de fora da megaloja da Virgin e das cafeterias truídos, foi igualmente importante para a sua eficiência. Diferentemente das agências
mais caras ("Se eu comesse um sanduíche aqui, ficaria sem dinheiro por uma semana", corporatistas de reconstrução, que vinham de fora e impunham seus planos elaborados
observou um participante), os manifestantes mandavam uma clara mensageo. Eles não por burocracias distantes, com a importação de dirigentes, segurança privada e tradu -
548 A DOUTHINA DO CHOQUE CONCLU SÃO 549

tores, o Hezbollah atuava com rapidez, porque conhecia cada beco e cada transmissor muitos assentamentos tailandeses foram reconstruídos em poucos meses. A diferença não
improvisado, assim corno as pessoas confiáveis para fazer o trabalho. Se os habitantes do foi decorrente do governo. Os políticos tailandeses ficaram tão ansiosos quanto os outros
Líbano ficaram agradecidos pelo resultado, foi também porque sabiam qual era a alter- , para usar a tragédia como desculpa para deslocar os pescadores e entregar a posse das terras
nativa. A alternativa era a Solidere. a grandes resorts. O que diferenciou a Tailândia foi que os habitantes das vilas encararam as
o
promessas governamentais com imenso ceticismo e se recusaram a esperar pacientemente
Nem sempre reagimos aos choques com regressão. Em alguns casos, diante das crises, nos acampamentos pelo plano de reconstrução oficial. Em vez disso, em poucas semanas,
nós crescemos - rapidamente. Esse impulso foi bastante evidente na Espanha, no dia centenas de moradores das vilas se engajaram naquilo que chamaram "reinvasões" de ter-
11 de março de 2004, quando as bombas explodiram nos trens e nas estações de Madri, ras. Eles passaram pelos guardas armados, pagos pelas imobiliárias, e começaram a mar-
matando quase duzentas pessoas. Imediatame11te, o presidente josé María Aznar foi à car os terrenos onde suas velhas casas costumavam ficar. Em alguns casos, a reconstrução
televisão e conclamou os espanhóis a culpar os separatistas bascos e a dar-lhe seu apoio começou imediatamente. "Eu quero apostar a minha vida nessas terras, porque elas nos
na guerra do Iraque. "Nenhuma negociação é possível ou desejável com esses assassinos, pertencem", disse Ratree Kongwatmai, que perdeu quase toda a sua família no tsunami. 45
que tantas vezes espalharam a morte na Espanha. Somente com firmeza poremos fim a As reinvasões mais audaciosas foram realizadas pelos pescadores nativos da Tailândia,
esses ataques", declarou Aznar. 43 chamados Moken, ou "ciganos do mar". Depois de séculos de desenraizamento, os Moken
Os espanhóis reagiram mal àquele tipo de discurso. "Ainda estamos ouvindo os ecos não tinham ilusões de que um Estado benevolente lhes daria um pedaço decente de terra,
de Franco", disse José Antonio Martines Soler, proeminente editor de jornal madrilê-· em troca das propriedades costeiras que tinham sido tomadas. Assim, num caso dramá-
no, que foi perseguido durante a ditadura de Francisco Franco. "Em cada ato, em c_aqa tico, os residentes da vila de Ban Tung Wah, na província de Phang Nga, "se juntaram e
gesto, em cada frase, Aznar disse ao povo que estava certo, que era o dono da verd ade e marcharam de volta para casa, onde cercaram seu vilarejo dest ruído com cordas, num
que aqueles que discordavam dele eram seus inimigos."H Em outras palavras, as mesmas gesto simbólico de demarcação de posse de sua terra", explicou o relatório de uma ONG
qualidades que os americanos enxergavam como "liderança enérgica" em seu presidente, tailandesa. "Com toda a coml{nidade acampada do lado de fora, ficou difícil para as auto-
depois do 11 de Setembro, eram vistas como sinais agourentos de um fascismo emergen- ridades expulsarem as pessoas de lá , especialmente por causa da intensa atenção da mídia
te na Espanha. O país estava a apenas três dias das eleições nacionais e, ao se lembrar de concentrada na recuperação 'do tsunami." No final, os moradores do vilarejo negociaram
um tempo em que o medo governou a política, os eleitores derrotaram Aznar e escolhe- um acordo com o governo, desist indo de parte de sua terra à beira-mar, em troca de ga-
ram um partido que prometeu tirar as tropas do Iraque. Co mo no Líbano, foi a memória rantia legal sobre o resto de suas propriedades ancestrais. Hoje, a vila reconstruída é uma
coletiva dos choques do passado que fez a Espanha resistente a novos abalos. vitrine da cultura Moken, contando com museu, centro comunitário, escola e mercado.
Todos os terapeutas do choque tencionam apagar a memória. Ewen Cameron estava "Agora, funcionários do subdistrito vêm a Ban Tung Wah para aprender sobre a 'recons-
convencido de que precisava esvaziar as mentes de seus pacientes antes de reconstruí-las. trução conduzida pela populaÇão', enquanto pesquisadores e estudantes universitários se
Os ocupantes estadunidenses do Iraque não sentiram necessidade de cessar a pilhagem voltam para lá, em ônibus cheios, a fim de estudar a 'sabedoria do povo indígena'." 46
dos museus e bibliotecas iraquianos, porque acharam que isso tornaria sua tarefa mais · Em toda a costa tailandesa atingida pelo tsunami, esse tipo de ação direta de recons-
fácii. Mas, assim como mostra a antiga paciente de Cameron, Gail Kastner, com sua intri- trução é a noro1a. A chave de seu sucesso, como afirmam os líderes comunitários, é que
cada arquitetura de papéis, livros e listas, as lembranças podem ser refeitas, novas narrati- "as pessoas negociam seu direito à terra na posição de ocupantes"; alguns apelidaram
vas podem ser criadas. A memória , tanto individual quanto coletiva, é no fim das contas a prMica de '.'n~gociação com as próprias mãos". 47 Os sobreviventes da Tailândia tam -
o principal amortecedor. bém insistiram em um tipo diferente de ajuda - em vez de s.e credenciar a doações,
eles demandaram a"s ferramentas para realizar sua própria ~eê:o~strução. Dezenas de
Apesar das tentativas bem-sucedidas de explorar o tsunami de 2004, a memória provou ser estudantes e professores de arquitetura tailandeses, por exemplo, se ofereceram como
uma ferramenta eficaz de resistência em algumas áreas atingidas, especialmente na Tailân- voluntários para ajudar membros das comunidades a planejar suas nova s casas e dese-
dia. Dezenas de vilas costeiras foram arrasadas pela onda, mas, ao contrário do Sri Lanka, nhar seus próprios projetos de reconstrução; mestres artesãos ensinaram os. moradores
550 A DOUTRINA DO CHOQUE CONCLUSÃO 551

51
dos vilarejos a erguer seus próprios barcos pesqueiros de modo mais sofisticado. Os transformou numa festa de ru a co mpleta, com uma banda de música de Nova Orlea ns.
resultados são comunidades mais fortes do que era m antes da onda. As casas sobre Havia muito a comemorar: pelo menos por ora, essa comunid ade tinha escapado da
palafitas co nstru ídas pelos moradores das vilas tailandesas, em Ban Tung Wah e Baan grande demolição cultural que se autodenomina reconstrução.
Na irai, são belas e resistentes; são aind a mais baratas, mais amplas e mais frescas do que Há um tema co mum a unifica r todos esses exemplos de. P.ovos reconstruindo a si
os cubículos pré-fabricados oferecidos pelos co ntratantes estrangeiros. Um manifesto mesmos: os participantes afirm am que não estão apenas reparando construções, estão
elaborado por uma coalizão de sob reviventes explica a filosofia: "O trabalho de reco ns- curando a si mesmos. Isso faz todo o sentido. A experiência universal de passar por um
trução deve ser feito pelas verdade iras co munidades, tanto quanto possível. Mantenham grande choque é a sensação de ser completamente impotente: diante de forças pavorosas,
os contratantes de fora, deixem as co mun id_ades tornarem para si a responsabilidade por pais perdem a capacidade de salvar seus filhos, cônjuges são separados, lares - que são
suas próprias morad ias." 48 ·1~gares de proteção - se tornam câmaras mortuárias. A melhor maneira de se recuperar
Um ano depo is da ocorrência do Katrina, uma troca admirável aconteceu na Tailân- da falta de amparo acaba sendo tornar-se útil - ter o direito de fazer parte de uma re-
dia, entre os líderes populares do esforço de reconstrução do país e uma pequena delega- cuperação comunitária. "A reabertura de nossa escola indica que esta é um a comunidade
ção de sobrev ive ntes do fura cão de Nova Orleans. Os visitantes estadunidenses percorre- muito especial, unida não só pela localização, mas pela espiritualidade, pelos ancestrais e
ram diversas vil as tailand esas reconstruídas e fi ca ram impressionados com a velocidade pelo desejo de voltar para casa", declarou a diretora-assistente da escola de ensino funda-
da recup eração. "Em Nova Orleans, estamos espera ndo que o governo faça alguma coisa mental Dr. Martin Luther King Jr., no bairro de Lower Ninth Ward, em Nova Orleans.52
por nós, mas aqui vocês mesmos estão fazendo tudo", disse Endesha Juakali, fund ador Esses esforços de reco nstrução popular representam a antítese do ethos do co mpl exo
da "vil a dos so breviven tes" em Nova Orleans. "Quando voltarmos", prometeu ele, "seu do capitalismo de desastre, que é a busca perpétua por folhas brancas e espaços vazios,
modelo se rá nosso novo objetivo".'19 sobre os quais possa construir Estados-modelo. Como as cooperativas fab ris e agríco-
Depois que os líderes comunitários de Nova Orleans volta ram para casa, ocorreu de las latino-americanas, eles são inerente1nente improvisadores e trabalham com qualqu er
fato uma onda de ação direta na cidade. Juakali , cujo bairro ainda estava em ruínas, orga- coisa que tenha sido deixada para trás e com qualquer ferramenta que não tenha sido
nizou equ ipes de empreiteiros e vol un tários loc~ i s pa ra vasculhar os interiores danificados varrida , quebrada ou ro ubada. Ao contrário da fantasia da Revelação, o apagamento apo-
pela ent l1ente, em todas as casas do qu arteirão; em seguida, eles se dirigiam para outras calíptico que permite a fu ga etérea dos verdade iros crentes, os movimentos de renovação
quadra~. Ele disse que a viagem à região do tsunami lhe dera "uma boa perspectiva sobre das populações loca is partem da premissa de que não há escapatória para a confusão
· ( ... ) cómo as pessoas de Nova Orlea ns terão de colocar a FEMA e os governos municipal substancial que nós criamos e de que já houve suficiente eliminação - de história, cultu-
e estad ual de lado e co meça r a dizer: 'O que podemos fazer agora mesmo para co meçar a ra e memória. São movimentos que não procuram começar do zero, mas do entulho, dos
trazer nosso bairro de vo lta, apesar do governo, e não por causa dele?"' Outra veterana da escombros que estão por toda parte. Enquanto a cruzada corporatista continua em seu
turnê asiática, Viola Washington, também retornou a seu bairro de Nova Orleans, Gen- violento declínio, fazendo girar o ponteiro do choque para atingir a crescente resistência
tilly, com uma atitude inteiramente nova. Ela "dividiu um mapa de Gentilly em seções, que encontra, esses projetos assinalam um caminho entre os fundamentalismos. Como
orga nizo u co mitês representativos para cada seção e nomeo u líderes que se reuniram para são radicais apenas em seu pragmatismo e estão enraizados nas comunidades onde vi-
discutir as necessidades da reconstru ção". Viola explicou que "enquanto lutamos com o vem, esses homens e mulheres se vêem apenas como restauradores, pegando o que têm
governo para ter nosso dinheiro, não queremos nada que tente ou resolva nos deter".so à mão e consertando, reforçando, tornando melhor e mais igu~l. Acima de tudo, estão
Ainda houve mais ação direta em Nova Orlea ns. Em fevereiro de 2007, grupos de construindo com resistência - à espera do próximo choque.
moradores qu e viviam nos projetos de moradia popular, que o ºgoverno Bush planeja-
va demolir, começara m a "reinvadir" seus antigos lares e a recuperar suas residências.
Voluntários ajudaram a limpar os apartamentos e leva ntara m dinheiro para a compra
de geradores e pa inéis solares. "Minha casa é o meu castelo, e o estou pegando de volta",
anunciou Glo ri a Williams, moradora do conjunto habitacio nal C.J. Peete. A reinvasão se
CONCLUSÃO 553

19
NOTAS DA CONCLUSÃO Vladimir Radyuhin, "Racial Tension on the Rise in Russia", The Hindu, 16 de setembro de 2006;
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www.m~;iiendent.org; Kamb1z Foroohar, Hezbollah, with $100 Bills, Struggles to Repair Lebanon ACHO QUE DEVE HAVER ALGUMA REGRA LITERÁRIA que proíba dedicar dois livros à mes-
Damage' Bloomberg News, 28 de setembro de 2006; Omayma Abdel-Latif, "Rising From the Ashes': ma pessoa. No caso deste livro, preciso quebrar essa regra. Este projeto simplesmente não
Al-Ahram Weekly, 31 de agosto de 2006.
:: ~avi_d ,Frum, "Counterfeit News'; National Post (Toronto), 26 de agosto de 2006. teria sido física, intelectual e emocionalmente possível sem meu marido, Avi Lewis. Ele é
44
Sp_am s .i:z~ar ~~les Out Talks with Basque Group ETA'; Associated Press, 11 de março de 2004. meu colaborador em todas as coisas: editor, companheiro de viagem (Sri Lanka, África
Ela.me Sc1olmo, ln Spain's Vote, a Shock from Democracy (and the Past)'; New York Times 21 de do Sul, Nova Orleans), fonte de força e disposição. Fizemos isso juntos.
março de 2004. '
45
Santisuda Ekachai, "This Land Is Our Land'; Bangkok Post, 2 de março de 2005.
A tarefa também teria me derrotado sem o trabalho extraordinário de minha assis-
46
Tom Kerr, Coalizão Asiática pelos Direitos à Moradia, "New Orleans Visits Asian Tsunami Areas tente de pesquisa, Debra Levy. Debra dedicou toda a sua vida a este livro, durante três
- 9-17 de setembro de 2006'; www.achr.net. anos, parando apenas para ter um bebê. Sua fantástica habilidade para pesquisar deixou
47
Ibid.
48
· o·1saster Recovery: Rights, Resilience and Empowerment''.
Kerr, "Peop1e's Lea dersh'1p m
sua marca em cada página. Ela desencavou informações novas e estimulantes, mane-
49 jou e organizou fontes desconjuntadas, realizou diversas entrevistas e depois conferiu os
Kerr, "New Orleans Visits Asian Tsunami Areas''.
so Richard A. Webster, "N.O. Survivors Learn Lessons from Tsunami Rebuilders'; New Orleans Business dados factuais em todó o manuscrito. Não tenho palavras para agradecer o fato de ter
13 de novembro de 2006. '
SI sido acompanhada, em todas as etapas, por uma colega tão talentosa e dedicada. Debra
Moradores de ~abitações Públicas, "Public Housing Residents Take Back Their Homes'; press
re/ease, 11 de fevereiro de 2007, www.peoplesorganizing.org. estende seu amor e reconhecimento a Kyle Yamada e Ari Yamada-Levy, e eu faço minhas
52
Citação de Joseph Recasner. Steve Ritea, "The Dream Team'; Times-Picayune (Nova Orleans), 1o de as suas palavras.
agosto de 2006. Duas editoras, que trabalharam com raro espírito de colaboração e satisfação, molda-
ram este manuscrito de modo tão profundo que mal posso descrever: Louise Dennys, da
Knopf Canada, e Frances Coady, da Metropolitan Books. Louise e Frances, que também
são minhas amigas e mentoras, levaram-me a estender a tese para áreas inteiramente
novas e deram-me o tempo necessário para responder a seus minuciosos desafios. Louise
tem sido minha fiel editora e defensora impetuosa, desde Sem logo, e eu fico impressiona-
da com a sua capacidade de me fazer baixar o tom e, ao mesmo tempo, de me tomar mais
dura. Quando entreguei o original revisado e bastante ampliado, Frances reestruturou
e refinou tudo com incrível comprometimento, em cada etapa. O fato de que o mundo
editorial ainda tenha lugar para titãs intelectuais do porte dessas duas mulheres me dá
esperanças em relação ao futuro dos livros.
Mais adiante, o manuscrito foi ainda mais afiado, graças às observações incisivas de
Helen Conford, da Penguin britânica, que trabalhou junto conosco desde o princípio. A

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