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2.

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA

Nasci em 1970. A indústria automobilística, depois de


alcançar o auge, começava a declinar. Meu pai tinha a
primeira e mais importante garagem de Burgos, uma vila
gótica de padres e membros do Exército onde Franco havia
instalado a nova capital simbólica da Espanha fascista. Se
Hitler tivesse ganhado a guerra, a nova Europa teria se
assentado em torno de dois polos obviamente desiguais:
Burgos e Berlim. Ou pelo menos era com o que sonhava o
pequeno general galego.
A Garagem Central, como era chamado o florescente
' . d o meu pai,. estavri s«".\ttua
negocio l),..vda a' rZó,(i{)<cl .U G enera l
c;;i

Mola, homenagem ao so1~iido que lii6)J'O~lo levante con -


tra o regime repubUoâ°~ em 193Eie Tu?à eram guardados os
carros mais · cazysQ...y' ua ciidad ;..o'=' .J()..J,8 ncos
~§_\JOb,fi<. ·
~ rlc.'"''.
~SJuigmta !J,. · ,-
rios do reg@i.Ç>de Frang9~~,~i.'5hacasa~ãli" ~'{i~livros,
cç:
apenas carros. Ch c.1~eR'"'_,
ij,J!.Y-S "'C'I".' l
D ant- 6 ; val(!;.6<8
, · "'ºRtfsl.U ,r(lirtsc.,1.§:.CH
r» dími,·
Daup hiin e o nenne \Qe ~ iid a d os l!re
~,a,e · carrosrf:l.d as,,w1uvas,
..J ~"' " ....ç; " por-
~ e"'' xe : ri.o\~ eGº s·
que tiu,hafti fam~ é:le derra,pa'r'nas{oú.rva:s<'ema'ta? os mari-
ov ~ o ~ :0P cê: :t:,v
dos'\2o volante); Citro~, ·J?-~<,~Q~E;,':(~[espa..gHoischamavam
d e " tu b aroes - ") ; ,<f\1·....iO
guns c-,O.:;,·i,'Õd
8.n ,a,_....Jot
Hs :r~1 ,:,,c.;s_~
os d a I ng l aterra e
2\>J\ ; r,i..O "' • e' , à,'-" _
reservados@es ~\füc@s;~Dev,e,\.acrescentar a coleçao de
,;:::.<;:" O S."'
carros a'ríti~&i!s,'='q~e,3@}~e~· ai comprou aos poucos: um
Merce d es \''Lr;,fü'F "C
1·~ _;\,~,'?>preto, um Ciitroen
ores:
\O'-- -
.. cinza
· 1·raction
Avant dos anos 1930, um Ford 17 cavalos, um Dodge Dart
Swinger, um Citroén "bunda de rã" de 1928 e um Cadillac 8
cilindros. Naquela época, meu pai investia na indústria de
fabricação de tijolos, que desmoronou em 1975 (coinciden-
temente, como a ditadura) com a crise do petróleo. No fim,
acabou vendendo a coleção de carros para compensar a

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 25
------~

ruína do negócio. Chorei por aqueles carros enquanto meu


pai, me vendo crescer como um tomboy, choraria por isso.
Durante aqueles tempos idos, porém-não-tão-distantes,
que hoje conhecemos como "fordísmo" a indústria automo-
bilística sintetizou e definiu um modo específico de produ-
ção de consumo, uma organização temporal taylorista da
vida caracterizada por uma estética policromada e lisa do
objeto inanimado, uma forma de pensar o espaço interior e a
vida urbana, um conflituoso arranjo do corpo e da máquina,
um modo descontínuo de desejar e resistir. Nos anos que se
seguiram à crise energética e ao declínio daffnha
- . . . l,.,..._ - .,. , . . de monta-
gem, buscaram identificar outros setores em crescimento em
iima nova economia globa{Ê nessa ép;~a que os "experts"
c.cmieçam, então, a falar das indústrias bioquímicas, eletrôní-
cãs; ínformáticas ou de comunicação como. novos suportes
industriais do capitalismo . . Ma êstes discursos não eram
o b astante para exp 1 icar . ,,.. '1 - d . AQ1~
P,líO uçao @ ra or agrega o e a
d
metamorfose da vida,11@s'3ciedade\t5'rltemporânea.
N o en t anto, e, ,,.,.,y/, ·:0ss1ve 1 es1e,.<B' 1.. e, e
Çaii .rn novo milFeamen · t
o
d as t rans fftmaçoes O - d '3' <'-1~ ,.o<::') · d
r , uçao m u,e;w-a ,(:,<Rran e o
·, · .J t
"',v~ 1 o, usaff0.o.
u, ltirrno sscu o]'( e
c~ ·. .o: eixo igesta8'J90 ~n<S.- A:\ , .
1tc ca e tec-,

. · e''-~ e' .,
mca do corpo, · ·o ~e~0 e da se1et©.lid~~- filil.'[\'outras pala-
( · º" · cP
. , f.a.€, ~ Ó - Q\ L'l?,lF f:,· ·1·
vras, .h ºJ'õe osoncamente1 e eV'2l.'°PJ. e eahzas-m a ana ise
,, r-,,0 , . , O v C\-.J.O' ·O ' :1. O
soma ,epoht1ca da ecoWJ.%rui:ã,m ~Gl.-ral.\.).0
1

--· ·- ó..,S_,..Jv se'f>-. ':>.e\'( 0i'7F>'..


. _, ~"-e 0-<. , .,;,f,,.lP;..ot::J·: e o0 o: . ,
1 Refiro-me ~:m'a 11,<'2.Qªº f~~c;\'l.l!lt1t1lã>ae sornatopoder e tecnologia poli-
tica do corpo. Veft~I01:iclr~.J2í-·o»;ef}0:~t Surveiller et punir: Naissance de la
\\'~ µ,·· '
prison. Paris: Galliffiar, !1915, pp. 33-36. [Ed.bras.: Vigiar e punir: nas-
cimento da prisão, trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2016]. Ver
também Michel Foucault, "Les rapports de pouvoir passent à l'intérieur
du corps," La Quinzaine Littérair·e, n. 247, 1977, pp. 4-6.
2 Aqui eu utilizo a bem-conhecida expressão "economia-mundo" da for-
ma como foi desenvolvida por Immanuel Wallerstein em World-Systems
Ana/ysis: An Introduction. Durham, NC: Duke University Press, 2004.

26 TESTO JUNKIE
J2.::-2:~I?.~1-5.E.':'~!iva ~con,§mica, a trcl:gsJ,çãg~ para um
terceiro tipo de capitalismo, depois dos regimo-, escr~,;ist
'e.industrial. está geraimente situada em torno do~ anos.
1970; mas o estabelecímento de um novo tipo de "governo
do ser vivo'" emerge das ruínas urbanas, psíquicas, fisio-
16gicas e ecológicas da Segunda Guerra Mundial - ou, no
-~aso da Espanha, da Guerra Civil. ·
Mas vocês se perguntarão: como o sexo e a sexualidade
chegam a se transformar no centro da atividade política
e económica?
Sigam-me: As mudanças do capitalismo a que vamos
testemunhar se caracterizarão não só pela transforma-
ção do "sexo", do "género", da "se~alídade", da "identi-
dade sexual" e do "prazer" erbtí}b~tos de_@fil't-00 política
d ~ viid ~ (_corno Foucau 1 ~p-'-ªv1a .,J\i~~- .
intui id c,\Usua d escrição
biopolítica dos no:x9fs1stemas ~ QBntrole social), mas
6 1.,'..§ID

também pelo f~eç,q'(eque esJ~C'~~~P em si !11.tsm~ será


levada adi
ç.'
· 1·1smc(avança
Jl~- por mei;<:,ià~
d GS,aa -e ransaa
Ql_'tli~ dinâmi.<;5s)~º}§1'.:noca _
.o :\ g1 o b a l eNa-s .f),,e ol og1·as
. J.{'\_ab.101'.ecr
pita . :\_O . ".! 0,'\;' 0':) . "" .
Durante a G~(1t%'FJ3'<l,~'s Estado~éfrl1c:lª'sKinv~pi~m mais
de 1 s
o ar.es fül'0pesqtí{lsa
.e,, . , r; ,.0c l7 e r.\ ,,.e, .h .d
c1ent111\J seiur~sexo t• sex~1;_~~:1. · a e do
qu~qR~lquer outro P~t ~~lo1t1tf d~:,b:Blt3.~t1. X 0 aplicação
de vigilância e bi0Jtfe:n2,l@g;~~a9à' g3t'Z~n1ar a sociedade
civil comece ~~fuliJ.'.flctac.dicar1=>Qx11930 a guerra era O
,,. :,...ro ,_,r,;,.,'-' rP'-' , o-o'
melhor l'.ç!,So~tf):iri'o E~ a:. rr{e;l:dttr o corpo, o sexo e a sexua-
lidade. As t~cn~~als nrey~))olíticas da guerra progressiva-
mente se torr~rã<iq'f?dústrias biopolíticas para produção
e controle de subjetividades sexuais. Pensemos simples-
mente que o período entre o começo 'da Segunda Guerra
M~ndial e os primeiros anos da Guerra Fria constitui um

3 Michel Foucault, Du Gouvernement des vivants. Cours au College de


France (1979-1980). Paris Gallirnard/Seuil, 2012.

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA
momento sem precedentes de visibilidade das mulheres
no espaço públicÕ, assim como-de- emergê·~~i;-l~ f~rr~;-;,
visíveis e politizadas da homossexualidade êrrilugarest"ão
inesperados como, por exemplo, o exército norte-america-
. no.' Ao lado desse desenvolvimento social, o rnacarthismo
dos anos 1950 adiciona à luta patriótica contra o comu-
nismo a perseguição da homossexualidade como uma
forma de antinacionalismo, ao mesmo tempo que exalt~
às valores familiares do trabalho masculino e da rnater-
nidade doméstica.5 Inauguram-se no Ocidente, entã~,
dezenas de centros de pesquisa sobre sexualidade como
parte de um amplo programa de saúde pública. Enquanto
isso, os arquitetos norte-americanos Ray e Charles Eames
colaboram com o exército norte-americano na fabricação
de pequenas talas de madeira compensada para susten-
. 1>-\.-
tar braços e pernas mut1lad~'\em comJ:?at3 Poucos anos
0" ma t eriae
d epors. uti·1· izarao - o m.es1:1,10 . 1 ·<:,.r:i.
ara cons t ruir . os
' 0'
móveis que cara~tJ11zarão o ~eyrgn leve da arquitetura
~º"
norte-amerit:51n~ descar ~'f·c;f§\llirante 9 Õ,5d:tlo XX, a
"invençãe5;\°§)a noção ,kiê> 'uLrn·~a do hor, · ® i~,\e% desen -
"'º
· 1 · \,.V f
come reia
n,.s · o.ai:)' l' ,.~<º· .:
vimento ar:~01,\:eu.1~.0' e mo ec\l'..!Pi'ssn; t_e 1çêê,_ ara uso
~"' V ra a·ic .ment
· 1 1çf@ · ~1 ay,ram 1 _,:;,!,. 0?S_<l\nO@,@es '"'~ ar~a1ga · das
·
id . ~,§, d "' < 0. .. 1-:
d e 1 ...füaJ'llua es sexuais~qJ~rC~Jttil.~Sbijé;l' o oa1csas. Em 1941, eiI,, . '(º":) .

as primeiras moléG.1uclà'f · - t, raíéicl·&.12~-fe\terona e estro-


~ · f ,,, c.,e >i.ç,,~ \'::> d , , d
gemo oram ol;?t'l'qa~~tllpartiavaa rma e eguas gravi as
<..S'-e 'fS''\; ºº".;,· o'I).
x- :0s .....'(j. . o<s
\.'(0 ~-<.eYJ ~e.fi.,fJ
4 Alan Berube, CofiS,f;;g\qJJP.'ifi.derfire: the history ofgay man and woman
m World War Two. NewYork: The Free Press, 1990.
5 John D'Emilio, Sexual Politics, Sexual Communities. The Making of a
Homosexual Minority in the United States, 1940-1970. Chicago: Chicago
University Press, 1983.
6 Ver Beatriz Colomina, Domesticity at War. Cambridge, MA MIT Press,
2007,

28 TESTO JUNKIE
(Premarin), e logo depois harmónios sintéticos (noretin-
drona) passaram a ser comercializados. No mesmo ano
George Henry realizou o primeiro estudo demográfico'
sobre "desvio sexual", um estudo quantitativo de massa
conhecido como Sex Variant.7 O caminho da adequação
sexológica continuou com os Relatórios Kinsey acerca do
comportamento sexual humano, em 1948 e 1953, e, em
1968, com os protocolos de Robert Stoller sobre as noções
de "feminilidade" e "masculinidade". Em 1957, o pedop-
siquiatra norte-americano John Money cunha o termo
"género", diferenciando-o do tradicional termo "sexo", para
denominar o pertencimento de um indivíduo a um grupo
de comportamento e expressão corporal culturalmente
reconhecido como "masculín~c1~~·Yemin~r~q_;sÉ famosa
a afirmação de Money de
. , .
~eé possível~,rg ndo técnicas
-·<Q.. mu d ar o genero
cirurgicas, en d ocnno
. l ~g 'eas e cu lt 1eé\1S;
'/J:() ~
de qualquer behrj\'fil'tos dezg1 0'::,~bses".8 Ex:itro ~~L±6 e
'd-f'\.~
191±9, o me, 19à"Haro
ld eftres
G·1i·N "',};
· ,anza . .AI
a pnbtbEi1~ ,..
e\iJB.rgia
de falopla-Ífiano Reifle> (Uni:Gl8'}m Mich .e.1~11 0~r'JB.eiro
ç>":,'-v ç,;1- ;) ~ '< O ,. G -
transexual a to~at t~tosterona c.gmo Pt'Ciíe 31:l)0p\\otocolo
de masc(jli,rNtaçãQ'.?- m 19s2 ~~º1R~ati' n~ifé<:'.~@il~ano
-<..,orJ. zP 1y o..V'õ-. cP'::,' :\ o
. :-lo(\ \0'<" ·~,_stP' . sô..ve
7 J f T >' .
' ~~\ i2fA . ,?t,' Medicine and horno-
en~1 er. ?err!~,:",S\Gl.I11~{{Ó({}Jt,º,)ts(! ~{~n e,
sexua 1ty tn .gatern §_~,;;:iety. (J,11rago,b «:fücago University Press 1
p. 178-218. r,..S r.'õ- . GO ~. 999,
\_~'Õ 'fl 0'fl 0-\'I.
8 John Money, Joh.atHara~@i. e Joan Hampson, "Imprinting and the
estabhshment of the geM:l'er
~
role". Archives of Neuroloay
6.
and pyscmatry

V. 77, 1957, pp. 333-336 ,
9 Harold Gillies e Raph Millard J. ' The Principies and Art of Pl astrc
. .
Surgery. Boston: Little Brown'. 1957, pp. 385-388; Michael Dillon, Self _.l\.
Study m Ethrcs and Endocrinology. Londres: Heinemann, 1946; para urna
maior pesquisa histórica, ver também: Bereníce L. Hausman, Changing
Sex, Transsexualrsm, Technology, and the Idea of Gender. Durharn, CN:
Duke University Press, 1995, p. 67

A ERA FAf1MACOPORNOGf1ÁFICA
29
George w. Jorgensen foi transformado em Christine, pri-
meira transexual cujo caso foi amplamente discutido na
imprensa. Entre o começo dos anos 1950 e os anos 1960,
o médico Harry Benjamin sistematizou o uso clínico de
moléculas hormonais no tratamento de "mudança de sexo"
e definiu "transexualísrno" - termo introduzido pela pri-
meira vez em 1954 - como uma condição curável."
A invenção da pílula anticonce,ecional, primeira téc-
ni~~ bi;q~i~iêitcãpã.;-c{~-;p~;-~p;áticã 'hete;~sse;u~l
·da reprodução, foi resultad'a dfrêtêtdct érescimentÕda
experimentação endocrinológica e pr;vôcou o de"se~~l-
. vimento do que poderia ser chamado, brincando com o
termo de Eisenhower, de "complexo industrial sexo-gê-
nero" 11 Em 1957, a Searle & Co. passou a c~mercializ~/a
Enovid, primeira pílula antic@~eepcional ("a Pílula") pro-
duzida a partir da combi ,·á,{iâ.Y;-de mei~ -~l e noretinod~l.
~i~íalmente indiqtla'i:>ara oi~f.~m~n_t.o,de.disfunções
menstruais, "~f/ti.· a" foi a. J§..vagapara uso cg.straceptiyo
quatro anroClnaís tarde.<3~ ,s,&'~ponen1i;il<'químicoslogo
se. torliJ,'in:m
, .wr0'1~~~1â~
as ~,.r · "j· f~rm;~ê~ti~~s
íY'
:mB ~"'usadas n;....,
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historia da h\·&'a.nid ~e.12 e' ,e ~ 0,, ç,fP
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10. _nquanto a ho~~s~xU'~'J.i©d.,\°ê@"'r:~t~fá do Diagnostic and
Suiiistical ManuQN3'f'MRT'/.tê1.'f Di$6Jr'élers
. d . . z,.,-,~ ·o'-' . "'
(wfi
ô\" vIJ
em 1973, o transtorno de
1 ent1da~~l!Zgei,iz6J~o~ fo~©J~ara;ransexualid~de) foi incluído
no DSM em 19§_§\·co~ie:--.::íqer\<ilSRJ.e d1agnost1cos espec1ficos para esta
nova patolog~. ~Ç c'\~'Õ
- . e o'-º~
11 O presidente norl1-americano Eisenhower utilizou o termo "com-
plexo industrial-militar" em seu discurso de despedida da presidência
à nação em 1961.
12 Andrea Tone, Devices and Desires. A History of Contraceptives in
Arnerica. New York: Hill and Wang, 2001, pp. 203-231; Lara v. Marks,
Sexual Chernistry: A History of the Contraceptive Pi//. New Haven: Yale
University Press, 2001.

30 TESTO JUNKIE
A Guerra_ Fria foi também um período de transforma -
«~' ,., . . _. • . .. _.";.i.l'..';,·: ··-. "···· . . ' -

, ção das regulações econômicas e governamentais no que


diz respeito à pornografia e à prostituição. Em 1946, a
·prostituta e espiã Marthe Richard, então com quase ses-
senta anos, convenceu o governo francês a declarar ile-
gais as maisons closes13, o que acabou com a rede estatal
de bordéis criada na França no século XIX. Em 1953, Hugh
Hefner fundou a Playboy, primeira revista pornô norte-
-americana vendida em bancas de jornal. Na capa, uma
íõfografra de Marilyn Monroe, a grande atração da edição
inâugural. Em 1959, Hefner transformou uma antiga casa
'cte Chicago na Mansão Playboy. O lugar foi promovido
pela própria revista e em anúncios de televisão como
um "palácio de amor" com 32 quartos, tornando-se rapi-
. 1 . ~\.,. .
d amente a mais popu ar utop1~~U:Jt1ca no_rt;o.ymencana·.
Em 1972, Gerard Damian~:g àê:iuz Ga~e,,o)1i.aprofunda.
Estrelado por Linda'(L0'velace, ºeln °ga-metragem foi
amplamente co1{:JRtlá.lizado nS9'::Es~9-os Unidosé}-\;e tor-
nou um dos:jl.Unes mais~~r~ê,\di~odos osJt' i~~ arre-
cadand0.--~\is de_ 6~:e \%i1het~ de dóla,r,.e'.sl~A p·a1.~ir5desse
\\.~ \ -.J .;.ev· as. . ,.
momento, a pr&d.fiç,f\j'Ó~ filmes p.g~0s .i~pilddi\1,f e trmta
1 ançamera C9·c,.,_S 1 ,,, · ~ 0 :1 , """ , -C
~ c a~ estmos e.m,\1'ou% OJpa1~{f'.lm ,J.,Cii:i)'QJ para
..
0o. 9--v ,'?l.'-
mais,@e 2.500 novos tít{tllç)s em$Je97'<..,e,0'='' e" O
\ 0-'"t'
Se por anos a p,Glr-ÚÓ"gra-S'iltra, l3 ecr. 1il~ia visual domi-
' . . . . . . . . a,'v' <;,"!:!,", ~e~
nante dmg1da~o 120-tJ;b màs~ul
·· . . j c.\."O ~,.. ,..._0,UJ O
n6°cfe forma a controlar
. , .
sua reaçaó,s_ex1tl!_ ã;l~ 'duránte G>S)'ê'nos 1950 a mdustna farma-
(O-' . ' ;<;ló'::! ;,,,\\C.Í
cêutica proc'%ri~ ,@rrr<Jts~él:e desepcadear ereção e resposta
~~! usando prór~ses cirúrgicas e químicas. Em 1974,
o soviético VictÓr Konstantinovich Kalnberz patenteou o

13 Mclisons closes eram os bordéis e casas de prostituição francesas


que tinham existência legalizada e fiscalização sanitária por parte do
governo desde 1801,. [N.T.]

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 31
primeiro implante peniano à base de varetas ele plástico
de polietileno corno tratamento contra a falta de ereção.
criando um pênis permanentemente er~!_o. Entretanto, este~
implantes foram abandonados em benefíciode alternativ~s
químicas por serem considerados "fisicamente .-;:t, . ' desconfor-

't . táveí s " e "emocionalmente desconcertantes".Jim 1984, Tom


<..e' r
\!) I F. Lue, Emil A. Tanaghoy e Richard A. Schmidt implantaram

II um "marca-passo sexual" no pénis de um paciente. A enge-


nhoca era um sistema de eletrodos que, inserido próximo
à próstata, permitia desencadear uma ereção por controle
remoto. Mais tarde, a molécula de sildenafil (comercializida
pelos laboratórios Pfizer como Jia~I&e,m 1988) se tornará o
tratamento químico para "@ÍJ.l.A.Ç~~jtjJ". '
Durante a Gue~r-ª __Fria, !_~<=ntcas_psicgtrópicas desenvol-
_vidas- pelas forças armadas f?Eªe~tendidas} pop~!9ç~o
civil para uso médico e r~q,E; l'~O. N~ à,f§ada de 1950, a
Agência Central de I~ttligência do6\.: e ados Unidos (crA)
. / ,' ) . ...,<.
realizou uma s~"'t>:, e exper~J&.entos com eletrochoque
e drogas flS." Cií:S'd'élicas e al- 8~~.enas co1:1,<c,pàtte de um
progra -.a' e " 1 ava§e:w,r ,.. e<:"- s\ l", mte
ce~eDra . i"-ªt@flG
.r,og--a , . ,;. mi·1 itar
· e
\.., l ~nS' O,.. lo . . ,;~O .s: ~ , . ,
t ortura psico Ó~<;;:a. O o0J5"tlV2 erq'1,Q:~@{'!;Ca:rJ:_,§emç~ ~-
. A\\d O '..J·fi d' ~':" • .;_,o . id d d
,..1P.~<::~s ca~~~ou1 ca!&l'::e~~~~te ~J!l~J~4ty1 a. e ~
,rn~8 ~lro~ m_c1~m~o~:?~(J?;r&:fs'~pe]~e#,\J;l\sledade,!9~-
,tura,. agitação, ir\~ªfü1~q-'l31,e,;. {~~-!~ª'?~~~ual ou me_do. 1'
/ Ao mesmo tc~_.r,~o QJii°:>Eh Lílly (em Indiana,
6(1J.-sSlab@J(a'.l'.or
nos Esta:d"@\eurr 0.i\) ,cs:à'tli'é eí - ~}zaram a molécula de meta-
0,\"- . .,.(>; v ' (\ .,,, . , , .
d ona (o
V
m'á1s eeJfl-P es,:z.<Ros op1aceos) como analges1co e
secobarbital, %.m\b'à.q itúríco com propriedades anestési-
cas, sedativas e hipnóticas concebido para o tratamento

Sobre o uso de produtos químicos para fins militares durante os


11,
anos da Guerra Fria, ver Naomí Klein, "The Torture Lab", in The Schoá
Doctrine. NewYork: Penguin, 2007, pp. 25-48.

32 TESTO JUNKIE
de epilepsia e insônia e como anestesia de curta duração.
Mais conhecido como "a pílula vermelha" ou simplesmente
dali, o secobarbita1 transfo:n!1.Q1:1:~W urg-ª__çt_a_s_drQgàâ.._<Jê-
cultura unq.erground nos anos 1960.15 Em 1977, o estado
~~~~~;·ica~~ d~ ·ol~l~ho~;· i~tr~d~~a primeira inj;ção
J~}ase deu~ composto de barbítúncos p~reçid9~~µi
,a "12gu~~ vermelha" a fim de aplicar a pena de morte."
A corrida espacial militar da Guerra Fria também foi
ocasião para a produção de uma nova forma de corporali-
zação tecnológica. No início da década de 1960, Manfred
E. Cleynes e Natha~ s. Kline utilizaram pela primeira vez
,::: termo,.,~Lbor~1;1,;l)ara
~ se referir a um organismo t_~q1ologi-
.~~mente suplementado para viver em um meio ambiente
'ext,:;_aterre§'.tre e °.P~~ar como f~§:i\tema _hiBJeostático
integrado inconsciente"." Eles fizeram ex;pg simentos com
L ·- • t>,V ~V ::>
um rato de laboratórioR&plantand~@ animal uma pró-
tese osmotica, · que s,@::arrastava
,,...?\ - e~ b o ciib ernet1t?
?:i§ID , · 0 Para
além do rat~fQJ ermo cibê1_r-g%e~(~':meouu~êE'C?ngição
tecno-or~ · ica, uma55;,p°?ci€_:,"'d'~\oft ma\h,íl1!~ \(R>-:à:ºausar
1

o termo de BurrnJ;i.~9i.s) @'if->organism@~m tp'ele\&1°'ê1:hca"


. . e\\x: '2!v. -:~e 1:c\\' 'ô..\ .
(para ut1hza,,5'fils-t~i;:~e>s de Ha~#ucl~e, & C1~f)-sub ~ etida
00s Y 'QO 'õ-\S '(('\ 0,\'\
-<....o 0-'õ-~ '{("- o..v~ i,f P~ '\).e" o
15 A metadona transfo&4b'-se, \\;,'©'gano,.;,lj'70,i\q,'Í)atamentobásico de
,.
substituição à deperí~nc:i'Ô(ilà lieroíR}~ohct'-lsso, ver: Tom Carnwath e
°' ~ ,. :,\."
Ian Smit· h , Me-r:orri
~ Ci;ntmy. l';Lvv~Yor '~s ·1 <tFcmt
'""u 1 d , ,
v.., '='.., n"' o= e ge, 2002, pp. L10-L1L
161Jir1...:Ell'.?.<lo:i§Í<fü."<nat.áçh_'avía{s'i~outilizado no chamado programa
,Ac~ion T4 para "hrg:\~\e l\~_i)~" da Alemanha nazista, que submeteu
à eutanásia entre 75 m~ e 100 mil pessoas com deficiências físicas
~U: psíquic_as. Tal programa foi abandonado mais tarde devido ao alto
'êusto ·fa~macológico, sendo substituído pela câmara de gás ou pela
morte por inanição.
17 Martin E. Clynes e Natnan S. Kline, "Cyborgs and space", Astronautics.
Setembro de 1960
18 Williams. Burroughs, The Soft Machine, New York: ülympia Press, 1961.

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 33

j
a novas formas de controle político, mas também capa~
de desenvolver novas formas de resistência. Na mesma
época, como parte de um programa de pesquisas milita,
res, é criada a Arpanet, antecessora da internet global, q
primeira "rede das redes" de computadores interligados
capazes de transmitir informação uns aos outros.
Por outro lado, os procedimentos cirúrgicos desenvol.
vidos para o tratamento das gueules cassées da Primeira
Guerra Mundial e as técnicas de reconstrução de pele
especialmente inventadas para o tratamento das vítimas da
bomba nuclear serão transformadas, nas décadas de 1950
e 1960, em cirurgias cosméticas e sexuais.19 Em resposta
à ameaça induzida pelo nazismo e pela retórica racista
segundo a qual diferenças religiosas ou raciais podem ser
detectadas por meio de caracte.{~icas anatômicas, a "des-
circuncisão", ou seja, a recoç@%'ução art{if:j.QÍàl do prepúcio
do pems, trans f orm.{"Ô~,em
A • t,,_\\ .J Q,Oi.. •
uma fj3.Scirurgias estetícas
, •
mais praticadas ~&'Estados l.jiel.z?°s.20 Ao mesm~ tempo, o
lifting facial ~á?~ersas i*e ~~en:(ê5~sde cir gtfa0plástica se
~ \_() , . c:.,e d ('\\ '\
t rans fº{.Wªm em tecJZ!ÍfCas~ •e,consum~ ~ffi-rn~~Sc:rpara uma
·~ <f ·.s:f?
nova classe mia!J~Pkg~arhol 1eJStogtÍffi qióm11te uma
operaçao - d:fal~·c1~ acia· l , fazo.rJo:o geri, -e,<,;, ·~oaco
~©.)JDTOl(, 0 pJ) um d os
9
obj~eis')9i'opop da soci~Jlº e i_~tn~irnt.:I.o0~
E . , . "" º cn\G . , ,1e . .
/
nquanto lSSO,\,Q)Cp a0100 \.\(!il'ldt.~a,.r VISCOSO e sernir-
, 'd . ,..,,;y. ~1. e;; r,,\e ,1.,'Õ . .
ng1 o, 1mperl>lfea~~~ er~_rna ~ ~etncamente resistente,
·,,i~c\.e
pro d uz1u6).:.por-x.:. x o ~ oe artiífi eia. l d e a, tomos d e
mar9·,élpa§a·çao
3,,.,~u d
--~<;0'
car b ono em lê:ln@'§S c~ie1as :<e ~- e mo 1 ecu
' l as d e compostos
e \o\.º

19 Martin Monestier, Les geules cassues. Les medecins de l'impossible


1914-18.Paris: Cherche Midi, 2009.
20 Sander L. Gilman, "Decircumcision: The First Aesthetic Surgery", in
Modem Iudaism 17, 3 (1997): 201-210. Maxell Matz, Evolution of Plastic
Surgery. NewYork: Froben Press, 1946, pp. 287-289.

34 TESTO JUNKIE
orgamcos derivados do petróleo, cuja queima é alta-
mente poluente - teve sua utilização generalizada na
fabricação de objetos da vida cotidiana. DuPont, pioneiro
no desenvolvimento de plásticos a partir da década de
1930, também estava implicado na pesquisa nuclear do
projeto Manhattan.21 Juntamente com o plástico, vemos
a exponencial multiplicação da produção de elementos
transurânicos (com número atômico de toxicidade maior
que 92 - o número atômico do urânio), que se transfor-
mam em material utilizado pelo setor civil, incluindo o
plutônio, que havia sido utilizado como combustível
nuclear em operações militares durante a Segunda Guerra
Mundial." O nível de toxicidade dos elementos transurâ-
nicos ultrapassa o de qualquer ou~o elemento terrestre,
gerando uma nova forma de@~nerabili{tá:'cYe da vida.
eeu1 1 ose, po 1·iamiida, Rº 1e,s· ·, 0' er, acn 'l. 1q_re~e.o; .propi ·1 eno, span-
dex etc., todos ess€...._~1teríaís pc ~iam a ser utilizados
. 1 C\\;, - A,O. ~ o, · 0 r,\>
igua mente ~Gmpo e n~--ú)q~~,uma. coiitumo em
r./~s) .
massa u-n!léISt1co _,e 00.m
d e fí. m:ê'as "' içoes . - mace 8 . ,;i,C,
't', 1a1s.,µe--uma
1" e, \ 1() ' 0'-' ~"U
transformação .ec0~J@gici3,~m larga es~1Í e ç, e reé}1Lta na
. _ ~ A\'\ ..r» \; , . o _.;<\ ~ ~~ , id
d estruíçao . e.recu ,:,,GS energet1c<"is;' no0,(';;0nsumv ram o e
, - . o · à."' '!,: ·' ev- o<:}·
em gran@~polmçao. O Tras~,U)Tortefo.uma lírtass0,\:filutuante
."'\0,....1, d q,_O, rJ ô\)" ..J ,.Q?; .-.<. O 1 ali d
d e l lXO p astico O t,affiân'110'Õ'C0 estÕ~p;uoo;;eX8S, OC iza a
,, ,;;>,\ ,..\'!;. \C, . b d
ao norte d o oc~~ei. ~icmcçie'Grno;efase a maior o ra e
. ,.. 'Õ. 1-.:·~\~' , ·1 . ' ~J
arqmtetura-marm.riéil uo {J~C o @fl. -
'iÇ,.;, 'Õ'0-S' e~'õ- · !i,,f.P~ -
~ Â\ç' :ç,"í}
e: ~o<:f>
21 Pap A.Ndiaye, Nyloii.-2nd Bombs: DuPont and the March of Modem
America. Baltimore: John Hopkins University, 2006.
22 Donna J. Haraway, ModesL Witness@Second_Millennium.
FemaleMan©Meets_ OncoJvlouse "': Feminism cmd Technoscience. New
York:Routledge, 1997, p. 51,.
23 Susan Freinkel. Plastíc A Toxic Love Story Boston: Houghton Mifflin
Harcourt, 2011.

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 35
Somos confrontados com um novo tipo de capita-
lismo: quente, psicotrópico e punk. Essas transformações
recentes impõem um conjunto de dispositivos rnicropro-
téticos de controle da subjetividade por meio de novos
protocolos técnicos biomoleculares e multimídia. Nossa
economia mundial depende da produção e circulação
'intércànectada de centenas de toneladas de esteróídês
sintéticos e órgãos, fluidos e células (tecnossangÚe, teé-
noesperma, tecno-óvulo etc.) tecnicamente modifica-
dos; depende da difusão global de um fluxo de imagens
·pornográficas; depende da elaboração e distribuição
· de novas variedades de psicotrópicos sintéticos legâ\s
e ilegais (bromazeparn, Special K, Viagra, speed, crist'al,
Prozac, ecstasy, poppers, heroína};. depende do tluiõâê
,sinais e circuitos digitais d~pformação; depende~e
que todo o planeta se ren~a:~ uma fo{~â de arquitetura
.. · · r~)d .o~ -
urbana em que mi:;~@p1ba es mi~er:aveis convivem com
altas con:entr~~~s de_ c~Rg'ª12i~ual.24 - 0-
, Esses saó)~ algunsef>Nl&l'1cii\.c!,GJ es do SU{.§i.• ento de um
. ~Y. d 'i1 1~D\1 .d.,,,t: °'nS . d
.regimt aos-rn ._usJtu~\~~ova e mi _ ~ê;tlE,? -~e-a partir. e
agora chama;/li~i[rf:J,bco~5R. } .te{@.'Ô"se refere
.aos pro.@-=g2°os,~'e govern ,-3 Bi01;r\tc}f'ec1;)f-f\fár.maco-) e
·A '::i , "· -oO.. 9..\':>' - (\ '. {l.,u
,sem,rs ico-tecruco (-":?.orno) , a-sub11etfv1diae sexual, dos
. -~ . ((\ . ,0-' e'
/ quais a Pílula e.. _aOJJla,.g'ff:oy z~~ê:lR~ \sultados paradig-
a socie. da de cíenti . ífi ca e
I

ma, tiicos. Ern::war;;i,-; ~5?- ,.~'3


.1.íl'l'qSu~ a:1ze<nn'
lic\.o ,u.ac:i
• 'a\b -(\º . ,.
-, &,V:.'
coloma: ;ao ,~ef<;luli~o1:.oc,~p-s)vetores econom1cos do regime
o'v--A • •

"._°<; Ô ,-.'f,fÍJ <' \U - . , . , . , fi 1


farmacopor ogrn. c · ., ermanecerao mvisiveis ate o na
da Segunda Gu~?}~ Mundial. Ini~ialmente escondidos
sob a aparência da economia fordista, eles se revelarão

2L;Ver Mike Davis, "Planet of Slums" New Left Review 26, Abril-Março
de 200L;. [Ed. bras.: "Planeta de favelas", in Contragolpes: seleção de arti-
gos da New Left Review, org. Emir Sader. São Paulo: Boitempo, 2006].

TESTO JUNKIE
na década de 1970 com o colapso gradual do sistema de
produção criado por Henry Ford.
Durante a segunda metade do século xx, os mecanismos
do regime farmacopornográfico serão materializados nos
campos da psicologia, da sexologia e da endocrinologia. Se
a ciência alcançou o lugar hegemónico como discurso e
prática na nossa cultura, isso se deve, como notaram Ian
Hacking,25 Steve Woolgar e Bruno Latour,26 a seu funcio-
namento como aparato discursivo-material da produção
físico-corpórea. A tecnociência estabeleceu sua autori-
dade material transformando os conceitos de psiquismo,
libido, consciência, feminilidade, masculinidade, heteros-
sexualidade, homossexualidade, intersexualidade e tran-
sexualida~e ~m rea,lid~des ta~g~'-ej~'-ques~,{1is~ní:e~tam
em substancias quimicas e ,,ei-@l1oculas ci~erc1ahzave1s
em corpos, em biótipos-n~anos, e~l:Sé\is tecnológicos
genid os pe 1 as rnu,l·.1aác10na1s y\.' is f a,r:r , e aceut1cas. o sucesso
·º"'
A •

. / . V . / ,,;,.O ,..Q,'6 A ~ '

da mdustna "ec oc1ent1ficlreônte,~poranea C<:\DSl..stb em


't" ~ f ..-\ nossa d e fessj;!G f') 1·
rans armar e{:,_ em ,,,Qi\p rozac. n.0.ssa ~,)-Z..: mísfsicu .1n1· -
--·· 'V • o , V) V . ~ - \T'-
dade em testoste[ê> a,vi@'ssa ereção e. ,,·vii;\g ã>, n~js~'fer-
'-, -. Ô:'. \ \?,; v , c;.0\ f?J('.' . ?,,(\. .
tilidade ou estenlit\s<'le em Pílu ~nossé;!),al"ds gw1.-tnteJap1a,
,_ ' '.::i v ·- ,: ("\ C, \ <{\~ \.;.(.}
~em ij'Çeja possível sabe- ~ITe .'re!11J{Ymeü3,)a depres-
z; p . n"õ ..,(\ o;: - :,. G . o,",,
sao ou o rozac, o V~gr:a ou?Ja,eref.9º· a t~.testerona ou a
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·,]'. ue, a triterapia ou
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. .
a aids. Est,.w"e~' bntk E;-rt<ifrni ti® é um dos mecanismos
""-· vf-1;' '::)' O.º . .
do regime fat'! à'coJi&rmgrâ - co.
. A sociedade G'~ft.m':f~iãnea é habitada por subjetivida-
d~s
_,__
toxicopornogrãficas ...,._ que se definem pela substância

25 Ian Hacking. Representing and intervening Introductory Topics in the


philosophy of natural science Cambridge: Cambridge University Press, 1983
26 Bruno Latour e Steve Woolgar, La vie de laboratoire. La construction
des faits scientifiques. Paris: La Découverte, 1979.

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 37
Somos confrontados com um novo tipo de capita-
lismo: quente, psicotrópico e punk. Essas transformações
recentes impõem um conjunto de dispositivos micropro-
téticos de controle da subjetividade por meio de novos
protocolos técnicos biomoleculares e multimídia. Nossa
economia mundial depende da produção e circulaçãÓ
'iri.térconectada-de centenas de toneladas de esteroides
sintéticos e órgãos, fluidos e células (tecnossangue, te~-
noesperma, tecno-óvulo etc.) tecnicamente modifica-
dos; depende da difusão global de um fluxo de imagens
'pornográficas; depende da elaboração e distribuição
, de novas variedades de psicotrópicos sintéticos legais
e ilegais (bromazepam, Special K, Viagra, speed, cristal,
Prozac, ecstasy, poppers, heroína); depende do fluxô cfé
sinais e circuitos digitais d~tnformação; depe~dede
que todo o planeta se rendPJ uma for~2 e arquitetura
. · tD' ~eYl
urbana em que megé(gíâades misJ?'ro.veis convivem com
_..c..\:\J . lelY
a1 tas concentra{Ç,Q€S ue cap ts l, s:,exual.21• 0,
/ E sses Sit(l)J>O - ,... Ç) a1 guns rn~rcól.~mes . ,JJ ~DO,'ô . d o sure-!]Jl'iento ~'"' Q d e UJJl
~ . r_\,V . ..0S1::1 ·-"i \)1 . . , A\)P-'' \0~ · d
_reg1m\.-'f>os-md.~st;; ia~·c.§'l§oal e m:d1~ti'eo (J:1;1~ aJartir e
agora chamaF:éii~rafJcopornog,iíá~~o @· Nffl'@ se refere
!;;i Q 'ffi~ . - ,o.,,}) \e\ 0-'
.aos pro.cêlssosr&e govern r iêbi'odt.@lecul>á-t (fáfdllaco-) e
. AO"-:J , " '09 z/5 . '° . \'.' . ~"-'"'
semtot1co-tecnico (-n . no) diit su-J.etlv1dá1'Ie sexual, dos
• ' f'' - :(1:\ =, " " .\.~'-{ .
quais a Pílula eJ,_$.~{}:>tqyJfôy e~i9~<?\~ 'esultados paradig-
, ·
matices. E , lB'~ô;; r.à.O::,
ora\~wrq 1,1a socie. da de cíenti
ç-,,\1 ó.,\Õ
e;ajaize~ . ífi ca . e
,:::.,;:,. ~ ,..,J.'i. e.o ~ . d .
co l onia1(ero'(Õ" sé-<0 lorJ0I~
:cu-.;, ,, ,\"
,() · :vetores econom1cos o regime
.
farmacopoln@lir~~q; -~rmanecer~~ invisíveis até o ~nal
da Segunda Gue ra Mundial. Imc1almente escondidos
sob a aparência da economia fordista, eles se revelarão

24 Ver Mike Davis, "Planet of Slums", New Left Review 26, Abril-Março
de 2004. (Ed. bras.: "Planeta de favelas", in Contragolpes: seleção de arti-
gos da New Left Review, org. Emir Sader. São Paulo: Boitempo, 2006].

TESTO JUNKIE
na década de 1970 com o colapso gradual do sistema de
produção criado por Henry Ford.
Durante a segunda metade do século xx, os mecanismos
do regime farmacopornográfico serão materializados nos
campos da psicologia, da sexologia e da endocrinologia. Se
a ciência alcançou o lugar hegemónico como discurso e
prática na nossa cultura, isso se deve, como notaram Ian
Hacking,25 Steve Woolgar e Bruno Latour." a seu funcio-
namento como aparato discursivo-material da produção
físico-corpórea. A tecnociência estabeleceu sua autori-
dade material transformando os conceitos de psiquismo,
libido, consciência, feminilidade, masculinidade, heteros-
sexualidade, homossexualidade, intersexualidade e tran-
sexualidade em realidades tangíveis, que se manifestam
em substâncias químicas e mo~~crlas comeri;cializáveis
em corpos, em biótipos hu~iS?os, em bJ!}~?ecnológicos
geridos pelas multina'~Q~ais farm~t~~ticas. O sucesso
da indústria tec:n~1êiitíftca rfüme'Fnporânea ;onsi.ste em
· .·. · V' 1f1" 910· . AOu ..
transforma\r--rr"'assa deprfê,§'ã'8r. ~1 . .. 'rrozac,
· n?wa>maog_&:uhrn -
~ V e-.., . \'v . fà'v ".:
dade ell,!.: estostero a~ n<t,sfa ereção el7l-'i~iagr-a~ · ossa fer-
tilidade ou es\):tdqfüad~~r; Pílula, o(s~\~iidÇ~~\titi:~~apia,
,..sem que se.ia ,· ~possive ~\01 sa b er -@e'm , Gl ':! 1,Lem ~cs pr,.r1peno1ca-uepres-
. ,,,,rz,; C..J
·são
·- '<""' oº":!Prozac, 'o Viag:e_a')ou '() ar:.f}feç-cgO~
9.,.,._. \' \'\.\
tee;t&; erona ou a
mascu 1 mi . ida d e, a n'íl"I: ,:;, · (7\,'{'!- ii.l\term!.l:a
<1'\l'ltl a 0 -a
n0 . .J. ;Se a triterapia . .
ou
...__ ',)..\) '::> ) . ló" 'j3:' '
~- aids. Este W,EtQOafJ ºer&J~afv.é\'é um dos mecanismos
· .,. - CJ;°'!/,_1<. ('\' ,._e;_ , ~ Q
d o reg1me.:rarR'l,'âco%0.Jlíl?~-a:hco.
. A soeis• d~'(~aclee~9rate. ":)'f., ,r;,."\A
':!ileiranea e, h abíita d a por subijenvi • id a-
des toxicopornog\-'H'i:cas que se definem pela substância
'
25 Ian Hacking, Representing and intervening. Introductory Topics in the
philosophy of natural science. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
26 Bruno Latour e Steve Woolgar, La vie de laborcitoire. La construction
des faits scientifiques. Paris: La Découverte, 1979.

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 37
(ou substâncias) que abastece seu metabolísmo. pelas pró-
;;~~s-~ibernéticas e vários tipos dê clese1õs farmaC<?P9:S..12:~-
'gráficos queorientam as ações dos sujeitose por mei? ~os
quais eles se transformam em agentes. Ãssim, falaremos
de sujeitos-Prozac, sujeitos-cannabis, sujeitos-cocaína,
sujeitos-álcool, sujeitos-ritalina, sujeitos-cortisona, sujei-
tos-silicone, sujeitos-heterovaginais, sujeitos-dupla-pene-
tração, sujeitos-Viagra, sujeitos-dinheiro ...
Não há nada a ser descoberto na natureza, não há
segredo escondido. Vivemos na hipermodernidade punk:
já não se trata de revelar a verdade oculta na natureza,
e sim da necessidadé de explicitar os processos cultu-
rais, políticos e tecnológicos por meio dos quais o corpo,
enquanto artefato, adquire um status natural. O onco-
mouse, 27 um rato de laboratór:i.9 desenhado biotecno-
logicamente para portar ,um~~ne cani§ê,F-ígeno, devora
Hei'd egger. Buffy, a v.~allJ.' ~\},-1-pnatelev.1:J1wa. ~ mutante, mata a
vampira · d e S 1mo~ · ','\ e Beamt91}.o\ "0 d i ld o, uma extensao-
. , . d ,.,...,_\~ AO a0.d
sintetíca ºêl~º para P\0ftü:'zi-bjt-a'zere id\t,tio:a e, come
çi,

/ o pau dt.'It'1ccoSifü@tfüe ã~\h:á nada aciri'Jscf.Jl,ií no sexo


\.r º':, . - ' .. .,:.r§º '(\
OU na iuentidç:1cle\sex1~}iJ~lhão háse:g-1eapSJê"SC08'=Dl·i'dos;não
há ínteríor-':;-.R'teiàlê2ie sob{e@%~~Q~ ~º· é ,,_g~~evelaçã~;
- . ,:;,V ~ rfS ., ·~~ . <'í.\'1::' "-\O .
é s~~§ügn. O Biocap1.·t,l}lsrr1pffà.rr3êJtGopp~ográfico não
\: . . 00a . r{\ ~ .,.,.,G . ,:e; - . ,
pn?ciuz coisos, \~~IJil. 1 ~~s ~~tJ'à:v1~~orga_os vivos, sm~-
bolos, desejos,~~ -e\i..c;:0ê:ssquínfficas<A\~ondíções de alma. Em
, \__e "' ~'t''O · o'::!· r,-o"' · .,. ·
biotecn~g1~,~<po:r;p;:,<0i9m_.a,11icç1_çãonão há objeto a ser
pro duziid o.-....~ \l-a'rmacopornogra'fi coe , a znvençao
,e'±' t~hª
v 1l;\lg:oc1~' . -
de um sujeito ~, eí;iG.)\~guída, sua reprodução global.

27 Donna J. Haraway, "When Man is on the menu" in Jonathan Crary e


Sanford K Winter (eds.), Incorporations (Zone 6). New York: Zone Books,
1992, pp. 38-L;3.

TESTO JUNKIE
COOPERAÇÃO MASTURBATÓRIA

Os teóricos do pós-íordismo (Vima, Hardt, Negri, Corsani,


Mar~z.zr·Moüliêr-Boutang etc.) sugeriram' que o processo
=produtivodo capitalismo atual tem como matéria-prima o
\âl:i'eii-a-info~maçâo, a comunicação e as relações sociais."
··Para a teoria eco~ômica mais recente, o motor da produção
já não está nas empresas, e sim "na sociedade em seu con-
junto, na qualidade da população, na cooperação, nas con-
venções, nos treinamentos, nas formas de organização que
híbridizam o mercado, a empresa e a sociedade"," Negri
e Hardt falam em "produção biopolítica" - para utilizar a
noção c~lt 2fe Foucault - ou "capitalismo cognitivo" para
-~~rrÍeraras complexas modalida~ atuais de produção
~_cipjtalista que ocultam tant~fjí3~dução·ârsimbolos, de
~i,~guagem, de informa~~J quanto t,\~6dução de afe-
tos"." Eles denomiRafnO.trabalho irópolítico" as formas
·ã~""pr~dução lig$!!~f
·- Ü ~
à
assiswhl:cra"'IDªº cuid~do. e;à\poral,
\(!,"J <õU
\,,<ç.\Q ~e"='e <o"C)\ ~d:,.V.--,; e'º,;
·1··~('\'::l
28Al gumas d as al:}a~~· S'qa~1n ·""'º ,· \\' .
· · ·°'nuentes so b rt=c.cDtrani,erma0Q.-es e..,._atuais
·
da sociedade il:W~~riaM~.d'ô'capitalísm~ eleva· -~<;f'PªL"'~~e.g próprio
trabalhiã'.@ 2s seg&~es MauriJi@<jf?a;z~1;}t~:,.,"I.10f°ón~,IÍ!f)de. travai!
imm~t]nal la grande entreftJJ,~e'', Fu1,~t~ntjr:iê\.lrzy. <i'.'992; Antonella
eorsam,. «rvers
r ""\
un reno:1;,-wrtau r1,M'~ ,;...(\>.: li ,-\\).:
::e~~econtrr,ne .
Pº,.t:!Jqµe: anciens concepts
et innovation th~f,.'t~ueêtM'i:iltit~~e2,~ii&averade 2000; Antonio
Negri e Miebjgj' Ha3.dt~l.j1tl)9~e:g8&V'eet démocmtie a l'âge de l'em-
pire ParísXa{<t~'Rvelte~'bqi311,~hn Moulier-Boutang, Le capitalisme
cognitive: La nou'{!,l@~nl~itmnsformation. Paris: Amsterdam, 2007-
29 Yann Moulier-Boul?ng, "Eclats d'économie et bruits des Iuttss" in
Multitudes 2, Maio de 2000, p. 7- Ver também, neste mesmo número, o
artigo de Antonella Corsani "Vers un renouveau de l'économie politique"
30 Michael Hardt e Antonio Negri, Multitude.· guerre et démocratie a
l'âge de l'empire. [Ed. bras. Multidão: guerra e democracia na era do
Império, trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005]. Paris: 10-18,
DL, 2006, p. 135.

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 39
à proteção do outro e à criação das relações humanas,
;o trabalho "feminino'' de reprodução." ás relaçõês' a~
comunicação e ao intercâmbio de saberes e afetóslí..1âs
Lá maioria das análises e descrições desta nova forma de
produção são biopoliticamente interrompidas quando
chegam à cintura.32 - ,
E se, na realidade, os corpos insaciáveis da multidão,
seus paus, clitóris, ânus, harmónios e sinapses neurosse-
xuais; e se o desejo, a excitação, a sexualidade, a sedução
e o prazer da multidão fossem os motores de criação de
valor agregado na economia contemporânea? E se a coo-
peração fosse uma "cooperação masturbatória" e não a
simples cooperação de cérebros?
A indústria pornográfica é 1J_oje a grande pr~pulsora
da cibereconomia: há m is~ e'f>i' 5 milhãé<?de
".l)....'-'
sites adultos j

que podem ser acessar~!9\ em qu~éif"ü~i"ponto do planeta


Dos 16 bilhões dt0~ ares. çJ.nl@1t gerados pela indústria
1~
do sexo, bQil\Í))~teprové~ ,· 2tortais po n©1~ cada día,
U :('I" \'6v!F , V -r

\,«;,.<º .,._ese 'ô\\J\ ºº\)1,-v. e'ºs


31 Toni Negri ~\f1í'~f?:e1 t.it~~dt,Multitucfeç:,gR~erir?~;t,f;jJ.ç{fràtiea l'âge
d z· · · n, .· ~ \,, · · 'O' er'' · ",. \' · ·
e empg_r:fff1P· citel:9· _37; Cnst1,:ftMaréi._zz·, 'th~TZfslenc(})of Financial
C~15lif;m, trad. (nstm'; Leb'<!eva"3e\fasQ/2,~n'ds)~Gimsey New
Yorlf'Semiotext(e), 2011,f~~it:(0 O.."'~ ,i/P 0e'\
/ ' . p1staajnest&
. o.\'Õ. "''º .
32 A lgumas
.
\-.\º ,seüt1db&'íerar
,;,,.\~ .. (},U . 'ó' õ._V
à5~partir de reflexoes- como
,
Preca nas ª{fê. 'JJerzv~ \'A'.ni)v$uerit5üe-AntonelaCorsani. Ver tambem
PrecariafGJ.1a &,ff.i~ Açj§'ã,er-ir,@'{Jor los circuitos de la precariedad femi-
nina Madri\Tra~~;rn~s {J.,;'2'~~enos,zooz, Antonella Corsani, "Quelles
. (?, , "'Q-z., . l l , . d
sont l es con d mons 1\~cessa1res pour )'émergence de mu tip es rscits u
monde? Penser le revenu garanti à travers J'histoire des luttes des femmes
et de la théorie feministe", Multitudes 27, Inverno 2007; Antonella Corsani,
"Beyond the Myth of Woman: The Becoming Transfeminist of (Post-)
Marxisrn" trad. Timothy s. Murphy, SubStance tt112: Italiari Post-Worherist
Thought 36, n. 1, 2007, pp.106-138; e Linda McDowell, "Life without Father
and Ford: The New Gender Order of Post-Fordism", Transactions of the
Institute of British Geographers 16, n. 4, 1991, pp. 400-1;19.

TESTO JUNKIE
40
350 novos portais se abrem a um número exponen -
~i~lm~nte crescente de usuários. Se for verdade que a
'maioría desses sites pertence a multinacionais (Playboy,
"ffotvideõ, Dorcel, Hustler etc.), as páginas amadoras
consfifo.em o verdadeiro mercado emergente do pornô
"na rede. o modelo do emissor único foi ultrapassado em
19~96, quando Jennifer Kaye Ringley teve a iniciativa de
instalar em sua casa várias webcams que transmitiam em
tempo real, via internet, vídeos de sua vida cotidiana. Em
estilo documental, as JermiCams produzem uma crônica
audiovisual de suas vivências sexuais e cobram uma assi-
natura parecida com a de um canal de TV. Hoje em dia,
qualquer internauta que possui um corpo, umcomputa-
~or, uma câmer~ de vídeo ou ~~ciam, uma
mternet e uma conta bancár.i !1ode criar fl:> tbpria página
5onexão de
-- t',._\J ~e":J
}2.?rnô e acessar o ci?~rnércado d -~histria do sexo. O
corpo autopornog,p,,;\,fito emergim:;,I esperadamente como
\~'('- {)V ~ 00
uma nova fo ~aQa econonn nra!iâ'ial. O re0.:e:fhe acesso
g e'
de popuitcteies relatiy@,fueat~ empob~eyJlcl'a\,;;f~s meios
r,- ,:i:P · o"5
técnico}= de prod., çli'o&1e'4'iberporni:fe°r f;á)~abo:t@tí' pela
Ó'"' . \)"
primeira vez, t1.m,M"e:mopóli0Aati' enra& co:!.itfbl cl0 pelas
e' º '"' ~ :\,,~. ,
o- 'Oº ov s ,- ((\~ ~\
grand~c -ultinacionai9, -o.,nô ~Ípoj§:da au-~EÍado muro
d e B;'.'.$;er
º1· im, os pnme . . ros.,..,_?5-
a-usar rO. ~ ,. :,.,0
es ~'m@J©; ao foram ostra-
' \1
b a lh adores do ,fEl;XQ ,\ "' e.e\": ,e~ . ,0,,'":) '., . - .
"1,GJ -ant1g:0 'olci1<00 sovietico: entao vie-
12·'3 - \\Y oS · :\\'""
ramos d\'.: a~1-11na
:.,, '::)'
M1 0,r:r
Afriea 1-
. osl
ec::1 Índia . Confrontadas com
as estratégi@l.~~u1;&iílom@:~'~os trabalhadores do sexo as
'- (<;\V Q,' - '
multinacionais' po, D& se aliaram progressivamente a com-
1

panhias publicitárias, esperando atrair cibervisitantes ao


oferecer acesso gratuito a suas páginas.
A indústria do sexo não só é o mercado mais rentável
da internet: é também o modelo de rentabilidade máxima
do mercado cibernético global - só comparável à especu-
l.açio--fi~'anceira: investimento""mínimo, v"endã-direta-cto
-·· -

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 41
produto em tempo real e fo_r.~'.3-!º ~nic~~~é:Ç~_t?j~~,
ctiãtap~rã-;; ~~-ns-~~icfor. cada rortal cfa ir::!eme!.!~.c~fi,
gura e se ;rganiza de acordo com esta lógica mJS~?atór~~
'3ê consumo pornográfico. Se os analistas financeiros que
dirigem Google, eBay ou Facebook acompanham com
atenção as flutuações do mercado ciberpomô é porque
sabem que a indústria do sexo provê um modelo econô-
mica do mercado cibernético como um todo.
Se considerarmos que a indústria farmacêutica - ql}e
i~clul"a-extensã~ .legal dás ind6.strfãs-científié~s, médi~is
e cosméticas, bem como o tráfico de drogas consideradas
jJ~"gais -, a indústria pornográfica e a indústria da gu;;;~
'são os pilares do capitalismo pós-fordista, devemos s'ér
,capazesde dar um nome mais cru este trabalho imdte- a
-~ial. Vamo~ ~usar,. então0 . . Jlâborar_ !t1§eg_uirites hii::_ót~-~
ses: as matenas-pnrn, s~ o process . (produtivo atual sao a
;:::.i~a5:ã_°.' ~-ere{~Q ejacula%ã'Q~'6° prazer e o sen~?
de autossat1sRrçao, contr~1i='anipoten'té e tooi,1 destnuçao.
o verja,iQrt
- · 'C": . ·
motor. .,sl~,~i&TI;mo at.irdI~_o -.ontr~-Íe fir-
, 1:e c"'-w· O""' e, · ·-
'
mac\ipornogr. ·ª.~º aa, subjetividardh2
... .-e,''-v ç,,,\ o . .
clii-61, n1todutos são
. -(,'O' ' Q=-' . l"'O-'. . ·~-
a serotom10a, o\~Q-nossang .°' ~ os ~mórl~t"ivados, ates-
nS e' · , . Ae ~Q\ c;Y S· · · · ~
tosfx, ~n-a, os <à.nt1ac1dosca• co fi>S'oria(\'êlete~8esperma, os
/ ,.,... '·lt·, · :3· ªly 0 ""'°' · ·
· 5,
an atuoucos, o estrací.'iô o,t cnól'êi e 0;: cool e o tabaco a _,
' . . 10 \ . {>\' 'Q\'J,. . x;,- '
morfina, a m~Jma, ~'êàcaZB,\f, ºõ'@{Ãi os vivos, õ citrato de
sildenafi. rk,Vrag:r,àyr-~toGtêD ~omptrexõ material ~ virtual que
' ' ':, s'\'i\' -'2,.ÍJ:V sV ' • , •
F~.=.~!_c~. ~~'"' · ct~@,a~·t,esa_dos mentais e P~tc_o_ssomat1cC:,s
.?e exc1taça<e,-~\8'~ª.: entoe descarga, e,_também no co_~-
trole total e on-!_g,ot~nte .. Ness_as condições, o din~eiro ~e
~9rna uma substância psicotrópica significante e abstrata.
õ seJCÔ é o corôlârío do capitalismó-ê'dâ.guerr'â;"ô espelho
'da prc=;d~ção. O corpo-sexiial e·;i;iado- e o.sexo e tocfás a's
suas derivações semiótíco-técnicas são, daqui em diant,!2,
o principal recurso do capitalismo pós-fordista.

TESTO JUNKIE
42
Se a era dominada pela economia automobilística deno-
minou~s~- ,ifôrdí~i:nó··. chamaremos fàrmacÕporníirri'o a
'êst;·-;;:õ;~-~~onomia d~minada pela indústria dá pílula,
'pela lógica ma~t-i.i.rbatória da pornografia e pela cadeia de
~êxêifação-fnistraçâo em que se baseia. A indústria farrna-
éopofnügráfi.ca ê o ouro branco e viscoso, o pó cristalino
'do"éapítalismo biopolítico.
Hardt e Negri, relendo Marx, mostraram que "durante
os séculos XIX e xx a economia global se caracteriza pela
hegemonia do trabalho industrial, mesmo se, em termos
quantitativos, o trabalho industrial continua a ser menor
em comparação com outras formas de produção, como a
agricultura".33 O trabalho industrial torna-se hegemônico
em virtude do seu poder de transformação sobre qualquer
outra forma de produção. . ~p'b
0(:-.rç,...v
Da mesma forma, a p~~tção far ..J@~pornográfi.ca
define hoje uma nQl{Jira da eci;_,o'Íiibmia política mun-
diiai,1 nao ,a...'v
- por sUo,supremaoi. · o~ r,i. ·
q~tIDt1tat1va, . "0
,18,ês~porque
o controler.0 'roduçãôef1 a ·.'ritensific
Ç: \ vl""P tfc:;;"' \ o .""'!(la~a.os:>1\.fetos
\::,'
narcoss,exuais tGJrrirara ,,1!çse o moLe< ~o 1-a~ te.elas as
\\.~ \ \ V - ' (,'-'

outras forma~f, e ~bi';&ução. As;§.fu, ~$i1.!é,@ e\:fª-:r:maco-


, s . <q" d e __f;o .Gl, e -'1'º
pornogbª· eo 111.1-,r tra e º{111 · a,t<9:mo o l'l' xo0:'e capitais,
. .
desd,êJ~ biotecnologia~ Cgrá{-iÉf'.{~~\-'<f~.d·'"'s'?ia high-tech
da comunicaçã&.,S.,...J: u' se'\· 0' ';)..e~,;,0' 0,'õ" · ":)~
Neste pe iá'tlõ'd>e\~9cst&f0·€é, ü~ do corpo, a indústria
...::: S,~ ""<S'i.' P"' .s ,
farmacojgorncr,w·rafi.e"'-'q:mté'.:·1za e define um modo especi-
\tºº :,. J"':l ô-''
fico de proãu©ãioç,e:,. ,_'(S.'l} sumo, uma temporalização mas-
turbatória da vidét-,0uma estética virtual e alucinógena do
objeto vivo, uma arquitetura que transforma o espaço
interior em exterioridade e a cidade em interioridade e

33 Michael Hardt e Antonio Negri, Multitude, op. cit, PP· 133-134.

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 43
junkspace" por meio de dispositivos de autovigilância
imediata e difusão ultrarrápida de informação, um modo
contínuo de desejar e resistir, de consumir e destruir, de
evoluir e se extinguir.

POTENTIA GAUDENDI

Para compreender como e por que a sexualidade e o corpo,


o corpo excitável. irrompem no coração da ação política
e se tornam objetos de uma minuciosa gestão estatal e
industrial no final do século XIX, precisamos elaborar ini-
cialmente um novo conceito filosófico no domínio [arma-
copornográfico que seja equivalente ao conceito de força
de trabalho no domíni~-f3~et6nomi_a6@Jássica.J1efino a
Jl2SlS.Ae 2t!ntia{f,_alrl'de1J:c}i, o~;J~~~ _org~snüca", como
,ª ;potência (prer,tfrcrlil ou vgtµ2l) ~e exc~ção (total) d.e
um corp.o.35(Ê'ai v
potênci.ID~~V
uma capacidade)indetermi-
g~~ . o-- . . ·"'
nada; ·ã'Q> ·em gêner~~ , ão ,~iem femi i.i.1a emcmasculina,
' \ ' ~ {~ s ç.,'~ . ..... ... rP:,'°. . ~-
nem }mmana .
nem anunal ' nem v\: \r~ em
. ;;_~~ e,\ .., o:J, 'ínammada.
. o-' . Sua
orientação . :íã.'6 ~\dirige ao fê!l'.ilinill!J'ner,r;iÇ'à'o masculino·
rr,'=' . .\e . ., ·. ~, -, . 1§~' c., .
nemAç. nPiece%ferençat\1Gl::l. fr.9.nu}ira ,e~tr.Jíetêrossexua-
",1r.'I...J" .J "\'>º
..~;rr-.~> e homossexuãJ1,rua(,,le-©u n<i:J o· j1e :'.>o e sujeito:
• •
1 roace ~:6'.tre esta·
/ ,..,0,,~º \ ri,,0"\e'-'f..'O' i,rsó':.. - .
n.<..'-" . .l..Q . e ,..,0
i;.e v )\.. ,un'S· u'""
34 Ver a eiáeorarã0;1festa~ 5çao em ~em Koolhaas "Junl<space", October
v- <,\:5 ,....e,, ,· Ü" '
100, Primavrtt~cte ~ÇJQ',·P~!zp~190.
35 Trabalho aqur~ Pêf>t-Tu~a noção de "poder de agir ou força de exis-
tir" elaborada por Spinoza e derivada da noção grega de dynamis e de
seu correlato metafísico escolástico. Ver Baruch Spinoza, Éthique, trad.
Bernard Pautrat. Paris: Le Seuil, 1988 [Ed. bras. Ética, trad. GEE, coord.
Marilena Chauí. São Paulo : Edusp, 2015]; Gilles Deleuze, "Spinoza", lei-
tura, Université de Vincennes à Saint Denis, Université Paris 8, Paris, 2
de fevereiro, 1980 [Ed. bras. Espinosa: Filosofia prática, trad. Daniel Lins
e Fabien Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002].

TESTO JUNKIE
44
:potência também não sabe a diferença entre ser excitado,
excitar ou excitar-se com. Esta potência não privilegia
'urri órgão sobre outro, de modo que o pênis não possui
mais força orgásmica do que a vagina, do que o olho ou
aedo do pé. A força orgásmica é a soma da potencialidade
de excitação inerente a cada molécula material. .À força
'õrgâsmica não busca nenhuma resolução imediata, aspira
apenas à própria ex.tensão no espaço e no tempo, a tudo
e à todos, em todo lugar e a todo momento. É uma força
'dé transformação do mundo em prazer - "prazer com". A
potentia gaudendi reúne ao mesmo tempo todas as forças
somáticas e psíquicas, e reivindica todos os recursos bio-
químicos e estruturas da mente.
No capitalismo farmacopornográfico, a força de traba-
lho revelou seu verdadeiro s1tl15st??"·.ta:a fore , orgásmica,
:'\,V . Otr,
ou potentia gaudendi. Of"q e o capi8;!:hgino atual tenta
colocar para trabalhfrQ a pote111êi&~audendi, seja qual
}. s -f
f or a f orma em:§l_íl:le ,a._'(;, .
exista: se~n n·a"" arma f armaco -1\1,ogica
.
, G) V ,~ O- , A,.~- - \Ô,.V .
(uma molefjída consum1v:e .erum agente mJl' ·enap&,i.ie vai
,;i,c;.. ., d . ~li::.i V ., .rOIJ. ,ri\"ó
operar ME!'ntro º,\!.ffepo~clp · essoa q; e~ e56.íj,,aqso0~endo),
,·. .r , e_ "'("\fi !"\{\ ~ ~e; .,
na f arma de r©,p esentaçao pornogra ea ,urn'<§>1J.1sno semio-
. , , ' n'b e''"' ?:,.,,e .., o- - ,u rf.:, • , '
L L

tico-tecnióõ qu ode seré)Ol'lve.rst:t 'o ernS'1 adoSnumenco


~- X ~ ~' W
ou i.:fansferido para .rií'í'dia-,·dCíl@'Lta:1vlré1ew~iva ou telefô-
' .. . 'ê}' b 'Q,Y'
nica) ou na formB."1 e sg?i{íin©t,~exwei1'= uma entidade far-
Fu"'
:( ~. O.... · e,, sr:
macoporn~Ê'f'á c~\;viv o&om (§Ua orça orgásmica e seu
vo 1ume Gb . c..<:--
co 1 GC. ,os\'üserviço .rf, . d e um consumi idor por
determinado
a-1etrv.0
"'°".~ihº'º~Jl)é '3'"
acordo com um contrato mais ou
menos formal de ~nda de serviços sexuais).
O que caracteriza a potentia gaudendi não é apenas a
grande e impermanente maleabilidade, mas também, e,
sobretudo, a impossibilidade de ser possuída ou arma -
zenada. A potentia gaudendi, como fundamento energé-
tico do farmacopornismo, não se deixa materializar ou

A ERA FAHMACOPORNOGRÁFICA 45
r transformar em propriedade privada. Não só não consig\l
possuir ou reter a potentía gaudendi de outrem, como
também não consigo possuir ou reter aquela que aparsc«
como minha. A potentía gaudendi existe unicamente
como um evento, uma relação, uma prática ou um pro,
cesso evolucionário.
A força orgásmica é, ao mesmo tempo, a mais abstrata
e a mais material das forças de trabalho. É ínextricavel-
mente carnal e digital, viscosa e ainda representável errl
valores numéricos, uma maravilha fantasmagórica ou
molecular que pode ser transformada em capital.
O corpo pansexual vivo é o biaporto da força orgásrnica.
AssinÍ~~aci°póde ser reduzidô áiún-corpo pré~discursivo,
~:nemtem sêüs limites na envoltura carnal margeadâ-'peÍJ
pele. Esta vida não pode seqéntendida como um a·aa.o
biológico, já que não exi<StPÊora das 6{,'d:'é1 de prôduçâô e
-cülfüra que perten,€iJ'-Ytecnoc··~Pi~ia. Este corpo éuina
entidade tec~~i&:.i'multico](!:,é"~~âa que incor :3ra tecríôlo-
gia.35 Nelfl.\'Õtganismo ~.f?..°., á~uina'. foas,,õlgistema fluído,
. - ·,.-:\V· S (~1 · \)./,,.- ·9-r~
d 1spe~·, rede tec~ó'?orgámca-textu~l .· íti~§"i: Esta nova
.··· · ·. ·\O · ...,.,. C'l' S\'<il Ê>
condição d<o.,;.ç'G\:go.Jrórra a disé):nç"ão~oçle,o entre arte
I tradicio-n'àl pe
- · ·· · . A.O-:,_ .
~f mance ~ídia \@ê~ig,m,,lêi~rr,iúitetura. As
,oO . :,.~ . ~ ' . :\,.\-,., .
noz@'S tecmcas cirúr;~;í:?i:as es;f*1-ma-édló.rJiê'Js colocam em
. . ~. . Ú (': ',;;,,; e r,.\V ,,),lai . .
açao processo~,61.e cg:ti,s r 1ç6'esi_<:~6fomcas que cornbi -
nam reprg~é::r\ o&.~9 .gsµ ~tiN:5~0aerivadas do cinema e
~ e.,~ ,r(\>.. ...:. D . ~ '
d a arquíletmt._ áí=1~di~â?o m@l'elagem 3D , impressão
\,C:.6' \ ;1,u·" 1 ~\"-' .
3D
. .
etc.). ,
de acordo c~JJfi"~\é:!ff@í.os, as veias e os fluidos (tecnos-
sangue, tecnoesp~rma etc.), e as moléculas que são con-
vertidas em matéria-prima com que nossa CO/poreidade

36 Donna J. Haraway, Modest_ Witness, op. cit.


37 Ibid., Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. New
York: Routledge, 1990, p. 219

46 TESTOJUNKIE
.farmacopornográfica é manufaturada. Os corpos tecno-
lógicos não estão nem-ainda-vivos ou já-mortos: somos
metade fetos, metade zumbis. Assim, cada política de
resistência é uma política de monstro. Marshall McLuhan,
Buckminster Fuller e Norbert Wiener tinham uma intui-
ção sobre isso na década de 1950: as tecnologias da comu-
nicação funcionavam como uma extensão do corpo. Hoje
a situação parece muito mais complexa: o corpo individual
funciona como uma extensão das tecnologias globais de
comunicação. "Incorporação é uma prótese de significan-
te."38 Dito com os termos da fem'inista norte-americana
Dôrina [. Harawav, o corpo do século xxr é um sistema
fêcnóvivo: o resultado de uma implosão irreversível de
bifiáriõs modernos {feminino/masculino, animal/humano,
~~tureza/cultura). Daí que o J}fº ~io te3~Õ8':fida tenha
~~a®'=1rcaicoyara ~~f[E~~r-~re~-ª"~~-~~noya
!.~E:~'.:E<:J}g_g~~:)2~í ~{ili1a J. )-{ar<:1~fy,prefe_r}L.~.!.l(J.Ç~? de
"te_Q!2.ffiº1~9.Q_e~çp%oção fo~(a-_ ~1?;-51ª "bi'?.Pº~õ '\)Já não
se trata de_ ~~r_sobr~§Üt'l~t\tl0 poder i\J.i~·~$strar e
_ maxim~~~) .§(_ ~j~~~e,_C:ü~.._w/íi!Lia Fou~~-tJ~ngl;s~Ei ~:egper e
.~<?.!.!.!I.~f.~}{er.12i!® ~hF~um todo-:,ttcn~i1:vo C%,\1(fe!ado.38
No cH9 ·il'o em~que a e~ctliài.~ão,~-\Pecq_qffe odije:rcl.a, não
háa ,,,,.~ . ~ o V .,,z,.: ,,,..e.., av.
G@ 1pos vivos nem-.<20-rposCJ\)."lortcy;r-maS\
1 i:iresentes ou
.. \.' • (?!,.'(\ ~ . ' (\\ • - 0,.v ,
ausentes, presea_el2hs o. "Gv,i.-rt~51sOAS.zl,flil~gens, os vírus, os
programas4e?~omp,' Pasie;,·~Sg:gJ.rfos tecno-orgânicos, os
interna~Js,.,a$\~~(2..s'.,Í:i'uEl:- e'&pondem às linhas de sexo, as
\\º :,."'-'-' 0'' .
drogas e os ª%iim.~iR_e)f.!Prtos-vivos de laboratóno em que
estas substância~qão testadas, os embriões congelados,
as células-mãe, as moléculas de alcaloides ativos . . não
apresentam, na atual economia global, um valor enquanto

38 Dorma). Haraway, Simians, Cyborgs, and Wornen, op. cit.. p. 195.


39 Ibíd., pp. 204-230

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 47

,.
r "vivos" ou "mortos", mas apenas enquanto integráveis ou
não na bioeletrônica da excitação global. Haraway nos
lembra de que "as figuras do ciborgue - assim como a
semente do fim-do-milênio, o chip, o gene, a base de
dados, a bomba, o feto, a raça, o cérebro e o ecossistema -
descendem de implosões dos sujeitos e objetos, do natural
e do artificial"." Neste sentido, cada tecnocorpo, inclusive
um tecnocorpo morto, pode suscitar força orgásmica e,
portanto, ser portador de potência de produção de capi-
tal sexual. Esta força que se deixa transformar em capital
não reside no bios ou na soma, tal como se entende de
Aristóteles até Darwin, mas sim em tecnoeros, no corpo
tecnovivo encantado e sua potentia gaudendi. ~- con-
clusão: tanto a biopolítica (política de controle e produção
~'7õm?a~necropolít1<~j1.J€polÚica ts~?.ntrol:: ~o-
ctução da morte) funcionain.Ocomofarm copornopolíticas,
- . , . 1>,.V :\\::.~ . -
gestoes planetárias ~ potentia R(/: là~ndi.
.,..,,ç..\ h ...J e e-· . - .
O sexo, os assim e arnaeíos orgaos sexuais ,@ prazer, a
Q'' u= o;'õ •'-'"
impotênc~ alegria e6fh~J•l'-,são deslo-'tª' t'.Qs 1ª,ara o cen-
;'"). tã ,!?.- , .. 1\.1.JI .
t ro d ges ao t~~..9P!J . t:(ira assim q •, 'ê'--~J,;((!'SS'l'uii a e e
A\) oh::·1·d d d
\~ , ,..,,,. e. -O?) ·
lucro da forca <Grgasm.1ca entr Elrtl JOíi!,"' e QSJteoncos do
0'' . õ,.... ? .
pós-forgi®füo e .'1: vam inten@ssa rSs' no:--..1f,a'15alb,B" imaterial,
e""'" : 0 -''
t:,0---' " -ou
n 1il!al5alho cognitiv:dJ< , e> "u!í~~al~ôi%ã%'(,o'lJJetivável",'•no
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"t ra b a lh o a fetivQ,\· ,,,o4' 0, }}OS3,\es -~'<S" .éQJnco~.,:e:J


,"(\ "'0capita · 1·ismo farma-
(0\v ~n "e:> ~\: \).°' -· -
copornog:(nl::o, e$;1:amoiirltei;_e's'sados no trabalho sexual
' <". \: .f0\ ó.V . u . J

como u ·.P :( oe,êssoJ@e



.s1,1bi1êtivação • na possibilidade
'&'ó :o, • :<,.\"O J .
de
fazer do s Je,btr&-~W":}_r~servainterminável de ejaculaçªg
\O

40 Donna J. Haraway, Modest_ Witness, op. cit., p.12.


41 Paolo Virno, "La multitude comme subjectívité", in Grammaire de
la multitude: pour une ana/yse des formes de víe contemporaínes. Paris:
L'éclat, 2002, pp. 78-121.
42 Michael Hardt e Antonio Negri, Multitudes, op. cit, p. 134.

TESTO JUNKIE
48
planetária que pode ser transformada em abstração e
dados digitais - em capital. ' -
" Esta teoria da "força orgásmica" não deve ser lida atra-
vés de um prisma hegeliano paranoico ou de um prisma
utópico/distópico rousseauniano: o mercado não é um
poder externo que vem para expropriar, reprimir ou con-
trolar os instintos sexuais do indivíduo. Ao contrário,
somos confrontados com a mais depravada das situações
políticas: o corpo não conhece sua potentia gaudendi até
que não a coloquem para trabalhar.
A força orgásmica, enquanto força de trabalho, se viu
progressivamente regulada por um estrito controle tec-
nobiopolítico. O corpo sexual é produto de uma divisão
sexual da carne de acordo com a ·Q_Ual cada órgão édefi-
nidó pela sua função. Uma,. .s~~idade -á)tf:Fpre implica
' d b \\ Ô,~ . , '
um governo preciso ªuc:Dic,;aJ. mão, ân sJ~wi.gina. Ate recen-
temente, a relação~itre comg1;;p/9~nda e dependência
'
que uma . .\~
o capUia'tista ao Jli~ai ,~l •.J~
. ail!mr tam b'eµ1rg!9vernava
,...,\}.
. . 1 - e.O A e'~
a re açae,,entre generis.1 co ;;;euiua com~~reta ,39 ,entre o
iil:1.J --i~o: - S)c,
..
eiacu l'_J.
aetor. . e o f a~]·1-'1ta
0 dt:l~· sr- ua ejacu · 1,.$º
~ao. - - i,rr1.11 . •]·d a d e,
. (e' e' , , , . . di\ ~ ;'li ,., ,
longe de ser 11'ma,IJ.B ureza e a --uahd<a.êle da: orça orgas-
. 1'? r:f!..'~ :.. e - ,-: ~.o' ev ,~o:,..
mica&?ª tio pGB.e ser tra: S armada e <;:-aaona, em
.·<"(' d t ,. ,., .O n.0v b ll5m ' ~{. O.
ob jeto e roca econor ica rerh'trõt · 'iuo ..\.&oviamente um
. Q \'Ó'' '(0' . c:..U. '
corpo mascu\w;.:po s.;§,c~,B?~(e,~~"fato, já ocupa) uma
• - d ;'fg~ e GeVem1nüiía ,,:,ó! • • e, ' noorrerca ' o: d O d e tra b a lh O sexua 1
posiçao A

e , ComºX're - ,~<::! 'õ •' o'=' d •d


1e'(_\l!!J'w o, fye lã-::;,,a potencia orgasmica re uzi a
A > , •

a uma capacicl~ e de't,rabalho


O controle "'da tii~ªncia orgásmica (puissance) não ape-
nas define a diferença entre gêneros, a dicotomia femi-
nino/masculino, mas também governa, de modo mais
geral, a diferença tecnobiopolítica entre heterossexuali-
dade e homossexualidade. A restrição técnica da mastur-
bação e a invenção da homossexualidade corria patologia

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 49
r acompanham a constituição de um regime disciplinar no
cerne do qual a força órgásmica coletiva ê pcis'tâ para fri'-
'bã.Ihar em função dareproduçâo heterossexiialda espécie.
A heterossexualidade deve ser entendida corno têc:õ.olôgia
'de procriação politicamenté assistida. No éntanto,"âepôis
dos anos 1940, o corpo sexual moleêüfaiízaaõ·lõríntro-du-
Zidô na maquinaria do. capital e forçado a modificar suas
formas de produção. As condições biopolítícà.s mudam
drasticamente quando se-torna possível obter benefícios
da masturbação por meio do dispositivo pornográfico, e
quando passa a ser possível o emprego de técnicas para o
controle da reprodução sexual por métodos contraceptf-
yos e. de inseminação artificial. .
Se concordarmos com Ma;x que "a força de trabalho não
é o trabalho realmente realiza,·0!>~ ...sim o simples potencial
e habilidade para trabalh.&'",~ntão se,f~Pe~iso dizer que
qualquer humano ow.,iã'rlfmal,real~f?\irtual, feminino ou
mascu 1 mo, . poss,~ "" ...\esta pot neialidade c;_e t,
mastur~atona, , .
a
. Ílr,\)'d· I~ - 0,0,0 AôU 1
potentza 8ef-CJ1en i, o P,(~clêr •E\J&roduzir nr}?,1Bei; ~olecu ar,
e, por te.n (",\t . ,(?,'::i: ,.~
o, possur,p,()deii'
1
IY1rodutivo sê'm AV e'º td o
· ·w- · ~ -.t' 9· ~..set, consumi
~,
e esgotado n&t~'ro),?ti1G'process~~te_ifl:g8ra.~.t;S;Eecemos
~s a· r..\:Õ ). e,':, 'r-.('6 c:o- e
uma re1 ~ae 1r~t.a entre ª@&Jl"nifacação,61~ cGVJ,ê' e o grau
hí , .
d e ~12,,r,essao. a 1storta?os cdrpose,ma1s@'.or,,0~
_AO - N 'O \?>\--' e.,," d ~
rmfica os tem
id de • •C\ '(\ _ • {\"" e (\\ "\?g
si o os os amma1~'naei urnaftos ''C'i's"ctas mulheres e os
. , a,\>' :\,O<:,º, :\'o - \).e,:
_das cna;çê.g/2.º cq_6º,o &'(f.!'~115.a&:ao escravo, o cor~o d~
Jovem tll'a'ôallq,~'E:f~r~;<'.J"'>çGf])õ' homossexual. Mas nao ha
... ~'( , . ,ü"<. '1>\ d d. ,
re l açao onto 9Jj.f&.a. R_8te anatomia e potentia gau en z. E
do escritor franc~~ Michel Houellebecq o mérito por ter
compreendido como construir uma fabulação distópica
sobre este novo poder do capitalismo global, que fabricou
a megavadia e o megatarado. -,, O novo sujeito hegemônico . ~- ._,. ............ ~ ......._,__
é um corpo (frequentemente codificado como rnascu.:
lino, branco e h~terossexual) farmacopornograficarnênte

50 TESTO JUNKIE
suplementado (pelo Viagra, pela cocaína, pela pornogra-
fu.0:~~:) ~ ~onsumidor de serviços ~exuais pauperizados
"(f;~quenteme~te exercidos por corpos codificados como
-f~rríirÍ1nos, infantis ou racializados): .

Quando pode, o ocidental trabalha; seu trabalho costuma


entediá-lo ou exasperá-lo, mas ele finge que se interessa:
isso é óbvio. Aos cinquenta anos, cansado do ensino, da
matemática e de tudo o mais, decidi descobrir o mundo.
Tinha acabado de me divorciar pela terceira vez; no
que se refere ao sexo, não esperava nada em particular.
Minha primeira viagem foi para a Tailândia; imediata-
mente depois fui para Madagascar. Desde então, não
voltei a transar com uma brar~,ê; nem sequer voltei a ter
vontade de fazê-lo. "Acre@~", disse e1~,t.iE:áocando uma
mao ra~o e L"iene leC>.
- fume no anteb').~\d
I
, voce~ Jª., nao- encon-
trará, em uma_~anca
b'"'u uma hr o\'-'suave, déoci·1 , fli , 1 e
__.g€'efa
d . 0ex1ve
muscue,s~1 U O lSS~~~Sa\~ei;:;eu por COil::f ln
1 ,= A.O _q,, _J
eto"'3:•

o po d'e·r·
~,.\Q
- se{~Oea
~ef:':Je \ ()\
1""c.. 1· za
ººv,.1-\1.
'""lê,apenas ~'o~cor@0 e ~("f =· · ",
e'ºs
nao
f il" ,;ú'Í~ L \ e, ") 0~1:-r1nmo
Ç>;\ (Ç\ ~ :0\1. di . 1
m anti º% vnao ,~ranco e .gfi'cfnt9/espa~ií3 trêl:""'1c10na -
u »

. o . e e,: d·'"-'
ment(;)..., i., , ag1na, o como -<líl e- ~seurs1vo e 'atura 1 , mas . -&.e \(o
,<,;r-.U . - o ,· ().'V" . o:;;· ..,,:1.
taml'Jem em um COUJ\l • t,O,.._~tl re,iq.rers•ent;a'~oes que O trans-
. ;,JU :,.;u ~ D' · ,sv;_
formam em s~,-{~ª'I. ia~fej~~'élt. T@li~se, em todo caso, de
um cor1;-c_: ic.s@mnre\
~-.;, • .t::':,_ \ •
armaê'ori.or
r.;.v t'<::, -
ográfico, um sistema tec-
novivo qú~Él}'?fe~Qêéfe ~Cf?i.ecanismo de representação e
produção culti~I ,}l ·.f o difundido.
O objetivo da i\oria crítica contemporânea devia ser a
possibilidade de revelar nossa condição de trabalhadores/

1±3Michel Houllebecq, Plataforma. Barcelona: Anagrama, 200L;, p.


101± [Ed. bras. Plataforma, trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de
Janeiro: Record, 2002].

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 51
consumidores farmacopomográficos. Se a teoria atual da
feminização do trabalho esconde o cum-shot, ou seja, a eja-
culação videográfica atrás da tela da comunicação coope-
rativa, é porque os filósofos da biopolítica, diferentemente
de Houellebecq, preferem não revelar suas posições de
clientes do farmacopomomercado global.
No primeiro volume de Homo Sacer, GiorgioAgamben
retoma o conceito de "vida nua" de Walter Benjamin com
o objetivo de definir a condição biopolítica do sujeito
depois de Auschwitz, um sujeito cujo paradigma seria o
prisioneiro do campo de concentração ou o imigrante ile-
gal retido em um centro de detenção temporária, ambos
reduzidos à existência física, despojados de todo status
jurídico ou cidadania. A esta noção de "vida nua" podería-
mos acrescentar a de vida farmacopornográfica, ou tecno-
vida nua; a característica de \ _ 'corpo despojado de todo
status ~egal ou político é~iÍ~nr comoig>~ de produção_ de ?~
potentza gaudendi,:.,.4,ç&J.racteríst;;&t e um corpo reduzido
à tecnovida nua N,antÕ nas sêie~Elia:des democ âitkas como
. . 0 ('IV: ~':.)~ . . .
nos reg1m~'©1âscistas.~~'€x:aJahlente p@@."li se,,rf&bjeto ae
- f, -1.e ' ~oº 'ªx1m e r: Códi ..
uma exp, ...,oraçao.~a,_ma&' §.l ornogr~~a . o zgos
idê . d ,-,.re\ \ ;'\ . 'i. \ -<) \G . .,:
1 enticos e E1I')res3R ação r.o~ogr:51:'.f:ica fl.a;lii.cionam nas
• .J o.S .r, :I:· (',.e ' ur C O'ê;).
1mage~0(,;l,os pns10neirosr&'e" Ab:tPGbra: ;,, 4~.;.9as imagens
- o " :v"' c{5 ·ov
erotíz elas das adolo~&:q.t~s irà\fiae,s· l nas propagan-
.,< \.~·

d 'O , ,\-.l e/> !\.' i . • \So:.. d


as para L rea ~JP.i8,..QJ 1':t,1~Ji§'on J~s. nas páginas a Hot
Magazineç~·~Bi"~'s\is,z,.<tm:JJ.o.§J:ffuncionam,e de maneira
füesgotável.~@H:w,çf@n ~~~~-~náis e digitais de capital eja-
' . A d.is ·m~@'íir
.. l atono.
cu ~ ~ oÓ, aristotélica entre zoe e b ios, entre-
vida animal desprovida de toda intencionalidade e a

44 Ver Judith Butler, "Torture and Ethics of Photography", Environment


and Planning D: Society and Space. v. 25, n9 6, 19 de abril de 2007, pp.
951-966.

TESTO JUNKIE
52
"exaltada" vida livre, ou seja, vida dotada de sentido e de
a.Ütocfeterminação que é substrato do governo biopolítico,
ncJje teria que ser substituída pela distinção entre vida
·cruci·e biotecnológica (entre vida crua e biotecno-cultu-
ralmerite-produzida), esta última referindo-se à condição
da vida na era farmacopornográfi.ca. A realidade biotec-
'nológíca desprovida de toda condição cívica (o corpo do
migrante, do deportado, do colonizado, da atriz ou do ator
pornô, do trabalhador do sexo, do animal de laboratório
etc.) se torna a do corpus (já não homo) pornograficus cuja
vida (condição técnica mais do que puramente biológica),
carente de direitos de cidadania, autoria e ao trabalho, é
construída por e sujeita a midiatização global e autovi-
gi:â~cia. E t~~o isso no ce_ntr~4-as nos_sa~ democracias
pós-industriais, em que 11_®Yl'ia nece\Bdade alguma de
. ·" \.
recorrer ao mo d e 1 o d. 1sj:op1co d o q_~po',.,d d e concentraçao -
ou de extermí~)"'.' acilme:QJ® 8>enunciável como dispo-
. . d i\l "'1A0 b.çi.. • t"'l\).
sitrvo e rn..51- ,po e - pa~a~(s[e's~~Hr a tecn~t5"1,.<U'êl nua, parte
de um~\fr6rdel-lah~fa óri&)\~obal int'ª1g:,Yãdi\Ít(ultimídia"
"\...V . !::, , . O 'O _ f..V '(\\ . ..
em que o co õr,'<9!.pe dfü.s-fluxos e dosÇaf~tg's> see;e~hza sob a
t,..\ ~ \)·' - e,_, \\' ,, :<:'"
forma p~cla ei€'.1taçao-fr1w~tFâçél@..'e ev~ 0s-
A0~ 'ÇJ <'IQU :{6 ({\ :0,\\
;(,,Ou 1,..0, o,0-?J.. '\ O
· :-.iº 0 · 0~ \?:,<'"0.oç,,
,fl0.0
EXCITAR ~,Ge)~R'~t~~:õ.00-"
(ç,'=''-e ~" zl>º s O
t'b-ç,t::, -:ee'0 , lf,.,vo . _
A transfôTm . (}alo . ~Cbgress1va da cooperaçao
sexual em
· · 1 f orça
pnncipa e r.o\! pro dutiva
· nao - po d ena· ocorrer
sem o con-
trole técnico da reprodução. Não há pornô sem Pílula ou
Viagra. Ou, inversamente, não há Viagra ou Pílula sem
pornô. O novo tipo de produção sexual implica um con-
trole detalhado e estrito das forças de reprodução das
espécies. Não há pornografia sem vigilância e controle
paralelos dos fluidos e afetos do corpo. Agindo sobre

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 53
este corpo farmacopornô estão as forças da indústria
da reprodução, ocasionando o controle da produção de
óvulos, técnicas de relações programadas, coletas de
esperma, fertilização in vitro, inseminação artificial, rnoni-
toramento da gravidez, planejamento técnico do parto etc.
Consequentemente, desintegra-se pouco a pouco a tradi-
cional divisão sexual do trabalho. O capitalismo farrna-
copornográfi.co inaugura uma nova' era, em que o'meÍhÓ!
a
típo·denegócio é produção da própria espécie como
espécie, a produção da sua mente e corpo, dos seus dese-
jos é afetos. O biocapitalisrno contemporâneo ao mesrrib
tempo produz e destrói as espécies. Apesar de estarmos
acostumados a falar de sociedade de consumo, os objetos
que consumimos são apenas mya centel~a da produção
·
virtua 1 psíc· otoxica.
, · Consufnífnos =-º·..\''" ar, sonuos, b 1id en tí1d ad e,
.relaçao,
- cmsas . :0 \ ó,\~
da m(tnte. O novo q1;p1rahsmo farrnacopór-
. 'fi f
~ogra -~~ .~1;.f~
. ,"\V
na rea i a,
1 d d Q'\ '
oª? - bi
'e, graças a gestao. 10~1 ~-
id ..,
tica da su Jet1o'1dade, po.Jêú1e1§lccfiseu con , Q_l'el olecular
IT\' R'\ ,.,.,\ '\ :::, , -1',: e, · ·-· "'
e d a Pl.O,êlrtçãode co · "exõeSJVirtuais au · lievisua~s:
'\,.......,., . ,..e,.. \)' . :(Ü. ~' -· -
l~du~t~~~J~P!ll~e tlC~ e a lll<ii'Jstn CjiU \t,~::1~~~1~O
,,__1:-
os dois RI-lares s~B ~e os quaiSJ~e a~~ o-@iõca italismo
~ônb~]fü~c?rân~dois te111 *~u,t0'§·'8;;.tjt?f':jgaíó:1e~co'e-vis-
-~f"I . . ' .. . 1y.Q \' ;\) '. Q':;> 1 V "·a~
~-º:.° circuito 1~~T?*ª~~ 'S.~ iSg,~m& arm_acopor~o. a
·segunda
· metade
~,v.. . · elo $~eculo~· ·X
cP · 6 o..v
é o]:) trolar a sexualidade
?~~ ~º1feº~-~~WP-~~,â~~~ºg19~~~f.he!es~.9-u.s~r ~-~~--
lação ~(5~.9@1TIO[tf~ ~fi~Bos como homens; "a Pílula", o
...Prozac
. l?__QYià'W~\ey:s~}~r~ ª indú~t~ia
' . farr;;éêutica º ciüeã
·--~
pornografia, com, sua gramática de boquetes, penetrações
e cum-shots, é para a indústria cultural.o ;erêmio aéu~u-
Iado do biocapitalismo pós-industrial. .
No contexto do biocapitalismo, uma doença advém ao
d~mínio. da realidade como conseqúêllcía 'de úm niódefo
médico e farmacêutico, como resultado de um suporte

TESTO JUNKIE
54
técnico e institucional capaz de explicá-la discu .
mente, de materializá-la e tratá-la de forma ma::lVa-
'm.eriõs operacional. Do p_onto de vista farmacopolítico~~
·· grandequantidade de afncanos afetada pela aids não está
reãlrnente doente._ O~_rrülhares
~~,.,....,.,..-i;i.•""""""·,,.,,.~·,, . . , . .... - .,. . . _
de ~oropositivos que rn _
..... ·; .... ,_ ....... ~.- -· __ or
- ~~?1-.êl ~ad_a dia na Africa sao c.orpos precarios cuja sobr~-
:7iv~n~~c1 ainda ~ão ,foi _capitêlliza~a ~omo _consumidora/
prodt1tora pela mdustna farmacêutica ocidental. Para
O
sistema farmacopornográfi.co, estes corpos não estão mor-
tos nem vivos, existem em um estado pré-farmacoporno-
gráfi.co ~ ou, o que é a mesma coisa, suas vidas não são
suscetíveis de produzir benefício ejaculatório. Eles são
corpos excluídos do regime tecno~iopolítico. As indús-
trias farmacêuticas emergentes da India, do Brasil ou da
Tailândia lutam ferozmente pelc~Júeito de d~tribuir suas
terapias antirretrovirais. D,o 0esma for&bta.~iinda espera-
n:1ºs pela comercialix~çã~de u~t~fáê\nacontra a malá-
na (uma doenç :@:l~'causa 5 ~1:l.Fí%es de morteeipor ano
. zx f . ) , Qi , AO ,
no contme\:11\ei a ncano 0~ c5\ -,e porque.~s>p,~f..es que
precisam<é"da vacina,nil.'ó'b P,c(g.em pagar,Ro.P~a,c(Ri mesmas
"' ·.'I.._U:::r- · '1 · P,~it S I 0,'::i
companhias ·. d'fin~@'onais oc~én'ta · ~ ~ue,émbarcam
e. 0 0 0: ':1 .t rue _ r: :~ r
em custg,s7lrs pr-og amas Pê,@'-'ª ~-~<étUÇ{\®'i:i\,ç,'t!h-agra ou
AO 'O ,q:S d ,..,,J
d e n:~~Ds tratamentos '.'@,(il'lli'l'raiS_.,ca ":'i.c;:,,e_::, ~rnstata jamais
investiriam na :w;,iiiRi.f~i\~r~%.~(j'e-ã,:-.%~, os em conta os
cálculos so1êfe\~ 1ç5-r1cti'Bg.fàe ~\fMiacopornográfica, fica
o'b v10
· que r: r;.'10,d
a its,1cunça~~eíet1 r«' - 0~' ·1 ~e-,o "' O cancer
,. d e prostata ' não são
(ô' :\k:',':'.J '~\U .
prioridade~ em1'p~ís@~\'b'?i:cte a expectativa de vida para os
~ ~Q"::l
corpos humanos ~1ingidos pela tuberculose, malária e aids
não ultrapassa os 55 anos."

Michael Kremer e Christopher M. Snyder, "Why Is There No Aids


L±5
Vaccine7", CID Faculty Worhing Paper n. 111, Harvard Kennedy School,
Cambridge, MA, 2004

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 55
No contexto do capitalismo farmacopomográfico, o
desejosexual e à" doença compárfilhain ãmesinãpfâl:ã-
forma de produção e cultivo: sem os suportes técIUcÔs,
farmacêuticos e midiáticos capazes de materializá-lôs,
eles não existem.
Estamos vivendo uma era toxicopomográfica. O corpo
pós-moderno se torna coletivamente desejável graças à
sua gestão farmacológica e sua promoção audiovisual: dois
setores nos quais os Estados Unidos detêm - no momento
e talvez não por muito tempo - a hegemonia mundial.
Estas duas forças de criação de capital não dependem de
uma economia da produção, e sim de uma economia da
invenção. Como mostra Philippe Pignarre, "a indústria
farmacêutica é um dos setores económicos nos quais os
custos de pesquisa e desenve :Vi~nto s.-ojimito elevados,
enquanto os custos de f'\~,i;)}açãosãfôe1!:1I'\mamente baixos.
Diferentemente da m~stria aut0~obilística não há nada
mais fácil do <qN~~;roduzi eii-
sua síntes qltlmica erfP("J,g:z;a,.\:"e
edicamen~ei êl~ssegurar
:;.,escala ,e ~~anti@> não há
' x:.\ . , . ~ e;- •t;;rd '0 ".1 p;ç-
nada mais d1f1c1l\.~fost0s~do que itlif.J~t' -lo':41,D(z>mesmo
,íe,\ \ e\ _.( 'i. ' .,<\ ~ ,..;, o
mo d o, na d a@usta,inenos m t@F1almente falan o do que
s .,.,e\ ' ÀI - \9' d"\<3",Vv , e/
filma5..l:YiP- oquete ou uma.,p~netná'çao.anal oµ~v gmal com
,<"f',',r , ~ o " :\).V-
uma-camera de v1de~~~s :'á:i;S,:g sifomo,>6~ orgasmos e os
Q?' º""
/ livros, são relatwjfu~nt, --ftceiis\êbarràtà~de fabricar. Difícil
, nJ,u; · ç:i,Ü ·V a,v . .
e sua con%x®C:ª~" s'ti'a ws~émiat-áção política." Ü bíocapita-
lismo fa m~~ez,©}J'or1<1oi?°á:B.~°iiãoproduz coisas, mas ideias
., . ,._ - eeí\Çl !:\~o ,
vanaveis, orga§s-\g<@S7símbolos, desejos, z:eações químicas

46 Philippe Pignarre, Le grand secret de I'industrie pharmaceutique.


Paris: La Découverte, 2004, p. 18.
47 Maurizio Lazzarato, Puissance de/'invention. La psycologie économi-
que de Gabriel Tarde centre l'économie politique. Paris: Les Empêcheurs
de penser en rond, 2002.

TESTO JUNKIE
e afetos. Nos campos da biotecnologia e da pornocomuni-
......--.-~ ..... "'.
cação, não há objetos a produzir, trata-se de inventar um
sujêffõé produzi-lo em escala global.
(.,,._.

/
A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA 57

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