Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
capa de
t
);f'
HOMENS E
nDE HELLMEISTER
CARANGUEJOS
revisão ortográficl
I (Romance)
1·.
BEATRIZ MENDES DE ALMEIDA
Íi
��
r
l
I
E D I T ô R A B R A S I L I E N S E S. A.
Rua Barão de Itapetininga, 93 12.0
EDITÔRA BRASILIENSE SOC. AN.
São Paulo - Brasil São Paulo - 1967
. ................ .._..).... �C-I,_ '
Ci-iAMADA()._U��··; :_5;·;:;··-
-- . ' " "·' " '--· '-'
'{ o
·(;·:}:
�-�- :-� y;'"j"(:h······
...................... Ex
.. ...•••• .' •. •....
- /)
; < M:'"O !BC ... ·-�:�:. Tç
.i\'" •·J I
�.:�-:1�·.:?...
4�;·.-y·;_;--r;;.:- ;;····
EL .:?., �g- �.:f.. �........
....
.
l
..
�----/
i>:·-�c a.ta .L.ht2. ............
.
C �
.
D
fome? Como
"O que significa a literatura num mundo que sofre
a
o . ....
. dirigir a todos e ser lido por todo�."
... ' . . ....
��--GEO�fA
·.;:....
JEAN-PAUL SARTRE'
... �.�...- .... ,.,.:... ""'"""""' -
DA FOME
Io.a edição - 1967.
O LIVRO NEGRO DA FOME "O ventre é a base sólida: o pão, o vinho e a carne devem preceder
2.a edição 1966. - a tudo, pois, só com pão, vinho e carne pode-se criar Deus."
NIKOS KAZANTZAKJ
SETE PALMOS DE TERRA E UM CAIXÃO
2.a edição 1967. -
íNDICE
\
r '-
I;
para dar ao livro o gôsto e o cheiro fortes do drama
da �orne qu� é, no fundo, a carne desta obra.
'
·
t
f
f Mas, será mesmo êste livro um romance� Ou nito dos com os caranguejos, seus irmãos, com as
·snãs duras
será mais um livro de memórias� Talvez, sob certos carapaças também enlambuzadas de lama. .
l
aspectos, uma autobiografia� ·cedo me dei conta dêste
·estranho mimetismo: os
homens se assemelhando, em tu do , aos caran
.
Não sei, Tudo o que eu sei é que, neste livro, se guejos,
l· para
c onta a história de uma vida diante do espetáculo mul arrastando-se, agachando-se como os caranguejo�
poderem sobreviver. Parados como Of? carangueJO
tiforme çla vid�.. A história· da· vida de um menino S na
pobre abrindo os olhos p ara o espetácuio do mundo beira d'água ou caminhando para trás como camin ham
numa paisagem que é, tôda ela, um braço de
mar- u � os ca,ranguejos.
longo braço de um mar de misérias. É porisso que os habitantes dos mangues, depois
· O tema dêste livro é a história da descoberta que � i
de ter m um a a saltado para dentro da vida, nesta
la
fome fiz nos meus anos de infância, nos alagados da dific�lmente guira m
·
e tr zida
·
na e�xurrada de suas águas Pouco a pouco, foram . densamente povoada de homens e caranguejos, seus
habitantes e seu adoradores.
·
Nasci mima rua que tinh a o nome ilust re de J oa sados.· Eram goiabas, jambos e araçás, todos meio
quini NabuQq,· o graride'abolicio:riista ·:ctos escravos� nos roídos
m
as que eu saboreava com g ôsto no.s meus
tempos do Irripérió". A. casa em . que ·:nasci . tiilha a o ·
�
passei s matinais pelo sítio, parasitando, assim, o tra
lado um grande viveiro.. de pei�es� .d e c ar a nguejos e
balho noturno dos morcegos, meus sócios circunstan-
de siris. Se. não nasci mesmo dentro do ·viveiro, como
·
tôda a parte. Meu pai tinha trazido para o Recife me entrou muito mais pelos olhos do que pelos ouvidos.
tôda a paisagem viva da sua terra, com os seus bichos, Entrou-me por dentro dos meus olhos ávidos de cri
com os seus pássaros. Dentro do sítio, eu respirava ança sob a forma destas imagens que estavam longe de
uma paisagem transplantada do sertão distante e em serem sempre claras e risonhas.
frente à casa eu contemplava a paisagem da costa - a Foram com estas sombrias imagens dos mangues
paisagem negra do mangue. e da lama que comecei a criar o mundo da minha in
Bem ao lado da casa começava a zona compacta fância. Nada eu via que não me provocasse a sensação
dos mocambos , das choças de palha e de barro, amon de uma verdadeira descoberta. Foi assim iii.U e eu vi
.
toada s umas por c1ma das outras num enovelado de e senti formigar dentro de mim, a terrível descoberta
ruelas, numa anarquia desespera dora. As casas entran da fome. Da fome de uma população inteira escravi
do por dentro da maré, a maré invadindo as casas. Os zada à angustia de encontrar o que comer. Vi os ca
braços do rio passando pelo meio da rua e a lama en ranguej os espumando de fome à beira da água, à es
volvendo tudo. pera que a correnteza lhes trouxesse ·um pouco de
Criei-me nos mangues lamacentos do Capibaribe comida, um peixe morto, uma casca de fruta, um pe
cujas águas fluindo diante dos meus olhos ávidos de daço de bosta que êles arrastariam para o sêco para
criança, pareciam estar sempre a me contar uma longa matar a sua fome. E ví, também, os homens sentados
história. O romance das longas aventura s de suas na balaustrada do velho cais a murmurarem monos
águas descendo pelas diferent es regiões do Nordeste : sílabos, com um talo de capim enfiado na boca, chu
pelas terras cinzentas do sertão sêco, onde nasceu meu pando o suco verde do capim e deixando escorrer p elo
pai e de onde emigrou na sêca de 77 com tôda a famí canto da boca uma saliva esverdeada que me parecia
lia, e pelas terras verdes dos canaviais da zona da ter a mesma origem da espuma dos caranguejos : era a
mata, onde nasceu minha mãe, filha de senhor de en baba da fome. Pouco a pouco por sua obsessiva presen
genho. Esta era a história que me sussurra va o rio ça êste vago desenho da fome foi ganhando relêvo, foi
com a linguagem doce de suas águas passand o assus tomando forma e sentido em meu espírito. Fui com
tadas pelo mar de cinza do sertão, caudalos as pelo mar preendendo que tôda a vida dessa gente girava sem
verde dos canaviais infindáveis e remanço sas pelo pre em torno de uma só obsessão - a angústia da
mar de lama dos mangue s, até cair nos braços do mar fome. Sua própria linguagem era uma linguagem que
de mar . Eu ficava horas e horas imóvel sentado no quase não fazia alusão à outra coisa. A sua gíria era
cais, ouvindo a história do rio, fitando as suas águas sempre carregada de palavras evocando comidas. As
correrem como se fôsse uma fita de cinema. comidas que desej avam com desenfreado apetite. A
Foi o rio, o meu primeiro professor de história do propósito de tudo se dizia: é uma sopa, é uma canja,
Nordeste, da história desta terra quase sem história. é um tomate, é uma ova, é um abacaxi, é uma batata,
A verdade é que a história dos homens do No rdeste é pão-pão, é queij o-queijo . Era como se esta gíria
�
''
.
21
.
JOSU:É CASTRO
)." HOMENS E CARANGUEJOS
20 DE
can:
fôsse uma espécie de compensação mental de um povo Mesmo quando ia me distrair, assistindo aos
sempre faminto . De um povo inteiro de barriga vazia tadores de feira ou ao espet áculo do Bumba-meu-b01
mas com a ·cabeça cheia de comidas imaginárias. É auto popul ar representado na zona dos mocambos
- o que encontrava diante de mim r e p r es en tan
do , fa-
-
minha
O Bumba-meu-boi era apenas um pesadelo de fa naçã o e esta mar ca que a fome pr?voco u na"
alma de criança, que procuro hoJe Invoc�r nest e ro-
minto. De faminto sonhando com um boi-fantasma
que cresce diante dos seus olhos compridos mas, cuj as man ce- o romance do Ciclo do CarangueJO; .
carnes, desaparecem debaixo das apalpadelas de suas
Algumas das coisa s que cont o . n�ste hvro, hoJe
desapareceram, mas outras- a m.awna
delas- per�
mãos. s olho s
man ecem inta ctas, tais como as vua m os meu
de criança. É que o tempo conta. pouc o nas t.erras
E, foi assim que, pelas histórias dos homens e de
miséria, nas terras sub-desenvolvidas do terceuo mun
pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era
um produto exclusivo dos mangues. Que os mangues
do onde a fome e a morte com sua presença constante
es tão sempre a tecer o destino dos homens. .
apenas atraíam o s homens famintos do Nordeste in
.
teiro: da zona da sêca e os da zona da cana. Todos
Antes de terminar êste prefácio quero deiXar aqui
consi gnad a minha p r o funda gratidão pela �nest}m áv �
atraídos por esta terra da promissão, vindo se aninhar l
naquele ninho de lama, construido pelos rios e onde deste li
contribuição que representou na elaboraçao
brota o maravilhoso ciclo do caranguejo. E quando r d poetas do N or
vro a leitura das obras de três g an es
cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, dest e: Asce nço Ferreira, Joaquim Card oso e Cabral ·
Avança também a manhã, abrindo caminho por duos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo
entre as brumas do charco, quando bruscamente há vai ser. O caranguej o nasce nela, vive dela, cresce co
uma espécie de precipitação na claridade leitosa do ar mendo lama, engordando com as porcarias dela, fabri
e rufando no chão como num enorme tambor, desaba cando com a lama a carninha branca de suas patas e a
em pingos grossos uma chuva incômoda e fria. Um geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por ou
relâmpago violento descobre tôda a planície encharca tro lado, o povo daí vive de pegar caranguej o, chupar
da e faz brilhar as fôlhas gordas dos mangues que se -lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que
agitam sob o vento forte. O pip ocar dos trovões abafa fiquem limpos como um copo e com sua carne feita de
definitivamente o canto dos grilos e dos sapos. Os lama fazer a carne do seu corpo e a do corpo de seus
balaieiros assustados com a tempestade retiram depres filhos. São duzentos mil indivíduos, duzentos mil ci
sa de dentro dos seus balaios, os sacos de estopa nos dadãos feitos de carne de caranguejos. O que o orga
quais trazem embrulhados os .seus tamancos e impro nismo rejeita volta como detrito para a lama do man
visam com êles estranhos -tipos de capuz que os pro gue para virar caranguej o outra vez.
tegem das chuvas. E, assim, com seus grotescos ca Nesta aparente placidez do charco desenrola-se,
puzes de estopa, parecendo fantasmas de monges da
trágico e silencioso o ciclo do caranguejo . O ciclo da
Idade Média, prosseguem o s balaieiros a sua marcha
fome devorando os homens e os caranguejos todos ato
pela estrada incômoda, agora cruzada em todos os
lados na lama.
sentidos pelos caranguej os despertados do seu sono
pela tempestade, correndo apavorados com o barulho Por sôbre esta paisagem lamacenta que agora vi
dos trovões e deixando-se esmagar de vez em quando, bra sob a luz violenta dos trópicos, refletida nos gran
com um estalido sêco de galhos partidos, debaixo, dos des espelhos d ' água da maré, perpassam sons agudos
pés dos balaieiros. e insistentes. São os apitos das fábricas impacientes
chamando gente para o trabalho, acordando os seu�
Pára a chuva com a saída do sol e à luz do dia,
surge nítida esta estranha paisagem do charco, mis operários que vivem nos bairros pobres de AfogadoB,
tura incerta de terra e de água povoada de estranhos de Santo Amaro, da Ilha do Leite e os mocambos que
ainda. dormitavam, despertam com êstes apitos, uns·
sêres anfíbios - os homens e os caranguejos que ha
mais agudos, mais violentos, outros mais graves, mais
bitam os mangues do rio Capibaribe.
ronceiros. Começa a fervilhar de vida 9 bairro dos
Os mangues do Recife .s ão o paraíso do caran mocambos, como se fôsse o próprio mangue fervilhando .
guej o . Se a terra foi feita para o homem com tudo p a de caranguejos. Pelas: frestas dos telh a d o s , pelas
ra bem servi-lo, o mangue foi feito essencialmente gretas- das portas escapa um cheiro forte de fumaça
para o caranguej o. Tudo aí é, ou está para ser caran e de café e um ruído insistente de tosse e de chôro de
guej o, inclusive a lamà e o homem que vive nela. A criança. É a população dos mocambos dando sinais de
lama misturada com urina, es c r emento e outros resí- vida, preparand o-se para viver um nôvo dia do ciclo
30 JO S UE: D E CASTRO H O M E N S E C AR A N G U E J O S 31
do caranguejo. Abrem-se as portas dos mocambos e sol borda as manchas barrentas do mangue com uma
começam a aparecer nas ruelas do mangue os seus mo franja prateada, tecida de pequenas placas luminosas.
radores com as suas caras cansadas e mal dormidas. João Paulo avança de água a dentro desmanchando
Os homens apressados levando o seu almôço numa lati com os seus passos a franja luminosa e ondulante. Pá
nha debaixo do braço, as mulheres mais lentas arrega ra com a água à altura dos tornozelos e faz pipi dentro
çando suas saias, procurando lugares mais enxutos d'água. O jato da urina brilha ao sol como. se fôra
onde, pulando com cuidado a s poças de lama, com um um arco-iris e batendo n''água faz um barulho de cas
certo horror da água fria. A meninada sôlta também cata que parece encher todo o silêncio do charco. Êste
vai caindo no mangue. Os menores nus, os maiorzinhos barulho forte da urina batendo n'água dá a João
com qualquer trapo cobrindo-lhes o sexo, mas todos Paulo uma satisfação enorme. Êle se sente como se
se atolando na lama com gôsto, sem nenhuma cerimô j á fôsse um homem porque consegue fazer o mesmo
nia para pegar caranguejo. Com o corpo a descoberto, barulho com o seu pipi que fazem os pescadores de ca
indiferentes ao frio da água e às picadas dós mosquitos ranguejo quando mijam no mangue. Com uma expres
que zumbem famintos por entre as fôlhas gordas dos são de contentamento, João Paulo avança mais para
mangues. a frente, abaixa-se, lava o rosto na água barrenta da
Com o apitos das fábricas João Paulo desperta. maré ; retira a ramela dos olhos .. Bochecha forte um
Ainda com os olhos fechados o menino se assenta sono pouco d'água para lavar a boca e depois lança a água
lento em seu leito de palha. Esfrega desajeitado o longe, fazendo pressão nas bochechas com as duas
rosto com as palmas das mãos, abre os olhos ainda meio mãos. A água salta da sua boca como uma bala caindo
adormecidos e se espreguiça num bocejo. Depois, a uma grande distância. Êle ri satisfeito da sua proeza,
olhando em tôrno, dá com os olhos nos dois irmãos da proeza de jogar a água a uma distância tão grande
menores- que dormem num outro canto do cubículo como fazem os jardineiros com as mangueiras nos j ar
e com os pais sentados à mesa, tomando a refeição da
manhã. Com uma voz cansada, .êle estende a mão na t dins da cidade. João Paulo sonha como seria bom ser
um dia jardineiro de uma casa rica nesta cidade, cujo
direção do pai e diz : contôrno de seus edifícios mais altos êle divista ao
- '' Benção pai, benção mãe.'' longe, enquanto seca ao .sol o seu rosto lavado. Como
- "Deus lhe abençoe, meu filho!", é a resposta seria bom viver sentindo sempre o cheiro bom das
dos dois. plantas dos jardins e pisar de leve naqueles gramados
verdes e macios em lugar de sentir o tempo todo o
João Paulo salta do leito e abre a porta dos fundos
cheiro podre da maré e de andar sempre dentr() da la
do mocambo. O sol bate em cheio no seu rosto magro,
ma como se fôsse caranguejo !
moreno, de maçãs salientes. Com seus olhos negros e
profundos êle contempla embevecido a maré que nesta A voz do pai chamando-o de dentro de casa, o des
hOTa da enchente avança até a porta do mocambo. O perta do seu" sonho. João Paulo dando pontapés, espa-
33
32 J O S UJi: DE C AST R O H O M E NS E C A R ANG U E J O S
danando água por todos o.s lados, entra no mocambo a missa . Zé Luís preocupado com a hora apress a
para comer. Senta-se à mesa e, com seus pais, começa João Paul o:
a beber o caldo de caranguej o cosido com água e sal - ' 'Filho , um dêsses dias eu lhe conto porque
e a chupar os cascos e as patas dos caranguej os. Os foi que viemo s parar aqui. Hoj e não dá tempo. A
dois irmãos menores continuam dormindo encolhidos missa das seis horas j á vai começ ar e daqui a pouco o
e enrolados numa colcha de retalhos, enquanto seus vigario estará pronto para ir pegar caranguejos e fi
pais comem em silêncio. Com a boca cheia da carne cará impaciente se tiver de lhe esperar. Acabe s� a
branca de caranguej o, João Paulo pergunta : comida depres sa e toque para a casa do padre Ans
- " Pai, por que a gente veio morar aqui no · tides. Leve uma roda de caranguej os para agradar o
m�;tngue �" vigário . Não vá reman char pelo caminho para não
- "Porque quando viemos do interior foi aqui chegar atraza do. ' '
que encontramos a nossa terra da Promissão, o nosso
paraiso", responde Zé Luís com uma voz tranqüila.
- " Paraíso dos caranguej os", acrescenta em tom
de revolta a mãe de João Paulo.
Mas o menino volta à carga :
- ' ' Mas, por que aqui no mangue, por que não
fomos morar na cidade, do outro lado do mangue � Lá
é tão bonito, tão diferente, é como se fôsse um outro
mundo. ' '
- " Foi o destino, João Paulo, que nos trouxe
aqui, ' ' responde-lhe o pai.
. . .
- "L'a, do ou tro 1 a d o e' o parmso d os ncos, aqui
é o paraíso dos p obres," diz-lhe a mãe fitando bem
dentro do.s olhos do filho. Mas os olhos do menino
abrem-se apenas um pouco mais, e continuam com a
mesma expressão de interrogação, mostrando que êle
não entendera porque sua família havendo tantos lu
gares bonito s no mundo, tinha escolhido para viver
aquêle lugar tão triste e tão feio. Porque tinha esco
lhido para morar a lama negra do mangue.
Pela porta do mocambo entra o som das badaladas
do sino da igrej a de Afogados chamando os fiéis para
II
De fato, do lado do fundo do mocambo vêm se fazendo uma barulheira dos diabos. Idalina pensou
g:uidos, imperiosos, os grunhidos de um porco que Ida logo que, desta vez, era ladrão mesmo. Levantou-se de
lma cna _ com a esperança de engordá-lo com os restos um pulo e saiu no quintal de cabo de vassoura na mão,
_
d? h:x;o das casas ricas, e vendê-lo no N atai por bom pra arrancar o seu porco das garras do bandido. Ficou
dmherro. Comprara-o pequenino e desde então o pren aliviada quando lá encontrou um cachorro magro que
dera numa pequena latada na beira do mangue onde logo fugiu com o rabo entre as pernas.
o p orco está sempre a reclamar alimentos . Hoje, Idalina convida João Paulo pra dar uma
- " Nunca vi apetite tão desadorado como o desta espiada na sua riqueza, no seu porco de estimação e,
c�iatura. � hora e esperneia na lama o dia inteiro pe enquanto os dois espiam dentro da latada aquela bola
dmdo mais comida _ . Ma.s tem-se desenvolvido
que dá gorda e imunda, sempre grunhindo e sempre a se re
gôsto. Parece uma bola de carne." volver na lama fedorenta, ela conta com um tom de
O mêdo de Idalina é que agora que o Baé tomou ternura na voz que tôda aquela banha, todo aquêle
tanto corpo e vale um dinheirão, não venha algum la toucinho que formam pregas profundas na pele do
drão furtá-lo na calada da noite. E roubar tôdas as porco, são produto exclusivo do trabalho diário do
esperança.s que lhe restam de poder, pelas "Festas' ', Carlindo. É que o seu neto sai tôdas as manhãs com
....
vende-lo . uma lata de querozene pra recolher restos de comida
na feira de Afogados, e dispor de recursos
para comprar uma �oupa e um par de sapatos pro nos depósitos de lixo das casas ricas, e com ê s ses restos
.
Carlmhos fazer a Pnmeira Comunhão . 'Tôda noite, a alimentar seu porco. 'Tem que sair bem cedinho, bem
negra tem vontade de trazer o porco pra dentro de antes do sol nascer pra chegar antes do caminhão do
casa pra evitar o roubo possível, mas se contém por lixo. E tem que perder muito tempo esvaziando os
que sabe que ninguém poderia dormir com o re b oliço depósitos e retirando de cada um dêles tudo aquilo
que êle faria dentro de casa roncando e fuçando o mo que possa alimentar o porco: restos de arroz, ossos de
cambo inteiro. Conforma-se em deixá-lo mesmo do lado galinha, pedaços de pão duro, frutas podres, legumes
de fora, ma� dorme de ouvido em pé, atenta ao menor e verduras passados. Tarefa ingrata e sempre reali
, suspeito. D orme, como se costuma
rmdo zada sob a ameaça constante que o vigia ou o jardi
dizer com um
olho só ! O outro ôlho, sempre aberto, fixo no s � u porco. neiro� das casas ricas o pegue-m em flagrante e come
�endo-lhe a gorda imagem: seu corpo roliço, seu fo cem a persegui-lo aos berros de " menino safado ! La
drão de lixo emporcalhando a calçada ! ' '
cmho esfolado, seus pequeno s olhos maliciosos, encas
toados numa espessa bainha de banha. O sono ele Icla Já por várias vêzes Oscarlind o teve que abandonar
lina � um e � erno sonhar de namorada com o seu porco. tôda sua colheita com lata e tudo, disparando às car
As vezes, vua pesadelo . Uma noite dessas um cachor- reiras de rua abaixo, com mêdo de apanhar dêsses
. '
ro fammto, atraído pelo cheiro de lixo, veio disputar guardas, com mêdo de ir parar na polícia. Nesses dias
com o porco os restos de comida, e o porco se arreliou de má sorte em que o menino voltava para casa de
JOSUÉ DE C A S TR O H O ME N S E C A R A N G UEJ O S 39
mãos abanando, o mocambo virava um inferno. Ida Cosme, João Paulo avista ao longe, por cima da borda
lina caia na choradeira com piedade de seu porquinho da janela baixa, um pedaço de espêlho que faisca ao
que não tinha o que com_er, e ê.ste, por sua vez, levan sol. .É só o que êle vê, mas êle sabe que sustentando
tava a boca no mundo mvando como um javali selva aquêle espêlho está a mão experimentada de Cosme,
gem assustando com seus guinchos e roncos o bairro o paralítico, e que o espêlho recolhe neste m omento
inteiro. com a sua imagem o seu bom dia, a .s ua saudação fra
ternal. Tirando depressa a mão do bolso, ,João Paulo
Em compensação, no.s grandes dias ' como naquele
faz um . gesto largo cumprimentado o amigo que esti
memorave ' l em que Oscarlindo descobriu só numa casa
três enormes latas de lixo abarrotadas de comida res rado como sempre no seu girau, acompanha através do
tos de um banquete de casamento realizado na vés era p seu espelhinho de mão o espetáculo da vida. João
Paulo tem vontade de mudar de caminho , de fazer uma
e que teve que fazer três viagens correndo para carre �
gar tôda esta riqueza em alimentos ' a alegria era ge volta até a casa do Cosme para dar uma pro sa com
ral. � �
o dia do ba:r: quete o porco comeu t nto que
.
êle. Ma s se lembra da pressa que tem de chegar na
casa do vigário. Lembra � se da recomendação do pai
do ::mi?- a ta� de mteira sem dar um só grunhido. E a
propna Idalma aproveitou . de chegar na hora e tem mêdo também de levar um
muitas coisas : frutas ainda
�
bem comíveis p �ra e a próp ria e seu neto. Pena que
_
carão do vigário. Repete, então, com a mão, o gesto
largo der simpatia e prossegue o .seu caminho com a
os casam �ntos nao seJ am mms freqüentes ! Freqüentes
mesmo sao os banquetes nas casas dos políticos im imagem de Cosme no seu pensamento . De noite, antes
p ortantes . Oscarlindo sabe disto mas também sabe que de ir para a cama, êle visitará o amigo. Irá ouvir as
ne � tas casas há sempre um policial na porta que não histórias bonitas que êle conta, do largo mundo que
dmxa tocar em nada, nem mesmo no lixo . êle percorreu em suas aventuras extraordinárias, quan
do as suas pernas lhe obedeciam. Hoje, só os braços
Depois de elogiar a beleza e a gordura do Baé,
lhe obedecem, as pernas se acabaram. S ão uns cam
_
Cosme orienta a luz do seu espelh o na d ireção da es recomen dações de seu pai de chegar na hora na casa
trada que cruza lá longe na beira do rio, por onde do vigário e, porisso, resolve continuar o seu caminho.
está passando agora João Paulo, e naquele pedaço de No momento exato de partir, a bola por acaso vem ;n a
vidro êle capta sempre um reflexo da vida que passa. direção dos seus pés e êle, bruscamente, sem que nin
E com êstes reflexos de vida, êle vai alimentando a sua guém espere por isto, dá um chute violento na bola;
vida de trapo . Aquêle espelhinho de mão constitui to tão violento que ela cruza no ar o pequeno campo e va1
do o seu mundo, o mundo limitado de suas sensações. cair longe ' dentro da maré, perdendo -se debaixo das
A fita escura da estrada lamacenta s e vai desen fôlhas dos mangues . A meninada indignada o insulta
rolando na beira do rio, com as margens descobertas e avança agressiva para lhe pedir satisfação . J� ão
de mangues garranchosos e as imagens de vida vão se Paulo dispara na carreira com a roda de carangue J OS
sucedendo, maravilhando o s olhos de João Paulo sem balançando no ar e com um sorriso de mofa no ros o, �
pre embevecidos diante do espetáculo do mundo. A fila feliz da desforra tirada daqueles desocupados, qu e nao
dos mocambos se estende ininterrupta à beira d'água. têm' como êle ' a obrigaçã o de trabalhar num dia tão
Na porta de um dêles, estão dois garotos sambudos, in bonito, com a luz do sol brilhando como se f"'osse uma
teiramente nus, com as barrigas estufadas pra frente, pintura.
como se fôssem dois tambores espetados em pernas de
gravetos, finas, tortas, cinzentas de lama sêca. João Cansado da carreira, João Paulo pára mais adi
Paulo dá dois piparotes com os dedos nos buxos tensos ante para respirar e da beira do charco contempla a
paisagem tranqüila . Acocora- se à beira d ' água e olha
dos garotos, repetindo em tom j ocoso : " B arriga de
bem de perto os carangue jos imóveis espumando ao
tin-tin ! ", e arranca com o seu gesto um som ôco, sêco
sol como se fôssem um bando de bois ruminando no
como se estivesse percutindo mesmo um bombo :
tin-tin . . .
�
ca p o . São imagens dos seus primeiro s anos e vida
.
�
que agora lhe vêm à lembrança . Imagens do patw da
Os dois · molequinho s sorriem felizes da brinca
fazenda onde nascera. Do pátio descampa do, com o
deira e ficam imitando o gesto, batendo um na barriga
sol quente do sertão tinindo nas pedras cintilante s e
do outro - tin-tin, tin-tin . . .
os bois parados, ruminando em silêncio, deixando es- .
Já nas proximidades da cidade onde começam as
correr lentamente de suas bôcas, uma baba esbranqui
casas de telha e de tij olos, João Paulo encontra um
çada e pegaj osa parecida com a espuma dos caran
bando de meninos j ogando futebol com uma bola feita
gueJ O S.
de meia de mulher, recheada de molambos. Jogam
com um entusiasmo enorme, fazendo piruetas incríveis As lembranças se atropelam e se confundem na sua
com a b ola. João Paulo pára um momento com uma memória. Há coisas de que João Paulo se lembra bem,
vontade doida de participar do jôgo, de ficar ali o dia como se tivessem acontecido naquele mesmo instante
todo eom aquêles meninos, brineando na rua, batendo em que .êle contempla embevecido os caranguejos es
�
bola. Mas pensa nas suas obrigações de trabalho e nas pumando à b eira d 'água, mas há outras que sao um
42 J O S U ll: DE
43
CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS
tanto vagas, confusas mesmo, coisas que parecem ter leite matinal. Abrira a janela de madeira. O dia ainda
acontecido não com êle mas com outra pessoa. Ê que não tinha clareado e não havia ninguém no curral,
João Paulo se vê, às vêzes, como se fôsse outro menino. afora as vacas ruminan do à espera da chegada dos
O menino cujas aventuras infantis êle conhecera por vaqueiros e dos bezerros. De repente, João Paulo sen
intermédio das histórias que lhe contava sua mãe. As tiu uma vontade imperiosa de mamar numa das vacas
aventuras do João Paulo do sertão distante, um tanto como se fôsse um bezerro. De chupar-lhe os peitos, de
diferente do João Paulo da cidade. se esfregar no seu úbere. Pulou a j anela às pressas e
O menino sente penetrar pelos buracos de . seu na dirigiu-se para a vaca " Malhada " que, mais impa
riz a lembrança forte,do cheiro quase real do curral ciente que as outras ou talvez mais amorosa de seu
que ficava pegado à sua casa no sertão. O cheiro filho, mugia, de pé, junto à porteira do curral. Aga
acre das vacas ruminando, o cheiro azêdo do leite der chou-se debaixo da barriga da vaca e, com o gosto de
ramado, o cheiro picante da bosta de gado. E todos quem quem comete um grande pecado, começou a
aquêles cheiros misturados lhe trazem à lembrança chupar as suas têtas. Não havia leite nelas. Estavam
uma cena nítida de sua primeira infância. Ouve niti moles murchas e não turgidas como ficam quando o
damente os ruidos do curral subindo a seu quarto - leite b aixa. Então, João Paulo imitando a manobra
seu pai e os vaqueiros levantando o gado para ordenhar dos bezerros, começou a dar cabeçadas impetuosa s no
as vacas leiteiras. Os bezerros berrando como uns de úbere da vaca. A Malha da não gostou da manobra e
sesperados , reclamando impaciente s as têtas maternas. com uma boa patada j ogou-o no chão, com a cara ato
Eram os ruídos que o despertavam tôda s as manhãs. lada na bosta amontoada no curral. Neste momento
Êle ficava de pé na cama e debruçava-s e na janela que exato chegou Zé Luís que, compreendendo tudo o que
dava para o curral. Seu pai lhe trazia, então, uma ca se passava, ajudou o filho a levantar-se do chão e,
neca de leite quente coberta de um largo colar de es olhando sua cara tôda melada de leite e de bosta e a
puma branca que êle bebia com gôsto. Lembra-s e bem sua camisa coberta de poeira, disse-lhe sorrindo :
que ficava sempre em seu lábio superior um bigode de -' ' agora sim, estás um bezerro �agado e .cuspido,. e
espuma e que seu pai limpando-lhe a boca com seu bezerro ladrão,, ,dêsses que mamam as escondidas o leite
dedo áspero lhe repetia sempre : ' ' Já estás um homem, todo da mãe ! . e deu-lhe de leve uma palmada na
até bigodes tu tens. " João Paulo sorria feliz e ficava bunda com o mesmo carinho com que batia no trazeiro
contemplando os bezerros novos dando cabeçadas nos magro dos bezerros desobedientes.
úberes das vacas para que o leite descesse depressa
às suas têtas. Um ruido forte de avião que voa baixo dispersa os
pensamentos de João Paulo, as suas le�branças do
Um dia, João Paulo acordou bem mais ce d o. Ti sertão distante. O barulho dos motores vm aumentando
nha dormido sem cear e acordara com o estômago ar numa trepidação tremenda, o avião passa como um bó
dendo, reclamando impaciente o calorzinho gostoso do lido por cim:;t; de sua cabeça e o som se vai decrescendo
44 JOSUÉ DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 45
até se extinguir completamente. João Paulo acompa fumo por suas longa s e grossas chamin é s que . aos olhos
nha com o rosto voltado para o céu o vôo do avião até de João Paulo pareciam ser a marca inconfundível
que êle desaparece no horizonte. Volta a contemplar os do sexo dêsses navios : navios machos, de coragem in
caranguejos, agora de olhos em pé, mexendo-se inquie di;,.cutível.
tos, assustados certamente com o barulho infernal do Para o menino precoce na qual a puberdade come
avião. �cwa a entumescer a carne e as idéias, um homem de
Ê como se o trepidar dos motores tivesse estraça verdade devia ser sempre assim, como um navio de
lhado de repente todo o cristal de sua abstração, em alto-mar. Não se colar a nenhum porto. Apenas sen
cuja superfície o menino via se refletir com uma niti tir o contato gostoso com a terra e partir de novo
dez impressionante as imagens de seu próprio ser to pelo mundo afora, em busca de novos cheiros, de no
mando consciência do mundo. João Paulo, desencan vos contatos com outras terras.
tado como se uma onde de tristeza s úbita lhe afogasse A proporção que a maré crescia, que a franj a de
a alma, suspira forte. E o ar que lhe entra agora pelas espumas prateadas ia subindo de lama a cima, tam
narinas, j á não é aquêle ar impregnado dos cheiros bém ia subindo o desespero de João Paulo de eseapar _
i:
·�·
46 J O S U :f: DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 47
Formados ali mesmo na lama como se :formam e se dispara quase às carreiras pra casa do vigário, que
criam os caranguejos na :fermentação do charco. Para fica numa pracinha bem ao lado da Igreja.
João Paulo, êstes homens, cavaleiros da miséria, com
suas armaduras de barro, e os caranguej os, com suas Termina a missa quando êle chega na praça. Mu
duras carapaças, são os heróis de um mundo à parte, lheres pobres, com o fichus pretos cobrindo as cabeças,
são membrüs de uma mesma :família, de uma mesma descem pelas escadarias da Igrej a e se dispersam pe
nação, de uma mesma classe : a dos heróis do mangue. los dois lados da praça. O vigário gordo, pesado, de
E João Paulo se sente como se fôsse um filho dessa fa� braçüs curtos e a cara redonda com grandes bochechas
mília. Sente-se inconscientemente identificado com ês rosadas, aparece na porta do meio da Igreja. João
tes sêres, fraternalmente ligado aos homens e aos ca Paulo se aproxima dêle, beija-lhe respeitosamente a
ranguej os, conquistadores do mangue. mão e, com certa timidez, mostra-lhe os caranguej os
Aproximando-se cada vez mais da beira do charco, que lhe trouxe como lembrança. O padre sorri, agra
onde o solo fervilha de caranguejos, os pescadores dei� dece o presente e dá ordem a João Paulo para entre
tam-se no chão e, enterrando os braços de lama a den gar os caranguejos à velha .Ana, sua cozinheira. De
tro, começam a pegar caranguej os. João Paulo, diante pois, pondo a mão na cabeça do menino, se encaminha
dêste espetáculo que lhe entusiasma, esquece por um com êle para sua casa.
momento as suas obrigações e fica acompanhando aten Já o sacristão tinha fechado as portas da Igrej a,
to os movimentos precisos e o diálogo incisivo dos peE quando aparece na praça, avançando em passos apres
cadores. Arrastando�s e no chão com a barriga e as sados, um homenzinho magro, enfezado, com o ar assus
coxas coladas na lama, o mais velho dos pescadores, di tado da gente do interior. O homem tem um grande
rigindo-se ao mais jovem, ainda um tanto inexperiente, chapéu de couro na cabepa e um peru vivo debaixo
lhe diz : do braço. Vendo as portas de frente da Igrej a fecha
- ' ' Esfrega mais lama no corpo, José, se não os das, êle procura, sôfrego, uma entrada qualquer para
mosquitos te comem vivo. " José lhe responde : penetrar no templo e falar com o vigário. Neste mo
- " Já esfreguei bastante, mas os mosquitos hoje mento exato, o vigário reaparece na porta de sua casa
estão danados de fome, estão mordendo, picando a ao lado, acompanhado de João Paulo. O homem cria
gente mesmo por cima da lama. Mas eu não estou li uma nova esperança, estaca indeciso. É que p, figura
gando pra mosquito. Êle pode morder à vontade. Já do vigário intriga o homem. O padre Aristides apa
estou habituado. E mosquito não tira pedaço, .s ó faz rece carregando um enorme bombo de um lado e, de
coçar. E coçar é até gostoso. " E, dizendo isto, José se outro lado, um grande cesto de palha. O homem nunca
torce de gôzo, coçando a bunda e as costas com as mãos viu um padre com um bombo. Quem anda com um
enlameadas. João Paulo ri destas conversas dos pesca bambo é soldado, não padre. Mas o padre sorri olhan
dores e , lembrando-se de repente de suas obrigações, do o homem e o seu sorriso acolhedor dissipa as dú-
,.,
48 J O S U :E: DE CASTRO
róquia do padre Aristides. Alguns fiéis, mais preo destas supostas cerimônias satâni cas realiz adas em
cu :p ados ou mais curiosos, vinham ver com seus pró pleno dia nas margens do rio e a história do seu pacto
pnos olhos o que estava acontecendo . Subiam caute com o diabo p ara alcançar não se sabia bem que obj e
losos pelas margens do rio e, ao divisarem à distância tivos, desde que o padre pareci a um homem sem
o vulto maciç·o do vigário com o seu acólito João Paulo ambiçõ es, só mesmo interes sado em pastor ear tran
ajudando-o nesta estranha cerimônia que parecia al qüilamente o seu escasso rebanho de fiéis. E que tôdas
gl�m� forma desconhecida de magia negra, estacavam estas suspeitas de loucura ou de perver sidade diabó
atomtos para observar, sem serem vistos pelo ·,vigário. lica estavam a compr ome te r a venera ção e o respeito
E o espetáculo que assistiam era mesmo estranho im que o povo do lugar sempre votara ao seu padrinh o e
possível de se compreender. a sua vida exemplar. O padre Aristid es quase morreu
Parando em certos pontos misteriosos, segura de rir. Acabou se engasgando de tanto rir diante de
n:-ente marc � d_o � por algum signo oculto, o padre Aris tamanh os disparates, mas para evitar que a lenda se
tides dava 1mcw a sua macabra batucada e, quando avolumasse e viesse a comprometer deveras a sua ·
os sons arrancados do bombo alcançavam o auge, re reputaç ão, resolveu explicar todo aquêle mistério e
boando assustadores pelos espa<;os afora, êle parecia começou por explicar logo uma parte ao sacristã o :
crescer, levantando-se nas pontas dos pés e emitindo
longos $ibilos que lembravam um temporal de vento - ' ' O objetivo do meu pacto, Veremun do, é claro
soprando furiosamente pela planície descampada. e preciso , e eu vou lhe revelar qual é. É o de dar satis
Quando o padre terminava sua ruidosa cerimônia fação ao meu grande pecado a gula. Você sabe como
-
� oão � �ulo derramava em tôrno dêle um prolongad� sou comilão, como gosto de comer certas coisas e, de
Jato d agua com o seu regador de mão. A coisa era tudo o que eu gosto, a minha maior tentaçã o sempre
mesmo insólita. Os espectadores dessas cenas funam foi um bom guaiamu rechead o com farofa, como pre
bulescas fugiam apressados, evitando serem vistos para a velha Ana ! O guaiamu, Veremun d<i, aí está a
P.elo vigári� , e vo�t�vam para casa com a alma angus tentação do meu pecado da gula. Pegar guaiamu em
tiada pela mexphcavel desgraça do padre Aristid es . quantida de para aplacar esta gula é o objetivo do meu
A lenda desta esquisita forma de loucura começou pacto secreto. Mas não é um pacto feito com o diabo,
a se espalhar e j á chegara mesmo aos ouvidos do Ar� como andam dizendo. O diabo nada tem a ver com
cebispo do Recife, quando o equívoco se desfez. O isso, Veremund o. Ê un1 acto feito com êste diabinho ,
o João Paulo, que é o melhor pegador de guaiamu que
� acristão Veremundo, que há anos toma conta da Igre
Ja de Afogados vendo crescer a onda de boatos insen encontre i, na minha vida inteira. Pacto só entre nós
satos, resolveu tocar no assunto ao seu padrinho. dois que se mantinha até hoje secreto, mais diante do
Contou-lhe Veremundo tôda a história que corria a seu que você me diz, Veremun do, chame hoje mesmo, à
respeito pela freguesia inteira. Contou-lhe a história tardinha, alguns dos amigos mais chegados à Igreja
-
i
que eu lhes vou explicar tudo para acabar com estas guaiamu a todo mundo, mas às vêzes passava dias
histórias. ' ' sem aparecer guaiamu e sem que êle pudesse saborear
No fim da tarde, sentado na sua cadeira de ba o seu petisco favorito. E, então, o seu prazer de comer
lanço na salinha de visitas, contemplando o quadro diminuía sensivelmente. Foi um feliz acaso que lhe
do coração de Jesus e diante de uma dúzia de beatos e trouxe a solução a êste seu angustiante problema - o
beatas, seus prediletos, o padre Aristides desvendou de dispor de guaiamu em abundância. Feliz acaso que
o mistério todo de suas incompreensíveis excursões lhe fêz descobrir um nôvo e infalível método de pegar
pelas margens do rio, motivo de tanta inquietação. guaiamu. Feliz, também, o de ter encontrado um aju
dante ideal para a aplicação dêste nôvo método -- o
. �ncamin
Aristides
�ando a seu gôsto a conversa, o padre
exphcou que sempre gostara muito de comer João Paulo.
caranguej o. Que quando andou estudando nos semi Conta o padre Aristides que estava êle passeando
nários por outras terras, comeu várias espécies de ca num dia de calor nas margens do rio, quando de re
rangu�j o e gostou de tôdas, mas que quando veio para pente estourou um grande temporal. Dêstes tempo
o . Recife e comeu pela primeira vez o guaiamu, se deu rais de verão em que bruscamente, quase sem prepa- _
conta que esta era a variedade de caranguej o mais gos ração possível, a chuva desaba violenta acompanhada
tosa do mundo. Com a carne das patas mais tenra e : ; de um vento forte e do estrondo tremendo dos trovões.
com o sabor mais vivo de suas vísceras gordas. E o O padre, procurando escapar ao temporal, ao atra
padre atribuía esta superiori dade à raça do guaiamu vessar correndo o campo debaixo da chuva, viu como
e a sua alimentaç ão especial. cruzava o chão em várias direções, uma verdadeira
O guaiamu é uma variedad e de caranguejo que chusma de guaiamus. Os guaiamus corriam em zigue
não gosta de lama, que não vive dentro da lama como zague, como se estivessem completamente desorienta
os . outros caranguejos. Vive no sêco, nas terras en� dos. Desde que o temporal explodira, os guaiamus
xutas das margens dos rios. Não se lambuza de lama enlouquecid os abandonavam os seus buracos e corriam
como os outr os caranguejos. Não é côr de lama. O sem rumo, adoidados pelo campo afora. Foi neste mo
guaiamu tem o casco e os olhos azuis como se fôsse mentQ que o padre imaginou que a maneira mais prá- ·
mesmo, o representante de uma raça superior, uma' tica de pegar guaiamus seria fabricar tempestades. Fa
raça de caranguejo s bem nascidos, bem criados, bem bricar pequenas tempestades particulares para os as
nutridos. Guaiamu é um caranguej o de raça aria:riã "' sustar. Para êste serviço, o padre contratou João
diz o padre sorrindo, e confessa aos seus amigos mai � Paulo, que êle encontrara um dia no campo pegando ·
íntimos que se acostumou de tal forma a gostar do guaia:í:nu com um talo de capim que o menino enfiava
guaiamu que já não podia passar sem êle muitos dias. no buraco do bicho para o atrair. Talo· de capim que
E como o guaiamu é bem mais raro e bem mais difícil o menino ia puxando devagarinho, pouco a pouco, até
de 3e pegar do que o caranguejo, ' o padre encomendava desalojar inteiramente o guaiamu da sua toca.
HOMENS E CARANGUEJOS 55
54 J O S U :f; DE CAS TRO
tempestades artificiais para pegar caranguejo. mú si ca sacra com um ritmo um tanto m ar cial .
. � padre ac �bou por convi dar os seus amigo s para - " Você tem ido às liçõe.s de catecismo, João
assistirem, no dia seguinte, a uma destas caçadas. Al Paul o � ' ' pergunt a o padre Aristides paran do de re
guns foram e ficaram entusiasmados. Ràpidamente se pente de cantar e pondo a mão gorda no pescoço do
espa_lhou a verdadeira notícia, e a serenidade . voltou menino.
a re mar entre os fiéis da Igreja de Afogados. - ' ' T·enho, sim Senhor, p a dr e Aristides ' ', re s p o
Agora, quando o padre Aristides passa com o seu de-lhe João Paulo sem titubear.
bombo e o seu cêsto de palha, acompanhado de João - Você já sabe todos os mandament os de cor,
�au�o com o seu regador d 'água na cabeça, as pessoas João Paulo � "
J a nao se assustam mais. C umprimentam sorridentes - " Sei, sim Senhor, padre Aristides. "
e respeitosas, o vi � �rio, as mulheres e os � eninos, pa - ' ' E você tem .s eguido à risca todos ê ste manda -
rando �ara lhe beiJar a mao _ e, depois, ficam na beira mentos, João Paulo � ' '
do cammho a olhar aquelas duas figuras singulares - ' ' Tenho, sim Senhor, padre Aristides. ' '
com seus estranhos apetrechos avançando solenes para - Você tem feito tôdas as noites .suas orações
o campo de batalha. antes de dormir, João Paulo � "
Hoje, que o sol está muito quente e o céu sem ne -- ' ' Quase tôda s ' ', responde o menino mudando
nhuma nuvem, marcham os dois lado a lado com os o tom de voz, já sem muita convicção, com mêdo que
olho s � e!l1i-cerrados, encadeados ' pelo excess � de luz. o padre adivinhe que em regra, quando êle vai para a
_
O vigarw avança com os seus passos pesados, amea
çando atolar-se naquele solo de areias frouxas, e João cama, o cansaço é tanto que só há tempo e coragem
Paulo o segue, passando de vez em quando dum lado para fazer o sinal da cruz e mergulhar no sono.
para o/ outr_o , / s�mpre inquieto, sem saber que direç·ã o - ' ' E . por que não tôdas as noites, João � ' ', in
tomara o VIgano na sua estragédia do dia.
daga o padre com voz de censura .
A bel eza do dia, a notícia que recebera na véspera E João Paulo explica, titubeante, que às vêzes sua
_
do fornecimento em breve, por parte da C úria de uma fadiga é tanta, que êle adormece sem cumprir o dever
cert� verba para fazer uma limpeza em regr� na sua sagrado de agradecer a Deus o pão de cada dia e de
Igre� a - para dar uma mão de pintura, d esalo j ar as encomendar o corpo e a alma ao Senhor em . caso de
coruJas e os morcegos do telhado e o peru que lhe fôra ser chamado de imprevisto pelo Salvador.
ofertado a pouco, tudo isto enchia a alma do vigário A verdade é que João Paulo tenta sempre con
nesta manhã de um contentamento transbordante. ciliar o sono �nt e s que seus p ai s se deitem porque de-
-
56 JOSUÉ DE CA S T R O
'·
pois que êstes adormecem o sono do menino é sempre dado pra r nã0 rdeixarr íeS Ca(]laiF: lp:eido ma hfrenÜ�i r(Le seu
sobressaltado, interrompido pelos sons mais estriden vi g ário. É · �por ristO ! i qUe) í 't]_lmndO! íêle ;c,ahda i "cóm·. : se�lll
te s daquela sinfonia macabra que enche com seus ruí patrão, pisa nó cliã:o aórnh kúicil�do\· r cO;ml iumi ;�nêLar l �;1 �
dos confusos tôda a atmosfera do mocambo. A.lta noite, os . �
outros moleque s Hdo bmahglie . :ch:aJl!IHlm i r me.s'n�o.' , d�
o menino acorda de vez em quando em sobressalto, andar-de -segurar -peido., r J00piO imiar> Ê�e·J�go'll àl :
��e�2I3�
despertado dos seus pesadelos pelos ruídos descon que esta coisa feia lh!:n- sljl.íss;e l}_o.ela () poc�,Jd ia1amdo dJe>
certantes que estraçalham o silêncio da noite. Lá peido a seu vigário e·"1p:o;r; \iss0 � ' rupenn.hs: r ex:pliua> q:tlel,�
fora, o vento uivando e entrando pelas frestas do quando não dorme bem nítlun;:nrioiibe,, pa ! n()):itre< �seguinte•
mocambo, como se estivessem tocando um milhão de às vêzes lhe acontece cair no sono sem sentir, sem ter
flautas, a chuva tamborilando na cobertura de palha tempo de fazer suas orações.
e os pingos das goteiras ciscando na lama. Por tôda Neste momento, caminham numa área onde o chão
a parte, o diálogo maluco dos sapos, dos grilos, dos parece um paliteiro de barro, com o solo todo furado
cachorros famintos e dos porcos que roncam sonhando dos buracos dos caranguejos. O vigário crava os olhos
com comer. Mas, os ruídos mais terríveis, que mais
perturbam o sono de João Paulo, são exatamente os no chão, pára de marchar e dá início à caçada.
ruídos fabricados pela noite dentro do próprio mo - " Vamos começar aqui, João Paulo ", di z o vi
cambo : o ronco áspero e desigual de Zé Luiz, o sibilar gário arregaçando as mangas da batina e de.sembar �
cansado de sua mãe e o pipoco intermitente dos peidos. çando-se do cesto de palha. Começa logo a pancadana
Dos peidos de tôdas aquelas barrigas inchadas, dis do bombo, imitando o trovão e o sibilar do vigário, re
tendidas pelos gazes que se formam em abundância produzindo com os lábios o ruído ululante do vento .
por esta mistura explosiva de carne de caranguej o e Num certo momento, o padre faz um gesto imp er ativ o
farinha de mandioca, alimentação .quase exclusiva de na direção de João Paulo e o menino deixa desabar do
tôda essa gente. O ruidoso estalar dos peidos nos mais carregador a chuva no buraco do gu aiamu Q uan do .
dentes como um bater de pratos ou de bombo que es mento . Durante tôda a manhã, a tempestade r u g e na
planície e, só ao me i o-di a, com o rosto . af_o gu e a d o .do
maga definitivamente os sons mais discretos e .
delicados dos instrumentos de corda. sol a batina coberta de poeua e o cesto cheio de guaia
m�s, o vigário volta para casa para almoçar. Põe os
Passa pela cabeça de Jo ão Paulo tôda esta gama guaial1lus numa esp écie de engradado que êle con s
terrível d e sons, mas êle não ousa falar ao vigário ditas truíra no fundo do quintal, - o carito - on de a velha
coisas, principalmente dessa coisa feia que são os pei Ana vai cevá-los com os restos da cozinha e, entrando
dos. Seu pai sempre lhe recomenda que êle tenha cui- na sala de refeições, prepara-se para o almô ço.
58 J O S U :e; DE CASTRO
_
pad re .Ar1 shd es sorn , embevee 1do
de pra zer diante do
per u ass � do, o per u do M ártir S
ão Seb asti ão, que
fum ega sobr e a mesa, den tro de um
prato de trave ssa .
� a � , a�te s de atac ar o peru, fiel
. aos seus hábitos ,
ele m1c 1a o alm oço
" c om um prato de gu aiamu s l'echea IV
dos, com seus lustroso s c scos a
a zuis , da mesma côr
de sua louç a d e por cela na da Chi
na. DE COMO O C HÃO FUGIU DEBAIXO DOS PÉS
DOS MILIONÁRIOS D.A. B ORRACHA
baus
·-
libert ar os home n s prisio neiro s dêsse s vivos -- fino s, com uma cabeça enorme, da qual pendia uma
os caran guej os. barba branca. ,João Paulo só tinha visto uma cabeça
, �a �
tar � fa da manh , portanto, há semp re algo de
her01 co. .J a nos mesqu mhos afaze res domé sticos
, ,
igual nos santos da Igrej a de Afogados. Assustou-se.
Mas o homem sorriu e fêz êle se sentar num banquinho
-
v � rrend o o quintal, lustra ndo os móve is, tiran a seu lado. Explicou-lhe que o chamara, p orque queria
do as
teias de aranha do telha do da casa do vigár io conversar um pouco com êle. Perguntou onde o me
- .João
Paul o se sente diminuído, se sente mesm o do nino morava e quem era o pai dêle. Interessou-se por
tamanho
dum m �nino, mor ador de mocambo, criad o de sua vida e por seus brinquedos. E, uma hora depois,
padr e.
P a_ra nao se revol tar contra o trabalho humilhant estavam íntimos. Cosme encomendou a João Paulo de
e
.J oao Paul o parte outra vez na imaginaçã o. Deix
braço s e as mãos se ocupando dêsse s afaze res
a 0� levar-lhe, sempre que pudesse, os j ornais velhos que
êle encontrasse pela cidade. E foi para levar êstes
mas
fo �e com a cabeç a pelo mund o afora , vend o e
c01 � as do arco- da-ve lha. É como se êle não
�
fa endo j ornais, que se amiudaram as visitas de .João Paulo
estivesse ao paralítico . O menino recolhia os j ornais nas latas
I
mais na cas � do vigár io . Ê como se houv esse de · lixo das casas ricas, nos bancos dos j ardins, na
parti do
com seu amig o Cosm e . Com o se êle fôsse farmácia e na padaria, cuj os proprietários atendiam
. as pern as
que falta:n ao seu anng o para perco rrere ao seu pedido . E vinha, radiante, com sua carga de
m j unto s
todos aque les lugar es onde Cosme tinha vivid j ornais velhos, visitar seu amigo Cosme. No princípio,
. . o outro ra
suas Impr essi O nant es aventura s. pensava .João Paulo que Cosme queria ês.ses j ornais
I
· ?Jlsei?-pr � Cosme o comp anhe iro das aven tura
s de
para com êles cobrir, nas noite s de frio, o seu corpo
sua Ima�In � çao porq ue foi Cosm e que a estropiado, mas Cosme lhe explicou· para que os queria.
acen deu des
de o p rime iro momento em que se enco ntra Explicou que, p ara êle, o espelho de mão e o j ornal
ram. Há
tre" s anos que são amigos e a amiz ade eram pràticamente a mesma coisa. Com os dois podia
dos dois só faz
cresc er. Nasc eu e ta amiz ade n m dia Cosme tomar contato com a vida, informar-se do que
� � em que João
Paul o estav a empinand o papa gaio na beira se estava passando no mundo : no espelho, do que se
do man
�
gue, �u�n o � omeç ou a sentir baten do em seu
rosto ,
passava ali perto, no seu pequeno mundo, no j ornal,
� �m Insi� tenCia, um foco de luz. Intri gado com êste do qu:e se p assava mais longe, na cidade, noutras ci
J ogo, .Jo ao Paul o recol heu o seu papa gaio debai dades, no grande mundo.
xo do
braço e dirigiu-se para a porta do mocambo de Cosm
e Nestas visitas, Cosme foi contando ao meninos as
p ara ver de onde vinha aquêl e foco de luz. Não aventuras de sua vida. C ontou que como Z é Luiz êle
con ·
seguiu ver nada, porqu e a j anela do mocambo era também nascera no sertão, numa vila do S eridó, que
mais
alta do que êle, mas ouviu uma voz convid ando- o a é a região que dá o algodão de fibra mais longa do
entrar. Abriu a p orta e viu estira do numa cama mundo. Dizem que mais longa mesmo que a fibra do
de
madeira , um homem magro , de perna s e braços muito álgodão do Egito, j á famoso no tempo dos faraós. Que,
!.·!'
!� :
em criança, foi trabalhar como servente de uma es tra os atravessadores do Sul, mas viu que era impos
cola pública onde assisti a tôdas as aulas e cedo apren sível concorrer com êles. Não entendera como êles
.
deu a ler. Que leu todos os livros da biblioteca da podiam negociar naquelas. bases. Procu;rou ter um
escola , ficando um viciad o na leitura . Ficando homem, contato com êste s moços do nôvo mercado do algodão .
Cosm � se estabelecera na sua vila como negociante de Era gente fina, educada, cordial . Foram gentis, expli
algoda o . Montou uma peque na descar oçadei ra e com caram-lhe tudo o que se estava passando . 'Trabalha
prava e vendia o algodã o produ zido na região . No seu vam para uma grande companhia estrangeira, e spe
caso, não fôra a sêca que o expul sara do se;rtão . A cialista em importar algodão, que tinha resolvido se
várias sêcas êle tinha conseg uido resisti r. Fôra coisa · estabecer no N ordete. Mas a companhia não queria
·
�
chega e depois vai embor a, e a gente que ela e pulsou preço acima do mercado que os pequenos comerciantes
�
p o e voltar às su � s terras . O monop ólio, não . Quan não podiam pagar. Perdia dinheiro a propósito, dois
do ele chega e se Instal a numa região , não sai mais. ' ' ou três anos, mas acabava com o mercado local do
Não entendendo bem a coisa, João Paulo lhe per algodão. Ficava s ozinha. E aí é que ela fazia os pre
guntou . o que era monop ólio . ços que bem queria. Os rapazes explicaram a Cosme
- " Era alguma doenç a má � "· que o melhor mesmo era êle se retirar do ramo. E
E foi então que Cos:ne , com paciên cia, explic ara como êles eram seus amigos, arranj ariam que a com
� udo � oao �
� Paulo . Exph cara
que seu negóci o ia bem.
panhia comprasse sua pequena fábrica de descaroçar
o algodão. Imprensado contra a parede, Cosme teve
Ele v:aJ ava pelas terras da redon deza, comprando o
�
algo ao do� plantadore s que êle desca roçav a e depoi que ceder e emigrar do sertão, antes que se acabasse
s o seu dinheiro, lutando contra o monstro do mono
�
ven I � a fibra e as sementes na capita l. Gostava do
negoc w, go� tava desta s viage ns nas quais comprava pólio. Vendeu a sua fábrica para a companhia que a
semp re mult ?� hvro . desmontou, e partiu para a capital, o Recife.
s. Mas, um dia, come çou a apa
recer na regia o uns moço s bem vestid os que tinh Mas João Paulo continuava sem entender bem e
am
vindo d � São Paulo com a taref a de comp rar lhe pergunta porque o govêrno não o defendera contra
algod ão
e ofere ciam aos plant adore s um preço que .êle êste monstro. Cosme respondeu que o filho do gover
. não po
dia pagar nem de longe, porqu e lhe parecia bem acima nador sendo o representante da Companhia no Es
�
-
Ident lcos, mas q� ando vew vende r no Recife o algod ão mão · do monstro.
e as s �me�t� s, fm por preço bem mais baixo , perde
ndo No Recife, Cosme lera nos j ornais que os homens
um dmhmrao. Durante duas safra s, tento u lutar con-
d e coragem enriqueciam no Acre num abrir e fechar
··�.
64 i ' ! .l [ JI OI S U'ÊI ID.IE' J C A S T 'R O / u ' : H O .tv(E'NiS E CARANGUEJO S 65
deHq>lililos;'t ·Corrp m gwilJJ"ill a Plili ,'E uropa,; à, 1ho�·racha esta:\m eoisal seTiã.!oJ ;de jàolhê'!l t.;bol111 a r.ha, de defumá-la , de ven-
vatiendo , uma1 ·:f:JQlmtüillta , 1eúM Ama.Zônia·�er.Zil·ro , par.aísb1 ·da dAe�.rro,
, 'l w e
· de 1 ;+war ;:n. .
· qutYp'I'e'$Sa.
� · • l ; cr.:tC())
" ·
·
p
· .
'-'-'-'
. , . , ;' l·,1 ,'i" a:o'' l ' va/
iXT"";
1 ·0: ' · .
'
-AI
.fi.cre' ' é "cdmb ' ' o 1 ·crLltro J d i { l l i U lJ :,_ ".f 'J :�� { ) ' ] J 1J 1 .í ';� J 1 .! ! ' }.:� f.'; f ) >; f J ! H : ; i � \ l i _;
m1lrndp1i'1Pô'd�1 �:s&r: rittd.ttV l 16m · m�si ! > 'qn eni : para : �liá : vtd' {' ; /·',Mais i lúh$pres:Bâ I lm>inda:: ·d6 qnJie i a iJ?:iqueza, ca
: i! r,7i-
naó) ivhlh\;-:mais 11! r Mtt� 1êle ��ra:.\trrôçÓÍ ie , atb' bic'i 6so',: :e- 'f tii { minholli ah des·g.ráça � na : AmnazôniiaJ. ; I ; Eu'l j ákme . sentia
Fói� � ���vbH6li: 1 1Mh�; \ttUtdu ;�1stl·opikBB,' 'á'Íeíj1itdtí" ' ' 'dra d dono , dor1111up. d.o; 1 quan<ii o iOJ:ínetlf 1mu:n<ilo: : se; :desmoro nou.
�.?�touda::l{l�a4� �-;� '�Íi 1 �lstaVa I �1�� i ;êsH�àad no j �eu iNúi; 7: V:ivia J lle.ssedtempo � �oro ,tuma :q1<1.!lada Joura1 chamada
Jt:unine� 1 qu e . itinilila·m:rh .t granrue. rsiÍ®iàL :prêto1 ·no · ,Iábio,. srl +
a · e�6'6�F n1é�anc õlrMiili'e íi�M - �e 1i:h!úLàvelíúi:tM,
't f j j j-' '{ j ! '( ) l < f: f j ' j i i ,· f j ' .l l j f j ( T '
u üão
�-·· ' i" U • ' j'
'rá úlô . " ' ,'
aia�éj
' .' '
1da'
" ·' · ' pehdf)�• L :E na um:ria·.: • )rp.uilhe:b íS(i)ilDeriba� r J Dei';'lln.e' mt�it<Ds
ção à'c esa '' d e · ·
�� · l : Ji?:inã
' · ' • · " ' •
ih.ta
I ' ' 1 > 1 • " \ ' 1
[ 'd ')( l1D' > '-';! l i i 'J ! I ( l ' H l ! , ( ; ' ! I JI > <> i l ) ; !' J'.. I i i < i l ; ; ; i ; L i l i ; ( cor.t!3s:-: de i sêda: ' e I U(Jíllli 1 GQ[ar; de; ipér:olals que I 'iZOIDlDrel! )na
·
, c i•{
1 . d r • . . . . 'L'1 J
!
. . I J. "'" . . '
:-; i i \ l J -;->+l d:aqtiti±JdO' lRe>aiffie 'nÚm ':FJ2Jiv:io da; aoste�r�.:1
i�><mavti a• v a; : � enl!la
'(i)JS; \ g ap0l'H:1Ses H é:J2 it:.tzquen:u :c C<J
0 s . ·g"'
+ ""lO' ' "' "'n· d es
' r . A.
OJ a
i/.,. � '1:> 'l '' rd
· ·
•
�
TI . � - T, � - ' . I . • •
ave twe em . :ry ·I...[r.atraJ, IJJJ R i SUhPo > :r.1o ' lll:Um , na:vw ' ·gaiola; c;q.p�;rés d,q. iGÍÀ�d�,i onqy, �-u a�e!lÇ!,i� Q G:bí!l�:t,lto, �dos m e� s 1
àté rMantiu.�B'J
. .
itrtFntb
. .
J c ônbJ:o·Ütros .lnhrcl.ce sti:noilil
' retira·l'ites í0:GO�;mi41 iliéiS. d ·EnJ;Hm: ;qü�m : fez
ail)lÜ,g o E) I QOI4 q � (j]j-ulaS; JQI,; e
tilláJs : { Bêcãs1' 1 ra,tr.a:Y.éssei
r .
;.·l:t�!üêle
'1
Iittmd0'1.
'd?á.gt1a·, ' i der : bôca s:ubir,de ;:impcn·,tâJ<�Jeia a·�ela�se f dos , S;eningueiro.s i ,::Vri'íriia
âl,. ILo e l1.t1àJ, IC!om>Jo r1,'1tébto eaídb-) d�� verJ 1tanta 'ágtH:tj uquandb assim, . êomql umdoJJd!eí �se�ur.o ,de 1si e ,d0I ifui1tuJ:IO! ·.qüa:r:i,.
.· · · · · .
encontrei ' á ifdrtú1iá.J> Su.'bT rrtuT:ff 1 ura!Çol í d6 rilf lcom' ; o's a ptinaípiov ;que , tfuiih a • bebido• relú�ri;lpa:íahal iídel)lais . �,
l:neü's 1'·âpetréêihfós<'-'é1 í tl'ois1 1 'lió'me':ds 1:Jalttt 1 1áJrrdâr! 'na 'co.:. por; isso} rsêntia • as' Jl>eFhas iham1ms� �e� l(i)'Sl pé$Hfb:D0si:·;NJ: í:is;
'.lJ • . ;n,_ . '!,;; ' b '· ' '
lheí t:M ��j l:JO!r!r'â�liti é; veiú:l ehqd HM b d ão h� r� s�:ra ; ' é$tí-� g não > rer.::vbébede ira 'úf ;que tetti '• Sé'l!ium.
> .• •
í'av<a: mes bi!J1lxllio .:.meí <pelas'J]>E\IlNas ! aeinnv ie rtománúto 'conta dti 1Iii e'u
o dia, fiquér'imp'ottà�!J.ífi&' ) Só1;cbfhi1áflclói'sas i±nportWiàis c<D·rpo. 'iEIDa ) ià) ' palrwlisfuài pll (!YVocada' 1 pela ' fo'lnEV ldé ' �!J.J..:.
cla 1.Eur opa t.'�xiamne :e��fe:ij ãa ; e>lilata<i�s,r;vi3rdu�, ··J:egumes meilto� :ilr'B�hos · qut\, ilàqiiélJá! Ji0�te, • me 'j1oig1ávtt 1 rtrl ) cama\
e�;:firruvta � de lo<D:rllsérvas) ii;;iln.oo:�Uláte-s1 e1 v>i:Q:h0sJ fi:lh!@s;• ; A, ;ver� H� r O;I;\�'�) . Je1� j j,�;rp;:;tif3 ' nm ! J.�'íflill�f\T�fl: [ .GPW i /il<S ) IT}:iph�s pr ó
d1ade: =é tque��aat Euv<Dm>a:J 'Vinhuetudôi !():r�he ' s� ;.-é bnsmnia :pflj i ÇtJilJJj);tlt):g�s., ij'q.; Willfl� L fl:�:fQg&,;r;J;Çi fL; i<;bl+B Til� i �0f�l,a . r��I;l t
ná: l re�iãd; r iD;afil1:ngiwtérràJ tvinh'ái '�ai ��:it'rne •eL<!>l ieijãóv f IDa t:ikll}.�; . ,d q:p ç}, i ,d, q ,m't)mdo,,r , �lil{:nl;ln�� � jjSpjjTI;;�,:naj s,e;r <ile:r!Yu: ·
Fra]']içaiítJ®Jbi:ihl�itíilb.ái ed�ambém ras� l:íA11'izesi côml.icas pà>rd bftdp :í]g�1Qjb,ei!;ibé�i : e�hoJ1a 'j
tJi!ve��e , l]l!:Otíciad qlité : milha-:
c ant ar em no teatro de Manaus. Da� �Fbliô niliá rais nfuu .:. :ues de: Jo;utri�s .'s!n·ing;u eitoá:·tinham: [si do' ;ata'tadoss ciL<essa
1hGir"eSl rpaili'a, !JPpvóan 10� borudéis,J N;a;:.Atnazônia niesmo, esd;ran'fl a i ;doe:pÇa qhe,, , ihácjue:la íéprioo, Jl1iir.lguéni /:sabia ; o
s6J lse)'lpno«liufllia íhomTacoo; :NdiDig;uiémr :<ür�dava�,q.e · i outra quei;�N:t;e,qute ,f1iiDJj Í3, J se srabe •quf(Jl � V hmar � doe:rlça:rd fl fome [
66 JOSUÉ DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 67
· Para não deixar minha carcaça enterrada na terra Quando João Paulo ficou conhecendo, em todos os
da borracha, tratei de fugir depressa daquele inferno detalhes, a odisséia de Cosme em sua fracassada aven
verde. C ompr ei uma cadeira de rodas na casa de mó tura para conquistar o mundo, cresceu ainda mais a
veis do Antônio Mendes, qu e estava ficando podre de sua admiração pelo amigo, e a sua curiosidade em
rico, cobrando um desp r opósito por êstes móveis de ouvi-lo contar mais coisas de sua vida. E Cosme sem
sua fabricação a todos os s e ring ueiros que eram toma pre satisfez esta curiosidade do menino. S empre con
elos pela paralisia. Desci com um bando dêle s noutro tou-lhe, não só as coisas maravilhosas do mundo que
navio gaiola. Punham as nossas cadeiras de rqda no êle percorrera com suas pernas a Amazônia - mas,
-
convés e ficávamos a nos lamentar, uns para ou ou também, as do mundo que percorrera com a cabeça,
tros, das nossas desditas. Do fim de t ô da s as nossas nos livros : tôdas as lembranças de suas leituras na mo
ilus õ e s de .s ermos milionários da borracha. O que éra cidade.
mos mesmo, era um bando de trapos humanos j ogados João Paulo bebia estas histórias com sofreguidão.
naquele convés de navio, voltando desiludidos para Para êle, Cosme era uma espécie de oráculo que tudo
as nossas terras, tentando salvas as nossas peles. ' '
sabia e que tudo o que dizia era como se fôsse sagrado.
Cosme contou que, ao chegar no Recife, consul E não só para êle que era um menino, mas para quase
tara tôdas as celebridades da Medicina e que êstes todos os habitantes da Aldeia T'eimosa. Todos admi
sábios lhe diziam que aquilo era uma intoxicação pro ravam a sabedoria de Cosme que era o verdadeiro cé
duzida pelo álcool e pelos alimentos estragados. Para rebro daquela comunidade, a sua cabeça pensante para
cur ar se, o que precisava fazer antes de tudo era
-
decidir de seus grandes problemas ou para explicar as
comer o menos possível. Era viver quase em j ejum. coisas incompreensíveis ao limitado conhecimento dos
E, en qu anto êle j ejuava e os médicos comiam-lhe o outros. Com o passar do tempo, quanto mais mur
dinheiro todo, ganho a custo de tanto sofrimento, a chavam o.s mú sculos do corpo de Cosme, mais parecia
paralisia progredia. Foi assim que a sua fortuna se crescer a .sua cabeça e, com ela, o seu saber. Estirado
fundiu, como se fundiram e desap arece ram o s mús no seu girau, deitado no seu mocambo perdido no ma
culos de suas. pernas, a sua fôrça de andar e a su a ta g al, parecia que Cosme estava em comunicação per
mola ele mandar : os seus nervos e o seu dinheiro ! manente com o mundo inteiro. 'T udo o que ac ontecia,
-- ' ' Se estou aqui nesta cama, estirado como um lhe era logo comunicado, através de fluidos misteriosos.
tr apo dizia Cosme, gesticulando com o espelhinho na
, A verda de é que êle sabia das coisas, antes mesmo das
palma da mão a culpa é minha. É verdade que foi cois as acontecerem. O seu saber fazio-o adivinho, uma
a miséria do sertã.o que me fêz sair de lá e a fome de espécie . de profeta aos olhos da comunidade. Um ano
alimentos frescos da Amazônia que me derrubou no atr á s, numa de suas conversas com Z é Luiz, C osme
chão. Mas foi a minha ambição de riqueza que me um dia predissse que Rosa, a irmã solteira do :Mateu s,
levou para lá, o que foi a minha verda de ir a pe r di ç ão . ' ' iria aparece1: grávida. E diss e mesmo, com um sorriso
68 J O S U :I!: DE CASTRO H O M E N S E C A RA N G U E J O S 69
··-
malicioso, estar certo de que o filho dela se pareceria nados j á tocara mai s de um dúzia. Então, o padre
muito com o S e;Jastião. E não é que se notasse qual ordenou que êle dobrasse finados pela velha Clotilde.
quer mudança na vida da Rosa. Quando, meses de João Paulo subiu na tôrre da Igrej a e, do alto,
p ois, a barriga dela começou a crescer, acharam que naquela hora em que o sol se punha, viu a cidade in
Cosme tinha adivinhado. Mas êle negava que fôsse teira vestida de roxo . De um lado , as casas crescendo
adivinhação . Dizia modestamente que o espelho dêle cada vez mais com a distância, até virarem arranha
via e lhe contava coisa s invisíveis aos olhos dos vizi -céus no centro da cidade . A s tôrres das igrej as tam
nhos. 'Também, quando houve um tremendo crime de bém crescendo cada vez mais, até alcançarem as altu
ciúme no bairro, e encontraram morto, na beira do ras imensas das tôrres das igrej as do bairro do Recife .
mangue , o mulato Júlio com uma faca enfiada nas Do outro lado, as casas diminuindo de altura, ficando
partes, ninguém sabia quem era o assassino. Mas Cos cada vez mais baixas com a distância, virando mocam
me sabia, porque seu espelho tinha visto o crime . E bos e latados, até desaparecem de todo dentro . da lama
foi .êle quem permitiu à p olícia descobrir o criminoso, do mangue . ·T repado na tôrre da Igrej a, João P aulo
informando ao delegado que veio ouvi-lo no seu mo se sentia como se estivesse a cavalo no lombo de uma .
cambo. montanha que fôsse um divisor de águas, de onde cor
Estava João Paulo com o pensamento perdido nos riam para um lado, os rios da fortuna e, para o outro
detalhes da vida de Cosme, quand o ouviu a voz do vi lado, os rios da miséria.. Correndo, uns para as terras
�'ário chamando-o da sala de visita. Largou o ciscador dos ricos e, outros, para as terras do s pobres. Lem
j·ü:riité> ao muro do quintal e foi ver o padre. Êste lhe brava-se João Paulo, nesta hora, da frase que ouvira
re�orri� dou ir depressa chamar o sacristão p ara do da bôca de sua mãe : ' ' Lá, do outro lado, é o paraíso
D�âltr oHsi:4:o da Igrej a . É que tinham vindo , há pouco, dos ricos , aqui é o p araíso dos pobres " . E neste mo
avfs'�lf!J�91 :padre que a D. Clotilde, presidente da con mento, puxava as cordas do sino, dobrando finados,
fht:rifâ/dks :Jfilhas de Maria, tinha morrido de repente . e as puxava com u m certo gôsto perverso, sabendo que
Et1á �la' 1 tl�l'fro s pilares da Igrej a : sua grande benfei aquêles sons arrancados do bronze iriam varar o ar
t(i)l"â. 1 1 1E:l'lfW lJ!r.étii�o l (ltte os sinos dobrassem depressa e em tô �as as direções e iriam assustar, fazer encolher- ·
;6d!'tei.mifidã'0I i ]Pâ/'uilio) J fbi -correndo à casa do sacristão -se de mêdo dentro de suas casas, os habitantes da ci
rua:s,fiãl0;.:iJ1 ebeb:i.1tr�:r"J.) 'ÊMte tinha ido à cidade busca � dade rica e os h abitante s do mangue miserável. S e
vtllaSl ipít11áY à'J:inlifSsaJJdés ét11ful!>ti dia de outro morto. Na C osme, n o seu mocambo, a o ouvir o dobre d e finados ,
:Bá�fltà .ddrsiâfd#��ã-ó;i·{�Jfi�áfftilé;j> êí1�1Ítttdu: 3:. João Paulo se puxava o lençol que lhe cobria o corpo até o pescoço ·
êlensátlb1à d'0lb!ii' í:ti'i1é!:P�s<:fnd8fl El� fdisses qúlé' .\3sta:va cansado sentindo o bafo frio da morte soprar-lhe sôbre o corp o ,
dei sa&e�� �de "ºr'NaJ.t!J.�)(;) o:�á:�ri:siflão till:!lllil!a Llfyregüi�à, . man também Vanderlei, que morava num p alacete d e luxo
dMnàJ >êl'e r'àuhi1rh Et í Wrifit:trtdfaJ�Ig:t·@j•il p$ra>'dóbfratt j os 1 �inos no Largo da Paz, ao ouvir êstes sons macabros, c o r
ohrum�ndtH o a t!fiéi�trp·ar.rtt:·rá? iliissa.nE ·.qnet dob1'8Sí i fie; : ri.. reria assombrado do terraço do seu palecete para s e
70 J O S U l!:: DE CASTRO
palavras, vencendo com esfôrço o emaranhado das idéi me sentia . feliz com a mulher e meus dois . filhos no
as. D epois, foi tomando embalagem e a sua história sertão. Mas, em 1947, as coisas ficaram pretas . Nunca
corria como um rio, banhando de felicidade a alma de ví uma sêca tão danada. Não havia para onde ap elar .
João Paulo. Secara tudo : o vale e a serra . E as notícias que che
- " História de fome não é história que se conte gavam eram de que a sêca era geral. Tentei tudo mais
- come 9 o ��éL�iz - é
só tristeza. 'Tristeza e vergo- não pude me agüentar. Passei dias, de sol a sol ·�
uh�. Historia feia. Mas, se vocês querem, eu conto tirar espinhos de mandacaru para que o gado não m r�
assim mesmo . C onto a tristeza e a vergonha que a resse de fome nem de sêde. Mas não adiantava nada.
gente passou na sêca de 1947. Em poucas semanas, o gado começou a entrevar de fo
m e , e ficar com os quartos duros, sem poder andar .
Até então, a gente vivia feliz no sertão de Caba Acho que era a mesma do ença que tinha dado em Cos
cei.ras. É verdade que é o município mais sêco do
n� e na A.m �zônia . Eu punha as vacas numa espécie de
Nordeste e, de vez em quando, a gente se aperreava com
grra� de tiras de couro, sustentando-as por baixo da
a falta de chuvas . Mas, eu sempre me arranj ei. Quan
barriga, mas as vacas morriam assim mesmo , o corpo
do a sêca apertava de um lado, a gente desapertava de
suspenso mas a cabeça e o rabo caídos, ap ontando pa-
outro lado. Se o pasto acabava, a gente dava rama ao
ra a terra estorricada. Andei como doido correndo
gado . Se as ramas acabavam, tangia-se o gado para
un; p e, de serra. E e;1eontrava-se sempre uma salvação . rri
atrás da água que parecia fugir da gente co o o diab o
d a cruz . A. á � a do tanque de pedra secou logo . A
Misturava-se a farinha de mesa com a farinha braba .
de macabira, arrancava-se no mato algumas raízes bra
�
cacimba do Iacho Fundo, que dava uma água salobra
.
�as e atravessav� -se a penúria. O trabalho era duro ,
e pesada, fOI baixando cada vez mais com a passagem
dos retirantes sempre sedentos , transformando-se, em
e verdade, m a s tmha suas compensações.
pouco tempo, num buraco escuro, tendo, lá no fundo
Eu cuidava do gado do Cel. Virgílio Maracaj á e um p ouco de areia molhada que era preciso espremer �
plantava u� pequeno roçado. De cada quatro bezer escor;r er nu�a peneira para dar um pouco d 'água. E
.
ro� que naseram, um ficava com a minha marca. Era a
depOis, a cacimba deu na pedra e, a p e dra, nem espre
mmha paga de vaqueiro. Na casinha da gente, podia
mendo . Passei a buscar água numa fonte, :rio p é da
se morar. Quando, nas tardes vermelhas do sertão eu
serra, a uma distância de mais de légua. Mas as filas
voltava do trabalho para casa, encontrava Maria se�ta sem fim dos retirantes acabaram chupando a última
da no batente da porta, dando de mamar a João Paulo .
gôta d 'água da fonte. E começamos a morrer de sêde .
A. o avistar de longe o menino no colo de Maria ' eu
Foi aí que se deu a tragédia que me fêz p erder o amor
pens�va nas rmagens, que Deus me p erdoe, da Virgem
o
beu seu gole de cachaça, limpou o.ii> lábios com a manga borda do vale, onde uma colina se levanta picada pelas
da camisa e, continuou : hastes dos marmeleiros. De vez em quando, surgia na
- " Lembro-me bem dêste triste dia. An d ei a , b eira da estrada uma tôsca cruz de madeira, marcando
tarde tôcla, cavando o chão de pedra na beira da várzea o ponto onde um retirante tinha caído, morto de fome
· estorricada, em busca de alguma raiz de macaxeira que e de cansaço.
tivesse ficado, por acaso, enterrada no solo da cultura Antes . que êle chegasse em ca s a , já o sol se tinha
de vazante. Mas não achei nada. Desanimado, s entei posto, e um clarão de brasa de um vermelho violento
me numa pedra na beira do riacho sêco e vi, em tôrno recobria todo o horizonte, ensangüentando a paisa
de mim a planície descampada de uma vastidão im gem desoladora. Nesta hora de transição, a terra tôda
pressionante. A .s êca tinha matado tudo. Deu-me uma parecia crescer, ficando vazia e grande demais. Zé
tal depressão ·diante daquele espetáculo de areia e pe Luiz sentia uma solidão infinita. Entrando em casa,
dra, que senti meu coração, dentro do peito, crescer perguntou logo pelo filho doente e Maria lhe respondeu
como se também virasse pedra. Veio- me uma vontade aflita :
imensa de esconegar no chão, de deitar o meu corpo - " O pobrezinho está queimando de febre e mor
pesado naquela terra quente e ingrata, e ali adormecer rendo de sêde. Pede água o tempo todo mas não tenho
para nunca mais acordar. Mas, lembrei-me ele Maria mais uma gôta para lhe dar. Acabou tôda. "
esperando que eu levasse qualquer coisa para comer, e Largando. sôbre a mesa o chapéu de couro e o feixe
do meu filho Joaquim, doentinho, estirado num girau ele varas de xique-xique, Zé Luiz apanhou um pote
_ de varas. Por isso, reagi contra a depressão tremenda. e tornou a sair em busca da água. Sabendo que não
Colhi uns galhos ele xique-xique com o meu facão e havia água por perto, tocou direto para a casa do seu
toquei para casa, para tentar enganar, por mais um compadre Joca Salgado, que ficava quase a uma légua
dia, a fome de minha família. ' ' de distância, para lhe pedir um copo d ''água para ma
E Z é Luiz evoca para seus ouvintes, a sua grande tar a sê de do · filho doente. Bateu à porta da casa de
luta buscando escapar ao cêrco da fome e da morte. Joca e a porta se abriu por si. Entrou, e não encontrou
Conta que, pelos caminhos áspeTos, as solas de suas ninguém. Compreendeu logo que a família tinha des
alpercatas iam batendo no chão como uma matTaca e cido tôda com os retirantes. Riscando um fósforo, cor
que, pensamentos trágicos começaram, também, a ma reu à cozinha e, aí, viu o pote d 'água encostado num
traquear sua cabeça dolorida : Quando acabaria esta canto da parede, com a bôca para baixo. Sentiu, neste
sêca terríveH O que acabaria primeiro : a sêca ou a momento, um apêrto terrível na garganta e a bôca
sua família� O que .s eria melhor : morrer de fome e de mais Bêca como se a sêde desadourada quisesse estran
sêde na sua própria terra ou emigrar para morrer de gulá-lo de uma vez. Desesperado, deixou às carreiras
fadiga e de vergonha na terra dos outros � Como uma a casa de J oca, e disparou pelas campinas desertas, de
fita empoeirada, o caminho se ia d es enrol an d o para a cidido a emigr,ar t amb ém . A l argar , n a qu ele mesmo
76 DE
HOMENS C A RA N G U E J O S
J O SU Ê C AST R O
E 77
.....
dia, aquela terra amaldiçoada. Terra onde o homem muito leves. Depois, desviand o a vista, olhoU: a janela
trabalha todo o santo dia e, no fim, vê seu filho mor� aberta para o pátio da fazenda, como se fôsse um bu
rendo pela falta de uma gôta d ' água que lhe mate a . �·aco enorme dando para o infinito. Foi até junto da
sêde. No esfôrço da marcha através dos tabolei'r os Janela e, olhando para o céu tranqüilo falou com Deus :
ainda coberto de suor, e ao passar a mão sôbre os ca - " Uma coisa ·
a· es t as, vosmece nao ve, mas quan-
... � ...
belos ensopados, pensava na alegria imensa de uma do a gente faz um pecado dêste tamainho ) está com
chuvarada forte - uma daquelas chuvaradas tremen um oAlh o enorme em cima da gente I ' '
das que, às vêzes, desabam no sertão - e que enchar
casse a sua roupa tôda, o corpo todo, até à raiz dos E Z é Luís com a voz quase embarga da pela emo
ã
ç o conclui a sua história :
ossos. Seu desejo era tão grande - a sêde tão intensa
e a angústia tão profunda - que chegou a ter aluci -- ' ' Foi a primeira vez que falei com Deus sem
nações e, por duas ou três vêzes que o suor lhe escor ante s me benzer . . . " .
ria da fronte, perturbado, chegou a estender a mão No dia seguinte enterramos o Joaquim e partimos
no ar transparente da noite para ver se não estava os três : Maria, João Paulo e eu daquele inferno em
mesmo chovendo. Entrou em casa e gritou para Maria : brasa. "
- ' ' Junta os trens, mulher, embrulha bem os me , A �vocação de todo aquêle sofrime nto esgotou Zé
ninos, que vamos embora desta terra amaldiçoada. Va Lms. Ele se calou abatido e ninguém insistiu para
mos descer para o brejo onde haverá sempre água que êle prosseguisse nesta noite a história de sua pere
pra dar ao Joaquim e ao João Paulo ! ' ' grinação até o Recife.
E a mulher, que estava sentada na sala de
j antar com os olhos fitos nas varas de xique-xique e o
queixo magro afundado na mão crispada, respondeu
com a voz pausada :
- " Já não adianta mais água, Joaquim j á
morreu. ' '
Zé Luiz estremeceu sob a violência do golpe que
lhe dissipou tôdas as alucinações, e sentiu uma fôrça
terríve l - a fôrça do ódio e da revolta - invadindo
lhe o corpo todo, da cabeça aos pés. Entrou no quarto
e viu seu filho morto : um feixe de ossos enrolados
numa colcha de retalhos com os olhos muito claros e
muito abertos, os glóbulos vidrados e sêcos sôbre os
quais a chama de uma vela fazia esvoaçar sombras
VI
mêço êle contara no mês passado. Zé Luiz havia con parecia prosperar nelas eram os cemitérios. Todos
tado a tristeza, mas nada dissera sôbre a vergonha. bem povoados de almas. Murados, arruados, alguns
E essa também interessava aos companheiros, insistia até ajardinados, enquanto as vilas ao lado eram uns
Juvêncio. montões de miséria. Era como se só existissem mes-
Z é Luiz fêz-se um pouco de rogado, mas com al , ' mo os mortos a reclamarem cuidados, e ninguém pen
guns goles de cachaça, desembuchou o resto da his sasse mais - nos vivos, neste reino da morte. Caminha
tória : vam nessa procissão como fantasmas no meio de ou
- " No meu entender, o ato mais feio que um tros fantasmas. Vinha gente de todos os lados e vinham
homem pode cometer é mesmo o de roubar o que não todos correndo com mêdo da própria sombra, indo para
lhe pertence. Ê tirar escondido as coisas dos outros. o brejo e para a costa em busca de água e de comida.
Ladrão para mim é o pior nome que se pode chamar - ' ' Vocês que chegaram pro Recife, vindo s da
a um cristão. Poi s bem, na sêca de 47 eu dei para la qui de perto, da zona do brejo, não sabem o que é amar
drão. Roubei comida. E roubei de um homem bom gar a poeira das estradas do sertão em tempo de sêca.
que não merecia nunca ser roubadõ-. Mas-vou contar co Não é só a lonjura das estradas que não tem mais fim,
mo tudo se passou . é o sofrimento do retirante que também pare ceque -
Vocês j á viram que não foi por ambição que a não tem mais fim. Disparando pelos taboleiros -des-
gente abandonou a terra do sertão. Não foi em busca campados, com o sol tinindo nas costas, com á fome do
de riqueza. Foi em busca de vida . Foi para salvar a endo dentro da gente e a poeira entrando pelos olhos
vida dos meus que desci para a costa. Vínhamos em e pelas ventas, o sertanejo eome o pão que o diabo
busca de vida, mas o ·que a gente topava a cada ins amassou. Foi o que se passou com a gente quando
tante era com a morte e não com a vida. Era tanta deixamos o sertão na sêca. ·''
. morte de retirante que a impressão que a gente tinha Zé Luiz contou que, depois de vários dias de mar
era que êles vinham mesmo acompanhando o seu pró cha, começaram a encontrar gente nas casas. Nessa
prio entêrro. Eram uns mortos caminhando até a sua zona, a sêca tinha sido menos feroz, e muito matuto se
própria cova. Na beira da estrada tinha mais cruz tinha. agüentado na terra sem precisar emigrar. Co
plantada do que pé-de-pau vivo .A estrada parecia
. meçou mesmo a aparecer lugarejo com feira na praça,
um caminho direto para o outro mundo. E quando a mas Bempre com soldados de polícia embalados, colo
gente chegava nas aldeias e nas vilas, também não eram cados nas pontas da feira para evitar que· os retirantes
os vivo s os mais acolhedores. Eram o mortos. " esfomeados chegassem ao extremo de invadir o povoado
Zé Luiz descreveu as vilas mal cuidadas, abando e saquear as mercadorias. De matar e de morrer por
nadas, por onde passaram. Vilas onde quase não se um pouco de farinha mofada.
via viva:-alma nas ruas. Vilas fantasmas. Muitas casa s Uma noite, a família se arranchou na beira da
com as portas escancaradas, batendo ao vento. O que estrada, numa casa que tinha uma cacimba ao lado.
83
82 JOSUÉ DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS
- ' ' Foi a cacimba que nos seduziu, comenta Zé Terminad o o café , Z é Luís .se desp ediu
d X a�de u
mais o
br a
·
u o
. C:ontou pra gente, enq ant b ebíamos na cozinha uma
xícara de café ralo, que êle
tinha uma fazendinha na
E fo i assim que depo is de ajud ar o homem a faze r
ca
as carg as, saím os todo s com o rica ços
no lomb o dos
bôca do sertão, m a s como sua f az e nda pé de
ficava no
valos pela e strad a afor a . O hom em p_uxand o a fll. � ,
.
uma serra, nunca sofl·ia de es ro das sêcas. É
o s pê que
nas suas terr as havia uma fonte q
, ue
nunca secara em
Maria no meio e Zé Luís montado no ultimo dos ani
tôda a su a vida. A fonte era mais.
um
riacho correndo sem
pre, inverno e verão, irrigando as terras dêle, as s s
ua Joã o Paulo que escuta atento o relato d � pai, re
mon
plantações de cana, de milho e de feij ão. 'T udo em pe lemb ra bem nítid as as cena s da viagem da fam1hamo �o
quena e scal a , év e rdad e,mas que da va - conforme tada nos cavalos do seu Xan du. Lem
bra- se mes
dizia o homem - para manter em de decên
condiç·õ es susto que pass ou , quando , ao anoitece r deu um co chilo
eia a sua família. Xandu convi ou a gente ar a quan
d p e acor clou vend o um a onça enor me mon tada na g �rupa
um o de
do voltasse ao sertão na é oca das chuv s passar na
p a do caval o , já pr e ste s a d evorá l o . Deu- gnt
fazenda dêle e a gente r om t u p orque eu queria ver
p ee pav or. Não era onç a nenhum a. Era
o rab o do caval o
.
a suas nece s si d a de s ,
o milagre dêste l'i ac oh correndo sempre mes
no sertão empinad o, enquanto o animal fazi
r�
mo que fôsse só n uma s poucas braçadas de te r . ' ' sem int err o J:I� p er sua m archa .
85
84 JO S U É DE C A STR O
HOMENS E C A RA N G U E J O S
Tinham falado tanto em onça naquela ponta de sua carga, a carga e;a sa�ra.da e eu tinha a .obrigação
serra que o pavor se apoderou de João Paulo. .Agora de resistir à tentaçao . Tirei um pouco de palha que
êle relembrava bem o susto que passou e a vergonha recobria os queijos e comecei a chupar essa palha s � ca
de ter gritado de mêdo e a mangação que fizeram mistura da com o cheiro bom do queij o. Pensava assrm,
dêle . . . enxuga r a bôca e enganar a fome, mas a �anada da
- ' ' Escanchado em cima da cangalha, continua fome longe de se acalma� parece que se excitava cada
Zé Luís, com as duas pernas estiradas pra frente de vez mais. Tonto de deseJo, quase sem saber o que es
cada lado do pescoço do animal, eu me sentia reconfor tava fazendo , comecei a pas s ar a mão ·de leve �as b �
tado de todos os sofrimentos. Se11tia-me como um lord, las macias dos queij os. De repente, com a mao tre
passeando a cavalo pelas suas terras. Os outros reti mula como quem comete um crime, acabei metendo
os dedos dentro da carne de um dêles e arranquei um
bom pedaço. Meti-o todo na bôca e · comece� a mas
rantes espiavam a gente passar com uns olhos compri
dos de inveja de tanta comodidade. ' '
tigar disfarçad o, quase sem mexer com � s b �Iços para
D e cima do cavalo tudo tomava uma feição dife que no caso do homem se voltar para tras. ;n ao me . Pe : _
rente : a poeira incomodava menos e o sol j á não pa gasse em flagrant e, comendo os seus queiJ OS. DeiX �I
recia tão quente no lombo da gente, prosseguiu Zé Luís.
I
a mão dentro do girau, sempre amolenganAdo os quei
Só a fome continuava a mesma . Com os solavancos do jos e arrancando de vêz em quando um � ovo peda 9 o.
cavalo pela estrada dura, a barriga roncava como um
porco e era de fazer mêdo seu barulho nas tripas va O gôsto do queijo no céu . da b � � a acende� um �petite
zias. Com o calor do sol começou a subir da carga um desadour ado. Quanto mais queiJO eu corr:Ia, mais v,o�
tade eu tinha de comer. Era como se foss � um vic:o
cheiro forte das mercadoria s. Do lado direito vinha impossível de largar. E enquanto o sol subia e descia
um cheiro bom de queijo que me fazia cócegas nas no céu eu continuava sempre como um rato roendo
ventas, do lado esquerdo um cheiro enjoativo de rapa queijo.
dura que me embrulhava o estômago. Era o cheiro de
queijo que me tentava e por isso empinei um pouco o ' ' Os cavalos comiam pedaços de estrada e eu co
corpo dêste lado. .A fome foi crescendo a minha bar mia pedaços de qu eijo, - de vez . em quando o homem
riga vazia .A bôca foi ficando cheia de uma saliva falav�a alto me perguntando coisas. Eu fechava os
olhos e fingia que estava cochiland:_? , com .a ?ôca entu
.
� e que e1l tinha devorado descaradamente os seus quei� var desfeita pra casa, veio uma vonta de violenta de
J OS . E s p e r a v a que êle só d e s s e pela coisa na minha au� reagir. Levantei-me do chão cego para- agarrar o ho,
sência, quando. ch e gáss em o s em Car u aru . É que antes roem pelas güelas, mas, não pude . O homem estav a co
eu abandonana a sua companhia. Inventaria um berto de razão . Fiqu ei parad o diante dêle coberto de
. pretex�o e ficaria remanchando na estrada até perdê� injúrias. O homem desor ienta do dispa rou pela estra da
l� � e vista. �as, ? omo fôra difícil na véspera s àir da afora , tangendo o.s seus caval os aos grito s. O último
v1zmhança da caCimba, agora também eu sentia como ia com a carga pensa , com um dos lados quase arras
era difícil sair de cima dos queijos. " , tando no chão. Nã.o reagi, mas reagi ram as minhas en
A turma ria, sentindo água na bôca com esta his� tranhas e até o sol se pôr, eu fiquei na beira da es
trada , debaixo de um pé de juàzeiro, vomitando queij o
·
tória dos queijos. João Paulo de bôca aberta, se ba·· de coalho . "
bava de gôzo com a história que o pai contava. Zé
Luís prosseguia :
- " Con�inuei roendo queijo, mas, j á começava a
sentir . a ba r1ga empazi�a � a. Veio vindo um sono pe�
�
sado, a cr edito que cochilei de verdade não garanto
' '
VII
iluminada como se procurasse rever, nítidas, �a sua Havia uma atsmofera de suspense no mocambo de
lembrança, as paisagens desoladas do sertão curtido Juvêncio. As garrafas de cachaça quietas na mesa da
pela sêde. Como se estivesse vendo a s ê d e da terra, das salinha, os copos descansando no chão, ao lado de cada'
pedras, das árvores, dos bichos e dos homens. Tudo convidado. Ninguém bebia senão as palavras de Seu
recoberto de uma poeira sêca, de uma espécie de sêde Maneca :
em p ó . Passalido a língua sôbre os lábios secos, S eu
Maneca, prosseguiu, sem pressa de acabar a história : - ' ' Foi como j á disse, uma viagem de deses
pêro. Vi e o �vi coisas de cortar o coraç�o. Encon�r �i
.- . . .-
. . . ' ' Quando sentí que a sê de ia mesmo arrancar com um grupo de retirantes de uma vlla do Sendo,
o meu couro, I"esolvi partir. Descí do C r at o com um que me contaram terem sido expulsos de casa pelos
magote de g ent e na direção do S. Francisco pra pegar morcegos e pelas serpentes. Atazanados pela f ome ,
um navio-gaiola que nos tr oux ess e até o brejo. Foi não h avend o mais gado para sugar o s angu e, os mor
uma viagem de desesperados. Os retirantes já às por-
cegos atacavam as próprias � essoas, chu��ndo-lhes o
- tas da mo rte , . com as gargantas apertadas de sêde, en sangue durante o sono. 'Tambem as cascave1s, assanha
tu p i d a s da poe ir a das estradas, as tripas roídas pelas das pela fome e pel o calor, vinham buscar suas prêsas
comidas brabas . Mas o que havia de pior era a caga dentro de casa, armando seus botes debaixo das camas
neira da f om e · A diarréia daquele mundo de gente :
.
e das mesas.
todos se cag a n do p ela estrada, sem nenhum acanha
mento. Abaixando-se na beira do caminho, cont o r
Sentindo brilhar certa dúvida no olhar de algum
cendo-se de cólicas. Alguns, na agonia, ficavam ali
ouvinte o sertanejo, ferido nos seus brios, mudou o
mesmo rolando o corpo convulso em cima da sua bosta.
tom da �oz, falando mais grosso e mais depressa :
A maioria reagia e prosseguia viagem. No ar estor - " Se não querem acreditar, não acreditem, mas
ri c a d o do sertão, a merda secava d e pr e ss a e virava garanto que vi, com os meus próprios olhos, as mar
poeira entrando pelas ventas da gente e aumentando cas das mordidas dos morcegos na pele d o s h om ens que
.
andando, quando a sêca chegou. JVIas, com a fome bra fila foi se desfazendo por si. Os homens foram se
ba � voltaram a engatinhar, e foi engatinhando pelo aliviando alí mesmo, nas bordas do convés, agarrados
chao da casa que a cobra pegou os dois. Foi ouvindo às barras de ferro do navio. Foi o que também fiz.
histórias dêsse gênero e contorcendo-me de cólica o A viagem inteira havia gente acocorada no convés
tempo todo, que alcancei as margens do S . Francisco que virou um verdadeiro chiqueiro . Ninguém aguenta
onde tomei um vapor chamado " Alagoas. " Lembro-me va comer com as tripas naquele estado, roídas pelas
bem porque chegando j unto do cais vi o nome escrito plantas brabas. Nem parecia gente viajando. Parecia
com letras brancas no casco marrom do navio com a porco s fuçando na sujeira. Quando abandonei o navio
pintura tôda descascada como se tivesse também so em Penedo, olhei pra popa do barco pra gravar bem
frido os horrores da sêca. Estávamos em Pirapora . . . ' ' o nome dêle na memória. O nome estava ilegível. As
letras, tôdas borradas, recobertas pela suj eira que ti
,
- " Pirapora, Seu Maneca, é a terra do meu nha escorrido do convés pelo casco abaixo.
compadre Juvenal, dono da olaria do Imbolé ", co O pessoal cuspia no chão de mosaico com noj o das
mentou excitado o Juvêncio. palavras do Seu Maneca : Cada um agarrou o seu
- . " Sabia não ; Juvenal é de lá� Deve ser terra copo de cachaça, mas êle prosseguiu indiferente à sur
b �a. Não te�ho o :que dizer dela. Pensei mesmo que prêsa e ao nojo dos ouvintes :
P1rapora sena o fim do meu martírio. Quando tomei - " Não acabou não, tem mais miséria. "
o. navio, arme � J:?inha rêde no convés, entupido de re
Seu Maneca também bebeu mais um gole de su a
tirantes, e arnei nela o corpo cansado, ,s enti-me outro. cachaça pra limpar a garganta e prosseguiu sua his
Quando o barco começou a navegar de rio abaixo, tória :
volt�u-me a vontade de viver. Mas foi uma ilusão pas - ' ' Minha intenção era · ficar mesmo no brej o
sageira. T'o cou o sino de bordo, chamando todo mun para esperar que um dia as chuvas voltassem, a cair
do pra j antar. E aquela gente faminta começou a
comer com uma fome de lobo. Comia com a bôca e com no sertão, e eu também voltasse para a minha terra.
os olhos. Mas poucos terminaram a refeição. No meio Não tinha intenção de abondoná-la. JVIas não vi geito
da comida começaram a correr às pressas na direç·ão de me acomodar na zona de açúcar para esperar que a ·
da P?P� �o navio. Era uma �;bandada geral. Pensei, sêca abrandasse. Fui chegando nessa zona e fui logo
a pnnCipiO, que era o tal enJoo de mar e que iam de me assustando. Descia uma serra, quando vi embaixo,
volver pela bôca a comida que o estômago rej eitava. no vale, um imenso mar de verde. Pensei que já es
�as, não era não. Compreendi o que era, quando sen tava na costa e que, aquilo tudo era água. Mas não
ti um arrocho de cólicas nas tripas, violento como nun
era nã,o. Era um mar de cana. Era cana que não aca
ca: Arr::nquei também da mesa, à procura duma la bava mais, até perder de vista. Nunca tinha visto
trln� . Ficava;n na pôpa d? navio. Mas só havia quatro pl ant a ç ão tão descomunal. Assustei-me. No meio da
latrmas e a fila dos candidatos era enorme. Então, a quele mar de cana havia uma grande casa branca bem
94 J O S U :f: DE CASTRO
HOMENS E C A RA N G U E J O S 95
ao l ado da usina, com um bueiro mais alto do qu e a ' ' Pois então você me d á razão, Zé Luiz, das
tôr r e da igrej a do Carmo . Achei uma beleza de lugar.
. ·_
ço de Higiene começaram a procurá-lo para insistir raízes para que viesse a desaparecer a vegetação brab a
no seu internamento, êle desapareceu de vez de Ambo dos mocambos. Nem êle, nem seus auxiliares se davam
lê, onde até então morava, e veio ocultar-se na lama conta que aquela vegetação dos mocamb o s , que b rotava
- . como uma flor de lôdo na vasa dos mangues, tinha
dos mangues de Afogados.
raízes que se alongavam pelo solo do país inteiro e pelo
� aquele tempo, não havia ainda um poder público sub-sol o de sua s e strutura s sociais arcaicas. Produto
orgamzado para defender êste tipo de latifúndio e, do feudalismo agrário ·que oprimia e explo r ava, há sé
porisso, cedo foi êle invadido por outros colonos vin
' culos, tôda aquela pobre gente que acabava, um dia,
dos de terras distantes em busca de um pedaço· de chão
pre ferindo o fedor dos mangues ao fedor das malocas
d e s o cupado onde deitar raízes. Eram retirantes de
dos engenhos, das novas senzalas fracionada s em tôr
outras sêcas, tangidos pelo vento de fogo do sertão, co
no das novas casas-grandes.
mo uni monturo huumano. Eram emigrantes expulsos
do outro latifúndio - o do açúcar - êste bem mais Da campanha do governador fazia parte, não só
protegido pela lei, onde não podia haver invasões de a destruição dos mocambos colocados às portas da ci
terras. O que havia era o r egime do arrôxo, do tra dade ou ao lado de suas principais vias de acesso mas
b �lh � esfalfante no eito da cana, sem tempo nem per principali.nente, a interdição de que se constr ísseu' �
missao p ara se plantar um só pé de milho ou de feij ão novos mocambos. S ó se permitia a construção de casas
para aJ udar a matar a fome da família. E ' assim ' o de telhas como aquelas que estavam construindo os
I a+..,1' f un
, d 10
' d o açucar
, secretava sempre seus excessos Institutos de Previdência e onde iriam morar os ope
de gente que o latifúndio de lama absorvia como um rários, amparados pela lei. Mas, esquecia também o
mata-borrão. E a cidade do Recife in chava, embebida governador, que o s moradores dos mocambos não eram
daquela tinta grossa da miséria formando sua crosta operários . Eram, em sua esmagadora maioria, deso
de mocamb os. A metrópole pernambucana ia virando cupados que viviam de expedientes ou biscates ou ' em
uma mocambópolis. E foi p orisso, na defesa de sua es última entrância da pesca de caranguej os, por não
tética ameaçada, que o governador do Estado deu iní encontrarem outro gênero de trabalho. É que só o
cio a uma grande campanha contra os mocambos. C on mangue e o mocambo estavam à altura de suas posses.
tra esta lepra urbana que ameaçava recobrir tôda a No mangue, o terreno não é de ninguém. É ' da maré.
beleza se:1horial da capital do Nordeste tôda a casta e Quando ela enche, se avoluma e se estira, alaga a terra
�
fina nobreza dos seus antigos solares co êstes sórdidos tôda, mas quando ela baixa e se encolhe, deixa desco
borrões de mis éria. Mas, nesta campanha contra os bertos o s calombos mais altos. Nestes calombos de
mocambos, o governador não procurou analisar onde terra levantam os retirantes o s �eus mocambos com as
se assentavam as verdadeiras raízes do mal. Pensava paredes de varas de mangue trançada s e de Iam� amas
êle que estas raízes estavam fincadas alí mesmo na sada. A cobertura de palha de .coqueiro, de capim sê
c o e de out:r,os materiais que o m on tu r o fornece . Tudo
lama do s mangues e que b astaria arrebentar estas
100 J O S U il: DE C A S T R O H O M E N S E CA R A N GUE J O S 101
c,
de graça, encontrado alí mesmo numa bruta camarada são os mangues, iriam levantar o lombo dessas terras,
gem com a natureza. O mangue é um camaradão. For engordar as suas carnes, d�r-lhes ossos c ?m a s .suas
nece tudo : casa e comida, mocambo e caranguejo. Não raízes rugosas e transforma-l as em verdeJ antes Ilhas
era, pois, fácil para esta gente de economia tão res firmemente ancoradas no meio das águas fecundantes.
trita, romper assim com o mangue só para cumprir as Poriss o se faziam depressa donos dessas terras, para
instruções do govêrno. O que era necessário era burlar explorá-las exigindo, no futuro, do habitante do man
estas instruções. gue, um es � orchante aluguel por aquêle pedaço de la
.A. primeira coisa fôra parar de construir mo ma onde êle tinha plantado seu mocambo. E se o
cambos nas vizinhanças da cidade e orientar a sua morador podia pagar, que saísse dessa lama que o
plantaçã o para recantos mais remotos como êste onde mangue j á tinha secado e fôsse pra outra zona de . la
já moravam Zé Luiz, Cosme e Chico. E, assim, de re ma mais mole viver dentro d'água com os carangueJ OS.
pente, aquela área quase deserta recobriu-se de tanto Muitos dêsses atravessadores tinham sido pobres dia
mocambo que atraiu a atenção da polícia. E a polícia bos bundas sujas, nascidos do nada, alguns da pró
tinha que agir com a maior energia porque tinha rece pri� lama dos mangues, mas que tinham levantado a .
bido instruções formais das autoridades superiores. cabeça, fazendo seus negócios fedorentos, metidos na
Tinha que limpar aquela terra da lepra dos mocambos. lama da política. E, agora, transformado s . em homens
Provinham essas instruções do fato de terem apa importantes, não tinham qualquer escrúpulo em as�
recido os donos das terras dos mangues, que antes não fixiar em envenenar a vida dos miseráveis, em tor
eram de ninguém. Eram da maré. Êstes novos donos cer-lh� s o pescoço com a mesma indiferença com que
eram, por coincidência, senhores muito importantes e se torce o pescoço dos galos moribundos nas brigas de
ligados à situação. Verdadeiros sustentáculos do go galo, para ajudá-los a morrer.
vêrno local, que os apoiava incondicionalmente, mas .Apenas, para poupar seus nervos fracos, encar
do qual exigiam tôda vigilância na defesa de suas ter regava:m os policiais de torcerem o pescoço dos mora
ras, registradas com grandes subterrâneos no serviço dores do mangue, para ajudá-los a morrer de fome.
de terras da marinha . Êsses atravessadores registra V'ieram, então, os fiscais da lei, e interditaram que se
vam, muitas vêzes, terras inexistentes, esperando que construíssem novos mocambos. Os fiscais fincavam
um dia a maré as parisse. Outros registravam peque marcos de madeira no chão e avisavam que, daquela
nas ilhas já paridas pela maré, mas ainda nuas, sem marca para diante, ninguém podia mais c onstruir. Fa
a vestimenta dos mangues. Registravam pequenas co
ziam ameaças terríveis contra o povo. Que se o povo
roas de lôdo, espécie de feto de ilhas com o seu corpo dali teimasse em levantar novos mocambos, tudo seria
mole e liso, ainda enlambusado da gosma nutriente do derrubado. O bairro inteiro seria incendiado. Mas os
rio. É que sabiam êsses atravessadores que as coroas mocambos continuaram a prosperar e, foi por isto
de lôdo iam crescer, que êstes criadore s de terras que mesmo, que o bairro tomou o nome de Aldeia ·Teimosa.
103
102
HOMENS E CARANGUEJOS '
J O S U J!: DE CASTRO
os pobres.
marra, como diziam em sua ling u ag em de gíria. Mas,
tôda esta l uta foi travada com tamanha astúcia, que " M as tudo isto, afirmava Cosme, era só para in
merece ser contada em seus detalhes. ,..
gles ver. Não passava de um plano de fachada. Cons
C omeçàram o s moradores por consultar Cosme truiriam uma meia dúzia de casas na beira d a estrada
que dá acesso à ci d ade, principalmente na estrada que
que j á se tinha revelado neste tempo um conselheiro .
comumca com o aeroporto para que os visitantes de
bem avisado em suas opiniões. Cosme explicou ao
fora ficassem impressionados com as grandes obras do
grupo que, a seu ver, esta campanha contra o mo
govêrno e, o resto ficaria no papel ; no papel azul dos
cambo era coisa passageira. Não passava de uma ma
planos d�s . engenheiros e no p ap el de j ornal da im
nobra p ol íti c a do govêrno para ganhar as eleições no
prensa oficial. A campanha contra os mocambos s ó iria
ano seguinte . Era pura demagogia. E era verdade que
durar mesmo até às eleições, depois ficaria tudo como
o govêrno, neste tempo ; andava muito por baixo muito
necessitado de melhorar o seu prestígio. C o � a ca
antes, como tinha sido sempre : os p obres ficariam
e � quecidos nos seus mocamb o s e o nôvo govêrno iria
restia da vida, a decepç·ão era geral. M esmo os ricos
aJ udar aos seus amigos a enriquecer ainda mais. Não
não andavam muito satisfeitos com o governador por
havia tempo para outra coisa. "
que os seus negócios não tinham prosperado muito com
·
seu govêrno . O comércio andava fraco . O preço do Esta expli ? ação de Cosme não foi aceita por una
açúcar e do algodão não e stava dando grande mar
. .
nrmidade. � a-yra entre os presentes um sertanej o, cha
. mado J anuarw, qu e trabalhava para um homem de
gem de lucro. O p ovo mesmo, êste tinha horror ao go
vêrno, principalmente depois das barbaridades come prestígio d? � o vê rn o , o s ub - deleg a do d e Ar e ia s, que
tidas pelo chefe de polícia quando os oper ários de uma com certa timidez se aventurara a afirmar que talvez o
fábrica de tecidos tinham feito uma greve para g a govêrno não fôsse tão ruim assim, que talvez . suas in
nharem um pouco mais. E o que ganharam foi muito tenções fôssem até boas e que talvez em breve estives
sem todos morando nas novas casas que o gov.êrno es
pau no lombo e as grades da cadeia para os seus diri.,
gente s de classe. Para agravar a posição do govêrno ,
a
t v a construindo no caminho do aeroporto . Mas Cosme
der a uma gargalhada diante da ingenuidade do matuto
havia ainda a gritaria da oposição , que j á começara a
que acreditava em conversa para boi dormir. As casas
sua campanha eleitoral protestando em tudo o que era
só iriam mesmo servir para encher .o s bolsos dos cons
comício contra a carestia da vida e contra as habita
trutores do gov ê rno e, 'prontas, iriam aloj a r �penas
ções miseráveis do Recife. Fôra diante destas circuns
tâncias que o governador maquinara uma campanha
o� cab� s eleitorais do grupo . Não 'eram casas p ara o
que pudesse levantar o prestígio do govêrno. Falou o
�
biC <: deles, m? ra ores de m� cambo, sem presti gio, sem
gove rnad o r com os r ep res ent an te s do govêrno federal,
encosto na n�aqmna do governo . Cosme j á estava acos-
104 J OS U t DE C AS T R O HO M E NS E C A R A N G U E J OS 105
tumado com estas campanhas para atrair eleitores nas era preciso, era se defenderem com unhas e dentes, para
vésperas das eleições. Era macaco velho, conhecedor que não derrubassem os mocambos, deixando-os na
destas manobras. E, mesmo que a campanha :fôsse feita rua, ao Deus dará, ao sol e à chuva. Era urgente tra
com boas intenções, como afirmava J anuário cedo a çar um plano para evitar esta calamidade, e êles confia
coisa tomaria outro rumo. Os sabidos viri am corrom
'
ram esta tarefa à sabedoria de Cosme.
per as boas intenções. Cosme lembrava ao grupo o que Cosme aceitou o comando. Da sua cama de para
acontecera no govêrno do Presidente Epitácio Pessoa. lítico .êle dirigiu tôda a batalha da Aldeia Teimosa.
Era um homem do Nordeste. Nascido numa cidade da Traçou um plano completo da batalha, o qual realiza d o
Paraíba, perto da cidade onde Cosme nascera o à risca, deu-lhe uma vitória total contra as fôrças do
Presidente Epitácio era um homem bem intencion�do. govêrno e da polícia.
Queria redimir o Nordeste do :flagelo das sêcas. Cha Estabeleceu-se, desde logo, que só se construiriam
mou os melhore s engenheiros do país e :fêz um grande novos barracos, um dia por semana, ou melhor numa
plano de obras de construção de açudes e de estradas : só noite, porque todos os trabalhos de construção te-
.I as Obras Contra as Sêcas. Comprou máquinas em
penca no estrangeiro para executar estas obras e con
' riam que começar ao anoitecer e terminar nesta mesma
noite, antes do dia amanhecer. E assim foi feito. ·
tratou batalhões de gente. E o movimento começou no Durante a semana inteira, todos os moradores associa
Nordeste. Mas cedo começaram as dificuldade s . O vam os seus esforços para juntar os materiais de cons
grosso do dinheiro que o Govêrno Federal mandava,
trução. Uns traziam táboas velhas da cidade, outros
caía no bolso dos dono s da política e as obras não avan .velhas fôlhas de zinco e latas vazias. Havia os que se
çavam. E quando depois de um fracasso danado e de
,
encarregavam de cortar as varas dos mangues e os que
u;n. tre�endo escâr:dalo que a oposição explorou, Epi colhiam :fôlha de coqueiro, subindo pelos troncos das
tacw deiXou o Governo, as Obras Contra as Sêcas caí árvores à beira das praias, como se fôssem uns ga
ram no esquecimento. Tôdas aquelas máquinas que tos do mato. E quando havia sinal de que os vigias
deveriam cav�r P? ços, cacimbas e açudes para dar água dos coqueirais, armados de fusis, se ap ro ximavam da
.
ao Nordeste mteiTo :ficaram zona, os cortadores de palha voavam das copas dos
abandonadas no meio do coqueiros, com duas grandes : ôlhas, uma debaixo de ·
f
campo, desfazendo- se como carcaça de boi morto du cada braço, e aterrissavam na areia fôfa da praia co
rante a sêca. mo grandes pássaros marinhos. Todo aquele material
Afora Januário, todo o mundo concordou com as -
'
fôlhas de coqueiros, varas de mangues, barro amas
opiniões de Cosme. Na verdade, mesmo o Januário sado, caixas de querozene, fôlhas de zinco - tudo era ·
ficou de acôrdo, pois não insistiu mais em de fender o amontoado em certos lugares estratégicos, escondidos
govêrno e o seu patrão. A história era mesmo aquela debaixo das moitas dos mangues.
que Oosme explicava . Não havia, para êles nenhuma No dia da construção, aume ntava a tensão nervo
esper ança de sairem do mangue e do moca�bo . O que sa em todo o bairro . Ficavam todos de orelha em pé,
109 J O S U ll: DE CASTRO HOMENS E C A RA N G U E J O S 107
atentos, impacientes que a noite chegasse para darem Bumba ! I Faz a mesura ! I Eh ! Bumba / Espalha a
mício ao trabalho. E, distribuíam-se as tarefas. Os que gente ! I Eh ! Bumba ! I . ' ' E cada vez que o bombo res
deviam trabalhar na construção e o.s que deviam parti soava no ar, os construtores estavam cobertos pelo
cipar do espetáculo para desviar a atenção das autori barulho da festa para realizar seu trabalho.
dades. Ao cair da noite, começava numa extremidade
do bairro, bem longe do ponto onde iam ser construi Começavam por arrancar os marcos fixados pelos
dos novos' barracos, os preparativos para uma grande fiscais e plantá-los mais adiant e, criando o espaço le
noitada de diversão : pastoril, maracatú ou bumba gal para as construções; Depois, começavam a bater
-meu-boi. Era, quase sempre, bumba-meu-bói, o que as estacas na lama, pregar os pregos nas varas, bater
mais entusiasmava a todos embora o maracatú fizesse a lama do engradado de varas. Era como se trabalhas
mais barulho podendo abafar, esconder melhor o ba
sem com veludo, sem fazer barulho, porque o barulho
rulho das construções. Quando o terreno ficava cer do bumba-meu-boi cobria de longe o barulho da cons
cado dos moradores, principalmente das mulheres, o trução. Se, por acaso, aparecia por perto um fiscal da
boi aparecia e cantava : lei, êle era enquadrado com boas conversas no terreiro
e o boi lhe fazia as maiores reverências e mesuras. Mas,
" Vem meu boi lavrador se êle era exagerado no cumprimento dos seus deveres
Vem fazer bravuras e queria visitar mesmo o bairro todo . para ver se não
108 J O S U ll: DE C A S T RO
:·.1'
.�·.
!
·;
,
'
'1
menos aquêles que tinham uma história mais interes lhe tantas complicações n a vida. 'T rabalhava êle num.a
<?-
sante, capaz de merecer um rel�to ci�cunstan ado por fábrica de p apel em J aboa tão, quando e stas compli
parte de seu amigo. Q uando, a tardmha, J oao P aulo caç õ es começaram.
voltava d9 trabalho para casa, demorava-se quase sem
Atravessava-se, então, uma época de grande i�
pre no mocambo de Cosme até à hora do j antar e, en
�
quanto palestravam, o paralí ico estava sempre a pes
_
quietação social. Jaboatão era o grande ?entro de agi
tação operária do Nordeste. Era o maior centro de
car imagens com o seu espelhmho de mao . Quando as
agitação comunista do país. As classes abastadas nem
imagens pescadas interessavam, êle chamava a. atenção
de João Paulo . Foi nestas pescarias de fim de tarde chamavam mais a cidade de J a boa tão, a chamavam de
que João Paulo ficou conhecendo o drama de dois ou Moscouzinho - a pequena Moscou - tão gr �nde lhe�
parecia a influência dos comuunistas nesta cidade. E
tros personagens que, como C hico, tamb ém tinham se
mudado .p ara a zona dos mangues para se esconder �m verdade que Mateus estava alheio a tudo isto, cuidando
dentro dos seus barracos escuros como os carangueJ os apenas do seu trabalho na fábrica mas, por fôrça d�s
se escondem d entro dos seus buracos. Ê stes persona circunstâncias, foi envolvido na luta. N a luta da p ol i
gens eram : Ma teus o Vermelho e a negra Idalina . cia alertada e temerosa contra a ação dos agitadores
que ameaçavam a segurança nacional .
M ateus era o tipo do tranqüilo, do descansado.
· Nas indagações que a p olícia andou fazendo nos
Passava a vida sentado à p orta do seu mocambo, te
cendo r.ê des de pesca. No entanto, fôra para a Aldeia meios operários, de vez em quando as autoridades ou
Teimosa, fugindo apavorado da polícia. Não que suas viam referências ao nome de Mateus, o Vermelho.
mãos tivessem cometido qualquer crime do qual êle ti.:. Talvez nem nesmo tenha havido referência direta do
vesse lembrança ou remorso . S eu único crime fôra seu nome à p olícia e a causa de tudo fôsse o típo de
saudação que os outros operários lhe fazian:: na po �ta
mesmo o de ter nascido com o s cabelos de uma côr dife
rente da dos outros habitante s de sua terra. Mateus da fábrica onde os secretas estavam sempre a espreita.
nascera com os cabelos côr de fogo. - " Bo m dia ' Vermelho " , saudavam-lhe alguns dos
�
companheiro s e , como Mateus entrava e sa a da fá
.
Nunca conhecera seus pais mas corriam boatos in brica de chapéu na cabeça, cobrindo a cabeleira rmva,
sisúmtes de que êle era filho de um marinheiro alemão " os secretas tomaram aquêle vermelho num outro sen
que freqüentara uma rua de mulheres da vida numa tido e passaram a atribuir a Mateus as mais terríveis
das p aradas do seu navio no p ôrto do Recife. Mateus maquinações . Vermelho foi, assim, chamado à Dele
não discutia o assunto. M;as também não protestava gacia de O rdem P olítica e Social para confessar suas
nem se zangava qu e por causa dos seus cabelos de fo ligar,ões secretas com os outros vermelhos. E como as
go o chamassem desde menino, o Vermelho. Tinha até �
neg sse, afirmando ignorar tudo do assunto, foi con
seu orgulho dêste apelido e estav:a longe de supor 9-ue siderado ainda mais perigoso, mais vermelho do que
.
a côr insólità dos . seus cabelos iriam mai s tarde cnar- parecera à primeira vista. E, daí em di ante sua vi da
1 12 J O S U lt DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 113
A fuga de casa da Zefinha, foi o baque mais duro da conversava. Mudava d e assunto . Começava a suspirar
vida de Idalina. Quando ela se viu só em sua casa, fundo e a falar na carestia da vida com os olhos mare
com os vizinhos a par de tôda a sua vergonha, fazen j a dos d 'água.
do-se to dos de sentidos na sua presença, mas a maioria Viveram assim por muitos anos na santa paz do
gozando o escândalo, r in d o às gargalhadas na venda
S enhor a negra Idalina e os habitantes da Aldeia . . .
e na padaria, Idalina não agüentou. Não a güent o u
até que um dia novamente a vergonha se reascendeu
no co r a ç ã o da negra Idalina e ela partiu de nôvo para
aquêle insulto à sua h onra. D e s ap a r ece u do bairro e
se es co n der , desta vez ninguém sabe aonde.
veio morar na Aldeia Teimosa onde ninguém a· conhe
Mas isto aconteceu muito depois. E antes que êste
cia, onde ningu ém sabia que sua filha era uma mulher
tris te epi só dio viesse abalar a placidez dos mangues,
perdida. E aí viveu I d alin a , isolada do mundo, exer
correu muita água pelo Capibaribe. Passou muita
cendo com modéstia sua arte de cozinha. Vivendo de
água por debaixo das pontes do Recife e, no alvoroço
faze r tapioca, grude e cuscus que vendia num tabo dessas águas , muitas outras aventuras o correram.
leiro no _ Largo da Paz. Se Cosme sempre f ô r a a fi g ur a mais respeitada
Depressa Idalina conquistou a s imp atia de ·· tôda na Alde i a 'T eimosa, e a preta Idalina, a mais simpati
a vi z inh an ça. Não pr o cu rava ninguém mas, quando zada, C hi c o era, sem nenhuma dúvida, a mais lendária.
as mulheres da redondeza puxavam co nve rs a , ela era Chico era uma espécie de mito de quem todos falavam
sempre cordial. Estava sempre disposta a ajudar al sem nunca vê-lo . Apenas sabendo que êle existia, que
guém numa necessidade maior. Em aj udar num parto, estava ali invisível, entocado no seu mocambo escuro,
numa doença grave, mesmo em ajudar a morrer êsses com as p ortas sempre fechadas. Durante o dia, quan
defuntos obstinados que custam a desencarnar. I da do o bairro formigava do v ai-e -vem das pessoas, nin
lina era uma grande rezadeira e conhecia rezas fortes guém seria capaz de encontrar Chico passando pelas
que aj udavam · o s mo ribun do s a tras p o r em tranqüilos ruas ou entrando e saindo dos botequins para tomar
a s portas do além. Todos a cabaram por considerar um g ole de cachaça. Mas todos sabiam que durante
I dalina como uma preciosidade. e st as horas em que o sol brilha no céu e os homens
Um d ia trouxeram um n enê para ela criar. Era se agit am na terra, Chico p ermanece encolhido como
filho da Zefinha. Êste seu net o, O s c arlin do , t ro ux e -lhe um b i ch o em sua toca, o cultando sua lepra. E ninguém
um nôvo sôpro de felicidade. Ela m os tr ava o neto a o incomodava, ninguém o denunciava ! Chico podia
todo mundo e falava também da mãe dêle. Gabava-lhe estar t r an qüil o no seu buraco porque sabia que ne
a b el e z a , mostrando o retrato dela com um chapéu nhum habitante da Aldeia Teimosa iria bater com a
de plumas na cabeça e uma pulseira de ouro no braço . língua nos dentes, co:rit�n do que havia, no b airro , um
Mas se a pessoa qu e a e s cu t av a não conhecia ainda a le p r o s o , que as autoridades mandariam imediatamente
his t ó r i a triste de sua filha e lhe perguntava porque a buscar para interná-lo no hospitaL Chico era uma
filha não vinha m o r ar com ela na Aldeia, Idalina eles- lenda, uma,_ aparição n o turna, quase uin fantasma.
116 J O S U 11: DE CAS TRO
HO M E N S E C A R A N G U E J OS 117
"
Ribeiro do Urubu, da Grata e da F enda, do Mel e da a paci ência de C osme que o salvaram de sua tempM
Cachaça, do Pa u e da Arara, da Pedra Tapada e não tiwsa revolta numa f a se em que êl e pensava entrar
se i mai s d on de. O C ap ib a r ib e continua descendo, sur d e mar a dentro na sua j angada, para nunca mais vol
do a ess as histórias, cego ao regionalismo das paisa - tar. F o i ancorado na amizade de C osme que êle de ixou
. gens, na ânsi a infinita de encontrar o outro rio de amainar a tempestade. S ó C osme soubera despertar
fama. C� d ê o B eberibe � O B eberibe que desse de -lhe um nôvo interêsse pela vi d a, explicando-lhe que
mais perto das colinas de O linda � Aparecem mais havia sofrimentos maiores do que o seu. Que havia
afluentes modestinhos : o C amaragibe, o Monteiro , o lepras mais feias do que a sua lepra e que n ã o era êle
T egip i ó , mas, cadê o B eberibe � Já dentro da ci dade, o único solit á r i o no mundo. Q ue todos os homens car
o Capibaribe lanç a um braço para um lado, segue para regam a sua lepra oculta e que quase todos os homens
outro lado, fazendo um cêrco pro B eberibe não es são uns solitários, embora não se enxergue a solidão
capar. A lcança-o logo adiante, e aí os dois rios se dos outros.
entrelaçam, se confundem e afogam nas suas águas O barulho do chumbo da tarrafa batendo na á gua
misturadas , êsse prazer profundo das ânsias causadas do rio lembra o barulho da chuva cainda nos telhados.
pelas distâncias percorridas . D ois aventureiro s de Chico recolhe a rêde de malhas apertadas e dela retira
fama q ue se j untam com satisfação para contar suas meia dúzia de · piabas que a rêde colhera. S ó rara
aventuras . No ímpeto do abraço bárbaro, as águas se mente aparece um p eixinho niais graúdo - um bagre,
avolumam e, tontos da alegria do encontro, os rios uma cioba, um cam a rim. O que êle pega, em geral,
perdem o rumo, saem embriagados - a cambalear pelos é mesmo piab a ou barriga-de-tim-tim, com o seu bucho
baix i o s, a se esfranganha r pelos charcos, a se deitar estufado, entupido de lama. Quando a barra do dia
pelos remansos, formando nessa boemia de suas águas, ameaça quebrar, C hico recolhe sua j angada e vai acor
as ilhas, o s canais, os mangues, o s pauis, onde assenta dar C osme para ceiar com êle . Quase sempre, ao che
esta saborosa cidade do Recife, resumo das aventuras gar no mocambo do amigo, j á o encontra acordado à
heróicas que os rios contaram e continuam contando, sua espera. C osme dorme cede>. ' ' Dorme com as ga
ao se encontrarem numa praia do Atlântico. Tarde linhas ' ', como diz a velha Totonha, sua tia, e acorda
da noite, C h ico desperta dêste saboroso e confuso sempre de madrugada para tocaiar com seu . espelho a
sonhar com · a v iagem dós rios e feliz orienta a sua
·
chegada do dia . Chico dá os peixes à velha 'Totonha :
j angada pelo Capibaribe acima. E a sua felicidade os pequenos, as p i ab as , para ela fritar para . a �eia, os
se faz a i nda mais sensível porque Chico sabe que de mairesinhos, quando os h á , para vender na · f e ira de
aqui a min ut os t e rminará a sua pescaria, e irá encon .A fqgados e assim apurarem alguns níqueis ,para o
trar, como faz tôdas as noites, o seu grande amigo fu�o, a ca ch a ça e a farinha. :
C o sme. C onversam animadamente enquanto o cheiro de
Na temp e s t ade de sua vida, C osme fôra o úni co
ancoradouro que êle encontrara. F or am a b ondade e peixe frito lhes enche a bôca d ' água. Cosme conta
HOMENS E C A RA N G U E J O S 121
126 J O S U :It DE CASTRO
- ' ' Estão fal ando que vem por aí uma . grande
cheia. Que choveu tanto no sertão que os açudes estão
todos arrombados. Que o Oapibaribe desce roncando
e espumando como uma cobra no cio . "
.A descrição que visava impressionar os ouvintes
não causou grande efeito. Manoel Palito, d ono do
botequim, terminando de encher calmamente dois cá
lices de cachaça que empurrou por cima do b al cão na
dire�ão de S ebastião e Ma teus, indagou com voz pau
sada :
- ' ' S er á mesmo verdade � O u boato besta de
quem não tem assunto pra contar � S e aqui n ã o há nem
sinal de chuva, como é que vai vir um tal monstro de
eheia � ' '
Juvêncio replicou :
- ' ' Dizem que l á p or cima a coisa an da dife
rente. Q ue no sertão e no agreste est á parecen do que
I
I
124 J O S U :Il:
É o que m e disseram . . .
HOMENS E CARANGUE JOS 125
I Estou vendend o pelo mesmo preço que comprei. ' ' era proprietário do melhor galo de briga da redon
I
f A. verdade é que a notícia não alarmou muito . deza. Havia mesmo quem dissesse, que do Estado in
�
Todos os reqüent adores do botequim, habitant es do
.
teiro, pois o Dourado se batera em campo aberto e
man�ue , J a estàvam habitua dos com as calamid ades botara pra correr os campeõe s de Caruaru, e Taqua
elo chn�.a c�� as sêcas ou com as cheias, segundo fôs retinga, que eram até então, o s galos de mais fama do
!
� em ongman ? s do sertão ou do brej o . Era gente cale interior. Se a sua luta contra o Cangaço não trouxera
J ada no sofrimento, com tarimba para lutar contra a Anastácio nenhuma glória, pelo contrário êle tinha
todos os excesso s da naturez a. Não iam êles se assustar até _ certo acanhamento em revelar que participara de
assim à-toa, com boatos vago s e exagerados . Que viesse tão inglória campanha, j á o galo D ourado l he aureolara
a cheia. S aberiam sair dela como saíram de outras a vida de uma fama retumbante. Já nem chamavam
vêzes, em que todo êste bairro do mangue com suas mais o homem de tenente Anast á cio, mas de Anas
casas e seus coqueiros, ficou todo debaixo d 'água. tácio do Dourado . E êle se banhava nesta fama com
- " Maior foi o dilúvio e Noé s e salvou " afir indisfarçável satisfação.
mou j ocoso o S ebastião. Seus companheir os iram � Neste dia, estava Anast á cio no botequim para -
continuaram a tomar sua cachaça e retomaram o fi � avisar a todo o pessoal que o .s eu galo de fama lutaria
da conversa interromp ida com a chegada de Juvêncio. daqui h á dois dias com outro galo de fama, ·vindo da
Falavam de brigas de galo, assunto de muito maior Paraíba, trazido daquela capital pelo filho de um
interêsse que a cheia. S abastião retomou a palavra D outor, especialmente para lutar com o campeão do
com entusiasm o : Recife.
-- " O qu � lhes digo, é que estou pra ver aparecer - " Vai ser uma luta em regra, diz Anast ácio
um galo de briga capaz de surrar o D ourado aqui do com certo tom de modéstia . O D ourado é um galo
nosso amigo Anastácio . ' ' que nunca fêz feio no terreiro e dizem que o galo da
Anastáci o é um tenente da polícia aposenta do ' Paraíba, que se chama Diamente, também até hoj e
' não desmereceu. Vocês não se arrependerão de assis-
que an dLOU mm' t os anos pelo sertão afora com as fôrças ·
Anastácio, os -vários b otequins do bairro, como uma mitiam trabalhar de verdade. Vivia de fazer biscates.
esp écie de agente de publicidade e de empresário das De levar recados. D e oferecer palpites p ara o j ôgo
apostas. Era em tais funções que êl e a firmava com do bicho e de d ar f acadas nos antigos companheiros.
· convicção : Bebendo cada vez mais e tendo cada -vez menos o que
·
Só uma vez êste pacto foi desrespeitado. Foi que o proprietário reconduz ao seu gal�nheiro, Joca
quando Sem-Rival, galo de fama de Seu Neco, que fica irremediàvelmente sem J. antar e va1 afogar suas
tinha uma vacaria na Madalena, morreu na luta, san penas com cachaça no botequim do Manoel.
grad o pelo bico agudo do Dourado. Seu N eco ach ou
que era uma profanaç ão entregar o corpo de seu fa Hoj e, os cálices de cachaça que Joca vai virando,
moso galo para ser comido pelo J oca. .Achou que êste êle os toma como aperitivos ao grande banquete d.o
corpo glorioso devia ser comido pela terra. Pela terra domingo próximo, no qual êle comerá, bem assado,
que o fizera tão forte e tão valente. Tinham contado um dos dois galos de fama. .A c ois a pode se contar
para êle que não havia cemitério só para gente. Que como certa. Pois não são os dois contendores galos de
também havia cemitério de animais. Que na fazenda classe que não poderão correr como galinhas chocas,
de criação de cavalos dos Lundgren e, em Paulista, um botadas pra fora de seu ninho � Resistirão, na certa,
cavalo que ganhou o Grande Prêmio Nacionai o até o fim. O Dourado, com o prestígio de seu nome
valioso e o Diamante, com a dureza que lembra o seu
-
186 DE
J O S U :J!: CASTRO H OMENS E CARANGUEJOS 1:37
j á tinha salvado Cosme e a .sua tia, zé' Luiz e a sua não lhes covinha subir o morro de O linda, nem o dos
família, e que j á passara pelo mocambo de Idalina Prazeres nem o do Chapéu que, na certa, iriam ficar
que encontrara vazio. Neste ponto, a explicação de coalhado � de gente, de tôda essa gente que subiria da
Chico interessou vivamente ao Oscarlindo que se rea lama quando as águas do rio recobrissem a lama com
nimou e perguntou onde estaria João Paulo a esta a sua cheia.
hora. Chico lhe informou que, em segurança, no forte
Resolveram ir para a velha Fortaleza do Buraco,
do Buraco para onde navegavam no momento.
antigo forte construído, há três séculos, pelos holan
Quand o Tdalina recobro u sua voz, perguntou a deses, na ponta do ístmo de Olinda, hoj e abandonado
Chico quem o avisara a tempo que a cheia ia chegar . aos caranguej os e às gaivotas, entre o rio e o mar.
Chico sorriu com os seus lábios grossos e deformados Lá é que iriam ficar abrigados e isolados até que :as
e afirmou lacôni co : águas baixassem. E foi o que fizeram. Antes que as
- " Foi o rio quem me avisou. " águas subissem demais, ameaçando o mocambo de
E era verdade. O rio não tinha segredo s para Cosme, Chico levou sua j angada de rio acima até perto
Chico. Há muitos anos que êle trocava língua com da porta de seu amigo. Ajudado pela velha A.na, trans
o ri o. Que descobr ira o sentido comple to do linguaj ar portou o paralítico nos braços até à j angada. Não foi
d o rio dialoga ndo com os mangues, com as j angada s, preciso muito esfôrço porque Cosme pesa menos que
com os pescado res. Na véspera da cheia, Chico fôra uma criança. Afora a cabeça, tudo nêle é fino e sêco .
pescar mas, chegan do na beira do rio, sentiu que se Enrolado num lençol, parecia mais um feixe de varas
passava qualque r coisa de estranh o. O rio lambia sêcas do que uma criatur a .
carinh osamente com suas línguas d ' água os galhos Quando, nesta nova viagem, conduzindo Idalina
mai s altos do mangu e, como uma vaca lambe a cabeça e seu neto, Chico chegou à · Fortaleza, havia lá mais
do seu bezerr o, mugin do baixinho. Chico aplicou bem gente do que êle esperava encontrar . É que vários
o ouvido pra entend er o sentid o daquele mugid o das moradores do b airro de Santo Amaro tinham vindo em
águas. E entend eu. Era o aviso da cheia. Era o rio j angadas improvisadas com toros de mangue, caibros
acariciando os mangu es e prevenindo-o s do perigo que e velhas tábuas, navegando até o ístmo de Olinda de
se aproximava, para que êles se agarra ssem com todos ondi� c aminh ar am a pé até a Fortaleza.·
ladnlhos, um por um, dentro da camisa o frio da água abaixo agarrado s na sua carniça. Pass a de
p ed : a dando-lhe a rr ep io s na p ele, pra � ada. Pa r a
em quan do, uma galinha mort a, que os tripulantes das
pavrmentar agora o fundo sujo do rio. Durante 0 barca ças e das jang adas procuram a garrar para se
. re �to do dia, I � alina e Juvêncio disputavam a com garantirem de alguma comid a nos dias difíceis que
_
paiXao dos Quvmtes p a r a sua negra miséria. Idalina os e sp eram.
chor.ando a perda do seu porco e, Juvêncio, a dos seus E o ronco das água s continua aumentando. E au
ladrilhos. mentando o seu volume e a fôrça da sua correnteza .
Já era dia claro com o sol arrancando centelhas De vez em quan do, um barco embo rcado derrama
n ' água a sua carga humana, que se debate, agarrando
·
de passarinho, numa mistura . que fazia pensar na O rio perd era o respeito por completo. Com eçou
Arca de Noé. a invad ir mesm o os bairr os ricos
, as casas de tijolo s e
. A c � rrenteza estava cada vez mais forte e, po telha . No bairro da Madalena , todos aquêles pala
risso, Chico achou prudente regressar à Fortaleza on cetes construídos nas curva s do rio, mont ados em altos
de procurou u� recanto escuro para repousar. J oão batentes de pedr a, ficaram também inun dado s.
Pa� o e Oscarlmdo, debruçados no parapeito do forte, Os empr egad os corriam esbaforido s, carre gand o
assistem de palanque a festa das águas. Ac ompanham p a ra o primeiro anda r tapet es finos , móve
is de maior
com a vista .a descida das árvores e das balsas salpi valia, louça s de porcelana e cristais. Às donas de
gando de verde o vermelhaço da inundação. casa, ajoelhada s com as filhas, rezavam diante dos
Desce também muito bicho morto : carneiro ca
santu ários abert os. O cheir o de velas queimadas se
.
chor� o e cabra. E até vacas com o bucho enorme,' dis misturando com o cheiro da lama que subia da maré .
. A Igre ja de Afog ados , que ficava no alto de
uma
�endido pelos gazes, a cabeça submersa dentro da am todo s em busc a
agua, parecendo mais uma baleia do que mesmo uma c o lina , se encheu de gente. Vinh
140 J O S U .tt: DE CASTRO
HOMENS E CARANGUEJ O S 141
de terra onde pisar, e em busca de um 'êonsô lo no qual
se ampar ar. Vinham se agarrar com os santos se de mãos angustiadas e de bôcas famintas, implorando
apoiar na s palavras do Pe. Aristides. O p a dr e ab�ira a caridade pública organizada.
as portas da Igrej a, acend era as suas velas e ordenara
Ao cair da tarde, ancorou nos batentes da Igreja
a Veremundo que serviss e café e broa aos mais neces de Afogados uma lancha, da qual saltaram ao s tram
sita dos, na sacristia. Falou ao povo que tivess e con
fiança em Deus.
bulhões, empurrados pelos guardas de salvamento, três
figur a s homéricas : Manoel Palito, J oca e Sebastião.
De noite, a s águas continuaram a subir e alcan Vinham todos três bêbados, se amparando mutua
çaram os própr ios batentes da Igreja . O povo entrou mente. 'Tinham resistido à cheia dentro do botequim,
para o tempo e -se acomo dou, encost ando o dorso nas como se estivessem cercados dentro de uma fortaleza.
pared es para repou sar os seus corpo s moídos. Ap a Ê que Manoel Palito se negou a fastar-se de suas gar -
receram os primeiros resfriados. Um côro ininte r . rafas de cachaça. E, não podendo salvá-las, resolveu
rupto de tosse subia na nave da Igrej a, impedindo arriscar a vida a seu lado. Sentou-se no balcão alto
todo �undo de dormir. E as águas roncando lá fora, do boteco e ficou aguardando os acontecimentos. Se- _
Poucos I A maioria ficava nos botequins e nas brigas o Feit o s a , apinhada de mulheres cantando , uma delas
l evantand o nos braços uma im a gem de S an to Antônio.
de gal os . E então �
Neste ponto do sermão, Jo ca explodiu. Começou Na proa do barco, que se chamav a " Estrêla D ' Alva ",
havia muitas flôres meladas de lama e velas acesas
a re smung �r_ e a blasfemar no fundo da I g r e j a . Ê
que, de vez em quando, o vento apagava. As ladainhas
�ue, . no e �p�r1to turv? d � J o.ca, p are �i a estranha aquela subiam no ar e o vento a s espalhava na vastidão d as
J ustiça d1vma que d1str1bma o sofrimento de maneira águ a s . As margens do rio , outras velas se acendiam,
tão desigual. Se não chovia e havia sêca, eram o.s
fincadas na lama. E aqui e acolá re sp o n diam ao can
pobres que morriam de fome. Se chovia demais e ha tochão das ladainhas, vozes cantando Xangô, mistu
via ch eia , eram as casas d o s p o bres que eram inun
d!l' �as e destruídas : - Por que não vinha logo o di rando Santo Antônio com o � santos do Catimbó. A
fôrça de tôdas estas rezas de tôda esta mistura f o r te
luVI o , para afogar de vez os ric o s debochados que de ritos mila gro s o s, as ág u as f o ram e nfr aque c endo sua
levavam a v1da . na pândega, sem trabalhar montados
nas costas �o.s mi s er áv ei s ! Que j u stiç a divi� a era esta
violência e baixando obedi entes. Uma barra negra,
c e :·t a como um babado de .saia, cada vez mais l arga,
que esqu.e c;� esta exploração, que fe chava os olho s à fm aparecendo na fach a d a das casas e nos mur o s mais
negra m1s er1 a do s p obres I " Que vissem o caso dêle altos. Era a marca da água baixando .
J o ca I Trabalhara sempre como um desesperado :
. a mal a um mosquito, e, a rec ompensa que
nunca f1zer.
Havia muita fome. Havia muita confusão. Muita
re cebeu , f01 o reumatismo deformante l E, nest a se gente desaparecida . As mães chamando inquietas as
mana, quand ? se preparava para a grande briga de filhas môças que se enfurnavam p el o s buracos do in
g alo do d ommg o p róximo, seu único c onsôlo e sua ferno e não davam notícias. .
única possibilidade de comer um ped aço de carne uma - " Maroca ! Júlia ! Severina I . . . "
vez �a sem�na; vem aquela cheia maldita que impede Os gritos aflitos atravessavam o rio de l a d o a
a b ri g a e tir a-lhe desta forma, o p ão da bôca ! Não
, lado, e ficavam sem resposta.
está certo ! Não é justo l - " Sem-vergonha, aproveitando a cheia pra fa
·
seu viço.
Afirmava Chico, com ares de entendido, que en
quanto permanecem debaixo d 'água, os mangues con
sagram todo o seu tempo a fazer amor. A abandonar
suas fôlhas ao beiço impetuoso da corrente. A esfre
gar seus galhos, uns nos outros, com infinita volúpia.
146 J O· S U � DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 147
A sua situação era cada vez mais -�esperadora. lito de garra fas de champanha, um consum o também
Com os terríveis estragos da cheia nas plantações da não despr ezível de caixas de uísqu e, o arremate em
Zona da Mata, os preços dos gêneros alimentícios su leilão de várias prend as doada s gentilmente pelas
biam assustadoramente, e a pesca do caranguej o se grand es firmas da praça, e a demons�ração patente do
fazia com grandes dificuldades nesse dihívio de lôdo interê sse dos grupo s produ tores pela sorte d? p �vo
que parecia recobrir o mundo. da terra. E é precis o não esquec er o saldo em di�heiro
Jil, verdade que durante a cheia alta também não que ficou, descontadas as despes a � da . decora çao1 da _
se pescava caranguej o. Mas se pescava outra coisa. ilumin ação e dos garçons, e que fm aphca do, na mte
Pescava-se os bichos mortos trazidos pela correnteza. gra, na compr a de remédio, roupa e comida, par� os
Havia famílias que, durante a cheia, se tinha rega flagel ados da cheia. Ou, para serm ? s bem p r e ci s o � ,
lado com saborosas buchadas, preparadas com os para os filhos dos flagel ados da che ;� que se . r�lant�
miúdos dos carneiros mortos, pescado s na correnteza . nham em boas relaç·õ es com as famihas tradlC wnais
Agora, j á não havia bichos, nem mortos, nem vivos. da terra.
S ó havia os homens, meio mortos de fome, sem saber Infelizmente não se pode fazer uma festa dessas
. o que fazer. todos os dias, e � aj uda, no dia seguinte, j á se tinh.a
A fome se foi alastrando impiedosa, associando evaporado como uma gôta d 'água naquele J? ar de mi
-se às doenças que proliferaram com a cheia de ma séria. E essa gente ingrata, cedo esqueceria os bene
neira assustadora. O impaludismo j ogara metade do fícios recebidos. Quanto mais baixavam as águas d� s
povo no chão, batendo os queixos com a terça-maligna. cheias ' mais subia o rancor do povo contra s eu s benfei
As gripes, as pleurisias, as pneumonias não respei tores, contra as classes abastadas que tanto ajudaram
tavam caras. E a tuberculose virara galopante. Não durante a tragédia. Assim é o mundo. ····;';�·�
·
sensibilizado os podêres públicos, que abrandava :suas grandes proprietários que os havia expulsado das suas
medidas policiais nessa fase de tanto sofrimento, de terras sem piedade. Que mandavam arrancar pelos
tanta pressão por parte das fôrças naturais. Até pro c ap angas , suas roças de mandioca e de feij ão, plan
curavam ajudar. Apareceu no bairro o Januário, no tadas nos dias santos e feriados, só para que essas
meado recentemente sub-delegado da zona, oferecendo roças de pobre não sujassem, como manchas, o verde
a j u d a em mat eri ai s , para a construção de casas a todos nobre dos canaviais. G ovêrno de ricaços que enchiam
os moradores que, sabendo ler e escrever, se apresen- a pança com as verbas destinadas a melhorar a sorte
. tassem no correr da semana na sede do par.tido do dos flagelados. Êste era o sentido da frase de Zé
govêrno, para tirar seus títulos de eleitores ou para Luiz : - ' ' Na minha fome quem manda sou eu. ' '
revalidá-los para as próximas eleições. Inexplicàvel Preferiam continuar morrend o de fome a vender
mente, Zé Luiz , que sabe ler e escrever, recusou a a sua dignida de por um dez-mil- réis-de-mel-coado . Po.r
oferta . E quando o J anuário, magoado, lhe perguntou uma esmola do govêrno. Que dessem esmola aos �lel
porque a recusava, êle deu esta resposta enigmática : jados, não a êles que podiam trabalhar. Que quer1am
- ' ' Porque na minha fome quem manda sou eu. ' ' trabalhar.
Entenda-se esta gente que, atolada na miséria so A caridade humilhante, a remessa de pílulas e de
frendo de_ tudo quanto é necessidade, se dá ao luxo de
recusar. a ajuda do govêrno.
xaropes fortificantes para ·quem estava precisando de
comida - de feij ão com farinha para matar sua fome I
I
É que o habitante do mangue, principalmente o crônica - exasperava mais que a própria indiferença.
que veio de cima, que desceu do sertão na sêca, acos Teria sido melhor para o Govêrno que êle conti-
sado pela fome e pele sêde, é em regra um cabra de nuasse, com as classes altas, mantendo sua distância
gênio difícil. Difícil de se acomodar às regras de vida desta pobre gente. Que tivesse continuado a fechar
da cidade. Rebelde, áspero, duro de curvar a espinha. os olhos diante de sua miséria. Seria melhor do que
É gente que lembra por sua conduta, o junco, êste êste fingimento de querer combater a sua fome com
outro habitante do mangue. O junco, que quanto mais meia dúzia de vidros de fortificantes e com bailes à
forte sopra o vento querendo dobrar-lhe o pendão, fantasia pra comprar remédios.
mais êle se levanta duro e teso. Assim é o sertanejo, A cheia foi a gôta d ' água que fêz transbordar
mesmo atolado no mangue. Não que sej a uma gente todo o fel da taça de amargura dessa gente. E agora,
arrogante. Ê até humilde. Suporta suas necessidades , quando as águas baixavam, o amargor da vida se tinha
com resignação, de cabeça baixa diante da gente im espalhado por tôda parte, contaminando tudo. Já não
portante. Mas não queiram rebaixá-los demais, que construíam suas casas como dantes, com :rr;túsica e
êles se abespinham . Não foram feito s para lamber o cantoria. Mas num silêncio opressor de condenados
cu de ninguém. Não iam se alistar para votar num à morte. Já não havia maracatus nem bumbas-meu
govêrno que os matava de fome . Govêrno aliad o dos -boi. Só hav� a tristeza e de sola ç ã o Apen a s J oca, com
.
152 JOSU� D E CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 153
o céreb ro sempre arde ndo na cach aça, �onseguia man lhinho abandonado ao lado da cama, cortados todos
ter-s e bem humo7ado no meio da tristeza gera l. Ao os seus contatos com o mundo. Mergulhado na escuri
entrar no bote qmm do seu compadr e Manoel Pali to, dão de sua desdita. Não se sabe se foi a friagem que
pra bebe r sua cachaça, pra pass ar o temp o pergunta � apanhou naquelas tormentosas viagens, deitado sôbre
lhe, solícito, o prop rietário : ' os paus molhados da jangada nos dias da cheia, ou se
- ' ' Com o vai a vida , com padr e Joca � ' ' foi o espetáculo de tantos sofrimentos assistido � na
- ' 'Pois tocando flau ta, compadr e. ' ' queles dias, que arrebentou com os restos das forças
A resp osta surp reen de. Primeiro , que de Cosme.
esse tempo de se toca r flauta. Segundo , que todo
A não era
s os Definhava a olhos vistos, mas lutava para sobre
pres entes no bote co conh ecem o apêr to da vida de �Joca viver e aplicava os restos de suas fôrças para ajudar
s ? frendo nece ssid ades , sem pre às voltas com suas dí� os companheiros a sair de sua miséria.
v: das, emar.a�had o nelas. Com o é que agor a vinha êle Vinham homens de tôda parte para parlamentar
dize r que vivia tocando flauta � Joca lê com Cosme. Para trocar idé.ias com o chefe da Aldeia
olha r de seus ouvintes e explica com ara surp rêsa no
de burla : Teimosa.
- ' 'Poi s não é assim, compadre. Poi s se vivo Vinham líderes dos trabalhadores do pôrto, dos
sempre em busc a de um nôvo emp réstimo
um antigo . : . Abrindo um bur aco pra taparpra pag ar serviços públicos e da companhia de bondes. � vinham,
com o se estivesse tocando flauta . . . outr o... de mais longe, líderes camponeses que traziam suas
"
Os pres entes compreendiam mel hor riam des queixas da vida nas usinas de açúcar, � s�a revolta
cons olad os com aqu êle hum or neg ro de Je oca diante do que estavam sofrendo do s usmmros, Con
Já não havia alegria de verd ade, nem festas nos
. tavam que êstes, depois da cheia que havia estropiado
mangues . O que havia eram reuniões secretas para muito de seus canaviais, tinhàm ficado umas cobras,
prep arar a revoluçã o salv ado ra. Par a bota aumentando a perseguição aos moradores de suas ter
aquêle gov.êrno de ladr ões. r pra fora ras ameaçando expulsá-los por qualquer motivo besta
e ��egando-se a pagar qualquer salário. Tinham que
As reuniões se ealizavam qua se sempre na casa
de Oo.sme, que cont�muava send o o verdadei replantar os canaviais .destr? çados, só pela com���a,
dess a gente, apes ar dos estr agos deix ados pela ro líder porque dinheiro não havia. So por um pouco de feiJa o
cheia e farinha, cachaça e mel de furo pra preparar a ga
na . s�a. pobre c �rcaç a. c o.sme mudara muito dep ois rapa. Se não quisessem trabalhar por êste preço, que
episodw �a chei a. Par ecia . do
que a paralisia de seu corp o fôssem para o inferno. E fôssem calados, porque se
se este ndia , agor a tam bém
, a seu espírito . Já não era falassem, se reclamassem as benfeitorias que tinham
aquêle vul c � o humano lançando chamas interior es por levantado nas terras do patrão - o mocambo de palha,
sua cabe ç a ur;:ponente. O vulc ão se apagava. Cosme a horta de couve, o chiqueiro de porcos - os capan
pass ava, as , veze s, longas hora
s ausente, com o espe- gas sentavam-lhe o cacête no lombo para servir de lição
HOMENS 155
154 J O S' U li: DE CASTRO E C A RA N G U E J O S
a os outros . Maldita cheia e maldita organização polí beç a seu cha péu de aba s
�
larg; as e , sor r so nos láb ios
,
o Paulo f1ca va emb eve
tiCa que tanto o p rimi am a vida de miséria dos cam
.
cumprimentava a todos. Joa
e com o fat o de que
poneses indef esos. cido com est a fig ura imponente .
ora mal afama do , vie sse
. , �osme chamava para participar dess a s r euniões um homem tão valent e, emb
par a ouvir a voz de seu
s
p o ht� c as , � lgu ns dos homens mais r e ponsáveis da até o · mo cambo de Cosme
Joã o Paulo .
�
A deia Te�mosa. Qhamava-os com seu e spelhinh o de amigo . Era um orgulho pra
a dec isão imp ort ant e.
:n a o , fazendo-lhes sinais cabalísticos no rosto qu ando Nã o saía da reuniã o nenhum
esc alã o sup erio r . Na cas a
Iam para o t r abalh o , avisando-lhes do dia da reunião E ssa s eram tomada s em
� a forma de luta � . ser
E,_ à noi t e , estavam todos êles ali, no seu mocambo : de C sme , ap ena s se dis cutia
cambos . De com o utlhzar
Nao faltava um só, obedientes to dos às ordens do emp reendi da na áre a dos mo
ira de combat e.
chefe. a lama dos mangu es com o trin che
ormados a notícia de
João Paulo a ssi stia sempre estas reuniões. Vinha Tra ziam o s hom ens bem inf
sul as armas nec essárias
com o pai . c
s s ent av a - se num canto do m o amb o com
A que , em bre ve, ch e g ariam do
a dat a do levante . Qu e
os olho �
ixos nas caras dos o r a d ores, que exp unham quando ent ão ser ia marca da
�
s �� s tragwos p roblemas. Umdia, apareceu numa reu f p
C o sm e ô s se rep arand o os
seu s homens e inf ormasse
contar , par a puxar o
mao, uma figura que impressionou muito a João c o m quantos ded os se poderia ·
XII
DE COMO VIVE A GENTE DO NORDE S'TE :
VIVEND O E APRENDENDO
ci:r�J.a da cabeça, arr ebentan d o -lhe a c ar a tôda. Bastião de j aca na ponta da haste feita com casca de cana, e
cam n"?m a poça de sangue, cercada pelar5 brasas do o visgo ia agarr ar as moed as no fundo
da caixa, que
f?gareno . N? mesmo momento , dois soldado s que ou ficava limpa . O padre não quis que S ebastiã o fôsse
viam r om a " nti c ament e as cantigas dos violeiros · deram preso. Passo u-lhe apenas um sermã o. Mas o sacristão
vo z de prisão à negra Idalina. To d o mundo fi� ou ful contou a história a todo mund o, e a cotaçã o de Sebas
.
tião ficou, desde então , muito baixa bairro . É po
·
cura . Dep ois, outra carta mais cons olad ora. Enc on
'
Êle o fêz com tôda a naturalidade : um desmaio. Chico saiu correndo. Era a pnmeua vez
- " Um rapa z da Aldeia, o Sebastião , disse que que per corria as ruas da Aldeia Teimosa, e� pleno
a filha dela era puta na Rua do Fog o, e ela dia. Tropeçav a nos calombos da estrada, me,10. cego,
arre
tou-lhe a cara tôda com um foga reiro de ferro . "ben com o s olho s semi-cerra dos pela falta . do ha�It.o de
olhar o sol. A velha Totonha lhe exphco� baiXmh?,
Voltando -se para Idalina, o deleg ado insistiu : que Cosme tivera, naquele dia, três desmaios. O pn-
163
162 JOSUÉ DE C A S T R O HOMENS E CARANGUEJOS
meiro, veio de repente e, nesta ocasião o seu espe A desolação era geral. De vez em quan do, Cosm e,
lhindo caiu-lhe da mão, partindo-se todo: Que Cosme no seu morr er sem fim, desp ertava do torp or e dizia,
recobr? u logo os s enti d os mas que nos dois outros
, umas frases curt as, de amabilidade aos amigos. Mas
desmaws, demorou bem mais tempo a voltar a si. E deixou de falar na Revo lução . e des-
ela e_.stava com mêdo de que, num nôvo desmaio, Cosme Na segunda noite , deu um susp iro profundo
maio u feio como se tives se perdido o fôleg o de vez.
·
se fosse de vez.
Já havia outras pessoas no mocambo. Zé Luiz Das Dore s disse que era cheg ada a sua hora e pediua
aconselhou a se chamar um doutor. Mas Cosme balan uma vela pra botar na mão do moribundo. Não havi
. çou a cabeça, dizendo que não. Que o deixassem morrer vela em casa e nem na dos vizinhos ali prese ntes. Eram
sossegado. So ssegado como sempre vivera no seu canto. todos gente muito pobr e. Tiran do, então , do fogo , um
Obedeceram a, sua vontade. Durante dois dias e uma tição aceso , Das Dore s o pôs, com j eito, entre as mãos
noite, Cosme ficou assim, entre a vida e a morte. Não de Cosm e, para que êle parti sse pras treva s do outro
chamaram o médico, mas mandaram chamar Maria mun do, com as chamas do tição lhe iluminando o ca
d� s Dores que, depois da partida de Idalina, era quem minh o. Mas, ainda não era chega da a hora da par
aJudava a morrer no bairro. Enquanto a velha 'T o tida. Uma vez mais , Cosm e voltou a si e viu o tição
tonha chorava e Maria das Dores rezava Chico e João entr e suas mãos cruza das sôbre o peito . Compreen
Paulo não tiravam os olhos de Cosme. ' dend o o que se estav a pass ando , Cosme levantouadaos:
O bairro inteiro soube que Cosme estava às portas olho s para os amig os e disse com voz grave e paus
da morte e, fêz-se uma romaria enorme ao .s eu mo - " Morr endo e apre nden do . . .
"
cambo. Durante todo o dia, chegava gente que ficava Foram suas últimas palavras . Minutos após ,
conversando debaixo dos coqueiros ' lamentando os Oosme morria.
acontecimentos.
Logo agora, que tinham tanta necessidade dos
conse�hos e da experiência de Cosme, é que a morte
parec�a chamar-lhe com impaciência. Agora, que se
aproximava a hora descisiva da libertação de todos.
Já o próprio Cosme os tinha informado que estava
marcada a data do levante. Iria ser pra breve.
- " É o único capaz de dirigir a nossa luta "·
dizia um, revoltado. '
- ' ' Sem Cosme, a gente fica desorientado como
se e ��ivesse sem cabeça, como caranguejo na tempes
.
tade , replicava outro com a voz aflita.
XIII
.A tristeza da viela, a pobreza, a miséria de sua gente. culdade em mantê-la firme ao pescoço fino. Os seus
.A morte. 0lhos vão pregados no chão, como se o mundo em
_
Ê ste alheamento, êdes silêncios prolongados de tôrno não . mereces se mais ser visto.
J o ao Paulo, c omeçaram a preocupar sua mãe. Ela Marchava João Paulo dentro desta solidão quan
contou a Z é Luiz a estranha conduta do filho, sem do, bruscamente, ouviu uma descarga de ruídos es
pre macambúzio, solitário como um velho que j á ti tranhos que o fêz estremec er. Eram estalos de trovões,
vesse perdido todo o interêsse pela vida. Zé Luiz reboando perto, e silvos de vento assoviando por entre
passou a observar melhor o filho e também ficou preo- as fôlhas das árvores. Devia ser uma tempesta de.
. cupado. N une a vira menino com aquêle ar tão sério João Paulo olhou o céu. Estava limpo, sem uma nu
tão sisudo, como se tivesse problemas angustiantes n � vem. Estranha tempestade esta, sem nuvens, sem sinal
cabeça. Rewlveu esclarecer o s motivo s daquela mu de chuva, com o sol brilhando no azul. .Assustou-se.
dança . A tempestad e continuav a. Os trovões reboavam por
. Na m:mhã de hoje, enquanto fazem a refeição ha
tôda parte, de maneira estranha, como se estivessem
bitual enquanto comem seus caranguej os e bebem
-
sendo picados em miú dos, numa cadência angustiante.
seu café ralo Zé Lu iz interroga João Paulo. Pro
-
João Paulo estacou, procuran do ver de que lado vi
cura saber . porque não se sente êle feliz. Se j á não nham , ê stes estranhos ruídos de tempestade. Pare
go sta do trabalho na casa . d o vigário . ciam vir de todos os lados : ora do lado da cidade, ora
. do lado de .Afogados , ora do lado de Beberibe, ora do
O filho tem dificuldades em explicar o que sente outro lado do mangue. João Paulo sentiu uma con
garar:_te que nã� é isto . Que gosta até muito do vigári�
·
_
fusão na cabeça e um formigameuto no corpo. Dis
e de p e � car gua1amns com êle. �!I:isturando as palavras parou na carreira. Corria em ziguezague , como correm
s -:- m r-T:contrar m :· � o de se exprimir claramente Joã �
'1 1i • t e za e d e ver tanta pobreza
tns ) os carranguejos, procurando descobrir de onde vinha
CL , , qL .._,
) ;'l 1 1 1 r" -, l\
, , _ ,t " '
f ) mesmo o barulho da tempestade.
''\ n r � .., �· •
_ , , . . ,,
:1ada:., O pai, nym tom quase de censura, lhe diz que todos para as portas de seus mocambo s, e olhavam para
cJ e nao tem nacLa a ver com � sto. Que êle não tem que o céu com uma expressão de pavor estampad a nos
p e nsar nestas bobagens tristes. Que isto não é assunto rostos. E João Paulo corria sempre. Ouvira chamar
de menino . É p r ob l e ma de gente grande. E João Paulo o seu nome duas vêzes. Mas não ligara importân cia.
t:e cala, e a c o n ve r s a morre numa silenciosa incom Nada lhe interessava mais ali. Só lhe interessav a des
preensão. cobrir onde era a tempestad e. Cortou caminhos, cru
Ter�i�a � do de � omer, João Paulo parte para a zou pinguelas, atravessou terrenos baldios e, ao chegar
casa do v1garw. Oammha pausadamente passo firme ' '
ao pé da ponte de .Afogados, topou com a tempe's tade.
mas c o m a cabeça inclinada para a frente como se os Das barrancas do rio êle viu, lá embaixo, acocorado s
.
.
s eus pe n s a m ent o s pesassem tanto que êle t ivesse difi- nas margenª do mangue, vários homens, armados de
1 68 JOSU� DE CASTRO HOME N S E C A R A N G UE J O S 169
fuzis e metralhadoras, atirando furiosamente. A.s me que fazer. A.té Chico aparec era na po:ta de. �eu mo
tralhadoras picavam o trovão miudinho, e as balas cambo . Veio mistur ar-se com os demais e dizia para
silvavam como um vento de morte por entre a s fôlhas êles :
gordas dos mangues. - ' ' A. revoluç ão está aí t Bem que C osme· ·
dizia
� ' "
João Paulo desceu a barranca do rio e se mistu que a gente estava às portas da revoIuçao .
rou com · aquêles homens. Não conhecia pessoalmente O s homens se interr ogavam, uns aos outros , mas
nenhum dêles, mas sentiu que eram todos da mesma ninguém sabia explicar nada. Ninguém estava a P 3;r
família que êle tanto admirava : da família dos heróis de nada . Não havia um só dêles entros ado na ma
do mangue. Muitos dêles, quase despidos como se quina da revoluç ão, embora �ôssem todos r �voltado s.
fôssem pegar caranguej o no mangue, apenas com o
Na cidade mesmo , o pâmco era generalizado. Os
corpo coberto por grandes placas de lama. Eram os
mesmos cavaleiros da miséria que já tinham vivido comerciantes fechavam às pressa s, as portas dos seus
negócio s. A.s mulher es corriam para casa como loucas .
tantas lutas heróicas na imaginação transbordante de
João Paulo. Mas, hoj e, êstes cavaleiro s da miséria Os batalhõ es da Polícia Militar marchavam, em passo
não estavam apenas protegidos com as suas armadu acelera do, para os pontos estratégicos, a fim de �ufo
ras de barro, mas armados com fuzis e metralhadoras carem a revoluç ão. Nos cafés do centro, certos tipos,
que ninguém sabia onde ti:oham arranj ado. Só Cosme que se reconheciam bem informados, afirma:vam que
saberia e lhe explicaria tudo. Mas Cosme estava morto . se tratava apenas de um levante. Le': ante de um bata
E, mesmo, não havia tempo de perguntar nada. A. lhão instigad o pelos sargent os e articula do com .ope
tempestade que os. homens estavam fabricando não rários e camponeses disposto s a morrer . p.ara se hb �r
tarem da fome. Mas, havia outros que diziam ser coisa
mais séria. Que o levante estava artie1üado com ou�ros
era p ara brincadeira. Não era como as tempestades
que êle, João Paulo, fabricava com o Pe. Aristides
para pegar guaiamu. O menino, correndo de um lado movimentos no país. E que, em breve, chegariam
para o outro, p ôs-se a ajudar a carregar as metralha diante do pôrto, os navios de guerra revolta dos, .e bom
doras, enquanto os homens apontavam com suas armas, bardeariam o Palácio do Govêrn o. A. expectativa era
. .
� �� �esura� . Escapou às carreiras pelos fündos do na frente , as mulheres atr ás, com ass mã cria s se agar
es. Maria vai
a aCi o , fu9m d o numa lancha vestido de mulher com rando assustadas nas saias de m sua
uma cabeleira suposta. ' ' ' perguntando a tod os p elos c a ihin nho , se não tinham
us � ' ' ,
te p o de fa zer , me u De
'o
Nesta frenética busca de João Paulo, o grupo en - ' ' Qu e é qu e a gen
rgunta a mãe do menin
.
o.
' ua , res -
contra homens com :fuzis nas mãos cobertas de poeira, De "
L"
s dar um a bu sca d e b a1xo d ' ag
- ' ' Vamo
•
agor!l recobertos por êste espêsso l ençol d ' ág u a da A luz do sol se apaga':'a no
des hz ar sob re a sup er
flcle lus
m�r�. Como en c ontr ar, neste mundo d 'água, o corpo chamas começa ram a em. as e
tros a da ma ré. E r a m vel as ace sas dentro de
minusculo de João Paulo �
174 JOSUE
m � n t e na d ire çã do ma r, ne sta
o Não houve oposição tà sua prop ? sta. O grupo s e
em a, po sta a ág ua pe las pr ó
ho ra da vazante. A preparou para partir. Ap ep�s Mal'la nao _ �e moveu
espiando em silêncio a vastldao n egra . da s agu a s . �e
n p ri as mã os de Ma:l'ia da s ;
· Do res qu e ne la tin ha ,
oia
de p s t d o uma fé ina _
e � �
d s c rev e clo s cír cu
los est ran ho s sôb re as á g
ba láv el
uas e es�
Luiz arrastou-a carinhosamente na dueçao de c t ; a
Subiram a barranca do rio e o grupo começou a dis-
c , .
o
t ac u miste riO sam en
te . Da s Do res , x c i a d , gri
pr o gr up o :
e t a tou pe rs ar
.
- " Deve ser aq ui !Pr ocu rem aq ui ! " se espalhou pelo bairro, e impressionou �anto q�8;nto
Ch ico us ou a va ra .
O ar era fun do e a va a do fracasso da revolução. Os viziph o s VI�ram VIsitar
.
foi engolid a qu ase inteira lug ra
a família de Zé Luiz e passar a n01te mteua n e ss e es
po:r:ta top o u c ontra uma r epsiela s ág ua s, �a s a su a _
tranho velório : velan do o corpo ausente de J o a o Pa�lo,
s tên ci a f ôfa , s usp e i t
Chico est rem ece u. Z
é Lu ís a rr an cou a cam
a. que todos sabiam estar longe àquela hor a, :r:_o remo
cos tas e sal tou den tro ' isa d a s misterioso da morte. Falavam pouco, para n�o o�en
. d águ a. Mergulh ou, e ap are ceu
arr ast an do, pa ra a ma
rg em elo rio , o c o rpo pe d e r a dor dos pais. Quando chegavam, quase so fazmm
um hom e:n com o pei to sado d e ge st o s Gesto s de angústia no rost o , gestos de conf o r
.
var ado ele b al a, a cara
inc ha
da, os bei ços com ido s
p e l o s s irís , pondo à m o s tra os midade nas mãos :
den tes c omo se est ive sse
so rrin d o ela morte . -- " É a ssim . . . " E l evant a vam os br aç o s con
. O ach ad o ref orç ou a con fia nç a
do gr upo na ça
vulsos e os · soltavam frouxos de encontro ao corpo .
M ari a chorava b aixinho Zé Luiz não dizia nada.
mil a g� os a da v e l a: .
·
Co ntinuaram acomp anhandfôr
b a rq umh o s , b o r d e J and o de
rio ab aix
o os De manhãzinha, partiram de nôvo em busc� do
o. · De r ep e n te .
uma luf ad a d e ven to , m enino Já encontraram a maré baixa,
. descobrmdo
forte virou doi s d êle s , afundan
do as vel as na esc uri dã
o ela s
grandes placas de lama negra e a cabeleira esfranga
çaram o s pilares da ponte áeg usea s for . Os res tantes alc an nhada d o s mangues. Recomeçaram a b u s c a atolan ,
g em do man gue
•
estende- se,
lençol � :���� a!
E sôbr e to da a paisa
A
brin-
eram tirado s da lama, j á meio comidos pelos caran
d so ne ra m or talha re co
ag or a, um sa da .
guej os e siris. Muitos tinham as mãos crispadas, os
os s revoluç ão fra cas
s os co rp os
angues dev e esta em
to do r'
n�! !fo
dedos duros agarrados no cabo do fuzil. do
As buscas demoraram o dia todo. As turmas se Dent re êle
pa
s , en
rt e,
ter ra
?
do
y �
ão P a lo qu e, co
m su �
qu alqu er o o
qu e ah-
c r
revezavam, sem que surgisse o corpo de João Paulo. . a, alimentar a lama .
, Ir
carne em de compo siç ao .
Ciclo do Carangue J O.
Maria e Zé Luiz não se afastaram dos mangues, em
menta o
sua sôfrega busca, até quase o fim do dia. Só desisti
ram, extenuados, quando de nôvo as águas da maré
subiram, afogando tudo : os mangues e a lama e as
suas últimas esperanças de reaver o corpo do filho.
Os companheiros convenceram os pais do menino a
voltarem para casa. Formou-se, então, uma procisão
fúnebre, que atravessou os mangues acompanhando,
não o morto, mas a dor dos pais do morto, até seu
mocambo.
O sol já vai se pondo, quando a procissão alcança
a Aldeia Teimosa. Os últimos raios de luz do dia pa
recem imprimir como uma marca de fogo, no rosto
de todos, a profunda dor que os domina. Zé Luiz,
com os olhos vermelhos, os lábios ressecados, caminha
esgravatando sua cabeça angustiada, procurando des
cobrir por que misteriosos caminhos fôra seu filho
conduzido à morte. - ·T·eria sido o gôsto que êle to
mara em fabricar tempestade com o Pe. Aristides �
Teria sido o mau exemplo dos guaiamus, perdendo a
cabeça quando ouvem tempestade � Ou teria sido, tal
vez, a tempestade de idéia s que Cosme acendera na
cabeça do menino �
Ninguém seria capaz de ajudar Zé Luiz a de s
vendar o terrível mistério. Pouco a pouco a noite, des
cendo sôbre o mangue, apaga do rosto de Zé Luiz
aquêles traços duros que, o dia inteiro, tinham-lhe em
prestado ao rosto, a expressão de um cangaceiro.