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JOSÜÉ DE CASTRO

capa de
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HOMENS E
nDE HELLMEISTER
CARANGUEJOS
revisão ortográficl
I (Romance)

1·.
BEATRIZ MENDES DE ALMEIDA

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E D I T ô R A B R A S I L I E N S E S. A.
Rua Barão de Itapetininga, 93 12.0
EDITÔRA BRASILIENSE SOC. AN.
São Paulo - Brasil São Paulo - 1967
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fome? Como
"O que significa a literatura num mundo que sofre
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-

moral, a literatura necessita ser universal. O


escritor deve, pois, se colocar
se quiser se
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do lado da grande maioria - dois bilhões de famintos --

o . ....
. dirigir a todos e ser lido por todo�."
... ' . . ....

��--GEO�fA
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JEAN-PAUL SARTRE'
... �.�...- .... ,.,.:... ""'"""""' -

DA FOME
Io.a edição - 1967.

GEOPOLíTICA DA FOME 2 vols.


e
-

"Sabes que passarão séculos a humanidade proclamará pela bôca


P edição - 1966.
do seu saber e de sua ciência que não existe o crime e em conseqüência
tão pouco o pecado, que só existe a fome."
DOC UMENTÁRIO DO NORDESTE
FmooR DosTOYEWSKJ
3.a edição - 1966.

ENSAIOS DE GEOGRAFIA H UMANA


4.a edição 1966. - "Em cada parada me esperava uma fome; diante
de cada fonte me

esperava uma- sêle."


ENSAIOS DE BIOLOGIA SOCIAL
ANDRÉ GIDE
3.a edição 1966. -

O LIVRO NEGRO DA FOME "O ventre é a base sólida: o pão, o vinho e a carne devem preceder
2.a edição 1966. - a tudo, pois, só com pão, vinho e carne pode-se criar Deus."

NIKOS KAZANTZAKJ
SETE PALMOS DE TERRA E UM CAIXÃO
2.a edição 1967. -
íNDICE

Prefácio . . ... . . . ... . . . . .. . . .... . . .. . . .. . . . . . . . .. , . . ..... . . . .. 11

I - De como o corpo e a alma de João se foram impregnando


do suco dos caranguejos ............. .... . ............ . 27

II De como aparecem aos olhos de João Paulo os cavaleiros da


miséria com suas estranhas armaduras de barro . . . . . . . .. . 3!5

III - Da estranha maneira do Padre Aristides fabricar tempestades


para pegar guaiamu. Dos ingredientes utilizados e das conse-
qüências . . .. . . . .. . . . .. . . .. . . . . . . . . .. . . . . .. . . . .
.
· . ...... 49 .

IV - De como o chão fugiu debaixo do pés dos milionários da


borracha . .... . . . .. . ... . . . .. . . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . ,. .. . .. 59

V De como Zé Luiz falou com Deus sem antes se be�zer . .. . 71

VI De como a fome fêz de Zé Luiz, honrado vaqueiro do sertão,


um reles ladrão de queijo ............................. 79

VII De como seu Manecada quase se desfez na diarréia da fome 89

VIII De como os moradores da aldeia teimosa construíram na


marra a sua cidade . .............. .. . .............. . . . 97

IX - De como João Paulo ficou conhecendo melhor os seus vizi-


nhos através do espelhinho de Cosme . ........ ......... . 109

X De como as águas cresceram por sôbre o ventre da terra 123

XI De como as águas da cheia baixando, arrastaram' com ela a


fôrça de viver dos habitantes do Mangue ........... . .. 145

XII De como vive a gente do Nordeste vivendo e aprendendo 157

XIII De como João Paulo, ouvindo a tempestade dos homens virou


caranguejo ..... .. . .. ...... ... ... . . . .... .... . . ........ . 165
Biografia do autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . · 179

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PREFACIO UM TANTO GORDO PARA UM


ROMANCE UM TANTO MAGRO

Nas terras pobres e famintas do Nordeste brasi­


leiro, onde nasci, é hábito servir-se um pedacinho de
carne sêca com um prato bem cheio de farofa. O
suficiente de carne - quase um nada - para dar gôsto
e cheiro a tôda uma montanha de farofa feita de fa­
rinha de mandioca, escaldada com sal. Foi, talvez, por
fôrça dêste velho hábito da minha terra, que resolvi
servir ao leitor dêste livro, muita farofa com pouca
carne.
Sentindo que a história que vou contar é uma his­
tória magra, sêca, com pouca carne de romance, resol­
vi servi-la cóm uma introdução explicativa que engor­
dasse um pouco o livro e pudesse, talvez, enganar a
fome do leitor - a sua insaciável fome de romance.
Foi, no fundo, como uma espécie de sublimação dêste
complexo de um povo inteiro de famintos, sempre pre­
ocupado em esconder ou, pelo menos, em disfarçar a
sua fome eterna, que acabei fazendo uma copiosa in- .
tra dução a êste magro romance que tem, como perso­
nagem central, o drama da fome. Assim, por fôrça das
circunstâncias, encontrará o leitor, neste livro, muita
explicação e pouco romance. Pouco, mas o suficiente

I;
para dar ao livro o gôsto e o cheiro fortes do drama
da �orne qu� é, no fundo, a carne desta obra.
'
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I 12 J O SU:Jt DE CASTRO H O M.ENS. E' C A RA N GUEJ O S 13

f Mas, será mesmo êste livro um romance� Ou nito dos com os caranguejos, seus irmãos, com as
·snãs duras
será mais um livro de memórias� Talvez, sob certos carapaças também enlambuzadas de lama. .

l
aspectos, uma autobiografia� ·cedo me dei conta dêste
·estranho mimetismo: os
homens se assemelhando, em tu do , aos caran
.
Não sei, Tudo o que eu sei é que, neste livro, se guejos,
l· para
c onta a história de uma vida diante do espetáculo mul­ arrastando-se, agachando-se como os caranguejo�
poderem sobreviver. Parados como Of? carangueJO
tiforme çla vid�.. A história· da· vida de um menino S na
pobre abrindo os olhos p ara o espetácuio do mundo beira d'água ou caminhando para trás como camin ham
numa paisagem que é, tôda ela, um braço de
mar- u � os ca,ranguejos.
longo braço de um mar de misérias. É porisso que os habitantes dos mangues, depois
· O tema dêste livro é a história da descoberta que � i
de ter m um a a saltado para dentro da vida, nesta
la­
fome fiz nos meus anos de infância, nos alagados da dific�lmente guira m
·

:da ma pegajosa dos mangue�, conse


para
cidade do Recife, onde convivi com os afogados dêste sair do ciclo do carangueJo, a nao ser- saltando
11morte e, assim, se afundando para sempre dentro
da
mar de miséria. Procuro mostrar neste livro de ficção
que não foi na Sorhonne nem
em qualquer outra uni­ lama.
versidade sábia que travei conhecimento com o fenô­ A impressão que tinha, era ql:ie os habitantes
eu
meno da fome. O fenômeno se revelou expontânea­ dos mangues - homens e caranguejos na cidos � à beira
mente .a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos cada v�z
do rio - a medida que iam cresc�ndo, Iam
bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pi­ se atolando mais na lama. Pare
cia que a vegetaçao
n�, Santo Amaro, Ilha do Leite.· Esta é que foi a , com
densa d o s mangues, com seus troncos retorcidos
-minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife fer­ o emar a nhado de seus galhos rugos
os e com a dens a
defi­.
vilhando de caranguejos e povoada de sêres hu anos � rêde de suas raízes perfurantes os tinha a garrado
nitivamente' como um polvo, enfiando tentáculos
:feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo co­ in­
mo caranguejo. Sêres anfíbios - habitantes da terra· visíveis por dentro de sua carne, por todos os uracos ?
. e·da água, meio homens e meio bichos. Alimentados de SUa pele: pelos olhos, pela boca., p elos OUVIdOS .
na infância com caldo de ..caranguejo: êste leite de no mangue,
. E ' assim ficavam todos êles, afoga. dos .

agarrados pelas ventosas com as quais os mangu


:lama. Sêres huma:n,os que se faziam assim irmãos de es m-
leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e e da
saciáveis lhe sugavam todo o suco da sua carne
-a andar com os caranguejos da lama e que depois de
sua alma de escravos. Com uma fôrça estra nha, os
terem bebido na infância êste leite de lama, de se te­ mangues iam, assim, se apo d erando da v�d�.
de tôda
rem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos man� t az , defim hva. Es,.
aquela gente numa posse lenta, en
gues e de
se terem ímpregnado do seu cheiro de tas estranha plantas que, em eras geológicas passa
� das,
rra - esta
terra podre e de maresia, nunca mais se podiam li­ se tinham apoderado de tôda essa área de te
bertar desta crosta de lama que os. tornava tão pareci- fossa pantanosa onde hoje assen ta a cidad e do Re-
14 J O S U l!: DE C AS TRO HO ME N.S E C AR A NG U E J O S 15

cife - e s ten di a a go ra sua


posse também aos seus habi­ ma do labirinto dé raízes dos mangues e debaixo· das
E tudo nesta região passava a perte n c er ao
tantes. suas cop adas sombras verdes, foi progressivamente su- '-'--'
mangue con quistador e dominador: tanto a terra como bindo o nível do solo, e alargando sua área sob a pro­
o homem . te ç ão dêsse denso engradado vegetal. Não há, pois, a

. Na ver ade, foram os mangues os primeiros con­ menor dúvida, que tôda esta terra que hoje flutua à
qmstadores esta terr � .
� Foram inesmo, em grande par­
flor das águas, na baía entulhada do Recife foi uma
criação dos mangues.
te, os seus cnadores. Toda,..
esta vasta planície inundá - Os mangu es vieram com os rios, e
com os materiais
. v�l, formad a de ilhas, penínsulas, alagados e' paús ,
.
for� e:n tempos Idos por êstes trazidos foram os mangues laboriosamente
uma grande fossa, uma baía em
s�mi-circulo, cercada por uma cinta de colinas. Nela c o nstru indo seu próprio solo, batEmdo-se em luta cons­
VI�do a desag ar, através
� �
a �uralha d essas colinas, tante contra o mar. Vieram como se fôssem tropas de
dOis grandes rws -
o Oapibaribe e o B e b e ribe - fo­ ocupação e, ao contato com o mar, edificaram, silencio­
ram entulhando a fo ssa·com materiais aluvionais c om sa e progressivamente, esta imensa baixada aluvional
a t erra arrancada de outras áreas distantes hoje cortada por inúmeros braç'Os d ' água dos rios e

·

e tr zida
·

na e�xurrada de suas águas Pouco a pouco, foram . densamente povoada de homens e caranguejos, seus
habitantes e seu adoradores.
·

s urgmdo, dentro da baía marinha, pequen


as coroas lo­
d o sas, f?rJ?�das at.ravés da pr cipitação e deposiç ão Tendo os mangues realizado esta obra ciclópica,
. �
dos materiais trazidos pelos rws. E foi sôbre êstes não admira que, hoje, sejam êles divinizados pelos ha­
- bancos de ·solo ainda mal consolidados mistura in­ bit an tes desta área, embora não saibam os homens ex­
certa de terra e água, que se apressara a proliferar � p li c ar como o mangue realiza êste milagre de criar
os mangues - esta estranha vegetação capaz de viver terra como se fôsse um deus. Mas os homens veem,
dentro da água salgada, numa terra frouxa, constan­ até hoje , crescerem diante de seus olhos, as coroas lo­
! emente alagada. Agarrando
. -se com unhas e dentes a dosa s, e transformarem-se, pela fôrça construtora dos
este solo para sobreviver, através de um sistema de mangues, em ilhas verdejantes, fervilhantes de vida.

r ízes que são como garras fincadas pro fundamente no E veem, assombrados, proliferarem em tôrno das ilhas
-
lodo e �mp ar a ndo se, umas nas outras, para resisti­ maiores, outras pequeninas, como saídas durante a
rem ao 1mpeto d�s correntezas da maré e ao sôpro for­ noite de seu próprio ventre, em misteriosos partos da
te dos ventos ahseos que arrepia sua cabeleira verde, terra que o mangue milagrosamente ajuda.
os mangues foram pouco a pouco entrel açando suas Nasci na cidade do Recife, que é sob certos aspec­
,
raizes e seus braços numa amorosa promiscuidade e tos a Hong-Kong da América, com a sua miséria
foram, a ssi m, consolidando a sua vida e a vida do s lo � acumulada, empastada neste grupo de ilhas: que flu­
frouxo das coroas de lôdo, donde brotaram. Com os tuam, sonolentas, entre os braços dos dois rios: o Oa'­
depósitos aluvionais que se foram acumulan do na tra- p ib aribe e o Beberibe.
-,
16. · · · J.OS·u� .. PE· CAS·T·R.·Q: · · :
H OM E N S E C A R A N GU E J O S 17

.. : : A.:.-prini-eira- sóçiedade com que travei conhecimento:


em diante, mergulhar nas águas do mangue torno �­
foi a :so:ciedade.-dos carangue jo s; Depois,· a. dos ·ho mens. !
.se um hábito. Mudei-me depois para outro bairro mais
habitantes dos.mangu.es,drmãos de .leite:· dos carangl1e­
perto do rio. Fomos morar na Madal �na, numa :elha
jos;. S.ó muito depois é que vim a conhecer a outra so­
casa colonial de um só andar, com sms grandes Jane­
cied-ade; fui levado a reserv ar, até hoje,- a ma.í or par� ·

las ele frente. Casa grande, acachapada com sua pe­


dizer com. tôdá a 'franqueza . que, de tudo. o· que vi e
aprendi na vida, observan do êstes v�rios tip os de.so� sada massa arquitetônica, montada como uma forta­
cieda-de, fui levado .a reservar, até hoje, a maior p a r ­ leza em seus altos batentes, por onde subiam os
" caranguejos em tempo de cheia até a terraço entr ndo
cela de minha ternura para a socü�dade dos mangues ? �
-a sociedade dos caranguejos e a dos homens, seus mesmo até dentro das salas. Nas epocas de cheia, a
irmãos de leite , ambos filhos da.lama. casa virava uma arca de No é, e todo o sítio virava
um mar. Quando as águas baixavam, uma lama preta
É a história da socied ad e dêsses seres anfíbios
ficava recobrindo, durante dias, tôda a paisagem. A
que· eu conto neste livro·. Desta sociedade· que;· econô.::
frente da casa era voltada para o rio porque fôra ela
mieamente, também· é: anfíbia, . pois. q1:Je vegeta ·nas
construída nos velhos tempos em . que todo o trans­
margens· ou· bordas de duas estruturas econômicas·.que
porte da cidade se fazia em botes e barcaças, os h�­
a história até hoje n ã ó costurou rium mesmo tecido:
mens do comércio do açúcar indo para os seus escri­
·!1 estru tur a agrária feudal e a estrutur a capitalista.
tórios de sobrecasaca preta e cartola, co� negros de
Estruturas que persistem no Nordeste do B rasil, l a do
torso nu remando pelo Capibaribe acima. O sítio
a lado sem se fundirew, sem se -integrarem
até hoje era cheio de árvores e bichos. Mangueiras e sapoti­
num mesmo tipo. de civilização.
· seiros que davam frutos maravilhosos. Maravilhosos
A sociedade· dos mangues é·uma sociedade·impren­ eram ' também ' os frutos de outras árvores que não
sada entre estas duas· estruturas esma gant es. É u ma .
· existiam no nosso sítio, mas que nêle apareciam es-
sociedade ·que, compriniid·a pelas duas outras, escorre palhados pelo chão. Eram frutos colhidos durante a
eomo uma lama sociàl na . cuba dos alagados· do Recife,
noite ' no.s sítios dos vizinhos, pelos morcegos que os
misturai1do-se com o caldo grosso da lama dos-mangues. .

deixavam cair dos seus braços, nos seus voos apres-


A

Nasci mima rua que tinh a o nome ilust re de J oa­ sados.· Eram goiabas, jambos e araçás, todos meio
quini NabuQq,· o graride'abolicio:riista ·:ctos escravos� nos roídos
m
as que eu saboreava com g ôsto no.s meus
tempos do Irripérió". A. casa em . que ·:nasci . tiilha a o ·


passei s matinais pelo sítio, parasitando, assim, o tra­
lado um grande viveiro.. de pei�es� .d e c ar a nguejos e
balho noturno dos morcegos, meus sócios circunstan-
de siris. Se. não nasci mesmo dentro do ·viveiro, como
·

ciais. ·Havia também no sítio vacas, cavalos, car­


os carangttejos, já com dois anôs estava dentro dêle.
neiros e cabras, que durante as épocas de cheia eram
Escorreguei um dia no barro de suas margens e fui
amontoados no terraço da casa. E pássaros de tôda
retirado de dentro de · sua s águas meio af o g ado . Daí
espécie cantando em grandes gaiolas penduradas por
18 J O S U :e DE CASTRO H O M EN S E C A R A N G U E J O S 19

tôda a parte. Meu pai tinha trazido para o Recife me entrou muito mais pelos olhos do que pelos ouvidos.
tôda a paisagem viva da sua terra, com os seus bichos, Entrou-me por dentro dos meus olhos ávidos de cri­
com os seus pássaros. Dentro do sítio, eu respirava ança sob a forma destas imagens que estavam longe de
uma paisagem transplantada do sertão distante e em serem sempre claras e risonhas.
frente à casa eu contemplava a paisagem da costa - a Foram com estas sombrias imagens dos mangues
paisagem negra do mangue. e da lama que comecei a criar o mundo da minha in­
Bem ao lado da casa começava a zona compacta fância. Nada eu via que não me provocasse a sensação
dos mocambos , das choças de palha e de barro, amon­ de uma verdadeira descoberta. Foi assim iii.U e eu vi
.
toada s umas por c1ma das outras num enovelado de e senti formigar dentro de mim, a terrível descoberta
ruelas, numa anarquia desespera dora. As casas entran­ da fome. Da fome de uma população inteira escravi­
do por dentro da maré, a maré invadindo as casas. Os zada à angustia de encontrar o que comer. Vi os ca­
braços do rio passando pelo meio da rua e a lama en­ ranguej os espumando de fome à beira da água, à es­
volvendo tudo. pera que a correnteza lhes trouxesse ·um pouco de
Criei-me nos mangues lamacentos do Capibaribe comida, um peixe morto, uma casca de fruta, um pe­
cujas águas fluindo diante dos meus olhos ávidos de daço de bosta que êles arrastariam para o sêco para
criança, pareciam estar sempre a me contar uma longa matar a sua fome. E ví, também, os homens sentados
história. O romance das longas aventura s de suas na balaustrada do velho cais a murmurarem monos­
águas descendo pelas diferent es regiões do Nordeste : sílabos, com um talo de capim enfiado na boca, chu­
pelas terras cinzentas do sertão sêco, onde nasceu meu pando o suco verde do capim e deixando escorrer p elo
pai e de onde emigrou na sêca de 77 com tôda a famí­ canto da boca uma saliva esverdeada que me parecia
lia, e pelas terras verdes dos canaviais da zona da ter a mesma origem da espuma dos caranguejos : era a
mata, onde nasceu minha mãe, filha de senhor de en­ baba da fome. Pouco a pouco por sua obsessiva presen­
genho. Esta era a história que me sussurra va o rio ça êste vago desenho da fome foi ganhando relêvo, foi
com a linguagem doce de suas águas passand o assus­ tomando forma e sentido em meu espírito. Fui com­
tadas pelo mar de cinza do sertão, caudalos as pelo mar preendendo que tôda a vida dessa gente girava sem­
verde dos canaviais infindáveis e remanço sas pelo pre em torno de uma só obsessão - a angústia da
mar de lama dos mangue s, até cair nos braços do mar fome. Sua própria linguagem era uma linguagem que
de mar . Eu ficava horas e horas imóvel sentado no quase não fazia alusão à outra coisa. A sua gíria era
cais, ouvindo a história do rio, fitando as suas águas sempre carregada de palavras evocando comidas. As
correrem como se fôsse uma fita de cinema. comidas que desej avam com desenfreado apetite. A
Foi o rio, o meu primeiro professor de história do propósito de tudo se dizia: é uma sopa, é uma canja,
Nordeste, da história desta terra quase sem história. é um tomate, é uma ova, é um abacaxi, é uma batata,
A verdade é que a história dos homens do No rdeste é pão-pão, é queij o-queijo . Era como se esta gíria

''
.

21
.

JOSU:É CASTRO
)." HOMENS E CARANGUEJOS
20 DE

can:
fôsse uma espécie de compensação mental de um povo Mesmo quando ia me distrair, assistindo aos
sempre faminto . De um povo inteiro de barriga vazia tadores de feira ou ao espet áculo do Bumba-meu-b01
mas com a ·cabeça cheia de comidas imaginárias. É auto popul ar representado na zona dos mocambos
- o que encontrava diante de mim r e p r es en tan
do , fa-
-

que a comida lhes havia subido à cabeça, como o sexo


nume­
s o be a cabeça dos impotentes, êstes famintos de amor. lando , gesticuland o, era sempre. a fome em seus
rosos disfarces. Eram os vwle1 ros c ant ando :
Esta presença constante da fome sempre fôra a
grande fôrça modeladora do comportamento moral de
É o diabo de luto
todos os homens desta comunidade : dos seus valôres
no ano que -no sertão
éticos, das suas esperanças e dos seus sentimentos do­
se finda o m ês de Janeiro
minantes . Vê-los agir, falar, lutar, sofrer, :viver e mor­
e ninguém ouve o trovão
rer, er a ver a própria fome modelando com suas des­
o sertanejo não tira
póticas mãos de ferro, os her óis do maior drama da
o olho do ma tulão
humanidade - o drama da fome .
Foi o que viram, assustados e sem compreender E diz à mulher
bem todo o drama, os meus olhos de criança. Pensei, prepara o balaio
a princípio, que a fome era um triste privilégio desta amanhã eu saio
área onde eu vivia, - a área dos mangues. D e p ois se o bom Deus quizer
verifiquei que no cenário da fome do Nordeste, os man­ arrume o que houver
gues eram uma verdadeira terra da promissão que bote em um caixão
atraía ós homens vindos de outras áreas de mais fome encoste o p i lão
ainda. Da área das sêcas e da área da monocultura onde êle não caia
da cana de açúcar, onde a indústria açucareira, esma­ arremende a saia
gav a, com a mesma indiferença; a cana e o homem re­ bata o cabeção
duzindo tudo a bagaço.
Era um curso inteiro que eu fazia sôbre a fome, Se meu padrim padre Cícero
quando ouvia, com pm interêsse sempre crescente, as
__
quizer me favorecer
intermináveis histórias contadas por meu pai sôbre as eu garanto que amanhã
agruras sofridas pela nossa família, na sêca de 1877. quando o sol-aparecer
Da presença da fome na zona do açúcar tomei conheci­ nós já sabemos da terra
mento mais detalhado, através ·do relato monótono de onde ache o que comer1
dois velhos negros que tinham sido escravos na juven­
tude e que desfilavam suas lembranças da época, en­
quanto serravam grama para os cavalos de meu p ai .
(1) Versos de João Martins de A thayde - "O R etirante".
22 J O SU11: DE CAS T R O H O ME N S E CA R A N GUEJ O S 23

. E no Bumba-meu-boi, o que eu via era um es­ Eu fui ver lá na mão


tranho boi de duas pernas apenas, o mais humano dos Eh! Bumbal
bois que eu tinha encontrado na vida, sofrendo como
Não achei nad a não
um homem, chorando e se revoltando como gente; E
Eh! B umb a !
eu me tomava de amores por aquele boi magro e sêco,
tão magro e, tão sêco que , na verdade, era só cabeça e
na cabeça era só chifres. Enormes chifres balançando Eu fui ver nas costelas
no ar como um fantasma de boi. Realmente o boi era Eh ! Bumb a !
só chifres e pele, porque carne mesmo êle não tinha, co­ Não achei nada nelas
mo afirmava em sua cantoria o vaqueiro, que palpando Eh! Bumbal
o boi por tôda parte nunca encontrava em parte algu­
ma sinal de carne :
Eu fui ver no vazio
"Eu fui ver na cabeça Eh! Bumbal
Eh! Bumba! · Achei o boi bem esguio
.Achei ela bem lêta Ehl Bumbal
Eh! Bumbal
Eu fui ver no chambari
Eu fui lá na ponta
Ehl Bumbal.
Ehl Bumbal
Não achei nada ali
Ela de mim não fêz conta
Ehl Bumbal
Eh ! Bumbal

Eu fui ver no pescoço Eu fui ver o cocotó


Eh! Bumba! Eh! Bumba!
Achei êle bem torto Andei bem ao redor
Eh! Bumbal Eht Bumba!

Eu fui ver nas apá Eu fui ver na rabada


Eh! Bumba! Ehl Bumba!
Não achei nada lá Não achei ali nada
Eh! Bumbal Eh! Bumbat
HOMENS E CARANGUEJOS 25
24 J O SU � DE C A S T R O

minha
O Bumba-meu-boi era apenas um pesadelo de fa­ naçã o e esta mar ca que a fome pr?voco u na"
alma de criança, que procuro hoJe Invoc�r nest e ro-
minto. De faminto sonhando com um boi-fantasma
que cresce diante dos seus olhos compridos mas, cuj as man ce- o romance do Ciclo do CarangueJO; .
carnes, desaparecem debaixo das apalpadelas de suas
Algumas das coisa s que cont o . n�ste hvro, hoJe
desapareceram, mas outras- a m.awna
delas- per�
mãos. s olho s
man ecem inta ctas, tais como as vua m os meu
de criança. É que o tempo conta. pouc o nas t.erras
E, foi assim que, pelas histórias dos homens e de
miséria, nas terras sub-desenvolvidas do terceuo mun
pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era ­
um produto exclusivo dos mangues. Que os mangues
do onde a fome e a morte com sua presença constante
es tão sempre a tecer o destino dos homens. .
apenas atraíam o s homens famintos do Nordeste in­
.
teiro: da zona da sêca e os da zona da cana. Todos
Antes de terminar êste prefácio quero deiXar aqui
consi gnad a minha p r o funda gratidão pela �nest}m áv �
atraídos por esta terra da promissão, vindo se aninhar l
naquele ninho de lama, construido pelos rios e onde deste li­
contribuição que representou na elaboraçao
brota o maravilhoso ciclo do caranguejo. E quando r d poetas do N or­
vro a leitura das obras de três g an es
cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, dest e: Asce nço Ferreira, Joaquim Card oso e Cabral ·

me apercebi com nova surprêsa que o que eu pensava de Melo Neto.


ser um fenômeno local, um drama do meu bairro, era
J.·c.
um drama universal. Que a paisagem humana dos
mangues se reproduzia no mundo inteiro. Que aquêle.s
personagens da lama do Recife eram idênticos aos per­
sonagens de inúmeras outras áreas . do mundo assola­
da s pela fome. Que aquela lama humana do Recife,
que eu conhecera na infância, continua suj ando até
hoj e tôda a paisagem do nosso planeta como negros
borrões de miséria. As negras manchas demográficas
da geografia da fome.
Mas isto, já mostrei noutros ensaios que escrevi
sôbre a fome. Ensaios de natureza científica, de aná­
lise sociológica do problema. O que não tinha contado,
até hoje, foi o meu encontro com o drama da fame.
Hoje, resolvi contá-lo. Não só o encontro, como o pa­
vor que êle me provocou. ·Tomei conhecimento com o
monstro, nos mangues do Capibaribe, e nunca mais me
pude libertar de sua tr ágica fascinação. É esta fasci-
I

DE COMO O CORPO E A ALMA DE JOÃO ·

PAULO SE FORAlVI IMPREGNANDO DO


SUCO DOS CARANGUEJOS

O Recife, a cidade dos rios, das pontes e das an­


tigas residências palacianas é também a cidade dos
mocambos : das choças, dos casebres de barro batido
a sopapo, cobertas de capim, de palha de coqueiro e de
fôlha s de Flandres.
Na madrugada fria de junho, ainda com a côr da
noite, mas já soprando um arzinho da manhã, tôda a
zona dos mangues dorme quieta, atolada na placidez
da lama. Apenas se ouve, de vez em quando, um grilo
cantando dentro dos mocambos e os sapos respondendo
lá fora de dentro da noite escura. Pela estrada de
Motocolombó, que nesta hora incerta se perde quase
invisível no meio dos mangues, passam os primeiros
balaieiros carregados de frutas e verduras, puxando na
perna para que antes do dia amanhecer de todo, já es­
tej am êles abancados na feira de Afogados para ven­
der os seus produtos. A estrada, arrazada, pelas chuvas
de Maio, está lama só. Os pés chatos dos balaieiros
que avançavam curvados ao pêso dos seus balaios se
atolam fundo na terra mole, espirrando barro por en­
tre os dedos,
28 JOSU.l!: DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 29

Avança também a manhã, abrindo caminho por duos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo
entre as brumas do charco, quando bruscamente há vai ser. O caranguej o nasce nela, vive dela, cresce co­
uma espécie de precipitação na claridade leitosa do ar mendo lama, engordando com as porcarias dela, fabri­
e rufando no chão como num enorme tambor, desaba cando com a lama a carninha branca de suas patas e a
em pingos grossos uma chuva incômoda e fria. Um geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por ou­
relâmpago violento descobre tôda a planície encharca­ tro lado, o povo daí vive de pegar caranguej o, chupar­
da e faz brilhar as fôlhas gordas dos mangues que se -lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que
agitam sob o vento forte. O pip ocar dos trovões abafa fiquem limpos como um copo e com sua carne feita de
definitivamente o canto dos grilos e dos sapos. Os lama fazer a carne do seu corpo e a do corpo de seus
balaieiros assustados com a tempestade retiram depres­ filhos. São duzentos mil indivíduos, duzentos mil ci­
sa de dentro dos seus balaios, os sacos de estopa nos dadãos feitos de carne de caranguejos. O que o orga­
quais trazem embrulhados os .seus tamancos e impro­ nismo rejeita volta como detrito para a lama do man­
visam com êles estranhos -tipos de capuz que os pro­ gue para virar caranguej o outra vez.
tegem das chuvas. E, assim, com seus grotescos ca­ Nesta aparente placidez do charco desenrola-se,
puzes de estopa, parecendo fantasmas de monges da
trágico e silencioso o ciclo do caranguejo . O ciclo da
Idade Média, prosseguem o s balaieiros a sua marcha
fome devorando os homens e os caranguejos todos ato­
pela estrada incômoda, agora cruzada em todos os
lados na lama.
sentidos pelos caranguej os despertados do seu sono
pela tempestade, correndo apavorados com o barulho Por sôbre esta paisagem lamacenta que agora vi­
dos trovões e deixando-se esmagar de vez em quando, bra sob a luz violenta dos trópicos, refletida nos gran­
com um estalido sêco de galhos partidos, debaixo, dos des espelhos d ' água da maré, perpassam sons agudos
pés dos balaieiros. e insistentes. São os apitos das fábricas impacientes
chamando gente para o trabalho, acordando os seu�
Pára a chuva com a saída do sol e à luz do dia,
surge nítida esta estranha paisagem do charco, mis­ operários que vivem nos bairros pobres de AfogadoB,
tura incerta de terra e de água povoada de estranhos de Santo Amaro, da Ilha do Leite e os mocambos que
ainda. dormitavam, despertam com êstes apitos, uns·
sêres anfíbios - os homens e os caranguejos que ha­
mais agudos, mais violentos, outros mais graves, mais
bitam os mangues do rio Capibaribe.
ronceiros. Começa a fervilhar de vida 9 bairro dos
Os mangues do Recife .s ão o paraíso do caran­ mocambos, como se fôsse o próprio mangue fervilhando .
guej o . Se a terra foi feita para o homem com tudo p a­ de caranguejos. Pelas: frestas dos telh a d o s , pelas
ra bem servi-lo, o mangue foi feito essencialmente gretas- das portas escapa um cheiro forte de fumaça
para o caranguej o. Tudo aí é, ou está para ser caran­ e de café e um ruído insistente de tosse e de chôro de
guej o, inclusive a lamà e o homem que vive nela. A criança. É a população dos mocambos dando sinais de
lama misturada com urina, es c r emento e outros resí- vida, preparand o-se para viver um nôvo dia do ciclo
30 JO S UE: D E CASTRO H O M E N S E C AR A N G U E J O S 31

do caranguejo. Abrem-se as portas dos mocambos e sol borda as manchas barrentas do mangue com uma
começam a aparecer nas ruelas do mangue os seus mo­ franja prateada, tecida de pequenas placas luminosas.
radores com as suas caras cansadas e mal dormidas. João Paulo avança de água a dentro desmanchando
Os homens apressados levando o seu almôço numa lati­ com os seus passos a franja luminosa e ondulante. Pá­
nha debaixo do braço, as mulheres mais lentas arrega­ ra com a água à altura dos tornozelos e faz pipi dentro
çando suas saias, procurando lugares mais enxutos d'água. O jato da urina brilha ao sol como. se fôra
onde, pulando com cuidado a s poças de lama, com um um arco-iris e batendo n''água faz um barulho de cas­
certo horror da água fria. A meninada sôlta também cata que parece encher todo o silêncio do charco. Êste
vai caindo no mangue. Os menores nus, os maiorzinhos barulho forte da urina batendo n'água dá a João
com qualquer trapo cobrindo-lhes o sexo, mas todos Paulo uma satisfação enorme. Êle se sente como se
se atolando na lama com gôsto, sem nenhuma cerimô­ j á fôsse um homem porque consegue fazer o mesmo
nia para pegar caranguejo. Com o corpo a descoberto, barulho com o seu pipi que fazem os pescadores de ca­
indiferentes ao frio da água e às picadas dós mosquitos ranguejo quando mijam no mangue. Com uma expres­
que zumbem famintos por entre as fôlhas gordas dos são de contentamento, João Paulo avança mais para
mangues. a frente, abaixa-se, lava o rosto na água barrenta da
Com o apitos das fábricas João Paulo desperta. maré ; retira a ramela dos olhos .. Bochecha forte um
Ainda com os olhos fechados o menino se assenta sono­ pouco d'água para lavar a boca e depois lança a água
lento em seu leito de palha. Esfrega desajeitado o longe, fazendo pressão nas bochechas com as duas
rosto com as palmas das mãos, abre os olhos ainda meio mãos. A água salta da sua boca como uma bala caindo
adormecidos e se espreguiça num bocejo. Depois, a uma grande distância. Êle ri satisfeito da sua proeza,
olhando em tôrno, dá com os olhos nos dois irmãos da proeza de jogar a água a uma distância tão grande
menores- que dormem num outro canto do cubículo como fazem os jardineiros com as mangueiras nos j ar­
e com os pais sentados à mesa, tomando a refeição da
manhã. Com uma voz cansada, .êle estende a mão na t dins da cidade. João Paulo sonha como seria bom ser
um dia jardineiro de uma casa rica nesta cidade, cujo
direção do pai e diz : contôrno de seus edifícios mais altos êle divista ao
- '' Benção pai, benção mãe.'' longe, enquanto seca ao .sol o seu rosto lavado. Como
- "Deus lhe abençoe, meu filho!", é a resposta seria bom viver sentindo sempre o cheiro bom das
dos dois. plantas dos jardins e pisar de leve naqueles gramados
verdes e macios em lugar de sentir o tempo todo o
João Paulo salta do leito e abre a porta dos fundos
cheiro podre da maré e de andar sempre dentr() da la­
do mocambo. O sol bate em cheio no seu rosto magro,
ma como se fôsse caranguejo !
moreno, de maçãs salientes. Com seus olhos negros e
profundos êle contempla embevecido a maré que nesta A voz do pai chamando-o de dentro de casa, o des­
hOTa da enchente avança até a porta do mocambo. O perta do seu" sonho. João Paulo dando pontapés, espa-
33
32 J O S UJi: DE C AST R O H O M E NS E C A R ANG U E J O S

danando água por todos o.s lados, entra no mocambo a missa . Zé Luís preocupado com a hora apress a
para comer. Senta-se à mesa e, com seus pais, começa João Paul o:
a beber o caldo de caranguej o cosido com água e sal - ' 'Filho , um dêsses dias eu lhe conto porque
e a chupar os cascos e as patas dos caranguej os. Os foi que viemo s parar aqui. Hoj e não dá tempo. A
dois irmãos menores continuam dormindo encolhidos missa das seis horas j á vai começ ar e daqui a pouco o
e enrolados numa colcha de retalhos, enquanto seus vigario estará pronto para ir pegar caranguejos e fi­
pais comem em silêncio. Com a boca cheia da carne cará impaciente se tiver de lhe esperar. Acabe s� a
branca de caranguej o, João Paulo pergunta : comida depres sa e toque para a casa do padre Ans­
- " Pai, por que a gente veio morar aqui no · tides. Leve uma roda de caranguej os para agradar o
m�;tngue �" vigário . Não vá reman char pelo caminho para não
- "Porque quando viemos do interior foi aqui chegar atraza do. ' '
que encontramos a nossa terra da Promissão, o nosso
paraiso", responde Zé Luís com uma voz tranqüila.
- " Paraíso dos caranguej os", acrescenta em tom
de revolta a mãe de João Paulo.
Mas o menino volta à carga :
- ' ' Mas, por que aqui no mangue, por que não
fomos morar na cidade, do outro lado do mangue � Lá
é tão bonito, tão diferente, é como se fôsse um outro
mundo. ' '
- " Foi o destino, João Paulo, que nos trouxe
aqui, ' ' responde-lhe o pai.
. . .
- "L'a, do ou tro 1 a d o e' o parmso d os ncos, aqui
é o paraíso dos p obres," diz-lhe a mãe fitando bem
dentro do.s olhos do filho. Mas os olhos do menino
abrem-se apenas um pouco mais, e continuam com a
mesma expressão de interrogação, mostrando que êle
não entendera porque sua família havendo tantos lu­
gares bonito s no mundo, tinha escolhido para viver
aquêle lugar tão triste e tão feio. Porque tinha esco­
lhido para morar a lama negra do mangue.
Pela porta do mocambo entra o som das badaladas
do sino da igrej a de Afogados chamando os fiéis para
II

DE COMO APARECEM AOS OLHOS DE JOÃO


PAULO OS CAVALEIR O S DA MISÉRIA COM
SUAS ESTRANHAS ARMADURAS DE BARRO

Assoviando baixinho Jo ã o Paulo parte do seu mo­


cambo para a casa do vigário. Com uma mão no bôlso
êle leva pendurado na outra mão uma roda de caran­
guejos encangados com fibra de junco, com a qual de
vez em quando êle dá uma volta no ar. Ê a primeira
vez que João Paulo leva um presente para o padre
Aristides, e isto lhe faz ficar um tanto preocupado,
sem saber como o vigário receberá o seu presente. O
presente que o pai lhe aconselhou levar para agradar
ao padre. Caminhando pelo mangue, as imagens fami­
liares da vizinhança lhe fazem, contudo, esquecer de­
pressa tais preocupaç· õ es. A dois passos do seu mo­
cambo êle encontra, acocorada na porta de casa, es­
quentando-se ao sol, a negra Idalina. João Paulo per­
gunta-lhe pelo neto, o Oscarlindo, que fôra seu com­
panheiro constante .de pesca de caranguej os antes que
êle tivesse arranj ado emprêgo na casa do Seu Vigário.
A :q.egra sorri mostrando as gengivas desdentadas e
informa:
'

-- '' Carlinhos saiu cedinho pra buscar a comida


do Baé que a esta hora já está roncando de fome.
Escute os g�Jinchos dêle. ' '
36 J O S U J!: DE C AST R O HO M E N S E C A R A N G U EJ O S 37

De fato, do lado do fundo do mocambo vêm se­ fazendo uma barulheira dos diabos. Idalina pensou
g:uidos, imperiosos, os grunhidos de um porco que Ida­ logo que, desta vez, era ladrão mesmo. Levantou-se de
lma cna _ com a esperança de engordá-lo com os restos um pulo e saiu no quintal de cabo de vassoura na mão,
_
d? h:x;o das casas ricas, e vendê-lo no N atai por bom pra arrancar o seu porco das garras do bandido. Ficou
dmherro. Comprara-o pequenino e desde então o pren­ aliviada quando lá encontrou um cachorro magro que
dera numa pequena latada na beira do mangue onde logo fugiu com o rabo entre as pernas.
o p orco está sempre a reclamar alimentos . Hoje, Idalina convida João Paulo pra dar uma
- " Nunca vi apetite tão desadorado como o desta espiada na sua riqueza, no seu porco de estimação e,
c�iatura. � hora e esperneia na lama o dia inteiro pe­ enquanto os dois espiam dentro da latada aquela bola
dmdo mais comida _ . Ma.s tem-se desenvolvido
que dá gorda e imunda, sempre grunhindo e sempre a se re­
gôsto. Parece uma bola de carne." volver na lama fedorenta, ela conta com um tom de
O mêdo de Idalina é que agora que o Baé tomou ternura na voz que tôda aquela banha, todo aquêle
tanto corpo e vale um dinheirão, não venha algum la­ toucinho que formam pregas profundas na pele do
drão furtá-lo na calada da noite. E roubar tôdas as porco, são produto exclusivo do trabalho diário do ­
esperança.s que lhe restam de poder, pelas "Festas' ', Carlindo. É que o seu neto sai tôdas as manhãs com
....
vende-lo . uma lata de querozene pra recolher restos de comida
na feira de Afogados, e dispor de recursos
para comprar uma �oupa e um par de sapatos pro nos depósitos de lixo das casas ricas, e com ê s ses restos
.
Carlmhos fazer a Pnmeira Comunhão . 'Tôda noite, a alimentar seu porco. 'Tem que sair bem cedinho, bem
negra tem vontade de trazer o porco pra dentro de antes do sol nascer pra chegar antes do caminhão do
casa pra evitar o roubo possível, mas se contém por­ lixo. E tem que perder muito tempo esvaziando os
que sabe que ninguém poderia dormir com o re b oliço depósitos e retirando de cada um dêles tudo aquilo
que êle faria dentro de casa roncando e fuçando o mo­ que possa alimentar o porco: restos de arroz, ossos de
cambo inteiro. Conforma-se em deixá-lo mesmo do lado galinha, pedaços de pão duro, frutas podres, legumes
de fora, ma� dorme de ouvido em pé, atenta ao menor e verduras passados. Tarefa ingrata e sempre reali­
, suspeito. D orme, como se costuma
rmdo zada sob a ameaça constante que o vigia ou o jardi­
dizer com um
olho só ! O outro ôlho, sempre aberto, fixo no s � u porco. neiro� das casas ricas o pegue-m em flagrante e come­
�endo-lhe a gorda imagem: seu corpo roliço, seu fo­ cem a persegui-lo aos berros de " menino safado ! La­
drão de lixo emporcalhando a calçada ! ' '
cmho esfolado, seus pequeno s olhos maliciosos, encas­
toados numa espessa bainha de banha. O sono ele Icla­ Já por várias vêzes Oscarlind o teve que abandonar
lina � um e � erno sonhar de namorada com o seu porco. tôda sua colheita com lata e tudo, disparando às car ­
As vezes, vua pesadelo . Uma noite dessas um cachor- reiras de rua abaixo, com mêdo de apanhar dêsses
. '
ro fammto, atraído pelo cheiro de lixo, veio disputar guardas, com mêdo de ir parar na polícia. Nesses dias
com o porco os restos de comida, e o porco se arreliou de má sorte em que o menino voltava para casa de
JOSUÉ DE C A S TR O H O ME N S E C A R A N G UEJ O S 39

mãos abanando, o mocambo virava um inferno. Ida­ Cosme, João Paulo avista ao longe, por cima da borda
lina caia na choradeira com piedade de seu porquinho da janela baixa, um pedaço de espêlho que faisca ao
que não tinha o que com_er, e ê.ste, por sua vez, levan­ sol. .É só o que êle vê, mas êle sabe que sustentando
tava a boca no mundo mvando como um javali selva­ aquêle espêlho está a mão experimentada de Cosme,
gem assustando com seus guinchos e roncos o bairro o paralítico, e que o espêlho recolhe neste m omento
inteiro. com a sua imagem o seu bom dia, a .s ua saudação fra­
ternal. Tirando depressa a mão do bolso, ,João Paulo
Em compensação, no.s grandes dias ' como naquele
faz um . gesto largo cumprimentado o amigo que esti­
memorave ' l em que Oscarlindo descobriu só numa casa
três enormes latas de lixo abarrotadas de comida res­ rado como sempre no seu girau, acompanha através do
tos de um banquete de casamento realizado na vés era p seu espelhinho de mão o espetáculo da vida. João
Paulo tem vontade de mudar de caminho , de fazer uma
e que teve que fazer três viagens correndo para carre �
gar tôda esta riqueza em alimentos ' a alegria era ge­ volta até a casa do Cosme para dar uma pro sa com
ral. � �
o dia do ba:r: quete o porco comeu t nto que
.
êle. Ma s se lembra da pressa que tem de chegar na
casa do vigário. Lembra � se da recomendação do pai
do ::mi?- a ta� de mteira sem dar um só grunhido. E a
propna Idalma aproveitou . de chegar na hora e tem mêdo também de levar um
muitas coisas : frutas ainda

bem comíveis p �ra e a próp ria e seu neto. Pena que
_
carão do vigário. Repete, então, com a mão, o gesto
largo der simpatia e prossegue o .seu caminho com a
os casam �ntos nao seJ am mms freqüentes ! Freqüentes
mesmo sao os banquetes nas casas dos políticos im­ imagem de Cosme no seu pensamento . De noite, antes
p ortantes . Oscarlindo sabe disto mas também sabe que de ir para a cama, êle visitará o amigo. Irá ouvir as
ne � tas casas há sempre um policial na porta que não histórias bonitas que êle conta, do largo mundo que
dmxa tocar em nada, nem mesmo no lixo . êle percorreu em suas aventuras extraordinárias, quan­
do as suas pernas lhe obedeciam. Hoje, só os braços
Depois de elogiar a beleza e a gordura do Baé,
lhe obedecem, as pernas se acabaram. S ão uns cam­
_

J � ao Paulo .segue seu caminho meio desconsolado por


bitos finos, sêcos, só pele e osso, sem nenhuma carne
nao ter podido ver o seu amigo Oscarlindo.
e que ·êle não consegue nem ao menos mexer - são
Ao chegar na extremidade da ruela que termina pernas mortas, mortas na Amazônia.
bem _n a beira . .
do no, um foco de luz cai em cheio
em Cima dos seus olhos e o rosto de João Paulo se Há dezoito anos, bem antes que João Paulo ti­
abre todo num sorriso como se fôsse uma flor abrindo­ vesse nascido, Cosme ficou paralítico das pernas : caiu
s � .s ob a carícia do sol. Aquêle foco de luz que brinca na cama para nunca mais se levantar. Isolado do
sobre o seu : osto e, a mensagem de saudação matinal mundo, jogado como um trapo no fundo do seu mo­
que lhe envia o seu grande amigo C o sme , do fundo cambo, sua única diversão é aquêle pequen<;> espêlho
do seu mocambo, plantado lá longe no meio do mata­ de mão com o qual êle se comunica com o mundo. Dei­
gal. Voltando-s e depressa para o lado do mocambo de tado com a cabea junto à janela baixa do seu mocambo,
-,
40 J O SU É DE CAST R O H O M E NS E C: A R A N GU E J O S 41

Cosme orienta a luz do seu espelh o na d ireção da es­ recomen dações de seu pai de chegar na hora na casa
trada que cruza lá longe na beira do rio, por onde do vigário e, porisso, resolve continuar o seu caminho.
está passando agora João Paulo, e naquele pedaço de No momento exato de partir, a bola por acaso vem ;n a
vidro êle capta sempre um reflexo da vida que passa. direção dos seus pés e êle, bruscamente, sem que nin­
E com êstes reflexos de vida, êle vai alimentando a sua guém espere por isto, dá um chute violento na bola;
vida de trapo . Aquêle espelhinho de mão constitui to­ tão violento que ela cruza no ar o pequeno campo e va1
do o seu mundo, o mundo limitado de suas sensações. cair longe ' dentro da maré, perdendo -se debaixo das
A fita escura da estrada lamacenta s e vai desen­ fôlhas dos mangues . A meninada indignada o insulta
rolando na beira do rio, com as margens descobertas e avança agressiva para lhe pedir satisfação . J� ão
de mangues garranchosos e as imagens de vida vão se Paulo dispara na carreira com a roda de carangue J OS
sucedendo, maravilhando o s olhos de João Paulo sem­ balançando no ar e com um sorriso de mofa no ros o, �
pre embevecidos diante do espetáculo do mundo. A fila feliz da desforra tirada daqueles desocupados, qu e nao
dos mocambos se estende ininterrupta à beira d'água. têm' como êle ' a obrigaçã o de trabalhar num dia tão
Na porta de um dêles, estão dois garotos sambudos, in­ bonito, com a luz do sol brilhando como se f"'osse uma
teiramente nus, com as barrigas estufadas pra frente, pintura.
como se fôssem dois tambores espetados em pernas de
gravetos, finas, tortas, cinzentas de lama sêca. João Cansado da carreira, João Paulo pára mais adi­
Paulo dá dois piparotes com os dedos nos buxos tensos ante para respirar e da beira do charco contempla a
paisagem tranqüila . Acocora- se à beira d ' água e olha
dos garotos, repetindo em tom j ocoso : " B arriga de
bem de perto os carangue jos imóveis espumando ao
tin-tin ! ", e arranca com o seu gesto um som ôco, sêco
sol como se fôssem um bando de bois ruminando no
como se estivesse percutindo mesmo um bombo :
tin-tin . . .

ca p o . São imagens dos seus primeiro s anos e vida
.

que agora lhe vêm à lembrança . Imagens do patw da
Os dois · molequinho s sorriem felizes da brinca­
fazenda onde nascera. Do pátio descampa do, com o
deira e ficam imitando o gesto, batendo um na barriga
sol quente do sertão tinindo nas pedras cintilante s e
do outro - tin-tin, tin-tin . . .
os bois parados, ruminando em silêncio, deixando es- .
Já nas proximidades da cidade onde começam as
correr lentamente de suas bôcas, uma baba esbranqui­
casas de telha e de tij olos, João Paulo encontra um
çada e pegaj osa parecida com a espuma dos caran­
bando de meninos j ogando futebol com uma bola feita
gueJ O S.
de meia de mulher, recheada de molambos. Jogam
com um entusiasmo enorme, fazendo piruetas incríveis As lembranças se atropelam e se confundem na sua
com a b ola. João Paulo pára um momento com uma memória. Há coisas de que João Paulo se lembra bem,
vontade doida de participar do jôgo, de ficar ali o dia como se tivessem acontecido naquele mesmo instante
todo eom aquêles meninos, brineando na rua, batendo em que .êle contempla embevecido os caranguejos es­

bola. Mas pensa nas suas obrigações de trabalho e nas pumando à b eira d 'água, mas há outras que sao um
42 J O S U ll: DE
43
CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS

tanto vagas, confusas mesmo, coisas que parecem ter leite matinal. Abrira a janela de madeira. O dia ainda
acontecido não com êle mas com outra pessoa. Ê que não tinha clareado e não havia ninguém no curral,
João Paulo se vê, às vêzes, como se fôsse outro menino. afora as vacas ruminan do à espera da chegada dos
O menino cujas aventuras infantis êle conhecera por vaqueiros e dos bezerros. De repente, João Paulo sen­
intermédio das histórias que lhe contava sua mãe. As tiu uma vontade imperiosa de mamar numa das vacas
aventuras do João Paulo do sertão distante, um tanto como se fôsse um bezerro. De chupar-lhe os peitos, de
diferente do João Paulo da cidade. se esfregar no seu úbere. Pulou a j anela às pressas e
O menino sente penetrar pelos buracos de . seu na­ dirigiu-se para a vaca " Malhada " que, mais impa­
riz a lembrança forte,do cheiro quase real do curral ciente que as outras ou talvez mais amorosa de seu
que ficava pegado à sua casa no sertão. O cheiro filho, mugia, de pé, junto à porteira do curral. Aga­
acre das vacas ruminando, o cheiro azêdo do leite der­ chou-se debaixo da barriga da vaca e, com o gosto de
ramado, o cheiro picante da bosta de gado. E todos quem quem comete um grande pecado, começou a
aquêles cheiros misturados lhe trazem à lembrança chupar as suas têtas. Não havia leite nelas. Estavam
uma cena nítida de sua primeira infância. Ouve niti­ moles murchas e não turgidas como ficam quando o
damente os ruidos do curral subindo a seu quarto - leite b aixa. Então, João Paulo imitando a manobra
seu pai e os vaqueiros levantando o gado para ordenhar dos bezerros, começou a dar cabeçadas impetuosa s no
as vacas leiteiras. Os bezerros berrando como uns de­ úbere da vaca. A Malha da não gostou da manobra e
sesperados , reclamando impaciente s as têtas maternas. com uma boa patada j ogou-o no chão, com a cara ato­
Eram os ruídos que o despertavam tôda s as manhãs. lada na bosta amontoada no curral. Neste momento
Êle ficava de pé na cama e debruçava-s e na janela que exato chegou Zé Luís que, compreendendo tudo o que
dava para o curral. Seu pai lhe trazia, então, uma ca­ se passava, ajudou o filho a levantar-se do chão e,
neca de leite quente coberta de um largo colar de es­ olhando sua cara tôda melada de leite e de bosta e a
puma branca que êle bebia com gôsto. Lembra-s e bem sua camisa coberta de poeira, disse-lhe sorrindo :
que ficava sempre em seu lábio superior um bigode de -' ' agora sim, estás um bezerro �agado e .cuspido,. e
espuma e que seu pai limpando-lhe a boca com seu bezerro ladrão,, ,dêsses que mamam as escondidas o leite
dedo áspero lhe repetia sempre : ' ' Já estás um homem, todo da mãe ! . e deu-lhe de leve uma palmada na
até bigodes tu tens. " João Paulo sorria feliz e ficava bunda com o mesmo carinho com que batia no trazeiro
contemplando os bezerros novos dando cabeçadas nos magro dos bezerros desobedientes.
úberes das vacas para que o leite descesse depressa
às suas têtas. Um ruido forte de avião que voa baixo dispersa os
pensamentos de João Paulo, as suas le�branças do
Um dia, João Paulo acordou bem mais ce d o. Ti­ sertão distante. O barulho dos motores vm aumentando
nha dormido sem cear e acordara com o estômago ar­ numa trepidação tremenda, o avião passa como um bó­
dendo, reclamando impaciente o calorzinho gostoso do lido por cim:;t; de sua cabeça e o som se vai decrescendo
44 JOSUÉ DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 45

até se extinguir completamente. João Paulo acompa­ fumo por suas longa s e grossas chamin é s que . aos olhos
nha com o rosto voltado para o céu o vôo do avião até de João Paulo pareciam ser a marca inconfundível
que êle desaparece no horizonte. Volta a contemplar os do sexo dêsses navios : navios machos, de coragem in­
caranguejos, agora de olhos em pé, mexendo-se inquie­ di;,.cutível.
tos, assustados certamente com o barulho infernal do Para o menino precoce na qual a puberdade come­
avião. �cwa a entumescer a carne e as idéias, um homem de
Ê como se o trepidar dos motores tivesse estraça­ verdade devia ser sempre assim, como um navio de
lhado de repente todo o cristal de sua abstração, em alto-mar. Não se colar a nenhum porto. Apenas sen­
cuja superfície o menino via se refletir com uma niti­ tir o contato gostoso com a terra e partir de novo
dez impressionante as imagens de seu próprio ser to­ pelo mundo afora, em busca de novos cheiros, de no­
mando consciência do mundo. João Paulo, desencan­ vos contatos com outras terras.
tado como se uma onde de tristeza s úbita lhe afogasse A proporção que a maré crescia, que a franj a de
a alma, suspira forte. E o ar que lhe entra agora pelas espumas prateadas ia subindo de lama a cima, tam­
narinas, j á não é aquêle ar impregnado dos cheiros bém ia subindo o desespero de João Paulo de eseapar _

cálidos e excitantes do sertão - cheiro da transpira­ ao cêrco do mangue.


ção do gado, cheiro da bosta ainda quente, cheiro de 'Êle sentia os seus músculos se retesarem para se
terra viva em gestação. O que êle agora sente é um libertar desta coerção que lhe asfixiava o corpo e a al­
cheiro frio de lama podre, de terra morta em decom­ ma. Sentia que os mangues o tinham pegado despreve­
posião. Cheiro de carniça da terra que deve excitar o nido naquela posição - acocorado à beira d ' água -
olfato e o apetite dos urubus e dos cachorros famint � s, ap roveitando para envolvê-lo numa rêde tecida com
mas que deixa João Paulo entorpecido, quase nau­ suas raízes mais finas e os seUs galhos mais retorcidos.
seado. Para se libertar das malhas desta rêde invisível,
Reagindo à depressão, se acende na alma infantil João Paulo dá um salto imprevisto das margens do
de João Paulo um grande desej o de libertação. De mangue e de pé divisa à certa distância um grupo de
evasão daquela paisagem humana parada e monótona. pescadores de caranguejos que avançam, atolados até
Desej o imperioso de sair de tudo. De sair de dentro de as coxas, na lama do mangue. São três homens jovens e
si mesmo. De sair do círculo fechado da família. Do morenos com o corpo todo coberto duma carapaça es­
ciclo do caranguej o. Da cidade do Recife. Um desejo pêssa de lama como se fôsse uma verdadeira armadura.
desesperado de arrebentar com tôdas . as amarras que Aos olhos de João Paulo, estas figuras humanas apa·· ·
ligam à lama pegajosa do vale do Capibaribe e às recem como se fôssem figuras de heróis das antigas
fôlhas viscosas do mangue, e sair vagando pelo mundo histórias de cavaleiros armados que lhe contou Cosme.
afora como se os navios que passam ao largo da c o sta Como se fôssem gigantes com o c orp o fabricado com
soltando com indiferença um arrogante penacho de grandes blocos de barro, retirados do próprio mangue .

i:
·�·
46 J O S U :f: DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 47

Formados ali mesmo na lama como se :formam e se dispara quase às carreiras pra casa do vigário, que
criam os caranguejos na :fermentação do charco. Para fica numa pracinha bem ao lado da Igreja.
João Paulo, êstes homens, cavaleiros da miséria, com
suas armaduras de barro, e os caranguej os, com suas Termina a missa quando êle chega na praça. Mu­
duras carapaças, são os heróis de um mundo à parte, lheres pobres, com o fichus pretos cobrindo as cabeças,
são membrüs de uma mesma :família, de uma mesma descem pelas escadarias da Igrej a e se dispersam pe­
nação, de uma mesma classe : a dos heróis do mangue. los dois lados da praça. O vigário gordo, pesado, de
E João Paulo se sente como se fôsse um filho dessa fa� braçüs curtos e a cara redonda com grandes bochechas
mília. Sente-se inconscientemente identificado com ês­ rosadas, aparece na porta do meio da Igreja. João
tes sêres, fraternalmente ligado aos homens e aos ca­ Paulo se aproxima dêle, beija-lhe respeitosamente a
ranguej os, conquistadores do mangue. mão e, com certa timidez, mostra-lhe os caranguej os
Aproximando-se cada vez mais da beira do charco, que lhe trouxe como lembrança. O padre sorri, agra­
onde o solo fervilha de caranguejos, os pescadores dei� dece o presente e dá ordem a João Paulo para entre­
tam-se no chão e, enterrando os braços de lama a den­ gar os caranguejos à velha .Ana, sua cozinheira. De­
tro, começam a pegar caranguej os. João Paulo, diante pois, pondo a mão na cabeça do menino, se encaminha
dêste espetáculo que lhe entusiasma, esquece por um com êle para sua casa.
momento as suas obrigações e fica acompanhando aten­ Já o sacristão tinha fechado as portas da Igrej a,
to os movimentos precisos e o diálogo incisivo dos peE­ quando aparece na praça, avançando em passos apres­
cadores. Arrastando�s e no chão com a barriga e as sados, um homenzinho magro, enfezado, com o ar assus­
coxas coladas na lama, o mais velho dos pescadores, di­ tado da gente do interior. O homem tem um grande
rigindo-se ao mais jovem, ainda um tanto inexperiente, chapéu de couro na cabepa e um peru vivo debaixo
lhe diz : do braço. Vendo as portas de frente da Igrej a fecha­
- ' ' Esfrega mais lama no corpo, José, se não os das, êle procura, sôfrego, uma entrada qualquer para
mosquitos te comem vivo. " José lhe responde : penetrar no templo e falar com o vigário. Neste mo­
- " Já esfreguei bastante, mas os mosquitos hoje mento exato, o vigário reaparece na porta de sua casa
estão danados de fome, estão mordendo, picando a ao lado, acompanhado de João Paulo. O homem cria
gente mesmo por cima da lama. Mas eu não estou li­ uma nova esperança, estaca indeciso. É que p, figura
gando pra mosquito. Êle pode morder à vontade. Já do vigário intriga o homem. O padre Aristides apa­
estou habituado. E mosquito não tira pedaço, .s ó faz rece carregando um enorme bombo de um lado e, de
coçar. E coçar é até gostoso. " E, dizendo isto, José se outro lado, um grande cesto de palha. O homem nunca
torce de gôzo, coçando a bunda e as costas com as mãos viu um padre com um bombo. Quem anda com um
enlameadas. João Paulo ri destas conversas dos pesca­ bambo é soldado, não padre. Mas o padre sorri olhan­
dores e , lembrando-se de repente de suas obrigações, do o homem e o seu sorriso acolhedor dissipa as dú-
,.,
48 J O S U :E: DE CASTRO

vidas do homem. É mesmo um padre. O homem se


aproxima do vigário e lhe diz num tom humild e :
- " Padre, eu estou aqui para pagar uma pro­
messa. Eu trouxe .ê ste peru para o Mártir São Sebas­
tião. ' ' E o vigári o lhe responde rápido : III
- ' ' Está faland o com êle, irmão. ' '
O homem novamente se surpreen de e fica imóvel, DA ES'T'RANHA MANEIRA DO PADRE ARIS­
sem fazer um gesto. Então, o vigário avança um pas­ TIDES FABRICAR T'EMPESTADES PARA PE­
so adiante e toma-lhe das mãos o peru da promes sa'
repetindo a frase intrigante : GAR GUAIAMU. DOS INGREDIENTES UTILI­
- ' ' Está falando com êle, irmão. ' ' ZADOS E DAS CONSEQÜÊNCIAS OCORRIDAS
. I

Os moradores de Afogados já se acostumaram


com a maneira extravagante do padre Aristides pegar ­
guaiamu e não se assustam mais quando, ao passarem
pelas terras mais altas das margens do rio, topam com
o padre batendo impetuosamente um grande t amb or
e uivando com furor como se fôsse uma fera.
Faz muitos meses, quando o padre, acompanhado r
de João Paulo iniciou essas . ruidosas excursões pelo
campo, todo o mundo se assustou. Parecia que o padre
tinha perdido o juízo. Ficaram todos . com pena dêle.
Um padre tão bom, tão cumpridor dos seus deveres
de sacerdote ficar de repente assim, com a cabeça fm •,
do lugar, largando pelo campo afora, batendo furio­
samente num bombo como se estivesse convocando para
a guerra um exército inteiro de soldados invisíveis,
era mesmo de cortar o coração. E, por todo o bairro,
se espalhou a triste notícia de que algum espírito mau
se havia apoderado da santa alma do vigário. Que
êle devia estar possuído do demônio. Nesta ocasião,
as tentações de Santo Antônio passaram a constituir
o principal assunto de conversa entre as beatas da pa-
50 J O S U :É DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 51

róquia do padre Aristides. Alguns fiéis, mais preo­ destas supostas cerimônias satâni cas realiz adas em
cu :p ados ou mais curiosos, vinham ver com seus pró­ pleno dia nas margens do rio e a história do seu pacto
pnos olhos o que estava acontecendo . Subiam caute­ com o diabo p ara alcançar não se sabia bem que obj e­
losos pelas margens do rio e, ao divisarem à distância tivos, desde que o padre pareci a um homem sem
o vulto maciç·o do vigário com o seu acólito João Paulo ambiçõ es, só mesmo interes sado em pastor ear tran­
ajudando-o nesta estranha cerimônia que parecia al­ qüilamente o seu escasso rebanho de fiéis. E que tôdas
gl�m� forma desconhecida de magia negra, estacavam estas suspeitas de loucura ou de perver sidade diabó­
atomtos para observar, sem serem vistos pelo ·,vigário. lica estavam a compr ome te r a venera ção e o respeito
E o espetáculo que assistiam era mesmo estranho im­ que o povo do lugar sempre votara ao seu padrinh o e
possível de se compreender. a sua vida exemplar. O padre Aristid es quase morreu
Parando em certos pontos misteriosos, segura­ de rir. Acabou se engasgando de tanto rir diante de
n:-ente marc � d_o � por algum signo oculto, o padre Aris­ tamanh os disparates, mas para evitar que a lenda se
tides dava 1mcw a sua macabra batucada e, quando avolumasse e viesse a comprometer deveras a sua ·
os sons arrancados do bombo alcançavam o auge, re­ reputaç ão, resolveu explicar todo aquêle mistério e
boando assustadores pelos espa<;os afora, êle parecia começou por explicar logo uma parte ao sacristã o :
crescer, levantando-se nas pontas dos pés e emitindo
longos $ibilos que lembravam um temporal de vento - ' ' O objetivo do meu pacto, Veremun do, é claro
soprando furiosamente pela planície descampada. e preciso , e eu vou lhe revelar qual é. É o de dar satis­
Quando o padre terminava sua ruidosa cerimônia fação ao meu grande pecado a gula. Você sabe como
-

� oão � �ulo derramava em tôrno dêle um prolongad� sou comilão, como gosto de comer certas coisas e, de
Jato d agua com o seu regador de mão. A coisa era tudo o que eu gosto, a minha maior tentaçã o sempre
mesmo insólita. Os espectadores dessas cenas funam­ foi um bom guaiamu rechead o com farofa, como pre­
bulescas fugiam apressados, evitando serem vistos para a velha Ana ! O guaiamu, Veremun d<i, aí está a
P.elo vigári� , e vo�t�vam para casa com a alma angus­ tentação do meu pecado da gula. Pegar guaiamu em
tiada pela mexphcavel desgraça do padre Aristid es . quantida de para aplacar esta gula é o objetivo do meu
A lenda desta esquisita forma de loucura começou pacto secreto. Mas não é um pacto feito com o diabo,
a se espalhar e j á chegara mesmo aos ouvidos do Ar� como andam dizendo. O diabo nada tem a ver com
cebispo do Recife, quando o equívoco se desfez. O isso, Veremund o. Ê un1 acto feito com êste diabinho ,
o João Paulo, que é o melhor pegador de guaiamu que
� acristão Veremundo, que há anos toma conta da Igre­
Ja de Afogados vendo crescer a onda de boatos insen­ encontre i, na minha vida inteira. Pacto só entre nós
satos, resolveu tocar no assunto ao seu padrinho. dois que se mantinha até hoje secreto, mais diante do
Contou-lhe Veremundo tôda a história que corria a seu que você me diz, Veremun do, chame hoje mesmo, à
respeito pela freguesia inteira. Contou-lhe a história tardinha, alguns dos amigos mais chegados à Igreja
-
i

52 J O S U :l!: DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 53


'··

que eu lhes vou explicar tudo para acabar com estas guaiamu a todo mundo, mas às vêzes passava dias
histórias. ' ' sem aparecer guaiamu e sem que êle pudesse saborear
No fim da tarde, sentado na sua cadeira de ba­ o seu petisco favorito. E, então, o seu prazer de comer
lanço na salinha de visitas, contemplando o quadro diminuía sensivelmente. Foi um feliz acaso que lhe
do coração de Jesus e diante de uma dúzia de beatos e trouxe a solução a êste seu angustiante problema - o
beatas, seus prediletos, o padre Aristides desvendou de dispor de guaiamu em abundância. Feliz acaso que
o mistério todo de suas incompreensíveis excursões lhe fêz descobrir um nôvo e infalível método de pegar
pelas margens do rio, motivo de tanta inquietação. guaiamu. Feliz, também, o de ter encontrado um aju­
dante ideal para a aplicação dêste nôvo método -- o
. �ncamin
Aristides
�ando a seu gôsto a conversa, o padre
exphcou que sempre gostara muito de comer João Paulo.
caranguej o. Que quando andou estudando nos semi­ Conta o padre Aristides que estava êle passeando
nários por outras terras, comeu várias espécies de ca­ num dia de calor nas margens do rio, quando de re­
rangu�j o e gostou de tôdas, mas que quando veio para pente estourou um grande temporal. Dêstes tempo­
o . Recife e comeu pela primeira vez o guaiamu, se deu rais de verão em que bruscamente, quase sem prepa- _

conta que esta era a variedade de caranguej o mais gos­ ração possível, a chuva desaba violenta acompanhada
tosa do mundo. Com a carne das patas mais tenra e : ; de um vento forte e do estrondo tremendo dos trovões.
com o sabor mais vivo de suas vísceras gordas. E o O padre, procurando escapar ao temporal, ao atra­
padre atribuía esta superiori dade à raça do guaiamu vessar correndo o campo debaixo da chuva, viu como
e a sua alimentaç ão especial. cruzava o chão em várias direções, uma verdadeira
O guaiamu é uma variedad e de caranguejo que chusma de guaiamus. Os guaiamus corriam em zigue­
não gosta de lama, que não vive dentro da lama como zague, como se estivessem completamente desorienta­
os . outros caranguejos. Vive no sêco, nas terras en� dos. Desde que o temporal explodira, os guaiamus
xutas das margens dos rios. Não se lambuza de lama enlouquecid os abandonavam os seus buracos e corriam
como os outr os caranguejos. Não é côr de lama. O sem rumo, adoidados pelo campo afora. Foi neste mo­
guaiamu tem o casco e os olhos azuis como se fôsse mentQ que o padre imaginou que a maneira mais prá- ·

mesmo, o representante de uma raça superior, uma' tica de pegar guaiamus seria fabricar tempestades. Fa­
raça de caranguejo s bem nascidos, bem criados, bem bricar pequenas tempestades particulares para os as­
nutridos. Guaiamu é um caranguej o de raça aria:riã "' sustar. Para êste serviço, o padre contratou João
diz o padre sorrindo, e confessa aos seus amigos mai � Paulo, que êle encontrara um dia no campo pegando ·
íntimos que se acostumou de tal forma a gostar do guaia:í:nu com um talo de capim que o menino enfiava
guaiamu que já não podia passar sem êle muitos dias. no buraco do bicho para o atrair. Talo· de capim que
E como o guaiamu é bem mais raro e bem mais difícil o menino ia puxando devagarinho, pouco a pouco, até
de 3e pegar do que o caranguejo, ' o padre encomendava desalojar inteiramente o guaiamu da sua toca.
HOMENS E CARANGUEJOS 55
54 J O S U :f; DE CAS TRO

S au dava a to dos que en contr av a , c o m largos sorr i sos


. 'T ôda aquela encenação, o rimbordar do bombo o acompanha dos de gestos efusivos e, ao chegar a zona
Jato d 'á? ua, os ruídos insólitos que êle emitia no ca�­
po, era mgre di ent e in dis pen s ável à fabri c ação dest as de s abita d a começou o p a dre a cantar em surdina, uma
,

tempestades artificiais para pegar caranguejo. mú si ca sacra com um ritmo um tanto m ar cial .
. � padre ac �bou por convi dar os seus amigo s para - " Você tem ido às liçõe.s de catecismo, João
assistirem, no dia seguinte, a uma destas caçadas. Al­ Paul o � ' ' pergunt a o padre Aristides paran do de re­
guns foram e ficaram entusiasmados. Ràpidamente se pente de cantar e pondo a mão gorda no pescoço do
espa_lhou a verdadeira notícia, e a serenidade . voltou menino.
a re mar entre os fiéis da Igreja de Afogados. - ' ' T·enho, sim Senhor, p a dr e Aristides ' ', re s p o ­
Agora, quando o padre Aristides passa com o seu de-lhe João Paulo sem titubear.
bombo e o seu cêsto de palha, acompanhado de João - Você já sabe todos os mandament os de cor,
�au�o com o seu regador d 'água na cabeça, as pessoas João Paulo � "
J a nao se assustam mais. C umprimentam sorridentes - " Sei, sim Senhor, padre Aristides. "
e respeitosas, o vi � �rio, as mulheres e os � eninos, pa­ - ' ' E você tem .s eguido à risca todos ê ste manda -

rando �ara lhe beiJar a mao _ e, depois, ficam na beira mentos, João Paulo � ' '
do cammho a olhar aquelas duas figuras singulares - ' ' Tenho, sim Senhor, padre Aristides. ' '
com seus estranhos apetrechos avançando solenes para - Você tem feito tôdas as noites .suas orações
o campo de batalha. antes de dormir, João Paulo � "
Hoje, que o sol está muito quente e o céu sem ne­ -- ' ' Quase tôda s ' ', responde o menino mudando
nhuma nuvem, marcham os dois lado a lado com os o tom de voz, já sem muita convicção, com mêdo que
olho s � e!l1i-cerrados, encadeados ' pelo excess � de luz. o padre adivinhe que em regra, quando êle vai para a
_
O vigarw avança com os seus passos pesados, amea­
çando atolar-se naquele solo de areias frouxas, e João cama, o cansaço é tanto que só há tempo e coragem
Paulo o segue, passando de vez em quando dum lado para fazer o sinal da cruz e mergulhar no sono.
para o/ outr_o , / s�mpre inquieto, sem saber que direç·ã o - ' ' E . por que não tôdas as noites, João � ' ', in­
tomara o VIgano na sua estragédia do dia.
daga o padre com voz de censura .
A bel eza do dia, a notícia que recebera na véspera E João Paulo explica, titubeante, que às vêzes sua
_
do fornecimento em breve, por parte da C úria de uma fadiga é tanta, que êle adormece sem cumprir o dever
cert� verba para fazer uma limpeza em regr� na sua sagrado de agradecer a Deus o pão de cada dia e de
Igre� a - para dar uma mão de pintura, d esalo j ar as encomendar o corpo e a alma ao Senhor em . caso de
coruJas e os morcegos do telhado e o peru que lhe fôra ser chamado de imprevisto pelo Salvador.
ofertado a pouco, tudo isto enchia a alma do vigário A verdade é que João Paulo tenta sempre con­
nesta manhã de um contentamento transbordante. ciliar o sono �nt e s que seus p ai s se deitem porque de-
-
56 JOSUÉ DE CA S T R O

pois que êstes adormecem o sono do menino é sempre dado pra r nã0 rdeixarr íeS Ca(]laiF: lp:eido ma hfrenÜ�i r(Le seu
sobressaltado, interrompido pelos sons mais estriden­ vi g ário. É · �por ristO ! i qUe) í 't]_lmndO! íêle ;c,ahda i "cóm·. : se�lll
te s daquela sinfonia macabra que enche com seus ruí­ patrão, pisa nó cliã:o aórnh kúicil�do\· r cO;ml iumi ;�nêLar l �;1 �
dos confusos tôda a atmosfera do mocambo. A.lta noite, os . �
outros moleque s Hdo bmahglie . :ch:aJl!IHlm i r me.s'n�o.' , d�
o menino acorda de vez em quando em sobressalto, andar-de -segurar -peido., r J00piO imiar> Ê�e·J�go'll àl :
��e�2I3�
despertado dos seus pesadelos pelos ruídos descon­ que esta coisa feia lh!:n- sljl.íss;e l}_o.ela () poc�,Jd ia1amdo dJe>
certantes que estraçalham o silêncio da noite. Lá peido a seu vigário e·"1p:o;r; \iss0 � ' rupenn.hs: r ex:pliua> q:tlel,�
fora, o vento uivando e entrando pelas frestas do quando não dorme bem nítlun;:nrioiibe,, pa ! n()):itre< �seguinte•
mocambo, como se estivessem tocando um milhão de às vêzes lhe acontece cair no sono sem sentir, sem ter
flautas, a chuva tamborilando na cobertura de palha tempo de fazer suas orações.
e os pingos das goteiras ciscando na lama. Por tôda Neste momento, caminham numa área onde o chão
a parte, o diálogo maluco dos sapos, dos grilos, dos parece um paliteiro de barro, com o solo todo furado
cachorros famintos e dos porcos que roncam sonhando dos buracos dos caranguejos. O vigário crava os olhos
com comer. Mas, os ruídos mais terríveis, que mais
perturbam o sono de João Paulo, são exatamente os no chão, pára de marchar e dá início à caçada.
ruídos fabricados pela noite dentro do próprio mo­ - " Vamos começar aqui, João Paulo ", di z o vi­
cambo : o ronco áspero e desigual de Zé Luiz, o sibilar gário arregaçando as mangas da batina e de.sembar �­
cansado de sua mãe e o pipoco intermitente dos peidos. çando-se do cesto de palha. Começa logo a pancadana
Dos peidos de tôdas aquelas barrigas inchadas, dis­ do bombo, imitando o trovão e o sibilar do vigário, re­
tendidas pelos gazes que se formam em abundância produzindo com os lábios o ruído ululante do vento .
por esta mistura explosiva de carne de caranguej o e Num certo momento, o padre faz um gesto imp er ativ o
farinha de mandioca, alimentação .quase exclusiva de na direção de João Paulo e o menino deixa desabar do
tôda essa gente. O ruidoso estalar dos peidos nos mais carregador a chuva no buraco do gu aiamu Q uan do .

a água bate no fundo do buraco, o g u ai amu sai tont.o


diversos tons supera sempre todos os ruídos, inclusive
as notas fortes do solista dessa estranha sinfonia no­ pelo campo afora. João Paulo persegue-o em seu zi­
turna ; o sapo-boi. Ê que os pei d os estouram estri­ guezague e, lançando-se ao chão, agarra-o num mo- ·

dentes como um bater de pratos ou de bombo que es­ mento . Durante tôda a manhã, a tempestade r u g e na
planície e, só ao me i o-di a, com o rosto . af_o gu e a d o .do
maga definitivamente os sons mais discretos e .

delicados dos instrumentos de corda. sol a batina coberta de poeua e o cesto cheio de guaia­
m�s, o vigário volta para casa para almoçar. Põe os
Passa pela cabeça de Jo ão Paulo tôda esta gama guaial1lus numa esp écie de engradado que êle con s­
terrível d e sons, mas êle não ousa falar ao vigário ditas truíra no fundo do quintal, - o carito - on de a velha
coisas, principalmente dessa coisa feia que são os pei­ Ana vai cevá-los com os restos da cozinha e, entrando
dos. Seu pai sempre lhe recomenda que êle tenha cui- na sala de refeições, prepara-se para o almô ço.
58 J O S U :e; DE CASTRO

.Ama:r�ndo o gl: ard an apo em tôrn o do pesc oço,


0
·

_
pad re .Ar1 shd es sorn , embevee 1do
de pra zer diante do
per u ass � do, o per u do M ártir S
ão Seb asti ão, que
fum ega sobr e a mesa, den tro de um
prato de trave ssa .
� a � , a�te s de atac ar o peru, fiel
. aos seus hábitos ,
ele m1c 1a o alm oço
" c om um prato de gu aiamu s l'echea­ IV
dos, com seus lustroso s c scos a
a zuis , da mesma côr
de sua louç a d e por cela na da Chi
na. DE COMO O C HÃO FUGIU DEBAIXO DOS PÉS
DOS MILIONÁRIOS D.A. B ORRACHA

O trab alh o que faz João Paulo na p arte da tarde,


dentr o da casa d o vigári o , está longe de dar-lhe o
me smo prazer do trabalho da manhã pegando guaiamu
nas margens do rio . .Aj udan do a fabricar tempestade
para pegar guai amu , João P a ulo se sente crescer
di ante d e s eu s pró p rio s olho s , ficando do tamanho dos
heróis das histórias fabulosas que lhe c o nta o seu amigo
Cosme. Histórias d e lutas titânicas por tesouros en­
c antad o s , de batalhas terríveis com inimigos ocultos e
com m o n s tro s , sobrenaturais. Na imaginação de João
P aul o , e nqu ant o êle percorre os campos h á oc as iõ e s
em qu e mesmo os gu aiamu s crescem, incham de tal
forma que viram m onstr o s capazes de engolir um ho­
mem inteiro , como aquelas cobras do .Amazonas que
Cosme conta que são capazes de engolir um boi e pas­
sar, depois, um mês todo giboiando, digerindo a sua
car ne . Caranguej os m onstru oso s , que depois de en­
golir os homens1 se vão tr anqüil ament e levando suas
vítimas d entr o do enorme baú de sua carapaça, guar­
dada p ela s p atas gigantescas que se p erfilam como
armas agr essiva s . Mas João Paulo está sempre pron­
to p ar a salvar essas v ítima s , lutando vitoriosamente
contra êstes monstros ima gin ári o s , sempre pJ?onto para,
60 J O SU 11: DE C A S T R O H O M E N S E C A R A N GUE J O S 61

baus
·-

libert ar os home n s prisio neiro s dêsse s vivos -- fino s, com uma cabeça enorme, da qual pendia uma
os caran guej os. barba branca. ,João Paulo só tinha visto uma cabeça
, �a �
tar � fa da manh , portanto, há semp re algo de
her01 co. .J a nos mesqu mhos afaze res domé sticos
, ,
igual nos santos da Igrej a de Afogados. Assustou-se.
Mas o homem sorriu e fêz êle se sentar num banquinho
-
v � rrend o o quintal, lustra ndo os móve is, tiran a seu lado. Explicou-lhe que o chamara, p orque queria
do as
teias de aranha do telha do da casa do vigár io conversar um pouco com êle. Perguntou onde o me­
- .João
Paul o se sente diminuído, se sente mesm o do nino morava e quem era o pai dêle. Interessou-se por
tamanho
dum m �nino, mor ador de mocambo, criad o de sua vida e por seus brinquedos. E, uma hora depois,
padr e.
P a_ra nao se revol tar contra o trabalho humilhant estavam íntimos. Cosme encomendou a João Paulo de
e
.J oao Paul o parte outra vez na imaginaçã o. Deix
braço s e as mãos se ocupando dêsse s afaze res
a 0� levar-lhe, sempre que pudesse, os j ornais velhos que
êle encontrasse pela cidade. E foi para levar êstes
mas
fo �e com a cabeç a pelo mund o afora , vend o e
c01 � as do arco- da-ve lha. É como se êle não

fa endo j ornais, que se amiudaram as visitas de .João Paulo
estivesse ao paralítico . O menino recolhia os j ornais nas latas

I
mais na cas � do vigár io . Ê como se houv esse de · lixo das casas ricas, nos bancos dos j ardins, na
parti do
com seu amig o Cosm e . Com o se êle fôsse farmácia e na padaria, cuj os proprietários atendiam
. as pern as
que falta:n ao seu anng o para perco rrere ao seu pedido . E vinha, radiante, com sua carga de
m j unto s
todos aque les lugar es onde Cosme tinha vivid j ornais velhos, visitar seu amigo Cosme. No princípio,
. . o outro ra
suas Impr essi O nant es aventura s. pensava .João Paulo que Cosme queria ês.ses j ornais

I
· ?Jlsei?-pr � Cosme o comp anhe iro das aven tura
s de
para com êles cobrir, nas noite s de frio, o seu corpo
sua Ima�In � çao porq ue foi Cosm e que a estropiado, mas Cosme lhe explicou· para que os queria.
acen deu des­
de o p rime iro momento em que se enco ntra Explicou que, p ara êle, o espelho de mão e o j ornal
ram. Há
tre" s anos que são amigos e a amiz ade eram pràticamente a mesma coisa. Com os dois podia
dos dois só faz
cresc er. Nasc eu e ta amiz ade n m dia Cosme tomar contato com a vida, informar-se do que
� � em que João
Paul o estav a empinand o papa gaio na beira se estava passando no mundo : no espelho, do que se
do man­

gue, �u�n o � omeç ou a sentir baten do em seu
rosto ,
passava ali perto, no seu pequeno mundo, no j ornal,
� �m Insi� tenCia, um foco de luz. Intri gado com êste do qu:e se p assava mais longe, na cidade, noutras ci­
J ogo, .Jo ao Paul o recol heu o seu papa gaio debai dades, no grande mundo.
xo do
braço e dirigiu-se para a porta do mocambo de Cosm
e Nestas visitas, Cosme foi contando ao meninos as
p ara ver de onde vinha aquêl e foco de luz. Não aventuras de sua vida. C ontou que como Z é Luiz êle
con­ ·

seguiu ver nada, porqu e a j anela do mocambo era também nascera no sertão, numa vila do S eridó, que
mais
alta do que êle, mas ouviu uma voz convid ando- o a é a região que dá o algodão de fibra mais longa do
entrar. Abriu a p orta e viu estira do numa cama mundo. Dizem que mais longa mesmo que a fibra do
de
madeira , um homem magro , de perna s e braços muito álgodão do Egito, j á famoso no tempo dos faraós. Que,
!.·!'
!� :

62 J O S U ll: DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJO S 63

em criança, foi trabalhar como servente de uma es­ tra os atravessadores do Sul, mas viu que era impos­
cola pública onde assisti a tôdas as aulas e cedo apren­ sível concorrer com êles. Não entendera como êles
.
deu a ler. Que leu todos os livros da biblioteca da podiam negociar naquelas. bases. Procu;rou ter um
escola , ficando um viciad o na leitura . Ficando homem, contato com êste s moços do nôvo mercado do algodão .
Cosm � se estabelecera na sua vila como negociante de Era gente fina, educada, cordial . Foram gentis, expli­
algoda o . Montou uma peque na descar oçadei ra e com­ caram-lhe tudo o que se estava passando . 'Trabalha­
prava e vendia o algodã o produ zido na região . No seu vam para uma grande companhia estrangeira, e spe­
caso, não fôra a sêca que o expul sara do se;rtão . A cialista em importar algodão, que tinha resolvido se
várias sêcas êle tinha conseg uido resisti r. Fôra coisa · estabecer no N ordete. Mas a companhia não queria
·

muito pior. concorrentes e começara por afastá-los todos do seu


- ' ' F oi o monop ólio, dizia êle, que é um monstro caminho . Mesmo os pequenos comerciantes, como era
. . .
bem mais Impie doso do que a sêca. Ademais a sêca o caso de Cosme . Porisso, a companhia p agava um


chega e depois vai embor a, e a gente que ela e pulsou preço acima do mercado que os pequenos comerciantes

p o e voltar às su � s terras . O monop ólio, não . Quan­ não podiam pagar. Perdia dinheiro a propósito, dois
do ele chega e se Instal a numa região , não sai mais. ' ' ou três anos, mas acabava com o mercado local do
Não entendendo bem a coisa, João Paulo lhe per­ algodão. Ficava s ozinha. E aí é que ela fazia os pre­
guntou . o que era monop ólio . ços que bem queria. Os rapazes explicaram a Cosme
- " Era alguma doenç a má � "· que o melhor mesmo era êle se retirar do ramo. E
E foi então que Cos:ne , com paciên cia, explic ara como êles eram seus amigos, arranj ariam que a com­
� udo � oao �
� Paulo . Exph cara
que seu negóci o ia bem.
panhia comprasse sua pequena fábrica de descaroçar
o algodão. Imprensado contra a parede, Cosme teve
Ele v:aJ ava pelas terras da redon deza, comprando o

algo ao do� plantadore s que êle desca roçav a e depoi que ceder e emigrar do sertão, antes que se acabasse
s o seu dinheiro, lutando contra o monstro do mono­

ven I � a fibra e as sementes na capita l. Gostava do
negoc w, go� tava desta s viage ns nas quais comprava pólio. Vendeu a sua fábrica para a companhia que a
semp re mult ?� hvro . desmontou, e partiu para a capital, o Recife.
s. Mas, um dia, come çou a apa­
recer na regia o uns moço s bem vestid os que tinh Mas João Paulo continuava sem entender bem e
am
vindo d � São Paulo com a taref a de comp rar lhe pergunta porque o govêrno não o defendera contra
algod ão
e ofere ciam aos plant adore s um preço que .êle êste monstro. Cosme respondeu que o filho do gover­
. não po­
dia pagar nem de longe, porqu e lhe parecia bem acima nador sendo o representante da Companhia no Es­

-

o pr eço do merca d? · M s êle tentar a, pagar a preços


� tado · era um dos . . qU:e comiam tranqüilamente n a
... .
-

Ident lcos, mas q� ando vew vende r no Recife o algod ão mão · do monstro.
e as s �me�t� s, fm por preço bem mais baixo , perde
ndo No Recife, Cosme lera nos j ornais que os homens
um dmhmrao. Durante duas safra s, tento u lutar con-
d e coragem enriqueciam no Acre num abrir e fechar
··�.
64 i ' ! .l [ JI OI S U'ÊI ID.IE' J C A S T 'R O / u ' : H O .tv(E'NiS E CARANGUEJO S 65

deHq>lililos;'t ·Corrp m gwilJJ"ill a Plili ,'E uropa,; à, 1ho�·racha esta:\m eoisal seTiã.!oJ ;de jàolhê'!l t.;bol111 a r.ha, de defumá-la , de ven-
vatiendo , uma1 ·:f:JQlmtüillta , 1eúM Ama.Zônia·�er.Zil·ro , par.aísb1 ·da dAe�.rro,
, 'l w e
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waii!sr�sensatas 1 rliel!.liassem rt:lsrl!riar HO' 1 seu 1 e:ntnsiasrho.' · O
$1é:rftihàó\i6 .��Htef�dJ� J61-�s1dgnte 4 e João Paulo ,
' .' : ' 1 nos

óihó� ·' rt�o� itf8'ilié:diriW do�llié dóliBrltiava, alisando com


S�Ü :velhiY 1pa}trJãí0)' 10 }h r d:f�s sbr 1Griilhev:mino·, i lhei rd_is:St!H'a 1:
· . ' . . . A' . ' d f R. ���
�klid � a.�a.�J k ±nK � ��� iJ���t��� 'liit�;Wa 1: ' l i '
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m1lrndp1i'1Pô'd�1 �:s&r: rittd.ttV l 16m · m�si ! > 'qn eni : para : �liá : vtd' {' ; /·',Mais i lúh$pres:Bâ I lm>inda:: ·d6 qnJie i a iJ?:iqueza, ca­
: i! r,7i-
naó) ivhlh\;-:mais 11! r Mtt� 1êle ��ra:.\trrôçÓÍ ie , atb' bic'i 6so',: :e- 'f tii { minholli ah des·g.ráça � na : AmnazôniiaJ. ; I ; Eu'l j ákme . sentia
Fói� � ���vbH6li: 1 1Mh�; \ttUtdu ;�1stl·opikBB,' 'á'Íeíj1itdtí" ' ' 'dra d dono , dor1111up. d.o; 1 quan<ii o iOJ:ínetlf 1mu:n<ilo: : se; :desmoro nou.
�.?�touda::l{l�a4� �-;� '�Íi 1 �lstaVa I �1�� i ;êsH�àad no j �eu iNúi; 7: V:ivia J lle.ssedtempo � �oro ,tuma :q1<1.!lada Joura1 chamada
Jt:unine� 1 qu e . itinilila·m:rh .t granrue. rsiÍ®iàL :prêto1 ·no · ,Iábio,. srl +
a · e�6'6�F n1é�anc õlrMiili'e íi�M - �e 1i:h!úLàvelíúi:tM,
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ail)lÜ,g o E) I QOI4 q � (j]j-ulaS; JQI,; e
tilláJs : { Bêcãs1' 1 ra,tr.a:Y.éssei
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'd?á.gt1a·, ' i der : bôca s:ubir,de ;:impcn·,tâJ<�Jeia a·�ela�se f dos , S;eningueiro.s i ,::Vri'íriia
âl,. ILo e l1.t1àJ, IC!om>Jo r1,'1tébto eaídb-) d�� verJ 1tanta 'ágtH:tj uquandb assim, . êomql umdoJJd!eí �se�ur.o ,de 1si e ,d0I ifui1tuJ:IO! ·.qüa:r:i,.
.· · · · · .

do,� uma moite;·< 'al0usaitr, : de um r aàlva.IV�, senti LiDa� ;:rua , ; de


·

Iid_1 SeFtãti ! dà} gthi�����;ã\di s�Njll(3e}n'ttá:va umargôt�. I :Não


for·):>�ecí�?_ 'i!r .até 1 \J íi.ÀéreJ 1 pol'tJ.,l!re' em:'·M�lr11tus . Die.smó re::p$nt e; , ,o, ehão i fug�:thdebáâxot dõs •<m�us; ; pés. ' ;P ensei; ·

encontrei ' á ifdrtú1iá.J> Su.'bT rrtuT:ff 1 ura!Çol í d6 rilf lcom' ; o's a ptinaípiov ;que , tfuiih a • bebido• relú�ri;lpa:íahal iídel)lais . �,
l:neü's 1'·âpetréêihfós<'-'é1 í tl'ois1 1 'lió'me':ds 1:Jalttt 1 1áJrrdâr! 'na 'co.:. por; isso} rsêntia • as' Jl>eFhas iham1ms� �e� l(i)'Sl pé$Hfb:D0si:·;NJ: í:is;
'.lJ • . ;n,_ . '!,;; ' b '· ' '
lheí t:M ��j l:JO!r!r'â�liti é; veiú:l ehqd HM b d ão h� r� s�:ra ; ' é$tí-� g não > rer.::vbébede ira 'úf ;que tetti '• Sé'l!ium.
> .• •

r;y�JN\A!l1· :1J em e:t�; sut


�çN;��o üm�1fitá''dé'l::Jh�ra�hre. 1 D�:lfrróite :pa::ta
·

í'av<a: mes bi!J1lxllio .:.meí <pelas'J]>E\IlNas ! aeinnv ie rtománúto 'conta dti 1Iii e'u
o dia, fiquér'imp'ottà�!J.ífi&' ) Só1;cbfhi1áflclói'sas i±nportWiàis c<D·rpo. 'iEIDa ) ià) ' palrwlisfuài pll (!YVocada' 1 pela ' fo'lnEV ldé ' �!J.J..:.
cla 1.Eur opa t.'�xiamne :e��fe:ij ãa ; e>lilata<i�s,r;vi3rdu�, ··J:egumes meilto� :ilr'B�hos · qut\, ilàqiiélJá! Ji0�te, • me 'j1oig1ávtt 1 rtrl ) cama\
e�;:firruvta � de lo<D:rllsérvas) ii;;iln.oo:�Uláte-s1 e1 v>i:Q:h0sJ fi:lh!@s;• ; A, ;ver� H� r O;I;\�'�) . Je1� j j,�;rp;:;tif3 ' nm ! J.�'íflill�f\T�fl: [ .GPW i /il<S ) IT}:iph�s pr ó­
d1ade: =é tque��aat Euv<Dm>a:J 'Vinhuetudôi !():r�he ' s� ;.-é bnsmnia :pflj i ÇtJilJJj);tlt):g�s., ij'q.; Willfl� L fl:�:fQg&,;r;J;Çi fL; i<;bl+B Til� i �0f�l,a . r��I;l t
ná: l re�iãd; r iD;afil1:ngiwtérràJ tvinh'ái '�ai ��:it'rne •eL<!>l ieijãóv f IDa t:ikll}.�; . ,d q:p ç}, i ,d, q ,m't)mdo,,r , �lil{:nl;ln�� � jjSpjjTI;;�,:naj s,e;r <ile:r!Yu: ·
Fra]']içaiítJ®Jbi:ihl�itíilb.ái ed�ambém ras� l:íA11'izesi côml.icas pà>rd bftdp :í]g�1Qjb,ei!;ibé�i : e�hoJ1a 'j
tJi!ve��e , l]l!:Otíciad qlité : milha-:
c ant ar em no teatro de Manaus. Da� �Fbliô niliá rais nfuu .:. :ues de: Jo;utri�s .'s!n·ing;u eitoá:·tinham: [si do' ;ata'tadoss ciL<essa
1hGir"eSl rpaili'a, !JPpvóan 10� borudéis,J N;a;:.Atnazônia niesmo, esd;ran'fl a i ;doe:pÇa qhe,, , ihácjue:la íéprioo, Jl1iir.lguéni /:sabia ; o
s6J lse)'lpno«liufllia íhomTacoo; :NdiDig;uiémr :<ür�dava�,q.e · i outra quei;�N:t;e,qute ,f1iiDJj Í3, J se srabe •quf(Jl � V hmar � doe:rlça:rd fl fome [
66 JOSUÉ DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 67

· Para não deixar minha carcaça enterrada na terra Quando João Paulo ficou conhecendo, em todos os
da borracha, tratei de fugir depressa daquele inferno detalhes, a odisséia de Cosme em sua fracassada aven­
verde. C ompr ei uma cadeira de rodas na casa de mó­ tura para conquistar o mundo, cresceu ainda mais a
veis do Antônio Mendes, qu e estava ficando podre de sua admiração pelo amigo, e a sua curiosidade em
rico, cobrando um desp r opósito por êstes móveis de ouvi-lo contar mais coisas de sua vida. E Cosme sem­
sua fabricação a todos os s e ring ueiros que eram toma­ pre satisfez esta curiosidade do menino. S empre con­
elos pela paralisia. Desci com um bando dêle s noutro tou-lhe, não só as coisas maravilhosas do mundo que
navio gaiola. Punham as nossas cadeiras de rqda no êle percorrera com suas pernas a Amazônia - mas,
-

convés e ficávamos a nos lamentar, uns para ou ou­ também, as do mundo que percorrera com a cabeça,
tros, das nossas desditas. Do fim de t ô da s as nossas nos livros : tôdas as lembranças de suas leituras na mo­
ilus õ e s de .s ermos milionários da borracha. O que éra­ cidade.
mos mesmo, era um bando de trapos humanos j ogados João Paulo bebia estas histórias com sofreguidão.
naquele convés de navio, voltando desiludidos para Para êle, Cosme era uma espécie de oráculo que tudo
as nossas terras, tentando salvas as nossas peles. ' '
sabia e que tudo o que dizia era como se fôsse sagrado.
Cosme contou que, ao chegar no Recife, consul­ E não só para êle que era um menino, mas para quase
tara tôdas as celebridades da Medicina e que êstes todos os habitantes da Aldeia T'eimosa. Todos admi­
sábios lhe diziam que aquilo era uma intoxicação pro­ ravam a sabedoria de Cosme que era o verdadeiro cé­
duzida pelo álcool e pelos alimentos estragados. Para rebro daquela comunidade, a sua cabeça pensante para
cur ar se, o que precisava fazer antes de tudo era
-
decidir de seus grandes problemas ou para explicar as
comer o menos possível. Era viver quase em j ejum. coisas incompreensíveis ao limitado conhecimento dos
E, en qu anto êle j ejuava e os médicos comiam-lhe o outros. Com o passar do tempo, quanto mais mur­
dinheiro todo, ganho a custo de tanto sofrimento, a chavam o.s mú sculos do corpo de Cosme, mais parecia
paralisia progredia. Foi assim que a sua fortuna se crescer a .sua cabeça e, com ela, o seu saber. Estirado
fundiu, como se fundiram e desap arece ram o s mús­ no seu girau, deitado no seu mocambo perdido no ma­
culos de suas. pernas, a sua fôrça de andar e a su a ta g al, parecia que Cosme estava em comunicação per­
mola ele mandar : os seus nervos e o seu dinheiro ! manente com o mundo inteiro. 'T udo o que ac ontecia,
-- ' ' Se estou aqui nesta cama, estirado como um lhe era logo comunicado, através de fluidos misteriosos.
tr apo dizia Cosme, gesticulando com o espelhinho na
, A verda de é que êle sabia das coisas, antes mesmo das
palma da mão a culpa é minha. É verdade que foi cois as acontecerem. O seu saber fazio-o adivinho, uma
a miséria do sertã.o que me fêz sair de lá e a fome de espécie . de profeta aos olhos da comunidade. Um ano
alimentos frescos da Amazônia que me derrubou no atr á s, numa de suas conversas com Z é Luiz, C osme
chão. Mas foi a minha ambição de riqueza que me um dia predissse que Rosa, a irmã solteira do :Mateu s,
levou para lá, o que foi a minha verda de ir a pe r di ç ão . ' ' iria aparece1: grávida. E diss e mesmo, com um sorriso
68 J O S U :I!: DE CASTRO H O M E N S E C A RA N G U E J O S 69
··-

malicioso, estar certo de que o filho dela se pareceria nados j á tocara mai s de um dúzia. Então, o padre
muito com o S e;Jastião. E não é que se notasse qual­ ordenou que êle dobrasse finados pela velha Clotilde.
quer mudança na vida da Rosa. Quando, meses de­ João Paulo subiu na tôrre da Igrej a e, do alto,
p ois, a barriga dela começou a crescer, acharam que naquela hora em que o sol se punha, viu a cidade in­
Cosme tinha adivinhado. Mas êle negava que fôsse teira vestida de roxo . De um lado , as casas crescendo
adivinhação . Dizia modestamente que o espelho dêle cada vez mais com a distância, até virarem arranha­
via e lhe contava coisa s invisíveis aos olhos dos vizi­ -céus no centro da cidade . A s tôrres das igrej as tam­
nhos. 'Também, quando houve um tremendo crime de bém crescendo cada vez mais, até alcançarem as altu­
ciúme no bairro, e encontraram morto, na beira do ras imensas das tôrres das igrej as do bairro do Recife .
mangue , o mulato Júlio com uma faca enfiada nas Do outro lado, as casas diminuindo de altura, ficando
partes, ninguém sabia quem era o assassino. Mas Cos­ cada vez mais baixas com a distância, virando mocam­
me sabia, porque seu espelho tinha visto o crime . E bos e latados, até desaparecem de todo dentro . da lama
foi .êle quem permitiu à p olícia descobrir o criminoso, do mangue . ·T repado na tôrre da Igrej a, João P aulo
informando ao delegado que veio ouvi-lo no seu mo­ se sentia como se estivesse a cavalo no lombo de uma .
cambo. montanha que fôsse um divisor de águas, de onde cor­
Estava João Paulo com o pensamento perdido nos riam para um lado, os rios da fortuna e, para o outro
detalhes da vida de Cosme, quand o ouviu a voz do vi­ lado, os rios da miséria.. Correndo, uns para as terras
�'ário chamando-o da sala de visita. Largou o ciscador dos ricos e, outros, para as terras do s pobres. Lem­
j·ü:riité> ao muro do quintal e foi ver o padre. Êste lhe brava-se João Paulo, nesta hora, da frase que ouvira
re�orri� dou ir depressa chamar o sacristão p ara do­ da bôca de sua mãe : ' ' Lá, do outro lado, é o paraíso
D�âltr oHsi:4:o da Igrej a . É que tinham vindo , há pouco, dos ricos , aqui é o p araíso dos pobres " . E neste mo­
avfs'�lf!J�91 :padre que a D. Clotilde, presidente da con­ mento, puxava as cordas do sino, dobrando finados,
fht:rifâ/dks :Jfilhas de Maria, tinha morrido de repente . e as puxava com u m certo gôsto perverso, sabendo que
Et1á �la' 1 tl�l'fro s pilares da Igrej a : sua grande benfei­ aquêles sons arrancados do bronze iriam varar o ar
t(i)l"â. 1 1 1E:l'lfW lJ!r.étii�o l (ltte os sinos dobrassem depressa e em tô �as as direções e iriam assustar, fazer encolher- ·
;6d!'tei.mifidã'0I i ]Pâ/'uilio) J fbi -correndo à casa do sacristão -se de mêdo dentro de suas casas, os habitantes da ci­
rua:s,fiãl0;.:iJ1 ebeb:i.1tr�:r"J.) 'ÊMte tinha ido à cidade busca � dade rica e os h abitante s do mangue miserável. S e
vtllaSl ipít11áY à'J:inlifSsaJJdés ét11ful!>ti dia de outro morto. Na C osme, n o seu mocambo, a o ouvir o dobre d e finados ,
:Bá�fltà .ddrsiâfd#��ã-ó;i·{�Jfi�áfftilé;j> êí1�1Ítttdu: 3:. João Paulo se puxava o lençol que lhe cobria o corpo até o pescoço ·
êlensátlb1à d'0lb!ii' í:ti'i1é!:P�s<:fnd8fl El� fdisses qúlé' .\3sta:va cansado sentindo o bafo frio da morte soprar-lhe sôbre o corp o ,
dei sa&e�� �de "ºr'NaJ.t!J.�)(;) o:�á:�ri:siflão till:!lllil!a Llfyregüi�à, . man­ também Vanderlei, que morava num p alacete d e luxo
dMnàJ >êl'e r'àuhi1rh Et í Wrifit:trtdfaJ�Ig:t·@j•il p$ra>'dóbfratt j os 1 �inos no Largo da Paz, ao ouvir êstes sons macabros, c o r ­
ohrum�ndtH o a t!fiéi�trp·ar.rtt:·rá? iliissa.nE ·.qnet dob1'8Sí i fie; : ri.. reria assombrado do terraço do seu palecete para s e
70 J O S U l!:: DE CASTRO

esconder dentro do seu quarto, com mêdo de ser encon­


trado pela morte que esvoaçava no ar. João Paulo
sabe q u e em tu do quanto é casa, nas dos ricos e nas
d os p obres, os homens, ao ouvirem aquêle dobre de
finados, sentem descer um frio onde o mêdo da morte v
é maior, o frio também maior, como se a espada ;j á ti­
vesse entrado de espinha a dentro. DE COMO ZÉ LUIZ FALOU COM DEUS
. Enquanto o sino continua dobrando, João Paulo . S EM ANT'E S SE BENZE.R
ri s ozinho, lembrando-se do que Oosme lhe dissera uma
vez, de que os ricos têm o coração duro mas os nervos
fracos. E João Paulo puxa as cordas do sino com Nas noites de lua ch e i a, os vizinhos vêm se sentar
certa raiva, como se· tivesse puxando mesmo os nervos em frente ao mocambo de Zé Luiz para contar ou p ara
fracos de todos os ricos e cada vez com m ai s fôrça ouvir histórias. Se a noite é fresca como a de hoj e,
como se quizesse arrebentá-los . soprando um ventinho carregado do cheiro dos sarga­
ços, .êles se acocoram em tôrno a uma pequena fogueira
de varas de mangues e aquecem o corpo ao calor do
fogo e de alguns goles espaçados de cachaça.
João Paulo encosta-se na parede de barro do mo­
cambo e se regala com e stas histórias. Principalmente,
·
quando é o próprio pai que conta, o que raramente
acontece. Hoj e é um dêstes grandes dias . Porque a ver­
dade é que Zé Luiz não é homem de falar muito, de se
derramar em confidências. Ao contrário, ouve mais
do que fala. Só bem p oucas vêzes êle se abre e deixa
aparecer seus sentimentos mais íntimos. Nesta noite,
insistiram com êle para contar como viera parar nos
mangues. Como viera habitar a Aldeia Teimosa. Êle
cedeu à insistência. É possível que para dar prazer a
João :Paulo, cuj os olhos vivos, fixados nos olho.s do
pai, eram uma verdadeira súplica., . �ão tinha êle · pro­
metido contar ao filhp, um dêstes dias, a sua odis­
séia descendo do sertão até encontrar os mangues �
Contaria h o j e E - contou . . . Começou tropeçando nas
...
.
72 JOSU� DE CASTRO
H O M E N S E CARANGUEJ O S 73
'-

palavras, vencendo com esfôrço o emaranhado das idéi­ me sentia . feliz com a mulher e meus dois . filhos no
as. D epois, foi tomando embalagem e a sua história sertão. Mas, em 1947, as coisas ficaram pretas . Nunca
corria como um rio, banhando de felicidade a alma de ví uma sêca tão danada. Não havia para onde ap elar .
João Paulo. Secara tudo : o vale e a serra . E as notícias que che­
- " História de fome não é história que se conte gavam eram de que a sêca era geral. Tentei tudo mais
- come 9 o ��éL�iz - é
só tristeza. 'Tristeza e vergo- não pude me agüentar. Passei dias, de sol a sol ·�
uh�. Historia feia. Mas, se vocês querem, eu conto tirar espinhos de mandacaru para que o gado não m r­�
assim mesmo . C onto a tristeza e a vergonha que a resse de fome nem de sêde. Mas não adiantava nada.
gente passou na sêca de 1947. Em poucas semanas, o gado começou a entrevar de fo­
m e , e ficar com os quartos duros, sem poder andar .
Até então, a gente vivia feliz no sertão de Caba­ Acho que era a mesma do ença que tinha dado em Cos­
cei.ras. É verdade que é o município mais sêco do
n� e na A.m �zônia . Eu punha as vacas numa espécie de
Nordeste e, de vez em quando, a gente se aperreava com
grra� de tiras de couro, sustentando-as por baixo da
a falta de chuvas . Mas, eu sempre me arranj ei. Quan­
barriga, mas as vacas morriam assim mesmo , o corpo
do a sêca apertava de um lado, a gente desapertava de
suspenso mas a cabeça e o rabo caídos, ap ontando pa- ­
outro lado. Se o pasto acabava, a gente dava rama ao
ra a terra estorricada. Andei como doido correndo
gado . Se as ramas acabavam, tangia-se o gado para
un; p e, de serra. E e;1eontrava-se sempre uma salvação . rri
atrás da água que parecia fugir da gente co o o diab o
d a cruz . A. á � a do tanque de pedra secou logo . A
Misturava-se a farinha de mesa com a farinha braba .
de macabira, arrancava-se no mato algumas raízes bra­

cacimba do Iacho Fundo, que dava uma água salobra
.
�as e atravessav� -se a penúria. O trabalho era duro ,
e pesada, fOI baixando cada vez mais com a passagem
dos retirantes sempre sedentos , transformando-se, em
e verdade, m a s tmha suas compensações.
pouco tempo, num buraco escuro, tendo, lá no fundo
Eu cuidava do gado do Cel. Virgílio Maracaj á e um p ouco de areia molhada que era preciso espremer �
plantava u� pequeno roçado. De cada quatro bezer­ escor;r er nu�a peneira para dar um pouco d 'água. E
.
ro� que naseram, um ficava com a minha marca. Era a
depOis, a cacimba deu na pedra e, a p e dra, nem espre­
mmha paga de vaqueiro. Na casinha da gente, podia­
mendo . Passei a buscar água numa fonte, :rio p é da
se morar. Quando, nas tardes vermelhas do sertão eu
serra, a uma distância de mais de légua. Mas as filas
voltava do trabalho para casa, encontrava Maria se�ta­ sem fim dos retirantes acabaram chupando a última
da no batente da porta, dando de mamar a João Paulo .
gôta d 'água da fonte. E começamos a morrer de sêde .
A. o avistar de longe o menino no colo de Maria ' eu
Foi aí que se deu a tragédia que me fêz p erder o amor
pens�va nas rmagens, que Deus me p erdoe, da Virgem
o

pela minha terra. "


Maria, amamentando o menino Deus. E o menino
maior, Joaquim, brincava no p áteo da casá, e quando Z é Luiz fêz uma pausa, como se quisesse tomar
me avistava de longe, disparava a o meu encontro. Eu fôlego antes de prosseguir em sua longa história. Be-
74 JOSUÉ DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 75

beu seu gole de cachaça, limpou o.ii> lábios com a manga borda do vale, onde uma colina se levanta picada pelas
da camisa e, continuou : hastes dos marmeleiros. De vez em quando, surgia na
- " Lembro-me bem dêste triste dia. An d ei a , b eira da estrada uma tôsca cruz de madeira, marcando
tarde tôcla, cavando o chão de pedra na beira da várzea o ponto onde um retirante tinha caído, morto de fome
· estorricada, em busca de alguma raiz de macaxeira que e de cansaço.

tivesse ficado, por acaso, enterrada no solo da cultura Antes . que êle chegasse em ca s a , já o sol se tinha
de vazante. Mas não achei nada. Desanimado, s entei­ posto, e um clarão de brasa de um vermelho violento
me numa pedra na beira do riacho sêco e vi, em tôrno recobria todo o horizonte, ensangüentando a paisa­
de mim a planície descampada de uma vastidão im­ gem desoladora. Nesta hora de transição, a terra tôda
pressionante. A .s êca tinha matado tudo. Deu-me uma parecia crescer, ficando vazia e grande demais. Zé
tal depressão ·diante daquele espetáculo de areia e pe­ Luiz sentia uma solidão infinita. Entrando em casa,
dra, que senti meu coração, dentro do peito, crescer perguntou logo pelo filho doente e Maria lhe respondeu
como se também virasse pedra. Veio- me uma vontade aflita :
imensa de esconegar no chão, de deitar o meu corpo - " O pobrezinho está queimando de febre e mor­
pesado naquela terra quente e ingrata, e ali adormecer rendo de sêde. Pede água o tempo todo mas não tenho
para nunca mais acordar. Mas, lembrei-me ele Maria mais uma gôta para lhe dar. Acabou tôda. "
esperando que eu levasse qualquer coisa para comer, e Largando. sôbre a mesa o chapéu de couro e o feixe
do meu filho Joaquim, doentinho, estirado num girau ele varas de xique-xique, Zé Luiz apanhou um pote
_ de varas. Por isso, reagi contra a depressão tremenda. e tornou a sair em busca da água. Sabendo que não
Colhi uns galhos ele xique-xique com o meu facão e havia água por perto, tocou direto para a casa do seu
toquei para casa, para tentar enganar, por mais um compadre Joca Salgado, que ficava quase a uma légua
dia, a fome de minha família. ' ' de distância, para lhe pedir um copo d ''água para ma­
E Z é Luiz evoca para seus ouvintes, a sua grande tar a sê de do · filho doente. Bateu à porta da casa de
luta buscando escapar ao cêrco da fome e da morte. Joca e a porta se abriu por si. Entrou, e não encontrou
Conta que, pelos caminhos áspeTos, as solas de suas ninguém. Compreendeu logo que a família tinha des­
alpercatas iam batendo no chão como uma matTaca e cido tôda com os retirantes. Riscando um fósforo, cor­
que, pensamentos trágicos começaram, também, a ma­ reu à cozinha e, aí, viu o pote d 'água encostado num
traquear sua cabeça dolorida : Quando acabaria esta canto da parede, com a bôca para baixo. Sentiu, neste
sêca terríveH O que acabaria primeiro : a sêca ou a momento, um apêrto terrível na garganta e a bôca
sua família� O que .s eria melhor : morrer de fome e de mais Bêca como se a sêde desadourada quisesse estran­
sêde na sua própria terra ou emigrar para morrer de gulá-lo de uma vez. Desesperado, deixou às carreiras
fadiga e de vergonha na terra dos outros � Como uma a casa de J oca, e disparou pelas campinas desertas, de­
fita empoeirada, o caminho se ia d es enrol an d o para a cidido a emigr,ar t amb ém . A l argar , n a qu ele mesmo
76 DE
HOMENS C A RA N G U E J O S
J O SU Ê C AST R O
E 77
.....

dia, aquela terra amaldiçoada. Terra onde o homem muito leves. Depois, desviand o a vista, olhoU: a janela
trabalha todo o santo dia e, no fim, vê seu filho mor� aberta para o pátio da fazenda, como se fôsse um bu­
rendo pela falta de uma gôta d ' água que lhe mate a . �·aco enorme dando para o infinito. Foi até junto da
sêde. No esfôrço da marcha através dos tabolei'r os Janela e, olhando para o céu tranqüilo falou com Deus :
ainda coberto de suor, e ao passar a mão sôbre os ca­ - " Uma coisa ·
a· es t as, vosmece nao ve, mas quan-
... � ...

belos ensopados, pensava na alegria imensa de uma do a gente faz um pecado dêste tamainho ) está com
chuvarada forte - uma daquelas chuvaradas tremen­ um oAlh o enorme em cima da gente I ' '
das que, às vêzes, desabam no sertão - e que enchar­
casse a sua roupa tôda, o corpo todo, até à raiz dos E Z é Luís com a voz quase embarga da pela emo­
ã
ç o conclui a sua história :
ossos. Seu desejo era tão grande - a sêde tão intensa
e a angústia tão profunda - que chegou a ter aluci­ -- ' ' Foi a primeira vez que falei com Deus sem
nações e, por duas ou três vêzes que o suor lhe escor­ ante s me benzer . . . " .

ria da fronte, perturbado, chegou a estender a mão No dia seguinte enterramos o Joaquim e partimos
no ar transparente da noite para ver se não estava os três : Maria, João Paulo e eu daquele inferno em
mesmo chovendo. Entrou em casa e gritou para Maria : brasa. "
- ' ' Junta os trens, mulher, embrulha bem os me­ , A �vocação de todo aquêle sofrime nto esgotou Zé
ninos, que vamos embora desta terra amaldiçoada. Va­ Lms. Ele se calou abatido e ninguém insistiu para
mos descer para o brejo onde haverá sempre água que êle prosseguisse nesta noite a história de sua pere­
pra dar ao Joaquim e ao João Paulo ! ' ' grinação até o Recife.
E a mulher, que estava sentada na sala de
j antar com os olhos fitos nas varas de xique-xique e o
queixo magro afundado na mão crispada, respondeu
com a voz pausada :
- " Já não adianta mais água, Joaquim j á
morreu. ' '
Zé Luiz estremeceu sob a violência do golpe que
lhe dissipou tôdas as alucinações, e sentiu uma fôrça
terríve l - a fôrça do ódio e da revolta - invadindo­
lhe o corpo todo, da cabeça aos pés. Entrou no quarto
e viu seu filho morto : um feixe de ossos enrolados
numa colcha de retalhos com os olhos muito claros e
muito abertos, os glóbulos vidrados e sêcos sôbre os
quais a chama de uma vela fazia esvoaçar sombras
VI

DE COMO A FOME F'Ê Z D E ZÉ LUIZ,


HONRADO VAQUEIR.O DO SER.TÃO, UM
R.ELES LADRÃO DE QUEIJO

Só muito tempo depois, numa noite em que . se


comemorava o batizado de um filho de Juvêncio, que
morava na ponta da .Aldeia ·Teimosa, num mocambo
de palha com piso de ladrilho, é que Zé Luiz retomou
o fio da história de sua descida do sertão até o mangue.
Contou o resto da história, sentado com outros
amigos que também tinham ido ao batizado, na sala
do mocambo de Juvêncio que tinha o piso todo de la­
drilho. A razão dêste luxo, dêste piso revestido de la­
drilho e não de terra batida, como era o piso de todos
· os outros mocambos, era que Juvêncio trabalhava, há
anos, numa fábrica de ladrilhos em Olinda e trazia
, \ todos os dias para casa, um ladrilho. O vigia não ia
fazer lambança por · c ausa de um ladrilho . Mas, com
um ladrilho por dia, conseguira Juvêncio paciente­
mente reverter o piso todo da sala do seu mocambo e
j á tinha mais da metade do quarto forrado também
de ladrilho. Mais uns meses, e todo o seu mocambo
seria um palácio em matéria .de piso :
Todinho forrado de ladrilho. Foi o próprio Ju­
vêncio que, naquela noite, pediu a Zé Luiz para con­
tinuar a história da sua descida do sertão, cuj o co-
80 J O S U :lt DE CASTRO HOMENS E C AR A N G U E J O S 81

mêço êle contara no mês passado. Zé Luiz havia con­ parecia prosperar nelas eram os cemitérios. Todos
tado a tristeza, mas nada dissera sôbre a vergonha. bem povoados de almas. Murados, arruados, alguns
E essa também interessava aos companheiros, insistia até ajardinados, enquanto as vilas ao lado eram uns
Juvêncio. montões de miséria. Era como se só existissem mes-
Z é Luiz fêz-se um pouco de rogado, mas com al­ , ' mo os mortos a reclamarem cuidados, e ninguém pen­
guns goles de cachaça, desembuchou o resto da his­ sasse mais - nos vivos, neste reino da morte. Caminha­
tória : vam nessa procissão como fantasmas no meio de ou­
- " No meu entender, o ato mais feio que um tros fantasmas. Vinha gente de todos os lados e vinham
homem pode cometer é mesmo o de roubar o que não todos correndo com mêdo da própria sombra, indo para
lhe pertence. Ê tirar escondido as coisas dos outros. o brejo e para a costa em busca de água e de comida.
Ladrão para mim é o pior nome que se pode chamar - ' ' Vocês que chegaram pro Recife, vindo s da­
a um cristão. Poi s bem, na sêca de 47 eu dei para la­ qui de perto, da zona do brejo, não sabem o que é amar­
drão. Roubei comida. E roubei de um homem bom gar a poeira das estradas do sertão em tempo de sêca.
que não merecia nunca ser roubadõ-. Mas-vou contar co­ Não é só a lonjura das estradas que não tem mais fim,
mo tudo se passou . é o sofrimento do retirante que também pare ceque -
Vocês j á viram que não foi por ambição que a não tem mais fim. Disparando pelos taboleiros -des-
gente abandonou a terra do sertão. Não foi em busca campados, com o sol tinindo nas costas, com á fome do­
de riqueza. Foi em busca de vida . Foi para salvar a endo dentro da gente e a poeira entrando pelos olhos
vida dos meus que desci para a costa. Vínhamos em e pelas ventas, o sertanejo eome o pão que o diabo
busca de vida, mas o ·que a gente topava a cada ins­ amassou. Foi o que se passou com a gente quando
tante era com a morte e não com a vida. Era tanta deixamos o sertão na sêca. ·''

. morte de retirante que a impressão que a gente tinha Zé Luiz contou que, depois de vários dias de mar­
era que êles vinham mesmo acompanhando o seu pró­ cha, começaram a encontrar gente nas casas. Nessa
prio entêrro. Eram uns mortos caminhando até a sua zona, a sêca tinha sido menos feroz, e muito matuto se
própria cova. Na beira da estrada tinha mais cruz tinha. agüentado na terra sem precisar emigrar. Co­
plantada do que pé-de-pau vivo .A estrada parecia
. meçou mesmo a aparecer lugarejo com feira na praça,
um caminho direto para o outro mundo. E quando a mas Bempre com soldados de polícia embalados, colo­
gente chegava nas aldeias e nas vilas, também não eram cados nas pontas da feira para evitar que· os retirantes
os vivo s os mais acolhedores. Eram o mortos. " esfomeados chegassem ao extremo de invadir o povoado
Zé Luiz descreveu as vilas mal cuidadas, abando­ e saquear as mercadorias. De matar e de morrer por

nadas, por onde passaram. Vilas onde quase não se um pouco de farinha mofada.
via viva:-alma nas ruas. Vilas fantasmas. Muitas casa s Uma noite, a família se arranchou na beira da
com as portas escancaradas, batendo ao vento. O que estrada, numa casa que tinha uma cacimba ao lado.
83
82 JOSUÉ DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS

- ' ' Foi a cacimba que nos seduziu, comenta Zé Terminad o o café , Z é Luís .se desp ediu
d X a�de u
mais o
br a
·

Luiz, depois e beber a sua ág a fresca e do se lem av


d u cadê ce, e do don o da casa de quem não
p rt a dos fu�d os
o
coragem pra gente se afastar de sua frescura � Chega­ nom e e partiu com a família pela
mos de tardinha, mas ficamos banzando em tôrno da p ara continuar a vi ag e . Mas m o ho�ei? . que i ou
f c
.
cacimba, be b e n o d de
vez quando uma caneca d 'ág u a
em port a viu logo nao ,.
que eles mmIrm m
to
olhando pela
até o sol de�aparecer de t o d o . Foi
quando o dono da lo nge .
e e u
casa se aproximou da gente e of r ce . pousada pra " l que eu j á nã o me agüentava mais
Êle viu o g o
r n �o
-
das pernas, com os pé s r acha dos � os d e d os sanog eampi­
s h o
gente passar a noite aga al a d . " .

Contou qu , alta noite, j á estavam d e itad na co­


e
zinha , q ando ch e g o gente de fo a .
u
os nas cord as da s alp arg atas. Man a com o b :J.X ndo em
u r Ouviram um tro­ nad o pra fren te p ar e cia uma pata
choc a pisa
pel de cavalos e e d p oi s o
dono da ca a conversando s ovo s . O h omem teve pena de nós e noss acham
�u
amável com outro homem. De manhãzinha , ficaram
de nôv o . E ofer eceu para leva r-no
s montado cavaw
conhecendo a visita . Era um
amigo do dono da casa
até Oar uar u. É verda de que os animais dêle �ele raro ur:s
fazendeiro no pé da serra, que vinha descendo com um � cavalinh os magros, exte nua dos . .
.. Mas , con:-o exph­
p
carga de queij o e de r a adu r a para e
ntr gar a um co­e cou também a carga era pequ ena, era cois a le�e das e o
merciante de Oaruaru.
h o�em garantiu que po di am ir mon
tado s no :n eio
.
- ' ' O homem se chamava Xandu nou tra com J o ao Paulo
e era um ho­ carg as - eu num a e Mar ia
�em sim les sem bondades. Gostou logo da gente.
p , na garup a . "

u o
. C:ontou pra gente, enq ant b ebíamos na cozinha uma
xícara de café ralo, que êle
tinha uma fazendinha na
E fo i assim que depo is de ajud ar o homem a faze r
ca­
as carg as, saím os todo s com o rica ços
no lomb o dos
bôca do sertão, m a s como sua f az e nda pé de
ficava no
valos pela e strad a afor a . O hom em p_uxand o a fll. � ,
.
uma serra, nunca sofl·ia de es ro das sêcas. É
o s pê que
nas suas terr as havia uma fonte q
, ue
nunca secara em
Maria no meio e Zé Luís montado no ultimo dos ani­
tôda a su a vida. A fonte era mais.
um
riacho correndo sem­
pre, inverno e verão, irrigando as terras dêle, as s s
ua Joã o Paulo que escuta atento o relato d � pai, re­­
mon
plantações de cana, de milho e de feij ão. 'T udo em pe­ lemb ra bem nítid as as cena s da viagem da fam1hamo �o
quena e scal a , év e rdad e,mas que da va - conforme tada nos cavalos do seu Xan du. Lem
bra- se mes
dizia o homem - para manter em de decên­
condiç·õ es susto que pass ou , quando , ao anoitece r deu um co chilo
eia a sua família. Xandu convi ou a gente ar a quan­
d p e acor clou vend o um a onça enor me mon tada na g �rupa
um o de
do voltasse ao sertão na é oca das chuv s passar na
p a do caval o , já pr e ste s a d evorá l o . Deu- gnt
fazenda dêle e a gente r om t u p orque eu queria ver
p ee pav or. Não era onç a nenhum a. Era
o rab o do caval o
.

a suas nece s si d a de s ,
o milagre dêste l'i ac oh correndo sempre mes­
no sertão empinad o, enquanto o animal fazi
r�
mo que fôsse só n uma s poucas braçadas de te r . ' ' sem int err o J:I� p er sua m archa .
85
84 JO S U É DE C A STR O
HOMENS E C A RA N G U E J O S

Tinham falado tanto em onça naquela ponta de sua carga, a carga e;a sa�ra.da e eu tinha a .obrigação
serra que o pavor se apoderou de João Paulo. .Agora de resistir à tentaçao . Tirei um pouco de palha que
êle relembrava bem o susto que passou e a vergonha recobria os queijos e comecei a chupar essa palha s � ca
de ter gritado de mêdo e a mangação que fizeram mistura da com o cheiro bom do queij o. Pensava assrm,
dêle . . . enxuga r a bôca e enganar a fome, mas a �anada da
- ' ' Escanchado em cima da cangalha, continua fome longe de se acalma� parece que se excitava cada
Zé Luís, com as duas pernas estiradas pra frente de vez mais. Tonto de deseJo, quase sem saber o que es­
cada lado do pescoço do animal, eu me sentia reconfor­ tava fazendo , comecei a pas s ar a mão ·de leve �as b � ­
tado de todos os sofrimentos. Se11tia-me como um lord, las macias dos queij os. De repente, com a mao tre­
passeando a cavalo pelas suas terras. Os outros reti­ mula como quem comete um crime, acabei metendo
os dedos dentro da carne de um dêles e arranquei um
bom pedaço. Meti-o todo na bôca e · comece� a mas­
rantes espiavam a gente passar com uns olhos compri­
dos de inveja de tanta comodidade. ' '
tigar disfarçad o, quase sem mexer com � s b �Iços para
D e cima do cavalo tudo tomava uma feição dife­ que no caso do homem se voltar para tras. ;n ao me . Pe : _
rente : a poeira incomodava menos e o sol j á não pa­ gasse em flagrant e, comendo os seus queiJ OS. DeiX �I
recia tão quente no lombo da gente, prosseguiu Zé Luís.

I
a mão dentro do girau, sempre amolenganAdo os quei­
Só a fome continuava a mesma . Com os solavancos do jos e arrancando de vêz em quando um � ovo peda 9 o.
cavalo pela estrada dura, a barriga roncava como um
porco e era de fazer mêdo seu barulho nas tripas va­ O gôsto do queijo no céu . da b � � a acende� um �petite
zias. Com o calor do sol começou a subir da carga um desadour ado. Quanto mais queiJO eu corr:Ia, mais v,o�­
tade eu tinha de comer. Era como se foss � um vic:o
cheiro forte das mercadoria s. Do lado direito vinha impossível de largar. E enquanto o sol subia e descia
um cheiro bom de queijo que me fazia cócegas nas no céu eu continuava sempre como um rato roendo
ventas, do lado esquerdo um cheiro enjoativo de rapa­ queijo.
dura que me embrulhava o estômago. Era o cheiro de
queijo que me tentava e por isso empinei um pouco o ' ' Os cavalos comiam pedaços de estrada e eu co­
corpo dêste lado. .A fome foi crescendo a minha bar­ mia pedaços de qu eijo, - de vez . em quando o homem
riga vazia .A bôca foi ficando cheia de uma saliva falav�a alto me perguntando coisas. Eu fechava os
olhos e fingia que estava cochiland:_? , com .a ?ôca entu­
.

impertinente. Quanto mais eu cuspia, mais d 'água me


enchia a bôca. Chegava mesmo a escorrer pelos cantos pida de queijo sem poder falar. Ele deBistia de con­
e o cheiro do queijo me embebedan do, me tentando co­ versar. Mas, sempre que o ho:nem tentava �e falar,
mo se fôsse um cheiro forte de mulher. Procurei re­ o remorso crescia dentro de mim. Tentava deixar em
sistir à tentação, pensei na bondade do homem, . no paz o resto dos seus queij os, sentia vergonha de ter
favor que êle estava fazendo a gente. Eu não devia que voltar a olhar o homem de cara e sentia mêdo �e
tocar nos queijos dêle. Se o homem me confiar a a que antes de nos termo s separad o, o h omem descobn s-
HOMENS E 87
86 J O S U J!::
CARANGUEJOS
DE CASTRO

� e que e1l tinha devorado descaradamente os seus quei� var desfeita pra casa, veio uma vonta de violenta de
J OS . E s p e r a v a que êle só d e s s e pela coisa na minha au� reagir. Levantei-me do chão cego para- agarrar o ho,
sência, quando. ch e gáss em o s em Car u aru . É que antes roem pelas güelas, mas, não pude . O homem estav a co­
eu abandonana a sua companhia. Inventaria um berto de razão . Fiqu ei parad o diante dêle coberto de
. pretex�o e ficaria remanchando na estrada até perdê� injúrias. O homem desor ienta do dispa rou pela estra da
l� � e vista. �as, ? omo fôra difícil na véspera s àir da afora , tangendo o.s seus caval os aos grito s. O último
v1zmhança da caCimba, agora também eu sentia como ia com a carga pensa , com um dos lados quase arras ­
era difícil sair de cima dos queijos. " , tando no chão. Nã.o reagi, mas reagi ram as minhas en­
A turma ria, sentindo água na bôca com esta his� tranhas e até o sol se pôr, eu fiquei na beira da es­
trada , debaixo de um pé de juàzeiro, vomitando queij o
·

tória dos queijos. João Paulo de bôca aberta, se ba·· de coalho . "
bava de gôzo com a história que o pai contava. Zé
Luís prosseguia :
- " Con�inuei roendo queijo, mas, j á começava a
sentir . a ba r1ga empazi�a � a. Veio vindo um sono pe�

sado, a cr edito que cochilei de verdade não garanto
' '

mas o fat o e, que de repente me senti j ogado no ar co-


�o se alguém me tivesse empurrado de b aixo � ara
.
Cima e estatelei-me no chão ao lado do cavalo. Olhei a
_carga e via a carga virada do lado das rapaduras. Com­
preendi, então; 9-ue eu tinha comido tanto queij o que
a carga deseqmhbrara. , ·T odo o mundo se assustou com
o barulho da minha queda. Maria soltou um grito e o
homem desceu depressa do cavalo para ver o que tinha
acontecido. 'T entei explicar que tinha dado um co­
chilo mas, não pude falar direito com a bôca ainda ·

entupida de queij o. E, quando o homem levantou a


car � a nos braços para equilibrá-la, êle viu tudo. Viu
o guau das rapaduras pesado como chumbo e o girau
do s quei� os leve como uma pena. Neste momento pas­
sei. a mawr vergonha de minha vida. O homem indig�
nado me chamou na cara de ladrão. Ladrão de queij o.
Maria abriu no chôro, o menino assustado também
abriu a bôca no mundo. Como não sou homem de le-

I

VII

DE COMO SEUMANECA QUASE SE DESFEZ


NA DIARRÉIA DA FOME

Foi uma noite memorável a do batizado de Inácio,


filho de Juvêncio Baraúna. Memorável pelo banho
de cachaça no qual os convidados afogaram suas triste­
zas, memorável pelas histórias contadas por alguns
dêsses convidados. Não foi só a história da descida
de Zé Luiz do sertão que nesta noite ficou registrada
nos anais do mangue. Houve outra história que tam­
bém causou sensação e da qual até hoje se fala. Foi a
história que contou Seu Maneca, do Crato.
Quando Zé Luiz terminou >Sua história, Seu Ma­
neca disse com voz pausada :
- " Você vomitou, de vergonha, tôda sua fome,
Z é Luiz. Pois eu, com licença da palavra, caguei a
minha fome tôda, do sertão até aqui. "
A frase quase que chocou aos ouvintes, habituados
com a seriedade das palavra s do Seu Maneca. Com a
sua atitude sempre reservada, com a sua cara fe­
chada, de lábios finos e de ossos quase que à mostra,
com sua cara de pau . Mas, Seu Maneca, indiferente
à surpresa que causou, continuou sereno, sua história :
- ' ' S ó larguei o sertão quando não pude mais me
agüentar. Comí tôdas as minhas reservas de milho e
de farinha. Depois, virei raizeiro. Durante um mês
90 J O S U :ll: DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 91

inteiro cavei o chão duro e rachado da sêca, em b us c a


rantes, organizados pela Inspetoria das Sêcas. De
,
de raiz de p lanta b r ab a . C omí xi qu e -xi que m acambir a
longe, a gente sentia a presença _dêst� s campo � pelo
e raiz de mucunã, e continuaria comendo se até hoje
ch eir o de podre que o vento trazia deles. Cheuo de
essas plantas . brabas pra não largar minha terra, se carne humana se desfazendo. Cheiro de fome e de
não fôsse a sêde desesperada. Foi a sêde que me botou morte. Eu evitava sempre passar nestes campos onde
pra fora do sertão, mais do que a fome. ' ' a doença faz pousada para tocaiar suas vítimas. Pas­
E S e u 'Maneca passeava os olhos pela sala mal sava ao largo. '
t

iluminada como se procurasse rever, nítidas, �a sua Havia uma atsmofera de suspense no mocambo de
lembrança, as paisagens desoladas do sertão curtido Juvêncio. As garrafas de cachaça quietas na mesa da
pela sêde. Como se estivesse vendo a s ê d e da terra, das salinha, os copos descansando no chão, ao lado de cada'
pedras, das árvores, dos bichos e dos homens. Tudo convidado. Ninguém bebia senão as palavras de Seu
recoberto de uma poeira sêca, de uma espécie de sêde Maneca :
em p ó . Passalido a língua sôbre os lábios secos, S eu
Maneca, prosseguiu, sem pressa de acabar a história : - ' ' Foi como j á disse, uma viagem de deses­
pêro. Vi e o �vi coisas de cortar o coraç�o. Encon�r �i
.- . . .-
. . . ' ' Quando sentí que a sê de ia mesmo arrancar com um grupo de retirantes de uma vlla do Sendo,
o meu couro, I"esolvi partir. Descí do C r at o com um que me contaram terem sido expulsos de casa pelos
magote de g ent e na direção do S. Francisco pra pegar morcegos e pelas serpentes. Atazanados pela f ome ,

um navio-gaiola que nos tr oux ess e até o brejo. Foi não h avend o mais gado para sugar o s angu e, os mor­
uma viagem de desesperados. Os retirantes já às por-
cegos atacavam as próprias � essoas, chu��ndo-lhes o
- tas da mo rte , . com as gargantas apertadas de sêde, en­ sangue durante o sono. 'Tambem as cascave1s, assanha­
tu p i d a s da poe ir a das estradas, as tripas roídas pelas das pela fome e pel o calor, vinham buscar suas prêsas
comidas brabas . Mas o que havia de pior era a caga­ dentro de casa, armando seus botes debaixo das camas
neira da f om e · A diarréia daquele mundo de gente :
.
e das mesas.
todos se cag a n do p ela estrada, sem nenhum acanha­
mento. Abaixando-se na beira do caminho, cont o r­
Sentindo brilhar certa dúvida no olhar de algum
cendo-se de cólicas. Alguns, na agonia, ficavam ali
ouvinte o sertanejo, ferido nos seus brios, mudou o
mesmo rolando o corpo convulso em cima da sua bosta.
tom da �oz, falando mais grosso e mais depressa :
A maioria reagia e prosseguia viagem. No ar estor­ - " Se não querem acreditar, não acreditem, mas
ri c a d o do sertão, a merda secava d e pr e ss a e virava garanto que vi, com os meus próprios olhos, as mar­
poeira entrando pelas ventas da gente e aumentando cas das mordidas dos morcegos na pele d o s h om ens que
.

a sêde. me contaram a história. E, com ê. s tes mesmos olp.os,


·

Aqui, a colá, a g e nt e encontrava um amontoado


eu vi as lágrimas correndo no rosto de uma mulher
de povo, eram os campos de concentração dos reti- aue tinha pe r di d o dois filhos, mordidos dentro de casa
p or uma casca_yel. Eram dois gêmeos que j á estavam
93
92
HOMENS E CARANGUEJOS
JOSUÉ DE CASTRO

andando, quando a sêca chegou. JVIas, com a fome bra­ fila foi se desfazendo por si. Os homens foram se
ba � voltaram a engatinhar, e foi engatinhando pelo aliviando alí mesmo, nas bordas do convés, agarrados
chao da casa que a cobra pegou os dois. Foi ouvindo às barras de ferro do navio. Foi o que também fiz.
histórias dêsse gênero e contorcendo-me de cólica o A viagem inteira havia gente acocorada no convés
tempo todo, que alcancei as margens do S . Francisco que virou um verdadeiro chiqueiro . Ninguém aguenta­
onde tomei um vapor chamado " Alagoas. " Lembro-me va comer com as tripas naquele estado, roídas pelas
bem porque chegando j unto do cais vi o nome escrito plantas brabas. Nem parecia gente viajando. Parecia
com letras brancas no casco marrom do navio com a porco s fuçando na sujeira. Quando abandonei o navio
pintura tôda descascada como se tivesse também so­ em Penedo, olhei pra popa do barco pra gravar bem
frido os horrores da sêca. Estávamos em Pirapora . . . ' ' o nome dêle na memória. O nome estava ilegível. As
letras, tôdas borradas, recobertas pela suj eira que ti­
,

- " Pirapora, Seu Maneca, é a terra do meu nha escorrido do convés pelo casco abaixo.
compadre Juvenal, dono da olaria do Imbolé ", co­ O pessoal cuspia no chão de mosaico com noj o das
mentou excitado o Juvêncio. palavras do Seu Maneca : Cada um agarrou o seu
- . " Sabia não ; Juvenal é de lá� Deve ser terra copo de cachaça, mas êle prosseguiu indiferente à sur­
b �a. Não te�ho o :que dizer dela. Pensei mesmo que prêsa e ao nojo dos ouvintes :
P1rapora sena o fim do meu martírio. Quando tomei - " Não acabou não, tem mais miséria. "
o. navio, arme � J:?inha rêde no convés, entupido de re­
Seu Maneca também bebeu mais um gole de su a
tirantes, e arnei nela o corpo cansado, ,s enti-me outro. cachaça pra limpar a garganta e prosseguiu sua his­
Quando o barco começou a navegar de rio abaixo, tória :
volt�u-me a vontade de viver. Mas foi uma ilusão pas­ - ' ' Minha intenção era · ficar mesmo no brej o
sageira. T'o cou o sino de bordo, chamando todo mun­ para esperar que um dia as chuvas voltassem, a cair
do pra j antar. E aquela gente faminta começou a
comer com uma fome de lobo. Comia com a bôca e com no sertão, e eu também voltasse para a minha terra.
os olhos. Mas poucos terminaram a refeição. No meio Não tinha intenção de abondoná-la. JVIas não vi geito
da comida começaram a correr às pressas na direç·ão de me acomodar na zona de açúcar para esperar que a ·

da P?P� �o navio. Era uma �;bandada geral. Pensei, sêca abrandasse. Fui chegando nessa zona e fui logo
a pnnCipiO, que era o tal enJoo de mar e que iam de­ me assustando. Descia uma serra, quando vi embaixo,
volver pela bôca a comida que o estômago rej eitava. no vale, um imenso mar de verde. Pensei que já es­
�as, não era não. Compreendi o que era, quando sen­ tava na costa e que, aquilo tudo era água. Mas não
ti um arrocho de cólicas nas tripas, violento como nun­
era nã,o. Era um mar de cana. Era cana que não aca­
ca: Arr::nquei também da mesa, à procura duma la­ bava mais, até perder de vista. Nunca tinha visto
trln� . Ficava;n na pôpa d? navio. Mas só havia quatro pl ant a ç ão tão descomunal. Assustei-me. No meio da­
latrmas e a fila dos candidatos era enorme. Então, a quele mar de cana havia uma grande casa branca bem
94 J O S U :f: DE CASTRO
HOMENS E C A RA N G U E J O S 95

ao l ado da usina, com um bueiro mais alto do qu e a ' ' Pois então você me d á razão, Zé Luiz, das
tôr r e da igrej a do Carmo . Achei uma beleza de lugar.
. ·_

precauções que tomei, prosseguiu S eu Maneca. Por


H avia uma l agoa g r an de em frente d a casa e um sítio
segurança distanciei-me um pouco da casa mal a f a­
com fruteiras ao lado. Tudo limpo, brilhando ao sol. mada e me arranchei debaixo de uma umburana de
Ofereci-me para trabalhar ali, mas me disseram que cheir o, numa curva da estrada. F oi quando dois cabo­
nem p ensa s se nisto. O dono da usina não queria nem cl os que traziam alguém numa rede pararam para des­
ouvir falar em retirante do sertão. Tinha horror dê­ cansar na sombr a da mesma uburana, que era mesmo
les, porque uma vez um grupo de retirantes f�.tminto s
convidativa. E f oi a conversa que tive com estes dois
tinha invadido o armazém das mercadorias . Agora êle
moços que me fêz tomar h o rr or do brej o e desembestar
punha dois cabras armados na porta do armazém, para pela estrada afora até chegar aqui no Recife . ' '
receberem os retirantes à bala. Era o que diziam os
- ' ' E qual foi a sua conversa com os moços, S eu
moradores . E diziam coisas piores. Diziam que aquela ,
Maneca � ' ., perguntou intrigado o próprio Z é Luiz.
água tão calma e tão verde da lagoa continha, no seu
fundo, as ossadas de muitos retirantes que o homem - " Vou repetir pra vocês a conversa que tive,
tinha mandado sangrar para se vingar de terem co­ tim-tim por tim-tim, e vocês me dirão s e n ã o tive razão
mido o seu feij ão e a sua farinha sem pagar. D evia de abandonar o brej o . Perguntei p ara os moços : " Que
ser invenção dessa gente, tanta barbaridade. Devia ser
levam aí embrulhado nesta rêde, irmãos � ", e o s moços
história para me assustar e para que eu não ficasse r espon der am : ·

na quela terra. " " Levamos um morto7 irmã o . "


- " História nada, S eu Maneca, ga r anto-lh e que ' ' De onde vem êste morto, irmãos � ' ', p er gunte i .
é a pura verdade, atalhou o Zé Luiz. Conheço bem o - " Vem de bem longe. Em vida, vivia nos om-
lugar e o dono do lugar de que o senhor está falando . bro s da .s erra e agora, defunto, há horas que viaj a pra
É o Coronel Australiano, da Usina Estrêla. O homem sua última morada no fundo do vale. Mas vai sem
é mesmo uma fera. A sua fama de perverso se estende pressa, sem impaciência, como em vida, irmão . ' '
por todo o sul do Estado. Imaginem que, até hoj e , - ' ' E de que morreu êle � F oi de morte morri da
êle c ons erv a p endurados n a parede d a sala de paga­ ou de morte matada � ' '
mento s, dois grandes chifre s de boi, com as pontas de - " Difícil de responder, irmão. P ar e c e mais ter
metaL O homem diz que é para dar cristel de urti­ sido morte mata da. ' '
ga e p imenta em cabra safado, e é mesmo . Conheci - " C om que m ataram o homem� Com f ac a ou
dois caboclos que trabalhavam pra êle, mas que um com bala, irmãos � '' ' p ergunt ei.
dia se meteram a valente e foram reclamar do homem -· ' ' N em de faca nem de b al a , foi um crime bem
um aumento de salário . Sairam da Usina Estrêla com b
mais em feito. Crime que não deixa marca. ' '
o cu em brasa, com o cristel de pime nt a e .s ebo quente - " De que mataram então êste morto � " inda guei,
que receberam no r ab o . ' ' e ê les, bem calmos, resp on deram :
96 JOSUÊ DE CASTRO

" Êste morto foi matado de fome, i;m ão. "


- ' ' Chega ou não para assustar um cristão � ' ' per­
guntou Seu Maneca, terminando seu relato macabro
sentado no piso de ladrilho do mocambo de Juvêncio :
Os companheiros acharam que Seu Maneca era VIII
meio poeta, mas não riram da história dêle. E não era
mesmo pra rir a história de Seu Maneca. DE COMO OS MORADORES DA ALDEIA TEI­
MOSA CONSTRUIRAJYI NA MARRA A SUA
CIDADE

Quando Zé Luiz e sua família vieram morar no


Recife, ainda não existia a Aldeia Teimosa. ·T udo o
que então havia naquela área, era uma grande coroa de
lôdo que o rio nunca cobria, nem mesmo nas suas marés ­
de enchente e sôbre a qual quatro ou cinco moradores
tinham fincado os seus mocambos no meio da gar­
ranchada dos mangues. Colocados à grande distância
uns dos outros, isolados, perdidos naquele enorme la­
tifúndio de lama. Partilhavam o latifúndio os mo­
cambos de Cosme, da negra Idalina, de Mateus, o Ver­
melho e de Chico, o Leproso, que fôra o primeiro
morador daqueles ermos.
Chico tinha se mudado para alí, fu gin do da. socie­
dade dos homens, para se esconder e para defender a
sua liberdade ameaçada pela caridade pública orga­
nizada. Chico apanhara lepra e sabia que bastava
olhar para o seu rosto com o nariz deformado e enor­
mes orelhas caídas, para se reconhecer o seu apavo­
rante mal. Quando os médicos quiseram interná-lo no
hospital, êle se negou terminantemente, . pouco dispos­
to a trocar a sua liberdade por uma remota cura em
que não acreditava. E quando as visita d oras do Servi-
99
98
HOMENS E CARANGUEJOS
JOSUÉ D E CASTRO

ço de Higiene começaram a procurá-lo para insistir raízes para que viesse a desaparecer a vegetação brab a
no seu internamento, êle desapareceu de vez de Ambo­ dos mocambos. Nem êle, nem seus auxiliares se davam
lê, onde até então morava, e veio ocultar-se na lama conta que aquela vegetação dos mocamb o s , que b rotava
- . como uma flor de lôdo na vasa dos mangues, tinha
dos mangues de Afogados.
raízes que se alongavam pelo solo do país inteiro e pelo
� aquele tempo, não havia ainda um poder público sub-sol o de sua s e strutura s sociais arcaicas. Produto
orgamzado para defender êste tipo de latifúndio e, do feudalismo agrário ·que oprimia e explo r ava, há sé­
porisso, cedo foi êle invadido por outros colonos vin­
' culos, tôda aquela pobre gente que acabava, um dia,
dos de terras distantes em busca de um pedaço· de chão
pre ferindo o fedor dos mangues ao fedor das malocas
d e s o cupado onde deitar raízes. Eram retirantes de
dos engenhos, das novas senzalas fracionada s em tôr­
outras sêcas, tangidos pelo vento de fogo do sertão, co­
no das novas casas-grandes.
mo uni monturo huumano. Eram emigrantes expulsos
do outro latifúndio - o do açúcar - êste bem mais Da campanha do governador fazia parte, não só
protegido pela lei, onde não podia haver invasões de a destruição dos mocambos colocados às portas da ci­
terras. O que havia era o r egime do arrôxo, do tra­ dade ou ao lado de suas principais vias de acesso mas
b �lh � esfalfante no eito da cana, sem tempo nem per­ principali.nente, a interdição de que se constr ísseu' �
missao p ara se plantar um só pé de milho ou de feij ão novos mocambos. S ó se permitia a construção de casas
para aJ udar a matar a fome da família. E ' assim ' o de telhas como aquelas que estavam construindo os
I a+..,1' f un
, d 10
' d o açucar
, secretava sempre seus excessos Institutos de Previdência e onde iriam morar os ope­
de gente que o latifúndio de lama absorvia como um rários, amparados pela lei. Mas, esquecia também o
mata-borrão. E a cidade do Recife in chava, embebida governador, que o s moradores dos mocambos não eram
daquela tinta grossa da miséria formando sua crosta operários . Eram, em sua esmagadora maioria, deso­
de mocamb os. A metrópole pernambucana ia virando cupados que viviam de expedientes ou biscates ou ' em
uma mocambópolis. E foi p orisso, na defesa de sua es­ última entrância da pesca de caranguej os, por não
tética ameaçada, que o governador do Estado deu iní­ encontrarem outro gênero de trabalho. É que só o
cio a uma grande campanha contra os mocambos. C on­ mangue e o mocambo estavam à altura de suas posses.
tra esta lepra urbana que ameaçava recobrir tôda a No mangue, o terreno não é de ninguém. É ' da maré.
beleza se:1horial da capital do Nordeste tôda a casta e Quando ela enche, se avoluma e se estira, alaga a terra

fina nobreza dos seus antigos solares co êstes sórdidos tôda, mas quando ela baixa e se encolhe, deixa desco­
borrões de mis éria. Mas, nesta campanha contra os bertos o s calombos mais altos. Nestes calombos de
mocambos, o governador não procurou analisar onde terra levantam os retirantes o s �eus mocambos com as
se assentavam as verdadeiras raízes do mal. Pensava paredes de varas de mangue trançada s e de Iam� amas­
êle que estas raízes estavam fincadas alí mesmo na sada. A cobertura de palha de .coqueiro, de capim sê­
c o e de out:r,os materiais que o m on tu r o fornece . Tudo
lama do s mangues e que b astaria arrebentar estas
100 J O S U il: DE C A S T R O H O M E N S E CA R A N GUE J O S 101
c,

de graça, encontrado alí mesmo numa bruta camarada­ são os mangues, iriam levantar o lombo dessas terras,
gem com a natureza. O mangue é um camaradão. For­ engordar as suas carnes, d�r-lhes ossos c ?m a s .suas
nece tudo : casa e comida, mocambo e caranguejo. Não raízes rugosas e transforma-l as em verdeJ antes Ilhas
era, pois, fácil para esta gente de economia tão res­ firmemente ancoradas no meio das águas fecundantes.
trita, romper assim com o mangue só para cumprir as Poriss o se faziam depressa donos dessas terras, para
instruções do govêrno. O que era necessário era burlar explorá-las exigindo, no futuro, do habitante do man­
estas instruções. gue, um es � orchante aluguel por aquêle pedaço de la­
.A. primeira coisa fôra parar de construir mo­ ma onde êle tinha plantado seu mocambo. E se o
cambos nas vizinhanças da cidade e orientar a sua morador podia pagar, que saísse dessa lama que o
plantaçã o para recantos mais remotos como êste onde mangue j á tinha secado e fôsse pra outra zona de . la­
já moravam Zé Luiz, Cosme e Chico. E, assim, de re­ ma mais mole viver dentro d'água com os carangueJ OS.
pente, aquela área quase deserta recobriu-se de tanto Muitos dêsses atravessadores tinham sido pobres dia­
mocambo que atraiu a atenção da polícia. E a polícia bos bundas sujas, nascidos do nada, alguns da pró­
tinha que agir com a maior energia porque tinha rece­ pri� lama dos mangues, mas que tinham levantado a .
bido instruções formais das autoridades superiores. cabeça, fazendo seus negócios fedorentos, metidos na
Tinha que limpar aquela terra da lepra dos mocambos. lama da política. E, agora, transformado s . em homens
Provinham essas instruções do fato de terem apa­ importantes, não tinham qualquer escrúpulo em as�
recido os donos das terras dos mangues, que antes não fixiar em envenenar a vida dos miseráveis, em tor­
eram de ninguém. Eram da maré. Êstes novos donos cer-lh� s o pescoço com a mesma indiferença com que
eram, por coincidência, senhores muito importantes e se torce o pescoço dos galos moribundos nas brigas de
ligados à situação. Verdadeiros sustentáculos do go­ galo, para ajudá-los a morrer.
vêrno local, que os apoiava incondicionalmente, mas .Apenas, para poupar seus nervos fracos, encar­
do qual exigiam tôda vigilância na defesa de suas ter­ regava:m os policiais de torcerem o pescoço dos mora­
ras, registradas com grandes subterrâneos no serviço dores do mangue, para ajudá-los a morrer de fome.
de terras da marinha . Êsses atravessadores registra­ V'ieram, então, os fiscais da lei, e interditaram que se
vam, muitas vêzes, terras inexistentes, esperando que construíssem novos mocambos. Os fiscais fincavam
um dia a maré as parisse. Outros registravam peque­ marcos de madeira no chão e avisavam que, daquela
nas ilhas já paridas pela maré, mas ainda nuas, sem marca para diante, ninguém podia mais c onstruir. Fa­
a vestimenta dos mangues. Registravam pequenas co­
ziam ameaças terríveis contra o povo. Que se o povo
roas de lôdo, espécie de feto de ilhas com o seu corpo dali teimasse em levantar novos mocambos, tudo seria
mole e liso, ainda enlambusado da gosma nutriente do derrubado. O bairro inteiro seria incendiado. Mas os
rio. É que sabiam êsses atravessadores que as coroas mocambos continuaram a prosperar e, foi por isto
de lôdo iam crescer, que êstes criadore s de terras que mesmo, que o bairro tomou o nome de Aldeia ·Teimosa.
103
102
HOMENS E CARANGUEJOS '
J O S U J!: DE CASTRO

m?bilizou os Institutos de P revidência e lançou um


Porque teimava em existir e
em crescer contra a von­
plano de construções populares : de casas baratas para
tade e contra as ordens do govêrno . No peito e na ·

os pobres.
marra, como diziam em sua ling u ag em de gíria. Mas,
tôda esta l uta foi travada com tamanha astúcia, que " M as tudo isto, afirmava Cosme, era só para in­
merece ser contada em seus detalhes. ,..
gles ver. Não passava de um plano de fachada. Cons ­
C omeçàram o s moradores por consultar Cosme truiriam uma meia dúzia de casas na beira d a estrada
que dá acesso à ci d ade, principalmente na estrada que
que j á se tinha revelado neste tempo um conselheiro .
comumca com o aeroporto para que os visitantes de
bem avisado em suas opiniões. Cosme explicou ao
fora ficassem impressionados com as grandes obras do
grupo que, a seu ver, esta campanha contra o mo­
govêrno e, o resto ficaria no papel ; no papel azul dos
cambo era coisa passageira. Não passava de uma ma­
planos d�s . engenheiros e no p ap el de j ornal da im­
nobra p ol íti c a do govêrno para ganhar as eleições no
prensa oficial. A campanha contra os mocambos s ó iria
ano seguinte . Era pura demagogia. E era verdade que
durar mesmo até às eleições, depois ficaria tudo como
o govêrno, neste tempo ; andava muito por baixo muito
necessitado de melhorar o seu prestígio. C o � a ca­
antes, como tinha sido sempre : os p obres ficariam
e � quecidos nos seus mocamb o s e o nôvo govêrno iria
restia da vida, a decepç·ão era geral. M esmo os ricos
aJ udar aos seus amigos a enriquecer ainda mais. Não
não andavam muito satisfeitos com o governador por­
havia tempo para outra coisa. "
que os seus negócios não tinham prosperado muito com
·

seu govêrno . O comércio andava fraco . O preço do Esta expli ? ação de Cosme não foi aceita por una­
açúcar e do algodão não e stava dando grande mar­
. .
nrmidade. � a-yra entre os presentes um sertanej o, cha­
. mado J anuarw, qu e trabalhava para um homem de
gem de lucro. O p ovo mesmo, êste tinha horror ao go ­
vêrno, principalmente depois das barbaridades come­ prestígio d? � o vê rn o , o s ub - deleg a do d e Ar e ia s, que
tidas pelo chefe de polícia quando os oper ários de uma com certa timidez se aventurara a afirmar que talvez o
fábrica de tecidos tinham feito uma greve para g a ­ govêrno não fôsse tão ruim assim, que talvez . suas in­
nharem um pouco mais. E o que ganharam foi muito tenções fôssem até boas e que talvez em breve estives­
sem todos morando nas novas casas que o gov.êrno es­
pau no lombo e as grades da cadeia para os seus diri.,
gente s de classe. Para agravar a posição do govêrno ,
a
t v a construindo no caminho do aeroporto . Mas Cosme
der a uma gargalhada diante da ingenuidade do matuto
havia ainda a gritaria da oposição , que j á começara a
que acreditava em conversa para boi dormir. As casas
sua campanha eleitoral protestando em tudo o que era
só iriam mesmo servir para encher .o s bolsos dos cons­
comício contra a carestia da vida e contra as habita­
trutores do gov ê rno e, 'prontas, iriam aloj a r �penas
ções miseráveis do Recife. Fôra diante destas circuns­
tâncias que o governador maquinara uma campanha
o� cab� s eleitorais do grupo . Não 'eram casas p ara o
que pudesse levantar o prestígio do govêrno. Falou o

biC <: deles, m? ra ores de m� cambo, sem presti gio, sem
gove rnad o r com os r ep res ent an te s do govêrno federal,
encosto na n�aqmna do governo . Cosme j á estava acos-
104 J OS U t DE C AS T R O HO M E NS E C A R A N G U E J OS 105

tumado com estas campanhas para atrair eleitores nas era preciso, era se defenderem com unhas e dentes, para
vésperas das eleições. Era macaco velho, conhecedor que não derrubassem os mocambos, deixando-os na
destas manobras. E, mesmo que a campanha :fôsse feita rua, ao Deus dará, ao sol e à chuva. Era urgente tra­
com boas intenções, como afirmava J anuário cedo a çar um plano para evitar esta calamidade, e êles confia­
coisa tomaria outro rumo. Os sabidos viri am corrom­
'
ram esta tarefa à sabedoria de Cosme.
per as boas intenções. Cosme lembrava ao grupo o que Cosme aceitou o comando. Da sua cama de para­
acontecera no govêrno do Presidente Epitácio Pessoa. lítico .êle dirigiu tôda a batalha da Aldeia Teimosa.
Era um homem do Nordeste. Nascido numa cidade da Traçou um plano completo da batalha, o qual realiza d o
Paraíba, perto da cidade onde Cosme nascera o à risca, deu-lhe uma vitória total contra as fôrças do
Presidente Epitácio era um homem bem intencion�do. govêrno e da polícia.
Queria redimir o Nordeste do :flagelo das sêcas. Cha­ Estabeleceu-se, desde logo, que só se construiriam
mou os melhore s engenheiros do país e :fêz um grande novos barracos, um dia por semana, ou melhor numa
plano de obras de construção de açudes e de estradas : só noite, porque todos os trabalhos de construção te-
.I as Obras Contra as Sêcas. Comprou máquinas em
penca no estrangeiro para executar estas obras e con­
' riam que começar ao anoitecer e terminar nesta mesma
noite, antes do dia amanhecer. E assim foi feito. ·
tratou batalhões de gente. E o movimento começou no Durante a semana inteira, todos os moradores associa­
Nordeste. Mas cedo começaram as dificuldade s . O vam os seus esforços para juntar os materiais de cons­
grosso do dinheiro que o Govêrno Federal mandava,
trução. Uns traziam táboas velhas da cidade, outros
caía no bolso dos dono s da política e as obras não avan­ .velhas fôlhas de zinco e latas vazias. Havia os que se
çavam. E quando depois de um fracasso danado e de
,
encarregavam de cortar as varas dos mangues e os que
u;n. tre�endo escâr:dalo que a oposição explorou, Epi­ colhiam :fôlha de coqueiro, subindo pelos troncos das
tacw deiXou o Governo, as Obras Contra as Sêcas caí­ árvores à beira das praias, como se fôssem uns ga­
ram no esquecimento. Tôdas aquelas máquinas que tos do mato. E quando havia sinal de que os vigias
deveriam cav�r P? ços, cacimbas e açudes para dar água dos coqueirais, armados de fusis, se ap ro ximavam da
.
ao Nordeste mteiTo :ficaram zona, os cortadores de palha voavam das copas dos
abandonadas no meio do coqueiros, com duas grandes : ôlhas, uma debaixo de ·
f
campo, desfazendo- se como carcaça de boi morto du­ cada braço, e aterrissavam na areia fôfa da praia co­
rante a sêca. mo grandes pássaros marinhos. Todo aquele material
Afora Januário, todo o mundo concordou com as -
'
fôlhas de coqueiros, varas de mangues, barro amas­
opiniões de Cosme. Na verdade, mesmo o Januário sado, caixas de querozene, fôlhas de zinco - tudo era ·
ficou de acôrdo, pois não insistiu mais em de fender o amontoado em certos lugares estratégicos, escondidos
govêrno e o seu patrão. A história era mesmo aquela debaixo das moitas dos mangues.
que Oosme explicava . Não havia, para êles nenhuma No dia da construção, aume ntava a tensão nervo­
esper ança de sairem do mangue e do moca�bo . O que sa em todo o bairro . Ficavam todos de orelha em pé,
109 J O S U ll: DE CASTRO HOMENS E C A RA N G U E J O S 107

atentos, impacientes que a noite chegasse para darem Bumba ! I Faz a mesura ! I Eh ! Bumba / Espalha a
mício ao trabalho. E, distribuíam-se as tarefas. Os que gente ! I Eh ! Bumba ! I . ' ' E cada vez que o bombo res­
deviam trabalhar na construção e o.s que deviam parti­ soava no ar, os construtores estavam cobertos pelo
cipar do espetáculo para desviar a atenção das autori­ barulho da festa para realizar seu trabalho.
dades. Ao cair da noite, começava numa extremidade
do bairro, bem longe do ponto onde iam ser construi­ Começavam por arrancar os marcos fixados pelos
dos novos' barracos, os preparativos para uma grande fiscais e plantá-los mais adiant e, criando o espaço le­
noitada de diversão : pastoril, maracatú ou bumba­ gal para as construções; Depois, começavam a bater
-meu-boi. Era, quase sempre, bumba-meu-bói, o que as estacas na lama, pregar os pregos nas varas, bater
mais entusiasmava a todos embora o maracatú fizesse a lama do engradado de varas. Era como se trabalhas­
mais barulho podendo abafar, esconder melhor o ba­
sem com veludo, sem fazer barulho, porque o barulho
rulho das construções. Quando o terreno ficava cer­ do bumba-meu-boi cobria de longe o barulho da cons­
cado dos moradores, principalmente das mulheres, o trução. Se, por acaso, aparecia por perto um fiscal da
boi aparecia e cantava : lei, êle era enquadrado com boas conversas no terreiro
e o boi lhe fazia as maiores reverências e mesuras. Mas,

" Vem meu boi lavrador se êle era exagerado no cumprimento dos seus deveres
Vem fazer bravuras e queria visitar mesmo o bairro todo . para ver se não

Vem dançar bonito estariam levantando algum barraco mesmo de noite


Vem fazer mesuras . em qualquer recanto mais remoto, então saiam em cena
duas figuras bem instruídas de suas tarefas. Eram
Vem dançar meu boi duas cabrochas bem parecidas, operárias da Fábrica
Aqui no terreiro de Cigarros Caxias, as quais sorriam para a autoridade
Que o dono da casa insistindo em dar um passeio com elas para os lado �
Tem muit o dinheiro. ' ' da cidade, que era o lado oposto ao da construção. A
autoridade, em geral, caía na esparrela, e saía por alí
E o boi - que era apenas um bom dançarino, quase afora a dizer às duas cabrochas do serviço de contra­
sempre o Sebastião, com a cabeça coberta por uma -espionagem do Cosme.
armação de papelão com grandes chifres - dançava Não arranjavam grande coisa nem com a Clotilde
e pulava e fazia roda e cumprimentava conforme as que era a mais velha, nem com a Zita a mais nova.
ordens do vaqueiro. E, de vez em quando, sentava os Tôdas duas sabiam se defender bem das investidas
chifres na bunda de um dos presentes, sempre naquele dêstes homens do poder e de suas audaciosas propostas.
com quem Sebastião não simpatizava muito. E o fol­ Ficavam sempre juntas negaciando, dando corda, acen­
guedo continuava : " Alô meu boi ! ", e o côro, então, dendo o desejo dos homens, mas tirando sempre o cor­
respondia : ' ' Eh ! Bumba ! I Dança com geito ! I Eh ! po fora na l!_ora do apêrto. Dando, quando muito, a
- fic:J

108 J O S U ll: DE C A S T RO
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boca e o bico do peito, ma s defendendo o resto com


obstinação. Dando o suficiente para desviar o pensa­
mento dos homens da sua tarefa de vigilantes da lei .
E até de manhã a construção prosseguia. Quando IX
a madrugada ia raiando, a turma da construção tinha
terminado a s u a tarefa. Tinha preenchi do o espaço va­ DE COMO JO Ã O PAULO FICOU CONHECENDO
zio entre a linha das casas e os novos marcos fincados M ELH O R O S SE US VIZINHO S ATRAVÊ S D O
no chão. Escondiam, às pressas, os restos dos mate ­
E SPELHINH O DE C O SME
riais para as obras da próxima semana, t om avam to­
dos o seu banho de rio, e iam para casa.
Logo que o sol nascia, chegavam novos represen­ A Aldeia Teimosa crescia. Os mocambos se es­
tantes da lei. Havia sempre um mais desconfiado que praiavam agora em tôdas a s direções, até à beira
notava qualquer coisa - que os mocambos da frente d ' água. Parecia mesmo um amontoado de cumbu �as
tinham a fachada, mudada que o barro estava muito negras que a maré tivesse trazido na correnteza e J o­
fresco - mas os marcos alí estavam, fincado s no chão gado na ressaca alí em cima dos mangues. Por suas
como símbolo indiscutível de que as ordens tinham ruas enoveladas, circulava um mundo de gente que
sido obedecidas e as autoridades respeitadas. João Paulo não conhecia. O que era estranho, no en­
- " A lei respeita-se mas não se cumpre ", dizia tanto era que Cosme conhecia a quase todos. Não que
Cosme satisfeito. E a Aldeia Teimosa cres cia ! os ti�esse visto de perto, que tivesse falado com êles.
Não. Conhecia-os à distância. Conhecia dêles as ima­
gens que o seu espelho lhe fornecia quando passavam
pela estrada. Cada i.magem C_?mple!ada, �o en_tanto,
por informações preCI� as, que ele obtmha nmguem s �­
be por que caminhos. E verdade q ue os. moradores mais
antigos o visitavam com freqüência. V1nham conversar
com Cosme todos os domingos e dias de folga e lhe
informavam das transformações que a Aldeia sofria.
Das caras novas chegadas. Dos acontecimentos de
maior relêvo daquela s o cie d a d e . Dos nascimentos e das
mortes ..
Fôra por intermédio de Cosme que João Paulo fi­
cara conhecendo de mais perto tôda esta �ente, ou pelo
110 JOSU€ DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 111

menos aquêles que tinham uma história mais interes­ lhe tantas complicações n a vida. 'T rabalhava êle num.a
<?-
sante, capaz de merecer um rel�to ci�cunstan ado por fábrica de p apel em J aboa tão, quando e stas compli­
parte de seu amigo. Q uando, a tardmha, J oao P aulo caç õ es começaram.
voltava d9 trabalho para casa, demorava-se quase sem­
Atravessava-se, então, uma época de grande i�­
pre no mocambo de Cosme até à hora do j antar e, en­

quanto palestravam, o paralí ico estava sempre a pes­
_
quietação social. Jaboatão era o grande ?entro de agi­
tação operária do Nordeste. Era o maior centro de
car imagens com o seu espelhmho de mao . Quando as
agitação comunista do país. As classes abastadas nem
imagens pescadas interessavam, êle chamava a. atenção
de João Paulo . Foi nestas pescarias de fim de tarde chamavam mais a cidade de J a boa tão, a chamavam de
que João Paulo ficou conhecendo o drama de dois ou­ Moscouzinho - a pequena Moscou - tão gr �nde lhe�
parecia a influência dos comuunistas nesta cidade. E
tros personagens que, como C hico, tamb ém tinham se
mudado .p ara a zona dos mangues para se esconder �m verdade que Mateus estava alheio a tudo isto, cuidando
dentro dos seus barracos escuros como os carangueJ os apenas do seu trabalho na fábrica mas, por fôrça d�s
se escondem d entro dos seus buracos. Ê stes persona­ circunstâncias, foi envolvido na luta. N a luta da p ol i­
gens eram : Ma teus o Vermelho e a negra Idalina . cia alertada e temerosa contra a ação dos agitadores
que ameaçavam a segurança nacional .
M ateus era o tipo do tranqüilo, do descansado.
· Nas indagações que a p olícia andou fazendo nos
Passava a vida sentado à p orta do seu mocambo, te­
cendo r.ê des de pesca. No entanto, fôra para a Aldeia meios operários, de vez em quando as autoridades ou­
Teimosa, fugindo apavorado da polícia. Não que suas viam referências ao nome de Mateus, o Vermelho.
mãos tivessem cometido qualquer crime do qual êle ti.:. Talvez nem nesmo tenha havido referência direta do
vesse lembrança ou remorso . S eu único crime fôra seu nome à p olícia e a causa de tudo fôsse o típo de
saudação que os outros operários lhe fazian:: na po �ta
mesmo o de ter nascido com o s cabelos de uma côr dife­
rente da dos outros habitante s de sua terra. Mateus da fábrica onde os secretas estavam sempre a espreita.
nascera com os cabelos côr de fogo. - " Bo m dia ' Vermelho " , saudavam-lhe alguns dos

companheiro s e , como Mateus entrava e sa a da fá­
.
Nunca conhecera seus pais mas corriam boatos in­ brica de chapéu na cabeça, cobrindo a cabeleira rmva,
sisúmtes de que êle era filho de um marinheiro alemão " os secretas tomaram aquêle vermelho num outro sen­
que freqüentara uma rua de mulheres da vida numa tido e passaram a atribuir a Mateus as mais terríveis
das p aradas do seu navio no p ôrto do Recife. Mateus maquinações . Vermelho foi, assim, chamado à Dele­
não discutia o assunto. M;as também não protestava gacia de O rdem P olítica e Social para confessar suas
nem se zangava qu e por causa dos seus cabelos de fo­ ligar,ões secretas com os outros vermelhos. E como as
go o chamassem desde menino, o Vermelho. Tinha até �
neg sse, afirmando ignorar tudo do assunto, foi con­
seu orgulho dêste apelido e estav:a longe de supor 9-ue siderado ainda mais perigoso, mais vermelho do que
.
a côr insólità dos . seus cabelos iriam mai s tarde cnar- parecera à primeira vista. E, daí em di ante sua vi da
1 12 J O S U lt DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 113

Zefinha. Idalina sempre fôra uma mulher direita,


·�

virou um inferno. Não havia semana em que a polícia


não viesse buscá-lo em casa. Se explodia uma caldeira cumpridora dos seus deveres. Passara suas necessi­
numa fábrica, se baleavam, numa casa de " rendez­ dades, é verdade, mas sua pobreza nunca a tinha im­
-vous ", o filho do coronel, dono da fábrica, se havia pedido de andar no bom caminho . E quando a sua
boatos de greve na cidade, a polícia p ara descobrir os filha, que era tôda a sua adoração, dera um passo em
culpados dêstes crimes parecia não ter outra pista falso e caíra na vida, Idalina não agüentara a ver­
senão o enderêço do Vermelho . E foi assim que Ma­ gonha. Mudara-se da casinha de porta e j anela onde
teus p assou a viver mais tempo dentro das grades da morava na T ôrre e veio se esconder no mocambo na
cadeia do que no seu quarto nos arredores de J o boa­ lama dos mangues.
tão. A verdade é que os verdadeiros vermelhos sempre Durante ano s a negra I dalina vivera como cozi­
acharam Mateus um bocó, um cara de b ôbo para lhe nheira das casas ricas, ganhando bem a sua vida,
confiar quaisquer planos revolucionár ios . Nunca ti­ p orque sua mão era de primeira na . preparação de
veram nada com êle. Nunca tentaram seduzi-lo para quitutes, principalmente dos pratos da B ahia, sua
suas idéias. terra natal. Estava ela bem empregada na casa de
um senador que morava no Derby quando aconteceu
Tudo o que Mateus aprendera em matéria de rei-
a desgraça da filha. A Zefinha sempre fôra uma ten­
. vindicação social fôra mesmo ó que ouvira nos comí­
tação . Tinha nascido mulatinha disfarçada, de cabelos
cios políticos, quando estava prêso. Fôra nas grades
cacheados, quase não p arecendo da raça da mãe. E
da prisão que Mateus ouvira num comício p olítico rea­
esta sua graça e sua beleza inesperadas conquistaram
lizado no Largo · da Cadeia, que era preciso lutar para
um amor tão intenso e submisso por parte da mãe que
libertar o p ovo das garras da fome e da miséria. Mas
era uma verdadeira adoração. Idalina faz i a o possí­
lutar como ' C om que armas ' Os políticos que dis­
vel para que a filha não sofre.S se. Não passasse fome
cursavam no comício não explicavam bem e até hoj e,
como ela tinha passado. Não ficasse analfabeta como
Mateus, o Vermelho, continua ignorando como p arti­
ela. N ão morasse em mocambo. Não andasse de pés
cipar desta luta.
descalços como as outras meninas do bairro . E a Ze­
Não agüentando mais com tanta prisão inj usta, finha foi crescendo assim neste luxo que a negra pa­
com tanto interrogatório e tanto desassossêgo, Mateus,
gava com o seu duro trabalho de cozinheira, vivendo
um dia, largou o emprêgo e veio p arar em Afogados, sempre ao pé do fogão como vivera seu pai, escravo
metendo-se por dentro dos mangues onde foi dos pri­
de engenho, sempre ao pé dos tachos de àçúcar. Era
meiros a levantar barraco na área que, mais tarde,
uma vida dura, a de I dalina, mas as noites passadas
seria recoberta p ela mocambaria da Aldeia Teimosa. em casa, contemplando embevecida a beleza da filha
A negra I dalina também chegou nos mangue�S, es­ que ficara uma mulatinha roliça e dengosa, com os
condendo-se. Não de mêdo, mas de vergonha. Com dentes brancos de encandeiar e os cabelos negros de
vergonha do mundo p elo que ocorrera com a sua filh a entontecer, compensava todos os sofrimentos da mãe.
JOSUÉ DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 115
1 14

A fuga de casa da Zefinha, foi o baque mais duro da conversava. Mudava d e assunto . Começava a suspirar
vida de Idalina. Quando ela se viu só em sua casa, fundo e a falar na carestia da vida com os olhos mare­
com os vizinhos a par de tôda a sua vergonha, fazen­ j a dos d 'água.
do-se to dos de sentidos na sua presença, mas a maioria Viveram assim por muitos anos na santa paz do
gozando o escândalo, r in d o às gargalhadas na venda
S enhor a negra Idalina e os habitantes da Aldeia . . .
e na padaria, Idalina não agüentou. Não a güent o u
até que um dia novamente a vergonha se reascendeu
no co r a ç ã o da negra Idalina e ela partiu de nôvo para
aquêle insulto à sua h onra. D e s ap a r ece u do bairro e
se es co n der , desta vez ninguém sabe aonde.
veio morar na Aldeia Teimosa onde ninguém a· conhe­
Mas isto aconteceu muito depois. E antes que êste
cia, onde ningu ém sabia que sua filha era uma mulher
tris te epi só dio viesse abalar a placidez dos mangues,
perdida. E aí viveu I d alin a , isolada do mundo, exer­
correu muita água pelo Capibaribe. Passou muita
cendo com modéstia sua arte de cozinha. Vivendo de
água por debaixo das pontes do Recife e, no alvoroço
faze r tapioca, grude e cuscus que vendia num tabo­ dessas águas , muitas outras aventuras o correram.
leiro no _ Largo da Paz. Se Cosme sempre f ô r a a fi g ur a mais respeitada
Depressa Idalina conquistou a s imp atia de ·· tôda na Alde i a 'T eimosa, e a preta Idalina, a mais simpati­
a vi z inh an ça. Não pr o cu rava ninguém mas, quando zada, C hi c o era, sem nenhuma dúvida, a mais lendária.
as mulheres da redondeza puxavam co nve rs a , ela era Chico era uma espécie de mito de quem todos falavam
sempre cordial. Estava sempre disposta a ajudar al­ sem nunca vê-lo . Apenas sabendo que êle existia, que
guém numa necessidade maior. Em aj udar num parto, estava ali invisível, entocado no seu mocambo escuro,
numa doença grave, mesmo em ajudar a morrer êsses com as p ortas sempre fechadas. Durante o dia, quan­
defuntos obstinados que custam a desencarnar. I da­ do o bairro formigava do v ai-e -vem das pessoas, nin­
lina era uma grande rezadeira e conhecia rezas fortes guém seria capaz de encontrar Chico passando pelas
que aj udavam · o s mo ribun do s a tras p o r em tranqüilos ruas ou entrando e saindo dos botequins para tomar
a s portas do além. Todos a cabaram por considerar um g ole de cachaça. Mas todos sabiam que durante
I dalina como uma preciosidade. e st as horas em que o sol brilha no céu e os homens

Um d ia trouxeram um n enê para ela criar. Era se agit am na terra, Chico p ermanece encolhido como
filho da Zefinha. Êste seu net o, O s c arlin do , t ro ux e -lhe um b i ch o em sua toca, o cultando sua lepra. E ninguém

um nôvo sôpro de felicidade. Ela m os tr ava o neto a o incomodava, ninguém o denunciava ! Chico podia
todo mundo e falava também da mãe dêle. Gabava-lhe estar t r an qüil o no seu buraco porque sabia que ne­
a b el e z a , mostrando o retrato dela com um chapéu nhum habitante da Aldeia Teimosa iria bater com a
de plumas na cabeça e uma pulseira de ouro no braço . língua nos dentes, co:rit�n do que havia, no b airro , um
Mas se a pessoa qu e a e s cu t av a não conhecia ainda a le p r o s o , que as autoridades mandariam imediatamente
his t ó r i a triste de sua filha e lhe perguntava porque a buscar para interná-lo no hospitaL Chico era uma
filha não vinha m o r ar com ela na Aldeia, Idalina eles- lenda, uma,_ aparição n o turna, quase uin fantasma.
116 J O S U 11: DE CAS TRO
HO M E N S E C A R A N G U E J OS 117
"

Bem poucos o tinham visto passar fugaz, altas


horas da noite, saindo esmolamb ado do seu mocambo ' ' Para os bichos e os rios
e tomando sempre a direção do rio. Do rio que era sua Nascer já é caminhar
grande paixão. Só quando a vida do bairro se extin­ Eu não sei o que os rios
guia e as estréias e os vagalume s brilhavam juntos Têm de homem do mar. ' '
sôbre a escuridão do mangue, é que Chico, tomando
sua pequena j angada sempre escondida numa touceira Chico embalado pela correnteza doce da maré alta,
de juncos na beira do rio, ia flutuar sôbre as águas rememora a descida impaciente dos rios que disfar­
calmas do Capibaribe . çam em seus coleios a ânsia de se encontrarem. Do
Até alta madrugad a, enquanto a j angada desliza Capibaribe que vem de mais longe, da serra dos Jaca­
ao sabor da correntez a, Chico lança no rio a sua rêde rarás ' nos Cariris Velhos, descendo aos trancas por
de pescar e deixa vagar o seu pensamen to pela imen­ cima das pedras, encontrando cidade.s � . povoaç �es,
sidão da noite. .É a sua hora de felicidad e. Esta hora contando simb olicamente tôdas as per1pee1as da vida
em que éle se sente penetrad o até o fundo de sua alma do sertão. Ora num tom humilde quando é tempo de
pela beleza da vida - pela doce carícia da água es­ sêca e necessidade escorrendo pelo meio do leito ar-·
correndo entre seus dedos, pelo piscar das estréias dente seu escasso fiozinho d 'água, muito em silêncio,
distantes , pelo profundo silêncio de um mundo ador­ com mêdo que, ao menor ruído, sej am atraídas as bôcas
mecido. É a hora em que Chico conversa com inti­ sedentas para chupá-lo até à última gôtà. Ora num
midade com os seus rios. Que éle escuta suas queixas tom de pabulagem, transbordando das margens a o �u­
e aprende a amá-los cada vez mais . lência das suas águas ruidosas, relatando a abundan­
cia das terras onde as chuvas . fertilizantes se derrama­
Nas noites de lua cheia e maré alta quando as
ram copiosamente. Na descida, vão as águas � efletindo
sempre paisagens diferentes, cada vez mais acol� e­
águas se empinam ao máximo , atraídas pela fôrça que
a lua tem, Chico conduz sua j angada até a grande
doras. O duro leito de pedras transforma-se num fofo
bacia que fica por trás do Palácio do Govérno , onde
lençol de areia e a paisagem árida do sert�o com os
cactus eriçados de espinho e as folhas afla�as das
se encontram as águas do Capibaribe e do Beberib e. A

No meio desta enorme bacia onde o disco da lua der­


macambiras vai-se amolecendo em aspectos mals doces,
rama uma cascata prateada de luz, Chico fica flutuan­
com tons de verde úmido e carregado da, vegetação do
do atraído também pela fôrça magnéti ca da lua e
brej o. As águas ansiosas passam, porém, indiferentes
perde-se nos meandro s da história dos dois rios. Da
história désses rios valentes aos quais o caboclo do nor­
à paisagem, indiferentes aos encontros co� os peque­
nos áfluentes generosos que trazem suas aguas para
deste empresta , em sua fantasia, uma alma impetuos a
e violenta de quem nasceu predestin ado a aventu�a .
ajudar o rio a descer, nessas terras do Nor�este onde
Al ma igual a do próprio caboclo nordestino : se ajuda a tudo e a todos. Afluentes humildes, mas
que também contam suas histórias : Ribeiro do Arroz,
E CARANGUEJ•S 119
118 J O S U J!: CASTRO
HOMENS
DE

Ribeiro do Urubu, da Grata e da F enda, do Mel e da a paci ência de C osme que o salvaram de sua tempM­

Cachaça, do Pa u e da Arara, da Pedra Tapada e não tiwsa revolta numa f a se em que êl e pensava entrar
se i mai s d on de. O C ap ib a r ib e continua descendo, sur­ d e mar a dentro na sua j angada, para nunca mais vol­
do a ess as histórias, cego ao regionalismo das paisa - tar. F o i ancorado na amizade de C osme que êle de ixou
. gens, na ânsi a infinita de encontrar o outro rio de amainar a tempestade. S ó C osme soubera despertar­
fama. C� d ê o B eberibe � O B eberibe que desse de -lhe um nôvo interêsse pela vi d a, explicando-lhe que
mais perto das colinas de O linda � Aparecem mais havia sofrimentos maiores do que o seu. Que havia
afluentes modestinhos : o C amaragibe, o Monteiro , o lepras mais feias do que a sua lepra e que n ã o era êle
T egip i ó , mas, cadê o B eberibe � Já dentro da ci dade, o único solit á r i o no mundo. Q ue todos os homens car­

o Capibaribe lanç a um braço para um lado, segue para regam a sua lepra oculta e que quase todos os homens
outro lado, fazendo um cêrco pro B eberibe não es­ são uns solitários, embora não se enxergue a solidão
capar. A lcança-o logo adiante, e aí os dois rios se dos outros.
entrelaçam, se confundem e afogam nas suas águas O barulho do chumbo da tarrafa batendo na á gua
misturadas , êsse prazer profundo das ânsias causadas do rio lembra o barulho da chuva cainda nos telhados.
pelas distâncias percorridas . D ois aventureiro s de Chico recolhe a rêde de malhas apertadas e dela retira
fama q ue se j untam com satisfação para contar suas meia dúzia de · piabas que a rêde colhera. S ó rara­
aventuras . No ímpeto do abraço bárbaro, as águas se mente aparece um p eixinho niais graúdo - um bagre,
avolumam e, tontos da alegria do encontro, os rios uma cioba, um cam a rim. O que êle pega, em geral,
perdem o rumo, saem embriagados - a cambalear pelos é mesmo piab a ou barriga-de-tim-tim, com o seu bucho
baix i o s, a se esfranganha r pelos charcos, a se deitar estufado, entupido de lama. Quando a barra do dia
pelos remansos, formando nessa boemia de suas águas, ameaça quebrar, C hico recolhe sua j angada e vai acor­
as ilhas, o s canais, os mangues, o s pauis, onde assenta dar C osme para ceiar com êle . Quase sempre, ao che­
esta saborosa cidade do Recife, resumo das aventuras gar no mocambo do amigo, j á o encontra acordado à
heróicas que os rios contaram e continuam contando, sua espera. C osme dorme cede>. ' ' Dorme com as ga­
ao se encontrarem numa praia do Atlântico. Tarde linhas ' ', como diz a velha Totonha, sua tia, e acorda
da noite, C h ico desperta dêste saboroso e confuso sempre de madrugada para tocaiar com seu . espelho a
sonhar com · a v iagem dós rios e feliz orienta a sua
·
chegada do dia . Chico dá os peixes à velha 'Totonha :
j angada pelo Capibaribe acima. E a sua felicidade os pequenos, as p i ab as , para ela fritar para . a �eia, os
se faz a i nda mais sensível porque Chico sabe que de mairesinhos, quando os h á , para vender na · f e ira de
aqui a min ut os t e rminará a sua pescaria, e irá encon­ .A fqgados e assim apurarem alguns níqueis ,para o
trar, como faz tôdas as noites, o seu grande amigo fu�o, a ca ch a ça e a farinha. :
C o sme. C onversam animadamente enquanto o cheiro de
Na temp e s t ade de sua vida, C osme fôra o úni co
ancoradouro que êle encontrara. F or am a b ondade e peixe frito lhes enche a bôca d ' água. Cosme conta
HOMENS E C A RA N G U E J O S 121
126 J O S U :It DE CASTRO

Quand o os balaeiros começam a passar na estra­


segredos que não se animaria a contar a mais mn-·
da ' em busca da F eira de Afoga dos, Chico se d e s ped e
de seu amigo C osme e corre ap � essado p �ra o seu ;no -
guém porque Cosme sabe que quando se fala com
cambo para se esconder dos p erigos da vida e dos mu­
Chico é como se se estivesse falando dentro de um
túmulo. Ninguém j amai s saberá . Ultimamente, C osme
meráve is perigos que representam aquêles homens que
procura explicar a Chico que a situação do povo está
despertam de po is da saída do s ol.
ficando cada vez mais difícil, que a fome aumenta
cada dia e que o govêrno não toma a menor providên­
cia. Que os políticos montados no poder só pensam
mesmo em encher a panç·a . Mas isto tudo vai acabar.
Cosme informa que está a par da tempestade que a
indiferença dos potentados está semeando na terra .
Muito em breve a tempestade vai estalar por c ulpa
dêles. Por culpa dos donos da terra que não deixam
os moradores cultivá-la para matarem a sua fome.
Por culpa dos donos das fábricas que pagam aos ope­
rários um salário de fome para que possam manter seus
filhos viaj ando pela Europa e sustentar uma penca de
mulheres nos apartamentos de luxo da cidade. E p or
culpa principalmente do govêrno, que vê tudo isto -
tôda a pouca vergonha dos ricos e tôda a miséria do
povo - e finge que não vê.
Estas informações do amigo preQ'cupam Chico,
porque êle não vê como o p ovo possa lutar contra o
poder dos donos da terra, associados ao govêrno, dis­
pondo da polícia e do dinheiro. Mas Cosme diz que êle
vai ver. Que o povo j á não está tão besta como outrora.
Nem tão só. Que está começando a organizar as suas
fôrças. Que o Povo do N ardeste tem amigos e asso­
ciados seguros no povo do Sul, nos operário s de S ão
Paulo, nos garimpeiros de Minas Gerais, nos campo­
neses do Rio Grande do Sul. 'T ôda noite, Oosme fala
d o grande dia que vai se aproximar para o pov o do
Nordeste.
X

DE COM O .AS AGU.AS CRE S CERAM POR


S óB RE O VENTRE DA TERRA

Quem primeiro trouxe à .Al deia a notícia ameaça­


do r a foi Juvêncio . .A o voltar do trabalho, no fim da
·
·.·

· tarde, entrou no botequim para beber um trago de ca­


chaça, e transmitiu aos outros fregueses o b oato ou­
vi do da bôca do gerente da fábrica.

- ' ' Estão fal ando que vem por aí uma . grande
cheia. Que choveu tanto no sertão que os açudes estão
todos arrombados. Que o Oapibaribe desce roncando
e espumando como uma cobra no cio . "
.A descrição que visava impressionar os ouvintes
não causou grande efeito. Manoel Palito, d ono do
botequim, terminando de encher calmamente dois cá­
lices de cachaça que empurrou por cima do b al cão na
dire�ão de S ebastião e Ma teus, indagou com voz pau­
sada :
- ' ' S er á mesmo verdade � O u boato besta de
quem não tem assunto pra contar � S e aqui n ã o há nem
sinal de chuva, como é que vai vir um tal monstro de
eheia � ' '
Juvêncio replicou :
- ' ' Dizem que l á p or cima a coisa an da dife­
rente. Q ue no sertão e no agreste est á parecen do que
I
I
124 J O S U :Il:

o céu desabou na terra.


DE CASTRO

É o que m e disseram . . .
HOMENS E CARANGUE JOS 125

I Estou vendend o pelo mesmo preço que comprei. ' ' era proprietário do melhor galo de briga da redon­
I
f A. verdade é que a notícia não alarmou muito . deza. Havia mesmo quem dissesse, que do Estado in­

Todos os reqüent adores do botequim, habitant es do
.
teiro, pois o Dourado se batera em campo aberto e
man�ue , J a estàvam habitua dos com as calamid ades botara pra correr os campeõe s de Caruaru, e Taqua­
elo chn�.a c�� as sêcas ou com as cheias, segundo fôs­ retinga, que eram até então, o s galos de mais fama do
!
� em ongman ? s do sertão ou do brej o . Era gente cale­ interior. Se a sua luta contra o Cangaço não trouxera
J ada no sofrimento, com tarimba para lutar contra a Anastácio nenhuma glória, pelo contrário êle tinha
todos os excesso s da naturez a. Não iam êles se assustar até _ certo acanhamento em revelar que participara de
assim à-toa, com boatos vago s e exagerados . Que viesse tão inglória campanha, j á o galo D ourado l he aureolara
a cheia. S aberiam sair dela como saíram de outras a vida de uma fama retumbante. Já nem chamavam
vêzes, em que todo êste bairro do mangue com suas mais o homem de tenente Anast á cio, mas de Anas­
casas e seus coqueiros, ficou todo debaixo d 'água. tácio do Dourado . E êle se banhava nesta fama com
- " Maior foi o dilúvio e Noé s e salvou " afir­ indisfarçável satisfação.
mou j ocoso o S ebastião. Seus companheir os iram � Neste dia, estava Anast á cio no botequim para -
continuaram a tomar sua cachaça e retomaram o fi � avisar a todo o pessoal que o .s eu galo de fama lutaria
da conversa interromp ida com a chegada de Juvêncio. daqui h á dois dias com outro galo de fama, ·vindo da
Falavam de brigas de galo, assunto de muito maior Paraíba, trazido daquela capital pelo filho de um
interêsse que a cheia. S abastião retomou a palavra D outor, especialmente para lutar com o campeão do
com entusiasm o : Recife.
-- " O qu � lhes digo, é que estou pra ver aparecer - " Vai ser uma luta em regra, diz Anast ácio
um galo de briga capaz de surrar o D ourado aqui do com certo tom de modéstia . O D ourado é um galo
nosso amigo Anastácio . ' ' que nunca fêz feio no terreiro e dizem que o galo da
Anastáci o é um tenente da polícia aposenta do ' Paraíba, que se chama Diamente, também até hoj e
' não desmereceu. Vocês não se arrependerão de assis-
que an dLOU mm' t os anos pelo sertão afora com as fôrças ·

volantes que combati am o cangaço, e que acabou se tir ao . combate. "


convencen do de que a razão estava mais com os can­ Anastácio andava tomando contato com os entu­
gaceir � s do ql!- e com a pol ícia. Que os cangaceiros siastas de seu galo e procurando conquistar outros
P :SO ? ediam mmto melhor e respeitav am mais as fa­ adeptos para reforçar o seu capital exíguo e poder .
mihas do que os .s oldados. E s e Anastácio não aderiu fazer frente às apostas com o filho do Doutor da ·
B:o ? angaço é ,porque, j á neste tempo , estava velho e Paraíba e tôda a turma que chegaria de trem no dia
limitou-s e a se aposenta r e vir criar galos de briga seguinte com os bolsos entupidos de dinheiro para
em Santo Amaro. Há dois ano s que êste felizardo apostar . Mas o maior do.s entusiastas do Dourado es­
tava ali mesmo . Era o S eb astião que percorria, com
126 J O S U :It DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 127

Anastácio, os -vários b otequins do bairro, como uma mitiam trabalhar de verdade. Vivia de fazer biscates.
esp écie de agente de publicidade e de empresário das De levar recados. D e oferecer palpites p ara o j ôgo
apostas. Era em tais funções que êl e a firmava com do bicho e de d ar f acadas nos antigos companheiros.
· convicção : Bebendo cada vez mais e tendo cada -vez menos o que
·

comer J oca ia se desfazendo a olhos vistos . A única


-. " É nossa grande hora que chega, pessoal. A
hora de n o ssa independência. A gente pode ficar podre paixão que lhe restava era mesmo a briga de galos.
de rico . Dizem que o môç·o da Paraíba é filho de papai T ôda vez que havia briga de g alos, lá estava êle no
terreiro com uma garrafa d 'água debaixo do braço e
rico e tem p aixão por briga de galo. Está nas nossas
um molambo no bôlso do casaco p ara atender aos luta­
mãos encher os bolsos com o dinheiro dêle. É só a
dores e sbaforidos. No auge da pelej a, êle p egava na
gente apostar tudo que possa no nosso campeão. Vai
garrafa, chup ava-lhe a água pelo gargalo , enchendo
ser uma barbada pro D ourado . Ê ste tal de " Diaman­
te ' ' vai dar uma carreira do terreiro que não há cris­ como uma bexiga suas bochechas murchas e borrifava
a seguir a cabeça congestionada do s galos. Quando a
tão que o agarre . . . ' '
cabeça sangrava, o molambo limpava o véu de sangue
- ' ' Que carreira nada S ebastião, vai é ficar esti­ que cobria o s olhos do lutador. J oca tratava todos o s
rado no chão, de gogó p artido, mortinho-da- Silva . . . ", galos com o mesmo interêsBe, com o mesmo entusiasmo.
afirmou o J oca, já todo excitado com a perspectiva Na verdade, o seu entusiasmo não residia na luta
desta grande briga do domingo próximo. em si mas no seu final, no seu desenlace. O que inte­
Ninguém no bairro mostrava um interêsse mais ressava verdadeiramente a J oca era um final perfeito,
constante mais exaltado pelas brigas de galo do que o no qual um dos galos deixasse o outro ciscando no
J oca, principalmente depois que o reumatismo defor­ chão, exalando pelo bico aberto o seu último suspiro,
mante o afastara irremediàvelmente do trabalho de ali mesmo no terreiro. Isto é o que lhe i11teressava.
carregar açúcar no cais do Apolo, e sua vida passara a E quando tal final acontece, J oca, entusiasmado, apa­
ser bem apertada. nha depressa o galo moribundo, aj uda-o a morrer, tor­
Na mocidade, J oca fizera bonito no seu trabalho. cendo-lhe discretamente o pescoço esfolado, e vai para
Era capaz de carregar na cabeça de uma só vez dois c asa regalar-se com carne de galinha assada no espêto .
sacos de açúcar empilhados, e, na mesa era capaz de Há uma espécie de acôrdo tácito entre todos o s
comer três galinhas e de beber seis garrafas de cer­ proprietários d e galo e J o ca. E o galo abatido n a luta
-vej a numa só refeição . Mas essas bravatas foram é entregue às mãos carinhosas de J oca que durante a
breves. Já aos trinta e cinco anos suas fôrças foram vida do animal lhe tinha prodigalizado tão atenciosos
diminuindo, comidas por uma dor reumática que lhe cuid0-dos : tinha lhe bol;'rifado a cabeça, en�ugado o
agarrou de j eito na espinha, e agora aos quarenta, seu sangue gl orioso . C onsumado o sacrifício, ,J oca se
J oca era um caco velho que se mexia com dificuldade. ·
sentia pois, com um direito sagrado aos despoj os ela
O espinhaço encurvado 'll o pescoço duro não lhe per- luta.
128 J O S U :E: DE C A S T R O H O M EN S E C A R A NG U EJO S 129

Só uma vez êste pacto foi desrespeitado. Foi que o proprietário reconduz ao seu gal�nheiro, Joca
quando Sem-Rival, galo de fama de Seu Neco, que fica irremediàvelmente sem J. antar e va1 afogar suas
tinha uma vacaria na Madalena, morreu na luta, san­ penas com cachaça no botequim do Manoel.
grad o pelo bico agudo do Dourado. Seu N eco ach ou
que era uma profanaç ão entregar o corpo de seu fa­ Hoj e, os cálices de cachaça que Joca vai virando,
moso galo para ser comido pelo J oca. .Achou que êste êle os toma como aperitivos ao grande banquete d.o
corpo glorioso devia ser comido pela terra. Pela terra domingo próximo, no qual êle comerá, bem assado,
que o fizera tão forte e tão valente. Tinham contado um dos dois galos de fama. .A c ois a pode se contar
para êle que não havia cemitério só para gente. Que como certa. Pois não são os dois contendores galos de
também havia cemitério de animais. Que na fazenda classe que não poderão correr como galinhas chocas,
de criação de cavalos dos Lundgren e, em Paulista, um botadas pra fora de seu ninho � Resistirão, na certa,
cavalo que ganhou o Grande Prêmio Nacionai o até o fim. O Dourado, com o prestígio de seu nome
valioso e o Diamante, com a dureza que lembra o seu
-

Mossoró - tinha um túmulo com um monumento que


era uma beleza : a figura de um cavalo com duas asas nome de pedra. .A luta só poderá terminar com a
_
no lombo, quase que o levantando no ar, em sua par­ morte de um dos dois heróis. E então o Joca se rega­
tida para o além. S eu N eco queria fazer a mesma lará com a carne dura certamente, mas saborosa, e
'
coisa para o seu Sem-Rival. Claro que, sem o mesmo ' com o cheiro da fama sej a do Diama?te sej a do
luxo, sem a mesma p ompa. .Afinal um cavalo é um Dourado.
cavalo e um galo é um galo. E Seu Neco não podia Infelizmente não houve a grande luta. O homem
nem sonhar com a riqueza de que dispunham os Lund­
põe e Deus dispõe. Deus abriu as comportas do céu no
grens para construir túmulos de mármore e de · bronze
sertão e no agreste e as água s do Capibaribe e de seus
para seus cavalos. Mas faria o possível. Daria a S em­
afluentes começaram a subir vertiginosament e. Desde
-Rival uma sepultura decente, com suas dez polegadas
a Serra do J acararás, no alto sertão, que o rôlo d ' água
de terra no fundo do quintal. E foi o que fêz S eu
N eco. Arrebatou o galo morto das mãos de Joca que do Oapibaribe foi inchando como uma cobra assanha­
ficou passado de vergonha com a desfeita, e foi cum­ da arrancando barreiras, comendo pedaços de terra,
prir com seu dever cristão. Cavou com amor atrás de e ;e c obrindo a mataria verde com o vermelhão de suas
casa uma sepultura e lá enterrou o seu herói, indo até águas barrentas. O rio e Vertente, o Ç amaragibe, o
Tegipió, todos também inchados, ;rier �m ronc a:r:- d o vo �
ao exagêro de cravar na terra mole que r eco bria o
mitar seus excessos d 'água no Cap1bar1be, mas tlv � ra�
suas · dificuldades. Ê que as águas do grande riO J a
corpo sofrido de Sem-Rival uma tôsca cruz de ma­
deira enfeitada com as penas do rabo do defunto.
estavam mais altas do que a s de seus aflue:n:tes, ? que
Quando não ocorrem estas mortes glo rio s a s e a criou uma grande confusão no encontro d e s sas aguas
luta termina numa carreira feia de um dos contedores vagabundas.
130 J O S U E: DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 131

O Capibaribe e o Beberibe, o s dois rios de fama


q�1e, em � �m�os normais, sempre se compreenderam sitar tôdas aquela s ilhas que, planta das, dariam ali­
t � o bem, J a n � o se entendiam mais no alvorôço incon­ ment os pra matar a fome daque la gente tôda.
tido de s"?-as aguas. Lançavam-se um contra o outro - " Dizem que a cabeça da cheia j á apont ou pra
como se tivessem sido picados por uma crise de ciúme cá do brejo da Madr e de Deus . Dizem que a Vila do
que os t� rna� se inimigo s ferozes. Cada um se sentindo Capa do está tôda debaixo d ' água. Qualquer hora
com m�Is dumto . de s tirar mais longe e cobrir a
�� dessa s a cheia está aqui mesmo no Recife ' ' - afir­
ter� a toda. Era a luxuna da cheia. Até os afluentes mava um desconheci do do grupo .
ma1 � :rr:o desto.s, mais humildes - o Ribeiro do Arroz, A gente da Aldeia Teimosa resistia em acreditar
o R1beuo do Urubu, o da Grota e o da Fenda 0 do nesta ameaça terrível. Mantinha suas esperanças nas
Mel e o da Cachaça - todos se assanharam e ;aíram rezas fortes, capazes de fazer mudar o tempo e con-:
a fazer estrep �lia s pelo campo, derrubando mocambo , fiava na Providência.
afogando menmo, matando gado, arrancand o ponte. - " Pode ser que todo .êste barulho d ' água se
As n?tícias foram ficando mais ameaçado ras. Até resolva pelo caminho e que aqui só chegue o eco da
o Sebastiao _ passou a transmitir comunicad os alar­ cheia", dizia Zé Luiz, confiante. " Das nascentes até
mantes sôbre a cheia. Com a sua mania obsessiva de a costa, as águas do rio têm muita terra pra atraves­
v� r em tôda� as coisas da vida, imagens de machos e sar e pra inundar. ' '
femeas formcando por tôda parte, êle informava : - Mas j á se estão aproximand o da costa, Zé
- ' 'Dizem que os rios andam cobrindo as terras Luiz ", respondia Maria, preocupada com os dois me­
d? mten..or com a fúria de uns Pais-d ' égua no cio. O
. ninos pequenos que não sabiam nadar. " Cheia é coisa
no Petn?u passou uma rasteira na Usina e j ogou-a traiçoeira, homem de Deus. Não se pode facilitar. "
n.o seu leito. A Usma . entregou- se sem resistênci O
a. Mas facilitaram todos. Ninguém pensou em se
no Mussurepe . tentou a mesma coisa com a sua Usina mudar pra outra região mais alta, mais ao abrigo das
ma � esta, mais arrogante, o repeliu e deixou 0 ri� águas fatalistas, deixaram que tudo corresse ao sabor
excitado, labendo-lhe os pés a noite inteira sem aten­ do acaso, depondo suas vidas nas mãos da Providência.
der aos seus desejos. ' ' E, no entanto, desde sábado de manhã que o rio dava
Já o agricultor Zé Baraúna que viera de Serra mostras de sua fúria crescente : apareceram boiando
nas sUas águas barrentas, as primeiras maçarocas de
Talhada e só pensava em terra para plantação dizia : balsas verdes, arrancadas pela corrente na zona dos ·
- ' ' O rio está descendo com uma carga de ilhas brej os e, de vez em quando, descia o rio o tronco de
nas costas que dá gôsto. Ilhas de terras pretas e de uma árvore com sua cabeleira de fôlhas flutuando fora
terras v �rmelhas arrancadas aos pedaç·o s no agreste d ' água. Eram sinais de que as coisas estavam fican­
e no breJo. ' ' E o pobre· ficava com água na bôca ' pen­ do pretas. Choveu a manhã inteira e o mundo mer-·
sando onde o rio iria jogar tôda aquela terra, depo- gulhou todo numa só massa d ' água que o vento espa-
H O MEN S E C A R A N G U E J O S 133
132 JOSU� DE C A S T R O

com violênc ia, ansiosa por ver o que ocorrer a com o


lhava das nuven s .até o chão . Era uma chuva grossa
seu porco. No lugar do chiqueiro só havia água. Não
que caía na cobertura dos mocambos, não aos pingos,
havia sinal nem do porco nem do engrad ado de varas
mas, a os borbotões, se infiltrando na palha e abrindo
de mangue que o prendia .
goteiras por tôda parte. Em pouco tempo surgiam
n o vo s ruídos nessa sinfonia macabra de cheia. E ram Tudo tinha sido arrastado pela correnteza. lda­
os sons metálicos da água, caindo em grossos pingos lina começou a chorar.
dentro das latas de conserva vazias, dispostas estrate­ - " Meu pobre porquinho . . . tanto trabalho per­
gicamente dentro de casa para evitar a formação de dido para criá-lo . . . tanto esfôrço para nada . . . "
poças d ' água. E as suas lágrima s quentes caíam na água fria
- Já de tarde a tempestade cessou e o sol reapa- · da maré. O rio, roncava forte, apertan do com fúria
receu triunfante e, com êle, a esperança voltou a bri­ o mocamb o por todos os lados, como . quem força uma
lhar no coração oprimido de tôda aquela gente. mulher e arranca ndo com suas lambida s d 'água gran­
- " Estamo s salvos, gritavam por tôda parte, o des bol Õ es de barro das parede s. Era o mundo inteiro
tempo vai mudar ! ' ' se desfaze ndo. Idalina lembro u-se então do neto e
ficou mais apavor ada . Voltou corrend o pra dentro
E foram todos dormir confiantes. do mocambo. Desper tou Oscarlindo que dormia t r an­
Idalina acordara alta madrugada com as costas e qüilo no seu girau de varas construído à maior a.Itura
as pernas geladas. Mexeu-se na cama e a água espir­ .que a cama da negra. 'T orce "l! depres s a:_ suas roupmhas
rou de seus lençóis ensopados. .A. negra assustou-se. que estavam enchar cadas d 'agua em erma de um tam­
Riscou um fósforo e acendeu o candieiro de querozene borete que j á começava a rodopi ar dentro do mocambo.
pendurado na parede. .A. luz amarelada do candieiro Vestiu o menino com estas roupinhas molhadas, o pôs
espalhou reflexos fosforescentes sôbre um grande nas costas, escanch ado no lombo, e saiu espavo rida em
lençol de água barrenta. O mocambo todo era um lago. busca de auxílio . .Ao dar os primeiros passos fora de
A cama e os tamboretes pareciam flutuar como des­ casa, Idalina recomendou com um tom de ansieda de
troços de um naufrágio. Um pavor súbito se apoderou na voz :
de Idalina : ·- ' ' .Agarra -te bem nas minhas costas para não
- ' ' .Q ue teria acontecido com o Baé � ' ' escorreg ar, Carlind o . Toma cuidado . " ,
.A. pergunta saltou-lhe dos lábios trêmulos sem que O menino , sonolento e apavora do, quase não fa.,.
ela tivesse intenção de fal;:tr, enquanto com as pernas lava .. .Apenas dava suspiro s e gemido s e se colava cada
trêmulas ela saltava dentro d ' água com a camisola vez mais no dorso da avó.
de dormir arregaçada, suspensa por uma mão até a Já não havia mais nem rua, nem estrada. Tudo
altura das virilhas. Caminhou aos trancos pela água era água. Fora d 'água, só apareci am os postes
de
barrenta até a porta do fundo do mocambo, abrindo-a
'�_.:
r

134 J O S U :lt DE HOMENS E CARAN GUEJOS 135


i
CASTRO
I
I
t e l e f one impassíveis e os p és-de-co l ôdo. C om mêdo de
queiro oscilando ae� s e tinham cravado no fundo do
ímpetos da correnteza e dos ventos fortes. dar um escorrêgo, com mêdo que, num p asso em falso,
T ateando no lusco- fusco da madruga '
da, guiada. o C arlindo f ô sse j o ga d o n á gua e engolido pela cor­
quase que exclusivamente pelo instinto, Idalina - se di- renteza.
. rigiu para a cabana de Zé Luiz. De repente. uma A
-
sua angústia crescia cada vez mais. E , j á se
enorme bola _veio de encontr o ao seu corpo, assu � tando esvaiam as suas últimas esperanças de salvar-se, quan­
a p obre. Era uma almofad a de fazer renda arras­ do �e deu a aparição. B em na sua frente e contra a
tada p ela cheia. Com o choque na barriga de �alina,
. I luz ela barra do dia que ia raiando, surgiu uma es­
- os bilros da almofada estal aram como se estivess em tranha figura sobrenatural, que , com um bastão na
sendo movido s por hábil mão de rendeir a. Idalina mão, caminhava imponente p or s ôbre as águas. Diante
pensou : dos olhos arregalados de Idalina surgiu, assim, da­
- ' ' O nd e estariam nesta hora negra as mãos que quele fundo luminoso, a imagem do pr ó prio Cristo
. .
movmm os bilros daquela almofa da � Seriam ' ainda ' avançando sôbre as águas, tal como a viram seus dis­
- .
ma ? s v1v � s como as suas, mexend o-se, bulindo óu j á cípulos. E avançando exatamente na sua direção .
seriam maos mortas , duras e frias, afunda das debaixo Idalina, assombrada, sentiu um apêrto na garganta,
d ' á gu a � " e o coração disparou. Pensou em aj oelhar-se ali mes­
Enqt�ari to êstes pensamentos passavam tristes mo, mas a água lhe cobriria a cabeça . Então, largan­
pela cabeça de Idalina, a almofa da afasta va-se aos do um momento os braços magros do O scarlindo, ela
_
ro �opios , perden do-se � a neg rura das águas. A negra fêz lentamente com a sua mão molhada o sinal da I
agita a cabeça com força para afasta r êstes pensa­ cruz. E , com os olhos turvos de . lágrimas, esperou
mento s inúteis, e procu ra pensa r o que fazer para que a figura se acercasse. D e mais perto, a aparição
salvar o seu neto que, tiritan do de frio e encharcado tomou forma mais precisa : era Chico, o leproso, com
d 'á g ua, pesava-lhe cada vez mais nas costas . Idalina suas cal ças e sua camisa esmulambadas, vogando em
não via como escapa r ao cêrco da água. Não havia sua j angada que as águ : as revôltas cobriam. Trazia
um só calombo de terra à vista e não
apare cia uma Chico nas mãos uma grande vara com que lutava con­
só embar cação . E a água sempr e subin do. Quand o ela tra a correnteza para desviar a embarcação dos esco­
��m . de casa, as águas lhos. Idalina não pôde falar. Apenas sorriu um sor­
lhe lambiam o trazeira, agora
J� estavam na hnha .
do umbig o . Para que lado diri­ riso de beatitude que ficou flutuando no seu rosto
gu-se � Resolveu ir na dir eçã o de seu mocamb o com ainda coberto de lágrimas.
a vaga espera nça que um milagre se produ ziss , que � Chico depôs sôbre o s paus da j angada a velha e
apare cesse al guém para salvá-la com o seu netinh o
o seu neto. E explicou que viera • e x at am erit e para
:o.o últim o mome nto. Caminhava com cuidado extre � salvá-los . Que era a terceira viagem de salvamento
mo, só move n d o um pé qu an do os dedos d o outro j d�
s de que saíra de ca s a , al ta noite. Que
á que fazia,
I.
f

186 DE
J O S U :J!: CASTRO H OMENS E CARANGUEJOS 1:37

j á tinha salvado Cosme e a .sua tia, zé' Luiz e a sua não lhes covinha subir o morro de O linda, nem o dos
família, e que j á passara pelo mocambo de Idalina Prazeres nem o do Chapéu que, na certa, iriam ficar
que encontrara vazio. Neste ponto, a explicação de coalhado � de gente, de tôda essa gente que subiria da
Chico interessou vivamente ao Oscarlindo que se rea­ lama quando as águas do rio recobrissem a lama com
nimou e perguntou onde estaria João Paulo a esta a sua cheia.
hora. Chico lhe informou que, em segurança, no forte
Resolveram ir para a velha Fortaleza do Buraco,
do Buraco para onde navegavam no momento.
antigo forte construído, há três séculos, pelos holan­
Quand o Tdalina recobro u sua voz, perguntou a deses, na ponta do ístmo de Olinda, hoj e abandonado
Chico quem o avisara a tempo que a cheia ia chegar . aos caranguej os e às gaivotas, entre o rio e o mar.
Chico sorriu com os seus lábios grossos e deformados Lá é que iriam ficar abrigados e isolados até que :as
e afirmou lacôni co : águas baixassem. E foi o que fizeram. Antes que as
- " Foi o rio quem me avisou. " águas subissem demais, ameaçando o mocambo de
E era verdade. O rio não tinha segredo s para Cosme, Chico levou sua j angada de rio acima até perto
Chico. Há muitos anos que êle trocava língua com da porta de seu amigo. Ajudado pela velha A.na, trans­
o ri o. Que descobr ira o sentido comple to do linguaj ar portou o paralítico nos braços até à j angada. Não foi
d o rio dialoga ndo com os mangues, com as j angada s, preciso muito esfôrço porque Cosme pesa menos que
com os pescado res. Na véspera da cheia, Chico fôra uma criança. Afora a cabeça, tudo nêle é fino e sêco .
pescar mas, chegan do na beira do rio, sentiu que se Enrolado num lençol, parecia mais um feixe de varas
passava qualque r coisa de estranh o. O rio lambia sêcas do que uma criatur a .

carinh osamente com suas línguas d ' água os galhos Quando, nesta nova viagem, conduzindo Idalina
mai s altos do mangu e, como uma vaca lambe a cabeça e seu neto, Chico chegou à · Fortaleza, havia lá mais
do seu bezerr o, mugin do baixinho. Chico aplicou bem gente do que êle esperava encontrar . É que vários
o ouvido pra entend er o sentid o daquele mugid o das moradores do b airro de Santo Amaro tinham vindo em
águas. E entend eu. Era o aviso da cheia. Era o rio j angadas improvisadas com toros de mangue, caibros
acariciando os mangu es e prevenindo-o s do perigo que e velhas tábuas, navegando até o ístmo de Olinda de
se aproximava, para que êles se agarra ssem com todos ondi� c aminh ar am a pé até a Fortaleza.·

os seus galhos e raízes para agüentar a violên cia da


Juvêncio e Seu Maneco estavam no meio dessa
cheia . Chico não podia se enganar, ouvind o êste aviso.
gente e ajudaram Idalina a subir os altos batentes do
A rrasto u sua j angad a para um lugar mais alto, amar­
forte. Juvêncio se lamentava o tempo inteiro da catás­
rando -a bem num tronco de coqueiro, e foi avisar
trofe. Do fato de ter a cheia invadido o seu mocambo
Cosme do que lhe contara o rio. Combinaram onde
e arrancado os ladrilhos de seu piso que tanto tra­
deviam ir para se salvarem da cheia. Nem Chico nem
balho tinham dado p ara serem colocados sôbre aquêle
Co�Sme queria ficar no meio de muita gente, poriss o
te�reno f�ouxo da maré. Lament ava os meses de tra-
,�.·
�.
138 J O S U :E: DE CASTRO

balh? per did o, todos os seus dias carregando aquêles


139

vaca . O s urubus m ont a d os nas carcaças, viaj ando vez de

ladnlhos, um por um, dentro da camisa o frio da água abaixo agarrado s na sua carniça. Pass a de
p ed : a dando-lhe a rr ep io s na p ele, pra � ada. Pa r a
em quan do, uma galinha mort a, que os tripulantes das
pavrmentar agora o fundo sujo do rio. Durante 0 barca ças e das jang adas procuram a garrar para se
. re �to do dia, I � alina e Juvêncio disputavam a com­ garantirem de alguma comid a nos dias difíceis que
_
paiXao dos Quvmtes p a r a sua negra miséria. Idalina os e sp eram.
chor.ando a perda do seu porco e, Juvêncio, a dos seus E o ronco das água s continua aumentando. E au­
ladrilhos. mentando o seu volume e a fôrça da sua correnteza .
Já era dia claro com o sol arrancando centelhas De vez em quan do, um barco embo rcado derrama
n ' água a sua carga humana, que se debate, agarrando­
·

douradas daquele mar de lama, quando Chico deixou


novamente o forte na sua j angada, para continuar -se com unha s e dente s a outro s barco s, a toras de
salvando gente. Mas, àquela hora, j á havia várias made ira, a qualquer coisa que flutue no turbilhão da s
_ melhor equipadas, encarregadas desta
embarcaçoes, águas.
tarefa. Eram lanchas a motor da Polícia Marítima De tarde , o mar, os rios, e os vales são uma coisa
colhendo náufragos trepados nas cumieiras das c as a s '
só : um imenso mar vermelho, do Fund ão até o Faroosl
agarrados nas copas dos coqueiros, acocorados no � da Barr a. Os mangues, as plant ações , as horta s, ­
amontoados de p e dr a s colocadas para a s construções mocambos , está tudo debaixo d ' água . Até os engeas
_
das � str áda � e �ue a correnteza ameaçava demolir.
�esciam o rw varias canoas apinhadas de gente e de
bichos, ca�ras, cachorros, galinhas, papagaios, gaiolas
nhos da Várz ea desap areceram, ficando de fora só ele
chaminés, como se fôssem faróis apag ados naqu
mar de deses pêro.
I
i

de passarinho, numa mistura . que fazia pensar na O rio perd era o respeito por completo. Com eçou
Arca de Noé. a invad ir mesm o os bairr os ricos
, as casas de tijolo s e
. A c � rrenteza estava cada vez mais forte e, po­ telha . No bairro da Madalena , todos aquêles pala­
risso, Chico achou prudente regressar à Fortaleza on­ cetes construídos nas curva s do rio, mont ados em altos
de procurou u� recanto escuro para repousar. J oão batentes de pedr a, ficaram também inun dado s.
Pa� o e Oscarlmdo, debruçados no parapeito do forte, Os empr egad os corriam esbaforido s, carre gand o
assistem de palanque a festa das águas. Ac ompanham p a ra o primeiro anda r tapet es finos , móve
is de maior
com a vista .a descida das árvores e das balsas salpi­ valia, louça s de porcelana e cristais. Às donas de
gando de verde o vermelhaço da inundação. casa, ajoelhada s com as filhas, rezavam diante dos
Desce também muito bicho morto : carneiro ca­
santu ários abert os. O cheir o de velas queimadas se
.

chor� o e cabra. E até vacas com o bucho enorme,' dis­ misturando com o cheiro da lama que subia da maré .
. A Igre ja de Afog ados , que ficava no alto de
uma
�endido pelos gazes, a cabeça submersa dentro da am todo s em busc a
agua, parecendo mais uma baleia do que mesmo uma c o lina , se encheu de gente. Vinh
140 J O S U .tt: DE CASTRO
HOMENS E CARANGUEJ O S 141
de terra onde pisar, e em busca de um 'êonsô lo no qual
se ampar ar. Vinham se agarrar com os santos se de mãos angustiadas e de bôcas famintas, implorando
apoiar na s palavras do Pe. Aristides. O p a dr e ab�ira a caridade pública organizada.
as portas da Igrej a, acend era as suas velas e ordenara
Ao cair da tarde, ancorou nos batentes da Igreja
a Veremundo que serviss e café e broa aos mais neces­ de Afogados uma lancha, da qual saltaram ao s tram­
sita dos, na sacristia. Falou ao povo que tivess e con­
fiança em Deus.
bulhões, empurrados pelos guardas de salvamento, três
figur a s homéricas : Manoel Palito, J oca e Sebastião.
De noite, a s águas continuaram a subir e alcan­ Vinham todos três bêbados, se amparando mutua­
çaram os própr ios batentes da Igreja . O povo entrou mente. 'Tinham resistido à cheia dentro do botequim,
para o tempo e -se acomo dou, encost ando o dorso nas como se estivessem cercados dentro de uma fortaleza.
pared es para repou sar os seus corpo s moídos. Ap a­ Ê que Manoel Palito se negou a fastar-se de suas gar -
receram os primeiros resfriados. Um côro ininte r­ . rafas de cachaça. E, não podendo salvá-las, resolveu
rupto de tosse subia na nave da Igrej a, impedindo arriscar a vida a seu lado. Sentou-se no balcão alto
todo �undo de dormir. E as águas roncando lá fora, do boteco e ficou aguardando os acontecimentos. Se- _

e as tnpas ronca ndo de fome, e


as tosses sêcas marte ­ b a stiã o e J oca se solidarizaram com a resistência do
lan do e os zumbi dos das muriç osas assovi ando a noite
· dono do botequim, e assim ficaram os três a beber
inteira . cachaça o dia inteiro, mastigando de vez · em quando
Quand o o dia amanh eceu, os menin os agarraram
·. uma broa. Lá ficaram, até que os guardas de salva­
mu1t ? s cara�guej os, espalhados pelos batentes da mento, navegando em sua lancha pela rua, os avista­
Igr eJ a. HaVIa mesm o uns caranguej os peque ninos de ram e obrigaram a abandonar sua resistência. Quan­
patas despr oporcionais para o seu corpo minú sculo do os três heróis chegaram ao pátio da Igrej a, os
-- os chiés - q:U e subiam de pared e acima como lagar­ sinos tocavam a Ave-Maria e o padre Aristides come­
.
tixas. i I· 'I r ,
çava um sermão para consolar seu rebanho de víti­
A s lanch as do Govêrno distribuíam agora água �· mas. O padre lembrava a tôda aquela gente que a
,
VIver es pelos grupo isolados. Distribuíam c afé , aêúcar paciência é a maior de tôdas as virtudes. Evocava a
broa e uma mistura de feij ão cosido e farinha , trazid� figura de J ob , sofrendo um milhão de vêzes o sofri­
en_: grand es tinas de made ira e entre gues mento dos flagelados da cheia, e a ceitan do sempre o
nas próprias
maos dos flagel ados da cheia . Quando um dêstes bar­ seu sofrimento com resignação. Falou da sabedoria .
cos parava em frente a um montã o de gente as mãos divin a e da justiça eterna. Se êles hoj e sofriam aquêle
se es t e n diam , balan çando imp a ci en te s na ext�emid a de martírio da cheia é porque, na certa, mereciam êste
dos braços descarnados . É que o s vívere s quase sem­ sofrimento. Que puz e sse cada um o ded o na sua cons­
pre se acabavam sem dar para atender aquêle mundo ciência. Que se penitenciassem todos dos erros come­
tidos. Lembravam-se êles nos d omin g o s de vir à missa �
143
1 42
HOMENS E C A RA N G U E J O S
JOSUÊ DE CASTRO

Poucos I A maioria ficava nos botequins e nas brigas o Feit o s a , apinhada de mulheres cantando , uma delas
l evantand o nos braços uma im a gem de S an to Antônio.
de gal os . E então �
Neste ponto do sermão, Jo ca explodiu. Começou Na proa do barco, que se chamav a " Estrêla D ' Alva ",
havia muitas flôres meladas de lama e velas acesas
a re smung �r_ e a blasfemar no fundo da I g r e j a . Ê
que, de vez em quando, o vento apagava. As ladainhas
�ue, . no e �p�r1to turv? d � J o.ca, p are �i a estranha aquela subiam no ar e o vento a s espalhava na vastidão d as
J ustiça d1vma que d1str1bma o sofrimento de maneira águ a s . As margens do rio , outras velas se acendiam,
tão desigual. Se não chovia e havia sêca, eram o.s
fincadas na lama. E aqui e acolá re sp o n diam ao can­
pobres que morriam de fome. Se chovia demais e ha­ tochão das ladainhas, vozes cantando Xangô, mistu­
via ch eia , eram as casas d o s p o bres que eram inun­
d!l' �as e destruídas : - Por que não vinha logo o di­ rando Santo Antônio com o � santos do Catimbó. A
fôrça de tôdas estas rezas de tôda esta mistura f o r te
luVI o , para afogar de vez os ric o s debochados que de ritos mila gro s o s, as ág u as f o ram e nfr aque c endo sua
levavam a v1da . na pândega, sem trabalhar montados
nas costas �o.s mi s er áv ei s ! Que j u stiç a divi� a era esta
violência e baixando obedi entes. Uma barra negra,
c e :·t a como um babado de .saia, cada vez mais l arga,
que esqu.e c;� esta exploração, que fe chava os olho s à fm aparecendo na fach a d a das casas e nos mur o s mais
negra m1s er1 a do s p obres I " Que vissem o caso dêle altos. Era a marca da água baixando .
J o ca I Trabalhara sempre como um desesperado :
. a mal a um mosquito, e, a rec ompensa que
nunca f1zer.
Havia muita fome. Havia muita confusão. Muita
re cebeu , f01 o reumatismo deformante l E, nest a se­ gente desaparecida . As mães chamando inquietas as
mana, quand ? se preparava para a grande briga de filhas môças que se enfurnavam p el o s buracos do in­
g alo do d ommg o p róximo, seu único c onsôlo e sua ferno e não davam notícias. .
única possibilidade de comer um ped aço de carne uma - " Maroca ! Júlia ! Severina I . . . "

vez �a sem�na; vem aquela cheia maldita que impede Os gritos aflitos atravessavam o rio de l a d o a
a b ri g a e tir a-lhe desta forma, o p ão da bôca ! Não
, lado, e ficavam sem resposta.
está certo ! Não é justo l - " Sem-vergonha, aproveitando a cheia pra fa ­
·

O s outros acalmavam J oca mas êle continuava


,
zer suas patifarias por aí ! "
re sm�ngando , esgrimin do de maneira inconveniente O sofrimento era grande, mas j á as esperanças
na mao a garrafa de cachaça qu e tinha salvado das renasciam. E a imp a ciê nci a que as águas baixassem
águas impiedosas da cheia. depressa para recomeçarem sua vida organizada . Para
re c on s t r uírem suas casas. P ara reunirem suas famí­
;N o dia seguinte, as água s começaram lentamente lias. Para pegarem caranguejos . Para . crescerem e se
a baixar. A c?rrenteza cu.�.tinuava forte, mas permitia '
multiplicarem.
·

que �e or g an:z asse sem risco uma pro ci ss ã o aquática


no � 1o Beber1be, que estava mais calmo qu e o Capi­
b anb e . Uma ·grande canoa desceu de rio abaL"fo de�de
XI

DE COMO AS ÁGUAS DA CHEIA BAIXANDO,


ARRASTARAM COM ELA A FôRÇA DE
VIVER DOS HABITANTES DO MANGUE

Quando a cheia cresce, suas águas invadem a terra


tôda com a violência de uma paixão. Quando o seu
furor de ·posse se esgota, as águas baixam, deixando
à mostra todos os estragos desta paixão violenta : tôda
a sua obra de destruição marcada na pele da terra e
na pele da gente.
Uma semana depois da grande cheia, já a lama
estava de nôvo à mostra. E o seu cheiro podre subia
no ar, forte como nunca, misturando-se ao cheiro de
carniça dos bichos mortos encalhados na vazante, mal
recobertos pelos lençóis negros da lama. Só quem res­
surgia triunfante no meio dessa desolação, era o man­
gue. O mangue viçoso, coni suas fôlhas dum verde
lavado� brilhantes e polidas como fôlhas de metal. Os
mangues frescos como se tivessem acabado de faezr
amor naquele instante. Talvez fôsse êsse o segrêdo de
·

seu viço.
Afirmava Chico, com ares de entendido, que en­
quanto permanecem debaixo d 'água, os mangues con­
sagram todo o seu tempo a fazer amor. A abandonar
suas fôlhas ao beiço impetuoso da corrente. A esfre­
gar seus galhos, uns nos outros, com infinita volúpia.
146 J O· S U � DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 147

A at ol ar suas grossas raízes, com gôz o , na lama ga ­


dos coqueiros, com os cab oclo s excita d o s pelo furor da
ranhosa do fundo do rio . Chico afirmava ter mesm o
cheia .
e scut a do , certas noites, o bailado nupcial dos mangues
que ac onte c eu com Zita e C lotil e que u -
d d
Foi o
no fu nd o das águas, e o estalar de seus caules mem­ rante anos tinham r esistid o à tantas invest idas dos
bru�os g o � ando na carne da lama viscosa. Era um
atrevi dos da cidad e, mas não puder am resisti r ao ím-
trepi dar vw l ent o de amor, que terminava num org as ­
. pet o d a cheia .
mo fm�l, d e r am an d o as ement es do mangue na água
r s
d� ch e i a, p ara fecundar as novas t e r r a que su r gi­ Nove meses depois da cheia, e olhi a a terra sua
s
l'lam na certa do ventre das á guas . boa safra de filh o s do man gue. F ilh o s sem pai, sem
d f
r e cur so s, sem futuro . Conde na os a uçar o mangu e ,
a retirar da lama o s e u pão e o s e u leite - a carne e
S e os bailados nupciais d o s mangues machos e
, . amorosa
su� luxuna durante a cheia, são coisas difí­
o caldo do car an gu ej o . E a cresce r com
os car angu e j o s
c e is_ de se �rovar , que talvez só existiam na im a gi­
à beira da maré.
na çao doentia de Chico, j á o parto de novas ilhas é
.
coisa certa, d a qual n�o � arti cip a nem a imaginaç ã o A maré p aria ilhas, as môças pariam menin os, mas
.
nem a f�nt asia. A ch eia Improvisa sempre uma nova ningu ém se alegrava com tanta te r ra e tanta gente
geografia, fazendo desaparecer terras num lugar e pra batiza r. Longe disto. O qu e havia era uma gran­
apar � cer noutro. A s novas terras s urgid as do ventre de tristez a. O p ovo saía da cheia desanimado, com
d
das aguas se m o s tr am como pequ en a s coroas de lôdo a crista murch a como um galo batido , e s curraç a o d o
que a v e � et a ç ã o do man g ue logo recobre com carinho ; terreiro.
para faze-las crescer e se conso li dar. É, como se as águas baixan do, carreg assem com
. �á sempre os atravessadores , os aventure iros es­ elas tôda a fôrça viva dos flagela dos da cheia. Aque­
pec! a} Izadosem se apossar dessas novas terras, para la fôrça her ó ica que êles tinham utiliza d o tão bem
batiza-la s com um nome p r ópri o e registrá-las imedia­ durante o fla g elo e que par ecia inesgo t ável, mas que
.
tamente no comp: tente s er vi ço de terras. Preparam­ de rep ente des ap ar e ci a , desde que a cheia baixava.
-se desta forma esses aventureiros para explo r ar no É que, com a descid a das águas, a vida dos habitan­
futuro , essas terras, depoi s de crescidas, como en- � tes dos man g ues lon g e de melhorar, caminhava para
i· pior. A fome aumen tava ainda mais. P a s s a d a a fas e
·

dosos feudo s de mocamb os .


aguda da catástr ofe, os pod.êre s públic os logo suspen ­

Mas n o era s ó o bucho das ilhas que inchava
, a desc da das dia!ll a aj uda que davam aos l ag el ados. É v e rd a d e
f
apos
que: o Govêrn o F e d er al aprova ra uma grande v e rb a
� á�uas. Também estufavam os bu­
chos das moças so lte�ras. De tôda s aquelas malucas p
para aj u d ar as vítimas da cheia. Mas os o líticos
.
?
que tm am desobedeci do os co ns elh o s da mãe, s ati s fa­ d d
locais achavam que já tinham a d o aj u a suf ciente .
i
zendo a larga o s s eu s recalcados ins tin t o s dormindo
, Que o que era p r e c i s o , no momento, era serem recom­
entre os_ troncos do s mangues, à s omb r a acariciante
p e n sa do !lj pel o s enorm es sacrifí ci o s eitos. E, desta
f
HOMENS E C ARA NGUEJ 0 S 149
148 J O S U :f: DE C A S T RO
.
ajudar os flagel ados. As senho ras da alt� sociedade
forma, à proporção que as águas da cheia iam cor­ resolveram ajudar esta pobre gente , orgamzando uma
rendo docilmente para o mar, o dinheiro das verbas festa de carida de em seu benefício. E como se apro­
federais ia correndo hàbilmente para dentro dos bol­ ximava a época do Carnaval, resolv eram fazer um
sos gordos e fundos dos políticos e do s senhores da baile à fantasia no Joquei- Clube . Das notas desta
terra. E os flagelados não viam nem a côr dêste di­ festa memorável ' realizada na sede do Clube , na Ave-
nheiro . nida Conde de Boa Vista, destac a-se um consumo mso-
. �

A sua situação era cada vez mais -�esperadora. lito de garra fas de champanha, um consum o também
Com os terríveis estragos da cheia nas plantações da não despr ezível de caixas de uísqu e, o arremate em
Zona da Mata, os preços dos gêneros alimentícios su­ leilão de várias prend as doada s gentilmente pelas
biam assustadoramente, e a pesca do caranguej o se grand es firmas da praça, e a demons�ração patente do
fazia com grandes dificuldades nesse dihívio de lôdo interê sse dos grupo s produ tores pela sorte d? p �vo
que parecia recobrir o mundo. da terra. E é precis o não esquec er o saldo em di�heiro
Jil, verdade que durante a cheia alta também não que ficou, descontadas as despes a � da . decora çao1 da _
se pescava caranguej o. Mas se pescava outra coisa. ilumin ação e dos garçons, e que fm aphca do, na mte­
Pescava-se os bichos mortos trazidos pela correnteza. gra, na compr a de remédio, roupa e comida, par� os
Havia famílias que, durante a cheia, se tinha rega­ flagel ados da cheia. Ou, para serm ? s bem p r e ci s o � ,
lado com saborosas buchadas, preparadas com os para os filhos dos flagel ados da che ;� que se . r�lant�­
miúdos dos carneiros mortos, pescado s na correnteza . nham em boas relaç·õ es com as famihas tradlC wnais
Agora, j á não havia bichos, nem mortos, nem vivos. da terra.
S ó havia os homens, meio mortos de fome, sem saber Infelizmente não se pode fazer uma festa dessas
. o que fazer. todos os dias, e � aj uda, no dia seguinte, j á se tinh.a
A fome se foi alastrando impiedosa, associando­ evaporado como uma gôta d 'água naquele J? ar de mi­
-se às doenças que proliferaram com a cheia de ma­ séria. E essa gente ingrata, cedo esqueceria os bene­
neira assustadora. O impaludismo j ogara metade do fícios recebidos. Quanto mais baixavam as águas d� s
povo no chão, batendo os queixos com a terça-maligna. cheias ' mais subia o rancor do povo contra s eu s benfei­
As gripes, as pleurisias, as pneumonias não respei­ tores, contra as classes abastadas que tanto ajudaram
tavam caras. E a tuberculose virara galopante. Não durante a tragédia. Assim é o mundo. ····;';�·�
·

havia família que não tivesse o seu doente derrubado


1v.tesmo sem fôrças, famintos e alqueb rados, os
morado res do bairro deram início à reconst rução de
na cama.
Era a miséria negra instalada nos mangues, seus mocambos arraza dos pela cheia. E, dessa vez,
não houv e nenh�ma intervenção da polícia, imp e din do
·

parindo revolta. Era tão negra e ameaçadora esta


miséria, que eis habitantes dos bairros ricos se con­ 0 seu traba lho. Pare ce que o dram
a da cheia tinh a
doeram dela e resolveram fazer alguma coisa para
150 JOSU� DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 151

sensibilizado os podêres públicos, que abrandava :suas grandes proprietários que os havia expulsado das suas
medidas policiais nessa fase de tanto sofrimento, de terras sem piedade. Que mandavam arrancar pelos
tanta pressão por parte das fôrças naturais. Até pro­ c ap angas , suas roças de mandioca e de feij ão, plan­
curavam ajudar. Apareceu no bairro o Januário, no­ tadas nos dias santos e feriados, só para que essas
meado recentemente sub-delegado da zona, oferecendo roças de pobre não sujassem, como manchas, o verde
a j u d a em mat eri ai s , para a construção de casas a todos nobre dos canaviais. G ovêrno de ricaços que enchiam
os moradores que, sabendo ler e escrever, se apresen- a pança com as verbas destinadas a melhorar a sorte
. tassem no correr da semana na sede do par.tido do dos flagelados. Êste era o sentido da frase de Zé
govêrno, para tirar seus títulos de eleitores ou para Luiz : - ' ' Na minha fome quem manda sou eu. ' '
revalidá-los para as próximas eleições. Inexplicàvel­ Preferiam continuar morrend o de fome a vender
mente, Zé Luiz , que sabe ler e escrever, recusou a a sua dignida de por um dez-mil- réis-de-mel-coado . Po.r
oferta . E quando o J anuário, magoado, lhe perguntou uma esmola do govêrno. Que dessem esmola aos �lel­
porque a recusava, êle deu esta resposta enigmática : jados, não a êles que podiam trabalhar. Que quer1am
- ' ' Porque na minha fome quem manda sou eu. ' ' trabalhar.
Entenda-se esta gente que, atolada na miséria so­ A caridade humilhante, a remessa de pílulas e de
frendo de_ tudo quanto é necessidade, se dá ao luxo de
recusar. a ajuda do govêrno.
xaropes fortificantes para ·quem estava precisando de
comida - de feij ão com farinha para matar sua fome I
I

É que o habitante do mangue, principalmente o crônica - exasperava mais que a própria indiferença.
que veio de cima, que desceu do sertão na sêca, acos­ Teria sido melhor para o Govêrno que êle conti-
sado pela fome e pele sêde, é em regra um cabra de nuasse, com as classes altas, mantendo sua distância
gênio difícil. Difícil de se acomodar às regras de vida desta pobre gente. Que tivesse continuado a fechar
da cidade. Rebelde, áspero, duro de curvar a espinha. os olhos diante de sua miséria. Seria melhor do que
É gente que lembra por sua conduta, o junco, êste êste fingimento de querer combater a sua fome com
outro habitante do mangue. O junco, que quanto mais meia dúzia de vidros de fortificantes e com bailes à
forte sopra o vento querendo dobrar-lhe o pendão, fantasia pra comprar remédios.
mais êle se levanta duro e teso. Assim é o sertanejo, A cheia foi a gôta d ' água que fêz transbordar
mesmo atolado no mangue. Não que sej a uma gente todo o fel da taça de amargura dessa gente. E agora,
arrogante. Ê até humilde. Suporta suas necessidades , quando as águas baixavam, o amargor da vida se tinha
com resignação, de cabeça baixa diante da gente im­ espalhado por tôda parte, contaminando tudo. Já não
portante. Mas não queiram rebaixá-los demais, que construíam suas casas como dantes, com :rr;túsica e
êles se abespinham . Não foram feito s para lamber o cantoria. Mas num silêncio opressor de condenados
cu de ninguém. Não iam se alistar para votar num à morte. Já não havia maracatus nem bumbas-meu­
govêrno que os matava de fome . Govêrno aliad o dos -boi. Só hav� a tristeza e de sola ç ã o Apen a s J oca, com
.
152 JOSU� D E CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 153

o céreb ro sempre arde ndo na cach aça, �onseguia man­ lhinho abandonado ao lado da cama, cortados todos
ter-s e bem humo7ado no meio da tristeza gera l. Ao os seus contatos com o mundo. Mergulhado na escuri­
entrar no bote qmm do seu compadr e Manoel Pali to, dão de sua desdita. Não se sabe se foi a friagem que
pra bebe r sua cachaça, pra pass ar o temp o pergunta � apanhou naquelas tormentosas viagens, deitado sôbre
lhe, solícito, o prop rietário : ' os paus molhados da jangada nos dias da cheia, ou se
- ' ' Com o vai a vida , com padr e Joca � ' ' foi o espetáculo de tantos sofrimentos assistido � na­
- ' 'Pois tocando flau ta, compadr e. ' ' queles dias, que arrebentou com os restos das forças
A resp osta surp reen de. Primeiro , que de Cosme.
esse tempo de se toca r flauta. Segundo , que todo
A não era
s os Definhava a olhos vistos, mas lutava para sobre­
pres entes no bote co conh ecem o apêr to da vida de �Joca viver e aplicava os restos de suas fôrças para ajudar
s ? frendo nece ssid ades , sem pre às voltas com suas dí� os companheiros a sair de sua miséria.
v: das, emar.a�had o nelas. Com o é que agor a vinha êle Vinham homens de tôda parte para parlamentar
dize r que vivia tocando flauta � Joca lê com Cosme. Para trocar idé.ias com o chefe da Aldeia
olha r de seus ouvintes e explica com ara surp rêsa no
de burla : Teimosa.
- ' 'Poi s não é assim, compadre. Poi s se vivo Vinham líderes dos trabalhadores do pôrto, dos
sempre em busc a de um nôvo emp réstimo
um antigo . : . Abrindo um bur aco pra taparpra pag ar serviços públicos e da companhia de bondes. � vinham,
com o se estivesse tocando flauta . . . outr o... de mais longe, líderes camponeses que traziam suas
"
Os pres entes compreendiam mel hor riam des­ queixas da vida nas usinas de açúcar, � s�a revolta
cons olad os com aqu êle hum or neg ro de Je oca diante do que estavam sofrendo do s usmmros, Con­
Já não havia alegria de verd ade, nem festas nos
. tavam que êstes, depois da cheia que havia estropiado
mangues . O que havia eram reuniões secretas para muito de seus canaviais, tinhàm ficado umas cobras,
prep arar a revoluçã o salv ado ra. Par a bota aumentando a perseguição aos moradores de suas ter­
aquêle gov.êrno de ladr ões. r pra fora ras ameaçando expulsá-los por qualquer motivo besta
e ��egando-se a pagar qualquer salário. Tinham que
As reuniões se ealizavam qua se sempre na casa
de Oo.sme, que cont�muava send o o verdadei replantar os canaviais .destr? çados, só pela com���a,
dess a gente, apes ar dos estr agos deix ados pela ro líder porque dinheiro não havia. So por um pouco de feiJa o
cheia e farinha, cachaça e mel de furo pra preparar a ga­
na . s�a. pobre c �rcaç a. c o.sme mudara muito dep ois rapa. Se não quisessem trabalhar por êste preço, que
episodw �a chei a. Par ecia . do
que a paralisia de seu corp o fôssem para o inferno. E fôssem calados, porque se
se este ndia , agor a tam bém
, a seu espírito . Já não era falassem, se reclamassem as benfeitorias que tinham
aquêle vul c � o humano lançando chamas interior es por levantado nas terras do patrão - o mocambo de palha,
sua cabe ç a ur;:ponente. O vulc ão se apagava. Cosme a horta de couve, o chiqueiro de porcos - os capan­
pass ava, as , veze s, longas hora
s ausente, com o espe- gas sentavam-lhe o cacête no lombo para servir de lição
HOMENS 155
154 J O S' U li: DE CASTRO E C A RA N G U E J O S

a os outros . Maldita cheia e maldita organização polí­ beç a seu cha péu de aba s

larg; as e , sor r so nos láb ios
,
o Paulo f1ca va emb eve ­
tiCa que tanto o p rimi am a vida de miséria dos cam­
.
cumprimentava a todos. Joa
e com o fat o de que
poneses indef esos. cido com est a fig ura imponente .
ora mal afama do , vie sse
. , �osme chamava para participar dess a s r euniões um homem tão valent e, emb
par a ouvir a voz de seu
s
p o ht� c as , � lgu ns dos homens mais r e ponsáveis da até o · mo cambo de Cosme
Joã o Paulo .

A deia Te�mosa. Qhamava-os com seu e spelhinh o de amigo . Era um orgulho pra
a dec isão imp ort ant e.
:n a o , fazendo-lhes sinais cabalísticos no rosto qu ando Nã o saía da reuniã o nenhum
esc alã o sup erio r . Na cas a
Iam para o t r abalh o , avisando-lhes do dia da reunião E ssa s eram tomada s em
� a forma de luta � . ser
E,_ à noi t e , estavam todos êles ali, no seu mocambo : de C sme , ap ena s se dis cutia
cambos . De com o utlhzar
Nao faltava um só, obedientes to dos às ordens do emp reendi da na áre a dos mo
ira de combat e.
chefe. a lama dos mangu es com o trin che
ormados a notícia de
João Paulo a ssi stia sempre estas reuniões. Vinha Tra ziam o s hom ens bem inf
sul as armas nec essárias
com o pai . c
s s ent av a - se num canto do m o amb o com
A que , em bre ve, ch e g ariam do
a dat a do levante . Qu e
os olho �
ixos nas caras dos o r a d ores, que exp unham quando ent ão ser ia marca da

s �� s tragwos p roblemas. Umdia, apareceu numa reu­ f p
C o sm e ô s se rep arand o os
seu s homens e inf ormasse
contar , par a puxar o
mao, uma figura que impressionou muito a João c o m quantos ded os se poderia ·

� aulo. . E r� N �� cime nt o- � Gra n de , valente de profis­


-
gatilho dos fuzis.
s contas e sile nci ava
sao. O m e mno J a o conhecia de fama. Era um valentão Cosme faz ia mentalmente sua
que, segundo contavam, carregava várias m o rtes nas n o momento .
co �ta � , mas que mat ara sempre de frente , com sua .

p eixeira em l�t� l eal com o adversário . Quanse sem­


pre, luta de cmm e de mulher. N ascimento..,o-Grande
sustentava várias ca b rochas , em diferen e s b airros dos
t
m a ngue s do Recife. Dormia cada noite na casa de

u:n a delas. Às v zes, mudava o programa de impre­
v:sto, dava uma Incerta, e ch e gava pra dormir onde
nao era esperado , e a noite de amor se afogava em
sangue. No san gu e misturado da cabrocha infiel c om
o do ca b o cl o que se atravessar a impruden t e no ca­
minho de Nascimento-o-Grande .
Êle chegava de mansinho na casa de C o sme pi­
sando macio, gin g a ndo como gato do mato com seu d
' ;
corp o de quase doi s metros de altura. T i a v a da ca -
-.

XII
DE COMO VIVE A GENTE DO NORDE S'TE :
VIVEND O E APRENDENDO

Já se tinha Idalina conformado com a perda de


seu porco e se reintegrado em sua vida regrada -
vender sua tapioca de côco e seu cuscuz de milho na
feira de Afogados, comer seu feij ão ralo com carne
de caranguej o - quando o destino lhe armou uma _
nova peça.
Foi num domingo de muita luz e de muita alegria
que a Aldeia Teimosa perdeu a sua negra Idalina.
No terreno baldio das representações populares,
havia um desafio de cantadores. O pessoal do bairro
acompanhava, com atenção, os dois violeiros que to­
cavam e cantavam. Havia um mundo de gente fa­
zendo círculo em tôrno aos cantadores : uns em pé,
outros acocorados no chão, outros sentados em caixões
de quetosene. Q uando Idalina apareceu, com o foga­
reiro, de ferro na cabeça e, no braço, a tigela de goma
de côco pra fazer tapioca, o S ebastião, que já naquela
hora tinha bebido uns gole s de cachaça, saltou da roda
dos cantadores e começou a gritar em vdlta da negra :
- ' 'A filha da Idalina é mulher perdida ! É a
melhor mulher da Rua do Fogo ! Ontem, dormi com
ela na Rua do Fogo I ' '
O doido ainda não tinha acabado de gritar, quan­
do o fogareiro da negra desabou-lhe violentamente em
158 J O S U :E: DE CASTRO HOMENS E CARAN G U E JO S 159:

ci:r�J.a da cabeça, arr ebentan d o -lhe a c ar a tôda. Bastião de j aca na ponta da haste feita com casca de cana, e
cam n"?m a poça de sangue, cercada pelar5 brasas do o visgo ia agarr ar as moed as no fundo
da caixa, que
f?gareno . N? mesmo momento , dois soldado s que ou­ ficava limpa . O padre não quis que S ebastiã o fôsse
viam r om a " nti c ament e as cantigas dos violeiros · deram preso. Passo u-lhe apenas um sermã o. Mas o sacristão
vo z de prisão à negra Idalina. To d o mundo fi� ou ful­ contou a história a todo mund o, e a cotaçã o de Sebas ­
.
tião ficou, desde então , muito baixa bairro . É po­
·

minado com a brutalid ade da cena. Idalina ;sempre


fôr a tão branda, tão dócil e, agora, de repente . . . Nin­
, ri s s o que hoj e , diante d a cena ocorri da com a negra
guem sabia o que fazer. É verdade que poucos gos­ Idalin a, tôdas as si:rnpatias estão do lado dela. Mas
ta vam de Sebastiã o, sempre atrevido , de maus modos ninguém tem coragem de dizer nada, de protestar c o n-
e mau comport amento. T inh a , é bem verdade , a sua tra as ordens da p olícia .
arte de t; abalhar com a s mão , de esculpir em quen­

gas d� coco, com uma faca afiada, imagens e fi gur as Escolt ada pelos dois soldad os, novamente c.om o
que t m h am a sua graça. Mas, não vivia de sua arte s eu ar humilde, Idalina começ ou a caminhar pelo
porque era um preguiçoso. Sua vida era um tanto campo af ora. Não se despediu de ninguém. Não le­
ob � c ura . Um di a , fôra mesmo p eg a do rouband o a vantou os olhos para ningué m. E, enquanto marchava
caix � das a�m� s na Igreja de Afo ga d o s . Todos co­ e as lágrim as caíam dos seus olhos na
areia quente
.
D:heCiam � hi st o �I a . Semanalmente, quando o Pe. Aris­ da rua, passav a por sua cabeça cansad tôda a tra­
a
ti de s abna a caixa das esmolas , encontr ava-a vaz ia e gédia de sua alma de mãe, diante da desgraça da
no entanto , o sacristã o afirmava ter a s s i sti d o os p e n i � filha. Lembr ava-se bem do doutor zinho que a sedu­
- � ent es p orem nela as su a s esmolas durante a semana zira, formad o na Bahia e vindo ser médico do Pôsto
mteira. Era um . mi stério . O s a cris t ã o Veremun ào de Saúde da 'T ôrre. Que dera amostr as de fortifi;.
resolveu ficar de tocaia na igr ej a para pegar o Íadr ã.o cantes para uma tosse que a Zefinha sofria. Lem­
e p egou . Uma tardinh a, na hora da Ave-Maria o sa � brara- se de uma série de inj eções que a filha tomara
cristão viu .Seb as t i ã o entrar de mansinh o n a fgreja, no Pôsto e de sua fuga na décima terceir a. Do Pôsto
com um feixe de casca d e cana debaixo do braço abando nado , sem médico , durante vários dias. Depois ,
Parando j unto à caixa das almas, colocada atrás d� a volta da filha, de olhos vermelhos e inchad os de
uma coluna, o sem-ver gonha metia uma das h a s t es d e tant o chorar . Ela sem saber o que fazer. Dando gra­
c a s e � de cana pela abe r tura da caixa e a r etir av a , em ças a Deus por ver a filha de nôvo, mas amaldiçoand o·
s�g :nda, com u:? a � oeda agarrad a na ponta. A prin­ o destin o, pela verg o nha que assim sofria . Mais tarde,
cipiO, o s a c ri. st ao nao entendeu o mistério . Como e ra a filha fugind o novamente, a chama do do
mé di c o que
fôra transf erido para (taranhuns. 'D epois, cartas · tris­
·

que a casca de c ana atraía o níquel� Foi correndo


chamar o Pe. Aristide s, e os dois pegaram o Sebastião, tes, contando que o homem era mesmo um miser ável;
em fl�g � ant e roubando a caixa das alma s . O mistério
, e a tinh a abandonado na rua. Elà não voltaria para
era faCil de se entender . Sebastiã o e sfr e g ava visgo casa uma segun da vez. Que pagaria caro. a suà lou-
160 J O S U :Il: DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 161

cura . Dep ois, outra carta mais cons olad ora. Enc on­
'

- "É mentira que sua filha mora na Rua do


trara um homem mais dedicado , funcionário público Fogo � "
de mei a idad e. Novamente outro desc oncêrto. O ho­
mem era casa do e a família cheg ara de repente ·
Desta vez, Idalina respond eu :
de - " Não senhor, é verdade . "
outro Esta do. Daí em diante, a sua Zefinha , para não
morrer de fome, fôra passando de mão em mão . Um _ " E por que quis matar o homem se êle e stava
caixeiro viaj ante , um prático de farmácia , um moto dizendo a verdade� "
rista de caminhã o. Dep ois, enfim, a mas sa indistinta,­ - ' ' É que nem tôda ver da �e � e diz ' ' , respond eu
sem nome, sem predileçã o, sem temp o para conh ecer . a negra Idalina j á com a voz mais fir:ne, sem o tremor
.
Volt ou para a capital e foi mor ar no bairro de São dos soluços. E tornou a bmxar a vista.
José . Dep ois, num segundo andar da Rua do Ros O delegado deu o interrog�tó: io por encerrad o e1
Dep ois, na Rua do Fog o. Descendo de degrauário . por justiça, piedade ou prud.en�Ia -. que:n podera
degrau, lá estava agor a a sua Zefinha, morando numa em jamais saber os verdadeir ? s motiVo.s das açoes huma­
casa de jane las verdes na Rua do Fog o. Na mesma nas - mandou pôr Idahna em hberdade , podendo
rua onde um marinheiro alemão, há muitos anos voltar descansada para o seu mocambo;
pas sagem pelo Reci fe, fabricara , nout ra mulatinhde Mas, Idalina não voltou. Mandou buscar � or um
um filho com uns cabe los côr de fogo - o Mateus. a, portador, o seu neto e os caca::ecos; e :r:unc� maiS apa­
receu na Aldeia Teimosa. NInguem J ama1s teve no­
S emp re de cabe ça baixa, Idalina atravess ou a tícia do paradeiro da negra Idalina.
pont e de Afo gado s, onde os molequinho s que Poucos dias depois, ocorria a perda de Cosme.
vam siri de gere ré, tomaram um sust o dan ado aopesc a­
vê-la Estava Chico dormindo tranqüilo no seu mo­
entre os dois sold ados . Com as lemb ranç as anti gas cambo, quando bateram na porta. Chico se assustou.
sem pre rolando na cabe ça, sem ter tido tempo pra Quem ousaria procurá-lo no seu mocambo, em . r:le;10
pensar em seu crime. Idalina chegou à Dele gaci a dia � Seria a polícia� Seriam os . guardas . samtanos
de Polícia. Foi , ime diatamente, inte rrog que vinham buscá-lo à fôrça� Abriu com cmdado t�ma
lega do. Mas , com o apen as solu çass e baixada pelo de­
inho em lu­ brecha da porta e viu que era João Paulo. O memno,
gar de resp onde r às perguntas formulad as, a autori com voz aflita, explicou que a velha Totonha man d�r a
dade orde nou a um dos sold ados que relat asse o caso­. chamar Chico com urgência. Que Cosme �m�a tido
.

Êle o fêz com tôda a naturalidade : um desmaio. Chico saiu correndo. Era a pnmeua vez
- " Um rapa z da Aldeia, o Sebastião , disse que que per corria as ruas da Aldeia Teimosa, e� pleno
a filha dela era puta na Rua do Fog o, e ela dia. Tropeçav a nos calombos da estrada, me,10. cego,
arre
tou-lhe a cara tôda com um foga reiro de ferro . "ben­ com o s olho s semi-cerra dos pela falta . do ha�It.o de
olhar o sol. A velha Totonha lhe exphco� baiXmh?,
Voltando -se para Idalina, o deleg ado insistiu : que Cosme tivera, naquele dia, três desmaios. O pn-
163
162 JOSUÉ DE C A S T R O HOMENS E CARANGUEJOS

meiro, veio de repente e, nesta ocasião o seu espe­ A desolação era geral. De vez em quan do, Cosm e,
lhindo caiu-lhe da mão, partindo-se todo: Que Cosme no seu morr er sem fim, desp ertava do torp or e dizia,
recobr? u logo os s enti d os mas que nos dois outros
, umas frases curt as, de amabilidade aos amigos. Mas
desmaws, demorou bem mais tempo a voltar a si. E deixou de falar na Revo lução . e des-
ela e_.stava com mêdo de que, num nôvo desmaio, Cosme Na segunda noite , deu um susp iro profundo
maio u feio como se tives se perdido o fôleg o de vez.
·

se fosse de vez.
Já havia outras pessoas no mocambo. Zé Luiz Das Dore s disse que era cheg ada a sua hora e pediua
aconselhou a se chamar um doutor. Mas Cosme balan­ uma vela pra botar na mão do moribundo. Não havi
. çou a cabeça, dizendo que não. Que o deixassem morrer vela em casa e nem na dos vizinhos ali prese ntes. Eram
sossegado. So ssegado como sempre vivera no seu canto. todos gente muito pobr e. Tiran do, então , do fogo , um
Obedeceram a, sua vontade. Durante dois dias e uma tição aceso , Das Dore s o pôs, com j eito, entre as mãos
noite, Cosme ficou assim, entre a vida e a morte. Não de Cosm e, para que êle parti sse pras treva s do outro
chamaram o médico, mas mandaram chamar Maria mun do, com as chamas do tição lhe iluminando o ca­
d� s Dores que, depois da partida de Idalina, era quem minh o. Mas, ainda não era chega da a hora da par­
aJudava a morrer no bairro. Enquanto a velha 'T o­ tida. Uma vez mais , Cosm e voltou a si e viu o tição
tonha chorava e Maria das Dores rezava Chico e João entr e suas mãos cruza das sôbre o peito . Compreen­
Paulo não tiravam os olhos de Cosme. ' dend o o que se estav a pass ando , Cosme levantouadaos:
O bairro inteiro soube que Cosme estava às portas olho s para os amig os e disse com voz grave e paus
da morte e, fêz-se uma romaria enorme ao .s eu mo­ - " Morr endo e apre nden do . . .
"

cambo. Durante todo o dia, chegava gente que ficava Foram suas últimas palavras . Minutos após ,
conversando debaixo dos coqueiros ' lamentando os Oosme morria.
acontecimentos.
Logo agora, que tinham tanta necessidade dos
conse�hos e da experiência de Cosme, é que a morte
parec�a chamar-lhe com impaciência. Agora, que se
aproximava a hora descisiva da libertação de todos.
Já o próprio Cosme os tinha informado que estava
marcada a data do levante. Iria ser pra breve.
- " É o único capaz de dirigir a nossa luta "·
dizia um, revoltado. '
- ' ' Sem Cosme, a gente fica desorientado como
se e ��ivesse sem cabeça, como caranguejo na tempes­
.
tade , replicava outro com a voz aflita.
XIII

DE COMO JOÃO PAULO, OUVINDO A


TEMPESTADE DOS HOMENS VIROU
CARANGUEJO

João Paulo j á não era o mesmo. Estava mudado.


Já não respirava o ar da vida com a mesma sofre- _
guidão de outrora. Com a morte do seu amigo Oosme
e a inesperada fuga da preta Idalina, levando com ela
Oscarlindo, seu companheiro de . j ôgo, a .Aldeia per­
dera para João Paulo suas grandes seduções. O man­
gue, agora, lhe parecia apenas um espêsso e lodoso
borrão de lama, sem nenhum interêsse. Seus olhos
j á não vislumbravam na paisagem, côres alegres. Só
côres sombrias lhe falavam ao coração.
João Paulo perdera até o interêsse em brincar.
Já não tinha vontade de empinar papagaio na beira
do m,angue. De jogar bola com os outros meninos de
sua idade. De morcegar o bonde do Pina até à cidade,
para ver as ruas entupidas de automóveis e as vitrinas
cheias de objetos estranhos, de roupas' de luxo, de
coisas maravilhosas fabricadas num mundo à parte,
distante do seu. Tudo isto lhe era hoje indiferente.
Quando não tinha trab alho João Paulo se deixava
,

ficar na cama, imóvel, olhos fitos na cobertura do


mocambo. E pensava . . . Pensava só em coisas tristes.
166 J O S U :f:: DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 167

.A tristeza da viela, a pobreza, a miséria de sua gente. culdade em mantê-la firme ao pescoço fino. Os seus
.A morte. 0lhos vão pregados no chão, como se o mundo em
_
Ê ste alheamento, êdes silêncios prolongados de tôrno não . mereces se mais ser visto.
J o ao Paulo, c omeçaram a preocupar sua mãe. Ela Marchava João Paulo dentro desta solidão quan­
contou a Z é Luiz a estranha conduta do filho, sem­ do, bruscamente, ouviu uma descarga de ruídos es­
pre macambúzio, solitário como um velho que j á ti­ tranhos que o fêz estremec er. Eram estalos de trovões,
vesse perdido todo o interêsse pela vida. Zé Luiz reboando perto, e silvos de vento assoviando por entre
passou a observar melhor o filho e também ficou preo- as fôlhas das árvores. Devia ser uma tempesta de.
. cupado. N une a vira menino com aquêle ar tão sério João Paulo olhou o céu. Estava limpo, sem uma nu­
tão sisudo, como se tivesse problemas angustiantes n � vem. Estranha tempestade esta, sem nuvens, sem sinal
cabeça. Rewlveu esclarecer o s motivo s daquela mu­ de chuva, com o sol brilhando no azul. .Assustou-se.
dança . A tempestad e continuav a. Os trovões reboavam por
. Na m:mhã de hoje, enquanto fazem a refeição ha­
tôda parte, de maneira estranha, como se estivessem
bitual enquanto comem seus caranguej os e bebem
-
sendo picados em miú dos, numa cadência angustiante.
seu café ralo Zé Lu iz interroga João Paulo. Pro­
-
João Paulo estacou, procuran do ver de que lado vi­
cura saber . porque não se sente êle feliz. Se j á não nham , ê stes estranhos ruídos de tempestade. Pare­
go sta do trabalho na casa . d o vigário . ciam vir de todos os lados : ora do lado da cidade, ora
. do lado de .Afogados , ora do lado de Beberibe, ora do
O filho tem dificuldades em explicar o que sente outro lado do mangue. João Paulo sentiu uma con­
garar:_te que nã� é isto . Que gosta até muito do vigári�
·

_
fusão na cabeça e um formigameuto no corpo. Dis­
e de p e � car gua1amns com êle. �!I:isturando as palavras parou na carreira. Corria em ziguezague , como correm
s -:- m r-T:contrar m :· � o de se exprimir claramente Joã �
'1 1i • t e za e d e ver tanta pobreza
tns ) os carranguejos, procurando descobrir de onde vinha
CL , , qL .._,
) ;'l 1 1 1 r" -, l\
, , _ ,t " '
f ) mesmo o barulho da tempestade.
''\ n r � .., �· •
_ , , . . ,,

tm: :o s o · nm ento no mundo, sem poder dar j eito a


.

Viu, de relance, que os moradores · tinham vindo


• I o

:1ada:., O pai, nym tom quase de censura, lhe diz que todos para as portas de seus mocambo s, e olhavam para
cJ e nao tem nacLa a ver com � sto. Que êle não tem que o céu com uma expressão de pavor estampad a nos
p e nsar nestas bobagens tristes. Que isto não é assunto rostos. E João Paulo corria sempre. Ouvira chamar
de menino . É p r ob l e ma de gente grande. E João Paulo o seu nome duas vêzes. Mas não ligara importân cia.
t:e cala, e a c o n ve r s a morre numa silenciosa incom­ Nada lhe interessava mais ali. Só lhe interessav a des­
preensão. cobrir onde era a tempestad e. Cortou caminhos, cru­
Ter�i�a � do de � omer, João Paulo parte para a zou pinguelas, atravessou terrenos baldios e, ao chegar
casa do v1garw. Oammha pausadamente passo firme ' '
ao pé da ponte de .Afogados, topou com a tempe's tade.
mas c o m a cabeça inclinada para a frente como se os Das barrancas do rio êle viu, lá embaixo, acocorado s
.
.

s eus pe n s a m ent o s pesassem tanto que êle t ivesse difi- nas margenª do mangue, vários homens, armados de
1 68 JOSU� DE CASTRO HOME N S E C A R A N G UE J O S 169

fuzis e metralhadoras, atirando furiosamente. A.s me­ que fazer. A.té Chico aparec era na po:ta de. �eu mo­
tralhadoras picavam o trovão miudinho, e as balas cambo . Veio mistur ar-se com os demais e dizia para
silvavam como um vento de morte por entre a s fôlhas êles :
gordas dos mangues. - ' ' A. revoluç ão está aí t Bem que C osme· ·
dizia
� ' "
João Paulo desceu a barranca do rio e se mistu­ que a gente estava às portas da revoIuçao .
rou com · aquêles homens. Não conhecia pessoalmente O s homens se interr ogavam, uns aos outros , mas
nenhum dêles, mas sentiu que eram todos da mesma ninguém sabia explicar nada. Ninguém estava a P 3;r
família que êle tanto admirava : da família dos heróis de nada . Não havia um só dêles entros ado na ma­
do mangue. Muitos dêles, quase despidos como se quina da revoluç ão, embora �ôssem todos r �voltado s.
fôssem pegar caranguej o no mangue, apenas com o
Na cidade mesmo , o pâmco era generalizado. Os
corpo coberto por grandes placas de lama. Eram os
mesmos cavaleiros da miséria que já tinham vivido comerciantes fechavam às pressa s, as portas dos seus
negócio s. A.s mulher es corriam para casa como loucas .
tantas lutas heróicas na imaginação transbordante de
João Paulo. Mas, hoj e, êstes cavaleiro s da miséria Os batalhõ es da Polícia Militar marchavam, em passo
não estavam apenas protegidos com as suas armadu­ acelera do, para os pontos estratégicos, a fim de �ufo­
ras de barro, mas armados com fuzis e metralhadoras carem a revoluç ão. Nos cafés do centro, certos tipos,
que ninguém sabia onde ti:oham arranj ado. Só Cosme que se reconheciam bem informados, afirma:vam que
saberia e lhe explicaria tudo. Mas Cosme estava morto . se tratava apenas de um levante. Le': ante de um bata­
E, mesmo, não havia tempo de perguntar nada. A. lhão instigad o pelos sargent os e articula do com .ope­
tempestade que os. homens estavam fabricando não rários e camponeses disposto s a morrer . p.ara se hb �r­
tarem da fome. Mas, havia outros que diziam ser coisa
mais séria. Que o levante estava artie1üado com ou�ros
era p ara brincadeira. Não era como as tempestades
que êle, João Paulo, fabricava com o Pe. Aristides
para pegar guaiamu. O menino, correndo de um lado movimentos no país. E que, em breve, chegariam
para o outro, p ôs-se a ajudar a carregar as metralha­ diante do pôrto, os navios de guerra revolta dos, .e bom­
doras, enquanto os homens apontavam com suas armas, bardeariam o Palácio do Govêrn o. A. expectativa era
. .

as manchas amarelas da farda dos soldados, que se con­ gr��o .

O dia inteiro, ruge o barulho das armas P ? r toda


A

fundiam, às vêzes, com as fôlhas amareladas do man­


gue, do outro lado do rio. Quando as manchas vivas parte, sem se saber, ao certo, o que se estaria pas-
desapareciam no meio das fôlhas das árvores, os ho­ sando .
mens faziam uma pausa no tiroteiro e ouvia-se, então, Na Aldeia Teimosa , as opiniões se dividem.
o mesmo barulho de tempestade , espocando noutras J oca é otimista :
áreas da cidade. - ' ' A. coisa vai bem. Este govêrno safado vai
A. agitação era enorme na Aldeia 'T eimosa. Os pro chão 1 ' ' E Ien;b � a que n � o é a pr:imeira vez que
homens corriam de um lado pro outro, sem s ab e r o escorra çam do PalaCio das Pnnces as, um Governador.
171
170 JOSU� DE C A S T J\ 0 HOMENS E CARANGUEJOS

rec e p a r a pro cur ar


Lembra que, a poucos anos, os revolucionários bota­ tranqüila. E o grupo tod o se ofere e.
ram outro Governador pra correr : Joã o Paulo , e tranqüilizar a pob mã . Os h omen s
- " Era um u sineir o que g o s tava muito de festas Partem em dir eçã o à c a s a do vig onça ári

� �� �esura� . Escapou às carreiras pelos fündos do na frente , as mulheres atr ás, com ass mã cria s se agar­
es. Maria vai
a aCi o , fu9m d o numa lancha vestido de mulher com rando assustadas nas saias de m sua
uma cabeleira suposta. ' ' ' perguntando a tod os p elos c a ihin nho , se não tinham

visto Joã o Paulo . Havia uma


vel ha que tinha _yisto
" M as nossa desgraça foi qu e botaram outro e o vir a pas sar ,
�sm. eu- .
o no� lugar do froux o, e a coisa ficou na mesma o menin o, que o conhecia muito bem
ar d e doi do pel o meio
e ss a vez e p r a valer ! Pra b ot ar um homem de be� de m anhã , cor ren do com um
ela ru a . A velhinha até o avisou par a que não f ô s s e
�� ! oder ", dizia Zé Luiz se esquentando com 0 de- pr o la d o d a s b ri ga s, ma s êle nem lig ara ao seu cha­
t
ma do. Continuar a cor ren do vig . . . o, onde um bando
A r;: ãe de João Paulo era pessimista : Ch egaram na cas a do ári
- Is to mu da n ã o, ge nte Q ualqu er um qu e suba, de gente pro cur ava obt er inf
ormaçõ es. Perguntaram
fica logo safado ! E é difícil faz er descer os safados, por Joã o Paulo , e o p adr e inf
ormou que .êle não tinha
a g a rr ad o s com u nh as e d en t es nos galhos do poder ! pen sar a que êle esti­
apa rec ido naquel e dia . O p adr e cre
A luta �;�I ser d ura ! Precisa temp o e paciência de ves se na cas a dos pai s. O mê d o Resce
. . u no e sp írito de
sant o . . Maria . Com eço u logo a chorar . adosolv eram dar uma
Em frente do seu mocambo u . p de
or s está disposto a ir à cidade, 've: e��� � bar�;��
busca pel os arr edo res , acomp anh, re sspei do padre. Êst e,
t oso s , guarda ­
marchava na frente , os outros menino
� o �ogo, para s �b �r ao certo o qu e a c onte cia . Ma s vam um pas so atr á s . Só a mã e do na frente do pad re
, imp aciente ,
an t es que se de cidissem a par ti r , as descar a s come � se adiantava de vez em qua
ndo
çar �m a dimmuu_ . . de intensidade to rnan d o - s eg cada vez que , tentan do acalmá-la, explicava o quê ,
a seu ver ,
mms esp a ç � d a � , at e� d e saparecerem por completo. tinha acontecid o :
'
_ o P e . Ar isti des , que
. paira sôbre a paisagem dos - ' ' Fique calm a, filha diz ia
filh o. Êle deve and ar p or aí,
Um sil enci o opres �IVO
- gues. C omo � nmte se aproxima, e João Paulo
man voc ê j á en c ontr ar á seu.
nao vol��' .sua mae � omeça a inquietar-s e : per did o na c onfu s ã o Ê que o ran menin o, ten do vivido
os a sua alma
sempre em intimid ade com os c a adoguoe jfeit
,

d andar a Joã o P aul o , no mei o desta con­


fusã-;;t ôd��. �a� era h ora d e estar em casa ! ' '
io da alma
molinha de criança deve ter tomulo , ouvindo a tempes ­
dos car anguej os, e hoj e Joã
o Pa
Ze Luiz responde para tranqüilizá-la .. ' tad e, dev e ter fi c a d o ma o com o fi c am os car angue­
jos quan do o uvem tempesta de . Maue
luc
- " D eve estar na casa do pa dre . ', s a tempestad e j á
pas sou . Fique calma mulhe r ! Fiq calm a, que
Mas . a mãe, c a d a vez mais angustiada diz ue ,
voc ê
prefere H ver se êle está lá mesmo, pra p o de r fi� ar
' j á enc ont rar á o seu filho . ' '
EJOS 17 3
172 J O S U .f: DE CASTRO HOMENS E CARANGU

us � ' ' ,
te p o de fa zer , me u De
'o

Nesta frenética busca de João Paulo, o grupo en­ - ' ' Qu e é qu e a gen
rgunta a mãe do menin
.
o.
' ua , res -
contra homens com :fuzis nas mãos cobertas de poeira, De "
L"
s dar um a bu sca d e b a1xo d ' ag
- ' ' Vamo

que lhes falam do :fracasso da revolução :


- " Fomos traídos ! F omo s e smagados ! ", e, afli­ po e o quitandeir o .
n d , .
. Como � ' ' , ind aga Ma ria com os lab ws
tos, contmuam a march ar para se p e r der em na som­ - ' ' On de �
rentez a da mar é .
sêc e os olhos fix os na cor
os a
bra dos mangues. res o:r: de se des enr olo u
- ' ' Aqui, pel os arr edo
O �o no de uma quit anda , pr ó ximo à p onte de Afo­
.
o Pe . Ansti des .
luta " afirma confiante
a va! a de sua j an ,ada f ,
gados, 1nforma ao padre que vira o menino, de manhã, C hic o, que tinha tra zido
� orrendo para o !ado da p ont e . O grupo dirige - se para
n agu a
fun do do no , entrando
com eço u a esg rav ata r o lama,
este lado. O qmtand eiro adere ao grupo e vem mos­ A var a, ora se atola na
até à altura dos j oelho s. T ?
da vez que
trar. onde se travou o grosso da luta, por êle assisti da dos man � ues .
ora tro peça na ma deira sob re s­
da J anela dos fundos de sua casa. um obs taculo , ha um
se imobiliza , enc ontrando po .
D � scem a b�rrar; ca do rio e contemplam, com olhos no s componentes do gru
salto e uma interr oga ção
angustiados, a mare alta recobrindo tôda a lama e '� C hico explica : uma raiz de mangue.
- ' ' É muito duro d ev e ser
ça a pan cada . ' ' E Chico
tod o o mangue das margens do rio. O quitandeiro
dá explicações : Ag ora é p e dr a na cer a ! Ou t
- ' ' Daqui dêste lado, no meio dêsses mangues �
bate c m a ponta da var
a no fundo do rio .
sca com a var a, sug e­
Não dando resultado a bu
uma v �la, uma v�la ace s � ,
agora cobertos pelas águas, atiravam os revoltosos. Os
soldados � stavam divi dido s em dois gr up o s. Atir a­ rir am pro curar o cor po com
gua s . F 01 a rez adena Ma
na
vam d e erma . d a p_o nt e e por trás dos mangues da p o sta a nav egar sôb re as á
idéia.
� utr a margem do no . De casa, eu vi qu ando dois, de das Do res , que m tev e a
sa numa cuia ou numa
farda am ar e la, enver gar am a munheca p or cima dos -- ' ' Bota- se uma vel a ace vela
: rio com fé em De us. A
mangues e arriaram na lama. B em acolá . . . E 0 lata vaz ia e solta- se no a do
home:t:? apontava para a imensi dão das águas. Ê como i
vai dir eit nho pro cur ar
o cor po , p arand o em cim

lug ar ond e está o morto


. .
se e�tiv e sse :falando de coisas abstratas, p o rqu e não a: o P e . An s­
o gru po, em bor
se v�a nada. Só se via a maré alta, roncando contra A idéia entusi asm ou nça
, exprimindo a sua des cre
os pila� es da p onte , e lambendo as barrancas do rio. tide des se um mu cho ch o
op ôs. E p u s e a idé ia em
p el o método . Ma s nã o se
r am
S e havia corpos mortos na luta desta manhã - e 0
exe cw} ão.
�eu, quando .P:�uenas
homem afirmava qu e os havia na certa - estariam ,

agor!l recobertos por êste espêsso l ençol d ' ág u a da A luz do sol se apaga':'a no
des hz ar sob re a sup er
flcle lus ­
m�r�. Como en c ontr ar, neste mundo d 'água, o corpo chamas começa ram a em. as e
tros a da ma ré. E r a m vel as ace sas dentro de
minusculo de João Paulo �
174 JOSUE

bat cos de pa pel fab ric ado


DE CASTRO l
! HOMENS E CARANGUEJOS 175

s com j orn a is . velhos


cid os p el o qu ita nd eir for ne­ _ " Temos que voltar pr� casa pra descan�ar das
o. Meia dú zia dê sse s estranho
ba rco s com eça ram a vo ga s an gús tia s dêsse dia t err ível E p r e cis o que voces dur­
. ,
.
mam um pouco. Amanhã, com a mare �aix; a e � luz
r ao sab or d a s á gu a s
se afa staram log o da . Dois
margem do rio e foram arrast a­
do s pela c orr e nt eza tot alm do dia veremos o que se passou. PaCiencia, filh os
'
,
en te ind ife ren te à su "
são . Os ou tro s fic ara a mi será o que Deus qmser.
m b ord ej ando , a van çan do l entas - ·
.

m � n t e na d ire çã do ma r, ne sta
o ­ Não houve oposição tà sua prop ? sta. O grupo s e
em a, po sta a ág ua pe las pr ó
ho ra da vazante. A preparou para partir. Ap ep�s Mal'la nao _ �e moveu
espiando em silêncio a vastldao n egra . da s agu a s . �e
n p ri as mã os de Ma:l'ia da s ;
· Do res qu e ne la tin ha ,
oia
de p s t d o uma fé ina _
e � �
d s c rev e clo s cír cu
los est ran ho s sôb re as á g
ba láv el
uas e es�
Luiz arrastou-a carinhosamente na dueçao de c t ; a
Subiram a barranca do rio e o grupo começou a dis-
c , .

o
t ac u miste riO sam en
te . Da s Do res , x c i a d , gri
pr o gr up o :
e t a tou pe rs ar
.

Cedo a notícia do desapareCimento de J oao Paulo


. _

- " Deve ser aq ui !Pr ocu rem aq ui ! " se espalhou pelo bairro, e impressionou �anto q�8;nto
Ch ico us ou a va ra .
O ar era fun do e a va a do fracasso da revolução. Os viziph o s VI�ram VIsitar
.
foi engolid a qu ase inteira lug ra
a família de Zé Luiz e passar a n01te mteua n e ss e es­
po:r:ta top o u c ontra uma r epsiela s ág ua s, �a s a su a _
tranho velório : velan do o corpo ausente de J o a o Pa�lo,
s tên ci a f ôfa , s usp e i t
Chico est rem ece u. Z
é Lu ís a rr an cou a cam
a. que todos sabiam estar longe àquela hor a, :r:_o remo
cos tas e sal tou den tro ' isa d a s misterioso da morte. Falavam pouco, para n�o o�en­
. d águ a. Mergulh ou, e ap are ceu
arr ast an do, pa ra a ma
rg em elo rio , o c o rpo pe d e r a dor dos pais. Quando chegavam, quase so fazmm
um hom e:n com o pei to sado d e ge st o s Gesto s de angústia no rost o , gestos de conf o r ­
.
var ado ele b al a, a cara
inc ha
da, os bei ços com ido s
p e l o s s irís , pondo à m o s tra os­ midade nas mãos :
den tes c omo se est ive sse
so rrin d o ela morte . -- " É a ssim . . . " E l evant a vam os br aç o s con­
. O ach ad o ref orç ou a con fia nç a
do gr upo na ça
vulsos e os · soltavam frouxos de encontro ao corpo .
M ari a chorava b aixinho Zé Luiz não dizia nada.
mil a g� os a da v e l a: .
·
Co ntinuaram acomp anhandfôr
b a rq umh o s , b o r d e J and o de
rio ab aix
o os De manhãzinha, partiram de nôvo em busc� do
o. · De r ep e n te .
uma luf ad a d e ven to , m enino Já encontraram a maré baixa,
. descobrmdo
forte virou doi s d êle s , afundan­
do as vel as na esc uri dã
o ela s
grandes placas de lama negra e a cabeleira esfranga­
çaram o s pilares da ponte áeg usea s for . Os res tantes alc an ­ nhada d o s mangues. Recomeçaram a b u s c a atolan­ ,

s em tra nsm itir nen


am, indifer entes d<J-se na l am a , procurando o � ort o como quem pro­
hu ma in d i c a ç ã o pre cis a.
continuava . O n de est ari
O mistéri � cura caranguej o. Com o nascer do sol, apareceu �ma
a o pob re menin o � E a an­
gús tia cre sci a. Nã o hav
ia nad a a faz er. E o Pe . Ar
turma de O'Uardas encarregados da busca do s coipos.
tid es sen ten cio u : is­ Vários forbam en c o ntr a do s dos dois lados do rio . De
revoltosos e de soldados mortos na refrega. Algun s
UEJOS 177
JOSU� HOMENS E CARANG
176 DE CASTRO

g em do man gue

estende- se,

lençol � :���� a!
E sôbr e to da a paisa
A

brin-
eram tirado s da lama, j á meio comidos pelos caran­
d so ne ra m or talha re co
ag or a, um sa da .
guej os e siris. Muitos tinham as mãos crispadas, os
os s revoluç ão fra cas
s os co rp os
angues dev e esta em
to do r'
n�! !fo
dedos duros agarrados no cabo do fuzil. do
As buscas demoraram o dia todo. As turmas se Dent re êle
pa
s , en
rt e,
ter ra
?
do
y �
ão P a lo qu e, co
m su �
qu alqu er o o
qu e ah-
c r
revezavam, sem que surgisse o corpo de João Paulo. . a, alimentar a lama .
, Ir
carne em de compo siç ao .
Ciclo do Carangue J O.
Maria e Zé Luiz não se afastaram dos mangues, em
menta o
sua sôfrega busca, até quase o fim do dia. Só desisti­
ram, extenuados, quando de nôvo as águas da maré
subiram, afogando tudo : os mangues e a lama e as
suas últimas esperanças de reaver o corpo do filho.
Os companheiros convenceram os pais do menino a
voltarem para casa. Formou-se, então, uma procisão
fúnebre, que atravessou os mangues acompanhando,
não o morto, mas a dor dos pais do morto, até seu
mocambo.
O sol já vai se pondo, quando a procissão alcança
a Aldeia Teimosa. Os últimos raios de luz do dia pa­
recem imprimir como uma marca de fogo, no rosto
de todos, a profunda dor que os domina. Zé Luiz,
com os olhos vermelhos, os lábios ressecados, caminha
esgravatando sua cabeça angustiada, procurando des­
cobrir por que misteriosos caminhos fôra seu filho
conduzido à morte. - ·T·eria sido o gôsto que êle to­
mara em fabricar tempestade com o Pe. Aristides �
Teria sido o mau exemplo dos guaiamus, perdendo a
cabeça quando ouvem tempestade � Ou teria sido, tal­
vez, a tempestade de idéia s que Cosme acendera na
cabeça do menino �
Ninguém seria capaz de ajudar Zé Luiz a de s ­
vendar o terrível mistério. Pouco a pouco a noite, des­
cendo sôbre o mangue, apaga do rosto de Zé Luiz
aquêles traços duros que, o dia inteiro, tinham-lhe em­
prestado ao rosto, a expressão de um cangaceiro.

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