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Socioespacial, sócio-espacial...
(Ou: sobre os propósitos e o espírito deste livro)
O que são os nossos conceitos, e para que eles servem? Tentarei res-
ponder a essa pergunta com a ajuda de duas metáforas. Se pen-
sarmos que, para elucidar a realidade, precisamos erguer "edificios" que
nos permitam enxergar mais e melhor, podemos entender os conceitos
como os "tijolos"; a teoria como sendo os "tijolos" com "argamassa",
já assentados, formando um todo coerente; e o método como sendo a
maneira de "assentar os tijolos", "levantar as paredes" etc., sem agredir
a realidade (sem ignorar a "topografia", sem enfeiar a "paisagem", sem
deixar de aproveitar os "materiais" disponíveis mais apropriados ... ).
É claro que não nos valemos de tantos conceitos, em uma pesquisa
empírica ( mas teoricamente lastreada ... ) ou reflexão essencialmente teó-
rica (mas devidamente informada pela pesquisa empírica ... ), quantos são
os tijolos de um edificio. Apesar disso, talvez a metáfora ajude a perceber o
papel dos conceitos como unidades explicativas fundamentais, ao mesmo tempo
constitutivas de qualquer construção teórica ( e imprescindíveis a toda
pesquisa empírica que vá _além do empirismo mais chão e descarnado)
e nutridas pelas abordagens teóricas, as quais lhes garantem coerência.
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Note-se que, em La Terre (RECLUS, 1968-1869:98-9) Reclus diz que à Geografia
Física caberia cuidar das "harmonias terrestres", sendo que à História (e não à
Geografia!) estaria reservado o papel de analisar as relações da humanidade com
o planeta. Mesmo no primeiro volume da Nouvelle Géographie Universelle, já de 187 6,
seus referenciais terminológicos, embora tivessem se modificado, ainda traíam
nitidamente o peso de uma visão naturalizante, pois ele ainda distinguia entre uma
Geografia "propriamente dita" ( que seria a Geografia Física!) e uma "Geografia
Histórica e Estatística" (RECLUS, 1876-1894, vol. I, pp. 7-8).
; O que não significa que a visão reclusiana de uma dialética entre sociedade e natu-
reza ( ou, para empregar o par terminológico mais frequentemente utilizado pelo
próprio Reclus, entre homem e meio) não necessite ser atualizada e aprimorada. De
certa maneira, Reclus tratava a natureza como exterior à sociedade, ainda que dela
fosse indissociável. Pode-se propor, em contraste, que, muito embora a natureza
não se confunda inteiramente com a sociedade, ela está, ao mesmo tempo, na socie-
dade (a materialidade da natureza transformada pelas relações sociais); e, quanto à
sociedade, mesmo que ela não se confunda inteiramente com a natureza, ela está,
ao mesmo tempo, na natureza (a ideia de natureza como cultural e historicamente
produzida). Tomemos os seguintes pressupostos de um enfoque contemporâneo da
relação entre sociedade e natureza, a um só tempo socialmente crítico e (seguindo
as pegadas de Reclus) libertário: 1) a natureza não pode ser reduzida a algo pura-
mente exterior ao homem; 2) a própria ideia de natureza tem de ser reconhecida
como sendo histórico-culturalmente condicionada (mesmo a ideia de uma "natu-
reza primeira"); 3) a "hominização" da natureza não pode ser fundamentalmente
reduzida à sua transformação pela sociedade por meio do trabalho, na base de uma
razão prática mais ou menos "desculturalizada", uma vez que é essencial levar em
conta o conjunto das dimensões das relações sociais, nos marcos de imaginários específicos que
dão sentido e significado à natureza e à sua transformação material; 4) é preciso com-
preender que, ainda que as relações sociais sejam condicionadas, em certo grau,
pela "natureza primeira", esse condicionamento é, sempre, histórica e cultural-
mente relativo (a sujeição do homem às "forças da natureza" varia historicamente e,
além disso, cada cultura específica atribui um significado particular a qualquer con-
dicionamento; 5) as fronteiras entre natureza e cultura são reais, mas suas relações
e interpenetrações são dinâmicas, uma vez que a técnica constantemente influencia
e o imaginário social constantemente redefine o que é "natural" e o que é "arti-
ficial"; 6) é necessário questionar o ideal moderno de uma "dominação da natu-
reza", o qual trai um compromisso com o imaginário capitalista ao exteriorizar a
natureza dentro de uma concepção produtivista da história, do espaço e da socie-
dade que, em um sentido profundo, é antiecológica e antissocial. À luz desses pres-
supostos, Reclus se sai muito bem no que tange ao primeiro, mas sua abordagem
apresenta limitações a propósito dos demais (mesmo um pouco no caso do último,
reflexo da crença no progresso típica do século XIX).
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Reclus utiliza essas expressões já no primeiro volume de La Terre, publicado em
18 6 8. Conquanto ele tenha conhecido Marx e sido até mesmo sondado por ele
sobre a possibilidade de traduzir Das Kapital para o francês - projeto que não pros-
perou, porque Marx não concordou com a sugestão de Reclus de adaptar e abreviar
a obra para o público francês - , esse encontro e o contato de Reclus com o refe-
rido trabalho de Marx só se deram no verão de 1869 (FLEMING, 1988: 5 7-8).
Desconheço evidências de que Reclus conhecesse bem ou acompanhasse detida-
mente a produção intelectual de Marx anteriormente a esse momento. O mais pro-
vável é que ambos tenham chegado às mesmas expressões por terem compartilhado
determinadas fontes filosóficas, como a Naturphilosophie de Schelling (o alemão, não
nos esqueçamos, era uma língua que Reclus, por ter estudado na Alemanha, falava
fluentemente).
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Considero como libertárias, para além das correntes e subcorrentes do anarquismo
stricto sensu (ou, como venho propondo, anarquismo clássico, que foi bastante influente na
segunda metade do século XIX e na primeira metade do século XX, mas cujos insights
continuam a servir de inspiração para intelectuais e ativistas pelo mundo afora),
igualmente: 1) as tentativas internas de renovação do legado dos clássicos (tentativas
essas que podem ser chamadas de neoanarquistas) e 2) aquelas vertentes que, mesmo
se opondo simultaneamente ao status quo capitalista e às premissas e estratégias
típicas do marxismo-leninismo, como a organização partidária e a crença na possi-
bilidade e desejabilidade de um "Estado socialista" (oposição simultânea essa que
é, no frigir dos ovos, a característica mais essencial da atitude libertária, em sua
objeção visceral às hierarquias rígidas, ao autoritarismo, à heteronomia), não se veem,
por alguma razão ( como o não compartilhamento de algumas premissas), como
"anarquistas" - como pode ser exemplificado, aliás, pelo próprio Castoriadis.
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Castoriadis, infelizmente, não revelou, diferentemente de Lefebvre, muita sensi-
bilidade espacial, e esse pode, inclusive, ser considerado um dos pontos fracos de
sua, apesar disso, genial obra. Para ele (que, nesse ponto, se mostrava mais contro-
lado por um preconceito tipicamente marxiano que o próprio Lefebvre!), o espaço,
ontologicamente, seria, basicamente, repetição, e não o campo de visualização da
verdadeira alteridade. Esse privilégio é reservado, de modo bem marxiano (ou
bergsoniano), à história (privilégio que não era, por exemplo, aceito por Michel
Foucault). No entanto, Castoriadis estava falando, essencialmente, do tempo dos
matemáticos e dos fisicos; somente mais para o final de sua vida é que ele começou,
de forma claudicante, a vislumbrar, no terreno da reflexão propriamente filosó-
fica, as possibilidades e particularidades oferecidas por uma reflexão sobre o espaço
especificamente social (e, então, começou a admitir que também o espaço, e não
somente o tempo, seria um terreno propício à visualização da diferença radical, da
alteridade ... ). ·