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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai./ago.

EDITORIAL

A revista GEOgraphia celebra, nesta edição, o seu A autora observa ainda os impactos desta expansão das
quadragésimo número, reiterando seu compromisso com finanças sobre o cotidiano da população e as contra-
a pluralidade de perspectivas e temáticas que marcam a racionalidades emergentes.
produção acadêmica na área da Geografia, no Brasil e no Maria Rosângela Gomes e Encarnita Salas Martin
exterior. A primeira parte da presente edição consiste em (UNESP) oferecem, no artigo seguinte, um estudo cujo
um Dossiê em homenagem a uma das geógrafas mais objetivo é identificar os fatores de risco que atuam sobre
reconhecidas, Doreen Massey, falecida há pouco mais de as praças públicas de Natal/RN. Em levantamento que
um ano. A composição do dossiê é comentada em uma abrangeu 168 praças públicas da cidade, as autoras
apresentação à parte, que introduz os três artigos sobre identificaram a presença de inúmeros fatores de risco
a autora e os dois artigos de sua autoria traduzidos. À para os usuários, como acidentes físicos, poluição do
parte o dossiê, a revista também publica seu número ar, do solo e visual, alagamentos, atos de violência,
regular, composto de artigos submetidos, da seção entre outros, dificultando, portanto, o uso efetivo desses
Nossos Clássicos, da seção Livros e Autores e da seção espaços pela população.
de resenhas.
O artigo de autoria de Guilherme José Ferreira Araújo
A seção de Artigos é aberta com a publicação de e Edvânia Torres Aguiar Gomes Correio (UFPE), intitulado
Carla Lois (CONICET - Universidad de Buenos Aires), cujo A contribuição da ecologia política e do sustainable
artigo (“¿Cuándo la Geografía perdió su “graphia”? Un livelehoods approach nos estudos ambientais no meio
ensayo histórico y crítico sobre las habilidades gráficas rural do Brasil: um olhar sobre os reassentados de
promovidas en la geografía escolar) discorre sobre as Petrolândia, aborda as desigualdades de acesso aos
mudanças históricas no uso de habilidades gráficas para recursos naturais, analisando o caso dos pequenos
o processo de aprendizado na disciplina geográfica. produtores de coco dos Perímetros Irrigaods de Apolônio
Cássio Arruda Boechat (UFES), Fábio Teixeira Pitta e Sales e Icó-Mandantes, oriundos de transferência forçada
Carlos de Almeida Toledo (USP) voltam-se, no segundo por construção de hidrelétrica.
artigo desta edição, para o fenômeno do land grabbing, Em Monitoramento do uso e cobertura das terras do
discutindo-o à luz da crítica marxista da expropriação. Em Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno nos anos
diálogo crítico com a obra de David Harvey, os autores de 1987 e 2010, Cláudia Maria Saboia de Aquino (UFPI) e
questionam a eficácia dos mecanismos de expropriação co-autores realizam mapeamento e análise das tipologias
para conter a crise atual do capital. de uso e cobertura das terras do parque referido, ao qual
No artigo Da financeirização ao lugar: dos nexos se seguiu estudo da dinâmica das alterações por meio
hegemônicos às contra-racionalidades do cotidiano, o de técnicas de geoprocessamento. O artigo conclui que
terceiro desta edição, Marina Regitz Montenegro (USP) o parque cumpriu os objetivos de preservação para os
discorre sobre utiliza o conceito de financeirização para quais foi criado.
lançar luz sobre o fenômeno da creditização do território. Em Reservas extrativistas na Amazônia: modelo

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conservação ambiental e desenvolvimento social?,


Josimar Silva Freitas (UFPA) e co-autores fazem uma
revisão da produção acadêmica sobre temas relacionados
a reservas extrativistas, concluindo que o modelo de
gerenciamento do Estado para as reservas é ineficiente
e por isso dificulta a conciliação entre conservação e
desenvolvimento.
Antonio José Rocha Luzardo (UFF), Rafael March
Castañeda Filho (UFRJ) e Igor Brum Rubim (UFRJ) abordam
a análise exploratória de dados geoespaciais associados a
feições de área, com o emprego de uma técnica de análise
espacial baseada no Índice de Moran, nas modalidades
global e local, com o objetivo de compreender os padrões
de associação espacial (clusters) existentes na distribuição
dos dados da região de estudo, bem como identificar
valores extremos desse conjunto de dados (outliers).
Na seção Nossos Clássicos, brindamos os leitores
com o artigo Subimperialismo, na visão de um geógrafo,
de autoria de Milton Santos e originalmente publicado
em inglês em 1975 e ainda inédito na língua portuguesa.
Complementa o artigo um comentário crítico de Thiago
Adriano Machado (UFF), que contextualiza esta publicação
no âmbito dos debates da época e na obra de Milton
Santos.
Na seção Livros & Autores, uma seleção de obras de
Doreen Massey é indicada por Rogério Haesbaert (UFF).
Por fim, a revista conclui com uma Resenha do livro O lugar
do olhar: elementos para uma geografia da visibilidade
(Paulo César da Costa Gomes), escrita por Leonardo Name
(UNILA).

Uma ótima leitura a todos!

Os editores.

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Dossiê Doreen Massey

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai./ago.

Dossiê Doreen Massey

POR DOREEN MASSEY:

SOBRE ESPAÇO, RESISTÊNCIA E ESPERANÇA

Yo canto a la chillaneja si tengo que decir algo, dos os artigos, os colaboradores oferecem suas leituras
Y no tomo la guitarra, por conseguir un aplauso,
de Doreen, vividamente. Rogério, o único quem conviveu
Yo canto a la diferencia que hay de lo cierto a lo falso,
De lo contrario no canto. com Doreen, procurou com o Lugares que fazem diferen-
ça: encontros com Doreen Massey textualizar o seu mé-
Yo canto la diferencia, de Violeta Parra.
todo e sua abordagem espacial, cuidadosamente, arti-
culados aos traços biográficos. Generosamente, Rogério
nos retrata Doreen para nos dar a dimensão viva do seu
A escrita sobre Doreen Massey (1944-2016) não seria
modo de pensar/agir. Joseli, com Márcio e Alides apre-
mais oportuna, no atual tempo-espaço. Por isso ao ho-
sentam o enlace entre o feminismo e a geografia, dois
menageá-la, o convite aos leitores começa com os ver-
pilares fundantes da sua produção teórica, em “‘Não me
sos de Violeta Parra. Isso não é acidental. A geógrafa,
chame de senhora, eu sou feminista’! Posicionalidade e
nascida em Manchester, de saúde frágil, de classe prole-
reflexibilidade na produção geográfica de Doreen Mas-
tária, tinha o sangue latino. Viveu a Nicarágua Sandinis-
sey”. Joseli, em especial, registrou o texto como uma dí-
ta, provou dos sonhos da Venezuela Chavista e seus co-
vida à Doreen. Para Joseli, a condição feminista de Do-
letivos, e por diversas vezes experimentou os múltiplos
reen anima o seu modo de pensar. Essa é uma marca
Méxicos. Falava, escrevia em espanhol perfeito, algo raro
da escrita de Doreen Massey: a incomensurabilidade do
na comunidade acadêmica inglesa. Aliás, Doreen Mas-
político na análise espacial. De todos os colaboradores
sey nunca se doutorou, mas foi em vida reconhecida pelo
deste Dossiê, nunca conversei com Doreen, daí minha
rigor, criatividade e potência teórica e política. O prestígio
necessidade de mergulhar nas entrevistas, escritos, ví-
viria em prêmios e títulos de emerência em universida-
deos e imaginá-la. Para mim, o que mais me marcou foi a
des ao redor do mundo. Mulher, global, Doreen incorpo-
sua pedagogia. O meu contato com seus textos dedica-
rou a diferença não como categoria teórica, mas como
dos à educação a distância tornou mais evidente a face-
procedimento de vida. Na verdade, levou a multiplicidade
ta inventiva de Doreen, agora, com a finalidade didática.
ao extremo, experimentando linguagens diversas, cine-
Esta é a minha motivação ao escrever o O que Doreen
ma, artes plásticas, materiais didáticos, panfletos, foto-
diria sobre nós? Um ensaio sobre a pedagogia da espe-
grafia. Doreen não se bastava com a escrita formal, da
rança.
linguagem científica, de modo que criava palavras para
Para os leitores que quiserem se aprofundar nos es-
externar o seu pensamento sobre o espaço. Por isso
tudos de Doreen Massey, ao final, há as versões para o
tudo, você, leitor/a, encontrará um Dossiê contaminado
português de dois artigos: The geographical mind (MAS-
com o modo de ser dessa personagem, que inventava
SEY, 2006) e Displacing neoliberalism (MASSEY e RUSTIN,
palavras para carregar a multiplicidade, as estórias-do-
2015). O primeiro, cuja versão original era uma conferên-
-até-então, para a análise geográfica.
cia aos Professores da Educação Básica na Inglaterra, é
Em tempos de urgência para cantar a diferença, os
um texto que pode ser lido como um manifesto de defesa
colaboradores do Dossiê, agora apresentado, buscaram
pela geografia escolar. Doreen empodera o ensinar e o
uma prosa coerente com o pensar de Doreen Massey,
aprender a Geografia, ao refletir sobre o que seria uma
com interrupções não usuais no texto acadêmico. Em to-
“mente geográfica”. Agradecemos ao Dr. Allan Kinder e à

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Geographical Association por permitirem gratuitamente a


reprodução deste artigo. Displacing neoliberalism (inco-
modamente traduzido aqui como “Demovendo o neolibe-
ralismo”) é o último capítulo do livro After neoliberalism?
The Kilburn Manifesto, um dos últimos projetos de Doreen
escrito em parceria entre Michael Rustin e Stuart Hall. O
Manifesto Kilburn (bairro londrino onde ela vivia) nasce da
inquietação dos colaboradores da revista política Soun-
dings (fundada em 1995, por ela e Stuart Hall, entre outros
acadêmicos e militantes) para desenhar uma agenda al-
ternativa, ao mesmo tempo que apresenta uma análise da
conjuntura da crise de 2007-8. Igualmente agradecemos
ao Dr. Michael Rustin, coautor, que generosamente permi-
tiu a versão deste capítulo para a língua portuguesa.
Este conjunto de textos não ambiciona uma síntese
da produção da teórica, nem retrata a multifacetada mi-
litante. Mas, como anunciam os versos de Violeta Parra,
Doreen Massey, mulher, não procurou aplausos, ao cantar
a diferença. O que procuramos aqui, todos nós, foi com-
partilhar uma experiência Doreen, porque os tempos-es-
paços nos exigem uma solidariedade, diante dos danos
causados por um sistema nefasto, descrente da esperan-
ça. Ao acreditar na multiplicidade, no seu (a)pelo espaço,
Doreen se ocupou das trajetórias, das geografias das so-
lidariedades, porque tinha uma crença na mudança mais
profunda. Talvez, leitores/as, o principal exercício deste
Dossiê seja um testemunho-homenagem à atualidade do
legado de Doreen Massey.

Ana Angelita Rocha

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Dossiê Doreen Massey

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Dossiê Doreen Massey

LUGARES QUE FAZEM DIFERENÇA:


ENCONTROS COM DOREEN MASSEY*

Rogério Haesbaert**
Univeridade Federal Fluminense

Este texto pretende elaborar um diálogo, ao mesmo contato direto, ao “próximo”. Várias fraturas muito sérias
tempo intelectual e afetivo, com a geógrafa e amiga ocorreram ao longo de sua vida, em pequenas quedas
Doreen Massey, que nos deixou há pouco mais de um ano. no metrô ou no trem. Isso, sem dúvida, aguçava sua
É, assim, igualmente, uma forma de tributo, acadêmico e sensibilidade e sua percepção do espaço.
pessoal, a uma das maiores geógrafas do nosso tempo. Eu sempre lamentava sua demora na resposta de
Reflito a partir de inspirações que ela sugere em distintos e-mails, pois ela, que resistia ao uso do computador,
momentos de sua rica trajetória intelectual e que, dependia de uma secretária (secretárias, aliás, que muito
entrecruzando lugares, permitem confrontar e, de algum prezava). Por outro lado, nunca reclamei dos seus belos
modo, recompor em outras bases as nossas diferenças. cartões de Natal mesmo que, no Brasil, chegassem
Gostaria de, sempre que possível, mesclar considerações sempre atrasados. Doreen ainda caprichava nos
em nível pessoal de minha relação afetiva com Doreen recados desenhados a mão e que, assim, densificavam
e reflexões sobre o papel do espaço na construção da a superfície lisa do espaço branco dos papéis – como se
diferença e da multiplicidade, considerando o quanto também neles quisesse questionar a visão de um espaço
esse aspecto permeava nossos trabalhos, abrindo absoluto, liso, em superfície. Numa paródia ao icônico
perspectivas para diálogos enriquecedores. “Ceci n’est pas une pipe”, do pintor Magritte, ela escreveria
Em uma era de “tempos virtuais” Doreen ainda preferia enfaticamente na legenda de um mapa em seu livro “Pelo
a escrita no papel e era uma entusiasta dos contatos face Espaço”: “Isto não é o espaço”.
a face. Talvez por isso tenha exclamado de forma tão Gostaria de destacar, de início, o engajamento de
enfática “você é real!” quando me viu pela primeira vez na Doreen com todo o leque de perspectivas conceituais
plataforma da estação Euston, em Londres, rumo à Open que vai das categorias cotidianas, da prática, às
University, em Milton Keynes, depois de vários contatos categorias analíticas, intelectuais (que incluem também
feitos apenas pela internet. Doreen resistiu como o que podemos denominar de categorias pedagógicas),
poucos ao poder da efemeridade dos contatos virtuais passando pelo caráter político-normativo – o qual não
e instantâneos. Talvez por isso não tenha dado tanta separava nem mesmo de seus comportamentos mais
importância, em seu debate sobre o espaço, às relações pessoais. Um dos maiores méritos do trabalho de Doreen
à distância e ao ciberespaço. Sempre me identifiquei é sem dúvida sua habilidade em construir reflexões
muito com sua valorização dos vínculos diretos, de teóricas a partir de fatos simples, cotidianos, como
proximidade. Provavelmente sua fragilidade física, com aqueles ligados a seus amigos ou a sua família (como
uma enfermidade que debilitava os ossos e que lhe em suas reflexões sobre o tempo-espaço a partir da
infligia dores constantes, tornou-a ainda mais sensível ao expectativa não atendida de um bolo “tradicional” feito
________________________________
* Este texto é uma versão ampliada da apresentação feita em homenagem a Doreen Massey na mesa “In honour of Doreen Massey”, realizada durante
o encontro anual da AAG (Association of American Geographers) em Boston (EUA), abril de 2017, e organizada por Jamie Peck, Victoria Lawson e Erica
Schoenberger, a quem agradeço pelo convite.
**Doutor em Geografia. Professor do departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: rogergeo@uol.com.br

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por sua mãe). Isso tornava sua linguagem muito mais que um pensamento acadêmico abstrato, sem vinculação
comunicativa, ampliando o alcance de seu pensamento. direta com a realidade vivida e com o compromisso pela
Nos múltiplos veículos em que difundia suas ideias mudança em prol dos grupos subalternos. Seu apoio a
(incluindo programas de rádio e televisão) e através diversas políticas do Partido Trabalhista inglês é bem
do diálogo com diversas áreas de conhecimento (da conhecido. Nem por isso deixou de formular densas
Arte à Economia), a clareza e a aparente simplicidade reflexões teóricas, saltando com capacidade ímpar de
não comprometiam o rigor e a profundidade de suas uma descrição aparentemente banal da vida cotidiana
proposições. Essas características estão vinculadas ao para um conceito mais complexamente elaborado.
importante papel pedagógico que também desenvolveu, Inovadora, não deixava de, ao mesmo tempo, adotar
preparando valioso material didático para os estudantes e criticar correntes consolidadas, como o marxismo dos
da Open University, muitos deles pertencentes às anos 1980, conforme retratado em seu Spatial Divisions
classes populares e dos quais muito se orgulhava1. Sua of Labour (para um balanço das repercussões deste livro,
identificação com o caráter democrático da instituição publicado em 1984 e com segunda edição em 1995, v.
e a qualidade de seu Departamento de Geografia eram Phelps, 2008, e Callard, 2004). Também trouxe importantes
sempre enaltecidos. Doreen era uma apaixonada por contribuições ao debate regional, em textos como In what
tudo que fazia, inclusive – ou talvez mais ainda – como sense a regional problem (de 1979) ou “Regionalismo:
torcedora do Liverpool. Além de, sempre que possível, alguns problemas atuais” (Massey, 1981) e na obra
assistir pessoalmente aos jogos, era capaz de largar tudo coletiva Rethinking the Region (Massey et al., 1998).
(no intervalo de um congresso como o da ANPEGE, em Nos anos 1990, foi uma das pioneiras na introdução do
2005, por exemplo), para acompanhar uma partida de seu debate sobre gênero na Geografia2, questionando David
time. Harvey e Edward Soja por terem negligenciado o papel do
Doreen era de uma coerência visceral entre o mundo gênero e da etnia em suas obras sobre pós-modernidade
que pensava e o que praticava, entre o mundo da reflexão e, no caso de Harvey, em sua concepção de compressão
teórica e a esfera da ação política. Às vezes até de espaço-tempo (Massey, 1991a).
forma meio teimosa, como no tempo que levou para Foi ainda uma das precursoras do pensamento pós e
voltar a visitar os Estados Unidos onde havia realizado descolonial na Geografia, a começar pela forma sempre
seus estudos de pós-graduação em Regional Science. respeitosa com que tratava o pensamento e as práticas
Só voltou quando recebeu uma grande homenagem da de países “periféricos” como quando de sua estada entre
Associação de Geógrafos Americanos. Até da recusa a os sandinistas da Nicarágua, nos anos 1970, e na África
beber Coca-Cola ela fazia mais uma atitude simbólica de do Sul, para debater com planejadores locais. Ela fazia
protesto contra o Grande Império. questão de afirmar que tinha muito a aprender com eles.
Doreen, em mais uma prova de suas posições Doreen recebeu, ainda em vida, importantes obras em
alternativas, nunca recebeu formalmente o título de Doutor sua homenagem, com destaque para Spatial Politics,
e se recusava a lecionar em Oxford, que considerava organizado por Joe Painter e Mike Featherstone (2011) e
uma instituição elitista – com conhecimento de causa, “Doreen Massey: un sentido global de lugar”, organizado
pois ganhou uma bolsa para fazer sua graduação ali. No por Abel Albet e Núria Benach (2012), e que traz no
nosso último encontro, em julho de 2015, ela afirmou que subtítulo alusão a seu texto mais conhecido (Massey,
o que realmente almejava priorizar, agora aposentada, era 1991b).
o fazer político. Polêmica em alguns posicionamentos Através de sua concepção relacional de espaço,
políticos, tivemos discussões acaloradas no que se refere Massey definiu lugar como uma imbricação de múltiplas
a seu apoio irrestrito ao governo Chávez, na Venezuela. trajetórias, considerando o movimento e a transformação
Mas, temos de convir, como não defender uma política como constituintes fundamentais na construção do
que passou a usar diretamente uma de suas concepções espaço. O termo aparentemente simples “trajetória”
mais difundidas, a de geometrias de poder do espaço- sintetiza esta dupla constituição espaço-temporal: não
tempo? Ela própria se surpreenderia muito quando, ao é possível definir trajetória sem vincular de maneira
chegar pela primeira vez para um debate com intelectuais indissociável espaço e tempo. Provavelmente não exista
e políticos venezuelanos, deparou-se com um outdoor que melhor expressão, assim, para romper com a dicotomia
explícitava a busca por uma “nova geometria de poder”. entre as categorias mestras, espaço e tempo.
Era extremamente preocupada com a eficácia política Se tomarmos o dicionário e buscarmos o sentido
de nossos conceitos. Nada lhe poderia ser mais avesso do proposto para a palavra, verificaremos que significa “linha
descrita ou percorrida por um corpo em movimento”,
¹O expressivo papel da dimensão pedagógica de seu trabalho não foi
até agora devidamente analisado. Acredito que uma lacuna importante, ²Sobre sua posição como “geógrafa feminista”, mais do que como
nesse sentido, será preenchida com a pesquisa de pós-doutorado de Ana de uma geógrafa que estuda gênero, ver o artigo de Joseli Silva, neste
Angelita Rocha, que também organiza e participa deste dossiê. mesmo dossiê.

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Dossiê Doreen Massey

do latim “trajectore”, “o que atravessa” (Novo Aurélio – que tive a satisfação de compartilhar com ela e sua irmã
Dicionário da Língua Portuguesa), “caminho percorrido Hilary. O Lake District é uma verdadeira paisagem inglesa
por um corpo ou partícula em movimento”, “ação de “heterotópica”, pois poucos estrangeiros ouvem falar de
percorrer esse trajeto” – trajeto, por sua vez, significando uma Inglaterra de lagos e montanhas. Ali também ela (se)
“espaço que é preciso percorrer para ir de um lugar a encontrava (com) diversos lugares, diversas redes, ainda
outro” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Ou que estas fossem moldadas mais pela chamada dinâmica
seja, trajetória significa ao mesmo tempo o espaço da natureza. Ali tivemos um momento único admirando
(geográfico) percorrido e o movimento, o percurso o céu noturno atravessado pelo turbilhão de estrelas da
(histórico) dessa jornada, totalmente geminados. Assim, Via Láctea (ausente no céu das grandes metrópoles),
a maior ou menor abertura do espaço para a configuração buscando o movimento de satélites e lembrando como
de novas trajetórias – em outros termos, a multiplicidade essas trajetórias também, de alguma forma, acabavam
inerente ao espaço – é condição fundamental para a compondo o nosso espaço, o nosso lugar, ao mesmo
criação de uma nova história, de um novo tempo. tempo em que reviviam distantes memórias de nossa
Trajetória encontra-se intimamente associada, infância.
também, com encontro, outro tema recorrente na obra de Não esqueço um de nossos passeios em Jericoacoara,
Doreen e fundamental para a ênfase que ela dá ao espaço para onde fomos descansar depois do encontro da
como dimensão da multiplicidade e da diferença. Seu ANPEGE em Fortaleza, em 2005. Em meio a uma jornada
conceito de lugar, ao contrário de visões antes dominantes, de buggie por dunas e lagoas, seu fascínio maior se
envolve sobretudo redes, conexões, encontros. E de manifestou em detalhes inusitados, mas bem reveladores
conexões profundamente marcadas pela materialidade. de sua busca por movimentos e espaços outros: como
Doreen, assim, inovou ao condenar as visões que ela quando nos surpreendeu pedindo uma parada para
denominava “reacionárias” do espaço e do lugar, visto por observar a toca de uma coruja na base de uma pequena
muitos (como Yu Fu-Tuan) como lócus de estabilidade e duna. Observação de pássaros sempre foi um de seus
segurança. Doreen nunca gostou de lugares assépticos e hobbies prediletos. Mais do que o mar, ela se revelou
“seguros”. Preferia o desafio do espaço múltiplo onde o fascinada pelo sertão, pela semi-aridez ímpar da caatinga
Outro sempre reserva uma condição para o inesperado. e histórias como a dos cangaceiros – que ela já conhecia
Seu espaço como emaranhado de trajetórias ela fazia desde que estivera em Pernambuco, nos anos 1980, para
questão de dizer que estava sempre em aberto, sempre realizar um documentário para a emissora britânica BBC
carregado de potenciais contingências para a realização (divulgado em 1986).
de novas e desafiadoras conexões. Por mais impositivo Ninguém, assim, poderia lhe questionar por propor
e opressor que possa parecer, o espaço, a multiplicidade uma concepção de lugar “sem natureza”. Meio em
de trajetórias que ele comporta acaba sempre abrindo a resposta a críticas como essa foi que desdobrou em seu
perspectiva de “outros espaços”. Ela não dialogava muito livro “Pelo Espaço” a concepção de lugar que, mesmo
com Foucault, mas não há como não fazer aqui uma sendo profundamente marcado por traços “naturais”,
analogia com suas heterotopias. como no “sentido global de lugar” que formulou a partir
Durante nosso intercâmbio de quase um ano durante de seu bairro londrino, Kilburn, também era marcado
o estágio pós-doutoral que desenvolvi sob sua supervisão pela dinâmica e pelo encontro de trajetórias, desde
ficou muito claro o quanto a vinculação do espaço com a a base geológica de placas tectônicas que, há muito
diferença e a multiplicidade permeava tanto o seu trabalho, tempo, vieram de longe dali, até os pássaros que migram
especialmente em relação ao seu sentido global de lugar, sazonalmente desde o longínquo hemisfério sul. Um dos
numa perspectiva anglo-saxônica, quanto o que eu vinha últimos questionamentos que me fez foi onde estava a
desenvolvendo em relação aos conceitos de território e natureza na minha concepção de desterritorialização…
multerritorialidade, numa perspectiva latino-americana. (de fato a comento, mas para dizer que não se trata
Isso abriu a possibilidade de um rico diálogo, iniciado exatamente de “poder”, mas de “força” – da natureza).
com o livro “O mito da desterritorialização” e a tradução A intuição “antenada” de Doreen nos surpreendia.
para o português de “Pelo Espaço” e prosseguido depois, Como também sua fina ironia, que constantemente nos
de forma mais direta, com o artigo “Do sentido global de desafiava. Doreen aliava como poucos amabilidade e
lugar à multiterritorialidade”3. provocação. Tornou-se assim uma grande e inesquecível
O espaço e o lugar de Doreen eram sempre “espaços amiga porque não apenas descobrimos mais pontos em
outros”. Não apenas seu bairro, Kilburn, em Londres, comum do que imaginávamos mas também porque ela
mas também seu “refúgio” de férias no Lake District, tinha a incrível capacidade de nos surpreender o tempo
todo. Quando tudo parecia transcorrer rumo à mais terna
³Este artigo foi publicado no livro em homenagem a Doreen, já aqui citado calmaria, Doreen subitamente nos sacudia com uma
(Painter e Featherstone, 2013) e depois em português como capítulo do intervenção ou “sacada” completamente inesperada,
livro “Viver no limite” (Haesbaert, 2014).

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colocando em xeque nossos mais seguros pressupostos. pelas múltiplas territorialidades que, concomitantemente,
Londres, com que Saskia Sassen inaugurou suas uma megacidade como Londres oferece, não é tão fácil.
“cidades globais” ao lado de Tóquio e Nova York, e que Alguns, mais sofridos (e explorados), podem se fechar
Doreen Massey retratou em livro como “Cidade Mundial” como forma de autoproteção e sobrevivência; outros,
(Massey, 2007), é provavelmente, ao lado da big apple, mais privilegiados, se fecham por empáfia, temores
a urbe etnicamente mais diversificada do mundo. Mas infundados e/ou conservadorismo “hereditário” (como se
infelizmente trata-se de uma multiplicidade que na fosse uma herança a ser compulsoriamente preservada).
maioria das vezes apenas se cruza e, quando admirada, Esse jogo entre diferenças que o espaço proporciona,
é uma admiração à distância, como representação de um intensamente vivido em nossos encontros, foi uma das
espaço não efetivamente vivido e partilhado. Predominam características da obra e vida de Doreen que mais me
cruzamentos meramente funcionais por toda essa marcaram. Encerro, assim, com um relato que fiz logo
diversidade. Como os da trabalhadora equatoriana com que me despedi, no nosso último encontro, em Londres,
quem conversei e que limpava meu quarto no College Hall em julho de 2015, e acrescento três fotos, lembranças
da Universidade de Londres, onde fiquei hospedado. Doreen pessoais que alimentam o lado bom de uma enorme
contou sobre uma colombiana que encontrou no hospital saudade.
em que esteve internada para uma cirurgia do braço e
que, mesmo depois de residir há um ano na cidade, ainda
não falava inglês. Doreen serviu como sua “tradutora” no
hospital, e se sentiu muito feliz por isso. Transitar de fato

O restaurante afegão, de família muçulmana e donos que são vizinhos de Doreen, não vende bebida alcoólica mas
aceita que se leve. Compro um bom vinho francês e brindamos o prazer do estar juntos que realimenta o corpo e a
alma de uma amizade que perdura e, surpreendentemente, mesmo na efemeridade deste encontro, parece fortalecida
com o tempo. Nossa língua também é múltipla, intercalando palavras em inglês, espanhol e francês, as três línguas
que Doreen, como poucos intelectuais britânicos multilíngues, domina.
Transitamos por múltiplos espaços, reconstruindo o nosso. Já não se trata apenas de reconhecer o múltiplo, mas
de transitar por ele e vivê-lo, e nosso diálogo também viaja pelo mundo: do Podemos espanhol ao Syriza grego, das fé-
rias em que estivemos juntos no Lake District e nas lagoas de Jericoacoara aos planos de nossas viagens à Argentina
e França no segundo semestre, dos colegas da Open University britânica e da AAG nos Estados Unidos aos da UFF e
da UEPG no Brasil, das ações do radicalismo islâmico às conquistas do movimento LGBT, do carinho de nossas irmãs
às histórias de meu pai aos quase 90 anos, da alegria da família que comemora o aniversário, na mesa ao lado, ao
africano que a parou na rua para mostrar o voo dos pássaros que acabam de chegar da África do Sul para o verão do
Norte ... Um pouco como esses pássaros sem fronteiras, mas que também constroem ninhos, festejamos a diferença
acolhedora que o estar junto proporciona: voamos pelo mundo, mas nosso ninho continua sendo tenazmente cons-
truído nesses fugazes mas ao mesmo tempo profundos momentos em que a mais genuína expressão do sentimento
humano de partilha e companheirismo se realiza.

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Dossiê Doreen Massey

Com Doreen Massey e Arun Saldanha no campus da


Open University, em Milton Keynes, 2003

Com Doreen no Lake District, noroeste da Inglaterra, 2010

Com Doreen Massey e José Borzachiello no Encontro da


ANPEGE, Fortaleza, 2005

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Referências bibliográficas

ALBET, A. e BENACH, N. 2012. Doreen Massey: un sentido global de lugar. Barcelona: Icaria.

CALLARD, F. 2004. Doreen Massey. In: Hubbard, P. et al. (org.) Key Thinkers on Space and Place. Londres : Routledge.

HAESBAERT, R. 2014. Viver no Limite. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

MASSEY, D. 1981. Regionalismo: alguns problemas atuais. Espaço & Debates, ano 1, n. 4.

_______ 1984. Spatial Divisions of Labour: social structures and the Geography of Production. Basingstoke : Macmillan.
(2a. edição em 1995)

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_______ 1991b. Global sense of place. Marxim Today v. 6.

_______ 2005. For Space. Londres: Sage (ed. brasileira: « Pelo Espaço » Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008)

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PAINTER, J. e FEATHERSTONE, D. (org.) 2013. Spatial Politics: essays for Doreen Massey. Londres: Wiley-Blackwell.

PHELPS, N. 2008. Spatial Divisions of Labour (1984): Doreen Massey. In: Hubbard, P. et al. (org.) Key Texts in Human
Geography. Londres: Sage.

10
Dossiê Doreen Massey

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai./ago.

Dossiê Doreen Massey

‘NÃO ME CHAME DE SENHORA, EU SOU FEMINISTA’!


POSICIONALIDADE E REFLEXIBILIDADE NA PRODUÇÃO GEOGRÁFICA DE DOREEN MASSEY

Joseli Maria Silva*


Universidade Estadual de Ponta Grossa

Marcio Jose Ornat**


Universidade Estadual de Ponta Grossa

Alides Baptista Chimin Junior***


Universidade Estadual do Centro Oeste

Resumo: Este texto tem por objetivo evidenciar as influências da teoria feminista na produção geográfica de Doreen Massey. Para dar conta deste
objetivo trago registros guardados em minha memória de nossa curta relação em finais de 2015 e início de 2016, bem como os elementos feministas
que marcam suas mais notáveis contribuições científicas na geografia. Retomo as suas críticas em relação à compressão espaço-tempo no processo
de globalização, suas proposições para superar a oposição entre espaço e lugar mostrando que a reflexão em torno de sua posicionalidade como
mulher e feminista lhe possibilitaram a produzir uma imaginação geográfica que, sem dúvida, trouxe avanços conceituais nesse campo disciplinar.
Palavras Chave: Geografia Feminista. Posicionalidade. Espaço. Lugar.

‘Don’t call me Ms, I’m a feminist!’ Positionality and reflexivity in the Doreen Massey’s geographic production
Abstract: This text aims to evidence the feminist theory influences on Doreen Massey’s geographic production. To achieve this goal, I bring memories
of our short relationship in late 2015 and early 2016, as well as the feminist elements that mark her most remarkable scientific contributions to
geography. I take up her criticisms of space-time compression in the process of globalization, her propositions to overcome the opposition between
space and place, showing that the reflection around her positionality as a woman and feminist allowed her to produce a geographical imagination
that, undoubtedly, has brought conceptual advances in this disciplinary field.
Keywords: Feminist Geography. Positionality. Space. Place.

‘No me llames de señora, yo soy feminista’! Posicionalidad y reflexibilidad en la producción geográfica de Doreen Massey
Resumén: Este texto tiene por objetivo evidenciar las influencias de la teoría feminista en la producción geográfica de Doreen Massey. Para llevar
a cabo este objetivo son expostos registros guardados en mi memoria de nuestra corta relación a finales de 2015 e inicio de 2016, así como los
elementos feministas que marcan sus más notables contribuciones científicas en la geografía. Retomo sus críticas en relación a la compresión
espacio-tiempo en el proceso de globalización, sus proposiciones para superar la oposición entre espacio y lugar mostrando que la reflexión en
torno a su posicionalidad como mujer y feminista le otorgan la capacidad de producir una imaginación geográfica que, sin duda, ha traído avances
conceptuales en ese campo académico.
Palabras clave: Geografía Feminista. Posicionalidad. Espacio. Lugar.

________________________________
* Doutora em Geografia - UFRJ, docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia - UEPG. E-mail: joseli.genero@gmail.com
** Doutor em Geografia - UFRJ, docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia - UEPG. E-mail: geogenero@gmail.com
*** Doutor em Geografia - UEPG, docente do Departamento de Geografia - UNICENTRO. E-mail: alides.territoriolivre@gmail.com

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GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Introdução meu redor riram com desdém de seu posicionamento e


lamentaram sua apresentação como se a característica
de feminista diminuísse o valor de suas teorias.
Nós rimos juntas e lastimamos o quanto geógrafas
Compartilhar com Doreen Massey os últimos dias de feministas, em pleno século XXI, ainda assustam
sua existência foi uma experiência emocionante, da qual contextos acadêmicos sexistas. Doreen Massey
eu, Joseli Maria Silva, jamais esquecerei. Quando cheguei repetiu várias vezes que sua imaginação geográfica e
na Inglaterra em 2015 para a execução da minha pesquisa proposições teóricas eram, em grande parte, fruto de sua
de pós-doutorado realizei vários ensaios para entrar em posicionalidade feminista e isso deveria ser conhecido
contato com ela por telefone. Minha insegurança sobre no Brasil. Concordei e prometi que, sempre que tivesse
o domínio do idioma, bem como a apreensão de não ser oportunidade, falaria sobre isso à comunidade geográfica
bem recebida por alguém que nutro profunda admiração brasileira. Em onze de março de 2016 tínhamos um
intelectual me fizeram adiar o telefonema algumas vezes. encontro e quando liguei para sua casa para confirmação,
Escrevi primeiramente um e-mail, pois a forma escrita me alguém me comunicou sua morte.
colocava em situação de maior conforto. Doreen Massey Desde então me senti com uma dívida com Doreen
prontamente respondeu minha mensagem enviando seu Massey, a de evidenciar sua posicionalidade feminista
telefone residencial, solicitando que lhe telefonasse para em suas teorias e agradeço a Rogério Haesbaert a
agendarmos um encontro. Tomei o telefone e minha possibilidade de realizar a tarefa prometida por meio desse
primeira frase ensaiada, conforme as boas maneiras texto que fará parte de um dossiê em sua homenagem.
indicadas pelos meus livros de inglês, foi: Can I speak Com os companheiros do Grupo de Estudos Territoriais
with Ms1. Massey? Ela mesma havia atendido ao telefone (GETE), Marcio Ornat e Alides Baptista Chimin Junior,
e respondeu: Don’t call me ‘Ms’, I’m a feminist! Sua construímos esta reflexão com o objetivo de marcar a
resposta me deixou desconsertada por alguns segundos identidade feminista de Doreen Massey como elemento
e eu me recriminava por ter utilizado um pronome de de suas proposições conceituais na geografia. O texto
tratamento que eu, como uma feminista, sabia que era está organizado em duas seções. Na primeira parte
polêmico. discutimos os elementos que caracterizam a prática das
Após este episódio sobre sua firme posição de ser geografias feministas, associando a posição de Doreen
uma feminista percebi em vários momentos de conversas Massey sobre a produção científica e o fazer feminista.
a importância que esta identificação tinha para Doreen Na segunda parte do texto são estabelecidas as conexões
Massey. Um dia comentei o quanto ela e suas ideias entre suas críticas em relação à compressão espaço-
sobre o espaço estavam se tornando reconhecidas tempo no processo de globalização, suas proposições
nos cursos de pós-graduação no Brasil, em grande para superar a oposição entre espaço e lugar com sua
parte, graças à tradução do seu livro For Space para o clara posicionalidade como geógrafa feminista.
português2. Ela perguntou se as pessoas aqui no Brasil
lhe reconheciam como uma geógrafa feminista e eu disse
que não. Em geral, as pessoas não fazem a associação
Geografia feminista é mais do que estudar
entre suas teorias e sua posição identitária feminista o
gênero
que, em uma academia sexista como é a brasileira, a não
conexão trazia a vantagem das pessoas não criarem uma
resistência prévia às suas proposições. Há sem dúvida uma confusão entre estudar gênero
A conversa continuou e eu relatei a ela a primeira na geografia e produzir geografias feministas. Doreen
vez que a vi falar sobre sua identidade feminista e o Massey tinha clareza sobre este aspecto. Para ela,
constrangimento que tal posição causou para a audiência ser uma geógrafa feminista não remetia diretamente
brasileira. Em 2005 em Fortaleza em um encontro da à temática de gênero e abordar gênero nas pesquisas
Associação Nacional de Pós-graduação em Geografia geográficas não estava diretamente vinculada ao fazer
eu estava presente e muito ansiosa por ouvi-la. Lembro- científico feminista. O feminismo na prática acadêmica é
me com certo embaraço o momento em que ela se uma perspectiva subversiva mais ampla e em sua ideia era
apresentou ‘as feminist geographer’. Várias pessoas ao possível ser uma geógrafa feminista sem, propriamente,
abordar gênero. Sua atuação no movimento político
1
Desde a década de 60 o mundo anglófono adotou o pronome genérico ‘Ms’ para feminista durante os anos 70 produziu uma perspectiva
substituir os anteriormente utilizados: ‘Mrs’ (para mulheres casadas) e Miss (para
mulheres solteiras). Embora eu tivesse utilizado o pronome ‘Ms.’ para me referir de transformação da sociedade que vai além de estudar
a uma pessoa com notoriedade no universo acadêmico, o pronome é polêmico
e irrita muitas mulheres feministas que consideram todos esses pronomes de gênero, como pode ser visto em um trecho de depoimento
tratamento para mulheres associados ao poder patriarcal, pois os termos derivam
etimologicamente da expressão ‘Mistress of the House’. de Doreen Massey em uma entrevista desenvolvida na
2
Trata-se do livro Pelo espaço: uma nova política da espacialidade, publicado no
Brasil em 2008.

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Dossiê Doreen Massey

Universidade de Glasgow3: sempre foi generificado, mesmo que masculino.


Reconhecer a criação e legitimação das hegemonias
Existem diferentes maneiras de fazer geografia de saberes corporificados é um traço fundamental da
feminista e formas absolutamente valiosas de ser uma geografia feminista.
acadêmica feminista. Minha preferência, o que não
significa que eu pense que todos deveriam fazer isso, As geografias feministas reconhecem a ciência
não foi estudar gênero como tal. O feminismo ia além geográfica por meio da análise da ação de pessoas, de
do gênero. O feminismo na década de 1970 era sobre
uma nova sociedade, uma nova maneira de ser, uma seus instrumentos de pesquisa, ideologias, culturas, e
nova maneira de organizar as coisas. Isso é uma luta assim por diante. Os princípios e enunciados jamais são
política mais ampla. Quero ter feministas em todos os
lugares, na física nuclear, na geomorfologia, na geografia
considerados como fora de embates e medição de forças
humana, etc. Estudando tudo como uma feminista, não e interesses, ou seja, o científico é sempre político. A ação
apenas estudando mulheres ou gênero. Então eu fui de conhecer baseia-se nas epistemologias escolhidas
bastante resistente ao trabalhar com gênero. Isso não
significa que outras pessoas não deveriam fazê-lo4. que estão nas entranhas dos processos de pesquisa e
isso precisa ser assumido, discutido e colocado de forma
Para Doreen Massey ser uma geógrafa feminista transparente em uma perspectiva feminista.
implicava pensar o conhecimento, as relações políticas Doreen Massey considerava a força da epistemologia
e de poder que eram inerentes ao processo de e como os modelos conceituais construíam a realidade.
constituição da imaginação geográfica e de seu processo Ela usava o termo ‘imaginação’ para discutir as teorias que
de legitimação. Ela se dedicou a pensar conceitos são formuladas e balizam as formas como lidamos com a
geográficos como espaço, lugar, região, desafiando as realidade. Ao discutir a imaginação geográfica construída
formas de pensar de seu tempo. sobre a globalização, por exemplo, ela argumenta
Seu trabalho inspirou outras geógrafas feministas sobre “a importância de sempre estar consciente das
britânicas como Gillian Rose que produziu Feminism relações de poder e isso significa considerar ambos, no
& Geography: The Limits of Geographical Knowledge sentido das relações de poder nas esferas sociais que
(1993) e Linda McDowell que escreveu Gender, Identity estamos examinando e no sentido das relações de poder
and Place: understanding feminist geographies (1999). incorporadas no sistema de saber-poder que as nossas
Ambas as obras desenvolvem caminhos conceituais e conceituações estão construindo’6. (MASSEY, 1999, p.
metodológicos, evidenciando que a identidade feminista 27).
da geografia se constitui no processo de fazer científico. Uma pesquisa geográfica feminista, como argumenta
A geografia feminista parte do pressuposto de que a McDowell (1992), deve considerar a metodologia.
ciência é produzida por seres humanos em seu cotidiano Não basta incluir gênero como tema de investigação
e, portanto, o conhecimento gerado é relacional ao tempo geográfica. Nem toda pesquisa que leva em consideração
e espaço próprios do cientista. Sendo assim, uma das o gênero ou, ainda, que é realizada por uma mulher
grandes críticas da corrente epistemológica feminista é pode ser considerada uma pesquisa norteada pelas
sobre o mito da existência de um olhar que tudo vê, que epistemologias feministas.
tudo explica e que não pode ser visto, produzindo uma Os corpos importam nas experiências espaciais
espécie de verdade universal, popularmente conhecido e também nas práticas de pesquisa. Esse aspecto é
no meio feminista como sendo o god trick5. McDowell e incontestável e deve ser considerado no processo de
Sharp (1997) argumentam que a ideia da universalidade reflexibilidade. Mas a relação direta entre corpos e
do conhecimento difundido como neutro é apenas um identidades feministas não é simples. A ideia de Haraway
conjunto de ideias sobre a verdade da humanidade que foi (1988) a respeito do ‘conhecimento situado e corporificado’
especificamente masculino. Sendo assim, como afirma advoga contra todas as formas de conhecimento que não
Rose (1993), não se pode negar que o conhecimento são localizáveis. Alerta ela que, da mesma forma que as
feministas criticaram as visões totalizantes de realidade
que não consideravam as posições de vários grupos
3
Em 02 de julho de 2009 Doreen Massey participou da celebração do Centenário
da Geografia na Universidade de Glasgow e nessa oportunidade concedeu uma sociais e se colocavam como única autoridade científica,
entrevista ao Grupo de Pesquisa de Geografia Humana.
o relativismo de um conhecimento subalterno, que se
4
There are different ways of doing feminist geography and absolutely valued ways of
being a feminist academic and my preferred tack, which isn’t that I think everybody coloque como única versão da realidade, também é uma
ought to do this, has been not to study gender as such. Feminism was about more
than gender. Feminism in the 1970s was about a new society, a new way of being,
posição limitada e estreita. Para ela, a alternativa às
a new way of organising things; it is a bigger political struggle. I want to have totalizações não é o relativismo, mas os saberes parciais,
feminists everywhere, in nuclear physics, in geomorphology, in human geography
etc. Studying everything as a feminist, not just studying women or gender. So I was localizados, críticos, que formem redes de conexões e
quite resistant to doing gender. That doesn’t mean other people shouldn’t. (MASSEY,
et all, 2009, p. 7) articulem a política e a epistemologia.
5
Esta expressão metafórica foi criada por Donna Haraway (1988) para criticar a
posição de arrogância da ciência ocidental moderna como ‘olho que tudo vê’. Uma 6
“(…) the importance always of being aware of power-relations. And this is meant
visão usada para distanciar o pesquisador de tudo e todos para manter o poder. both in the sense of the power-relations in the social spheres we are examining
A autora descreve essa posição da visão científica como um ‘truque de deus”, and in the sense of the power-relations embedded in the power-knowledge system
colocando o cientista como um observador onisciente. which our conceptualizations are constructing”. (MASSEY, 1999, p. 27)

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GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Haraway (1988) chama a atenção para a fantasia e a conhecimento, evidência e argumento convincente.”8
ilusão do conhecimento produzido pelas feministas que Assim, segundo elas, a produção de um conhecimento que
fazem de seu ponto de mirada a única possibilidade de seja considerado feminista segue determinados princípios
verdade, colocando-se como autoridades científicas éticos a serem levados em conta durante as práticas de
por estarem localizadas na subalternidade. Apesar de pesquisa. Uma pesquisa feminista está comprometida
ser fundamental que subalternizados produzam suas metodologicamente com a reflexibilidade sobre: (1) a
versões da realidade, é preciso considerar que nenhuma força da epistemologia, (2) as fronteiras e limites, (3)
posição está isenta de críticas e tampouco é uma visão as relações e as (4) múltiplas dimensões da localização
inocente e sem interesses. Haraway (1988) alerta para do pesquisador e suas interações no processo de
a ilusão de se considerar a versão subalternizada como pesquisa. O comprometimento metodológico tem como
única verdadeira e a mais próxima da verdade. As versões fundamento a prática da pesquisa como instrumento
subalternas são mais atraentes justamente por parecem de transformação da ordem social para a promoção
explicar fenômenos de forma mais firme e, assim, figuram da justiça de gênero. Segundo elas, a reflexão crítica
como difíceis de serem contestadas e negadas. Para ela, sobre esses quatro aspectos e sua interdependência
a totalização e o relativismo são faces da mesma moeda permite trazer para a visibilidade a provisionalidade e a
porque ambos negam o interesse nas suas posições contingência dos dados de pesquisa, e a construção do
corporificadas e parciais da realidade. Como alternativa processo de pesquisa implica relativizar as fronteiras e
para a produção do conhecimento que escape tanto da limites de conceitos que foram essencializados a fim de
totalização como do relativismo, ela diz: buscar os caminhos transformadores. Os quatro aspectos
de reflexão propostos por Ackerly e True (2010) sobre as
Então, com muitas outras feministas, quero argumentar pesquisas feministas são detalhados a seguir.
por uma doutrina e prática de objetividade, que
privilegie a constatação, a desconstrução, a construção A força da tradição da epistemologia é um dos aspectos
apaixonada, as conexões em rede e a esperança de a serem enfrentados por aqueles que realizam pesquisas
transformação de sistemas de conhecimento e das
formas de ver. Mas nenhuma perspectiva parcial o geográficas feministas. O corpo teórico e metodológico
fará. Devemos ser hostis aos relativismos fáceis e deve ser cuidadosamente refletido e desafiado. É o corpo
holismos construídos somando e incluindo partes.
teórico e metodológico de um campo científico que cria
O “desapego apaixonado” exige mais do que o
reconhecimento e parcialidade autocrítica. Nós também as invisibilidades de certos fenômenos e grupos sociais
estamos obrigados a procurar perspectiva daqueles e não a realidade em si. As mulheres, negros, indígenas,
pontos de vista, que nunca podem ser conhecidos
antecipadamente, que prometem algo extraordinário, homossexuais e assim por diante vivem espacialmente
que é o conhecimento potente para a construção de na vida cotidiana. Portanto, a abordagem feminista
mundos menos organizados por eixos de dominação.7
precisa duvidar das bases epistemológicas que criam e
(HARAWAY, 1988, p. 585).
sustentam a invisibilidade e recriar conceitos e métodos
que possibilitem a análise geográfica desses grupos e não
O conhecimento posicionado proposto por Haraway
apenas aceitar sua ausência na geografia porque não são
(1988) implica reconhecer nossa capacidade de produzir
considerados seres geográficos, conforme argumenta
um saber que se faz de determinada situação e de se
Silva (2009). É preciso desconfiar que um campo científico
responsabilizar por ele, sendo capaz de explicitar cada
seja de tal forma por causa de uma essência qualquer,
ação investigativa. Assim, para ela, a política e a ética
mas entender que foi assim constituído porque é fruto de
são as bases das contestações sobre aquilo que pode
forças e privilégios que são mascarados por conceitos e
ser concebido como conhecimento. Do contrário, a
métodos aparentemente neutros, objetivos e imparciais.
autoridade científica é simplesmente uma ilusão projetada
Uma geografia feminista questiona conceitos e métodos
de maneira abrangente, vinda de lugar nenhum. A ideia
que podem mascarar diferenças, desigualdades e
do conhecimento parcial e posicionado é um importante
dominações, e luta contra as universalizações.
avanço para as epistemologias feministas.
O cuidado com as fronteiras e os limites é outro
Ackerly e True (2010, p. 25) sustentam a ideia de que
aspecto a que uma geografia feminista deve estar alerta, e
a “epistemologia é um sistema de pensamento que nós
isso está relacionado com a questão da força da tradição
usamos para distinguir fato de crença. Uma epistemologia
epistemológica. A teoria estabelecida e legitimada
é ela mesma um sistema de crenças sobre o que constitui
pela tradição cria fronteiras analíticas que limitam as
possibilidades e a forma como nós concebemos nossas
7
So, with many other feminists, I want to argue for a doctrine and practice of
objectivity that privilege constatation, desconstruction, passionate construction,
questões e problemas de pesquisa. As estruturas
webbed connections, and hope for transformation of systems of knowledge and oposicionais e binárias, com fronteiras e limites, muitas
ways of seeing. But not any partial perspective will do; we must be hostile to easy
relativisms and holisms built out summing and subsuming parts. ‘Passionate vezes são os fatores que criam e perpetuam as ausências
detachment’ requires more than acknowledged and self-critical partiality. We are
also bond to seek perspective from those points of view which can never be known
in advance, that promise something quite extraordinary, that is knowledge potent 8
An epistemology is the system of thought that we use to distinguish fact from
for constructing worlds less organized by axes of domination. (HARAWAY, 1988, belief. An epistemology is itself a belief system about what constitutes knowledge,
p. 585). evidence, and convincing argument. (ACKERLY e TRUE, 2010, p. 25).

14
Dossiê Doreen Massey

e silêncios de determinadas geograficidades. políticas em cada estágio do processo de pesquisa.


Enfim, uma pesquisa feminista tem o dever de Portanto, não há uma receita de passos para construir uma
pensar que os limites e fronteiras que são estabelecidos pesquisa geográfica feminista, mas princípios que regem
pela tradição epistemológica não são dados, mas são práticas investigativas. A pesquisa feminista se faz com
humanamente construídos, gerando consequências comprometimento da atenção com a força da tradição
na visibilidade de determinados grupos sociais. As epistemológica, o cuidado com os limites e fronteiras
geografias feministas devem estar atentas para encontrar teóricas e metodológicas que moldam nossa maneira
as lacunas e as razões das ausências, reinventando de pensar a geografia e perpetuam silenciamentos,
formas de conceber a realidade espacial por meio do ausências e marginalizações, a preocupação com o
tensionamento dos conceitos e métodos já concebidos. contexto relacional da investigação e a coragem de
Logicamente, a prática de pesquisa implica a realização nos situarmos no processo investigativo, cultivando a
inevitável de recortes da realidade, e isso está relacionado reflexibilidade sobre todos os aspectos anteriores, que
com o estabelecimento de limites. Contudo, uma pesquisa são interdependentes entre si.
feminista deve ser consciente das responsabilidades Todos os quatro aspectos anteriormente discutidos
sobre as intenções e as consequências das escolhas podem ser claramente reconhecidos na obra de Doreen
metodológicas e dos efeitos que tais escolhas podem Massey. Embora ela tenha trazido o gênero como foco de
gerar. vários de seus estudos, inclusive no início dos anos 80, ela
A atenção às relações envolvidas no processo de foi além disso. Trouxe em sua prática de vida acadêmica
pesquisa é fundamental para uma pesquisa feminista.9 e produção conceitual sua posicionalidade feminista.
A relação de poder entre o/a pesquisador/a e os/as
outros/as participantes da pesquisa são elementos a
serem considerados na produção dos dados. A ideia
Estabelecendo as conexões das contribuições
de não utilizar a denominação ‘objetos de pesquisa’ ou
teóricas de Doreen Massey para a geografia e
‘pesquisadas/os’ relaciona-se com a convicção de que
sua posicionalidade como geógrafa feminista
os grupos que são alvo da investigação não são passivos
no processo de pesquisa, mas atuantes na sua produção.
Portanto, as características que envolvem esta relação Doreen Massey é uma das poucas mulheres citadas
devem ser consideradas no processo metodológico no livro Key thinkers on space and place publicado
porque fazem parte da produção dos resultados por Hubbard, Kitchin e Valentine (2004). Essa obra
possíveis de serem produzidos. É a relação que produz a possui o status de uma enciclopédia que serve como
pesquisa, e não o/a pesquisador/a ou os/as participantes uma ferramenta para auxiliar profissionais da área da
considerados de forma isolada ou oposicional. Uma geografia a consolidar o conhecimento dos pontos-
pesquisa comprometida com os princípios feministas chaves de desenvolvimento teórico da geografia
precisa considerar a relação e os impactos que a no contexto anglófono. Ali são apontados autores/
pesquisa pode trazer para todos os/as participantes e as influentes no campo científico daquele contexto,
seus contextos, primando por construir um modelo de suas biografias resumidas e as principais críticas e
análise que resguarde o respeito. proposições conceituais. Callard (2004) ao explorar a
biografia de Doreen Massey e o contexto teórico de sua
O cuidado com a reflexão em torno da localização do
produção científica, não marca sua trajetória como uma
pesquisador e suas interações no processo de pesquisa
geógrafa feminista. Contudo, ela mesma, na entrevista
é importante para qualquer pesquisador/a, seja qual for
realizada em 2009 na Universidade de Glasgow, quando
sua abordagem epistemológica. Mas para uma pesquisa
questionada sobre as influências intelectuais sobre sua
feminista é fundamental que o/a pesquisador/a se
produção científica ela argumenta:
coloque como ativo/a na produção do conhecimento
e reflita como sua própria posição sociopolítica de
privilégios estabeleceu as dinâmicas específicas com Bem, elas [referindo-se às influências] não são intelectuais
e isso é o que é tão interessante. Eu nunca trabalhei
os outros participantes da pesquisa, resultando no saber assim. Eu fui questionada sobre isso anteriormente e
que se fez coletivamente. Como a pesquisa feminista eu não consegui dizer se houve pessoas ou autores em
especial que tenham me iluminado nessa direção. Isso
considera que o conhecimento é sempre situado, a
foi bem mais, e isso pode ser em parte um produto de
reflexibilidade é uma prática indispensável (ROSE, 1997). uma geração específica da qual eu fiz parte. Aquele
estímulo sobre as coisas, o motivo para fazer perguntas
A geografia feminista implica que o/a pesquisador/a sobre as coisas e as formas como os debates foram
se pergunte de que forma sua própria posição afeta enquadrados, resultaram do fato de eu fazer parte dos
sua metodologia, revisitando suas escolhas e relações movimentos políticos. Se isso aconteceu [referindo-se às
influências] no final dos anos 60 e 70 com o surgimento
do marxismo, do feminismo, da libertação sexual ou do
9
Este aspecto não é exclusivo das epistemologias feministas, sendo uma reflexão tipo de coisas que aconteceram mais recentemente,
importante, sobretudo no campo da antropologia e do método etnográfico.

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GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

geralmente isso se dá pelo envolvimento com a política. Se a reflexividade sobre as múltiplas dimensões da
Então, muitos dos meus principais pontos de referência
foram debates urgentes provocados por coisas assim localização do pesquisador no processo de produzir
[referindo-se aos movimentos políticos]10. conhecimento é um claro exercício de Doreen Massey,
outros elementos indicados por Ackerly e True (2010)
Ao refletir sobre sua trajetória intelectual no momento sobre as epistemologias feministas podem ser
da entrevista em Glasgow 2009, Doreen Massey traz identificados em sua produção, como a consideração
uma reflexão sobre sua posicionalidade, elemento da força da tradição epistemológica, a necessidade de
fundamental para pensar a produção do conhecimento questionar as fronteiras e limites estabelecidos, bem
em uma perspectiva das epistemologias feministas, como considerar que todo conhecimento é relacional.
conforme argumentam Ackerly e True (2010). O trecho
A obra Spatial Divisions of labour: social structures
que segue é ilustrativo de sua reflexibilidade em torno
and the geography of production (MASSEY, 1984) traz
de sua condição como mulher, envolvida no movimento
alguns importantes elementos sobre o reconhecimento de
feminista que, apesar de buscar o marxismo como fonte
Doreen Massey sobre a força da tradição epistemológica
de inspiração teórica, sua posicionalidade feminista
e a necessidade de enfrentá-la. O pensamento relacional
trazia conflitos, até seu encontro com Althusser. A obra
oriundo de suas bases marxistas foi refinado e
de Althusser possibilitou a ligação de sua existência
permaneceu como um importante elemento em toda sua
como mulher feminista e a teoria marxista, constituindo
produção acadêmica. Nessa obra Doreen Massey trata o
assim um caminho particular de produção teórica:
espaço como inerente às relações de produção capitalista
em várias escalas e constitui a ideia da diferença regional
Eu li muito Marx e Engels e participei de muitas dessas
como imbricada com dinâmicas de produção. Com essa
discussões e achei muito, muito difícil me considerar
marxista. Mesmo que em um nível visceral em termos perspectiva ela enfrentou a ideia de limites estabelecidos
de querer pensar as políticas de classe, eu sabia que e fronteiras que responsabilizavam as próprias regiões
estava ‘daquele lado’, lendo Marx não me convencia
e acho que, anos depois, eu percebi que muitas de de forma isolada pelas suas diferenças internas,
minhas dúvidas tinham ocorrido pelo fato de que classificadas em uma linha imaginária de progresso
estávamos, naquele ponto, concentrando no início de
como sendo bem ou malsucedidas. Há mais de trinta
Marx e em coisas em torno da natureza humana, da
ideologia alemã e assim por diante, e, como feminista, anos, argumentar que as regiões estavam atreladas
não conseguia aderir a essas ideias. Muito disso era aos sistemas de organização espacial das relações de
muito, muito essencialista sobre as divisões sexuais
do trabalho, divisões ‘naturais’ do trabalho, todo esse produção capitalistas e que as diferenças regionais eram
tipo de coisas continuavam aparecendo. A família inerentes a esse processo, era considerada uma ideia
heterossexual era tratada de forma totalmente não
inovadora, apesar de hoje parecer óbvia.
problematizada e, mesmo naquela fase, eu não tinha
intenção de fazer parte de uma daquelas ideias. Então Ainda nessa obra é possível observar Doreen Massey
achei muito, muito difícil de aderir ao marxismo. E
se afastando do marxismo clássico que explicava os
então, veio Althusser. (...) Althusser insistia que tudo era
sempre um produto do que veio antes disso. E se isso espaços a partir de fenômenos universalizantes de
é verdade, então nada está dado. Então, qualquer coisa organização produtiva. Ela tratou o espaço para além da
pode ser alterada: sua frase famosa que eu repeti em
vários dos meus trabalhos é ‘não há ponto de partida’. concepção usual da época, que compreendia os lugares
E isso, absolutamente, como uma jovem mulher que como resultado dos fluxos de capitais, como coisas
estava tentando escapar das normas, que não estava
passivas aos processos globais. Sua teoria espacial
em conformidade com nenhuma das descrições de
‘mulher’, e que queria uma maneira de desafiá-las, foi a está entrelaçada de forma contundente com as ideias
primeira entrada no anti-essencialismo, embora eu não feministas que lutavam contra os processos explicativos
conhecesse esse termo e nenhum de nós conhecia esse
termo naquele tempo, foi absolutamente importante11. universais (god trick) que impediam a visibilidade das
diferenças (HARAWAY, 1988). Nessa obra, mesmo que
10
Well they aren’t intellectual, and that is what is so interesting. I have never quite as relações de classe tenham recebido atenção especial,
worked like that. I have been asked this question before and I couldn’t say that there
have been particular people or authors that have been guiding lights in that sense. It suas conexões com gênero e raça foram consideradas,
has been more, and this may be in part a product of the particular generation I have
been part of, that the stimulus to stuff, the reason for asking questions and the ways evidenciando que há elementos ideológicos para além do
in which debates got framed, have come out of being part of political movements.
Whether that has been in the late 60s and the 70s with the emergence of Marxism,
econômico que criam hierarquias e diferenças.
feminism, sexual liberation or the kind of stuff that has happened more recently, and
more generally an engagement with politics. (MASSEY, et all, 2009, p. 4) Doreen Massey rejeita a ideia de universalidade de
11
I read a lot of Marx and Engels and took part in a lot of those discussions and found processos produtivos, da visão dual e oposicional entre
it very, very difficult to count myself as a Marxist. Even though at a gut level in terms
of wanting to think class politics I knew I was ‘on that side’, reading Marx was not
local e global, bem como refuta a concepção de progresso
convincing me and I think years later I realised a lot of that doubt had been about the e/ou atraso nas análises sobre desenvolvimento
fact that we were, at that point, concentrating a lot on early Marx and stuff around
human nature, the German Ideology and so forth, and as a feminist I couldn’t buy de diferentes locais. Para ela os espaços estão
it. So much of it was so very, very essentialist about the sexual divisions of labour,
‘natural’ divisions of labour, all this kind of stuff kept coming up. The heterosexual interconectados e com essa visão cria as ideias que,
family was treated completely unproblematically and even at that stage I had no
intention of being part of one of those. And so I found it very, very difficult to buy into
Marxism. And then along came Althusser. (...) Althusser insisted that everything was was trying to escape the norms, who didn’t conform to any of the given descriptions
always a product of what came before it. And if that is true then nothing is given. So of ‘woman’, and who wanted a way of challenging them, that first entry into anti-
anything can be changed: his famous line which I have repeated in a number of my essentialism, although I didn’t know that term, none of us knew that term at that
works is ‘there is no point of departure’. And that absolutely, as a young woman who point, was utterly important. (MASSEY, et all, 2009, p. 4-5)

16
Dossiê Doreen Massey

durante os anos 90, foram foco de inúmeras discussões, controle do que outras. É que a mobilidade e o controle
de alguns grupos podem enfraquecer ativamente outras
‘geometrias de poder’ e ‘espaço-tempo’. pessoas. A mobilidade diferencial pode enfraquecer a
Um dos pressupostos mais importantes das alavancagem do já fraco. A compressão tempo-espaço
de alguns grupos pode prejudicar o poder de outros12.
epistemologias feministas é o questionamento das (MASSEY, 1991a, p. 4)
fronteiras e dos limites estabelecidos que são capazes
de recortar a realidade de forma a produzir determinadas A visão relacional, desconstrutora de dicotomias
visibilidades e compreensões da realidade. As feministas e oposições, o questionamento das tradições
sempre questionam os recortes e como se estabelecem epistemológicas e das relações de poder inerentes à
as fronteiras e oposições a fim de produzir outras produção conceitual (todos elementos que constituem as
perspectivas de análise, notadamente trazer para o epistemologias feministas) foram base de um polêmico
debate as invisibilidades. Esta perspectiva feminista pode artigo escrito por ela, Flexible Sexism (MASSEY, 1991b).
ser reconhecida na sua proposição sobre ‘geometrias do Neste texto Doreen Massey teceu uma das mais eminentes
poder’. críticas de duas obras geográficas monumentais do
A ideia de ‘geometrias do poder’ Doreen Massey final dos anos 80, Condition of Postmodernity de David
desconstrói o dualismo na interpretação entre o espaço Harvey (1989) e Postmodern Geographies de Edward
e o lugar, entre o local e o global. Em Global sense of Soja (1989). Em 2009, em seu depoimento em Glasgow,
place artigo publicado por Massey (1991a), ela afirma ela foi questionada sobre as razões de escrever tal artigo
que as geometrias do poder são entendidas como tão controverso e sua resposta expressa sua identidade
diferentes formas de relações de fluxos e interconexões feminista:
entre diferentes grupos e indivíduos, evidenciando
assim a forma como a compressão do espaço-tempo A razão pela qual eu fiz ‘Sexismo flexível’ foi em parte
apenas raiva pura e visceral. Eu não sei se as pessoas
da globalização afeta pessoas de diversas maneiras. Ela sabem, mas este foi um artigo que publiquei há muito,
argumenta que não se trata de ver o local em oposição ao muito tempo atrás, mas os tipógrafos eram tão incapazes
de aceitar o título do artigo, que o cabeçalho foi definido
global, mas co-constituintes e posicionados em campos como ‘Sistemas Flexíveis’ ou algo assim. (...) E a outra
distintos de relações de poder. O mundo interconectado razão para o ‘Sexismo Flexível’ estava relacionada a
é uma realidade em que é necessário questionar a forma isso [referindo-se à necessidade de subversão aos
cânones estabelecidos] e acho que devemos atacar
como a conectividade se estabelece e isso envolve as cidadelas13. Estes foram dois grandes livros, todos
pensar nem o local em si, e nem o global, mas a forma achavam que eles eram maravilhosos e, em muitos
aspectos, ambos eram. Mas eles também me pareciam
e a natureza da geografia das relações de poder que ser totalmente, inconscientemente, profundamente,
tecem os dois juntos. O local-global são co-constituídos sexistas. E eu só queria atacar onde as fontes de poder
nas geometrias do poder e isso remete à necessidade estavam em termos das vozes dentro da geografia;

de estabelecer a política, o que leva à ideia de que nada então eu o fiz14. (MASSEY, et all, 2009, p. 7).

está dado ou determinado unicamente pelas forças


econômicas abstratas. O artigo Flexible Sexism, posteriormente, figurou
O olhar feminista de Doreen Massey é aguçado para como um capítulo do livro Space, place and gender,
observar as diferenças e lutar contra as homogeneizações publicado em 1994 em que Doreen Massey se dedica ao
fáceis, da ideia de um mundo global conectado onde estabelecimento das conexões complexas entre espaço,
impera a compressão espaço-tempo. Ela argumenta que lugar e as relações de gênero, evidenciando o papel da
a compressão espaço-tempo precisa ser analisada a geografia na compreensão da construção de ideias que
partir do ponto de vista da diferenciação social, trazendo
12
There are differences in the degree of movement and communication, but also
muitos exemplos que envolvem classe, gênero e raça que in the degree of control and initiation. The ways in which people are placed within
posicionam grupos de forma distinta em tal processo – o ‘time-space compression’ are highly complicated and extremely varied. But this in
turn immediately raises questions of politics. If time-space compression can be
que ela chama de geometrias de poder: imagined in that more socially formed, socially evaluative and differentiated way,
then there may be here the possibility of developing a politics of mobility and access.
For it does seem that mobility, and control over mobility, both reflects and reinforces
power. It is not simply a question of unequal distribution, that some people move
Existem diferenças no grau de movimento e more than others, and that some have more control than others. It is that the
comunicação, mas também no grau de controle e mobility and control of some groups can actively weaken other people. Differential
mobility can weaken the leverage of the already weak. The time-space compression
iniciação. As formas como as pessoas são colocadas of some groups can undermine the power of others. (MASSEY, 1991a, p. 4)
dentro da ‘compressão espaço-tempo’ são altamente
complexas e extremamente variadas. Mas isso, por sua O termo ‘cidadelas’ é uma metáfora utilizada por Doreen Massey para representar
13

espaços acadêmicos cercados para manutenção de seu poder.


vez, levanta imediatamente questões de política. Se a
compressão tempo-espaço pode ser imaginada na forma 14
The reason I did ‘Flexible Sexism’ was partly just pure, visceral anger. I don’t
mais socialmente formada, socialmente avaliadora e know whether people know, but this was an article I published a long, long time
ago, but the typesetters were so incapable of taking on board the article’s title, that
diferenciada, então pode haver aqui a possibilidade de
the running head was set as ‘Flexible Systems’ or something like that. (...) And the
desenvolver uma política de mobilidade e acesso. Pois other reason for ‘Flexible Sexism’ was related to that and that is I think we ought
parece que a mobilidade e o controle da mobilidade to attack the citadels. These were the two big books, everybody thought they were
refletem e reforçam o poder. Não é simplesmente uma wonderful, and in many ways they both were. But they also seemed to me to be
utterly, unconsciously, deeply, sexist. And I just wanted to attack where the sources
questão de distribuição desigual, que algumas pessoas
of power were in terms of the voices within geography; so I did. (MASSEY, et all,
se movem mais do que outras, e que algumas têm mais 2009, p. 7)

17
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

são culturalmente específicas no espaço-tempo. apresentando uma historicidade linear, impedindo a


O texto Flexible Sexism traz com toda força os emergência de outras vozes e contradições e defende a
elementos das epistemologias feministas para sustentar ideia da necessidade de contempla as diferenças. Além
as críticas de Doreen Massey (1991b) à Harvey (1989) disso, a linguagem utilizada nas obras em discussão
e Soja (1989). Já no início do artigo ela esclarece que por ela evidencia que o ‘olhar’ que conta na narrativa é
o texto não se propõe a realizar uma revisão completa universalizado pelo autor. Ela argumenta que os autores
das obras escolhidas, Condition of Postmodernity e reduzem as ‘suas’ versões sobre a modernidade a uma
Postmodern Geographies, mas iniciar um debate em biografia do capitalismo e isso faz com que estruturas
torno de uma questão específica que foi despertada como o patriarcado apareçam apenas como acessórios,
para ela: o feminismo. Muito importante ressaltar que já que a centralidade está pautada no sistema de
ela entende aqui o feminismo como algo mais amplo do capital. Massey (1991b) ainda menciona que Harvey
que a ideia de gênero, mas em um movimento científico (1989) considera as políticas feministas como sendo de
e político que há muito já avançava para além das ideias escopo limitado, pois são consideradas de caráter local,
modernas. enquanto as relações de classe são consideradas por ele
Assim, para ela, as duas obras que se comprometiam a de caráter global. Doreen Massey revela que ambos os
discutir modernidade/posmodernidade na geografia eram, autores, Harvey e Soja, utilizam sua posição ‘magistral’, a
no mínimo, sexistas, na medida em que nenhuma delas partir das experiências como flâneurs, de arrogar o olhar
considerou uma literatura já produzida anteriormente panóptico e arrogante de tudo poder explicar de modo
pelas feministas, sendo simplesmente desprezada. Três universalizante, sem considerar as posições de outros
direções de argumentos criados por Doreen Massey grupos e locais.
(1991b) podem ser verificados. O texto crítico de Massey (1991b) recebeu muitas
A primeira crítica é que ambos os autores, Harvey e respostas, inclusive do próprio David Harvey (1992), com
Soja, assumem a universalidade de subjetividades e um artigo sob o título Postmodern morality plays. Doreen
processos sociais. Os sujeitos apresentados por esses Massey enfrentou os debates e como feminista, sabia
autores são descorporificados em termos de raça e gênero, o poder que as narrativas hegemônicas possuem de
sendo que os autores assumem um sujeito genérico, que excluir outras versões de realidade, produzidas por outras
é ocidental, masculino, branco e heterossexual como pessoas ou grupos marginais. Assim, ela manteve sua
modelo para a generalização de suas teorias. Para postura crítica para desafiar os discursos monolíticos e
Doreen Massey, livros que se aventuraram a discutir a criar possibilidades de debates. Quando questionada em
pós-modernidade, deveriam contemplar sujeitos que não 2009 em Glasgow sobre a situação entre o sexismo e o
fossem protagonistas da modernidade. espaço acadêmico, ela argumenta:
A segunda linha de críticas às referidas obras se
baseia na ignorância dos autores da produção científica Eu tive muita sorte que a Open University seja bastante
progressiva. Mas, nas universidades e instituições
feminista que tratava da pós-modernidade. Ambas as acadêmicas, em geral, permanece um esquecimento
obras apresentam como ‘descobertas’ ou ‘novidades’ penetrante das questões do sexismo. A desconsideração
das mulheres, simplesmente não nos vendo ou ouvindo,
muitos aspectos que já haviam sido antecipados na
ainda continua. E de forma mais contraditória, para
literatura feminista. Um exemplo dado pela autora é a se juntar a eles [referindo-se às posições masculinas]
ideia do conhecimento situado já trabalhada por Haraway em comitês ‘importantes’ (auto-importantes), para
jogar o jogo, você ainda (depois de todo esse tempo)
(1988). Segundo Doreen Massey a ignorância desses tem que jogar de um determinado modo (pomposo,
autores sobre elementos que não eram mais novidades excessivamente sério, auto-congratulatório, competitivo
- embora de uma maneira muito ‘civilizada’!). Isso é
está baseada na sua desconsideração das vozes
contrário a tudo o que o feminismo deve defender. Há
femininas na produção científica. também uma questão que me preocupa recentemente.
E a questão é como nós – e isso deveria incluir homens
A terceira linha de críticas sobre ambas as obras em também - anti-sexistas, geógrafos/as feministas,
foco é a consideração simplista de que as relações de acadêmicos/as, deveríamos abordar questões fora da
poder e políticas estão apenas em torno do capitalismo, academia também15. (MASSEY, et all, 2009, p. 7)
deixando de lado outras importantes dinâmicas de
sexismo, racismo e homofobia, reduzindo tais processos Suas palavras denotam a responsabilidade que o
com simples efeitos secundários do sistema capitalista.
Doreen Massey entende que essas outras dinâmicas 15
I have been lucky in that the Open University is pretty progressive. But in universities
não podem ser analisadas como sub-produtos, mas and academic institutions more generally there remains a pervasive oblivion to
issues of sexism. The discounting of women, simply not seeing or hearing us,
componentes dos processos de produção e reprodução still goes on. And more contradictorily, to join them on ‘important’ (self-important)
committees, to play the game, you still (after all this time) so often have to play in
social. a way (pompous, overly serious, self-congratulatory, competitive – though in a very
‘civilised’ way!) that is counter to everything feminism should stand for. There is also
Massey (1991b) acusa ambas as obras de one issue that has been troubling me just recently. And that is how we as – and this
would include men as well – anti-sexist, feminist geographers, academics, should be
uma narrativa completamente coerente e fechada, addressing issues outside of the academy also. (MASSEY, et all, 2009, p. 7)

18
Dossiê Doreen Massey

saber acadêmico possui na transformação social e, comunicar seu profundo equívoco teórico e metodológico.
principalmente, a necessidade do espaço acadêmico
ser compreendido pelas pessoas que fazem parte
dele, produzindo outras geometrias de poder, capaz
de impulsionar os grupos menos favorecidos em suas
posicionalidades.

Considerações finais

Escrever este artigo evidenciando a identidade


feminista de Doreen Massey foi uma imensa satisfação
para nós do Grupo de Estudos Territoriais (GETE). Não
apenas por cumprir uma tarefa prometida à nossa querida
Doreen Massey, mas por trazer para as geometrias de
poder que formam os espaços acadêmicos a potência
das epistemologias feministas por meio das proposições
teóricas de Doreen Massey.
Ao realizar as conexões das epistemologias
feministas às teorias espaciais que ela realizou durante
mais de trinta anos cumprimos a tarefa de evidenciar
que a ciência, os enunciados e a forma como tecemos
nossas imaginações geográficas estão embebidas de
experiências concretas.
Enfim, àqueles que hoje admiram e utilizam as teorias
de Doreen Massey, mas desprezam a importância das
epistemologias feministas nas transformações do
discurso científico geográfico, temos o imenso prazer de

Referências

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19
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SOJA, Edward. Postmodern Geographies. London: Verso, 1989.

20
Dossiê Doreen Massey

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai./ago.

Dossiê Doreen Massey

O QUE DOREEN DIRIA SOBRE NÓS?


UM ENSAIO SOBRE A PEDAGOGIA DA ESPERANÇA*

Ana Angelita da Rocha**

Resumo: Este ensaio investe na análise da produção bibliográfica de Doreen Massey, com atenção focada nos títulos dirigidos aos cursos para
o segmento do Ensino Superior, ministrados ou organizados por ela nas décadas de 1990-2000, na Open University (em Milton Keynes, Reino
Unido). A aproximação a esses trabalhos – ainda sem tradução para o português – procura inventariar os aspectos pedagógicos nas construções
epistemológicas da autora. O estudo da face pedagógica de Massey, ao considerar seus textos didáticos, busca um painel de ações, recursos e
metodologias para uma possível adoção dos conteúdos da Geografia passíveis de serem inseridos na Educação Básica. Portanto, não se trata de
uma incorporação vertical da academia para a escola, mas um estudo cujo inventário de procedimentos possa ser inspirador para a epistemologia
escolar, considerando a potencialidade da concepção espacial desenvolvida pela a autora (MASSEY, 1995, 2004, 2006, 2008).
Palavras-chave: Doreen Massey, Espaço, Ensino de Geografia.

WHAT WOULD DOREEN SAY ABOUT US?


An essay on the pedagogy of hope
Abstract: This essay invests in the analysis of Doreen Massey’s bibliographic production, with attention to the titles directed to Higher Education
courses, taught or organized by her in the decades of 1990-2000, at the Open University (in Milton Keynes, UK). The approach to these works - without
translation into Portuguese - seeks to set pedagogical aspects down in the author ‘s epistemological constructions. The study of the pedagogical bias
of Massey provides a set of actions, resources and methodologies for a possible syllabus of Geography that can be adopted in elementary education.
Therefore, it is not a vertical incorporation of the academy into the school, but a study whose inventory of procedures can be inspiring for school
epistemology, considering the possibilities of the spatial conception (MASSEY, 1995, 2004, 2006, 2008).
Keywords: Doreen Massey, Space, Geography Education.

¿QUÉ DIRÍA DOREEN SOBRE NOSOTROS?


Un ensayo sobre la pedagogía de la esperanza
Resumén: Este ensayo realiza um análisis de la producción bibliográfica de Doreen Massey, con la atención enfocada en los títulos dirigidos a
los cursos para el segmento de la Enseñanza Superior, impartidos o organizados por ella en las décadas de 1990-2000, en la Open University (en
Milton Keynes, Reino Unido). La aproximación a esos trabajos - aún sin traducción al portugués - busca inventariar los aspectos pedagógicos en las
construcciones epistemológicas de la autora. El estudio de la cara pedagógica de Massey, al considerar sus textos didácticos, busca un panel de
acciones, recursos y metodologías para una posible adopción de los contenidos de la Geografía pasibles de ser adoptados en la Educación Básica.
Por lo tanto, no se trata de una incorporación vertical del ámbito académico a la escuela, sino un estudio cuyo inventario de procedimientos puede
ser inspirador para la epistemología escolar, considerando la potencialidad de la concepción espacial desarrollada por la autora (MASSEY, 1995,
2004, 2006, 2008).
Palabras clave: Doreen Massey, Espacio, Enseñanza de Geografía.

________________________________
*Este ensaio apresenta a questão central da pesquisa “Lições de Doreen Massey: por uma agenda da Geografia Escolar”, submetida ao Programa de Pós-Graduação de
Geografia (UFF), na condição de estágio de pós-doutoramento, sob a supervisão do Professor Doutor Rogério Haesbaert, no período de 2016-2. Cabe sinalizar que, no texto,
procuro refletir brevemente a respeito do potencial pedagógico presente na extensa produção bibliográfica da geógrafa britânica.
**Professora do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, integrante do NEC/UFRJ e NUREG/UFF. Email: ana-angel-
ita@ufrj.br

21
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Introdução a Distância). Assumo aqui, a princípio, minha profunda


admiração pelas suas concepções ideológicas e
pedagógicas sobre o espaço.
O objetivo fundamental da educação - perguntar, ao Por esta razão, entendo que o momento é mais que
invés de aceitar acriticamente - é particularmente
poderoso quando o X da questão seja a natureza das
oportuno para nos debruçarmos sobre seu legado que
nossas imaginações geográficas. Doreen Massey, 2006 infelizmente assume aqui a ambivalência da luta e do
(tradução livre)1 . luto. Da luta que se desdobra em diferentes formas
de resistência a violentos projetos autocráticos que
Movido pela conjuntura das incertezas e dos desestabilizam qualquer princípio de democracia. De luto,
desencontros entre a política e a esperança, este em função da prematura e repentina passagem de Doreen
ensaio ambiciona, sobretudo, uma escrita solidária às Massey, provocando a sincera comoção na comunidade
resistências – face à avalanche conservadora que rasga geográfica e nos movimentos de esquerda em diversas
as cicatrizes da história recente da república brasileira. partes do mundo.
Inspirada na Pedagogia da Esperança de Paulo Freire Sob esses sentimentos paradoxais, vale aqui acolher
(1997), o objetivo desse ensaio é, mesmo que brevemente, o otimismo de Doreen Massey, resumido em suas
traçar um perfil da pedagogia de Doreen Massey. Sua “geografias solidárias”, pois neste contexto político
marcada coerência militante – que não separa a teoria da obscuro devemos celebrar o ato mais fascinante da
sua concepção política de espacialidade – nos brinda com recente história do protagonismo estudantil brasileiro,
princípios de uma pedagogia espacial da emancipação. resultante das ocupações das escolas públicas,
Neste ensaio, proponho, em um primeiro momento, motivadas por uma agenda contundente de demandas
narrar brevemente suas marcas biográficas atuantes em populares.
suas reflexões teóricas, com o intuito principal de refletir Com uma extensa produção bibliográfica coerente
resumidamente as influências no campo geográfico. com sua biografia política, Doreen Massey é um expoente
Nas seções seguintes, procuro rascunhar uma análise contemporâneo da Geografia Humana, cuja trajetória foi
pedagógica de três materiais desenvolvidos e editados recentemente tratada no livro Spatial Polítics – Essays
por ela e por seus parceiros na Open University, onde for Doreen Massey2 , organizado por David Featherstone
produziu recursos didáticos para o atendimento dos e Joe Painter (2013). Em tempo no qual a esperança é
cursos (de Ensino Superior na modalidade de Educação ofendida, compete aqui perguntar o que Doreen diria a
respeito de nós.

Figura 1 - Ocupação do Colégio Estadual Visconde de Cairu, Rio de Janeiro, maio de 2016.

2
Este ensaio apresenta a questão central da pesquisa “Lições de Doreen Massey:
por uma agenda da Geografia Escolar”, submetida ao Programa de Pós-Graduação
de Geografia (UFF), na condição de estágio de pós-doutoramento, sob a supervisão
1
“The crucial aim of education – to question rather than to accept without further do Professor Doutor Rogério Haesbaert, no período de 2016-2. Cabe sinalizar que,
thought – is particularly powerful when what is at issue is the nature of our geogra- no texto, procuro refletir brevemente a respeito do potencial pedagógico presente
phical imaginations”. (MASSEY, 2006). na extensa produção bibliográfica da geógrafa britânica.

22
Dossiê Doreen Massey

A coerência entre teoria e prática política Entre 1968 e 1980, trabalhou no Centre For
Environmental Studies, autarquia pública que produziu
impactantes pesquisas de planejamento e inovação
A reunião, que iremos participar no domingo, forma tecnológica. Contudo, a autonomia das investigações
parte de um dos grupos de trabalho estabelecidos na
Ocupação LSX e seu objetivo é precisamente refletir
incomodou o governo, o que levaria ao encerramento de
sobre a questão da espacialidade. O foco seria a relação suas atividades pelas mãos de Margaret Thatcher. Depois
entre espaço e democracia. Trata-se de uma atividade de um período de instabilidade e precariedade de seus
minúscula entre tantas outras, mas com o intuito de
transcender o debate sobre a crise econômica. As empregos, submeteu-se a processo seletivo para a Open
“ideias”, incluindo as ideias sobre o espaço agora, sem University, um projeto de ensino superior com orientação
dúvida, são cruciais. (MASSEY, 2013: 251, tradução
mais democrática, caracterizada como instituição focada
livre)3.
na educação a distância, cujos alunos - trabalhadores,
presidiários, soldados – dificilmente teriam acesso às
O depoimento, redigido pela própria professora
universidades presenciais britânicas. Massey assumiu o
Massey, aconteceu no contexto dos movimentos de
posto de catedrática em 1982, sem mesmo ter o título
ocupação, no inverno londrino de 2011. Naquela ocasião,
de doutorado, e contribuiu decisivamente para a vertente
Doreen Massey rascunhava as esperanças emergentes
humana do Departamento de Geografia, na Faculdade
dos processos de resistências à autoritária avalanche
de Ciências Sociais. Entretanto, cabe sinalizar que
liberal de resgate às instituições financeiras. A resistência
Massey, em suas análises, jamais separou a natureza
começava por seu próprio corpo. Frágil, ela o desafiava
da sociedade e tal perspectiva pode ser evidenciada na
além do frio, para visitar as ocupações e ali presenciar
sua leitura crítica da concepção do espaço como fixidez5
a construção das pautas. Pelos múltiplos “re-existires4”
(2004:14).
dessa imagem, essa escrita vai a Massey, não somente
como percurso de homenagem, mas para remediar a Nos seus estudos, sublinhou que usualmente as
nossa despedaçada esperança. Falamos de Massey Ciências Sociais consagram o discurso temporal do
porque sua biografia desobedeceu a fronteira entre a espaço, uma conversão que mais provocou a cisão do
ação e o pensamento. Precisamos da sua desobediência, que a indissociabilidade no emprego dos conceitos de
porque pensar o espaço hoje é pensar em projeto de espaço e tempo. Ela lamentava que muitas imaginações
democracia. Massey, afinal, fez de sua vida o ato de geográficas haviam sido concebidas (não raras vezes)
pensar-agir porque para ela as questões vêm da rua e como sequências históricas, encarnando o discurso do
emergem da ação. “progresso” ou, em suas palavras, as diferenças entre os
lugares residiriam “no lugar em que ocupam na fila da
Nascida em bairro proletário de Manchester, em 1944,
história” (2006:5). Desse modo, a dicotomia entre espaço
Doreen Massey viveria (e mais tarde reconheceria) os
e tempo se funda numa redução desses conceitos a partir
benefícios do estado de bem-estar social, pois é nesse
de metáforas como “modernização”, “desenvolvimento”,
contexto que se torna uma das primeiras mulheres de sua
“atraso”, “centro”, “periferia”, entre outros:
família a graduar-se no ensino superior, sendo bolsista
da prestigiosa e elitista Universidade de Oxford. Aliás,
O que se desenvolveu dentro do projeto de modernidade,
foi onde viveu os muros impostos pelas origens sociais em outras palavras, foi o estabelecimento e a (tentativa
e canalizou esses sentimentos para construir suas de) universalização de uma maneira de imaginar o
espaço (e a relação sociedade/espaço) que afirmou
ferramentas de interpretação do mundo.
o constrangimento material de certas formas de
Em 1966, graduou-se em Geografia. Também como organizar a relação entre sociedade e espaço. E que
ainda permanece hoje em dia. (2008:103)
bolsista entre 1971-1972, fez mestrado em Economia
e Ciência Regional na Universidade da Pensilvânia, nos
Estados Unidos. Ao comentar sobre essa passagem, O projeto de revisão da concepção do espaço passa
ironizava, ao retratá-la como uma ambição de “conhecer pela superação da pauta essencialista e da cisão
o inimigo por dentro”. Durante esse período, ela cursou espaço-tempo. Massey procurou, assim, enaltecer
uma disciplina oferecida por Louis Althusser e, além de a multiplicidade e a contingência e, não por acaso,
aprofundar seus estudos marxistas, estabeleceu laços de questionou as perspectivas que concebem o espaço
amizades com colegas que durariam por toda a sua vida. como absoluto e/ou as que procuram a definição de
“La reunión en la que vamos a tomar parte el domingo forma parte de uno de los representação do espaço como apreensão objetiva do
3

muchos grupos de trabajo estabelecidos al amparo de Occupy LSX, y su objetivo es


precisamente reflexionar sobre este tema de la espacialidad. Se centra en la rela- real. Compartilho aqui a suspeita de que a sua atenção às
ción entre espacio y democracia. Se trata de una actividad minúscula entre tantas
otras en medio de la confusión y con el intento de transcender el debate sobre la muitas subjetividades e a sua profunda preocupação com
crisis económica hasta? llegar al debate sobre las grandes políticas subyacenves.
Las “ideas”, incluyendo las ideas sobre el espacio ahora son, sin duda alguna, cru- 5
Cabe sinalizar que, no decorrer de sua produção, Massey incorporou críticas no
ciales”. (MASSEY, 2013:251) desenvolvimento de sua concepção de espaço. Outro movimento foi produzido no
4
Expressão inspirada em Porto Gonçalves, para quem a ambivalência da resistência “For space”, ao operacionalizar o sentido de espaço articulando o físico e o huma-
e da existência é princípio fundador dos movimentos sociais. O neologismo é apli- no. No material didático “Material Geographies”, é possível inferir tal argumento, ao
cado pelo autor em muitos trabalhos e palestras referentes aos povos dependentes identificar que sua concepção de globalização envolve indissociavelmente a dimen-
da floresta amazônica como no livro Amazônia, Amazônias, (2001). são física e humana.

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GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

a injustiça social repercutem no seu projeto de concepção Citando Edward Soja, informa que o estruturalismo
de espaço porque ela prioriza o debate político-discursivo. havia sido “uma das vias mais importantes do século XX
Tanto nos ensaios e artigos da década de 1990/2000 para a reafirmação do espaço na teoria social crítica”.
quanto na sua obra traduzida (como Pelo espaço (SOJA, 1989 apud MASSEY, 2008:18). Nessa direção, o
– uma nova política da espacialidade), é possível legado da abordagem estruturalista do espaço favoreceu
identificar uma proposição substantivamente política a construção de modelos determinados (positivados),
na abordagem do espaço/espacialidade, termos condicionados pela variável do tempo.
definidos por ela como “intercambiáveis” (1992; 2004; Em Pelo espaço, Massey se dedicou em compreender
2008). Ou seja, textualmente como substantivo e verbo, o legado da abordagem estrutural de explicar o mundo que
espaço/espacialidade/espacializar são concepções que promoveu a consolidação da Geografia como identidade
ritualizam a coetaneidade6 da vida. Podemos ler aqui disciplinar. Não por acaso, com esta discussão, a autora
que há uma forte sugestão para compreender os efeitos produziu reflexões acerca da permanência deste modus
de sentido de espaço que, por sua vez, escapariam a operandi de promover sentidos espaciais nas teorias
qualquer tentativa ou estratégia de representação, de que valorizam a sinonímia entre espaço e representação.
captura, de imobilidade. Nas palavras da autora: Tal argumento é sugerido, por exemplo, na seguinte
afirmação:
O espaço é a esfera da possibilidade da multiplicidade
na qual distintas trajetórias coexistem, é a esfera da É conceituação de espaço que, uma vez mais,
possibilidade da existência de mais de uma voz. Sem é realmente uma residualização e deriva do
espaço não há multiplicidade, sem multiplicidade não pressuposto de que espaço se opõe a tempo e não
há espaço. Se o espaço é indiscutivelmente produto de tem temporalidade. Pensado desta maneira, “espaço”
inter-relações, então, isto deve implicar na existência realmente seria domínio do fechamento, e esse, por sua
da pluralidade. Multiplicidade e espaço são co- vez o transformaria no domínio da impossibilidade do
constitutivos. (MASSEY, 2004: 8). novo e, portanto, do político (2008:66).

A afirmativa acima, com efeito, valoriza a multiplicidade O compromisso com o antiessencialismo, como
como pauta de interpretação do espaço que incorpora afirma Massey, é dependente de uma imaginação espacial
a contingência, afastando-se do modelo explicativo política e que, por esta razão, interroga a centralidade do
de autorização da dicotomia espaço e tempo, o que, sujeito ou o de identidades plenamente constituídas.8
de certo, está a favor da pauta da democracia radical7 Ou, conforme suas palavras: “devemos ser prudentes a
(MASSEY, 1992). A garantia de que “não há multiplicidade respeito de reivindicações de autenticidade baseadas
sem espacialidade”, e vice-versa, absorve uma qualidade em noções de identidade imutável” (2004:9, grifo nosso).
de crítica às formas essencialistas que propõem o Mais à frente, também concordando com Laclau (apud
esvaziamento de uma abordagem da justaposição, de Massey), afirma que uma abordagem alternativa do
rizomas e de incompletudes presentes em abordagens espaço procura concebê-lo como “aberto, não finalizado,
teórico-metodológicas, digamos, “mais próximas” ao pós- sempre em devir” ou seja, como um pré-requisito para
estruturalismo. a história ser aberta e, assim, após os argumentos de
Emprego o termo “próximo” uma vez que a autora Laclau 9, um pré-requisito para a possibilidade da política”
não nega a contribuição das abordagens estruturalistas (2004: 11).
do pensamento social, em especial, no que diz respeito Massey pautou a sua ação/pensamento no
ao modelo explicativo de interpretação geográfica, antiessencialismo com contundência, por exemplo,
pautada profundamente em estruturas de classificação. em 1991, com o artigo Flexible feminism. Nesse artigo,
No capítulo ironicamente intitulado “A morada-prisão da procurou sinalizar a incompleta leitura crítica a respeito da
sincronia”, Massey considera que a união entre estruturas modernidade no campo da Geografia, por desconsiderar,
e pensamento social conferiu status científico à Geografia. sobretudo, o debate sobre gênero. Para essa apreciação,
6
O conceito de coetaneidade (coevalness) é revisto por Massey (2008a) a partir Massey focou sua revisão em Postmodern Geographies,
de Johannes Fabian, para quem: “a coetaneidade tem como objetivo reconhecer a de Edward Soja (1989) e The Condition of Postmodernity,
contemporaneidade como condição para o verdadeiro confronto dialético” (FABIAN,
apud. MASSEY, 2008 a, p; 109). Massey o revisitou como estratégia de afirmar a in- de David Harvey (1989), por considerar que ambas são
dissociabilidade espaço-tempo, para indicar os limites da interpretação da Geogra-
fia na Modernidade que hegemonizou uma leitura de progresso e desenvolvimento centrais para a visão disciplinar sobre a modernidade.
e que garantiu uma visão colonizadora do outro. Para a autora, coetaneidade “diz
respeito a uma postura de reconhecimento e respeito em situações de implicação Interessante notar que ela advertiu que tal artigo não dizia
mútua. É um espaço imaginativo de envolvimento: fala de uma atitude. E é informa- 8
Massey, ao discorrer sobre a incompletude da política da identidade, cita os es-
do por uma conceituação prática de espaço e tempo” (2008 a:109). De tal forma que tudos de Mouffe, em especial sua discussão sobre constituição de subjetividades
coetaneidade pode ser interpretada como perspectiva procedimental que impediria políticas. Massey, concordando com Mouffe, considera que há um modo paralelo
uma classificação apriorística e verticalizada do “outro”, de uma forma de subjuga- de conceber as identidades/entidades políticas e o espaço e enfatiza que o espaço
ção espacial. participa da constituição de subjetividades políticas (2008:9).
7
Chantal Mouffe e Ernesto Laclau difundiram a categoria de “democracia radical” 9
Massey, naquela citação, se referiu aos trabalhos de Laclau (1990), no qual se dis-
que, em poucas palavras, significa a necessidade de interpretar a democracia fora cute a democracia radical, a partir da negação teleológica do pensamento, marcada
do modelo de consenso, ao afirmarem que se trata de um problema do terreno do em perspectivas fundacionalistas da inteligibilidade da política. Em outras palavras,
antagonismo. Portanto, o projeto de democracia radical (já citado aqui nesta pesqui- para Laclau seria necessária uma versão aberta do futuro para conceber a democra-
sa) não busca sublimar o conflito, mas reconhecê-lo como constituinte da decisão e cia radical. Concordando com esta radicalidade, o espaço/espacialidade de Massey
da vontade política (LACLAU E MOUFFE, 2005). dialoga com a teorização político-discursiva de Laclau, favorecendo a “abertura”.

24
Dossiê Doreen Massey

respeito exclusivamente aos dois livros, mas também a epistemologia e didática, a partir da análise de alguns
outros trabalhos, incluindo os seus, que omitem ou, de exercícios que ela propõe nos seus materiais impressos,
alguma maneira, se descuidam da questão da diferença. dedicados aos referidos cursos.
Afinal, Massey, ao se dedicar aos movimentos
feministas e se ocupar da discussão de gênero a partir da
perspectiva geográfica, procurou denunciar os limites da
A pedagogia da esperança como lugar do
leitura do espaço ao não se debruçar sobre o debate das
encontro
estratégias de conceber a relação entre sujeito e espaço.
Isso denota, mais uma vez, sua profunda atenção para
operações intelectuais convergentes às demandas Este ensaio investe na análise da produção
políticas. bibliográfica da autora, com atenção focada nos títulos
dirigidos aos cursos ministrados ou organizados por ela
Até este instante, preocupei-me em narrar a
na década de 1990, na Open University (em Milton Keynes,
convergência entre sua experiência e seus sentimentos
Reino Unido). A aproximação a esses trabalhos – ainda
com a sua prática intelectual e convém agora anunciar
sem tradução para o português – procura inventariar os
resumidamente sua tática docente, ou melhor, a prática
aspectos pedagógicos nas construções epistemológicas
pedagógica de comunicar sua concepção provocativa
de Doreen Massey. O estudo da face pedagógica de
de espaço. Com efeito, condizendo com sua criativa e
Massey, ao considerar seus textos didáticos, busca um
autêntica escrita, Massey se debruçou sobre a produção
painel de ações, recursos e metodologias para a adoção
dos materiais didáticos dedicados aos cursos a distância
dos conteúdos da Geografia passíveis de serem inseridos
da Open University.
na Educação Básica, considerando inicialmente, nesta
De fato, como uma das atribuições referentes à
seção, a análise de dois títulos editados pela autora
natureza da instituição, Massey buscou didatizar sua
na série de livros didáticos: The Shape of the world:
complexa apreensão do espaço, de maneira interativa,
explorations in Human Geography: Geographical Worlds,
sempre ocupada em promover uma relação horizontal
(1995) e A Place in the World?: Places, Cultures and
com o seu aluno. Isto pode ser percebido com respeito
Globalization, (1996).
aos processos autônomos de aprendizagens. Na
próxima seção, procurarei demonstrar essa sinergia entre

Figura 2 - Capas de dois livros editados por Doreen Massey (1995-1996),


Série The Shape of the world: explorations in human Geography.

Publicados entre 1995-1996, em parceria com John para atender aos objetivos do curso, de mesmo nome,
Allen e Pat Jess, respectivamente, esses dois títulos ministrado pela Open University – caracterizada como
compõem a série didática, desenvolvida com o objetivo de instituição de prestígio no segmento de educação a
abordar os principais temas do pensamento geográfico distância em nível superior.
que, na compreensão dos autores, seriam: o espaço, o Para Albet e Benach (2012), organizadores do livro
lugar e o ambiente. A série é composta por cinco volumes Doreen Massey: un sentido global del lugar, Massey

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GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

imprimiu suas marcas nessas publicações, ao priorizar a no capítulo de Doreen Massey as seguintes operações
complexidade de sua concepção do espaço no conteúdo didáticas: a descrição, a comparação e a enumeração
do projeto didático e na sua organização coletiva. dos fatores e das causas da dinâmica espacial. Por esta
Eles resumiram, da seguinte maneira, o processo de razão, identificamos o estudo de caso como método de
construção destes textos: aprendizagem privilegiado pela autora em suas obras
didáticas.
Antes de dar um texto por acabado e definitivo, se dão Desse modo, a seleção de um determinado conteúdo
diversas etapas imprescindíveis, por decisão coletiva.
Primeiro, convida-se uma pessoa a elaborar um ou o emprego de determinado conceito, por exemplo, é
primeiro rascunho, cujo tema também é previamente uma resposta ao cenário político, ao referendar-se em
decidido de maneira coletiva. Tal rascunho recebe as
críticas construtivas do grupo para que seja reescrito experiências cotidianas, por meio de exemplificações
e submetido novamente à revisão até alcançar a nos estudos de caso. Uma leitura desafiante que inspira
versão final. O objetivo não é teorizar diretamente, nem o constante cuidado com a escrita sobre os sujeitos e
tampouco apresentar estudos de caso: trata-se de
pensar mediante temas e conceitos e expor como estes suas demandas em torno da produção do espaço. Para
são desenvolvidos espacialmente (2012:22, tradução fins de sustentar tal análise, convém neste momento
livre)10 .
apresentar um enunciado de seus exercícios: “Agora, faça
uma pausa, de poucos minutos, e considere como você
Cabem aqui dois comentários sobre o fragmento
concebe a seguinte afirmativa: ‘a identidade europeia
acima. O primeiro trata da dimensão criativa de Massey
deveria ser melhor definida?’” (1996:172, tradução livre)11.
para editar o texto, respeitando a dinâmica coletiva e o
rigor teórico-metodológico. No segundo, em que divirjo A estratégia da pausa pode ser tomada como uma
parcialmente da citação, identifico a escrita pedagógica proposta didática ocupada com a interação horizontal
de Massey centrada nos estudos de casos e no cuidado com o leitor, buscando uma escrita dialogada. De acordo
conceitual. com uma perspectiva de análise do texto, reconheço
nas “pausas” uma intertextualidade e noto que a autora
Ao analisar os capítulos de sua autoria, em dois
as usou para inserir novos vocábulos/categorias ou
volumes da série The Shape of the world: explorations in
definições. Ou seja, percebo nesses mecanismos a
human Geography, noto que os estudos de caso são tanto
reivindicação de um momento didático para interpor com
os instrumentos didáticos como as operações conceituais,
polidez a “voz” do leitor.
com o fim de desenvolverem a aprendizagem espacial.
Ou seja, sob uma reflexão pedagógica, suspeito que Outro movimento de interação com o leitor diz respeito
Massey recorreu ao estudo de caso como procedimento ao uso da primeira pessoa do plural na escrita de seus
didático e, como tal, vejo que este se constitui como uma textos, como um recurso de proximidade. Compete aqui
ferramenta de comunicação e de popularização de seu compreender melhor o impacto disso nos seus textos
pensamento. pedagógicos. Vale, contudo, poucas palavras sobre o
livro didático no mercado. Empiricamente, consideramos
Interessante observar algumas considerações a
o problema da autoria dos livros didáticos, porque muitas
respeito da natureza didática dos materiais impressos
vezes eles são subordinados aos projetos das editoras,
para a Educação a Distância (EAD). A totalidade da
como atestam Verónica Hollman e Carla Lois (2015) nos
coleção e do curso é elaborada por pesquisadores que
seus estudos sobre o livro didático na Argentina. Sene
farão transposição didática de seus objetos. Estamos de
(2014) também denunciou uma visão do livro didático
acordo com a noção de que livro didático é um gênero
na ciência geográfica, no que ele percebeu como “obra-
textual. O livro dedicado exclusivamente ao EAD obedece
menor”, em referência ao processo de autoria e da
às características específicas para atender a modalidade.
especificidade desse gênero no campo disciplinar, se
Por esta razão, é um gênero textual que combina recursos
assim o quisermos compreender.
voltados para a interatividade com o leitor, sem descuidar-
se do rigor acadêmico, por conta do nível de formação. No caso daqueles editados por Massey, particularmente
nos capítulos escritos sob sua assinatura, ela mantinha
Em outras palavras, há a necessidade da
os traços e as marcas pessoais de sua escrita – não
contextualização dos conteúdos, da experiência
apenas no uso de uma narrativa de aproximação ao leitor,
cotidiana, para garantir a interatividade e a dialogicidade
às vezes com o emprego da primeira pessoa, mas na
do texto. Por isso, uma das marcas textuais é a reiteração,
organização do material coletado por ela em viagens e
além do que há diferentes recursos que enfatizam a
experiências.
síntese dos conteúdos. Portanto, podemos identificar
10
“Antes de dar por bueno y definitivo un texto, se llevan a cabo diversos pasos im- Em resumo, a sua pedagogia imprimiu rasgos
prescindibles encargar, por decisón colectiva, a una persona la elaboración de un biográficos, conferindo de fato uma autoria que foge da
primer borrador sobre un tema previamente decidido también de manera colectiva;
dicho borrador recibe las críticas constructivas de conjunto del equipo para que sea impessoalidade tão marcante nos livros didáticos. Com
reelaborado y sometido a nueva revisión antes de alcanzar la versión final. El objetivo
no es ni teorizar directamente ni tanpoco presentear estudios de casos: se trata de
pensar a través de los temas y conceptos y de exponer cómo estos se desarrollan “Pause here for a few minutes and consider how you think ‘European identity might
11

espacialmente” (2012: 22) best be defined?’ (1996:172).

26
Dossiê Doreen Massey

efeito, identifico aqui uma particularidade de sua didática Por fim, a inserção do recurso da charge na sequência
coerente com um projeto mais horizontal e democrático de um texto que prioriza o rigor acadêmico convida o leitor
de ensino-aprendizagem. Isto é, a despeito de ser um texto a dedicar-se poucos minutos para identificar e explorar as
ocupado com a educação a distância, Massey ofereceu a suas próprias conexões com lugares.
dimensão da experiência com seu interlocutor. No capítulo The Contestation of Place, Massey
Para evidenciar tais aspectos, gostaria de brevemente optou por distribuir os conteúdos em quatro estudos
analisar o emprego da charge no volume A Place in the de caso. Cabe sinalizar que na seção The Openness of
World?: Places, Cultures and Globalization (1996). A Place, a autora pedagogiza seus resultados de pesquisa
charge é inserida no capítulo The conception of place, sobre parques tecnológicos. Somado a esse aspecto
quando a autora didatiza sua teoria sobre lugar, que é de divulgação científica, vem outro que igualmente
precedida pelo seguinte parágrafo: nos importa, isto é, como ela pedagogiza sua inserção
política.
Cada um de nós, como indivíduos, também possui
Massey problematizou a agenda feminista na discussão
nosso próprio espaço de atividades. Você poderia
pensar o seu e compará-lo com os das outras pessoas. dos sentidos atribuídos ao “lar” no capítulo mencionado,
O mais básico é provavelmente um conjunto de precisamente na seção chamada de Empirical Critique,
caminhos e lugares bastante locais, pois o cotidiano
é vivido entre a casa, a escola, o trabalho, a igreja e o no qual articulou o debate do feminismo às teorias e
clube, com viagens ocasionais a uma cidade vizinha, à política da diferença, centrando-se na geografia de
ou a um hospital, talvez. Este padrão pode, por sua vez,
gênero. Convém aqui rapidamente a reprodução de um
ser pontuado por excursões muito mais longe - com
amigos ou parentes para uma visita, para viagens de único trecho dessa rica seção: “A questão central para
fim de semana ou para acompanhar sua equipe para esses críticos é que essa maneira de caracterizar o lugar
um jogo fora de casa. (1995:55, tradução livre)12.
como uma casa, como uma estabilidade imutável para
ser observada, converte-se numa perspectiva masculina”
(1995:65, tradução livre)13.

Figura 3 - Extraído do capítulo “The Contestation of Place”, (1995:56).

12
“Each of us, as individuals, also has our own activity space. You could think of your
own and them compare it with that other people. The basic shape is probably a set
of fairly local paths and places as normal daily life is lived between home, school,
work, church and club with occasional trips further afield to a neighbouring town, or
to a hospital, maybe. This pattern may in turn be punctuated by forays much further “The deeper point is made by these critics is that this way of characterizing place
13

afield – to friends or relatives for a visit, for weekend excursions, or to follow your as home, as an unchanging stability to be looked back on, to be returned to is itself
team to an away match”. (1995:55). masculine”. (1995:65).

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Não raras vezes, ela propôs uma pausa para inserir uma do material pedagógico de Massey.
atividade que revisasse ou introduzisse o novo conceito. Suspeito que a (pouco reconhecida) dimensão
No início de cada capítulo, ela costumava organizar os pedagógica de Massey anuncia o problema do espaço
argumentos a partir de perguntas, um recurso didático que quando reduzido à representação e, por esta razão, ela
permite a diagnose dos saberes prévios para sustentar é inspiradora para a nossa concepção de aprendizado
novas aprendizagens. espacial. Em resumo: a dramaturgia do aprendizado
Em Pelo Espaço, que não é um livro didático, ela espacial está na hegemonização de sentidos espaciais,
apresentou momentos que alimentam interações inscrita nas práticas pedagógicas que superam a lógica
pedagógicas com seu leitor ao promover recursos de de causalidade para explicar o cotidiano.
intertextualidade. Manipulando, por exemplo, diversos Isso não seria uma exclusividade do predomínio
recursos literários, a autora trabalhou com distintas geográfico, mas frequentemente a causalidade é
tradições teóricas para sustentar o protagonismo da reivindicada pelo ensino de um conteúdo que não
relação espaço-tempo no pensamento social. Além se ocupa com a complexidade espacial. Com este
dessa publicação, outros trabalhos e definições (como argumento, caberia interrogar se a tradição escolar
a “geometria do poder”) da autora permitem aplicar a da disciplina produz sentidos de espaço e, assim, o
metonímia da geografia filosófica, como anunciou Arun inventa e o nomeia como conteúdo a ser ensinado, na
Saldanha (2013), no artigo intitulado. exclusão de alternativas que demandem a multiplicidade
Cabe sinalizar que o argumento da multiplicidade em em detrimento da homogenia ou padronização dos
Massey (2008:19) mobiliza um projeto de compreensão fenômenos.
de ruptura com o determinismo, presente, por exemplo, Para tanto, é possível identificar no material pedagógico
em operações de significação do espaço, incluindo de Massey uma potencialidade para concepção espacial
aquelas pedagógicas na sua visão da Geografia. Ou seja, na escola. Na próxima seção, analisaremos o capítulo
a multiplicidade, como princípio para pensar o espaço, Geographies of Solidarities, em que Massey (2008)
exige necessariamente a intencional associação espaço- didatiza estratégias de autonomia e resistências em
tempo, na medida em que impede o fechamento da escala global, chamada por ela de “solidariedades”.
interpretação dos mesmos fenômenos.
A afirmação da multiplicidade, como princípio para
interpretação do espaço-tempo, requer, no meu ponto de Geografias das Solidariedades: um conteúdo
vista, a revisão profunda da agenda política da Geografia que potencializa o Currículo e a Geografia
escolar – o que, de fato, incide na produção de uma pauta
curricular que favoreça a vigilância sobre a produção Esta seção tem o foco na descrição das estratégias
do antagonismo, particularmente, em operações adotadas por Doreen Massey ao eleger a Geografias das
significativas da causalidade que são construídas no Solidariedades (tradução livre) como conteúdo. Trata-
conhecimento escolar. Com essa ordem de ideias, vejo se do sétimo capítulo do livro Material Geographies – a
os manuais pedagógicos de Massey com uma escrita que World in the Making, organizado pela autora em parceria
articula a pessoalidade da autoria ao rigor da divulgação com Nigel Clark e Philip Sarre (2008). O livro, somado ao
científica para fins pedagógicos. volume Geographies of Globalization: a demanding world
Em resumo, as proposições de Massey questionam o (BARRET etal, 2008), integra o material do curso Living in
pensamento linear e os efeitos (pedagógicos) da lógica a Globalised World, oferecido pela Open University, com
da causalidade na Geografia. Entendo que a primazia o objetivo de explorar questões-chaves da globalização.
da relação causa-consequência prejudica outras formas É interessante observar uma coesão entre as
de conceber os sentidos espaciais. Com essa ordem de sequências de aprendizagens dos volumes analisados
ideias, pensar o ensino da Geografia, tendo a multiplicidade na seção anterior e o capítulo agora em tela, isto é, a
como condição de sua produção, é uma pauta política a centralidade da experiência para a inteligibilidade da vida,
serviço da interpretação espaço-tempo que repercute algo muito próximo à compreensão espacial desenvolvida
em uma proposta pedagógica e epistemológica mais por Doreen Massey. Logo, os seus textos didáticos são
democrática. Tal argumento é construído sobre a análise coerentes com a premissa do espaço como experiência.

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Dossiê Doreen Massey

Figura 4 - Capa do livro, edição 2008.

O sétimo capítulo do volume traz como título Geografias


Um dos argumentos centrais deste livro é que essa
das solidariedades. É organizado em seis subseções,
interação constante entre território e fluxo é um aspecto
duas leituras complementares, sete atividades e oito crucial de um mundo globalizado. Tanto o território
recursos visuais, distribuídos em quarenta e oito páginas. quanto o fluxo podem ocorrer em muitas formas.
Um “fluxo” pode ser a transmissão instantânea de
Por ser material e recurso de um curso a distância, a finanças, ou os movimentos físicos maciços de bens e
escrita é moldada com inteligibilidade didática, cuja commodities negociados. Ou pode ser o movimento das
correntes oceânicas. E, no atual período de mudanças
clareza e riqueza de imagens e dados indicam a qualidade
climáticas, as migrações de plantas e animais estão
pedagógica do texto. acontecendo de novo, como, por exemplo, algumas
espécies encontram dificuldades cada vez mais em
De modo geral, ao examinar os processos espaciais,
sobreviver nas ilhas do Reino Unido, enquantro outras
particularmente a partir da perspectiva da Geografia chegam. Todos esses movimentos que nos referimos
Econômica, o livro editado por Massey e seus parceiros aqui são o que entendemos por fluxos. (MASSEY &

indica o necessário método de “pensar geograficamente” CLARK, 2008: 3, tradução livre)15.

para a compreensão das relações políticas e sociais que


configuram o fenômeno da globalização. Interessante Nos estudos de caso como recursos pedagógicos, há
observar que o curso Living in a Globalised World é o interesse na análise dinâmica da natureza associada
produto de um esforço coletivo entre pesquisadores para às práticas sociais, considerando o desenvolvimento
problematizar a natureza da globalização. da complexidade em múltiplas escalas. Por esta razão,
os casos são apresentados como resultantes de uma
O volume Material Geographies – a World in Making é
geometria de poder, dos processos desiguais do capital.
um livro ocupado com o esforço de superar a dicotomia
sociedade e natureza. Os seus organizadores afirmam No capítulo “Geografias das Solidariedades”, podemos
esta intencionalidade no próprio título ao indicarem que identificar novamente a potência da ambiguidade entre a
“Embora pareça que vivemos em uma realidade pronta, pesquisadora e a autora didática, o que permite a produção
nosso mundo está constantemente sendo feito e refeito. de uma linguagem multimodal (verbal e não verbal) que
Ao escolher este título, estamos tentando chegar a viabiliza o ato de pedagogizar a sua interpretação do
um argumento muito particular [relação sociedade e espaço. Massey sublinha as organizações populares
natureza], que é o tema dominante do livro.” (MASSEY & na seção Another world is possible para vislumbrar os
CLARK, 2008:1, tradução livre)14. conteúdos geográficos dos conflitos políticos e sociais, a
partir de sua percepção do espaço como múltiplo.
A preocupação com a produção do mundo se faz na
análise integradora dos movimentos físicos e humanos,
com o foco nos sujeitos e nos fatores responsáveis pela
globalização. Portanto, para os autores, a compreensão
processual se faz nos estudos de caso, considerando 15
“One of the central arguments of this book is that this constant interplay between
territory and flow is a crucial aspect of a globalised world. Both territory and flow
especialmente os conceitos de território e fluxo: may occur in many forms. A “flow” might be the instantaneous transmission of fi-
nance, or the massive physical movements of traded goods and commodities. Or it
14
“Though it may seem that we live in a reality that is ready made, our world is in might be the movement of ocean currents; and, in the current period of climate chan-
fact constantly being made and remade. By choosing this title we are trying to get ge, plant and animal migrations are happening again as, for instance, some species
at a very particular argument which is the dominant theme of the book.” (MASSEY find it increasingly difficult to survive in the islands of the UK, and yet other arrive. All
& CLARK, 2008:1). these movements we refer to as flows.” (MASSEY&CLARK, 2008: 3)

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GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Massey narra os movimentos de resistência, a partir recursos para evidenciar o protagonismo dos movimentos
dos casos de La Coordenadora, na Bolívia, e do Exército sociais e, então, definir a concepção dela de espaço como
Zapatista, no México. Ela os narra como movimentos de encontro, como coetaneidade, desenvolvida em textos
esperança (2008:318). Os exercícios e as imagens são como Pelo Espaço (2008a).

Figura 5 - imagem extraída da seção Another world is possible, que retrata a emergência de novos movimentos sociais na América
Latina (MASSEY, 2008, p. 316)

Massey, ao desenvolver seus argumentos conceituais mais diretamente “o mundo globalizado” é através do
impacto que ele tem em suas vidas diárias. Embora
e narrar esses fatos, frequentemente interroga seu este impacto possa ser enriquecedor, também pode ser
leitor, o interpela a comparar a experiência vivida ao dos perturbador. Há, por exemplo, queixas constantes sobre
a invasão e a transformação dos lugares pelas “forças
personagens narrados: “Como você pode argumentar
externas” da globalização. É um tipo de sentimento que,
contra a crescente interligação do mundo?” (2008:320, de fato, encoraja a defesa de lugares existentes contra
tradução livre)16. “o estrangeiro” (2008: 321, tradução livre)17.

Na contextualização do debate em que se insere


tal interrogação ao seu leitor, Massey desenvolve Observem que a autora oferece uma interação
associadamente dois argumentos. O primeiro trata da pedagógica com o seu leitor para reinterpretar uma
descrição e, simultaneamente, dos questionamentos das sentença, que poderia servir como premissa para
forças externas da globalização. O segundo diz respeito discursos conservadores. O argumento central é
à análise crítica das consequências, especialmente, da descontruir um senso comum que antagoniza o lugar à
homogeneização espacial, por vezes provocada pelos globalização. Nesse exercício, ela articula sua discussão
processos da globalização. Não por acaso, ela sustenta sobre “os sentidos globais de lugar”18 , incitando seu leitor
seus argumentos ao empregar os conceitos de fluxo e a fazer uma ressignificação do cotidiano vivido.
território. Para ilustrar tal apreciação didática, convém a Esse tipo de interpelação ao leitor ocorre em diferentes
interpretação da seguinte proposta de atividade: momentos do texto principal.

Atividade 7.2 17
“Activity 7.2
Leia o último parágrafo novamente e reformule essa Read the *last paragraph again, and reformulate this feeling in terms of the concepts
percepção em termos de conceitos de território e fluxo. of territory and flow. Then draw on what we have learned so far about territories and
flows in order to refute this criticism. (You will find hints towards na answer in the
Em seguida, aproveite o que aprendemos até agora resto f the section.)
sobre territórios e fluxos para refutar essa crítica. (Você *Last paragraph
encontrará sugestões para a resposta ao longo desta On of rhe ways in wich people most directly experience ‘the globalised world’ is
seção.) through the impact it has on their daily lives; though this impact can be enriching, it
can also be disruptive. There are, for instance, constant complaints about the inva-
* Último parágrafo sion and dislocation of local places by the ‘external forces’ of globalisation. It is the
Uma das maneiras em que as pessoas experimentam kind of feeling that does in fact encourage a defence of existing local places against
‘the outside’. (2008:321)”
“How can you possibly argue against the increasing interconnectedness of the
16

world?” (2008:320) 18
Vide MASSEY, 2000.

30
Dossiê Doreen Massey

Além disso, a questão em tela é precedida pela Na aprendizagem a distância, a reiteração é um recurso
definição de “novos movimentos sociais”, em boxe no qual os autores se apoiam para o esclarecimento ou
destacado no texto principal. Importante ressaltar que para o desenvolvimento do argumento, especialmente
nesse gênero textual há a valorização de boxes, como nos capítulos que objetivam o emprego conceitual.
uma caixa de diálogo e de esclarecimento com a função Como dito anteriormente, a interatividade é uma das
didática na aprendizagem a distância. Vejam que isto é características do gênero textual do livro didático (e que
uma ferramenta recorrente do texto. é enaltecida na modalidade de Educação a Distância),
Outra é o boxe de síntese de conteúdos, em que os ou seja, é frequente a busca pelo diálogo com o leitor
autores se valem da reiteração como operação didática. (ALBUQUERQUE e SILVA, 2012).

Figura 6 - Boxe de síntese de conteúdos (2008:333).

A narrativa central de Massey foca nos casos de solidariedades. Poderemos ver tal interpretação a partir
resistência na América Latina para explicar o conceito de seu debate a respeito da migração dos profissionais
da solidariedade em contraposição aos fatores da da saúde de países periféricos da África e da Ásia para o
globalização financeira. O argumento recupera elementos Norte Global. No desenvolvimento da análise, ela provoca
dos conteúdos dos capítulos anteriores. Isto é, o capítulo seu leitor: “Então, esses profissionais de saúde deveriam
valoriza a revisão de conteúdos para desconstruir o ser impedidos de migrar?” (2008:328)20.
senso comum. Ademais, tal operação didática está a Ela põe em questionamento percepções do senso
favor do desenvolvimento teórico, ou seja, de sua crítica comum. Nesse momento, ela interpela novamente o
ao que chamou de localismo, a fim de desconstruir uma leitor para avaliar a complexidade das relações espaciais,
polaridade entre lugar e globalização. recuperando o debate sobre “sentido global de lugar”.
Além dos conceitos de fluxo e território, a discussão Nessa direção, a autora oferece elementos ao seu
empreendida por Massey a respeito das geografias das interlocutor para observar os limites cognitivos e práticos
solidariedades se fundamenta também na apreensão dos de antagonizar o território ao fluxo: “[Com o argumento]
conceitos de “poder” e de “responsabilidade” (2008:323). colocado dessa maneira, nós reduziríamos o debate à
Convém, por exemplo, a análise de um exercício: sentença de o território versus o fluxo, mas nosso ponto
de partida é outro”. (2008:328). Massey, nessa narrativa
Use o argumento que foi desenvolvido até agora para didática, identificou o imperativo da solidariedade
dizer por que a transformação [no lugar] pode ser vista
de forma tão intimidadora. Tente encontrar uma série
internacional na prática dos significados desse tipo de
de razões distintas para fundamentar sua explicação relação escalar. Mais além, ela desdobra seu argumento
(idem, tradução livre).19 para o que chamou de “uma particular imaginação
geográfica da solidariedade” (2008: 334).
Em outros artigos e ensaios teóricos, Massey
Com a discussão de direitos autorais, por exemplo,
(2006) retoma da filosofia, especialmente, o conceito
Massey interpela seu leitor à complexidade da
de responsabilidade, o que não se restringe à visão
contingência política e das contradições nas ações
liberal. Massey articula tal compreensão para questionar
solidárias. Para tanto, ela recupera a discussão da mídia
uma perspectiva propositiva para as geografias das
independente e a sua emergência nos movimentos
“Use the argument that have been made so far to say why changing things can
19

often seen so dauting. Try to come up with a number of distinct reasons” (2008:323) 20
“So, should those medical profissionals be stopped form migraing?” (2008:328)

31
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

anticapitalistas. Aliás, ao selecionar os casos e narrá-los, políticas antiglobais:


ela propõe uma interpretação das potências e dos limites
da comunicação diante da dinâmica da geometria de Considere a citação de Bové e Dufour (2001) acima.
poder. É realista? É mesmo democrática? E as afirmações
que surgem em um mundo globalizado de uma
Com tal interpretação, Massey faz a análise conectividade mais ampla? E as pessoas “locais” que
espacial, articulando o debate entre a solidariedade, a são ricas e poderosas? (2008: 350)

responsabilidade e a comunicação. Tal associação é


percebida por nós como potente conteúdo para o Ensino O foco central do capítulo está no desenvolvimento
Médio, ainda pouco tratado sob a perspectiva geográfica. da ambiguidade e não da dicotomia entre o conflito e
Para ela, os novos movimentos sociais e suas geografias a solidariedade para interpretar e intervir no fenômeno
dependem do fluxo de informação. espacial. Aqui, ela recupera a discussão da desigualdade,
pois o conflito poderia acionar um localismo conservador
Nessa direção, é válida a análise a respeito das
e se antagonizar às formas alternativas de coletividade e
contradições de movimentos localistas, como dos grupos
de solidariedade.
do campesinato europeu que reivindicam mais barreiras e

Figura 7 - Representação dos movimentos sociais e manifestações em escala global (MASSEY, 2008, P.315)

O argumento é desenvolvido também pela linguagem geográficas”. Esse argumento pode ser articulado à
não verbal, como a expressão de luta protagonizada publicação Debates in Geography Education, editado por
pelas fotografias destacadas (em meia página e com David Lambert e Mark Jones (2013) e se soma ao debate
alta resolução) dos movimentos sociais na América curricular que vem denunciando, de maneira análoga, o
Latina. Outro exemplo é a cartografia temática adotada, discurso hegemônico do sujeito universal na seleção do
oferecendo dados sobre as causas dos movimentos conhecimento escolar (GABRIEL, 2012).
sociais anticapitalistas, em escala global. Em linhas gerais, Por tais razões, neste ensaio adoto a premissa de
Massey, no decorrer do seu texto sobre as Geografias que as contribuições de Massey para pensar o espaço
das solidariedades, experimenta operações pedagógicas nos manuais de sua autoria poderiam contribuir para
para provocar o seu leitor a pensar a respeito do espaço, uma agenda política a favor do ensino da Geografia,
da responsabilidade e da geometria do poder. o que justifica uma aproximação com os trabalhos da
Isso porque a Geografia escolar, não raras vezes, se autora voltados precisamente para os projetos de ensino.
ancora nas nomeações mais generalizantes para operar Nestas seções, busquei resumidamente apresentar
classificações – a regionalização do mundo, por exemplo, interpretações sobre as propostas de exercícios, como
que impedem, no dizer de Massey, outras “imaginações construções políticas inspiradoras para pensar o espaço

32
Dossiê Doreen Massey

no contexto escolar da emancipação. Nesse caso, vejo a Dessa forma, ao considerar a potência do trabalho de
razão pedagógica de Massey, como um lugar de encontro, Massey para a investigação da Geografia escolar, este
o que me permite agora conversar com as memórias de trabalho procura em concepções como “multiplicidade”,
Paulo Freire: a análise do encontro/conflito com o fim de desconstruir
os fechamentos de significações do espaço, tais como
Em El Salvador, camponeses e camponesas que lutaram ocorrem em muitas questões adotadas pelo ENEM, ou
ao longo dos anos, de armas e, ao mesmo tempo, de
olhos curiosos nas frases, nas palavras, lendo e relendo
em prescrições curriculares previstas no projeto de Base
o mundo, brigando para fazê-lo menos feio e menos Comum. Para essa afirmação, cabe agora a denúncia
injusto, aprendendo a ler e escrever a escrever as de Massey: “Ao negar a diferença, podemos negar aos
palavras, me convidaram para, com esperança, festejar
um hiato de paz, na guerra. Queriam me falar do que estudantes oportunidades de desenvolver as habilidades
fizeram e me mostrar o que faziam. Era a sua forma de de pensamento de ordem mais profunda, necessárias para
me homenagear. (FREIRE, 1997:100)
produzir explicações mais complexas dos fenômenos
geográficos”. (2006:51, tradução livre)21.
Em Pedagogia da Esperança, Paulo Freire revisitou sua
“O que Doreen diria sobre nós?”, não é um recurso
obra mais popular Pedagogia do Oprimido e relembrou
retórico. Tampouco um “elixir” colonizador que guardaria
uma série de episódios que retratam a dimensão
a validade das contundentes explicações científicas.
emancipadora de projetos educativos. O trecho retrata
Massey, uma pensadora global, que viveu na Nicarágua
a dureza da luta (vivida por milhões de camponesas e
sandinista, participou dos coletivos Venezuelanos no auge
camponeses no mundo) e a beleza do fazer as palavras e
do movimento bolivariano e sempre procurou conversar
das palavras a sobrevivência da esperança. Paulo Freire,
horizontalmente com o outro, não propôs explicações
ao narrar seu encontro com os trabalhadores em luta, fez
totalizantes sobre a América Latina.
um depoimento de esperança.
Aliás, suas análises sempre focaram na complexidade,
Inspirada na escrita de Freire, quis nestas seções
na contingência e na democracia. Das múltiplas
fazer um pequeno retrato da abordagem emancipadora
linguagens que adotou para produzir suas interpretações
do espaço, nas aprendizagens propostas por Massey
sobre o espaço do outro, como é possível verificar no
nos seus materiais pedagógicos. Em tempos incertos,
documentário narrado e roteirizado por ela “Land use in
nos vale homenagear Massey para seguir no imperativo
Brazil”22 , Massey vislumbra a multiplicidade de produzir
de que nossas aprendizagens espaciais possam abrigar,
interpretações e, com isso, busca alternativas, ou seja,
sobretudo, uma linguagem de possibilidade para um
valoriza a estratégia democrática.
mundo “menos feio e menos injusto”.
O que sustenta a interrogação título deste ensaio é a
mirada-de-dentro-para-fora (outwardlookingness): mais
que um neologismo, é uma metáfora que nos convida
Considerações finais
a um método de ensino, para nos questionar como
sustentamos nossas imaginações geográficas, o que,
Para condizer com o legado de Massey – que
de certo, é uma via inspiradora para problematizarmos a
primou pela indissociabilidade entre a sua escrita e a
agenda da escola.
sua ação política – este ensaio precisava se guardar
na esperança. Massey em nenhum momento falou de Em outras palavras, o espaço escolar abriga a função
didática da Geografia, mas, ao ambicionar uma escrita política de legitimar saberes, de regular a verdade. Então, as
que comunicasse sua concepção de espaço, ela também proposições do espaço de Massey nos instrumentalizam
ofereceu um legado pedagógico. a pensar a respeito do espaço e com o espaço da escola.
Nesta grave crise política que ameaça o ofício docente,
Portanto, com o foco no aprendizado espacial,
em particular, a natureza intelectual da nossa identidade
compreendemos que o ensino de Geografia pode adotar
de professores de Geografia, nos cabe refletir a escola
um entendimento de espaço que confia na radicalidade
a partir da política da espacialidade, ou seja, entendê-la
da democracia como horizonte de política educacional.
como espaço do múltiplo e das interconexões.
Por isso, compreendemos que na elaboração de
avaliação aplicada em todo o território nacional, por Significa também a abertura como princípio da
exemplo, há marcas hegemônicas que subalternizam interpretação espacial para, inclusive, questionar a
outras imaginações geográficas. Isto significa que, objetividade oferecida pelo território do verdadeiro. Logo,
na concepção do ensino de Geografia como política as contribuições de Massey para o debate educacional
democrática de conhecimento, faz-se necessária a estão a oferecer a desconstrução do terreno do totalitário
inspiração no horizonte da multiplicidade, como nos
21
By denying difference we can deny students opportunities to develop the higher-
informa Massey (2008), para impedir subalternizações, -order thinking skills needed to produce deeper explanations of geographical phe-
nomena. (2006:51).
ao produzir sentidos de território nacional como conteúdo
Informações sobre o documentário: Direção de Hugh Phillips, com a contribuição
22

escolar. de Doreen Massey (BBC/Open University), Reino Unido, 1986.

33
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

(da verdade absoluta), haja vista que sua compreensão do pluralidade de valores não é garantida.
espaço se dá na indissociabilidade com o tempo.
Dessa maneira, a perspectiva de Massey se funda na
teoria política, ao incorporar a dimensão da contingência
para produzir o entendimento de espaço. Com esta
plataforma teórica, a proposta deste artigo buscou, no
legado de Massey, a coerência teórico-político-pedagógica
para vislumbrar um projeto de aprendizado espacial que
desestabiliza essencialismos, a favor de uma mente
geográfica mais atenta ao provisório consenso, em
um cenário político no qual o conflito é o imperativo e a

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai/agos.

Dossiê Doreen Massey

A MENTE GEOGRÁFICA*

Doreen Massey

Antes de começar o debate no qual pretendo Mas, por quais motivos? Talvez o argumento seja
significar “pensar geograficamente”, considere suas feito com base em que elas são os moradores locais e,
respostas às seguintes questões: em consequência disso, têm direitos a esta localidade
diante das forças globais. Para esse argumento ser
Os moradores têm direitos a e sobre suas verdadeiramente válido, ele deve ser um princípio
localidades? aplicável também em outras situações. E se essa é
realmente a maneira pela qual nós queremos discutir o
Nós deveríamos abrir todos os limites e viver sem caso, então o que está sendo proposto é uma imaginação
fronteiras, no planeta ao qual todos nós pertencemos? geográfica particular do planeta: como um mundo que
é essencialmente dividido em localidades [em lugares],
ou territórios, dentro de cada um dos quais habitam as
pessoas locais, com direitos locais.(o que envolve, é
Um momento para a discussão claro, diversas noções, sendo a de soberania dos nativos,
a principal delas).

Perguntas como aquelas acima são frequentemente Quando confrontada com o pano de fundo da
elaboradas a partir de casos particulares. Vamos então imaginação geográfica, defendendo a população local da
aprofundar a discussão, considerando um deles. O Amazônia, a alegação de que eles são locais começa a
assunto agora é Amazônia e - no que já é uma reviravolta parecer menos convincente, precisamente porque seja a
incomum - o foco é nos povos, ao invés da (ou bem mesma imaginação mobilizada na Europa, por exemplo,
como) a própria floresta. Ambos são frágeis, sob ataque para justificar controles rigorosos contra a imigração, ou
de forças externas. O debate é intenso e o cerne da na Califórnia contra os imigrantes que escapam para o
questão é a população local da Amazônia contra os norte, fugindo da pobreza e das repressões da América
interesses financeiros de madeireiros e fazendeiros e até Latina. Afinal, são casos de pessoas locais, defendendo
mesmo contra a invasão de outros pobres (mas, os do seu espaço contra a pressão de fluxos globais sobre o
“lado de fora”) que também estão em busca de um lugar lugar. Estes, porém, são os localismos dos poderosos. E é
para morar. Até agora, provavelmente, o mais previsível notável como muitos daqueles que defendem os direitos
(e também estou inclinada a apoiar a ideia) seria o locais na Amazônia vão discutir o caso oposto quando
consenso em torno de algum tipo de direitos à terra e se trata de uma questão de imigrantes e requerentes de
ao território para os herdeiros das antigas sociedades da asilo à procura de entrada para a Europa. Aqui, os direitos
Amazônia. dos imigrantes são tratados com mais simpatia. Outro

________________________________
*
Massey, D. (2006) The geographical mind. In: Balderstone, D. (ed) Secondary Geography Handbook, Sheffield, Geographical Association. Disponível em:http://www.ge-
ography.org.uk/projects/valuingplaces/cpdunits/geographicalimaginations.Agradecemos a GEOGRAPHICAL ASSOCIATION por permitir gratuitamente a tradução deste
texto. Versão em português realizada por Ana Angelita da Rocha e Maria Lucia de Oliveira.

36
Dossiê Doreen Massey

conjunto de princípios encontra-se particularmente em se reduz a uma geografia como resposta, mas que, para
outra imaginação geográfica muito diferente - desta vez pensar geograficamente, devemos ter em conta o seu
de um mundo que é, essencialmente, sem fronteiras. poder (diferencial). Isto é, as geografias (as geometrias do
Há muitas coisas em jogo neste exemplo muito poder) através das quais o mundo é construído e, talvez,
simples. as geometrias de poder mais igualitárias através das
quais poderia ser reconstruído. Levar a sério a geografia
Primeiro, ele aponta para a inevitabilidade e para
em alguns dos principais debates do nosso tempo, tanto
o poder de nossas imaginações geográficas. Nas
nos leva ao coração das questões, quanto nos obriga a
entrelinhas, elas estão profundamente envolvidas em
pensar mais criticamente a geografia.
cada argumento sobre direitos à migração, por exemplo,
ou sobre as recorrentes expressões (tão comuns entre Em quarto lugar, este tipo de exemplo é um entre
nós) como “os moradores locais”. Todos nós operamos muitos que apontam para a contribuição intelectual
o tempo todo, todos nós - estudantes, professores, que pode ser feita particularmente pela Geografia como
todos nós em nossos papéis como membros públicos uma disciplina escolar. Uma das coisas maravilhosas
ou cidadãos – com a imaginação de como o mundo sobre a Geografia é, certamente, a sua amplitude, o
está organizado, ou como pode ser organizado em um caminho que nos permite cruzar as fronteiras de outras
futuro melhor (e é importante notar imediatamente como disciplinas. Mas isso não deve obscurecer o fato de
estas imaginações se estendem para além do mundo que a Geografia também tem a sua própria integridade
humano. A decisão de abater alguns animais, a fim de intelectual, os seus próprios caminhos específicos para
defender espécies “nativas” é uma questão em debate). explorar e proposições para defender. Em linhas gerais,
Um compromisso do geógrafo questionador, então, é a contribuição que a Geografia traz às discussões
evidenciar essas imaginações geográficas e perguntar citadas é um rigor persistente na elaboração de dois dos
de onde elas vêm. conceitos centrais da vida moderna: o espaço e o lugar.
Muitos outros poderiam ser citados, mas eu quero um
Em segundo lugar (e em parte, precisamente porque
momento para fazer uma profunda exploração destes
não é comum examiná-las de maneira explícita),
dois conceitos particulares em busca dessas noções de
frequentemente nós operacionalizamos as imaginações
imaginação geográfica e de mente geográfica.
geográficas de forma bastante contraditória, como grupos
sociais, ou como, por exemplo, tendências políticas. As
imaginações contraditórias sobre a “população local”,
na Amazônia e no “Fortaleza” Europa, as quais mencionei A imaginação geográfica
nos parágrafos anteriores, são suscetíveis de serem
apreendidas como tendências mais “progressistas”. Os
Provavelmente, é mais aceito agora, embora ainda seja
grupos mais “conservadores” são capazes de defender
importante argumentar, que muito da nossa “geografia”
o “Fortaleza” Europa (“as pessoas locais têm direitos
está na mente. Ou seja, nós carregamos conosco
sobre o que elas construíram, você sabe”), ao mesmo
imagens mentais do mundo, do país em que vivemos
tempo defendendo o livre comércio (“no novo mundo
(todas aquelas imagens da divisão Norte/Sul), da rua ao
sem fronteiras, o protecionismo deve ser evitado”). Uma
lado. O mapa mental dos EUA pela revista New Yorker e
das maneiras mais eficazes de interromper a pretensa
a imaginação do mundo de Ronald Regan tornaram-se
importância de muita alegada sabedoria é apontar para
posters populares. Todos nós levamos tais imagens. Elas
as contradições entre as imaginações geográficas em
podem, por vezes, estar em conflito ou até mesmo ser
que se fundamentam.
a causa de conflito. E refletir sobre essas coisas e falar
Em terceiro lugar, o objetivo fundamental da educação
sobre elas parece-me um bom caminho para começar
- a ação de questionar, ao invés de aceitar um pensamento
a examinar o que significa “pensar geograficamente”.
superficial - é particularmente poderoso quando o que
Nós também podemos examinar como tais imaginações
está em discussão é a natureza de nossas imaginações
são produzidas, seja através dos nexos de poderosos
geográficas. O ponto de expor as contradições
conglomerados de mídia internacionais ou do imaginário
geográficas mobilizadas nos debates sobre pessoas
persistente e implantado em conversas locais (“essa rua
locais, migrantes, livre comércio, é que nem “local”
não é muito boa, não é tão segura quanto a nossa”). E
e nem “global” é em si “bom”, seja qual for a posição
podemos explorar, também, como tais imaginações têm
que se tome no espectro político. É necessário fazer a
efeitos poderosos sobre as nossas atitudes para com o
distinção entre o localismo dos subalternos e o localismo
mundo e sobre o nosso comportamento. Um das nossas
dos poderosos, e da mesma forma entre os globalismos
(muitas) habilidades como professores de Geografia é de
(como o das corporações transnacionais ou dos poderes
mostrar a irrelevância dessas imaginações e submetê-
militares, mas também o do novo internacionalismo dos
las a interrogatório.
grupos indígenas ou dos sindicatos). O argumento não
No entanto, eu gostaria de afirmar que o que está

37
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

em jogo nos debates sobre os direitos dos moradores, do desenvolvimento (ou modernização, ou progresso)
ou de imigração, ou os erros e acertos de livre comércio, é que elas presumem que esse desenvolvimento,
é uma camada ainda mais profunda da imaginação basicamente, só pode obedecer a um único modelo.
geográfica. E, mais uma vez, é importante descobrir Outros devem seguir o caminho ao longo do qual o
e examiná-la. Para defender os direitos da sociedade Ocidente liderou. Este é um ponto muito importante,
amazônica, com o argumento do local, é válido pois representa que só pode haver apenas um tipo de
imaginar o espaço, implicitamente, como um espaço de história. É uma versão global de um ditado infame que
lugares, de territórios. Para argumentar a favor de “livre afirma a ausência de alternativa. Mas, eu argumentaria
comércio”, alegando que, nesta era de globalização em que dizer que há apenas uma história quer dizer que
que as fronteiras e os limites devam cair, é imaginar o não há nenhuma geografia. Para imaginar lugares em
espaço como, acima de tudo, um espaço de fluxos. Meu termos de quão longe eles estão ao longo desta pista
argumento acima foi que nenhuma dessas imaginações de mão única do desenvolvimento (ou da modernização,
nos fornece um princípio e que cada uma, provavelmente, ou do progresso) é imaginar as diferenças entre eles só
funciona com contradições. E que só se pode considerar em termos de história. Isto é, transformar as diferenças
casos particulares em articulação às relações de poder geográficas (diferenças reais, coexistentes) apenas em
em que estão inseridas. O que nós precisamos é de uma lugares na fila da história. Esse pensamento se recusa a
imaginação de espaço que incorpore as geometrias de tolerar a possibilidade de que existam muitas histórias
poder que constroem este mundo altamente desigual. O acontecendo ao mesmo tempo, que outros lugares têm
que está em questão é a forma como, em um nível muito as suas próprias trajetórias particulares e, além disso,
básico, nós pensamos o planeta, na verdade, a forma com significado político, talvez, para o potencial de seus
como pensamos sobre o próprio espaço geográfico. próprios futuros. O que é, certamente, uma imaginação
Deixe-me dar outro exemplo. Uma das temáticas mais geográfica. Isto é claramente uma forma de imaginar
importante do ensino de Geografia é aquela que explora espaço geográfico. Mas, ironicamente, o seu efeito é
a questão do “desenvolvimento”, isto é, se o foco é sobre quase o de abolir esse espaço, para transformá-lo em
as desigualdades entre primeiro e terceiro mundos (a tempo.
terminologia aqui é sempre inadequada) ou dentro de Esta é uma imaginação que tem sido bastante
um país. Há muitas questões aqui relativas às poderosas característica da modernidade ocidental, com suas
imaginações geográficas e aos geógrafos e a algumas grandes narrativas de progresso e mudança. E como
agências de ajuda humanitária (ambos) têm lutado para acontece com outras imaginações geográficas, é
combater as imagens do terceiro mundo como vítima perpetuamente reproduzida por meio de discursos
infeliz, por exemplo. Essa é a camada de imaginação políticos e populares. Como Chris Durbin argumenta
geográfica que se concentra em imagens de lugares. no Capítulo 191, a capacidade de diagnosticar essas
Abaixo disso, no entanto, é mais uma imaginação, em imaginações é um elemento importante do letramento
que esses lugares estão, de alguma forma, “atrás” dos midiático, especificamente geográfico.
países “avançados”, em seus níveis de desenvolvimento.
A própria linguagem que é usada projeta poderosamente
essa imaginação. Termos como avançado e atrasado
A mente geográfica
(e ao mesmo tempo “para trás” estão provavelmente
menos em voga, por causa de suas implicações
pejorativas, mas o emprego do termo “avançado” tem Esta última imaginação geográfica, na qual a geogra-
exatamente o mesmo efeito - avançado como contrário fia é transformada em história, é particularmente interes-
do quê ?!). A terminologia de desenvolvimento pode ter sante. Quando os discursos de desenvolvimento e afins
as mesmas implicações. Atualizar os subdesenvolvidos realizam esta operação, uma das coisas cruciais que es-
para o mais otimista “em desenvolvimento” ainda coloca tão a fazer é subestimar a diferença. Para desenvolver tal
o país em desenvolvimento por trás daqueles que já argumento, considere este exemplo muito simples.
são “desenvolvidos”. Além disso, exatamente o mesmo Quando em nossas visões mentais localizamos Cha-
posicionamento implícito de algumas partes do mundo, de, Brasil e Estados Unidos da América numa sequên-
como por trás e outros como na frente está implicado cia histórica (subdesenvolvido, em desenvolvimento,
em todas as narrativas de uma “modernização” singular desenvolvido) estamos resistindo ao reconhecimento
ou de um único caminho do “progresso”. Aqui está das diferenças (histórica, real e potenciais) que existem
acontecendo uma manobra muito importante que, mais entre eles. O fato de que esses lugares podem ter tra-
uma vez, diz respeito a como imaginamos o planeta e jetórias distintas é obscurecido. É somente quando re-
como nós concebemos o próprio espaço geográfico. conhecemos que, de fato, estes três países não formam
A crítica mais frequente feita sobre tais narrativas 1
N.T. Doreen Massey faz referência à contribuição do Durbin presente no livro
organizado pela Geographical Association (2006).

38
Dossiê Doreen Massey

uma sequência histórica, é que podemos investigar a singulares e, muitas vezes, não problemáticas. Temos, de
extensão da sua distinção individual e, com certeza, a várias maneiras, argumentado que é mais útil para com-
sua interdependência. Mas isso significa reconhecer que preender lugares tão complexos, tão diferenciados inter-
eles coexistem, que Chade é totalmente coetâneo com namente, vê-los como “lugares de encontro”.
os Estados Unidos da América. E para fazer isso, por sua Isto reproduz o argumento mais amplo. Os lugares
vez, é preciso reconhecer que estas diferenças são or- são lugares de encontro de diferentes pessoas, diferen-
ganizadas não historicamente, mas espacialmente. Uma tes grupos, diferentes etnias. Em termos humanos, eles
das implicações do “levar o espaço (ou a geografia) a são o emaranhamento, a reunião de diferentes histórias,
sério” é o pleno reconhecimento da coexistência simul- muitas delas sem qualquer ligação anterior com as ou-
tânea de diferentes outros (para uma pausa, um pouco tras. Eu, por exemplo, moro em um apartamento no se-
de filosofia, por um instante: se o tempo é a dimensão gundo andar, onde existem dois apartamentos abaixo do
da sequência e da mudança, o espaço é a dimensão da meu. Os moradores destes três espaços de habitação,
coexistência e da multiplicidade). agora neste edifício, vieram de muitas direções. Mas
A consciência espacial real deste argumento implica aqui estamos nós, e agora devemos administrar o viver
numa mirada-de-fora-para-dentro2, uma vontade de dar juntos, para durar um longo tempo. A área da cidade em
pleno reconhecimento à existência de outros autôno- que vivo replica isto em uma escala maior e uma manei-
mos. Isto tem sido chamado um reconhecimento da “co- ra de imaginar as cidades inteiras é na verdade [vê-las]
etaneidade3”. Talvez este seja, na verdade, um aspecto como uma reunião de lugares-de-diferença intensamen-
de uma “mente geográfica”. te complexa (essa diferença não tem de ser dramática ou
Além disso, há implicações mais profundas. Como etnicamente definida, por exemplo. Nós somos cada um
sugerido acima, é apenas com o reconhecimento da co- de nós diferentes). A consequência disso é que “lugares”,
etaneidade que é possível começar a examinar as mui- a partir de um edifício de apartamentos até uma cidade
tas relações de poder e as interdependências que confi- inteira, exigem a negociação. O cotidiano, de uma cente-
guram esses lugares juntos e influenciam a evolução de na de maneiras, demanda diretamente a negociação da
seus personagens e de suas trajetórias. Se reconhecer- nossa diferença. Algumas vezes fazemos isso; em outras
mos (novamente usando exemplos muito simples) que há abismos de desigualdade e/ou incompreensão; impli-
o Chade e os Estados Unidos, cada um tem a sua pró- cando na violência e no confronto.
pria história, então as políticas e as grandes questões de A questão é que deve haver a negociação. E antes que
seu chamado subdesenvolvimento e desenvolvimento possa haver negociação, deve ser reconhecida e respei-
residem também nos termos de sua interdependência. tada a diferença. Agora, isto funciona como uma ferra-
Ou ainda - e para desta vez levar as coisas na direção menta nas obras de retórica por demais fácil da “comu-
oposta - muitas vezes é argumentado que uma ênfase nidade local”, que encontra o seu caminho em tantos do-
na “diferença” (pessoal, ou de grupo, ou de nível étnico, cumentos de política que tentam abordar, por exemplo,
por exemplo) fica no caminho da coletividade ou da soli- os lugares de privação do espaço urbano. A análise aqui
dariedade. Eu diria o contrário: que diferença tem de ser é que “comunidade” - geralmente implícita no sentido de
considerada e negociada antes de qualquer solidarieda- coerência não problemática – simplesmente não existe;
de significativa ou coletiva - ou até mesmo, antes de que não basta existir, aliás, tem de ser sempre negociada. E
essa coisa chamada de “sociedade” - possa ser constru- dado que as geometrias de poder internas do espaço de
ída. E um verdadeiro reconhecimento da diferença requer lugares às vezes podem ser quase tão complexas como
uma total virada de mente espacial e geográfica. na escala global, essa negociação será difícil e perma-
Outro exemplo deve ajudar a ilustrar o argumento e nente. Tendo em vista que a negociação nunca vai aca-
demonstrar a sua importância potencial. As referências bar, pode-se argumentar que não só a noção estática e
anteriores foram sobre a escala global, então vamos ago- romântica da comunidade local (que é inatingível) como
ra concentrar-nos em uma escala mais local. Pois, se as também o reconhecimento das relações de poder inter-
várias culturas e sociedades do mundo podem ser vistas nas nas negociações é politicamente mais saudável do
como tendo suas próprias histórias, e se as geografias que um anseio por uma conformidade pacificada. Uma
que devemos explorar são as geometrias de poder de democracia saudável não exige a supressão da diferen-
suas interações e interdependências, o mesmo também ça, mas uma abertura para isso e uma vontade de nego-
é verdade quanto à escala local, do lugar. Temos em Ge- ciar.
ografia feito muito trabalho para minar a noção bastan- E a minha afirmação aqui é que uma “mente geográ-
te romântica de lugares como entidades simplesmente fica” necessariamente implica em uma atitude da mira-
coerentes, com características aparentemente “eternas”, da-de-fora-para-dentro que, ao reconhecer a diferença,
também indaga necessariamente sobre os termos da ne-
2
N.T. A expressão outwardlookingness foi aqui adaptada como a locução
substantiva “mirada-de-fora-para-dentro”. gociação. Aliás, a disciplina geográfica, como um exer-
3
N.T. A palavra no original é coevalness, vide Pelo Espaço (MASSEY, 2008).

39
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

cício intelectual, pode contribuir para o rigor da maneira necessárias para produzir explicações mais complexas
como nós imaginamos (e analisamos a imaginação de) dos fenômenos geográficos.
essas noções geográficas essenciais: o espaço e o lu-
gar4.

Implicações para a prática [docente]

a) A Geografia pode ajudar os jovens a explorar a


natureza controversa do mundo.
A Geografia como disciplina está no currículo escolar
por causa do valor que ela oferece para a educação do
jovem. Pensar geograficamente contribui para os/as
estudantes compreenderem e interpretarem as suas
próprias reações às pessoas e aos lugares e para a
reflexão sobre as perspectivas dos outros que podem ser
diferentes das suas. Para possibilitar aos/às estudantes
o “pensar geograficamente”, nós devemos garantir que
a investigação geográfica considere necessariamente
(diferencialmente) o poder. Isso levaria a um
reconhecimento das geografias (geometrias do poder)
através das quais o mundo é construído e as geometrias
de poder, talvez mais igualitárias, através dais quais ele
possa ser reconstruído.

b) Grande parte da nossa “geografia” está na mente


- nas imagens mentais que levamos carregamos do e
sobre o mundo.
A reflexão geográfica deve tornar explícitas as
“imaginações geográficas” dos/das alunos/as e explorar
de onde elas vêm. Eles/elas também devem expor
contradições das imaginações geográficas em que
grande parte da “sabedoria recebida” e muitas questões
geográficas fundamentam-se. A Geografia pode, assim,
cumprir esse objetivo crucial da educação - questionar,
ao invés de aceitar, sem mais reflexão.

c) A Geografia deveria ajudar aos estudantes a


explorarem como os lugares são complexos e variados.
Ela deve fazer isso mediante uma variedade de
perspectivas e dar credibilidade suficiente para pontos
de vista dos/as próprios estudantes. É mais útil
pensar em lugares como tão complexos, diferenciados
internamente, “lugares de encontro” de diferentes
pessoas, diferentes grupos e etnias. A diferença tem de
ser reconhecida e negociada antes de qualquer sentido
de comunidade, ou mesmo de sociedade, que possa
ser desenvolvido. Ao negar a diferença, podemos negar
aos estudantes as oportunidades de desenvolver as
habilidades de pensamento de ordem mais profunda,

4
As idéias deste texto foram melhor desenvolvidas em “Pelo espaço – uma nova
olítica da espacialidade” (MASSEY, 2008, versão em português de Hilda Pareto
Maciel e Rogério Haesbaert).

40
Dossiê Doreen Massey

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai/ago.

Dossiê Doreen Massey

DEMOVENDO O NEOLIBERALISMO*
Doreen Massey

Michael Rustin

O Projeto do Manifesto Kilburn começou com sociedades já arruinadas pela crise1. Os “programas de
trabalhos anteriores de autores da Revista Soundings ajustes estruturais” (redução dos salários, programas de
para compreender o que nós chamamos (inspirados em privatização, redução dos gastos públicos) agora afligem
Gramsci) “conjuntura”, à luz da crise financeira de 2007-8. a própria Europa, que é visitada pelos mesmos programas
Estávamos tentando elaborar uma resposta sobre o que que, desde os anos 1980, têm sido impostos pelo FMI com
provocava aquela crise do sistema do neoliberalismo, efeitos desastrosos, como o Consenso de Washington
ou da globalização desenfreada do capitalismo, que que vem destruindo as economias endividadas da
vem dominando o mundo ocidental durante as últimas América Latina e da África. A “solução” para os problemas
três décadas. Poderia haver uma oportunidade para o de dívida causados pela crise bancária em nações como
desenvolvimento de algumas forças significativas de Grécia, Espanha, Islândia, Portugal, Irlanda e Itália seria
mudança, especialmente, quando essa oportunidade a restauração da competitividade de suas economias,
surge dos danos causados pela crise e pelo descrédito mesmo que isso fosse sempre impossível de alcançar-
das instituições que foram responsáveis por ela, em se num contexto de austeridade geral e com uma única
particular bancos e governos? Haveria uma chance moeda europeia valorizada em referência à vantagem
para um renascer dos projetos progressistas, que foram competitiva superior da Alemanha.
bastante enfraquecidos pela ascensão neoliberal e por O fato é que as causas da crise financeira 2007-2008
uma firme investida pelo capital e seus agentes políticos foram deliberadamente deturpadas, com significativos
sobre o trabalho e suas formas coletivas de representação efeitos políticos. As suas causas subjacentes foram o
e autodefesa? estado da crescente desigualdade e o enfraquecimento
Alguns de nós consideraram que haveria algum nível da posição relativa do trabalho, por um longo período de
de reconhecimento do fracasso pelas elites dominantes tempo (o rendimento real médio do americano “de classe
e, de fato, algum tipo de concessão que permitisse média” – isto é, o da classe trabalhadora, está estagnado
formas mais esclarecidas de regulação da economia há décadas, enquanto a riqueza e os rendimentos dos
de mercado. Mas, tais expectativas tiveram vida curta. mais ricos vêm aumentando) E um “sintoma” decisivo
Por toda a Europa, o remédio rapidamente adotado desta situação, que quase levou o sistema financeiro
para o fracasso do sistema neoliberal foi insistir que ele ao colapso, foi a crise da hipoteca sub-prime nos EUA,
fosse imposto com maior austeridade nas economias e 1
Imediatamente após a crise bancária, Gordon Brown (Primeiro-Ministro do Reino
Unido, líder do Parido Trabalhista de 2007 a 2010) desempenhou um importante
papel para impedir um colapso financeiro, mas agora isso é, em grande parte, es-
quecido.

*
Tradução de Ana Angelita da Rocha e de Maria Lucia de Oliveira. Agradecemos aos amigos Rogério Haesbaert e Juan Lucas Nachez pelas sugestões de revisão da
tradução. N.T. Originalmente publicado com o título Displacing neoliberalism, o último capítulo do livro After neoliberalism? The Kilburn Manifesto, organizado por Stuart
Hall, Doreen Massey e Michael Rustin (Londres, 2015), sintetiza o Manifesto, como um texto de proposições alternativas à esquerda tradicional. Dando sequência à agen-
da de trabalho político da revista Soundings (também fundada pelos autores acima citados), o Manifesto reúne artigos de colaboradores, de coletivos, com análises de
conjuntura e de uma pauta alternativa à crise de 2007-8, especialmente no Reino Unido. Agradecemos, em especial, ao Professor Michael Rustin (Professor de Sociologia
da University of East London) que gentilmente nos deu a permissão gratuita para fazer uma versão deste capítulo para a língua portuguesa.

41
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

com base nos pacotes de créditos impagáveis para o das comunidades migrantes vêm sendo amplamente
financiamento da casa própria. A “globalização” – na apresentadas como questão central a que os governos
forma da exposição do mercado de trabalho ocidental à devem dar resposta, apesar de a migração ter apenas
competição dos produtores de baixo custo – e o ataque uma relação periférica com os problemas econômicos
às instituições de proteção da classe trabalhadora das nações europeias. Nós fortalecemos o debate
(sindicatos e benefícios do Estado de bem-estar social) dessa questão com a definição do problema no capítulo
foram os meios pelos quais esta mudança ocorreu na sobre raça do Manifesto (Capítulo 10, Race, migration
balança do poder econômico durante as décadas de and neoliberalism, de autoria de Sally Davison e George
1980 e 1990. Shire). Apesar de a migração apresentar consequências
A crise de 2007-8 foi de fato a segunda mais adversas para alguns setores da população (por exemplo,
importante desestabilização do período pós-guerra. Nas a competição por emprego), suas consequências gerais
primeiras décadas pós Segunda Guerra, os governos são provavelmente positivas quando julgadas em termos
adquiriram, mediante a pressão de um consenso de crescimento e desenvolvimento econômicos.
progressista, o poder de regular e estabilizar a economia A atual situação econômica europeia precisa ser
de mercado e de manter um equilíbrio de poder entre as compreendida a partir de um contexto internacional mais
classes sociais. Este paradigma faliu no final dos anos amplo. A determinante mais abrangente que esta situação
1970, e o neoliberalismo foi instalado como uma solução de estagnação e regressão política reflete é o declínio do
conservadora. Mas o colapso de 2007-8 representou a poder e da riqueza relativos do Ocidente, particularmente
falência do próprio neoliberalismo. Entretanto a crise foi da Europa. Depois do colapso da União Soviética e do
distorcida, assim como acontecera da primeira vez, como comunismo do Leste europeu, por um breve momento a
sendo essencialmente uma crise de desregramento situação era o contrário. Parecia que o Ocidente nunca
governamental e proteção social excessiva. Apesar de havia sido tão forte. No capítulo anterior (Capítulo 8,
o “sangramento do paciente” ter falhado em atingir uma Rethinking the neoliberal world order, de autoria de
estabilidade ao longo de três décadas de neoliberalismo, Michael Rustin e Doreen Massey), focamos no contexto
o remédio para a segunda crise deveria ser ainda mais catastrófico da crise internacional e nos resultados do
sangramento2. As consequências deste desastre sem triunfalismo do Ocidente. Traçamos o ressurgimento de
fim continuam se desenrolando, ainda que lentamente. uma nova ordem do chamado imperialismo liberal (tão
Não há perspectiva de sucesso para essas políticas “liberal” que restaurou a tortura sistemática como um
porque, sem o crescimento da demanda de mercadorias instrumento político), e a contribuição disso para reduzir
e serviços, não pode haver melhora na produção ou nos todo um conjunto de Estados (grande parte do que foi
investimentos. As políticas econômicas dominantes, a Iugoslávia, o Afeganistão, o Iraque, a Líbia, a Síria, a
de fato, não são nada mais do que uma receita para a Ucrânia) à desordem e à barbárie. Esta foi uma política
interminável recessão. de mal-entendidos e ilusões paralela aos fracassos da
Até agora, as consequências políticas desta governança econômica descritos acima. O repetido erro
crise foram minimamente mais positivas do que as dos governos ocidentais foi acreditar que se as ditaduras
consequências econômicas. De fato, vem ocorrendo pudessem ser debilitadas ou derrubadas, às vezes por
um aumento de protestos radicais, por exemplo, em uma invasão direta (como foi o caso do Iraque e do
movimentos nos EUA e no Reino Unido, como os Occupy, Afeganistão), ou outras mediante o financiamento ou a
e no crescimento de novos partidos radicais como o cobertura de dissidentes ou rebeldes (Síria, Líbia, Ucrânia
Podemos, na Espanha, e o Syriza, na Grécia. Se um deles – cujos primeiros insurgentes foram os pró-europeus do
ascender nas eleições gerais, será um catalisador para um oeste da Ucrânia), a consequência disso seria a esperada
novo estágio da crise e para um reconhecimento de que substituição pelas democracias do capitalismo ocidental.
são necessárias soluções nas quais o capital financeiro Na realidade, os principais resultados das políticas
não pode mais ditar as regras. Porém, mais potente que o fundadas nessa crença foram o estado de guerra civil, a
crescimento destas novas formações de esquerda, há o ruptura da paz e da ordem e o crescimento dos movimentos
crescimento dos movimentos nacionalistas e xenófobos de fundamentalismo teocrático, profundamente hostis
em muitos países, que sistematicamente deturpam os ao Ocidente e aos seus supostos valores. No Oriente
problemas estruturais (os quais estão essencialmente Médio, o Ocidente tornou-se de fato um agente ignorante
associados ao empobrecimento e às relações de e inconsciente em um conflito entre ramificações do Islã
classe) como questões de identidade étnica e nacional. que algumas vezes lembram a Guerra dos Trinta Anos,
O controle da migração e a repressão às culturas entre os poderes Protestantes e Católicos da Europa do
²Martin Wolf destacou de forma memorável (“Reform alone is no solution for the
Século XVII.
Eurozone”, Financial Times 2.10.2014) que os efeitos do enfraquecimento da pro-
teção social nas economias europeias não foram para aumentar a competitividade,
Esse padrão de intervenções militares e paramilitares
mas apenas para estender mais amplamente a pobreza. Sua análise keynesiana (provocadas pelo Ocidente ou autoridades legitimadas
está totalmente estabelecida em The Shifts and the Shocks: What we’ve learned –
and have still to learn – from the financial crisis, Allen Lane 2014. em regiões de antiga influência imperial) lembra

42
Dossiê Doreen Massey

algumas operações, durante os anos 1980, para depor dominante parecia estar consolidado e até mesmo, em
e desestabilizar governos radicais na América Latina seus próprios termos, ser indispensável – certamente
(Chile, Nicarágua, Argentina, Brasil [os autores aqui em comparação à era atual. Mas, praticamente em cada
também se reportam aos anos 1960]) e na África (Angola nação europeia parece haver um desencantamento
e Moçambique). Contudo, o caso é diferente em um geral e descrença na capacidade de governo, e o
aspecto. Essas intervenções neoimperiais precedentes, sintoma principal disso é o desinteresse em relação aos
nos seus próprios termos reacionários, em sua maior principais partidos políticos. Um fator que contribuiu
parte e no seu tempo foram bem-sucedidas, tanto em para essa situação é a evidente imunidade de instituições
derrotar quanto em substituir governos progressistas ou, financeiras, corporações, milionários, diante da jurisdição
pelo menos, em deter seu avanço, por exemplo, na África dos estados.
(embora muitas dessas mudanças agora tenham sido Com efeito, em escritos anteriores sobre a conjuntura
revistas, depois de causarem décadas de sofrimento para (veja The Neoliberal Crisis) fizemos uma avaliação de que a
os cidadãos daqueles países). As intervenções militares situação atual provavelmente estaria além da capacidade
do Ocidente desde 1989, entretanto, de modo quase de controle ou regulação por parte de qualquer governo
uniforme, fracassaram em atingir seus objetivos. Nessa legítimo5. Em Policing the Crisis, Stuart Hall e seus
sequência de desastres, repetidas vezes o que está coautores descreveram a situação do governo, conforme
sendo revelado são as limitações do poder do Ocidente. ocorria nos anos 1970, justamente nesses termos,
O que foi alardeado pelos EUA, como “pleno espectro documentando a desintegração dos acordos do pós-
de dominação [full spectrum dominance]”, acaba sendo guerra exatamente como estavam acontecendo6. Durante
um contínuo fracasso de intervenções militares e essa década os frágeis governos (de denominações
paramilitares em alcançar os objetivos pretendidos3. distintas que tentavam soluções parecidas) sucederam-
Certamente, esta situação deve ser compreendida no se uns aos outros, até que, em 1979, a direita encontrou
contexto do surgimento dos novos poderes econômicos, uma oportunidade de embarcar em uma trajetória
em particular, mas não apenas, da China, e da perda radicalmente diferente que, depois da segunda vitória
das vantagens econômicas comparativas do Ocidente eleitoral em 1983, permitiu mudar decisivamente o cenário
sobre seus competidores. As prolongadas recessões político e econômico do Reino Unido. No momento da
econômicas europeia e japonesa devem ser vistas em escrita deste texto, nós encaramos uma eleição geral7
contraste a taxas muito mais altas de crescimento cujos resultados parecem tão indefinidos quanto aqueles
econômico nos “mercados emergentes” do antigo do começo dos anos 1970. Isso não se dá meramente
“Terceiro Mundo”. O que vemos no caráter aventureiro pelo fato de nenhum partido poder conseguir uma
da política neoimperial e na imposição de programas maioria decisiva: isso se dá pelo fato de não haver uma
de “ajustes estruturais” sobre seus próprios povos proposta alternativa clara às atuais políticas. Mesmo que
é um sistema em declínio. De fato, isto é o sinal do os partidos trabalhistas queiram de antemão se colocar
desvendamento dos acordos em curso e a remodelação em uma posição de formar um governo, existe pouca
das relações de poder em todo o mundo4. Os movimentos indicação de que isso perpetue seu pacote ainda muito
políticos de direita que ocorreram em muitas nações fechado de políticas que temos para solucionar de modo
deram-se em resposta ao fato das pessoas verem adequado os problemas que enfrentamos hoje.
seu bem-estar econômico sob ameaça, seu status, Nós enfrentamos agora a necessidade de desenvolver
superioridade e poder diminuídos e seus governos com uma agenda de alternativas viáveis ​​para a política
muito menos poder para convencer de que havia uma equivocada e destrutiva dos últimos trinta anos. Este
situação de melhora. Isso tem alarmantes similaridades Manifesto é o começo disso. Nesta conclusão, tentamos
aos acontecimentos da Europa nos anos 1930, seguidos identificar ideias e temas que sugerem um caminho a
do desastre da Primeira Guerra Mundial e as crises da seguir, um novo curso progressista.
ordem social existente a partir daí.
Pode-se querer refletir sobre as relações subjetivas O que nós tentamos fazer
mutáveis em relação às instituições de governo que são
suscitadas por essa situação – para as quais cada uma
Chegamos ao final desta sequencia de capítulos do
de nossas respostas pessoais pode ser uma espécie de
testemunho. Talvez possam ser identificados períodos, 5
Sally Davison e Katharine Harris (Organizadoras), The Neoliberal Crisis, publicado
on-line em 2012 e como um livro de bolso L & W em 2015, como um volume com-
anteriores à crise financeira 2007-8, nos quais o sistema plementar para este.
6
S. Hall, C. Critcher, T. Jefferson, J. Clarke, B. Roberts, Policing the Crisis [1978], re-
publicado por Palgrave Macmillan em 2013.
3
A superficialidade e a fraqueza subjacentes ao projeto imperial norte-americano
foram observadas, de diferentes perspectivas políticas, por Niall Ferguson (in Co-
7
N.T. Referência às eleições gerais do Reino Unido, realizadas em 7 de maio de 2015,
lossus: The Rise and Fall of the American Empire, Allen Lane 2004) e Michael Mann que consolidaram a aliança liberal-conservadora, sob a liderança de David Cameron.
(Incoherent Empire, Verso 2005).
4Reconhecemos aqui a contribuição de Justin Rosenberg para o desenvolvimento
das ideias que apresentamos no Capítulo 9 (Energy beyond neoliberalism).

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

Manifesto de Kilburn, embora não do nosso projeto de não irá somar nem atrair (ou significar).
pensar, discutir e procurar envolver públicos mais amplos. Tom Crompton escreveu sobre isto em Soundings 54.
O que estmos tentando aqui é uma problematização Começando com a famosa citação de Thatcher sobre
do momento atual, principalmente no Reino Unido, o caso ser mudar-se a abordagem, e que, por sua vez,
mas também dentro de um contexto internacional, em significava a necessidade de tocar “o coração e a alma
uma análise que resista tanto à demanda por políticas da nação”, ele explora a “expressiva” função das políticas,
imediatas que simplesmente respondam às pressões sua “possibilidade de afetar” 8. Isso é essencial. Mesmo
eleitorais, como à tentação de ler a situação presente as políticas setoriais precisam não só abordar questões
apenas como um sintoma de princípios teóricos de práticas, materiais, mas também afetar e ajudar a perceber
longa data. Precisamos de um reconhecimento pleno da valores e identidades subjacentes. Isso faz parte da luta
especificidade desses tempos e de uma “teoria” que não se pelo senso comum. Isso implica em reconhecer que os
renda aos reducionismos. Também precisamos envolver círculos eleitorais políticos não apenas existem, por aí,
o debate popular e político atual em seus próprios termos já prontos. Eles precisam ser ativamente construídos.
e, quando apropriado, desafiá-los justamente como parte Como Stuart Hall e Alan O’Shea escrevem no Capítulo
do problema. 3 (Common-sense neoliberalism), aqui em referência
Soundings, a revista na qual este Manifesto surgiu, especifica ao Partido Trabalhista: “Os Trabalhistas devem
sempre se comprometeu com a análise qualificada por usar todas as questões políticas como uma oportunidade,
tais questões, e há uma série de razões para isso. Mais de não só para examinar a pragmática, mas para destacar
imediato, acreditamos que é necessário envolver-se tanto o princípio subjacente, construindo lentamente um
com públicos mais amplos quanto com partidos políticos consenso alternativo ou “filosofia popular”. Esta é uma
potencialmente simpatizantes. As políticas parlamentares injunção que se aplica à discussão de políticas entre a
e extraparlamentares são vitais em qualquer processo de esquerda e a esquerda extraparlamentar, que tentamos
mudança futura. Um partido político - que tem qualquer repercurtir nos capítulos deste livro que tem abordado
intenção de ser ousado - precisa saber que há apoio “lá políticas específicas.
fora”. Embora, certamente, o partido político deva mostrar Tudo isso interfere na análise que tentamos produzir
liderança política (e não ser escravo da “opinião pública”, aqui: o momento que se apresenta para nós - ou pelo
já constituída) e seja igualmente necessário sentir que menos a questão que nos colocamos, em termos de
exista alguma possibilidade de adesão “a/do público” conjuntura. Trata-se da articulação das diferentes
em geral por seus desafios e de que exista uma pressão instâncias da formação social; como elas oferecem (ou
extra-parlamentar para sustentá-lo contra as forças não) as condições de existência para cada uma. O fato
conservadoras que operam quando estão “no poder”. flagrante na sequência da crise financeira de 2007-8 não
Como resultado desse entendimento, enfatizamos muito era apenas que a direita política estava usando a crise
a importância de abordar questões de senso comum, econômica para reforçar uma agenda política neoliberal
hegemonia, cultura, linguagem. O debate sobre a política (esta era uma moeda comum à esquerda), mas sim que,
econômica, por exemplo, está atualmente encurralado ocorrido isso, havia uma crise extraordinária na esfera
em seus termos restritos, considerados inquestionáveis, econômica, sem grandes fraturas políticas, sem pertubar
tanto pelos vocabulários quanto pela compreensão da (após os primeiros momentos) a hegemonia ideológica
própria economia e forma da sociedade mais ampla - a estabelecida (neoliberal), sem rupturas significativas no
maneira como pensamos em questões de “justiça” ou de discurso popular. Nosso objetivo aqui é perguntar o que
gênero, o Estado ou o meio ambiente, para mencionar permitiu que isso fosse possível; problematizar o que é
apenas alguns exemplos dos capítulos anteriores. necessário para uma mudança profunda nos termos do
Além disso, ainda que consideremos os partidos debate (ou seja, uma ruptura ideológica) e talvez para
políticos potencialmente progressistas, também é o caso começar a sugerir maneiras de transformá-las.
de que mesmo as políticas mais imediatas e “práticas” Nesse cenário, duas coisas são imediatamente
necessariamente estejam em debate e visíveis para a evidentes. Primeiro, é claro que não há lugar aqui para
sociedade. Descrever esses princípios subjacentes pode pressuposições de um simples determinismo econômico.
possibilitar um tipo diferente de apelo para o público, É claro que a economia é absolutamente crucial, mas é
interpelando-o de maneiras que uma discussão política o caso de que a atual trajetória econômica construída
técnica não o faz. (Thomas Frank, em Pity the Billionaire, politicamente está causando tanto dano a tantas
faz a mesma crítica aos democratas nos EUA). As pessoas e a tantos aspectos da sociedade. Por isso, a
políticas setoriais podem ser usadas para mobilizar economia não poderia ser questionada sem fundamento
debates e estabelecer fronteiras políticas genuínas. Do (a dimensão ideológica, pressupostos culturais,
mesmo modo, sem um projeto político efetivo, de fato, discursos políticos ...) de outras instâncias da formação
para o público em geral, uma série de políticas setoriais 8
Tom Crompton, “Thatcher’s spiral and a citizen renaissance”, p.37, Soundings 54,
Summer 2013. Vide citação ao jornal The Sunday Times, 3.5.1981.

44
Dossiê Doreen Massey

social. Em segundo lugar, e, por consequência, deve ser além das transações comerciais baseadas no mercado do
dada uma atenção séria às outras instâncias e ao papel indivíduo isolado, e o significado de entender e contestar
estruturante que desempenham. Nós, inevitavelmente, o senso comum dominante, são as contribuições desse
começamos essa análise aqui, mas é reconhecido seu Manifesto.
significado nos primeiros capítulos do Manifesto, após a A análise conjuntural também é parcialmente sobre
introdução, nas várias maneiras em que são assumidas a periodização (ver Stuart Hall, The Neoliberal Crisis).
essas questões. No entanto, é uma periodização da sociedade como um
Vocabularies of the economy [Capítulo 1, de autoria todo que se forma fora da interconexão de diferentes
de Doreen Massey] desafia o próprio idioma que usamos elementos (sociais, culturais, econômicos), que muitas
para falar sobre a economia, que determina a nossa vezes isoladamente têm diferentes temporalidades. Isso
compreensão e estabelece os termos do debate sobre a é evidente no momento atual (ver John Clarke, What crisis
política econômica. (Isto é então levado para o capítulo is this?, Soundings 43, reimpresso em The Neoliberal
sobre política econômica, Capítulo 7, Whose economy? Crisis).
Reframing the debate, de autoria de Doreen Massey e Assim, ao longo das décadas anteriores à conjuntura
Michael Rustin). neoliberal, as mudanças econômicas e sociais
A relational society (Capítulo 2, de Michael Rustin) começaram a minar e fragmentar o que havia sido
assume a centralidade conceitual de toda a visão do considerado como a base natural (em outras palavras
mundo neoliberal - a “idéia de um indivíduo autônomo garantidas pelo) do Partido Trabalhista. A interseção
e auto-determinado como o ‘átomo» fundamental dessa erosão de longo prazo numa dinâmica mais
do mundo humano’- e demonstra que isto está mal imediata dentro da esfera política - em que Blair e New
concebido. Ao invés disso, argumenta o capítulo, deve Labour optaram por interpretar essas mudanças de uma
haver mais reconhecimento da nossa inevitável relação maneira que desconectou ativamente o partido dessas
e interdependência e do fato de que essas relações raízes políticas tradicionais (na verdade, às vezes essas
têm as suas próprias especificidades. Deve haver um raízes foram definidas como o outro a se opor), o que
reconhecimento adequado de uma política de relações. também foi absolutamente crucial. Isso transformou o
Isso não só desafiaria um princípio central do terreno político. Não só mudando o centro desse terreno
neoliberalismo, mas começaria a apontar - como o para a direita, mas também eliminando a possibilidade
capítulo faz – os caminhos alternativos para seguir (a de alternativas ao neoliberalismo e reduzindo o campo
construção de um sistema sustentável de cuidados político às questões de competência técnica, de quem
deve ser fundamental como estratégia econômica. E o poderia gerenciar melhor o sistema. Cada um desses
argumento para um Estado dialógico, no capítulo States tópicos no tecido (econômico, social e político) tinha
of the imagination, também coloca esta questão das sua própria dinâmica e sua própria temporalidade (e,
relações humanas no centro do palco, defendendo o de fato, sua própria espacialidade - o econômico sendo
reconhecimento das dimensões emocionais de nossas inerentemente global, por exemplo), mas cada um
diferentes relações com as instituições e práticas do forneceu condições para o outro. A sua articulação e a
Estado: “os complexos conjuntos de relacionamentos natureza dessa articulação foram cruciais.
mediante os quais o Estado (essa estranha ideia abstrata) Da mesma forma, a explosão de impaciência e
é trazido à vida. Cada conjunto de relações é altamente frustração com a consolidação da social-democracia,
político». Da mesma forma States of [the] imagination uma explosão que entrou em erupção há mais de meio
retoma a questão da linguagem e “a necessidade de século, na década de 1960, desencadeou uma série de
renovar e refazer o discurso público para constituir novas desafios e mudanças especialmente no campo cultural
formas de solidariedade pública”, a fim de trabalhar no sentido mais amplo. Sua dinâmica pretendida era
na criação de um Estado que possa contribuir para a progressista e amplamente para a esquerda, mas
reinvenção e expansão da cultura pública. eles foram ocupados com satisfação pela direita e
O terceiro desse conjunto de abertura, Common- incorporados em seu projeto de ascensão, a partir da
sense9, explora a natureza do senso comum, apontando década de 198010. Então, o que havia sido na década
para o fato de que é sempre contraditório e contestado, de 1960 uma reivindicação para o reconhecimento da
e argumenta que desafiar o atual sentido hegemônico, diversidade e um desafio para a social-democracia em
neoliberal, deve ser fundamental para o nosso projeto. As relação às estruturas monolíticas (e não é de modo
questões de linguagem (discurso), de relações humanas, algum negar os ganhos genuínos que foram feitos por
meio dessas reivindicações e desafios), se transmutou
9
N.T. Vale mencionar que, na língua inglesa, a expressão common sense é empre-
gada como bom senso, bom julgamento e também no sentido de percepção de lentamente na direção ao individualismo. A demanda
massa, como senso comum. Tal ambivalência está presente nas análises do Ma-
nifesto. Lembrando que “senso comum” e “bom senso” são categorias abordadas por maior flexibilidade foi igualmente cooptada para ser
por Gramsci em “Cadernos do Cárcere”. Vide também Oxford Dictionary, (Dispo-
nível em: https://en.oxforddictionaries.com/definition/common_sense. Acesso em:
principalmente um princípio do mercado de trabalho,
Agosto de 2017) 10
Luc Boltanski and Eve Chiapello, The New Spirit of Capitalism, Verso 2005.

45
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

cujos efeitos seriam sentidos pelos trabalhadores. E poder da finança (ver Capítulo 9). De fato, no caso da
assim por diante. energia, a articulação de temporalidades contrastantes
Parte da atmosfera e do enfoque dos movimentos e espaciais é ainda mais marcante. A aliança entre
culturais da década de 1960 contribuiram, de forma corporações de energia e finanças, muito fortalecida nas
distorcida, para o sucesso da hegemonia financeira hoje. últimas décadas sob o neoliberalismo, tem trabalhado
A leveza aparente do setor, a sua (a de novo aparente) para sua imensa vantagem, uma herança de alcance
facilidade de fluxo combinam confortavelmente com global construída em uma história imperial de séculos.
a sensação cultural do momento presente (ver Doreen As medidas neoliberais, incluindo as privatizações, o
Massey, Ideology and economics in the present moment, apoio dos governos às grandes decisões sobre a política
Soundings 48, p.33, reimpresso em The Neoliberal Crisis). energética e um regime fiscal favorável, fortaleceram ainda
Essas temporalidades e espacialidades, mais longas, mais o poder das petrolíferas. E o vocabulário dominante
diferenciadas e interconectadas, são fundamentais para a de “clientes” nos posiciona como dependentes, capazes
compreensão do caráter e da dinâmica do atual momento apenas de influenciar o mercado final (se é verdade), ao
conjuntural. Se existe uma articulação particular, que invés de desafiar as estruturas de produção - e de poder
é cerne do presente na relação de forças, é certamente sobre a extração contínua de estratos depositados há
a de interesses financeiros que estão na terra e na centenas de milhões de anos (e insubstituível) - que estão
propriedade. Ambas têm longas histórias, ambas foram e no cerne da questão. É, como se demonstrou no Capítulo
continuam hoje a ser pilares centrais da estruturação de 9, uma constelação mortal.
classes da sociedade do Reino Unido. Ambas mudaram Existem boas razões para levar a sério a natureza
de forma ao longo dos séculos e ambos persistiram. dessas interações entre histórias e geografias. Fazer
Durante muito tempo, os interesses financeiros vêm isso ajuda a desvelar a estrutura do que pode parecer
sendo internacionalizados, desde os dias do império uma situação esmagadoramente monolítica. Isso nos
até os da globalização dominada pelas finanças hoje. leva ao reconhecimento do significado de distintos
Embora localizada no Reino Unido, dominante em sua aspectos, tanto no seu desenvolvimento relativamente
economia, sociedade e geografia, a relação de finanças independente, quanto na forma como fazem ou fornecem
com a economia produtiva do país tem sido muitas as condições de existência de outros fios neste complexo
vezes transformada. O interesse pela terra é fundado, tecido. Esse processo de desembaralhamento conceitual
historicamente, mais na moradia. As lutas pela terra ajuda a esclarecer as diferentes forças que enfrentamos e
e pelo seu poder e a elite proprietária de vastas áreas a localizar conflitos específicos em um contexto histórico
do país fazem parte da história nacional. Os últimos mais longo. Uma batalha sobre a “reconstrução” de uma
quarenta anos viram a emergência do efeito dramático habitação popular, por exemplo, está em uma longa
desses dois interesses de classe. Por um lado, o domínio disputa de confrontações, voltando para os gabinetes e as
estrutural das finanças acompanhou a invenção de uma autorizações e sobre quem é proprietário e tem controle
nova forma do imperialismo financeiro. Por outro lado, a sobre a “terra da nação”. Talvez isso ajude - politicamente,
terra e a propriedade tornaram-se o veículo perfeito para intelectualmente, emocionalmente - quando se luta num
armazenar fluxos financeiros (um relatório recente sobre prédio ocupado, ou permaneça por horas com o cartaz de
os dados do preço da moradia em Londres aponta que protesto, para fazê-lo no conhecimento dessa trajetória
“os imóveis na capital [são] vistos como uma moeda de mais longa de contestação. Além disso, uma análise
reserva global para investidores estrangeiros, bem como, da articulação dessas diferentes histórias, sobre como
para os habitantes ricos”)11. E, como os indicadores elas funcionam juntas hoje, poderia ser uma base para
de cotação, o lucro pela terra12é agora um elemento o reconhecimento de interesses comuns entre forças
num setor econômico completamente globalizado. O que se opõem à ordem dominante e para uma possível
intercâmbio desses dois interesses de classe, juntamente aliança.
com a transformação de cada um, e de ambos juntos, é Então, que momento é esse? Desde 2007/8,
um fio condutor da história do momento atual. claramente houve uma crise da economia que ainda
E acrescenta-se a isso os interesses do grande não está resolvida. Isto aplica-se ao Reino Unido, à UE
corporações de petróleo, há muito globalizado e agora e à escala mundial. Mas, poderia haver crises em outros
uma parte significativa, não só do FTSE13, mas também aspectos da sociedade que poderiam levar a “conduzir
das reservas de previdência popular - em outras palavras, a uma unidade ruptural”, como Althusser já havia dito?
as grandes petrolíferas também são parte integrante do Como Stuart escreveu em The neoliberal revolution:
H. Osborne, “Round the bend: the crescent where house prices average £16.9m”,
11
“As crises são momentos de mudança potencial, mas
The Guardian, 12.12.2014, p.21.
N.T. Aqui, os autores também permitiriam um trocadilho com a expressão “lan-
12 a natureza de sua resolução não é dada. Pode ser
ded”, para significar a dinâmica do capital imobiliário. que a sociedade avance para outra versão da mesma
13
N.T. É a sigla para Financial Times Stock Exchange 100 Index, uma agência clas-
sificadora britânica, do Grupo proprietário do Financial Times e do banco London coisa (Thatcher a Major?), ou para uma versão pouco
Stock Exchange.

46
Dossiê Doreen Massey

transformada (Thatcher a Blair?); ou as relações podem


Um necessário sentido de crise e a guerra
ser radicalmente transformadas”(pp.60-1). O momento
de posição
atual parece ser diferente de qualquer uma dessas
duas transições dentro do neoliberalismo. Em primeiro
lugar, há uma grande implosão econômica, trazida A crise pode ser um termo excessivamente utilizado.
internamente ao sistema e não por oposição política e, No entanto, a essência da análise do Manifesto Kilburn
mesmo que a hegemonia ideológica e política tenha sido é que estamos vivendo uma crise permanente. É preci-
restaurada, as águas certamente foram perturbadas. A so insistir em que os programas e discursos que agora
hostilidade em em relação aos bancos e a toda uma gama dominam a política e a formulação de políticas na Grã-
de grandes corporações permanece. O imposto (e suas -Bretanha, assim como no ocidente, são inadequadas às
várias formas de não pagamento) é uma questão tóxica. situações a que se propõem responder. A austeridade
Há mais conversas sobre jovens elegantes governando não é uma solução para os problemas de instabilidade
o país. A palavra “privatização” agora amplamente vem econômica, desigualdade e falta de crescimento. Assim,
atraindo nuvens de negatividade e suspeição. Qualquer a expansão da OTAN e a instituição de uma neoguerra
um e todos estes elementos poderiam provocar uma via fria contra a Rússia capitalista não são uma solução para
para questões mais profundas. E há, é claro, a austeridade. os problemas da segurança do ocidente. Então as inter-
As coisas eram diferentes antes da crise financeira. E venções militares e paramilitares neoimperiais no Oriente
em segundo lugar, a crise econômica e a falta de uma Médio (para provocar mudanças de regime e garantir o
resposta alternativa foram aproveitadas politicamente suprimento de energia no ocidente) já pioram pratica-
pela Coalizão LibDem-Tory14 para desencadear o mente todos os problemas (seja de terrorismo, segurança
que Stuart chamou de “revolução social mais radical, energética ou proteção dos direitos humanos e democra-
de longo alcance e irreversível, desde a guerra” (The cia) que eles procuram remediar.
neoliberal revolution, p.27). E, ainda no mesmo trecho, ele No período dos próximos cinco anos, o que
argumentou que “a atual situação é a crise, outra ruptura se verá mesmo é que uma estratégia opos-
sem solução cuja conjuntura que podemos definir como ta - de reconciliação e troca aberta, como é o caso
“uma longa marcha da Revolução Neoliberal” (p.13). agora da relação entre os Estados Unidos e a Cuba - tem
A crise é sempre um momento de oportunidade. consequências muito mais benéficas do que o ostracis-
Alguém pode questionar deste momento em particular mo, as sanções e o cerco das cinco décadas anteriores.
se a trajetória é sustentável. Economicamente, é óbvio, Um redirecionamento semelhante da política deve ocor-
a questão básica é a de sustentar uma demanda rer em relação ao Irã e à Rússia.
suficiente, dada essa mudança do trabalho para o capital. Portanto, é necessário que as vozes sejam ouvidas,
Ecologicamente, como o coletivo Plataforma escreve por mais indesejáveis ​​que sejam, que insistam nesse de-
no Capítulo 9, “mais cedo ou mais tarde, a mudança sajuste fundamental entre os parâmetros “oficiais” da for-
climática vai forçar um colapso na configuração atual da mulação de políticas e as realidades da situação. Só então
sociedade”. E se esses momentos de dificuldade potencial os sintomas políticos patológicos (como o ressentimento
para o sistema neoliberal forem corretamente excluídos mobilizado contra imigrantes da Europa ou do “Islã”, em
(aumentando a desigualdade e o autoritarismo), o que geral) são reconhecidos como os epifenômenos que são.
poderia provocar um sério desafio político? O aumento Gramsci diferenciou de forma memorável as pré-condi-
impressionante dos movimentos e partidos sociais de ções, respectivamente, de uma “guerra de movimento” e
esquerda na Grécia e na Espanha (para restringir-nos uma “guerra de posição”. As primeiras eram as circuns-
aqui à Europa) dá esperança, assim como o aumento tâncias em que uma mudança decisiva no equilíbrio do
da direita aponta para o fracasso do que foi percebido poder social e político poderia ser alcançada, de uma só
como “mainstream” da política eleitoral, que é muito vez, por assim dizer. Ele tinha em mente as condições da
mais grave do que um mero declínio nos níveis de revolução, mas também poder-se-ia descrever nestes ter-
votação. Nas respostas ambivalentes a esses momentos mos a chegada ao poder dos Trabalhistas em 1945, ou
de dificuldade, existe uma crise emergente do político? de Thatcher em 1979 (ainda que a força do primeiro fora
Talvez um retorno ao “business as usual” não seja mais se perdendo durante os anos dentro no escritório gover-
possível. namental, enquanto que a última se fortaleceu ali). Uma
“guerra de posição” é aquela na qual nenhuma mudança
brusca ou rápida na relação de poder é viável, mas onde,
no entanto, haveria ganhos a longo prazo.
Acreditamos que estamos atualmente em uma situa-
14
N.T. Referência ao termo Conservative-Liberal Democrat Coalition que significou ção em que uma “guerra de posição” precisa ser prepa-
a aliança política entre o Partido Conservador com Liberais Democratas, cuja pla-
taforma eleitoral foi vitoriosa em 2010 e 2015, permitindo a maioria do Parlamento
rada. O valor da vitória de um governo de coalizão traba-
Britânico sob o comando de David Cameron.

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

lhista ou liderado pelo Partido Trabalhista em maio de Hoje, como muitos observaram, a própria noção de futuro
2015 não é que ele, por si só, transformará a política ou a parece ter sido cancelada.
sociedade, mas que pode estabelecer uma situação em Toda essa atmosfera da social-democracia, parece-
que o novo pensamento e os novos tipos de ação políti- -nos, acabou. A problematização de Beatrix Campbell so-
ca possam voltar a se tornar possíveis. O individualismo bre os contextos em mudança do feminismo (Capítulo 4)
rasteiro, a privatização e a costumização15 da sociedade nos oferece um exemplo vivo. Isso pode ser lido simples-
que se realizaram nas últimas três décadas não serão re- mente como derrota e como deprimente, mas o que nos
vertidas por cinco anos, ou mesmo dez anos, do governo traz no Manifesto é bastante diferente. Em primeiro lugar,
social-democrata e hiper-cauteloso, o que é o mais prová- proíbe a nostalgia: devemos abordar o radicalmente al-
vel que vejamos, na melhor das hipóteses. terado aqui-e-agora. Não podemos voltar. E, em segundo
Mas neste contexto, pelo menos, deve tornar-se um lugar, devemos revigorar a sensação do tempo prospec-
pouco mais possível desenvolver formas de agência, no- tivo, um sentido fundamentado de que as coisas podem
vos centros de poder, diferentes tipos de identidade e re- ser realmente diferentes (em oposição a uma outra invo-
sistências ao mercado, dentro das quais pode surgir uma cação que descarta a ideia de que outro mundo é possí-
melhor ordem social. Pensamos que, na atual conjuntura vel). E para isso, devemos mudar os termos do debate,
política, é enfaticamente necessário ter uma visão de lon- redesenhar o terreno político. Estas são as questões que
go prazo. permeiam o Manifesto.

Temas emergentes Financiarização: uma aliança contra financiamentos

O que acontece O que é fundamental para o aqui-e- agora, argumen-


taríamos, é “financiarização”. Isso tem sido um tópico em
muitos dos capítulos aqui, e sua importância é evidente,
O processo de escrita do Manifesto traz para o aqui
não só no sentido econômico óbvio, mas também na ma-
e agora o quão a democracia social foi completamen-
neira como ele entra nas nossas cabeças, nossas imagi-
te solapada. Isso não é tanto em termos de estruturas
nações e cultura mais ampla. É argumentável, de fato,
formais - ainda haverá mecanismos de redistribuição e
qual seria a base fundamental da atual articulação das
elementos do Estado de bem-estar, embora muito trans-
diferentes instâncias hegemônicas neoliberais. É parte
formados. Ao contrário, queremos dizer isso em termos
do que mantém as coisas juntas. Pelo mesmo argumen-
de ethos e espírito; como o “senso comum” da social-de-
to, é consequentemente uma base possível para reco-
mocracia foi fraturado e fragmentado. Como a nossa lin-
nhecer temas comuns entre uma miríade de lutas dife-
guagem foi transformada. Stuart escreveu em 2010 (em
rentes na sociedade britânica hoje; é o “inimigo comum”
Interpreting the crisis, Soundings 44, reimpresso em The
de uma série de escaramuças aparentemente diferentes.
Neoliberal Crisis) sobre a “limpeza do discurso político”,
A oposição à financiarização poderia ser a chave para a
o apagamento da linguagem da classe, a substituição
construção de cadeias de equivalência que liguem, pelo
das “forças de mercado” pelo “capitalismo”, da “comuni-
menos, algumas dessas lutas, construindo uma fronteira
dade” para “sociedade”. Para muitos, a própria estrutura
política comum, uma “aliança contra financiamentos”?
temporal do nosso auto-posicionamento no mundo foi
Tal aliança é, de fato, proposta no Green New Deal16, e,
implodida. Onde uma vez houve um sentimento de viver
além de apoiar isso, sugerimos ampliar o alcance do pro-
em uma história mais longa em que haveria progresso,
posto ali17. O objetivo de tais alianças é manter a especi-
para o qual poderíamos contribuir (independentemente
ficidade das diferentes lutas e seus círculos eleitorais de
das nossas profundas reservas à essa dupla crença es-
base, ao mesmo tempo em que os vincula às demandas
tranha às nossas críticas das meta-narrativas determi-
que questionam as estruturas de poder mais profundas
nistas), agora há mudanças constantes, especialmente a
da formação social, a oposição que compartilham. Claro,
tecnológica, mas é uma pequena mudança.
as estruturas de poder “mais profundas” são coisas ainda
A grande mudança, a mudança histórica, parece muito
maiores - imperialismo, capitalismo. Mas, como Chantal
difícil de imaginar. E, embora o imaginário anterior tenha
Mouffe argumentou, na construção de análises práticas
certamente suas desvantagens (sua natureza muitas ve-
viáveis, pés no chão, é necessário reconhecer pontos de
zes monolítica, a própria restrição de viver dentro de uma
poder, que são invocados na ​​ imaginação. Sugerimos que
trajetória assumida), teve um sentimento de localização
histórica e de otimismo (por mais que seja mal colocado). 16
N.T. Termo faz referência ao New Deal, proposto na Grande Depressão dos anos
1930 nos Estados Unidos da América. Nesse casto trata-se de uma expressão que
indica um pacote endereçado à crise financeira, questão ambiental e mudanças cli-
15
N.T. A expressão consumerisation of society referencia-se ao modelo das máticas.
tecnologias de informação, cujos processos focam na individualização do produto. 17
Consulte www.greennewdealgroup.org.

48
Dossiê Doreen Massey

a financiarização é uma dessas na conjuntura atual. Da mesma forma, no Capítulo 6, Janet Newman e John
Clarke documentam “como as pessoas apegadas a um
determinado grupo permanecem em suas identidades
como membros de um público mais amplo”. E o Coleti-
Alcançando “bom senso”
vo Plataforma, no Capítulo 9, aponta para as questões
que podem ser solicitadas a uma política energértica que
No entanto, se a finança / financiarização é um dos possa afetar e potencialmente desencadear esse “núcleo
“inimigos”, um desafio que pode ajudar a desfazer alguns saudável dentro do nosso senso comum que se opõe à
dos piores aspectos do atual cenário, também é preciso injustiça”.
apontar algumas das coisas boas que temos. Na verdade,
Um dos exemplos mais claros de tal possibilidade, em
existem muitas lutas específicas, embora um pouco des-
que uma sensação de justiça poderia ser ampliada e in-
conectadas em suas particularidades - daí a necessidade
tegrada a uma política progressista, diz respeito à noção
de alianças como discutido acima. Mas também há sen-
de “a sociedade do tudo-ou-nada”. Isto é particularmente
timentos e atitudes potenciais, sentimentos talvez mal
significativo porque o debate sobre o seu significado che-
interpretados - acreditamos - bastante difundidos. No
ga ao cerne do assentamento neoliberal.
capítulo 3, Stuart Hall e Alan O’Shea exploraram a noção
de senso comum - um conceito chave para a análise de
conjunturas18. Além de enfatizar a natureza internamente
composta e muitas vezes contraditória do senso comum A sociedade do algo-ou-nada
e o fato de ser um local de contestação política, os auto-
res apontam também para o fato de que o senso comum
Não há dúvida de que o governo de Coalisão está cien-
sempre contém “o núcleo saudável” que merece ser feito
te de que as pessoas são suscetíveis a noções de justiça.
mais unitário e coerente” (p.54, citando Gramsci). Este é
Eles tocam neste assunto constantemente de modo que
o “bom senso” de Gramsci: “O bom senso oferece uma
são projetados para fomentar antagonismos entre aque-
base sobre a qual a esquerda poderia desenvolver uma
les que, caso contrário, se oporiam a eles. Cameron se co-
estratégia popular para mudanças radicais - se levar a
loca em uma posição de raiva fabricada19 contra o que ele
cabo a ideia de que o senso comum é um terreno de luta
chama de sociedade do “algo-ou-nada”. Ele normalmente
política” (p.54). Existem muitos elementos potenciais no
se refere às pessoas sem emprego, quando ele sabe que
senso comum atual que poderia ser atraído e, uma vez
consegue ativar o senso de (in)justiça do povo. Por que
rascunhado, tecido em uma narrativa mais ampla e mais
eu deveria trabalhar enquanto os outros se acomodaram
explícita.
com os “benefícios”?
Podemos retomar essa aversão generalizada a ser
Uma resposta fácil e imediata é se perguntar sobre
constantemente chamado e, portanto, posicionado
o que foi que ele fez precisamente para merecer toda a
como, um “consumidor” ou um “cliente”. Os estudantes
riqueza com a qual nasceu. Mas, existe uma resposta
odeiam ser chamados de clientes; passageiros em trens
mais estrutural, trocar algo por nada significa precisa-
comentam com desprezo serem chamados como clien-
mente o que eles (o governo de coalisão Tories and Li-
tes; os fãs do time de futebol que um de nós apoia têm
beral Democrats) decidiram acerca da formação econô-
uma bandeira que afirma sua identidade como “torcedo-
mica e social no Reino Unido. Muito da economia de hoje
res e não clientes”. O que está acontecendo aqui é uma
não trata de produzir coisas novas, trata-se de comprar
rejeição popular da redução de todas as identidades e
e vender ativos (terra, arte, propriedade, derivados de vá-
relações às baseadas em transações comerciais (Capí-
rios tipos, previsões de commodity), a fim de adquirir ren-
tulo 1). Não seria possível recorrer a isso, e desenvolver
da e/ou se beneficiar da venda dos mesmos. Dinheiro é
um discurso político que reconheça a especificidade das
simplesmente “feito” fora da habilidade de possuir. Como
relações e a importância crucial de se ter uma política de
foi argumentado no capítulo 7, essa aquisição de riqueza
relações (ver especialmente capítulos 2 e 6)?
não trata de produção de riqueza e esse efeito econô-
Em seu capítulo, Stuart e Alan exploram o elemento de mico imediato é a redistribuição dos ativos aos acionis-
“justiça” em todas as suas articulações complexas e con- tas. Em resumo, chamamos isso de sociedade rentista. É
traditórias e concluem que “enquanto o discurso neolibe- também uma sociedade do algo-ou-nada. E no capítulo
ral é cada vez mais hegemônico e estabelece a agenda Energy beyond neoliberalism, os mecanismos e as apro-
para o debate, existem outras correntes em jogo - empatia priações injustas que isso envolve são vistos através de
pelos outros, como uma cooperação ao invés da concor- uma lente geográfica mais ampla, na monopolização pri-
rência, ou um sentimento de injustiça, por exemplo”(p.65). vada da Terra e de seus recursos. O que está em questão
18
Veja, por exemplo, Chantal Mouffe, sobre o Político On the Political (Thinking in aqui é a renda e a riqueza não conquistadas. Esse não
Action), Routledge 2005. seria também um problema de “justiça” passível de de-
19
N.T. No original, a expressão é “manufactured rage” (p. 208).

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

bate? Isso não seria divergente do ponto defendido por com a propriedade da terra, por trazer para o debate po-
Cameron? lítico dominante toda a questão do capital imobilizado e
Existem dificuldades claras. Por exemplo, o povo com- do rentismo. É evidente que o objetivo era abrir para essa
prou essa ideia, tanto simbolicamente quanto material- intervenção é evidente no fato de Johnson sentir que ti-
mente. Que são os aumentos dos preços das casas ou nha que dizer algo: ele - se não políticos da oposição -
dos dividendos das aposentadorias, senão a apropriação estava muito ciente de que isso tocava dolorosamente
privada do valor produzido socialmente? Ainda que sejam naquele núcleo saudável de “bom senso” do povo. Não
de direita, os milionários rentistas também estão cien- se trata de trivialidades ou de simpatia pelo indivíduo,
tes da potencial precariedade que podem causar. Como mas de mobilizar parte de uma contestação contrária
Andrew Sayer apontou, a própria distinção entre dinheiro à hegemonia do senso comum, desafiando a ganância
conquistado e o lucro, curiosamente, caiu em desuso, à e as estruturas instaladas. Quando o livro estava sendo
medida em que o mercado financeiro se tornou a nova impresso, anunciaram que os proprietários venderam a
proeminência, e ele escreve sobre como a história das empresa para uma fundação que fornece casas acessí-
finanças passou por lutas contínuas acerca do uso de veis a baixa renda. Uma fase da batalha foi vencida he-
termos favoráveis ​​e desfavoráveis para
​​ as suas práticas: roicamente, mas algo maior precisa ser feito.
“investimento “,”especulação”,”aposta”,”fraude”.20 Aliás, esta é uma arena que demanda “políticas” po-
Há claramente uma disputa a ser enfatizada aqui, as- tencialmente possíveis e extremamente efetivas. No capí-
sim como Stuart Hall e Alan O’Shea argumentam, sobre tulo 7 sobre “redesenhar o debate da economia”, escreve-
como esse componente do “bom senso” que é atraído mos sobre a necessidade de um imposto sobre o valor da
pela idéia de equidade deve ser articulado e entendido terra - uma política que não só funcionaria (entre outras
politicamente. coisas) para atenuar o frenesi que resulta em lucrativas
as moradias como as do New Era, mas também seria o
No momento desta escrita, a batalha sobre a proprie-
veículo perfeito para aumentar as maiores questões polí-
dade da New Era em Londres está nas notícias (é na verda-
ticas de (in) justiça e capital imobilizado. Uma política, em
de uma das muitas dessas batalhas). A venda de empre-
outras palavras, é mais do que uma política, que poderia
sa (que anteriormente forneceu casas acessíveis à classe
ser parte de uma narrativa alternativa ao desenho de fron-
de baixa renda) a um grupo de investimento internacional,
teiras políticas.
que propôs grandes aumentos nos lucros, pode ser vista
como um “evento” que sintetiza muito a conjuntura atual.
Os edifícios e a terra em que se situa a propriedade foram
transformados de valores de uso, de um retorno modesto, Linhas de divisão social
para serem considerados ativos puramente financeiros. E
esta transformação é um produto dessa nova articulação
Existe um outro elemento neste surgimento da nova
do capital e das finanças e da globalização do setor terra
sociedade rentista que raramente é mencionado, mas
/ propriedade sob a hegemonia neoliberal, que foi discu-
que é importante para a esquerda. Isto é, trata-se da
tida no capítulo inicial: um evento particular que emerge
mudança nas relações de classe22. Os principais meca-
da constelação da mais antiga a mais recentes histórias
nismos de exploração e de apropriação do excedente já
e mudanças geográficas. No entanto, o ponto aqui é que
não estão tão claramente localizados em relações entre
se tornou uma causa célebre, e idéias sobre justiça foram
o capital, por um lado, e os trabalhadores, por outro. O
fundamentais para a batalha.
valor também é apropriado através do aluguel, ganhos
Na verdade, a campanha afetou tanto que, inclusive,
de capital e juros. Isso significa que as localidades da
o prefeito de Londres, Boris Johnson, ofereceu apoio -
expropriação se multiplicaram, muitas vezes em lugares
apesar de o fato de que esse confronto particular já esti-
menos transparentes e menos contestáveis do que os
vesse sendo realizado - ele estava dando boas-vindas ao
locais de produção aos quais estamos acostumados (ou
“mercado internacional dos profissionais do imóvel” (MI-
onde a luta não tem um histórico estabelecido). Esta é
PIM)21, a maior feira imobiliária do mundo - precisamente
outra importante mudança, mais recente do que o declí-
o tipo de força através da qual os inquilinos da proprie-
nio da fabricação e da mineração que é tão frequente-
dade podem perder suas casas (a própria feira também
mente objeto de referência, mas que também contribuiu
atraiu uma forte oposição de base). Foi um momento
de forma significativa para a fragmentação das forças da
perfeito para entrar no jogo sobre o que queremos dizer
classe trabalhadora.
com “justiça”, para levantar desafios sobre os ganhos
A. Sayer, “Facing the challenge of the return of the rich”, em W. Atkinson, S. Rob-
20
Além disso, outras linhas de divisão social também
erts and M. Savage (eds), Class inequality in austerity Britain, Palgrave Macmillan são importantes para a estruturação do momento atual.
2012, p.107. Veja M. de Goede, Virtue, Fortune, and Faith: A Genealogy of Finance,
University of Minnesota Press 2005; e o capítulo 7 deste volume “Whose economy? As linhas de divisão em torno de gênero / sexualidade e
Reframing the debate”, de autoria Doreen Massey e Michael Rustin.
raça / etnia, por exemplo, estruturam as relações sociais
N.T. No original se refere à expressão “Le marché international des profession-
21

nels de l’immobilier” (p. 209). 22


Sayer, op cit.

50
Dossiê Doreen Massey

de maneiras distintas. Como argumentamos na declara- nante mudou no decorrer do tempo. Como argumenta o
ção inicial que abre este volume: “Quando essas divisões capítulo, na Europa o contrato de gênero social-democra-
sociais operam dentro do sistema capitalista, são profun- ta, centrado no movimento progressivo para, por exem-
damente moldadas por ele e articuladas a ele. Mas elas plo, a igualdade de remuneração, está morto. Tinha suas
conservam sua “autonomia relativa”. O que é importante próprias limitações, sendo esmagadoramente preocupa-
para o nosso tipo de análise no Manifesto, portanto, não do com a redistribuição e não com a transformação das
foi a documentação das desigualdades, discriminações e relações humanas e das identidades hegemônicas. Mas,
exclusões que seguem essas linhas de divisão (apesar de na verdade, produziu um certo progresso. Em matéria de
serem importantes), mas antes tentando entender como igualdade de gênero, o capítulo confirma o argumento de
esses sistemas de divisão e subordinação relativamen- que chegamos ao final da social-democracia com uma
te autônomos se articulam com os do neoliberalismo. narrativa da melhoria desta relação. Isso foi uma derrota
Nós abordamos, até agora, somente três destas linhas histórica.
de divisão no Manifesto. Como é demonstrado, de fato a Em seu lugar, temos uma nova articulação do neoli-
natureza de cada uma é distinta. beralismo e do patriarcado. Tanto o capitalismo quanto o
A atenção à divisão ao longo de linhas geracionais é patriarcado têm a sua dinâmica (relativamente) indepen-
uma resposta às características políticas e econômicas dente, não existe uma lógica ou necessariamente uma as-
imediatas da própria situação pós-crise. Há evidentes sociação entre eles. Mas, eles se alimentam mutuamente
privações materiais para os jovens e um discurso político em sua conjuntural relação transformando-se e otimizan-
que visa criar [o conflito entre] as gerações uma contra do-se reciprocamente. Sob o neoliberalismo, essa habili-
a outra. Em parte, este último foi construído para des- tação e moldagem mútua é surpreendente. Dos ataques
viar a atenção das divisões de classe. Mas, não teria tido ao estado de bem-estar no Ocidente (e na China), às “no-
nenhuma adesão política se tivesse sido completamen- vas guerras” e às masculinidades militarizadas que não
te falso. Como muitas narrativas políticas deturpadas, se limitam a zonas de guerra, à impunidade que protege
ela atinge e toca uma realidade vivida. O capítulo 5 [“A a violência sexual, às configurações sexuais dominadas
growing discontent: class and geration under neolibera- pelos homens que estruturam o capitalismo na Ásia (e,
lism”, de autoria de Ben Little] reafirma este argumento. podemos acrescentar, as hiper-masculinidades dos cha-
O que se manifesta como desigualdade intergeracional é, mados setores econômicos “avançados”, no sistema
de fato, parte integrante da construção de um novo pa- financeiro e tecnológico do ocidente) ... tudo isso está
radigma de classe, de desigualdade e insegurança. Uma completamente imbricado no caráter e no funcionamen-
geração “nova” está emergindo, com o potencial de uma to do neoliberalismo. “O novo acordo global não é nada,
identidade coletiva, precisamente como um marcador de senão um novo arranjo sexual.” O que isso significa é que
mudanças na configuração social. A geração mais jovem um forte movimento feminista não só intersecciona-se
pode ser, em parte, compreendida como um caldeirão com outras lutas contra a ordem atual (a necessidade de
dentro do qual as normas pós-social-democracia podem solidariedade social de algum tipo de estado de bem-es-
ser experimentadas e incorporadas. Pode ser visto como tar, a necessidade de abordar relações sociais comple-
um equivalente temporal do “caldeirão” que, na dimen- xas, a necessidade de abordar isso dentro de um quadro
são espacial, é a Grécia23. Ambos estão pressionando os internacionalista, a necessidade de enfrentar sexualida-
pilares para desmascarar os princípios neoliberais. Com- des violentas ...), como também é crucial para erodir essa
preender a interseção de classe e geração desta forma ordem. O neoliberalismo construiu-se de tal maneira que
nos dá novas ferramentas para entender a conjuntura depende das formas de dominação masculina. Talvez
atual, reorientar a fronteira política, muito além de ser um isso também apresente uma linha de falha na qual pudes-
simples conflito intergeneracional e apontar para o po- se ser atacada pelo forte movimento feminista.
tencial de uma nova ação política. O capítulo 10 [Race, migration and neoliberalism, de
Além de haver paralelos com a Grécia, a questão da autoria de Sally Davison e George Shire] analisa alguns
“geração” está inserida em discursos e movimentos que dos mecanismos, bastante diferentes, mediante os quais
abrangem grande parte da Europa e do Norte da África. os discursos e as práticas racializadas foram articuladas
A linha de divisão social que corre ao longo do gênero e ao neoliberalismo. De fato, como argumentam, a raça es-
sexualidade, no entanto, é mostrada no Capítulo 4 (After tava no cerne de muitas mudanças e lutas políticas que
the neoliberalismo: the need for a gender Revolution, de marcaram a transição inicial para o novo paradigma. Des-
autoria de Beatrix Campbell) que tem dimensões globais. de então, as formas racializadas de senso comum têm
Também há uma história estrutural mais longa e a natu- sido fundamentais para o funcionamento e a sustentação
reza de sua articulação com a ordem econômica domi- do neoliberalismo, seja na manutenção de relações co-
merciais desiguais ou na construção de alianças entre
Veja Christos Laskos e Euclid Tsakalotos, Crucible of Resistance, Pluto, 2103; e
23

dos mesmos autores de Out of the mire: arguments from the Greek left, Soundings
classes.
57, summer 2014.

51
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

O que o capítulo também destaca, no entanto, são as imóveis que caracterizamos como direção errada da eco-
contradições no coração dessas articulações. “O neolibe- nomia britânica são parte integrante dessa desigualdade
ralismo há muito se baseou em apoio ideológico a discur- de poder. Mesmo onde o capital é ostensivamente imo-
sos conservadores que, em termos lógicos formais, são bilizado por um grande número de cidadãos, através de
contraditórios, por exemplo, Margaret Thatcher desdo- fundos de pensão e outros, não existe um mecanismo
brou a família e a nação. Tais combinações contraditórias efetivo para garantir que tais recursos sejam alocados
são parte integrante do funcionamento do senso comum para fins socialmente responsáveis24. No contexto da dis-
hegemônico. Eles podem ser vistos claramente hoje no tribuição do capital e da crescente desigualdade, os pro-
co-funcionamento do neoliberalismo e do racismo. Uma gramas de privatização (aprovados pelo New Labour25 no
questão é, portanto, se as contradições podem ser es- cargo) têm sido altamente significativos, já que transferi-
cancaradas para permitir uma maneira de estabelecer-se ram recursos até então em comum propriedade (embora
formulações alternativas que possam refazer a fronteira indireta ou remotamente gerenciada) para indivíduos que
política, longe das linhas raciais, para aqueles que se en- possuem uma riqueza privada significativa, que de fato
contram entre uma aliança que pode “envolver a classe e são uma pequena minoria da população. A distribuição
outras formas de desigualdade”, por um lado, e “o enorme do poder econômico nesta sociedade está se tornando
poder da elite” no outro. quase feudal26.
Uma consequência do padrão neoliberal de desen-
volvimento econômico não é apenas desindustrialização
na Grã-Bretanha e em muitas outras nações, entretanto,
Pontos de Resistência
mais amplamente, a diminuição da demanda por em-
prego qualificado. Este é o resultado em parte da subs-
Discutimos desde o início da Soundings que a política tituição do trabalho pelo capital, agora remodelando o
é, e precisa ser, muito mais do que “política” (de fato, esta trabalho burocrático e também administrativo, além da
é mesmo uma das lições que deve ser extraída do surgi- exportação de investimentos para regiões com salários
mento do neoliberalismo, que não é meramente um pro- mais baixos do mundo. Seu efeito é enfraquecer o po-
grama político de governos, mas envolveu a conquista de der daqueles que devem viver pelo seu trabalho, que é a
toda uma sociedade e o “senso comum” de sua época). maioria da população adulta. Isso traz uma redistribui-
Foi essa concepção de política que inspirou a New Left ção adicional do poder em favor da propriedade. Esse fe-
desde os seus inícios, em 1956, e que buscamos reno- nômeno da “classe média sufocada” é evidente nos EUA
var quando a Soundings foi fundada em 1995. Assim, a na estagnação das rendas de “classe média” (como vi-
luta sobre como a sociedade está organizada, como seus mos, eufemismo Marx-fóbico para classe trabalhadora),
membros devem se relacionar e o que emergirá como no decorrer de duas décadas. Um fenômeno semelhante
valores centrais e representações simbólicas, precisa ter é visível na Grã-Bretanha. É dada uma expressão política
lugar numa multiplicidade de locais. hipócrita na apelação de Tory às “famílias trabalhado-
No entanto, existem certos domínios-chave sobre os ras”, que parece se identificar com elas mesmo quando
quais o argumento político deve ser concentrado. elas estão sendo danificadas pelas políticas econômicas
neoliberais. A “classe média sufocada” é seu contra-s-
logan, que está fragilmente ligado à ideia de que as cor-
porações bilionárias e inadimplentes devem contribuir
mais para o bem-estar da maioria. Há muitas razões
pelas quais é necessária uma estratégia econômica dis-
Desigualdade e pobreza tinta do modelo de neoliberalismo liderado por finanças
e propriedades. Por um lado, manter o padrão de vida
e evitar outra crise financeira depende disso. Por outro
Um deles diz respeito ao aprofundamento das desi-
lado, o equilíbrio de poder entre as classes - entre o tra-
gualdades provocadas pelo regime do capitalismo neo-
balho e a propriedade - depende da disponibilidade de
liberal e a pobreza que acompanha isso. As crescentes
formas de trabalho produtivas e criativas. Um setor pú-
desigualdades não são meramente uma questão de ren-
blico renovado tem um papel crucial a desempenhar em
da e as habilidades diferenciais para gastar, que são as
características mais visíveis; eles também são sobre a Robin Blackburn propôs que uma transferência de poder democrática pudesse
24

ser alcançada se a propriedade popular nominal dos ativos do fundo de pensão


distribuição da riqueza e do poder. A distribuição gros- pudesse se tornar substantiva, de fato. Veja também Age Shock: How Finance is
Failing Us, Verso 2011.
seiramente desigual da riqueza, em sociedades como
N.T. Referência ao Gabinete do último governo do Partido Trabalhista, no Reino
25

a Grã-Bretanha, significa que uma pequena minoria tem Unido, cujo líder era Gordon Brown (2007-2010).
controle sobre o investimento e a alocação de capital. O texto fundamental sobre os padrões de propriedade desigual e seu significado
26

é o Capital in the Twenty-First Century de Thomas Piketty, publicado em 2014. O


A financeirização e o excesso de investimento em bens impacto deste best-selling sugere que este problema está se tornando reconhecido
por uma parcela da opinião pública, além da própria esquerda.

52
Dossiê Doreen Massey

tal desenvolvimento, tanto na estimulação e orientação cente influência das corporações e instituições financei-
do novo investimento produtivo, como Mariana Mazzu- ras no governo, por meio do lobby e do financiamento de
cato argumentou, quanto no fornecimento de contextos partidos políticos e da formação de opinião pública29. O
para o trabalho humanamente gratificante.27 encolhimento do poder de comércio, de sindicatos e de
Em termos políticos, as questões cruciais de pobreza, governos locais eleitos foi uma causa adicional do enfra-
crescente desigualdade, irresponsabilidade e uso indevi- quecimento da agência democrática popular na nossa
do do poder corporativo exigem políticas de memória, crí- época.
tica e ataque. Injustiça aos pobres, privilégios indefensá- De fato, o poder e a responsabilidade democráticos
veis ​​e impunidades para os ricos, a fuga das instituições são mais efetivamente exercidos em circunstâncias pró-
financeiras e corporativas da jurisdição efetiva dos gover- ximas à experiência das pessoas, onde elas têm maior
nos - tudo isso precisa ser exposto como, nas palavras conhecimento e compreensão do que está em jogo nas
de Edward Heath, “a face inaceitável do capitalismo”; e os suas decisões. A área mais importante da vida das pes-
mandatos políticos devem ser conquistados para os mo- soas - que é excluída do formal e também muitas vezes
vimentos em direção a arranjos econômicos mais equi- de processos democráticos informais - é a ambiente de
tativos. Nas situações em que a má conduta for evidente trabalho. A pré-condição de uma democratização mais
(quebra de regras ou trapaça por bancos ou por empresas profunda da sociedade é o estabelecimento de direitos e
de terceirização, evasão de passivos à tributação), isso responsabilidades democráticas na esfera econômica, a
pode ser utilizado como oportunidades políticas. partir da representação dos funcionários nos conselhos
Nos últimos anos, Richard Wilkinson e Kate Pickett, da empresa e nos procedimentos de tomada de decisão
entre outros, demonstraram que os altos níveis de de- e dos poderes de compensação dos sindicatos e das as-
sigualdade são destrutivos do bem-estar social, não só sociações profissionais. Não só esse desenvolvimento
para os mais pobres da sociedade, mas para a qualidade aprofundaria a cultura da democracia na sociedade e a
de vida da sociedade como um todo28. Parece que quan- experiência da prática democrática, mas também torna-
to mais íngreme o gradiente de desigualdade material na ria muitas organizações corporativas e governamentais
sociedade, mais numerosos são os “sintomas mórbidos” mais eficientes e competitivas, ao permitir-lhes mobili-
e o mal-estar social que surgem de experiências genera- zar maior iniciativa, responsabilidade e compromisso de
lizadas de desrespeito, humilhação e ansiedade - ou, em seus membros.
uma formulação anterior, “relativa privação”. O referendo sobre a independência na Escócia vem
sendo um evento importante na vida política britânica,
ao mostrar quais níveis intensos de comprometimento e
atividade são possíveis quando os cidadãos sentem que
Democracia e democratização
algo importante está em jogo. Este debate levou a uma
nova consideração de questões de poder descentraliza-
A questão da democracia e o objetivo de alcançar do no resto do Reino Unido, incluindo a Inglaterra. A reali-
uma forma de sociedade mais democrática são igual- dade é que o Reino Unido, antes da devolução da Escócia
mente fundamentais. Um dos principais meios pelo qual e de Gales, tem o aparelho de governo mais centraliza-
o capital e a propriedade mantiveram seu poder é sempre do na Europa. A desindustrialização de grande parte da
aplicar a interpretação mais restrita da idéia de demo- Grã-Bretanha e a redução do poder de suas autoridades
cracia. O que acontece no contexto histórico de um lon- locais contribuíram para aumentar as desigualdades en-
go processo de democratização que levou à realização tre as regiões, agravando as desigualdades de classe e
de um sistema universal (apenas na década de 1920, ou propriedade que cresceram sob o neoliberalismo. Sem
seja, menos de um século atrás), é que votar em eleições responder a um localismo romântico, uma transferência
nacionais, locais e europeias, de vez em quando, e ter significativa de poderes dentro de um quadro de normas
a oportunidade (de fato exercida apenas por uma par- e de redistribuição ofereceria a possibilidade de corrigir
cela diminuta da população) para participar ativamente esse (des)equilíbrio e de criar novos centros de agência
da política eleitoral são uma mínima forma de exercício democrática, como surgiram da delegação de poder para
do poder democrático, geralmente representando pouco a Escócia. É necessário também revisar a questão do
mais do que um direito de veto popular sobre políticas e sistema eleitoral, cujo sistema de maioria simples para
decisões realmente impopulares. as eleições parlamentares inibe seriamente o processo
Sob a influência do neoliberalismo, a causa da demo- democrático.
cracia tem, em sua maior parte, perdido terreno. Colin As questões da desigualdade e do empoderamento
Crouch descreveu seu “esvaziamento”, a partir da cres- democrático são cruciais para qualquer contestação do
27
M. Mazzucato, The Entrepreneurial State, Anthem Press 2013.
poder e da legitimidade do neoliberalismo como sistema.
28
R. Wilkinson e K. Pickett. The Spirit Level. Penguin 2010.
Veja Colin Crouch, Post-Democracy, Polity 2004; E The Strange Non-Death of
29

Neo-Liberalism, Polity 2011.

53
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

Quaisquer restrições que um governo alternativo possa Então, questões de “ambientalismo” não são ape-
enfrentar ao assumir o cargo, uma pauta essencial para nas básicas para nossa própria sobrevivência, elas tam-
a sua eficácia será o progresso de duas medidas: uma bém são parte integrante do resto da nossa política, uma
agenda para diminuir a desigualdade e para o aprimora- arena em que uma infinidade de diferentes fronteiras polí-
mento do poder e da prática democráticos. ticas podem ser abertas.

Questões Ambientais Múltiplas esferas da ação: encontrando unida-


de na diversidade
Em Soundings número 51, Guy Shrubsole lembrou
que Robin Cook disse uma vez que o ambientalismo era Por conta da natureza das políticas conjunturais, não
o “gigante adormecido da política britânica”30. Como uma se pode prever os locais de antagonismo e a potenciali-
questão imediata, teve seus altos e baixos, explosões de dade que mais possam vir a provar qual seria o significa-
atividade em torno de protestos sobre estradas, alimen- do nas lutas para suplantar o neoliberalismo de sua atual
tos transgênicos, mudanças climáticas e a venda de flo- posição de domínio ideológico. Discutimos neste Mani-
restas públicas, sendo separados por períodos de relati- festo que o neoliberalismo tornou-se um senso comum
va calmaria. Mas, seu artigo também aponta para uma compartilhado e, de fato, foi deliberadamente construído
distinção entre opiniões e valores. O primeiro refere-se à para ter essa força, por muitas agências diferentes. Apon-
urgência dos temas políticos, às atitudes diante do que tamos neste Manifesto que há pontos de resistência. Por
acontece debaixo da superfície, e o segundo valoriza a exemplo, o nosso argumento contra o individualismo, ao
profunda mudança da opinião pública. É no nível de atitu- considerar o conceito relacional da natureza humana (no
des e valores que o Manifesto desejava argumentar. Uma Capítulo 2, A relational society), está enraizado na expe-
das abordagens para questionar isso, como Guy Shrub- riência da maioria das pessoas em relação à dependência
sole argumenta, é assumir o nosso distanciamento do e à conexão como condição para o desenvolvimento atra-
mundo natural, reconhecendo e valorizando nossa rela- vés do ciclo de vida. Contra as pressões para interpretar
ção com ele. Isso também é uma chave de interpretação as relações em termos de mercado, médicos, enfermei-
central aqui no nosso argumento. ros e professores continuam vendo aqueles para quem o
Um dos elementos cruciais que o nosso capítulo sobre bem-estar e o desenvolvimento trabalham como pacien-
energia deixa claro é que as questões ambientais não fa- tes ou estudantes, e não como meros clientes. A resis-
zem parte de uma esfera separada, mas estão totalmen- tência ao mercado e às definições corporativas dessas
te relacionadas com todas as outras lutas políticas que esferas de trabalho é, portanto, central para um conceito
aqui abordamos. Sua relevância para os debates sobre diferente de uma boa sociedade. O compromisso revela-
a democracia é fundamental para esse capítulo, porque dor dos conservadores em reduzir o papel do Estado e
ele argumenta a necessidade de movimentos sociais, de dos serviços públicos a um mínimo residual, algo não vis-
intervenção do Estado e um conjunto de arranjos mais to desde a década de 1930, agora expõe o pleno signifi-
diversificado e flexível em que a especificidade local e o cado do neoliberalismo, mas talvez defina um terreno de
ativismo são cruciais, sem recorrer a um localismo fácil luta em que possa ser travado com sucesso.
ou exclusivo. A questão da propriedade da terra também Mas há muitas outras esferas de vida nas quais os
é importante para mudar nosso sistema de energia, tanto valores do neoliberalismo e as formas de poder que ele
para permitir as mudanças necessárias de uso quanto mobiliza precisam ser contestados. No Capítulo 9 (Ener-
para evitar lucros e concessões para as grandes cor- gy beyond neoliberalism), discutimos o significado das
porações. A fúria com que a população manifestou-se questões ambientais e as mobilizações em torno delas,
sobre a proposta de venda de florestas públicas é uma como um exemplo crucial disso. Essas questões envol-
indicação de que há sentimentos progressivos a serem vem o bem-estar futuro de toda a comunidade humana
aproveitados aqui. E a questão da energia também está e exigem uma perspectiva que não seja meramente indi-
totalmente ligada à das finanças, e especialmente ao de- vidual e de curta duração, como no tipo dominante neo-
senvolvimento de Londres, que não é apenas um centro liberal. O desenvolvimento de programas responsáveis​​
financeiro, mas também uma cidade energética. Isso le- para responder aos perigos da mudança climática impli-
vanta, por sua vez, grandes questões da responsabilida- ca numa transformação fundamental nos valores, que até
de histórica e global do Reino Unido. Não poderia haver agora podem ocorrer, mesmo que seja muito lenta.
uma política que abordasse especificamente este papel
Ou considere o campo mais específico da educação
de Londres no mundo global? O que Londres representa?
pós-escolar [como o Ensino Superior ou Profissionalizan-
Não faz tanto tempo que Londres era uma cidade radical.
te]. Foi relatado que meio milhão de jovens entraram em
30
Guy Shrubsole, “Waking the sleeping green giant”, Soundings 51, summer 2012.

54
Dossiê Doreen Massey

seu primeiro ano de universidade em 2014, o maior núme- políticas no sentido comum do termo. Como Deleuze e
ro de todos os tempos. As experiências que eles têm, os Guattari colocaram em seu diferente idioma, há “mil pla-
currículos que eles seguem, o que e como eles aprendem, tôs”, isto é, um número quase infinito de pontos de múl-
devem, a seu modo, ser formativos para a ordem social, tipla interseção, dentro dos quais o futuro de uma socie-
o que é inevitavelmente reeditada por todas as gerações. dade pode ser imaginado, combatido e determinado32.
Há perguntas a serem feitas sobre o que é ser “político” De fato, em uma boa sociedade haveria muitas formas
neste contexto? Como os professores da universidade e de coexistência e contestação, e não exclusivamente as
a “equipe de apoio” e seus alunos dão ao seu trabalho um de propriedade e capital, por um lado, nem de governos e
significado que resista à sua redução a uma mera con- organizações políticas, por outro.
quista de credenciais e na vantagem competitiva, seja Após esses anos de ascendência neoliberal, o desafio
para si ou para cada vez mais organizações “corporati- é desenvolver maneiras de pensar e sentir que possam
vas”? Aqui é um local onde a invenção de uma política criar conexões entre diferentes tipos de ação e identifi-
“prognóstica”, na qual as relações de aprendizagem e cações engajados nelas. É preciso haver tanto o respeito
sociais assumam a forma que desejariam ter no futuro, pela diversidade, para as especificidades de cada esfera
pode ser tão importante quanto as formas mais comuns da vida, quanto um reconhecimento do que deve ser uma
de ação política. Essas relações desejáveis ​​estão bastan- concepção fundamental da justiça, da igualdade e da “de-
te longe do estado atual das coisas, nas universidades mocracia profunda”. A tarefa é criar e sustentar um novo
dominadas pelo gerencialismo, pela classificação com- consenso acerca de valores que os governos eleitos, ao
petitiva e por uma consciência subjacente de que muitos longo do tempo, encontrariam segurança para fortalecer
diplomados não encontrarão trabalho que faça bom uso em suas decisões.
de sua educação e de suas capacidades. Mas, para que
Agora, com o Manifesto Kilburn concluído, nós na
uma abordagem tão prognóstica se torne possível, é pre-
Soundings seguiremos problematizando esta análise e
ciso que haja uma análise crítica do que são agora os de-
estes argumentos.
sapontamentos generalizados desse setor.
Não se pode prever onde, mesmo envolvendo a análise
política mais articulada e multifacetada, a necessidade, a
oportunidade de contestação e o debate político possam
se abrir. Por exemplo, as principais organizações esporti-
vas gostam de afirmar que não têm “nada a ver com a po-
lítica”, quando, de fato, os esportes oferecem à sociedade
algumas das suas representações mais influentes sobre
seus significados e valores. Assim, faria alguma diferen-
ça para o senso de si mesmo da sociedade se os torce-
dores do futebol reivindicassem alguma participação de
propriedade e poderes de decisão nas equipes que eles
apoiam. Ou se as federações esportivas internacionais,
como a FIFA ou o COI, fossem libertadas do controle oli-
gárquico e da corrupção.
Ou, para tomar outra instância aparentemente menor,
vimos que os currículos de História nas escolas têm um
significado político sério, na medida em que eles cons-
troem e impõem uma versão de identidade nacional e
social. Cabe lembrar que a contribuição dos escritos de
Raymond Williams para o vocabulário socialista ofereceu
o reconhecimento de que as práticas e instituições cultu-
rais (por exemplo, a imprensa) são fundamentais na defi-
nição dos limites das possibilidades e são elas mesmas
um elemento crucial no campo de conflito31.
Com referência a essas várias instâncias, buscamos
com o Manifesto argumentar que a política precisa ter
muitas dimensões (procurando, pelo menos, conter o
capitalismo dentro de um espaço limitado, responsável
e democrático), algumas das quais podem não parecer
32
G. Deleuze e F. Guattari, A Thousand Plateaus, Continuum, 1987.
31
R. Williams, The Long Revolution, Chatto e Windus, 1961.

55
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, N 40, 2017: mai./ago.

ARTIGOS

¿CUÁNDO LA GEOGRAFÍA PERDIÓ SU “GRAPHIA”?


UN ENSAYO HISTÓRICO Y CRÍTICO SOBRE LAS HABILIDADES GRÁFICAS PROMOVIDAS EN LA
GEOGRAFÍA ESCOLAR

Carla Lois*
CONICET – Universidad de Buenos Aires**

“En la enseñanza del dibujo, es un lugar común decir que lo fundamental reside en el
proceso específico de mirar. Una línea, una zona de color, no es realmente importante
porque registre lo que uno ha visto sino por lo que le llevará a seguir viendo”. John
Berger, Sobre el dibujo.

Resumen: La geografía es una disciplina que carga con una larga tradición gráfica, que forma parte incluso de su propio nombre (algunas
interpretaciones etimológicas hacen prevalecer el sentido de gráfico o dibujo del sufijo graphia sobre la de descripción textual).
Sin embargo, en los últimos dos siglos, la Geografía se ha ido consolidando como en una disciplina eminentemente literaria y ello ha terminado
impactando sobre la producción y el uso de imágenes en la geografía escolar. Por el contrario, a finales del siglo XIX, estaba ampliamente aceptado
que el acto del dibujo (sobre todo, el copiado y el calcado de mapas) era un ejercicio útil para pensar, interpretar e interiorizar contenidos geográficos.
En este artículo se analiza cómo fueron variando las habilidades gráficas promovidas en la geografía escolar a partir de experiencias, materiales
y actividades desarrolladas en instituciones escolares (considerando que es allí donde y cuando se aprenden las destrezas expresivas y
comunicacionales) entre finales del siglo XIX y mediados del siglo XX.
Palabras clave: Geografía escolar. Mapa. Dibujo. Geometría.

QUANDO A GEOGRAFIA PERDEU SUA GRAFIA? UM ESNSAIO HISTÓRICO E CRÍTICO DAS HABILIDADES GRÁFICAS PROMOVIDAS NA GEOGRAFIA
ESCOLAR.
Resumo: A geografia é uma disciplina que traz consigo uma longa tradição gráfica, que é parte de seu próprio nome (algumas interpretações
etimológicas prevalecem o significado de gráfico ou desenho do sufixo graphia sobre o de descrição textual).
No entanto, nos últimos dois séculos, a Geografia se consolidou como uma disciplina eminentemente literária e isso acabou impactando na produção
e uso de imagens na geografia escolar. Em oposição a isso, no final do século XIX, foi amplamente aceito que o ato de desenhar (especialmente a
cópia e o mapeamento) era um exercício útil para pensar, interpretar e internalizar conteúdos geográficos.
Neste artigo, analisamos como as habilidades gráficas promovidas na geografia escolar foram variadas com base em experiências, materiais e
atividades desenvolvidos nas instituições escolares (considerando que é lá e quando as habilidades expressivas e comunicacionais são aprendidas)
entre o final do século XIX e meados do século XX.
Palavras-chave: Geografia escolar. Mapa. Desenho. Geometria.

WHEN DID GEOGRAPHY LOSE ITS GRAPHIA? A HISTORICAL AND CRITICAL ESSAY ON THE GRAPHIC SKILLS LEARNED AT SCHOOL.
Abstract: Geography is a discipline that carries with it a long graphic tradition, which is even part of its own name (some etymological interpretations
prevail the sense of graphic or drawing attributed to the graphia suffix over textual description).
However, in the last two centuries, Geography has been consolidated as an eminently literary discipline and this has ended up impacting on the
production and use of images in school geography. In contrast, at the end of the nineteenth century, it was widely accepted that the act of drawing
was a useful exercise for thinking, interpreting and internalizing geographical contents.
In this article we analyzed how the graphic skills promoted in school geography varied from experiences, materials and activities developed in school
institutions between the end of the 19th century and the mid - 20th century.
Keywords: School geography. Map. Drawing. Geometry.

________________________________
*Doutora em Geografia. Pesquisadora do CONICET – Universidad de Buenos Aires. E-mail: weltenende1@gmail.com
** Calle Puán 480, 4o piso. Ciudad de Buenos Aires - 1406. Tel. 54 11 44320606

56
¿Cuándo la geografía perdió su “graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades gráficas promovidas en la geografía escolar

Introducción y publicó artículos sobre el tema3. Sin embargo, la


trayectoria de Mackinder se asocia más a la geografía
política, y sus textos sobre la visualidad son bastante
La mayoría de las interpretaciones etimológicas menos conocidos que los de geopolítica, lo que también
del término geografía suelen mencionar que, strictu puede ser interpretado como un síntoma colateral del
senso, el significado original del término remite a la soslayo al que se ha relegado lo visual en la tradición
descripción (gráfica y textual) de la Tierra: geo: Tierra – geográfica.
graphia: descripción y/o diseño y dibujo1. Sin embargo, Sin embargo, todavía hoy en día, persiste la convicción
especialmente durante la segunda mitad del siglo XX, de que existe una íntima asociación que se asume entre
la crisis de identidad disciplinar y las críticas a los geografía y mapas (ya sea de manera implícita o explícita,
modelos descriptivos han llevado a relativizar el peso entre académicos o entre legos). Pero aquí no queremos
de la etimología cuando se intenta explicar de qué reducir lo visual a los mapas. La tradición gráfica y visual
se trata la disciplina geográfica. Y aunque, por cierto, de la geografía a la que nos referimos aquí es mucho
los saberes geográficos y la disciplina geográfica no más amplia, variada y compleja que la simple asociación
pueden ser explicados o definidos sólo a partir de sus entre geografía y cartografía. Específicamente podemos
raíces etimológicas, también es probable que el hecho afirmar y demostrar que hacia finales del siglo XIX y
de renegar por completo de ellas haya sido uno de los principios del siglo XX, la cuestión visual estaba asociada
elementos que contribuyó a esa confusión respecto del a las destrezas gráficas no sólo se utilizaban para la
objeto y de los métodos de la geografía que, con mayor o visualización de información geográfica mediante mapas
menos intensidad, aún persiste2. ¿O, por el contrario, esa y otros dispositivos visuales sino que también implicaba
obliteración es un síntoma de tal confusión? En cualquier el desarrollo de habilidades para el dibujo con el objetivo
caso, son hipótesis que no pueden abordarse sin antes de facilitar el aprendizaje de la geografía en la escuela
reflexionar sobre las prácticas de inscripción (tanto primaria y, en términos más amplios, proporcionar los
textual como gráfica) que dieron forma y materialidad a elementos necesarios para desarrollar el pensamiento
los saberes geográficos. espacial.
En sintonía con otros estudios que recientemente Sin embargo, en los últimos dos siglos, la Geografía
procuraron rescatar el valor de la descripción textual se ha ido consolidando como en una disciplina
en la tradición geográfica desde una perspectiva que eminentemente literaria (Godlewska, 1999: 21-56).
la desestigmatiza a partir de una minuciosa revisión Este sesgo literario también tuvo su impacto sobre las
histórica (Zusman, 2014), en este trabajo se aborda la narrativas acerca de la propia disciplina: la mayor parte
otra acepción de la graphia de la geografía, es decir la de las historias de la geografía están habitualmente
dimensión gráfica y visual, que, por motivos diferentes, centradas en el análisis de la producción textual de los
también ha venido quedando relegada en las prácticas geógrafos, tanto cuando hacen un relato con criterios
geográficas contemporáneas, y en la reflexión sobre la intelectuales o de historia de las ideas como cuando se
historia y las teorías de la geografía. guían por criterios institucionales.
Las cuestiones visuales fueron y siguen siendo una No está claro si este proceso de “literarización” está
parte central en la formulación de teorías geográficas, conectado con la institucionalización de las primeras
no sólo para la visualización de información geográfica cátedras de Geografía en disciplinas humanísticas y
mediante mapas y otros dispositivos visuales sino como sociales en el último tercio del siglo XIX, que se consolidó
estrategia epistemológica. De hecho, existen textos de a la largo del siglo XX4 -es decir, la inscripción de la
autores clásicos, como Halford Mackinder, que se han geografía entre las ciencias humanas y sociales (en lugar
referido en más de una oportunidad a la importancia de las ciencias físicas). También pudo haberse debido a
cuestión visual: como señalan Schwart y Ryan, Mackinder que, en el contexto de una crisis de identidad disciplinar,
definía a la geografía como “una forma especial de a mediados del siglo XX, se fue poniendo cada vez más
visualización” (2003: 3), e incluso dio conferencias el acento sobre cuestiones espaciales y sociales; y, por
1
La entrada “Geografía” del Diccionario AKAL de Geografía comienza diciendo
ejemplo, en lugar de definir a la geografía por rasgos
“Descripción, dibujo de la Tierra, en aparente oposición etimológica con la discusión, derivados de (o asociados a) su etimología se volvió un
es decir, la explicación de la tierra, la geología. No es pues en la etimología sino en
la práctica de la investigación y de la formación del conocimiento geográfico donde lugar común definirla según más o menos los siguientes
se deben buscar los elementos de una definición” (George, 2044: 288-290). En
otras variantes de las definiciones etimológicas, se ha optado por traducir “graphia términos: “a) ciencia que tiene por objeto el espacio de las
como escritura: “GEOGRAFIA La geografía puede ser formalmente definida como
el estudio de la superficie de la Tierra. considerada como el espacio en el que se
desenvuelve la vida de la pobladón humana (Haggett, 1990) o simplemente como el 3
Entre esos textos, quiero especialmente rescatar una conferencia que dictó en
estudio de la Tierra como hogar de la gente (Tuan, 1991). El término viene del griego 1911 y que fue publicada como “The teaching of geography from an imperial point
geo. la Tierra. y gra­phein, escribir” (Haggett, 1987: 238). of view, and the use which could and should be made of visual instruction” en la
2
En El lugar de la geografía, el geógrafo Tim Unwin comienza afirmando “la revista The Geographical Teacher, vol. 6, n.2, summer, pp.79-86 (1911).
geografía es una de las formas más antiguas de ejercicio intelectual y, pese a ello, 4Sobre la institucionalización de la geografía y los modos de contar historias de la
los geógrafos profesionales no responden unánimemente a la pregunta de qué es geografía a partir de ella pueden consultarse algunos de los trabajos más clásicos:
la disciplina ni siquiera a la de qué debería ser” (1992; 19). Claval, 1974; Gómez Mendoza et al. 1994, Capel, 1981; Glick, 1994.

57
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

sociedades, la dimensión espacial de lo social; b) objeto la escuela primaria, el calcado de mapas, recientemente
de esta ciencia, espacio de las sociedades” (Levy, 2003: acusada por algunos pedagogos de ser un método
399). Otra opción para explicar esa “textualización” de la enciclopédico y repetitivo de aprendizaje. Lejos de esta
Geografía puede tener que ver con el desarrollo cada vez concepción, a finales del siglo XIX, estaba ampliamente
más autónomo del campo de la cartografía (no sólo en aceptado que el acto del dibujo (incluyendo el copiado
ámbitos técnicos que se dedicaron a desarrollar métodos y el calcado de mapas) era un ejercicio útil para pensar,
de levamiento y producción de cartografía topográfica interpretar e interiorizar contenidos9.
sino también en la creciente apatía de los geógrafos A partir de esta premisa, en este artículo me focalizaré
por diseñar lenguajes visuales que, en parte, derivó en en analizar las habilidades gráficas promovidas en la
la especialización de muchos diseñadores gráficos en geografía escolar a partir de experiencias, materiales
la producción de cartas temáticas). Con esto, la imagen y actividades desarrolladas en instituciones escolares
metonímica de la geografía (el mapa) fue convirtiéndose (considerando que es allí donde y cuando se aprenden las
más en un soporte para la espacialización de datos destrezas expresivas y comunicacionales) para analizar
que en un dispositivo que produce regularidades5 de sus variaciones históricas a entre finales del siglo XIX y
visualización6 y pensamiento espacial vinculado a la finales del siglo XX. La selección de casos de diversos
formación y la experticia de los geógrafos profesionales. países (Estados Unidos, Francia, Argentina, Brasil y
Sin duda, una combinación variable de estos factores Guatemala) mostraría que el problema que es objeto de
debe haber tenido cierta influencia para que hoy en día, estudio en este artículo es una tendencia generalizada,
la tendencia general de los geógrafos sobre el uso de las independientemente de las coyunturas de los sistemas
imágenes (en el caso de aquellos que efectivamente las educativos.
usan) consista más en analizarlas que en producirlas, es En primer lugar, contextualizaré el lugar y la espacialidad
decir, en ponerle palabras o verbalizarlas. de las imágenes en las instancias de instrucción formal, y
Si bien este diagnóstico es particularmente válido para su impacto sobre los modos de observación. En segundo
la comunidad de geógrafos profesionales7, puede hacerse lugar, procuraré analizar qué tipo de dibujo se promovía
extensivo al resto de la sociedad asumiendo que durante en contextos de instrucción escolar moderna y con qué
la formación escolar primaria y secundaria también finalidades pedagógicas. En tercer lugar, analizaré las
la ciudadanía alfabetizada accedió a conocimientos funciones didácticas asignadas a diversas prácticas de
geográficos que, con mayor o menor sincronía, están dibujo de mapas e imágenes geográficas en función de
vinculados con la producción de conocimiento geográfico las instrucciones que se daban para producirlas (para
académico8. De hecho, un síntoma de esto es la ello examinaré libros didácticos y pedagógicos, dirigidos
erradicación de una de las prácticas más tradicionales de tanto a alumnos como a docentes en los que se explica
para qué y por qué es necesario dibujar mapas en el
5
“El dispositivo está destinado a producir regularidades, constituyendo un ensamble aprendizaje de la geografía). Finalmente, revisaré algunos
dinámico, efectuando operaciones prácticas ey dotado de una función estratégica”
(Brossat, 2008: 203). Los dispositivos tendrían una doble agencia: la de las máquinas ejercicios de dibujos cartográficos en relación con la
(en el sentido panóptico, la experticia médica) y el de los flujos que atraviesan
los individuos y los gruos, afectando directamente los modos de subjetivación
aplicación de principios geométricos y el desarrollo del
(aquellos que conciernen a la política, al sexo, a la salud, etc). El dispositivo se pone pensamiento espacial.
en acción con fines útiles. Lo propio del dispositivo es responder a una demanda
ligada a una situación nueva. Lo que caracteriza a un dispotsiivo es su plasticidad
para responder a demandas cambiantes
6
Específicamente aquí se recupera la cuestión visual asociada a la categoría
foucaultiana de dispositivo que Deleuze delineaba en los siguientes términos: “Las
dos primeras dimensiones de un dispositivo, o las que Foucault distingue en primer
La contemplación de las imágenes en las
término, son curvas de visibilidad y curvas de enunciación. Los dispositivos son (…) paredes del aula: entre la decoración y la
máquinas para hacer ver y para hacer hablar (…). Cada dispositivo tiene su régimen
de luz, la manera en que ésta cae, se esfuma, se difunde al distribuir lo visible y lo función didáctica
invisible, al hacer nacer o desaparecer al objeto que no existe sin ella” (Deleuze,
1999: 16).
7
Uno de los síntomas visibles de este diagnóstico son los estudios realizados sobre Con el rótulo “lección de geografía” (o “geography
las publicaciones geográficas que han detectado la escasez de mapas en ellos.
Ron Martin contabilizó sólo 50 páginas con mapas dentro de las más de 2000 que lesson” o “cours de géographie”) se etiqueta una inmensa y
había publicado Transactions of the British Geographers en 1999 (Martin, 2000:
4). Perkins (2004) comenta que en ninguno de los reportes de Progress in Human
ecléctica cantidad de imágenes que varían desde la pintura
Geograpphy publicado en las dos décadas del siglo XX no habían incluido ningún del Rey Luis XVI mostrando con atención un globo terráqueo
mapa aunque el reporte estuviera vinculado a cuestiones cartográficas.
8
Se han estudiado casos de desfasaje de décadas entre los temas y problemas a su hijo Louis-Charles en Temple hasta actuales clases de
abordados por la geografía académica y la curricula escolar. En el caso de la
Argentina, históricamente las “características de la geografía profesional deben
geografía donde los alumnos dirigen su atención hacia algún
tenerse en cuenta para comprender la trasposición didácticas de las innovaciones mapa desplegado en una gigante pantalla digital sobre el
disciplinares. Si bien los discursos escolares nunca son transposiciones literales
de los saberes disciplinares, ya que el campo de la educación es un lugar de que el profesor está dando alguna explicación.
decantación y circulación de visiones que provienen de varias fuentes, en el caso
de la Geografía este aspecto se potencia por la debilidad del campo disciplinar
local como generador de contenidos. El espacio curricular de la Geografía recibió 9
Específicamente, la relación entre educación geográfica y cartografía escolar
la impronta que difícilmente pueden ser referidos en forma directa a la producción viene siendo objeto de múltiples reflexiones críticas que pretenden revisar el papel
local de la disciplina, y que encuentran sus fuentes en el ensayo histórico y que juegan los mapas en la enseñanza de geografía Jörn Seeman, “O ensino de
sociológico, en el saber estadístico y geológico, en elaboraciones de los círculos cartografía: olahres cartográficos, Cartofactos e Cultura cartográficas. En Flaviana
diplomáticos y militares” (Romero, 2004: 81). Para una visión contemporánea, véase Gasparoti Nunes, Ensino de Geografia. Novos Olhares e Práticas. : Dourados MS,
Fernández Caso, 2007: 17-37. UFGD, 2011

58
¿Cuándo la geografía perdió su “graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades gráficas promovidas en la geografía escolar

Es decir: más allá de los momentos históricos, de actualidad, las imágenes de las paredes del aula son, a
las tecnologías y de los grupos sociales, los mapas veces provistas por el docente; otras, elaboradas por
fueron utilizados como “teatros del mundo”10, dignos de alumnos; o incluso “heredadas” de quienes usaron ese
contemplación y síntesis de nuestro mundo. aula el año anterior. Abarcan un amplio espectro de
La tradición de las imágenes en las paredes del temas: “Hojas de árboles secas en otoño, flores de papel
aula con objetivos didácticos tiene una larga data. Las en primavera, veinticinco dibujos exactamente iguales,
primeras imágenes explícitamente diseñadas para ser veinticinco dibujos todos distintos entre sí, instructivos
exhibidas en el aula aparecieron en 1822, producidas para combatir la pediculosis, un menú del comedor,
en pequeño formato (20 x 30 cm) y presentando carteles con reglas ortográficas, relojes, calendarios,
escenas u objetos familiares destinados a la enseñanza láminas de revistas, son sólo algunos de los elementos
primaria. Pero la ‘era de oro’ de este tipo de dispositivos que podemos encontrar en las paredes de pasillos y aulas
didácticos se dio entre 1870 y 1920, cuando las imágenes de una escuela primaria. Esto resulta tan habitual, es tan
comenzaron a producirse en diferentes formatos y en «natural» que estén allí, que por lo general no constituyen
grandes cantidades. En esta etapa, su uso se expandió un problema o un tema de reflexión; tanto es así, que son
especialmente en los países germanos y abarcó todos relativamente escasas las investigaciones empíricas
los niveles educativos. Sólo en geografía, aparecieron que tratan sistemáticamente este aspecto particular del
más de treinta series de imágenes entre 1880 y 1915 espacio escolar” (Augustovsky, 2003: 39).
(Bucchi, 2006: 90-91). Los mapas fueron y son una de las imágenes
Aparentemente, incluso antes de que se diseñaran omnipresentes en las paredes de las aulas, y por tanto no
materiales específicos para ser colgados en las paredes, sorprende que se haya discutido y reflexionado largamente
el libro Elementarwerk (Libro de texto para la enseñanza sobre cómo utilizarlos. En una revista para docentes
elemental) publicado por el pedagogo alemán Johann publicada por el Ministerio Nacional de Educación de
Bernard Basedow (1732-1790) acompañó su atlas con la Argentina, El Monitor, el artículo de Antonio Atienza
más de 100 grabados (copper engravings) encargados y Medrano incluye un capítulo llamado “Mapas murales
al artista Daniel Nieolas Chodowwiecki (1762-1801) escritos” en el que dice:
que incluían tanto temas de la vida cotidiana (la casa, el
“Siempre es útil el uso de los mapas murales cualquiera
campo, etc.) como otros aspectos relacionados con las
que sea el estado de los alumnos; pero se siente más
artes, las artesanías, los paisajes geográficos y la historia la necesidad en la enseñanza primaria, donde los niños
natural. El autor sugería que algunas de esas imágenes carecen a menudo de atlas.
(…) Los tres mapas esenciales en una escuela primera
fueran recortadas, pegadas a algún soporte duro y son tres: el de la patria, el del continente y el mapa-
cubiertas por un vidrio de manera tal que fuera posible mundi o planisferio.” (Atienza y Medrano, 1890: 1382).
colgarlas en la pared del aula.
Desde entonces y hasta nuestros días, las paredes del Claro que eso tenía sus riesgos: a pesar de (o
aula moderna son uno de los espacios tradicionalmente justamente debido a) su omnipresencia y de compartir
usados para desplegar imágenes de diverso tipo. En la el espacio y el tiempo cotidianos, esas imágenes,
aparentemente pasivas y meramente decorativas del aula,
10
En la cartografía, la noción de teatro quedó definitivamente instalada a partir a veces llegan a resultar casi invisibles. Aunque el hecho
del éxito editoral del Theatrum Orbis Terrarum del cartógrafo flamenco Abraham
Ortelius (1527-1598) (considerado el primer atlas moderno, comenzó a publicarse
de que los alumnos estén permanentemente expuestos
en 1570). En este caso, el teatro ponía la geografía ante los ojos del lector; y para a imágenes aparentemente pasivas, que son miradas sin
eso organizaba una puesta en escena que hacía visible un inventario de elementos
geográficos. Esta propuesta –que supone, a su vez, una manera de mirar- ver cotidianamente, tiene, sin duda, efectos subliminales
escenificaba el teatro mismo desde la portada: invitaba a los lectores a traspasar
un pórtico (el frontispicio) que no sólo evocaba los teatros reales sino que también, en el aprendizaje, algunos pedagogos hablaban de una
como ha señalado Denis Cosgrove, realzaba la apreciación de la arquitectura y los
diseños clásicos (Cosgrove, 2003: 858).
suerte de efecto rebote, en el que los mapas se vuelven
Ya en el Renacimiento, la noción de teatro aparecía como un topos de la época, “tal completamente invisibles si se los transforma en un
vez por imitación del famoso gran ‘teatro de la memoria’ de Giuglio Camillo, devino
un símbolo del enciclopedismo hermético y platonizante en toda Europa (...). Devino decorado inerte. Por eso se sugiere que
el título ideal para cuanto libro, museo o biblioteca en el que el consenso científico
es llamado a observar los documentos y las maravillas de la naturaleza (repertorio
de emblemas, herbolarios, narrativas e inventarios de imágenes, de retratos, de “aunque algunos maestros creen preferible tener
monedas, etc.)” (Magnani, 1998: 46). En su libro sobre Abraham Ortelius, Giorgio siempre los mapas a la vista es preferible retirarlos a
Magnani explica que “el tema del espectáculo del mundo observado desde el cielo
había sido un topos de la filosofía estoica: los dioses se complacían observando
menudo, porque así se estropean menos y se evita el
desde lo alto de su estrado la vida de los hombres y la parte que cada uno de ellos peligro de que los alumnos dejen de prestar atención
desempeñaba en la ‘comedia humana’” (Magnani, 1998: 38). Para el momento en a una cosa que están viendo constantemente” (los
que se publicaba la primera edición de Ortelius, ya se habían editado (y se seguían destacados son propios; Atienza y Medrano, 1890:
reeditando) las siguientes obras que también llevaron títulos que recuperaban
la idea de teatro: Le théâtre du monde (Pierre Boistuau, 1558), Teatro morale
1382).
de’moderni ingegni (Cherubino Gherarducci, 1586), Il teatro de’ vari cervelli mondani
(Tomasso Garzoni, 1591), Teatro del cielo e Della terra (Giusseppe Rosaccio, 1594),
Teatro degli inventori (Vicencio Bruno, 1603), Theatrum Galeni (1568), Theatrum En el mismo artículo se incluyen sugerencias respecto
diabolorum (1569), Theatrum humanae vitae (Theodor Zwinger, 1565), Theatrum
instromentorum et machinarum (Jacques Besson, 1578), Gynaeceum sive a los modos de trabajo con esos mapas murales: “En los
theatrum mulierum (José Amman, 1586), Théâtre de la nature universelle (Jean mapas murales escritos, la atención debe ir más bien
Bodin, ca. 1590).

59
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

dirigidos hacia las cosas, o sea el trazado geográfico, que porque funcionaban como dispositivos que articulaban
hacia las palabras o nombres escritos. Conviene que los el pensamiento. Más allá de su formación en filosofía e
nombres no sean muy visibles, para que no oscurezcan historia y la influencia que ejerció el idealismo alemán en
lo escencial que es el trazado, y cuando ocurra es de su pensamiento, este tipo de postulados para haber sido
precisión que el alumno se ejercite a la vez en un mapa más bien el resultado de los intercambios con pedagogos,
mudo del mismo territorio (Atienza y Medrano, 1890: en especial, con su amigo Johann Pestalozzi.
1382).
Refiriéndose a las prácticas de enseñanza/aprendizaje
de la geografía y al rol que le cabe a la cartografía en Los objetivos pedagógicos: la importancia del
ellas, Christian Jacob (1992) discute una multiplicidad de dibujo para el desarrollo del pensamiento visual
estrategias destinadas a “aprender el mapa y afirma: “El sobre el espacio
paradigma del mapa colgado de la pared de las escuelas
primarias es propio de una sociedad que maneja las Educadores y pedagogos reformistas activos finales
técnicas de difusión masiva de imágenes. El mapa mural del siglo XVIII, tales como Johann Heinrich Pestalozzi
entra en un juego de resonancias visuales complejas con (1746-1827) en Suiza, propusieron que los alumnos
las cartas impresas en los libros, los mapas utilizados copiaran sus propios mapas a partir de mapas impresos
en la publicidad, en los documentos turísticos, etc. Miles provistos por los maestros porque entendían que esa era
de mapas que se prestan a las miradas repetitivas y la mejor manera de aprender geografía. Esta práctica
prolongadas” (Jacob, 1992: 436-437). Sin haber llegado rápidamente llegó a ser común en Europa, y también en
a un acuerdo unánime sobre sus modos de uso, como los Estados Unidos, donde se popularizó con las obras de
podemos comprobar si visitamos aulas de clase, los Emma Willard (1787-1870) y William Wooldridge (1794-
mapas siguen y seguirán adornando las paredes –aunque 1845)11.
se reflexione poco sistemáticamente sobre ello. Es cierto que, sobre todo a principios del siglo XVIII,
En muchos países latinoamericanos que estaban una de las razones para que los alumnos trazaran sus
atravesando procesos de formación y consolidación propios mapas a partir de modelos provistos por el
estatal, el mapa mural cumplía, además, la función de maestro era que los libros de texto eran caros y no todos
socializar un “mapa logotipo” (Anderson, 1991) asociado podían comprarlos. Pero también es cierto que aunque
a la formación de la identidad nacional. En Guatemala, los costos de producción y los precios de los libros
por ejemplo, la familia Gavarrete, que ya había producido disminuyeron abruptamente durante la segunda mitad del
un libro de geografía de pequeño formato, produjo el siglo XIX, el dibujo de mapas en las clases de geografía
primer mapa mural para las aulas escolares en 1878, persistió.
acompañado por estadísticas y otras informaciones que Desde finales del siglo XVIII, muchas escuelas
debían ser aprendidas a lo largo del curso (Dym, 2015: solicitaban que sus estudiantes aprendieran a trazar
247). o crear mapas para aprender habilidades cognitivas,
En la misma época, la contemplación y la observación estéticas y sociales que podían ser útiles más
minuciosa de mapas era también un modo de pensar adelante en distintos órdenes de la vida, más allá de
cuestiones o problemas geográficos en ámbitos los conocimientos geográficos que evidentemente
académicos. El geográfo prusiano Carl Ritter (1779- estaban involucrdos en el dibujo de todo mapa. Esto
1859) hizo algunas de sus célebres afirmaciones sobre la fue particularmente importante en la educación de las
geografía mundial observando distintos tipos de mapas. mujeres. Aunque hay algunos buenos ejemplos de mapas
Por ejemplo, afirmó que “a pesar del desorden aparente en dibujados por los niños, en general a los varones se les
que se encuentra inmerso el Globo para un ojo inexperto, es enseñaba topografía y navegación en vez de dibujar o
en las diferencias entre superficies y formas donde reside colorear mapas. En el caso de las niñas, el objetivo no era
el secreto del sistema interno y superior de organización prepararlas para ser cartógrafas o geógrafas: se suponía
planetaria. (…) Es precisamente en la repartición que la elaboración de mapas servía para ayudarles a
diferencial y en la amplitud irregular de las extensiones de obtener, retener y demostrar conocimientos generales,
tierra y de agua, así como en las temperaturas variables convertirse en buenas ciudadanas y mostrar sus
que las acompañan necesariamente y en los movimientos habilidades artísticas. En Estados Unidos, por otra parte,
aparentemente desordenados de los vientos, donde el dibujo de mapas encajaba muy bien con lo que eran los
reside la razón fundamental de su ubicuidad y de su objetivos centrales de la educación femenina después de
interacción general” (citado en Gómez Mendoza, 2004: la revolución de independencia de los Estados Unidos.
177). El terreno de observación y de reflexión que llevó a En aquel entonces, la geografía era vista como una vía
Ritter a sostener estas afirmaciones eran los mapas: los 11
Emma Wiillard y William Channing Woodbridge publicaron juntos The Woodbridge
mapas servían para pensar, para establecer relaciones, and Willard Geographies and Atlases (1823), y A System of Universal Geography on
the Principles of Comparison and Classification.

60
¿Cuándo la geografía perdió su “graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades gráficas promovidas en la geografía escolar

apropiada para que las niñas se volvieran culturalmente pasaron a ser más activas e incluso, en algunos casos,
alfabetizadas, para prepararlas para una vida de utilidad fundamentales (en gran parte debido a que súbitamente
e intercambio social. Además, el dibujo de mapas los hombres se vieron llamado al frente de guerra o a
contribuía a que las niñas entrenaran el dominio del arte cubrir diversos puestos estratégicos, algunos campos
de la caligrafía (por eso las letras eran muy cuidadosas y científicos y técnicos suplieron esa falta de personal
ordenadas, con múltiples fuentes, tamaños y pesos para formando y entrenando mujeres para que ocuparan los
diversos tipos de características como estados, ciudades puestos vacantes12).
y ríos, al igual que los mapas hechos profesionalmente La exposición “Women in Cartography: Five Centuries
en los que se basaban como modelos). of Accomplishments”13 hace un recorrido interesante
Desde entonces, hubo una notable transición en el papel sobre los diferentes modos en que las mujeres
desempeñado por las mujeres en su papel de creadoras, participaron tanto en la cartografía realizada en ámbitos
diseñadoras y educadoras con materiales cartográficos: privados y escolares como en ámbitos institucionales
mientras que al principio eran participaciones secundarias y comerciales, articulado en torno a una invaluable
y marginales, restringidas al círculo de niñas de familias colección de mapas. Entre los ejemplos allí exhibidos,
acomodadas, desde de la Segunda Guerra Mundial se encuentra un atlas francés manuscrito de principios
del siglo XIX delicadamente realizado por una colegiala,
Mlle. Elise Massieu, y dedicado a su tía, Mlle. Fromaget.
Estos trabajos manuscritos no eran obras acabadas
sino que servían para continuar y actualizar los estudios:
estos mapas estaban “abiertos” para hacer correcciones
y agregados (como ejemplo de ello, en la exposición
mencionada se mostraron dos facsímiles de mapas
de la Península Ibérica, el primero en marzo de 1806, y
un segundo de diciembre de 1808 que tiene algunas
variaciones).

Figura 1 - Elise Massieu “Carte generale de l’Amerique septentionale par Mlle. Elise Massieu en Novembre, an 1805”. En Elise
Massieu, “Etrennes dediées a Mlle. C. Fromaget” (1806), fol. 8r. Manuscript, 26cm x 38cm. Osher Collection 46798

12
En diciembre de 1941, el presidente estadounidense Franklin Roosevelt creó
entre 1.000 y 2.000 empleos en oficinas estatales dedicados a actualizar y producir
mapas. En 1942, ya habían entrado en funcionamiento 57 instituciones en 30
estados que enseñaban curso de cartografía topográfica, uso de instrumentos,
procedimientos para el relevamiento del terreno, dibujo, fotogrametría (aunque
las mujeres solían tomar estos cursos en departamentos de geografía y no en
instituciones de ingeniería civil, como los hombres). Esas mujeres eran empleadas
con buenos salarios, aunque se sabe poco de sus trabajos puesto que la mayoría
de su producción fueron mapas secretos que nunca salieron a la luz. Como era
de prever, al finalizar la guerra, la participación de las mujeres en el campo de los
cartógrafos decreció notablemente Véase Van Den Hoonard (2013), especialmente
el capítulo “From the Early Twentieth Century to World War II y las páginas 89-92.
Tuvo lugar entre el 31 de octubre de 2015 y marzo de 2016 en la Central Library,
13

Norman B. Leventhal Map Center, de la Boston Public Library http://www.bpl.org/


exhibitions/past-exhibitions/women-in-cartography

61
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

A principios del siglo XIX, muchos estudiantes en los en papel porque eso estimula el pensamiento espacial,
Estados Unidos debían dibujar mapas elaborados, ya sea la formación de una visión de mundo en que pueden
copiando o trazando mapas ya existentes, como parte situar objetos, reconocer lugares y establecer relaciones
fundamental de su educación. Según Susan Schulten, espaciales según sus propias necesidades.
esta práctica fue muy popular especialmente entre 1800 y
En la misma línea, la neurocientífica Veronique Bohbot
1835. Algunos libros de texto tenían un capítulo dedicado
(McGill University and Douglas Institute) remarcó que
a ello, como el capítulo “Construction of Maps” del libro
esta “pereza” que lleva a la pérdida de las capacidades
Elements of Geography, de Jospeh Worcester de 189114
de los sujetos para producir sus propios mapas mentales
(Schulten, 2007: 251). Pero a finales de siglo todavía se
tiene consecuencias que van más allá de la habilidad de
aspiraba a que el alumno pudiera expresar gráficamente
la orientación en el espacio: las personas que se vuelven
sobre un mapa “mudo” (denominados, con muy buen
dependientes de los mapas digitales pierdan la habilidad
tino, “semi-mudos” por Raja Gabaglia en su Geographia
de improvisar en sus desplazamientos si el dispositivo
iIustrada) aquello que había aprendido de geografía al
falla (o si momentáneamente no dispone de él), pierden
mismo tiempo que aprendía el lenguaje cartográfico. En
la capacidad de tomar decisiones propias y de establecer
el artículo ya mencionado “Mapas murales escritos” de
vínculos con el entorno físico, y restringen el desarrollo
El Monitor, se afirmaba que:
del pensamiento espacial que no sólo tiene que ver con
la orientación en el espacio geográfico sino que también
“Todos los detalles en el mapa mural deben ser muy
marcados, ayudando el colorido a marcar el relieve y afecta la posibilidad de producir otros tipos de mapas
la división de los Estados. El relieve se señala con el mentales que usamos a diario: desde el mesero que
sombreado ordinario, o por medio de las curvas de nivel;
se forma su mapa mental de la mesa para entregar los
por eso es útil además que en varios tipos de dibujo o
de colorear se representen las diferentes divisiones platos solicitados por los comensales hasta el docente
hidrográfica, hipsométrica, administrativa, etc.” (Atienza que identifica a sus alumnos según la posición en que se
y Medrano, 1890: 1382)
sientan en la clase.

En la actualidad se afirma que “la Geografía es más que Resulta algo paradójico que en una cultura que se
duplicar mapas” y que “salidas de campo y elaboración de autoconcibe como eminentemente visual, saturada
mapas mentales así como el uso de las TIC reemplazan de imágenes en sus diversos formatos, la formación
el papel calcante”15. La licenciada en filosofía Paulina geográfica no intente recuperar y potenciar el desarrollo de
Calderón, dedicada a temas de educación, abogó habilidades gráficas como lenguaje complementario a la
explícitamente por “el uso de las herramientas que se discursividad que, hoy por hoy, se ha vuelto dominante en
encuentran en un celular” argumentando que “se puede las prácticas de producción de conocimiento geográfico,
visualizar el mundo desde uno de estos dispositivos lo y en las prácticas de enseñanza y aprendizaje.
que transforma en arcaico e hipócrita poner un alumno a
calcar mapas”16.
Con críticas explícitas o implícitas, con argumentos De las instrucciones al uso intuitivo
o sin ellos, lo cierto es que el calcado de mapas ha
sido desterrado del aula en pos de generar una actitud A fines del siglo XIX circulaban libros con instrucciones
supuestamente más proactiva que calcar o copiar. para que los maestros pudieran hacer esquemas, gráficos
Sin embargo, estudios recientes demuestran que la y bocetos en la pizarra al tiempo que explicaban los tópicos
masificación del uso de mapas dispositivos digitales de la clase. En el libro de Eliza Morton (1895) titulado
está restringiendo severamente nuestra capacidad de Chalk Illustrations for Geography Classes. A Manual for
orientación, principalmente porque los usuarios se limitan Teachers to Accomapny any Series of Geographies y
a seguir las indicaciones propuestas por los dispositivos publicado en 1895, se advierte:
y prestan cada vez menos atención al entorno. Los
“Este libro no debe usarse con demasiada libertad,
neurocientíficos afirman que esa “desconexión” entre el ni permitirse ocupar el lugar de una sólida y regular
sujeto que se desplaza y el espacio en el que se mueve instrucción con libros de texto, pero deben ser
implementados en el trabajo cotidiano” (Morton, 1895:
reduce progresivamente las habilidades para figurarse Preface s/n).
mapas mentales propios. Por eso los expertos en
neurociencias insisten en que, si bien en la era digital, En otras palabras: estaba claramente estipulado el
muchas habilidades y destrezas se volvieron obsoletas, papel pedagógico que tenía que cumplir el dibujo: no
los niños deben seguir aprendiendo a manejar mapas debía reemplazar sino, más bien, debía complementar
otros materiales de estudio tradicionales pero, al mismo
14
Joseph Emerson Worcester, Elements of Geography, Ancient and Modern…
(Boston, 1891). tiempo, la ejercitación de las destrezas gráficas “deberían
15
http://www.mineducacion.gov.co/observatorio/1722/article-253396.html ser ayudas y no hobbies” (Morton, 1895: 95), es decir,
http://www.eldiariodelarepublica.com/provincia/El-cambio-una-revolucion-que-
16

puede-nacer-desde-el-aula-20160717-0012.html desempeñar una función pedagógica activa y específica.

62
¿Cuándo la geografía perdió su “graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades gráficas promovidas en la geografía escolar

Los ejercicios prácticos estrictamente orientados Los dibujos eran acompañados con alguna información
al dibujo eran intercalados con consejos prácticos y geográfica sobre el lugar u objeto retratado. En este caso:
pedagógicos que apuntaban a dejar claro que el dibujo no
“Chimborazo es una montaña bien conocida de Ecuador.
era un fin en sí mismo sino una estrategia didáctica. Los
La cima de esta inmensa montaña está cubierta de
docentes no debían perder de vista ese objetivo primordial nieve perpetua. Durante mucho tiempo se creyó que era
y para asegurarse de la efectividad del método se buscaba la montaña más alta de los Andes, pero ahora se sabe
que es el sexto pico más alto (Morton, 1895: 110-111).
que aquellos alumnos con habilidades más toscas no se
vieran afectados ni en el proceso de aprendizaje ni en
En Guatemala, el pedagogo José Luis Arévalo
su autoestima. Por lo tanto, se multiplican los consejos
recomendaba que los maestros dibujen los mapas en la
que sugieren modos específicos de compartamiento del
pizarra durante la lección para obtener el máximo y más
docente asociados al uso del dibujo. Algunos de esas
sólido “impacto educativo”. Exhortó a los maestros a que
sugerencias eran:
se alejen del aprendizaje exhaustivo y el énfasis excesivo
“Esboce la roca y luego las olas, no trate de hacer las en los detalles y que alienten a los estudiantes para que
líneas exactamente igual que el modelo de este tipo, entiendan e interpreten lo que ven. Por último, Arévalo
sólo esfuércese por acercarse a la forma general”
sugería que si el material estuviera disponible, el niño
(Morton, 1895: 95).
“No remiende su boceto ni lo corrija o borre debía hacer su propio mapa para cada una, guardándolo
constantemente; si hace líneas algo desfiguradas, no en su propio atlas, ya que la experiencia manual e
se disculpe por ello; los niños pierden la confianza en
quien no tiene confianza en sí mismo, haga lo mejor que intelectual más gratificante era “conocer el mapa general
pueda y mejorará” (Morton, 1895: 103). de Guatemala” (Arévalo, 1936: 21, en Dym, 2015: 249).
Suponiendo docentes entrenados en el dibujo de las
Y, más generalmente, Eliza Morton propone al maestro formas geográficas, los estudiantes eran motivados para
cómo dibujar y trabajar en el aula con diagramas que bocetar mapas y así establecer diversas relaciones entre
muestran alturas comparativas: temas ya estudiados (vientos, temperatura, vegetación,
entre otros).
“Una regla ancha se puede colocar en el margen
izquierdo de la pizarra y, teniendo en cuenta esa escala Otros textos escolares se dedicaron exclusivamente a
[en kilómetros], se dibujan con tiza líneas que indiquen estimular a los alumnos para bocetar sus propios mapas.
las alturas [de las montañas] se marcan con el crayón
Uno de los más célebres entre ellos fue A Sketch-map
o tiza. El diagrama se puede apuntar hacia la parte
superior, si se prefiere [esto apuntaba a que resultara geography : a text-book of world and regional geography
“más natural” para los alumnos representar la altura for the middle and upper school (editado por primera
de las montañas en sentido vertical tal como se piensa
visualmente en las montañas en tanto elevaciones por Methuen en Londres en 1921)17, de Eva Germaine
del terreno]. Anime a los niños a agregar otros picos Rimington Taylor (1879-1966), que tuvo una edición
al diagrama y que usen su propio juicio en cuanto a la
posterior, reimpresa con cambios menores en 1966.18
altura para hacer lo mismo. Ejercicios de este tipo deben
ser frecuentes. Todo lo que atrae al ojo impresiona a la El libro comienza con una nota acerca de “este libro y
mente con más fuerza que la que cae sobre el oído”
(Morton, 1895: 100).
su uso”, donde dice que “un mapa [didáctico] no es una
mera transcripción de un atlas. En un atlas, hechos tales
El libro de Morton no pretende ser un tratado sobre el como topografía, clima, vegetación y otros son mapeados
arte del dibujo, sino simplemente un manual sugerente separadamente. Estos mapas-boceto muestran
destinado exclusivamente a los profesores. Buscaba diferentes combinaciones de tales hechos, de manera
ayudar al maestro en la elaboración de “bocetos a mano tal que cuando son observados por el estudiando, más
de los contornos de muchas escenas y objetos de interés” que meros hechos, son factores que determinan ciertos
(Morton, preface) resultados geográficos” (1921: v).
Las instrucciones para dibujar eran sencillas, cortas y La idea de que el dibujo de mapas apunta a que el
venían acompañadas del gráfico en cuestión para que el alumno establezca relaciones, conexiones y explicaciones
maestro pudiera visualizar un modelo de lo que tenía que se ve reforzada en la nota sobre “uso del atlas” que
aprender a dibujar: aparece en las ediciones de 1921 y 1966: “este libro de
texto, como todos los demás, debe utilizarse junto con un
“Dibuje la línea de base, luego el contorno del buen atlas (no uno necesariamente caro), que muestre el
Chimborazo y el de la elevación cercana, resaltándolo
tal como se representa en el bosquejo. El nivel más
alto de las montañas debe ser marcado con un punto 17
viii, 147 pp. : maps ; 22 cm. Contents: Part I. Regional geography. The British Isles;
presionando la tiza con bastante fuerza. Para dibujar Europe; Asia; Africa; North America; South America; Australia and New Zealand
los lados de las montañas, aplique la tiza con una ligera -- Part II. World geography. General maps -- Part III. Memory and revision aids.
presión” (Morton, 1895: 110). Shorthand sketch maps; index of subjects; index of place names. Part of the Roger
S. Baskes Collection en la Newberry Library. Call No.: Baskes G127 .T39 1921 (NLO)
18
By E.G.R. Taylor and E.M.J. Campbell. viii, 163 pp. : ill., maps ; 21 cm. El libro fue
reimpreso trece veces antes de ser completamente revisado en 1950 con la ayuda
de Eila Campbell. En ese entonces, todos los mapas fueron redibujada en un estio
sencillo. La edición de 1966 apareció luego de otra revisión.

63
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

relieve de la tierra, así como las divisiones políticas. Las memoria de pruebas. Quien conoce su geografía bien
características físicas generales de cada país, sus límites puede ver a la vez lo que significan los símbolos y las
y así sucesivamente, deben ser aprendidas directamente siglas. Cada mapa puede ser dibujado en la pizarra, y los
del atlas antes de que el conjunto de croquis-mapas miembros de la clase pueden ser invitados o desafiados
relacionados con ese país es estudiado” (1921: vii; and descubrir qué ciudades o región representa. De los mapas
1966: vii). de ‘forma’ o contornos, los alumnos pueden dibujar
En la sección final, A Sketch-map geography : a text- fácilmente un mapa boceto. Sin embargo, los alumnos
book of world and regional geography for the middle and deben ser siempre estimulados a dibujar el mapa en
upper school, titulada “Ayuda-memoria y revisión“ incluye su totalidad para poder examinar y relacionar todos los
consejos taquigráficos para el dibujo mapas, un índice elementos que allí se encuentran, así como deberán
de topónimos y un índice de temas con algunosconsejos encontrar formas de ‘abreviatura’ para anotar todo aquello
pedagógicos: “el ‘atajo’ sketch-mapas en las dos páginas que consideren pertinente retener a modo de guía para
siguientes pueden usarse como ayuda de memoria o estudiar los contenidos geográficos del libro” (1921: 135).

Figura 2 - A Sketch-map geography : a text-book of world and regional geography for the middle and upper school
(London: Methuen, [1921]), de Eva Germaine Rimington Taylor.

A diferencia de los mapas de las niñas que dibujaban estudiados y reproducirlos en el cuaderno de cartografía
mapas en el siglo XIX, estos no apuntaban a lo estético (algo que, por cierto, se sigue vendiendo hoy en día,
sino a lo pedagógico. De hecho, como vimos, los maestros por ejemplo, en Brasil), indicar accidentes geográficos
eran instruídos para enseñar y estimular los alumnos a (contorno de territorios, ríos, montañas, localización de
producir gráficos de diverso tipo. ciudades, etc.) y nombrar o etiquetar solo algunos de
Existieron “cuadernos de cartografía” diseñados para ellos elegidos por el profesor a fin de evitar “confusiones
que el alumno desarrolle habilidades de pensamiento gráficas” (Boligian y Doin de Almeida, 2011: 87).
espacial (“representación de las cosas en sus más variadas En Guatemala, los “cuadernos de geografía”
formas, sus características y sus posiciones espaciales destinados a que los alumnos dibujen sus propios
relativas”19) a partir de ejercicios de reproducción de mapas tuvo un derrotero particular. Julio Piedra Santa
mapas tales como, trazar croquis de mapas de los países Arandi fundó la editorial Editorial Escolar Piedra Santa
con su esposa Oralia Díaz en 1947. Él creó folletos
Eugenio de Barros Raja Garabaglia, A Terra Ilustrada – Geografia Universal:
19 ilustrados y mapas de una sola hoja que Oralia vendió
Physica, Etnographica, Política, Economica das cinco partes do Mundo. Citado en
Bolgian y Doin de Almeida, 2011: 87.
a sus compañeros maestros en el Instituto Normal para

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¿Cuándo la geografía perdió su “graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades gráficas promovidas en la geografía escolar

Señoritas Centro América (INCA). Los “mapitas” eran La Geografía Elemental de Guatemala de Arévalo
mapas en blanco de un solo color, destinados a ser (1936) transformó los libros de textos guatemaltecos de
llenados por estudiantes. Los mapas individuales, que se geografía (que apenas tenían un mapa o dos) en libros de
vendían al módico precio de un centavo cada uno; aunque mapas, de tapa dura y gran formato. A diferencia de sus
el pequeño negocio de producción y venta de mapitas predecesores del siglo XIX, la enseñanza de esta geografía
en blanco aportaba ingresos extras al matrimonio, utiliza palabras con moderación, y los estudiantes
parecían ser un recurso poco rentable para sostener un recibían lo que Arévalo llamaba “mapas mudos” junto a
emprendimiento comercial. Así que la pareja dejó sus breves explicaciones, que requerían el compromiso y la
respectivos empleos para abrir la editorial y dedicarse aplicación del conocimiento geográfico. Para promover el
a ello a tiempo completo. Comenzaron a vender mapas aprendizaje interactivo, por ejemplo, uno de los ejercicios
mudos pero también dibujos de flora y fauna, dirigidos consistía en que el maestro proponía a sus alumnos era
al currículo que conocían desde su propio tiempo en el dibujar y narrar un viaje dentro del país (Dym, 2015: 249).
aula. Inicialmente, los Piedras Santas trabajaron solos La práctica de copiar mapas a mano alzada ya estaba
pero pronto contrataron a otros maestros. Recogiendo instalada en la década de 1870: el The Midland Mapping
los materiales y añadiendo ejercicios, la Piedra Santas Book era un libro de hojas en blanco en las que los
pronto comenzó a complementar los mapitas y las hojas estudiantes tenían que dibujar mapas que incluía copetes
ilustradas que Piedra Santa había vendido por centavos del tipo “Conocimiento es poder” y “Diligencia comandos
para producir compilaciones geográficas. A diferencia del éxito.”21 Y el libro de Morton con instrucciones para los
libro de tapa dura de Arévalo, de gran formato y papel de docentes justificaba la relevancia de la obra en que “La
papel grueso, Piedra Santa se especializó en la publicación popularidad de las ilustraciones en la pizarra en el estudio
de pequeños libros de bolsillo (libros de texto y libros de de la geografía ha llevado a la autora a preparar este
trabajo) que han tenido numerosas ediciones y se han pequeño libro, dedicado enteramente a los bosquejos de
distribuido en toda Guatemala. A partir del vocabulario esta naturaleza.” (1895, preface).
visual de sus primeros cuadernos, las “compilaciones” de
Con la expansión de los sistemas de educación básica
30 a 40 páginas, con mapas e información geográfica o
obligatoria hacia fines del siglo XIX, se reactivaron los
demográfica básica, contrastaron con los libros oficiales
debates sobre los objetivos pedagógicos relacionados
de geografía de más de 400 páginas. Los cuadernos de
con el dibujo de mapas. En el citado artículo El Monitor…,
trabajo para anotaciones y ejercicios, entonces como
se recomendaba ejercicios cartográficos con objetivos
ahora, se venden en cuadernos adaptados al formato del
pedagógicos específicos, como un método para facilitar y
plan de lecciones original que acompañan, y su precio de
mejorar el aprendizaje de la Geografía:
hoy es de aproximadamente US $ 3. En una nota al final
de la primera recopilación, el equipo editorial de Piedra “La mejor lección de geografía será la que se funde a
Santa recomendó que este “folletito” para maestros y la vez en la observación de la Naturaleza y, cuando sea
estudiantes sirve como un complemento a los libros de posible, en el uso de mapas, imagen de la realidad, y
en los trazados geográficos que el mismo alumno
trabajo que poner hechos y mapas a trabajar para resolver haga. Para esos ejercicios cartográficos deben servir
la mayoría de las dudas que la memoria no puede resolver de modelo, no los mapas muy detallados, sino croquis
simplificados, y para la seguridad de la eficacia del
y para evitar la necesidad de consultar atlas que “en su estudio conviene que el alumno haga eso trazados
mayor parte no están a la mano”. El libro termina con de memoria o imaginativamente, sin tener el modelo
“croquis mudos” (bosquejos del mapa mudo) que los delante, después que lo haya copiado una y otra vez.” 22
estudiantes podrían cortar y colgar en la pared, e incluso
el equipo editorial invitó a los profesores a encontrar usos Dos de los métodos de dibujo más habituales para
adicionales para el libro (Dym, 2015: 254-256). dibujar/copiar mapas y que más han perdurado era el
Para acompañar el libro de texto System of Universal copiado y calcado23.
Geography, Emma Williard y William Woodridge publicaron 21
En la exhibición “The Art of the Hand-Drawn Map” (16 octubre 2014 – 26 febrero
separadamente Outline and Skeleton Maps, también llama- 2015 curada por Matthew H. Edney en la Osher Map Library en University of Southern
Maine) dedica una sección a “Early Geographical Education” donde es posible
do Geographical Copy Book, en el que los alumnos debían apreciar cuadernos de estudiantes donde dibujaban mapas. De allí fueron tomados
algunos ejemplos para este artículo, según se indica en los respectivos epígrafes.
dibujar mapas a diversas escalas, empezando por su espa- http://www.bpl.org/exhibitions/past-exhibitions/women-in-cartography Hoy en día,
los mapas hechos por colegialas se han convertido en objetos codiciados entre
cio inmediato y terminado por el planisferio20; pero además los coleccionistas, cuyos precios por lo general alcanzan varios centenares o unos
insistían en que el objetivo del libro era que el estudiante, miles de dólares.
Atienza y Medrano, Antonio (1890) “Material de enseñanza de la Geografía,” en El
22
a fuerza de repetición, lograra dibujar el mapa de Estados Monitor de la Educación Común, Consejo Nacional de Educación, Año XI, N. 180, pp.
1381-1383, [on line].
Unidos sólo de memoria y sin ningún tipo de ayuda.
23
También se proponía el coloreado de mapas, tanto de aquellos dibujados por los
estudiantes como los que aparecían el libros y que habían sido impresos en blanco
20
Susan Shulten, que estudia la enseñanza de geografía en Estados Unidos, señala y negro. Recordemos que la incoportación de grabados, mapas y esquemas fue
una novedad en libros de textos a principios del siglo XX, cuando se abarataron los
que este tipo de ejercicios también cumplían funciones didácticas específicas más costos. En principio funcionaban como apoyos didácticos para “aclarar” conceptos”
relacionadas con los valores nacionales y culturales, a menudo de corte racista. para facilitar el aprendizaje. Sobre las imágenes y las vulgatas en relación con las
Por ejemplo, en esta sucesión de escalas, Schulten encuentra que se naturaliza el transformaciones de los libros didácticos en historia y geografía, véase Boligian y
proyecto expansionista del Estado. Doin de Almeida, 2011: 82-87.

65
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Para la técnica del calcado se usaba un papel fino geográficos de referencia localizados y etiquetados con
denominado papel manteca, que se superponía sobre su nombre: Filadelfia, Londres, Cabo de Hornos y unos
el mapa original y se dibujaba sobre él. Pero a veces pocos más. Se pide a los estudiantes que dibujen el
no se disponía del llamado “papel manteca” y el papel contorno territorial de Estados Unidos y del Reino Unido,
disponible era demasiado grueso como para ver a través con esas ayudas (más la grilla de coordenadas y los
de él. En estos casos, los estudiantes podrían haber usado puntos cardinales)25.
un truco común de la época para hacer una especie de A lo largo de las páginas del Atlas de 5e. Le
calco: cubrían el mapa entero con papel con grafito (papel monde polaire, l’Amérique, l’Asie, l’Océanie (autour
carbónico), poner esa boca abajo en una hoja en blanco du Pacifique...)26 se propone un método de copiado
debajo el mapa original y, al trazar el mapa con algún tipo ligeramente diferente: en doble página se presenta
de puntero transferirán el contorno del grafito a la hoja en un mapa colorido, con división política e información
blanco.24 geográfica de diverso tipo (página par) y un croquis o
Una alternativa al calcado, era el dibujo o copiado de “esqueleto de mapa” que repite el contorno del mapa de la
mapas .En algunos manuales de principios de siglo XX, se página par pero está completamente en blanco a la espera
instaba a que los estudiantes copiaran mapas que tenían del trabajo del estudiante (página impar). En la página
a la vista en la hoja par sobre una cuadrícula casi en blan- del mapa “completo”, además de la respectiva leyenda, a
co que había en la página impar del libro. Podían hacerlo a veces se incluyen otros gráficos (en su mayoría, perfiles
simple vista o podían trazar una cuadrícula sobre el mapa topográficos). En la parte inferior, todas las páginas con
original a ser copiado, para dibujar celda a celda (copiar el croquis tienen un breve texto que empieza siempre con el
contenido de cada celda pequeña a simple vista, uno a la mismo encabezado en tono de instrucción: “Regardons
vez, era mucho más fácil que echando un vistazo un mapa les cartes et retenons” (“Miremos el mapa y retengamos”
de todo a la vez). Los métodos de copiado eran variados. [el siguiente texto]). En efecto, ese pequeño texto “sugiere”
Por ejemplo, nn el capítulo dedicado a la construcción de cómo debe ser leído el mapa: es un texto corto apunta a
mapas del libro Elements of Geography de Joseph Wor- la simplificación de la información cartografiada, es una
cester (1891), se incluye un rectángulo con la grilla de la verbalización del mapa27.
proyección Mercator que, además, tiene algunos puntos

Figura 3

Aunque queda fuera del alcance de este trabajo, cabe mencionar que Susan
25

Schulten analiza este dibujo y otros similares desde su implicancia en la “enseñanza”


implícita de valores nacionalistas e imperialistas, con ejercicios placenteros y
estéticos. Véase Schulten 250-157.
26
Librairie Belin, 1971. Crous V. Prévot. Cartographie R. Lucas.
27
Por ejemplo, “LE MONDE ANTARCTIQUE. Regardons la carte et retenons: Le circle
polaire antarctique entoure un continent couvert par un inlandsis d’une épaisseur
de 4000 mètres sur le socle de l’Antarctique oriental. De puissantes chaines
24
Las distintas técnicas, mapas base y personalidades de los alumnos llevaron a de montagnes s’allongent sous la glace de l’Antarctique occidental. D’énormes
una amplia gama de estilos de mapas. A veces los estudiantes estaban claramente icebergs dérivent sur les mers australes. Une trentaine de stations scientifiques,
tratando de replicar la apariencia del mapa impreso se copia, hasta detalles como côtières pour la plpart, constituent le seul peuplement de ce continent sans vie. Les
el tamaño de letra, colocación del título. Otros preferían añadir sus propios toques mers environnantes attirent les pêcheurs et les chausseurs de baleines” (mapa 2,
personales y adornos (Shulten, 2007: 548–552). página impar)

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¿Cuándo la geografía perdió su “graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades gráficas promovidas en la geografía escolar

El croquis de la página impar representa las formas y Analicemos el caso del caso del continente americano.
los contornos esquemáticos del mapa al que acompaña,
En la página par, hay un mapa físico político y en la
tal como lo podría dibujar un estudiante. Incluso en la
parte inferior de la hoja hay un perfil topográfico de
mayoría de los casos, el croquis se apoya sobre una
corte latitudinal entre San Francisco y New York, que
cuadrícula, como la que se usa para copiar dibujos y que
da información sobre altura y formas de los principales
sirve para que el alumno “parcele” el mapa en blanco y
accidentes geográficos identificados por su nombre
se oriente dentro del croquis, para que el croquis no se
(nótese la anotación a mano de la alumna). La página
transforme en una intimidante hoja en blanco, sirve para
impar, en cambio tiene un croquis despojado, que sólo
establecer ubicaciones relativas.
muestra los contornos y, con unas líneas negras indica la

Figura 4 e figura 4 detalhe

localización y la disposición orientación de los principales En la actualidad, es difícil encontrar material didáctico
macizos montañosos. Es algo así como esos famosos que tenga instrucciones para el dibujo de imágenes
“mapas semi-mudos” para completar, aunque no lleva sobre el espacio. Esto que está, de alguna manera, ligado
instrucciones explícitas. Teniendo en cuenta que no es al desprecio por el valor didáctico de la producción
un ejercicio aislado, perdido azarosamente en un libro de de imágenes o del pensamiento a través de imágenes
texto sino que, por el contrario, el libro entero se trata de parece un correlato de la pasividad con la que nuestra
ejercicios de dibujo cartográfico, la falta de un instructivo sociedad consume imágenes con escasa o nula reflexión.
escrito en el libro mismo sugiere que el alumno trabaja Esa incapacidad de pensar las imágenes que se nos
con la guía y asistencia del maestro. presentan ante nuestros ojos (con o sin nuestra voluntad)
Las instrucciones, que en su mayoría eran orales y se traduce en la eliminación de las prácticas gráficas
formaban parte de la práctica, fueron cediendo espacio a como metodologías de apredizaje (Hollman y Lois,
la intuición. A principios del siglo XX, los textos geográficos 2015). Pero como el pensamiento espacial forma parte
sobre Guatemala y Centroamérica podrían incluir mapas de nuestra experiencia de mundo, el hecho de que no se
topográficos de múltiples colores sobre el país o el istmo, enseñe o no se entrene no significa que no existe o que
así como fotografías y dibujos de diferentes regiones, pueda eliminarse. Ahí es donde comienza a incubar un
pueblos, rasgos naturales e industrias para acompañar las pensamiento intuitivo que se nutre de esos saberes mejor
lecciones. Se esperaba que los estudiantes dibujaran sus sistematizados. Por eso, la geometría forma una parte
propios mapas como parte de las lecciones, y aprendieran esencial de nuestro pensamiento espacial.
nombres de departamento y ciudad para memoria. Sin
embargo, la alfabetización de mapas no era parte de la
pedagogía (Dym, 2015: 247)

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Simplificación y geometrización: estrategias neutralizan otros posibles.


complejas de pensamiento espacial El croquis-boceto de un mapa tiene un referente que
es no es el espacio mismo sino que es otro mapa. Más
Contrariamente a lo que pueda parecer, las figuras específicamente, es un mapa aprendido y reconoscible.
simples o geométricas usadas para dibujar mapas los Ese mapa es una figura estable, simple y exhibida por
mapas analizados no son elementales. Si bien desde el doquier, lo que Benedict Anderson llamó mapa logotipo”
punto de vista gráfico parecen sencillas, desde el punto para explicar que en el contexto de la formación de los
de vista cognitivo requieren un importante proceso de nacionalismos modernos, las siluetas territoriales fueron
abstracción. El pensamiento diagramático es una variante transformadas formas sencillas, siluetas de territorios que
del dibujo cartográfico que también apunta a desarrollar el participan de “una serie infinitamente reproducible, que
pensamiento visual y a establecer relaciones espaciales, podía colocarse en carteles, sellos oficiales, marbetes,
a aislar variables y esquematizarlas de manera tal de cubiertas de revistas y libros de textos, manteles y
hacerlas comparativas. paredes de los hoteles (Anderson, 1991: 245). La eficacia
Respecto de los croquis, el historiador del arte Rudolph de esta imagen se garantiza, sostenía Anderson, con la
Arnheim sostuvo que cuando se realizan bocetos de concurrrencia de otras instituciones28 y políticas públicas
ciertas imágenes a mano alzada, las formas que toman (como el sistema educativo).
esos dibujos son el resultado de las luchas entre dos Retornando al Atlas de 5e. Le monde polaire, l’Améri-
campos de huellas que tendían a querer modificar el que, l’Asie, l’Océanie (autour du Pacifique)29 recordemos
diseño en dos direcciones opuestas: por un lado, se que incluye en todas sus páginas impares un croquis sim-
experimentaría una tendencia a la estructura más simple plificado del mapa que hay en la página par. Lo singular es
(que pierde todo detalle y refinamiento pero gana en que esos croquis que se espera que hagan los alumnos no
simetrías y regularidades, y que termina resaltando los son simples dibujos a mano alzada de los contornos que
rasgos distintivos de la configuración, aunque a veces simplemente apelan a la propia memoria o a la creatividad
eso implique el sobre o el subdimensionamiento de tales de los estudiantes.
rasgos). Por otro lado, una tendecia a conservar todo lo Como he mencionado, todas las páginas impares de-
que puede contribuir a la identidad del objeto (Arnheim, dicadas al dibujo del mapa tienen algún tipo de grilla o
1969: 94). Kulhavi y Stocks proponen algo similar plantilla de base, y también todas esas grillan llevan sobre
específicamente aplicado a los mapas: “cuando un lector impresa –agrego ahora que antes no mecioné- una figura
intenta aprenderse un mapa, dos factores cognoscitivos geométrica que evoca simplicadamente el contorno terri-
entran en el juego. Primero están los procesos de control: torial del mapa en cuestión: “Le Brésil » (pp 26-27) tiene un
estos emparejan el mapa a la información ya almacenada polígono romboide que une los puntos extremos ; « Le Sud
en su memoria y determinan cómo el sistema debe lograr de l’Amerique latine » (pp 28-29) (Argentina, Uruguay y Chi-
la tarea asociada a aprender tal mapa. En segundo lugar, le), un triángulo ; « l’Asie occidental », (34-35) un triángulo
participan las características del sistema conmemorativo: cruzado por bisectrices (que, en cierto modo, regionalizan)
estas incluyen el modo de la representación (verbal o ; « Le monde indien » (36-37), una cuadrado dividido en cua-
imagen) y un sistema limitado de recursos para almacenar tro y un triángulo que une los dos vértices superiores y el
y mantener una representación del mapa en la memoria. punto medio del lado inferior.
La interacción entre los procesos de control y el sistema
En este libro (y en otros similares), las nociones de ge-
conmemorativo determina la forma de la representación
ometría y las figuras geométricas funcionan en solidaridad
que resulta de ver un mapa” (Kulhavi y Stocks, 1996: 123).
con los mapas, como un dispositivo mnemotécnico para
Si las regularidades expresan un canon, las variaciones
retener información básica sobre las formas de los territo-
extremas, definen a su vez un campo de posibilidades
rios o algunas características de las regiones. Raja Bagaglia
relativamente estrecho: con la excepción de algunos
afirmó en su Terra Ilustrada que si los ejercicios de dibujo
casos, la mayor parte de los dibujos han elaborado
cartográfico sobre mapas semi-mudos se hacían regular-
imágenes reconocibles, es decir, las han inscrito dentro
mente, el estudiante incorporaría contenidos geográficos
de lo que hemos denominado márgenes de seguridad
a través de procesos nmemotécnicos y, por tanto, evitaría
(Lois, 2000): haciendo un uso libre de las palabras de
que tengan que consutlar permanentemente los atlas y li-
Roland Barthes, podemos decir que existe una campo
bros de texto (citado en Boligian y Doin de Almeida, 2014:
de dispersión dentro del cual se inscriben las variables
de ejecución –en nuestro caso, dibujar el mapa– sin
28
De hecho, sus reflexiones sobre el mapa comparten el capítulo con sus notas
que esas variedades impliquen un cambio de sentido. Y sobre el censo y el museo: en “El mapa, el censo y el museo” se propone profundizar
ese campo de dispersión está definido por unos bordes su análisis sobre el surgimiento del nacionalismo abordando cada una de estas tres
instituciones que sirvieron para que el Estado moderno imaginara sus dominios
que garantizan su funcionamiento, es decir, garantizan (“la naturaleza de los seres humanos que gobernaba, la geografía de sus señoríos
y la legitimidad de su linaje”; Anderson, 1991: 229) y para crear sentimientos de
la comunicación de ciertos significados a la vez que pertenencia en una comunidad.
29
Librairie Belin, 1971. Crous V. Prévot. Cartographie R. Lucas.

68
¿Cuándo la geografía perdió su “graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades gráficas promovidas en la geografía escolar

86). Esos mapas semi-mudos operan como una plantilla de un modelo cartográfico caracterizado por el trazado
geométrica que soporta los elementos geográficos repre- irregular de la línea de la silueta, se superpone una figura
sentados y sus posiciones relativas, a veces con informaci- geométrica.
ón adicional acerca de sus tamaños proporcionales. Este tipo de ejercicios era posible porque, al mismo
Los modos en que la plantilla geométrica funciona son tiempo, el alumno era familirizado con los elementos
variables: en ocasiones, la figura es la silueta propiamente básicos de geometría en otras asignaturas (a veces,
dicha. Otras veces, la figura geométrica funciona como Matemáticas, pero también había cursos de Formas
una suerte de esqueleto que sostiene otra representación Geométricas o Formas de los Objetos). Por lo tanto, el
más “cartográfica” o como marco que la recuadra: sobre profesor de Geografía podía evocar esos contenidos
un diseño de aspecto más o menos analógico respecto relativos a las formas de los cuerpos o los conceptos de

Figura 5

punto, línea, plano, ángulos, rectas, curvas y otros para En el sentido común, es habitual el mapa logotipo
ponerlos en práctica aplicados, primero, al reconocimiento de países, regiones, provincias o ciudades se asocie a
de formas geométricas en los mapas y, luego, al dibujo de alguna figura geométrica. El caso emblemático es la
formas cartográficas traducidas a formas geométricas. representación simplificada del territorio de Francia como
Dicho en otros términos, los conocimientos sobre hexágono (Smith, 1969:30). Pero no es el único: entre otros
geometría se activan cuando se demanda al estudiante varios casos que podríamos nombrar, mencionemos que
cierto pensamiento cartográfico: es el saber geométrico Portugal usa un rectángulo vertical y que la Argentina es
aprendido lo que opera para la eficiencia de la intuición asociada a un triángulo con el vértice en la parte inferior.
cartográfica. 30
En un trabajo anterior, analicé cómo aparece la figura del triángulo en la
representación del mapa de la Argentina y en la configuración de un sentido
geográfico común (Lois, 2013).

69
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Estas figuras también suelen ser usadas en el aula Algo de esto pervive en la actualidad aunque
por los docentes, que realizan esas figuras la pizarra y con algunas variantes. Las formas simplificadas
sobre ella sitúan gráficamente los procesos que están (básicamente líneas, que en algunos casos tienden
enseñanzado. a formar figuras geométricas) se siguen haciendo
como bocetos de mapas y funcionan como esquemas
espaciales y espacializadores de ciertas temáticas.
El 11 de marzo de 2016, Rony Gao, un profesional de la
educación preguntó a los lectores de su página web cómo
los maestros dibujan los territorios de sus países31. Rony
Hora incluyó otras imágenes realizadas por docentes
que representan “mapas croquizados” para demostrar la
vigencia de estas formas de dibujo cartográfico.

Figura 6

Figura 7

How do geography teachers draw their countries?


31

https://www.quora.com/How-do-geography-teachers-draw-their-countries/answer/
Rony-Gao

70
¿Cuándo la geografía perdió su “graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades gráficas promovidas en la geografía escolar

Sin embargo, apenas se les propone a los alumnos para pensar y para desarrollar el pensamiento espacial.
realizar sus propios mapas o croquis. Lo que sí suele Menos todavía se habla de que el dibujo de mapas
ocurrir es que se los inste a reconocer formar en las contribuye a desarrollar una destreza relacionada con
siluetas de los territorios y distribución espacial de esas el pensamiento visual que, necesaria e inevitablemente,
formas, pero, en general, a partir de la verbalización de esas mejora y potencia la habilidad de leer mapas. Sin embargo,
formas más que a partir de su dibujo32. Y eventualmente, debido a que todos los individuos establecemos vínculos
el dibujo se presenta como un “ayuda memoria” personal, visuales y espaciales con nuestro entorno físico, la
para el que no se reciben instrucciones de ningún tipo y, falta de instrucción sistemática sobre la producción de
por tanto, su elaboración y/o sus usos quedan librados a mapas mentales y sobre el “pensamiento cartográfico” no
la intuición (del docente y del alumno). elimina el tema de la agenda – es decir, de la necesidad
Esto no sorprende si se tiene en cuenta que, tanto en humana de visualizar su posición en el mundo- sino que
la educación geográfica en la primaria y en la secundaria, apenas lo desplaza al terreno de la intuición (en el que,
así como en la formación universitaria de geógrafos se para funcionar eficientemente, toma préstamos de otros
abordan consideraciones generales sobre los mapas; y conocimientos, fundamentalmente de la geometría y la
aunque en teoría se sugiere y alienta el uso de mapas, la perspectiva).
realidad es que en la práctica no se promueve la escritura En el caso del espacio geográfico, el desarrollo de la
cartográfica en ningún nivel (Seeman, 2011: 50). perspectiva fue clave tanto para representar el espacio
El desafío hoy pasa por trabajar sistemáticamente con con la profundidad de planos como para establecer
esas intuiciones espaciales, geométricas y cartográficas vínculos sensibles entre los sujetos y su espacio, ya que
para lograr una reflexión consistente no sólo sobre el las tres dimensiones de la geometría eclideana en las que
mundo (y las representaciones del mundo) sino, sobre se basa la perspectiva “pueden fácilmente concebirse
todo, acerca de nosotros mismos, de nuestro lugar en el de modo intuitivo por referencia a nuestro cuerpo y a
mundo y de cómo nos vemos (o no) en él. su posición en el espacio: la verticalidad es la dirección
de la gravedad y de la posición del pie; la segunda
dimensión, horizontal, sería la de la línea de los hombros,
paralela al horizonte visual que hay ante nosotros; la
Conclusiones tercera dimensión, finalmente, es la de la profundidad,
correspondiente al avance del cuerpo en el espacio”
En los métodos de enseñanza y aprendizaje de (Aumont, [1990] 2013: 40-41).
la geografía en el ámbito escolar hubo una notable En contraste con la pérdida de terreno por parte de los
tendencia hacia la textualidad y a la discursividad a lo geógrafos en la producción de mapas, resulta insolayable
largo del siglo XX. La mayoría de los manuales escolares remarcar la multiplicación de “mapas artísticos” y, sobre
del último siglo insisten en que el mapa sirve para mostrar todo, de proyectos en que los artistas se proponen dibujar
(en general, información). Es cierto que el mapa es un mapas (algunos lo hacen de forma sistemática, como
potente dispositivo de visualización que permite, entre Guillermo Kuitca y Jorge Macchi y otros, ocasionalmente,
otras cosas, detectar patrones de distribución espacial como Jasper Johns). Incluso los mapas dibujados a mano
de datos que, ordenados en una tabla o alfabéticamente, alzada, ya sea por parte de artistas como por parte de
no “hablan” de su distribución ni estimulan la formación “gente común” se han vuelto un género cartográfico muy
de preguntas para dar cuenta de esas distribuciones o de popular que despierta gran interés en el público general
la correlación de fenómenos que las explicarían. En este (algo que puede advertirse con sólo navegar algunos de
sentido, los mapas temáticos escolares son sometidos a los cientos sitios de internet y blogs dedicados al tema
una “lectura extractiva” en la que los estudiantes sacan o, también, a los libros publicados basados en este
sólo lo que les sirve para “ver” lo que afirma el texto que tipo de imágenes) (Cooper, Harmon, Hand Drawn Map
lo acompaña. Association, entre otros). No obstante, esta tendencia
Poco o nada se dice que los mapas sirven también creciente (que celebramos) poco tiene que ver con la
para pensar o, mejor dicho, cómo podrían ser utilizados tradición de formación e instrucción geográfica (por
lo general, son trabajos o proyectos que apuestan a la
32
Durante entrevistas personales realizadas en Neuquén en 2002 y 2003, los
profesores de geografía (egresados de universidades públicas, con formaciones originalidad y al impacto estético) y parece profundizar
iniciadas en distintos momentos históricos y de la disciplina) manifestaban
preocupación de que sus alumnos no “recordaban” el mapa de Argentina y la el divorcio entre los dibujos artísticos y los diseños
sistemática confusión de algunas provincias. Entonces, señalaban que, para que
sus alumnos recordaran la “forma” de las provincias, los instaban a establecer
científicos sobre el espacio (en lugar de enriquecerse
asociaciones con formas de cosas o formas geométricas: la bota para Santa Fe fue mutuamente).
el ejemplo mas apelado, pero también se mencionó con alta recurrencia el hexágono
para Tucumán. Además, los profesores expresaron que habitualmente utilizan el
esquema “triangular para Argentina” en el pizarrón como recurso rápido para marcar
¿El dibujo de mapas queda para los artistas y para
determinados aspectos tales como la extensión latitudinal de Argentina, los puntos las expresiones deliberadamente subjetivas sobre el
extremos, las “franjas” climáticas. Según estos mismos docentes, los alumnos ya
manejaban o reconocían con facilidad la asociación triángulo- mapa de Argentina. espacio? ¿Los geógrafos ya no tienen la imaginación
Información proporcionada en entrevista personal con Verónica Hollman.

71
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

visual para pensar y expresarse a través de imágenes que


producen ellos mismos?
Aunque todavía no es posible ofrecer respuestas
consistentes a estos interrogantes, es alentador
reconocer que en la última década, geógrafos e
investigadores de disciplinas afines han comenzado a
revisar la naturaleza de la imagen cartográfica, el uso de
mapas en la enseñanza inicial, el pensamiento espacial
de los niños, el impacto de las nuevas tecnologías sobre
el uso de nuevos dispositivos cartográficos, entre otros
temas. Sin embargo, son pocos los casos que, además
de hacer diagnósticos o establecer causas, elaboren
propuestas metodológicas que permitan dar ese salto que
nos permitiría encontrar los modos de reconectar con la
tradición visual de la geografía –con esa graphia perdida-
desde perspectivas que respondan a los interrogantes de
nuestro tiempo.

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https://www.quora.com/How-do-geography-teachers-draw-their-countries/answer/Rony-Gao

Data de submissão: 24/01/2017


Data de aceite:30/07/2017
Data de publicação: setembro/2017

74
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai/ago.

Artigos

LAND GRABBING E CRISE DO CAPITAL:


POSSÍVEIS INTERSECÇÕES DOS DEBATES

Cássio Arruda Boechat*


Universidade Federal do Espírito Santo**

Fábio Teixeira Pitta***


Universidade de São Paulo****

Carlos de Almeida Toledo*****


Universidade de São Paulo******

Resumo: O artigo aqui apresentado pretendeu realizar uma apreciação tanto do fenômeno recente denominado por land grabbing, comumente
traduzido por “apropriação de terras”, bem como das diferentes formulações teóricas acerca dele. Podemos sugerir que, após as crises alimentares
e financeiras da primeira década do século XXI, a expansão de tal fenômeno ficou perceptível e foi responsável por fundamentar a produção de
estudos e artigos inicialmente quantitativos. Uma virada mais qualitativa de abordagem do land grabbing pôde, subsequentemente, ser formulada, a
qual apresentamos em linhas gerais e visitamos seus principais autores com a finalidade, porém, de alcançarmos a crítica marxista da expropriação
(como dimensão formativa e reprodutiva para a compreensão do land grabbing) como prática imanente ao capitalismo como forma de sociedade.
Finalmente, detivemo-nos na apropriação teórica de David Harvey para o land grabbing, para podermos relacioná-lo à compreensão deste autor da
crise imanente do capital e conclusivamente, para sugerirmos alguns pontos de questionamento no que diz respeito à capacidade da própria expro-
priação funcionar como uma contratendência à crise atual do capital – por meio da acumulação por espoliação do ajuste espacial (HARVEY, 2005;
2011).
Palavras-chave: Land grabbing. Expropriação. Crise do capital. Espoliação. Ajuste espacial. David Harvey.

LAND GRABBING AND CAPITAL’S CRISIS: POSSIBLE INTERSECTIONS OF THE DEBATES


Abstract: The present article intended to grasp the recent phenomenon known as land grabbing as well as the different theoretical framework about
it. We may suggest that after the food and financial crises of the 21st Century’s first decade the rapid expansion of such phenomenon became clear
and stimulated the production of articles and researches initially based on quantitative analyses. A qualitative turn within the production over recent
land grabbing was subsequently formulated. We here present this shift and its main authors in general lines, although with the purpose to achieve the
Marxist critique of expropriation (as a formative and reproductive dimension to understanding land grabbing) as an immanent practice of capitalism
as a social form. Finally, we focus on David Harvey’s approach to land grabbing as our way to relate such phenomenon with this author’s formulation
of capital’s immanent crisis. As a conclusion, we question the capacity of expropriation to work as a countertendency to the prevailing crisis of capital
– through accumulation by dispossession and the spatial fix (HARVEY, 2005; 2011).
Keywords: Land Grabbing. Expropriation. Capital’s Crisis. Dispossession. Spatial Fix. David Harvey.

________________________________
*Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Professor de Geografia do Centro de Ciências Humanas e Naturais/Universidade Federal do Espírito Santo.
E-mail: cassio.boechat@ufes.br
** Av. Fernando Ferrari, 514 – Goiabeiras, Vitória/ES – 29.075-910. Telefone: (27) 4009 - 2523.
*** Doutor em Geografia Humana Universidade de São Paulo. Atualmente, realiza estágio de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana na
Universidade de São Paulo. Bolsista FAPESP. E-mail: pitta.fabio@gmail.com
**** Av. Prof. Lineu Prestes, 388 – Cidade Universitária, São Paulo/SP – 05508-000. (11) 3091-3749.
***** Doutor em Geografia Humana, pela FFLCH/USP. Professor associado do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da
Universidade de São Paulo. E-mail: carlosdealmeidatoledo@gmail.com
****** Av. Prof. Lineu Prestes, 388 – Cidade Universitária, São Paulo/SP – 05508-000. (11) 3091-3749.

75
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

LAND GRABING Y LA CRISIS DEL CAPITAL: POSIBLES INTERSECCIONES DE LOS DEBATES


Resumen: El artículo aquí presentado pretendió realizar una apreciación tanto del fenómeno reciente denominado por land grabbing, que suele ser
traducido por “apropiación de tierras”, así como de las diferentes formulaciones teóricas acerca del mismo. Podemos sugerir que después de las
crisis alimentarias y financieras de la primera década del siglo XXI, la expansión de esto fenómeno se quedo perceptible y fue responsable por funda-
mentar la producción de estudios y artículos inicialmente cuantitativos. Subsecuentemente, un cambio más cualitativo de abordaje del land grabbing
se tornó posible, lo cual presentamos en líneas generales y visitamos sus autores principales aunque con la intención de llegarnos a la crítica mar-
xista de la expropiación (como dimensión formativa y reproductiva para la comprensión del land grabbing) como practica inmanente al capitalismo
como forma de sociedad. Finalmente, nos detuvimos en la apropiación teórica de David Harvey para el land grabbing, para podernos relacionarlo a la
comprensión de este autor para la crisis inmanente del capital e, conclusivamente, para sugerirnos algunos puntos de cuestionamiento en lo que se
refiere a la capacidad de la propia expropiación funcionar como una tendencia contraria a la crisis actual del capital – por medio de la acumulación
por espoliación del ajuste espacial (HARVEY, 2005; 2011).
Palabras clave: Land grabbing. Expropiación. Crisis del Capital. Espoliación. Ajuste Espacial. David Harvey.

Introdução Os debates sobre land grabbing

Este artigo procurou retomar o debate recente sobre A questão da quantificação


land grabbing, que compõe nos últimos anos, segundo
Cotula (2012) e Sauer e Borras Jr. (2016), uma “corrida
De início os números, mas quais números e o que
na produção acadêmica” para tentar dar conta de
representam? Vejamos. O assombro (ou a tentativa
interpretar a “corrida mundial por terras” que teria se
de promovê-lo) com relação à corrida recente para
inaugurado como respostas de países, empresas e
a aquisição de terras ao redor do mundo vem sendo
fundos de investimentos às crises alimentar, energética,
mensurado de maneiras diversas. E com implicações a
ambiental e financeira, dos anos 2000, agravadas a partir
serem debatidas.
de 2007/2008.
A fonte de dados mais recorrentemente acionada tem
Observamos, em nossa retomada dessa profusão
sido o relatório de 2010 do Banco Mundial, posteriormente
de textos, livros e artigos sobre o tema, a existência de
publicado como Rising Global Interest in Farmland – can
duas fases bem marcadas na referida produção, sendo
it yield sustainable and equitable benefits? (DEININGER
a primeira pautada pelas tentativas de quantificar o
et al., 2011). Nele, os autores advogam uma visão que
fenômeno e a segunda caracterizada por uma “virada
pende a um estímulo aos investimentos em aquisições
qualitativa”, a buscar elementos teóricos, políticos
de terras em locais mapeados como possuindo terras
e metodológicos para melhor interpretar (ou para
subutilizadas e passíveis de serem adquiridas a preços
gerenciar) o processo. Dentro dessa segunda fase da
baixos e com boa fertilidade e localização. Antes do debate
produção acadêmica sobre land grabbing destacamos
sobre as implicações de tal roteiro para o “banquete
a emergência de “narrativas de crise”, a articular a
nos trópicos”, reitera-se usualmente o levantamento
expansão da apropriação mundial de terras como
da existência de um boom na comercialização de terras
resposta às dimensões de crise acima aludidas. Com
agricultáveis a partir de 2008. E o número representativo
isso, observamos, sobretudo pela incorporação parcial
apresentado pelos autores apontava para um interesse
da teorização de D. Harvey sobre a “acumulação por
expresso na comercialização de terras no mundo em
espoliação” ou sobre o “ajuste espacial”, a possibilidade
torno de 56 milhões de hectares, apenas entre 2008 e
de um diálogo dessa literatura recente com a teorização
2009 (DEININGER et al., 2011).
marxista sobre o desenvolvimento crítico do capitalismo.
Outros estudos permitem-nos compilar a abrangência
Há, assim, uma sugestão de uma “virada crítica”
da discrepância. Enquanto a primeira publicação do
dentro da “virada qualitativa” na “corrida na produção
relatório do Banco Mundial estimava uma área global
acadêmica” sobre land grabbing, o que não significa que
total de 43 milhões de hectares sendo efetivamente
não haja críticas recorrentes às práticas de land grabbing
negociada, estudo da The International Land Coalition
além da literatura que flerta com a perspectiva marxista,
(ILC) reportava um número de 81 milhões de hectares
embora encontremos nesta última perspectiva uma
apropriados na última década, ao passo que outra
possibilidade de uma interpretação mais aprofundada
estatística da Oxfam apontava 227 milhões de hectares
e sistemática sobre a relação entre desenvolvimento e
transacionados no período (White et al., 2012, p. 620).
crise. Por isso, desdobramos nas seções finais deste
L. Cotula (2012, p. 652) mostraria os mesmos estudos
artigo um entendimento sobre a teoria marxiana da crise
com números distintos e com destinações geográficas
e localizamos, dentro dessa matriz interpretativa, as
desiguais dos investimentos: ILC indicando aquisições
leituras particulares de D. Harvey.

76
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates

entre 51 e 63 milhões de hectares em 27 países africanos, militantes, acadêmicos e políticos também se observam
entre 2008 e 2010; Deninger et al. (2011) apontando 56,6 nas suas motivações declaradas ao levantar, organizar
milhões de hectares negociados em 81 países ao redor e disponibilizar tais dados sobre aquisições de terras.
do mundo, entre outubro de 2008 e agosto de 2009, a Desse modo, diante do espanto com o fenômeno de land
partir de dados de GRAIN; e a Oxfam atestando ao redor grabbing e a sensação de urgência, criou-se um contexto
de 67 milhões de hectares transacionados em todo o primordial para a pesquisa engajada. Neste, GRAIN
mundo entre 2001 e 2010. se posicionou explicitamente como não se propondo
De todo modo, a imponência da mudança do patamar a fazer uma pesquisa neutra, mas tendo o objetivo de
de negociações saltava aos olhos e o impacto do dado “compilar a melhor e mais útil informação” para apoiar
empírico representava antes de tudo um chamado à respostas de comunidades locais e redes de ativistas
atenção para algo expressivo e preocupante. S. Sauer e S. contra o fenômeno (<www.grain.org>). Por sua vez, a
Leite (2012) captaram bem essa possibilidade ao indicar, parceria The Land Matrix declararia buscar promover a
embasados no referido relatório do Banco Mundial, que transparência e fornecer dados abertos sobre decisões
enquanto a média anual de negociações com terras no tomadas sobre terras e investimentos, como passo para
mundo era de cerca de 4 milhões de hectares até 2008, a um melhor entendimento sobre o que estava ocorrendo.
partir de então e até outubro de 2009 este número saltara Scoones et al. (2013, p. 472), todavia, enxergam um
para 43 milhões de hectares. S. Sassen (2013) tampouco mesmo comprometimento político, embora o papel
se furtaria a se valer do importante expediente, apontando político da pesquisa seja mais explícito em GRAIN do que
que, entre 2006 e 2012, mais de 200 milhões de hectares em The Land Matrix. Assim, ambas se tornaram fontes
foram adquiridos por firmas e governos estrangeiros ao recorrentemente acessadas, inclusive influenciando
redor do mundo. politicamente o debate.
Porém, não poderiam as variações consideráveis No entanto, B. White, S. Borras Jr., R. Hall, I. Scoones
nos dados implicar questionamentos dos estudos e W. Wolford (WHITE et al. 2012, p. 620) apontariam
em si? A busca pelos chamados killer facts não seria que, apesar de haver certa concordância em relação à
desnecessária face à gravidade e à urgência de análises definição de land grabbing, à necessidade e às maneiras
das implicações do monopólio sobre a terra em qualquer de mensurá-lo, as grandes negociações com terras são
escala? E, ainda, o que há de novo no movimento global usualmente secretas e ninguém sabe exatamente quanta
de aquisições de terras é mesmo sua intensidade nova ou terra foi adquirida. C. Oya (2013, p. 506-507) vai além e
existem outros elementos qualitativos a se considerar? atesta que a base empírica bruta sobre land grabs não
Antes, todavia, de avançar sobre tais questionamentos, deriva de levantamentos quantitativos em larga escala
mais séria do que a questão sobre a discrepância dos sobre propriedades fundiárias nem de qualquer número
dados totais cabe se ponderar sobre a própria produção considerável de entrevistas diferenciadas. Desse modo,
de dados em geral. este autor cita quatro problemas dos “números” sobre
land grabbing.
Duas organizações vêm se dedicando a realizar
tais levantamentos que, por sua vez, vêm servindo de O primeiro problema da mensuração seria relativo a
fonte de dados para pesquisas acadêmicas e matérias se tomar dados publicados na imprensa como fatos a
jornalísticas. Trata-se dos estudos feitos pela ONG serem incorporados nos bancos de dados como Grain e
internacional GRAIN e pelo portal na internet The Land Land Matrix, de modo a haver uma “complex mix of facts
Matrix. Os estudos da GRAIN se centraram no período and ‘factoids’” (OYA, 2013, p. 506). O segundo advém
entre 2007 e 2011, perdendo espaço entre as outras da dificuldade mesma de se coletar dados sobre uso da
frentes de atuação da organização, expressas em seu terra, tanto aqueles coletados por fontes oficiais como os
website (<www.grain.org>), enquanto o outro portal coletados pelos próprios pesquisadores, comprometendo
(<landmatrix.org>) segue recebendo informações e as as pesquisas e as comparações entre países. O terceiro
compilando, produzindo um banco de dados importante. problema estaria no caráter enviesado dos bancos de
dados sobre land grabs, como, por exemplo, na maior
As diferenças1 entre as fornecedoras de dados para
atenção dada aos casos ocorridos na África ou àqueles
1
I. Scoones, R. Hall, S. Borras Jr., B. White e W. Wolford (SCOONES et em que o governo e empresas chineses estão envolvidos,
al., 2013, p. 470-472) reconhecem que ambas as iniciativas deram negligenciando o que vem ocorrendo em outras partes
importantes contribuições para o debate sobre land grabbing, mas que
as duas têm sérias limitações e problemas. De todo modo, os autores
e também a importância de investidores domésticos
apontam suas diferenças ao observar que a parceria que organiza The que, embora sejam os atores principais nessa corrida,
Land Matrix, iniciada pela The International Land Coalition (ILC) e se aparecem de forma menos espetacular nos noticiários
desdobrando em outras iniciativas, adotou a estratégia de crowd-sourcing
para identificar negociações de terras, sendo que as submissões de terras, disponibilizando as informações num banco de dados aberto a
informações por terceiros seriam checadas e confirmadas e só depois qualquer interessado, bem como publicando relatórios ocasionais.
entrariam no grande banco de dados. A estratégia de GRAIN, por outro Uma compilação de dados, explicação de metodologias e primeira
lado, foi a de fazer pesquisas na internet e compilar registros, amplamente sistematização sobre as práticas de quantificação de land grabbing pode
baseada em matérias de imprensa sobre negociações internacionais de ser encontrada em Cotula (2012).

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e na percepção nacionalista geral. Por fim, o quarto anteriormente. Na primeira fase, podiam-se observar
problema resultaria de uma quase completa ausência de dois tipos de contribuições principais: teorizações
trabalhos de confirmação dos dados coletados, e, quando sem provas empíricas sistemáticas e relatórios de
há pesquisas mais rigorosas, estas parecem indicar uma campo descritivos e sem muita teorização (OYA, 2013,
grande distância entre as intenções de investimento p. 511). A mudança qualitativa teria sido promovida
em terras e os reais investimentos sacramentados e e sistematizada, sobretudo, por edições especiais de
efetivamente feitos (OYA, 2013, p. 506-509). periódicos como The Journal of Peasant Studies, The
Diante do referido cenário, Oya (2013, p. 508 – tradução Journal of Agrarian Change e Globalizations e pelas
nossa) afirma haver uma espécie de “bola de neve” que conferências LDPI (Land Deal Politics Initiative), mas
parte das informações contidas nos bancos de dados de envolveria também uma posição diferenciada no sentido
Land Matrix e GRAIN, sendo utilizadas por pesquisadores de uma crítica qualitativa às aquisições de terras em
e ativistas que fazem reclamações por meio de grandes larga escala da parte de organismos internacionais,
números, geralmente apontando os casos dos grandes como a FAO/ONU (Organização das Nações Unidas para
“apropriadores” (grabbers) de terras. Isso, então, alimenta Agricultura e Alimentação) e o próprio Banco Mundial,
a imprensa que produz manchetes espetaculares para e uma compreensão da variedade de resistências
atrair seus leitores. A partir de então, as matérias se que o fenômeno provoca, pondo em questão o próprio
tornam fontes para livros e para a literatura acadêmica, entendimento dele como unívoco e consensual (HALL et
e assim por diante sem que ninguém reconheça que os al., 2015, p. 468).
“dados” são “fluidos, imprecisos e sujeitos a mudar após Segundo os pesquisadores que lideraram esta
verificação”. guinada de aprofundamento sobre as referidas questões
Corroborando a lista de problemas elencados, – principalmente, Saturnino M. Borras Jr., Ruth Hall,
Oya (2013) e Scoones et al. (2013, p. 472-475 – Ian Scoones, Ben White e Wendy Wolford –, tratava-
traduções nossas) concluiriam ter se constituído se de constituir uma plataforma e uma rede para gerar
uma “circularidade de referências”, “produzindo uma evidências sólidas por meio de pesquisas de campo
metadiscussão sobre negociações com terras bastante detalhadas que fizessem uma ponte entre o pensamento
descolada da verificação in loco”, na qual a dupla teórico-acadêmico com a militância, ao que se somava
contagem de negociações se soma a casos como o do a destinação de uma série de bolsas de estudos e
bizarro embasamento da pesquisa recorrentemente a organização de congressos. A motivação, desse
citada do Banco Mundial, apoiada basicamente num modo, era explicitamente a de se promover uma virada
levantamento de uso da terra nas mais diversas partes qualitativa:
do mundo feito por imagens de satélite. Trata-se, pois,
de um bom exemplo da escala “distanciada” própria de In this context, in-depth and systematic enquiry that
uma quantificação problemática que, no entanto, não se takes into account the political economy, sociology and
ecology of contemporary land deals is urgently needed.
restringia, como vimos, ao lado apologista do fenômeno. It is for this reason that the five of us came together and
A reiteração e a explicitação da existência desses launched the Land Deal Politics Initiative (LDPI) (…), all
of us are members of the editorial team of the Journal
problemas teriam, assim, levado a questionamentos of Peasant Studies (JPS). Thus there is solid basis
que colocariam a necessidade de uma revisão de for collaboration between LDPI and JPS on this team,
leading to fruitful initiatives such as this JPS Forum on
procedimentos de análise e de posturas políticas e
Global Land Grabbing (…). (BORRAS JR. et al., 2011, p.
éticas em relação ao fenômeno de land grabbing, a ponto
210)
de se apontar para o “fim da era do killer fact” e para a
necessidade de “uma nova fase da pesquisa sobre land
grab”, aprofundando o debate com a sociedade civil Numa primeira escala, pode-se observar um
(SCOONES et al., 2013, p. 480). aprimoramento qualitativo da própria compilação e
publicação de dados sobre aquisições de terras em larga
escala. O portal The Land Matrix, por exemplo, passaria
a indicar as fontes de suas informações e as discerniria
A virada qualitativa entre intenções de investimentos e investimentos
efetivamente concretizados, qualificando melhor, dessa
Tanto Oya (2013) como Scoones et al. (2013), mas maneira, os dados disponibilizados.
também White et al. (2012), apontam ter ocorrido uma Em outra escala, importantes organizações como o
mudança entre uma primeira leva de estudos sobre G8, o grupo das principais economias mundiais, por meio
land grabbing mais superficiais e apressados, entre do Banco Mundial, e a ONU (Organização das Nações
2008 e 2012, e uma segunda em que se nota uma Unidas), por meio da FAO, passariam a incorporar em
busca pelo aprofundamento de questões suscitadas documentos oficiais e diretrizes destinados a países

78
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates

e investidores particulares parte das preocupações no que tange aos números de aquisições de terras em
levantadas pelas pesquisas e pelos ativistas contra as larga escala no mundo, constitui um parâmetro também
grandes aquisições de terras2. interpretativo do fenômeno, implicando, como se sabe,
Para R. Hall, M. Edelman, S. Borras Jr., I. Scoones, B. incentivos a grupos econômicos e a formas estatais de
White e W. Wolford (HALL et al., 2015, p. 479), as bases regulação. Este Relatório (DEININGER et al., 2011, p. 76),
políticas e ideológicas que unem e dividem as fileiras de em sua essência, constituir-se-ia num influente guia para
atores sociais lidando com as negociações com terras “terras disponíveis” no mundo e concluía haver cerca de
foram se organizando em três formas de regulação 446 milhões de hectares não devidamente cultivados
diversas, visando: regular para facilitar; regular para em terras agricultáveis e não florestais, em áreas pouco
mitigar impactos negativos (e maximizar oportunidades) habitadas, com menos de 25 pessoas por km2.
ou regular para bloquear e reverter land grabs3. Constituía- A noção de “lacuna produtiva” (yield gap) era aí
se, desse modo, uma “corrida pela governança fundiária”, acionada para calcular o quanto se podia incrementar na
amparada por tais documentos acima e pelas pesquisas produção segundo as condições dadas e valendo-se das
feitas (MARGULIS; MCKEON; BORRAS JR., 2013). melhores condições técnicas disponíveis. Isso levava a
Porém, uma transformação na produção teórico- uma classificação de países segundo uma tipologia que
acadêmica sobre o fenômeno merece de nossa parte variava entre aqueles que teriam: a) pouca terra disponível
uma atenção mais detida, embora não deixando de e baixa lacuna produtiva (como China, Japão, países do
reconhecer as relações desta com as dimensões acima Oriente Médio etc.); b) terras disponíveis e baixa lacuna
aludidas. produtiva (como Brasil, Uruguai e Argentina e outros do
Leste Europeu); c) pouca terra disponível e alta lacuna
O Relatório do Banco Mundial, anteriormente aludido
produtiva (como alguns países da África e da América
2
Em 2012, o G8 lançou o documento New Alliance for Food Security and Central); e d) terras disponíveis e alta lacuna produtiva
Nutrition, colocando em sua agenda a necessidade de transparência e (como Sudão, Etiópia, Moçambique, Tanzânia e outros)
responsabilidade sobre investimentos em terras. Em maio do mesmo ano,
(DEININGER et al., 2011, p. 86-93). Com isso, ficava clara a
o Comitê de Segurança Alimentar da FAO lançou o Voluntary Guidelines
on Responsible Governance of Tenure of Land, Fisheries and Forest in the observação lógica de uma ação de governos e empresas
Context of National Food Security, saudado por Scoones et al. (2013, p. de (a) e ocasionalmente de (b), agindo sobretudo em (d),
475) como extraordinária conquista a exigir posicionamentos e respostas
de governos, de entidades da sociedade civil e de investidores. mas também em (b).
Outro documento importante foram os Principles for Responsible A positivação dessa ação, embora considerando a
Agricultural Investment that Respect Rights, Livelihood and Resources
(RAI), proposto pela FAO, lançado pelo Fundo Internacional para o fragilidade institucional e social da maioria dos países
Desenvolvimento da Agricultura (IFAD), pela Conferência das Nações tidos como alvo desta “corrida”, ficava explícita nas
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e pelo Banco
diversas formulações sobre os benefícios a que o
Mundial. Elencando sete princípios, o documento foi criticado, por um
lado, da parte de governos interessados seja em vender ou em comprar investimento de capitais poderia levar, sobretudo na
terras, por não ser suficientemente inclusivo, e, por outro lado, da parte mitigação de uma crise alimentar em potencial, mas
de movimentos e organizações sociais, por se constituir como espécie
de checklist para validar investimentos (DE SCHUTTER, 2011, p. 254). também na alegada geração de empregos ou na de
Os dois documentos foram considerados (HALL et al. 2015, 479) como renda por meio da compra ou do arrendamento de terras,
apresentando parâmetros internacionais diversos para os agentes
supostamente beneficiando a população (DEININGER
envolvidos nos debates sobre land grabbing. Enquanto o primeiro foi
tratado como “o mais importante fundamento global em relação aos et al., 2011, p. 71). Enquanto parâmetro interpretativo
direitos à terra e seus recursos naturais”, o segundo aparecia como “um para o fenômeno de land grabbing, o Relatório do Banco
parâmetro para a autorregulação dos investidores”.
A eles se somaram os Principles for Responsible Investment in Agriculture Mundial seria central também num segmento de uma
and the Agro-food System (RIA), pela FAO, em 2014, que seguiu a adoção literatura, tornando-se alvo recorrente da crítica da
do Voluntary Guidelines e explicitamente se contrapunha como alternativa
produção teórica que aqui se quer abordar.
ao RAI patrocinado pelo Banco Mundial. O histórico do Banco Mundial
em estimular países em desenvolvimento a aceitar investimentos Reforçando-a e se embasando na supracitada
estrangeiros, diminuindo protecionismo e fiscalização, corroboraria as
suspeitas da militância e de pesquisadores, mas, por outro lado, a adoção
virada qualitativa, O. De Schutter (2011, p. 251-252)
de um discurso preocupado com as implicações dos investimentos que observava, desse modo, um pressuposto inicial comum
passam por aquisições em larga escala de terras representava, de algum na maioria das análises sobre land grabbing a apontar
modo, uma reação dessas instituições à primeira leva de pesquisa e de
reclamações acerca do fenômeno de land grabbing. o problema do fenômeno como localizado na falta de
3
Por exemplo, o relator da ONU sobre direito à alimentação, O. de Schutter regulação dos Estados fracos dos países receptáculos
(2011, p. 254) afirmaria que, à medida que o debate sobre land grabbing de tais investimentos, sendo eles em geral localizados
girava em torno de sua regulação, tratava-se de uma insuficiente posição
aparentemente neutra, possivelmente favorável aos investimentos no continente africano. Ainda, ao abordar o contexto
em aquisição de terras em larga escala. Insuficiente posição porque, atual, esses estudos apontavam, segundo o autor, como
por outro lado, ele defendia uma análise aprofundada dos custos de
causa do fenômeno a alta dos preços de alimentos em
oportunidade subjacentes, uma vez que tais investimentos implicam um
modelo de produção em larga escala para a exportação em detrimento 2007/2008, indicando como os principais promotores
da agricultura familiar e das populações locais e sua segurança alimentar. das aquisições de terra em larga escala os governos e
empresas da China, da Coreia do Sul, dos países do Golfo

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Pérsico e da Índia. Tais pressupostos eram sustentados (BORRAS JR. et al., 2012, p. 403).
por provas produzidas por ONGs e instituições de Desse modo, ressaltamos aqui que a referida “virada
pesquisa, incluindo GRAIN e Land Matrix. qualitativa”, observada tanto na própria coleta e na
Independente da descrição e da averiguação de onde sistematização de dados como na preocupação de
o fenômeno se dava, a perspectiva crítica que passa a organismos internacionais e na política de um modo
se impor irá questionar alguns pressupostos como os geral, estava referenciada num e perpassava sobretudo
encontrados no Relatório do Banco Mundial, acima citado. um aprofundamento teórico e uma ampliação de
Como bem sintetiza a leitura de White et al. (2012, p. 632), a pesquisas empíricas críticas sobre o fenômeno de
crítica compartilharia a compreensão de ausência de três aquisições em larga escala de terras ao redor do mundo.
fundamentos naquela leitura: a) de que as medidas de Os termos desse aprofundamento teórico e empírico é
uma produção “em potencial” levam a quadros irrealistas que estão postos em questão e merecem ser mais bem
das condições particulares de produção, inflando as compreendidos.
expectativas; b) de que a “disponibilidade” de terras
sugere não haver uso e reclamações ou disputas sobre
aquelas terras; e c) de que a ideia da introdução de uma
Definindo o fenômeno
moderna agricultura ignora o passado de políticas de
modernização da agricultura amplamente fracassadas
ou abandonadas. A própria definição de land grabbing seria alvo
A crítica à positivação de land grabbings, tratados de controvérsia, tendo sido, ao contrário, até então
ali como meras aquisições em larga escala de terras, aparentemente parte de certo consenso preliminar da
passaria, no entanto, pelo questionamento das supostas primeira fase de estudos.
benesses trazidas pelo investimento de capital. T. M. Segundo o dicionário on-line Merriam-Webster, land
Li (2011, p. 281-285) revisaria os pontos tratados no grabbing é “geralmente uma mudança, uma aquisição de
Relatório, indicando a pouca probabilidade de que a propriedade (como terra ou direitos de patente), muitas
população local venha de fato a se beneficiar seja da vezes por fraude ou pela força”. Já o dicionário on-line
venda ou aluguel de suas terras, seja do assalariamento, Cambridge reitera uma dimensão da noção acima como
colocando em dúvida que o modelo produtivo do “ato de tomar uma área de terra pela força, por motivos
agronegócio, que se pressupunha ser instalado por meio militares ou econômicos”, mas amplia a possibilidade do
de tais aquisições, levasse à alegada redução da pobreza. seu entendimento como “ato de tomar o controle de uma
Por fim, S. Borras Jr., C. Kay, S. Gómez e J. Wilkinson parte do mercado muito rapidamente ou forçosamente”.
(BORRAS JR. et al., 2012) corroboram a existência de duas Se a expansão rápida do domínio se reitera em todas as
fases na produção sobre as aquisições de terras em larga definições acima, o objeto da dominação (terra, patentes
escala, sintetizando os movimentos de aprofundamento ou parte de mercado), a maneira de proceder (por fraude,
teórico e empírico sobre o tema. Segundo os autores, força militar ou força econômica) ou os motivos (militares
passou-se a alargar o escopo da verificação de ou econômicos) seguem passíveis de variação.
existência do fenômeno para áreas da antiga União Quanto à tradução do termo land grabbing para
Soviética, para o Sudeste Asiático, para a América Latina o português, S. Sauer e S. Borras Jr. (2016, p. 12-13)
e para países do Norte. Outros estudos, citados no artigo, sugerem o termo “apropriação de terras” pela sua
teriam apontado que a busca pelo controle sobre a terra abrangência e o leque de possibilidades interpretativas
derivava, principalmente, de uma busca pelo controle que com ele se abre, para se evitar as restrições inerentes
das cadeias globais de valor, passando-se inclusive a a termos como “grilagem”, “estrangeirização de terras”
se teorizar sobre control grabbings, algo semelhante e “expropriação”. No entanto, o uso dessas variantes
a críticas pretéritas sobre práticas monopolistas ora tem sido recorrente, expressando a disputa pela sua
reiteradas. A busca do controle sobre as reservas de interpretação.
água, sobre reservas florestais (Green grabbing) e sobre A caracterização em si de land grabs em geral
os suprimentos de trabalhadores também representaram dispensaria, em certa medida, qualquer tratamento mais
importantes desdobramentos das pesquisas. Mudanças sistemático e profundo dentro de um quadro teórico
nos regimes alimentares e na disputa mais ampla entre como o do marxismo. Especificamente abordando um
agricultura de pequena e larga escala se somaram a estudo da FAO sobre land grabs em 17 países da América
perspectivas que incluíam o conflito e a violência e Latina e do Caribe, conduzido por S. Gómez (2011), via-
aquelas que se originavam de análises mais amplas se, por exemplo, uma definição do fenômeno como sendo
sobre o desenvolvimento do capitalismo global de aquisições de mais de mil (1.000) hectares, com o
contemporâneo e a convergência de uma multiplicidade envolvimento direto de governos estrangeiros e com
de crises: alimentar, energética, climática e financeira impacto negativo na soberania alimentar. Atendo-se a

80
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates

essas três condições básicas, o rigor da definição levava países de renda intermediária (MICs). A ascensão de
a FAO a concluir só haver land grabbing em dois dos 17 lavouras temporárias de uso variado (flex crops) entraria
países estudados: Brasil e Argentina. neste bojo representando a possibilidade de variar
Borras Jr. et al. (2012, p. 404-405) sugerem, por sua o investimento produtivo feito conforme as novas e
vez, uma definição que não seja nem tão restritiva nem dinâmicas necessidades do mercado e suas crises.
muito genérica, indo além da perspectiva de análise de Essas características amplas e interconectadas,
impactos apenas no sentido de conduzir a uma crise a compor um contexto novo, viriam a conformar uma
alimentar, mas evitando incluir na definição as formas diferenciação dos land grabs atuais em relação a
cotidianas de expropriação ou espoliação (dispossession) movimentos anteriores de controle sobre a terra. Deriva
por diferenciação, seja num sentido leninista ou num daí a definição dos autores, que possibilitaria repensar
chayanoviano. Para evitar tais “problemas”, os autores o estudo da FAO, alargando os critérios de análise e
mobilizam a ideia de três aspectos definidores decisivos permitindo ver a ocorrência do fenômeno não em apenas
e interligados dos land grabbings contemporâneos. dois dos 17 países estudados, mas em 12 da América
O primeiro é a dimensão do poder envolvida no controle Latina e do Caribe:
da terra e de outros recursos a ela associados, como a
água, para extrair benefícios dele. Essa subordinação In short, contemporary land grabbing is the capturing of
control of relatively vast tracts of land and other natural
do fenômeno de land grabbing ao de control grabbing, resources through a variety of mechanisms and forms
no entanto, particulariza-se pela análise das mudanças involving large-scale capital that often shifts resource
nas formas de uso da terra, em geral associadas ao use to that of extraction, whether for international
or domestic purposes, as capital’s response to the
processo, envolvendo relações políticas de poder que não convergence of food, energy and financial crises,
necessariamente implicam a expulsão de camponeses climate change mitigation imperatives and demands
for resources from new hubs of global capital. (BORRAS
de suas terras. Nessa dimensão, os autores estão
JR. et al., 2012, p. 405)
explicitamente influenciados pelas propostas de Peluso
e Lund (2011).
Em segundo lugar, é necessário, de acordo com os Vê-se, portanto, uma série de desdobramentos que
autores, considerar a escala dos processos de aquisições recorrentemente se remete às diversas dimensões de
de terra e há uma distinção a ser feita entre a escala das crise, impulsionando processos e investimentos que
aquisições de terras propriamente ditas e a escala do estão na base dos land grabbings, aqui postos em
capital envolvido. Inserindo essa dimensão, compreende- questão. Retomaremos essa relação entre a qualificação
se que há várias formas de se controlar a terra: compra, dos fenômenos e as narrativas de crise na seção seguinte.
arrendamento, concessão, contrato de fornecimento,
Parece-nos fundamental, porém, reconhecer antes
conservação florestal etc. Ademais, evita-se, assim,
uma origem do termo em questão num referencial
considerações meramente quantitativas sobre a escala
crítico que permite aprofundar a compreensão sobre os
das terras adquiridas, que dizem pouco ou nada sem a
fenômenos empíricos normalmente descritos4. O termo
devida explicação sobre o seu uso produtivo, de modo
que uma mesma grandeza de investimento de capital 4
White, Borras Jr, Hall, Scoones e Wolford (WHITE et al., 2012, p. 627-
pode se materializar, por exemplo, em 300 hectares de 630) retomariam a questão, apontando a existência de seis tendências
vinhedos altamente valorizados ou em 500 mil hectares a caracterizar o movimento recente de land grabbings. Com elas, os
termos da síntese acima ficam mais claros ao se remeter a fenômenos
de pastagens. A esta altura, a retomada inicial dos empíricos abarcados nas tendências.
“números” de land grabbing que expusemos mais acima A primeira tendência seria a antecipação global da insegurança alimentar,
motivada pela mudança na dieta de países populosos como a China e
adquire importante qualificação: “Our framework brings a Índia e consolidando uma busca por suprir a demanda crescente de
capital back into the analysis of land grabs, questioning alimentos. A segunda seria derivada da volatilidade do preço do petróleo,
the current prevalence of land measurement-oriented levando a uma busca por uma “segurança energética”, na qual a chamada
“revolução dos biocombustíveis” seria reposta a uma crise energética
accounting” (BORRAS JR. et al., 2012, p. 404). em potencial. Reagindo a essas mudanças e tendências, haveria a
integração vertical do agronegócio a produzir lavouras flexíveis, variando
O terceiro aspecto a balizar a conceituação proposta
a sua destinação seja para a produção de alimentos, seja de rações ou
de land grabbings seria sua compreensão como parte mesmo de combustíveis. A terceira tendência viria dos novos imperativos
das estratégias da dinâmica de acumulação do capital, ambientais, que fomentaram uma espécie de “mercado ambiental”
e um discurso de separação entre povo e natureza, que os autores
respondendo à convergência de múltiplas crises: consideram como uma “neoliberalização da natureza”. Daí adviriam
alimentar, energética, climática e financeira. De um lado, novas formas de mercantilização e novas formas de governança,
levando a medidas que vão desde o fomento a reservas florestais até
o investimento em terras seria uma nova e mais segura
mecanismos de compensação pela emissão de gases tóxicos e danosos,
oportunidade e, de outro, seria motivado pelas crescentes constituindo os chamados Green grabs. A quarta tendência de ascensão
necessidades dos mais novos conglomerados do de mecanismos de acumulação viria do estabelecimento de corredores
extensivos de infraestrutura e de Zonas Econômicas Especiais. Ambos
capital mundial, especialmente no bloco das principais vêm sendo financiados por organismos internacionais (BID, FMI, Banco
economias emergentes (BRICs) e em alguns poderosos Mundial) e mesmo por países e investidores, expandindo e melhorando
a capacidade de circulação das mercadorias agrícolas e minerais e

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land grabbing, segundo White et al. (2012, p. 621), teria (inclusive de recursos naturais); a monetização da
troca e a taxação, particularmente da terra; o comércio
sido cunhado por K. Marx (1985, I, cap. 24), no capítulo de escravos; e a usura, a dívida nacional e em última
d’"A assim chamada acumulação primitiva”, que atribuiria análise o sistema de crédito como meios radicais de
à apropriação privada de largas porções de terra o acumulação primitiva. O Estado, com seu monopólio
da violência e suas definições da legalidade, tem papel
primeiro passo na criação da agricultura em larga escala. crucial no apoio e na promoção desses processos (...).
Desse modo, há que se reter que a formulação original Todas as características da acumulação primitiva que
Marx menciona permanecem fortemente presentes na
de Marx (1985) atribuía ao fenômeno ser fundamento geografia histórica do capitalismo até os nossos dias.
da monopolização dos meios de produção, por meio da (HARVEY, 2013, p. 121)
expulsão de populações locais, ocasionada sobretudo
pelos cercamentos (enclosures) de terras comunais,
produzindo simultaneamente a propriedade fundiária e o Entretanto, o quanto a literatura sobre land grabbing
trabalhador livre. Como reconheceria J.-P. de Gaudemar retoma esses debates do marxismo e da questão agrária
(1977), constituía-se assim a dupla liberdade do ou como se afasta deles é algo a se pensar. Na medida
trabalhador: livre negativamente das possibilidades de em que se busca a especificidade do fenômeno atual,
se autorreproduzir na terra; e livre positivamente para ir não são muitos os autores que retomam essa história
e vir, escolher onde e com quem trabalhar, ainda que não interpretativa crítica. Alguns, porém, permitem tal
tendo a liberdade de escolher deixar de trabalhar. Para caminho.
Gaudemar (1977), esse seria o processo de mobilização Por exemplo, S. Sauer e S. Borras Jr. (2016, p. 13-
do trabalho. Para a literatura marxista em geral, tratava- 15) retomam esse debate, reconhecendo a importância
se, essencialmente, de um processo de expropriação. da definição abrangente de Harvey (2013) como
No entanto, a acumulação primitiva que colocaria, fundamento para o land grabbing e para green grabbings.
por meios diversos e violentos, a extração de mais- S. Sassen (2010; 2013) igualmente reorienta suas
valia como “deus único” no altar do capitalismo (Marx, pesquisas anteriores (ver Sassen, 1990) sobre a política
1985) veria seus métodos de aplicação serem repetidos externa norte-americana implicando fluxos imigratórios
para realidades outras, além do caso inglês tratado por nas décadas de 1970 e 1980 para práticas atuais de
Marx no referido capítulo. À reiteração de processos expulsão por meio de land grabbings, como fenômenos
semelhantes de constituição da propriedade privada da da acumulação por despossessão. N. Peluso e C. Lund
terra e da mobilidade do trabalho, D. Harvey chamaria de (2011, p. 667-668) ainda encontram na literatura clássica
“acumulação por espoliação” (2013, p. 121), retomando sobre a questão agrária, desde Marx, a constância de um
a linha de pensamento de R. Luxemburgo acerca da debate centrado em torno do controle da terra. Nessa
constante necessidade do capitalismo de incorporar compreensão, land grabbing é a forma primordial de se
elementos “externos” à sua reprodução ampliada, ou obter o controle da terra e de se promover a exclusão
ao mercado. Nesse argumento, land grabbing seria de outros de seu uso, sendo, entretanto, modificado
forma recorrente de se mitigar os processos de crise do por contextos em transformação e por novos atores e
capitalismo. matrizes de interpretação dos fenômenos. As “novas
fronteiras do controle da terra” seriam tema de suas
análises visando à particularidade de land grabs atuais.
Um exame mais detido da descrição que Marx faz
da acumulação primitiva revela uma ampla gama de Tem-se, com isso, uma possível interação da literatura
processos. Estão aí a mercadificação e a privatização
da terra e a expulsão violenta de populações
atual sobre land grabbing, a partir de sua “virada
camponesas; a conversão de várias formas de direitos qualitativa”, com os fundamentos de uma explicação
de propriedade (comum, coletiva, do Estado etc.) em marxista sobre o controle fundiário. Procuraremos
direitos exclusivos de propriedade privada; a supressão
dos direitos dos camponeses às terras comuns desdobrar essa interação a partir da constatação de
[partilhadas]; a mercadificação da força de trabalho “narrativas de crise” orientando tal literatura e propondo
e a supressão de formas alternativas (autóctones)
de produção e consumo; processos coloniais,
um debate sobre os fundamentos da crise no interior da
neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos matriz interpretativa marxista, concluindo este artigo
com o posicionamento de D. Harvey em relação à teoria
causando impactos significativos nos mercados de terra, o que tem marxiana da crise, assim como com a apresentação de
levado a grandes conflitos fundiários. A quinta tendência seria a criação
de novos instrumentos financeiros, visando reduzir os riscos e permitindo uma problematização acerca de tal posicionamento.
rentabilidade a investidores a partir da preocupação disseminada de
que a comida e os combustíveis (mas também os recursos naturais
em geral) estão acabando. Fundos de pensão e private equities são os
principais atores nesse âmbito, diversificando em meio à crise financeira
seus portfólios em terras e promovendo uma agricultura baseada no Narrativas de crise
modelo produtivista do agronegócio. Por fim, uma série de regras,
regulações e incentivos da comunidade internacional têm se posicionado
ambiguamente em relação às preocupações com as crises alimentar, A partir de “narrativas de crise” é que surgiram
ambiental e energética, reiterando o incentivo ao desenvolvimento mas
por vezes também apoiando a agricultura familiar e pequenos produtores.
discursos como aqueles presentes, por exemplo, no

82
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates

Relatório do Banco Mundial, buscando na ocupação capitalismo e como forma de mitigação da mesma,
produtiva de “terras marginais, vazias e disponíveis”, a acionada pelos próprios capitais em parceria com
solução para elas: instâncias dos Estados, igualmente em crise. O
poder territorial sobre lugares, pessoas e espaços
The justification for land investments on a large scale sociopolíticos se somaria ao poder capitalista do controle
is often presented around a series of “crisis narratives”, do dinheiro e dos processos de acumulação. Embora
linked to growing scarcity and impending catastrophe.
The underlying assumption is that the solution to such reconheça a importância da formulação de Harvey, Brent
food, energy and climate “crises” lies in capturing the defende, todavia, a busca das mediações e tensões na
potentials of so-called “marginal, empty and available”
legitimação de práticas por meio do Estado para facilitar
lands across the globe. (WHITE et al., 2012, p. 631)
a acumulação de capital5.
A maneira como Harvey trataria o “ajuste espacial”
Outras narrativas de crises, no entanto, não compõem
como mitigação da crise é algo a ser explorado, dentro
o repertório do estímulo às aquisições de terras em
do debate sobre as “narrativas de crise”. Essa crise seria,
larga escala. Pelo contrário, a alusão a elas serve para
para o autor, aquela oriunda da sobreacumulação de
inverter a ordem dos fatores e evidenciar que o modelo
capitais, na forma de excedentes de capital e de trabalho.
de produção em que a apropriação de largas porções de
A “acumulação por espoliação”, privatizando terras e
terras é pressuposta e reiterada é que deve ser pensado
bens comuns, permitiria, então, liberar “ativos (incluindo
como causa das crises, e não exatamente sua solução.
força de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns
Assim, os próprios White et al. (2012, p. 624) apontam casos, zero)” para que o capital sobreacumulado possa
formas contemporâneas de transição agrária que se apossar deles e dar-lhes um uso lucrativo:
envolvem investimentos e deslocamento ou expropriação
com expulsão da população sem reabsorver o seu O que teria acontecido com o capital sobreacumulado
trabalho em indústrias ou em qualquer setor da economia. nos últimos 30 anos sem a abertura de novos
A degradação social, dentro dessa “crise agrária ao redor terrenos de acumulação? Dito de outro modo, se o
capitalismo vem passando por uma dificuldade crônica
do mundo” (2012, p. 627), viria da pobreza e da falta de de sobreacumulação desde 1973, então o projeto
alternativas para a população. neoliberal de privatização de tudo faz muito sentido
como forma de resolver o problema. (HARVEY, 2013, p.
T. M. Li (2011, p. 295) seria ainda mais enfática em 124)
abordar a existência de uma “crise do trabalho”, na qual
a expropriação, ocorrendo quando ao capital interessa Essas outras “narrativas de crise” (crise agrária,
apenas a terra e não o trabalho, implica, no mais das crise do trabalho e crise do capital) permitem um olhar
vezes, falta de emprego para os expropriados, sobretudo diferenciado para o fenômeno, que não é, desse modo,
no cenário de generalização do uso de tecnologias positivado como saída para o problema, mas como
poupadoras de trabalho na indústria, na agricultura e na gerador de novas ou aprofundando crises sociais e
mineração, de maneira que “até trabalhos ruins estão ambientais. Conforme expusemos, o recurso à teorização
escassos”. Nesse cenário de falta de apoio do Estado, de D. Harvey pela literatura recente sobre land grabbing
“até uma pequena fatia de terra é uma rede de segurança sugere um diálogo desta com a vertente marxista de
crucial”. compreensão da expansão do capitalismo e das suas
No entanto, a série de casos tratados por Hall et al. crises. Por isso, passaremos a nos aprofundar nesse
(2015) permitiriam notar que a aparente melhor condição referencial como meio de promover um aprofundamento
de reprodução social daqueles que permanecem na do debate em torno das crises e, assim, repensar como
terra não poderia ser tratada de modo unívoco. Assim, a interpretar o fenômeno de land grabbing. Concluiremos,
discussão sobre os “termos de uma integração adversa”
pode, retomando a terminologia de Li (2011), mostrar 5
Quem igualmente se escora na formulação de D. Harvey (aceitando-a
mais do que Brent, no entanto) é S. Sassen (2010, p. 26-27), sobretudo
que, mesmo quando o capital quer tanto a terra quanto na derivação do argumento acima, que aponta como mecanismo de
o trabalho, as condições de fornecimento de pequenos mitigação da crise a injeção de matérias-primas baratas no sistema, de
produtores pode ser igualmente crítica, havendo um lado, e a desvalorização dos ativos de capital e de força de trabalho
existentes, de outro (HARVEY, 2013, p. 124-126).
situações em que a expropriação e o assalariamento Para Sassen (2010, p. 27-28), as “lógicas de extração” estariam expandindo
podem aparecer como alternativas até desejadas por seu domínio no capitalismo avançado. Um exemplo disso teria sido a
política de modernização de países do Terceiro Mundo no pós-guerra,
eles. levando a um endividamento crônico destes. Com a crise das dívidas
Por fim, é Z. W. Brent (2015, p. 672) que retoma a de inícios dos anos 1980, o serviço das dívidas teria sido especialmente
perverso para países africanos e da América Latina, numa proporção em
formulação de D. Harvey sobre o “ajuste espacial”, como relação ao PIB muito superior ao que foi cobrado na reconstrução de
forma de expansão da acumulação por espoliação, países como a Alemanha e o Japão, nos anos 1940 e 1950. Sassen, com
isso, observa um uso da dívida primeiro como fator de disciplinamento
para requalificar o fenômeno de land grabbing como
e depois como desvalorização dos ativos desses países, para serem
uma reestruturação territorial, motivada pela crise do reincorporados pelos capitais dos países credores, num mecanismo de
“acumulação por espoliação” que incluiria práticas de land grabbing.

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portanto, este artigo com uma consideração teórica sobre recente8.


a crise do capital e suas relações com a apropriação de Apresentemos brevemente os termos da seção
terras. escrita por K. Marx e editada por F. Engels, a começar
por seu título. Veja-se, a princípio, que a tão criticada
formulação de uma “lei” será aí articulada à noção nada
mecanicista de “tendência”, de maneira a ressaltar a
Aprofundando as “narrativas de crise” para
contradição de um processo que produz ou pode vir
repensar o land grabbing
a produzir a sua própria crise (PRADO, 2014; MELLO,
2012). Essa tendência, indicando um caráter crítico da
A teoria marxiana da crise reprodução ampliada do capital, parece se originar, para
Marx (1986), dos efeitos da própria concentração e da
A ideia de que a reprodução social capitalista tende a centralização do capital, motivados pela concorrência
conduzir à crise já estava presente na Economia Política e acelerados pelo sistema de crédito. No entanto, na
clássica, embora com tratamento distinto da maneira recepção marxista ao longo do século XX, ela pôde
sistêmica e inerente ao movimento do capital, tal qual ser tratada em seus termos estritos, a ponto de ser
Marx a elabora. R. Rosdolsky (2001, p. 315-319), por criticada contemporaneamente pelo próprio D. Harvey
exemplo, observa a construção ricardiana de uma teoria (2015a; 2015b) como equivocadamente “monocausal”,
da crise que contrapõe o uso produtivo da natureza ao em análise confrontada por M. Roberts (2014) e por A.
seu uso industrial6, não derivando da própria dinâmica Kliman (2015).
de produção industrial a imanência da queda da taxa de Por sua vez, o próprio Marx não se furtou a apresentar
lucro. Retomando os apontamentos metodológicos de possíveis e efetivas causas a contrariar aquela tendência
K. Marx (2005), o autor relaciona a teoria ricardiana ao de queda da taxa de lucro: “Deve haver influências
pressuposto de T. Malthus acerca da queda tendencial contrariantes em jogo, que cruzam e superam os
da fertilidade da terra no seu uso agrícola, além da falta efeitos da lei geral, dando-lhe apenas o caráter de uma
de distinção entre taxa de mais-valia e taxa de lucro, algo tendência (...)” (Marx, 1986, p. 177). No capítulo em
de que Marx (1986) viria a se ocupar mais no Livro III d’O questão (MARX, III, t. 1, 1986, cap. 14), ele cita seis causas
capital. Na seção terceira do Livro III daquela obra é que contrariantes: a) Elevação do grau de exploração do
encontraremos o debate sobre a lei da queda tendencial trabalho; b) Compressão do salário abaixo de seu valor;
da taxa de lucro (Marx, 1986, III, t. 1, cap. 13), que c) Barateamento dos elementos do capital constante;
localizamos como sendo o fundamento central da teoria d) Superpopulação relativa; e) Comércio exterior; e f)
da crise na obra de K. Marx7 e alvo de uma controvérsia Aumento do capital por ações.
A síntese da lei da queda tendencial é, portanto, logo
6
Em David Ricardo (1982, p. 65-75), a expansão da necessidade social por
mais mercadorias conduziria ao uso de terras de pior qualidade para a “bombardeada” teoricamente, pelo próprio autor, com
produção adicional de alimentos para a população e de matérias-primas diversas questões que compõem contratendências
para a indústria, evidenciando uma produtividade gradativamente menor
que, de um ponto de vista como o de M. Heinrich
da agropecuária. Isso acarretaria aumento da renda da terra, dado o
aumento dos diferenciais de produtividade entre as terras; além disso, (2012), poderiam levar à conclusão de se tratar de uma
forçaria um aumento da quantidade de trabalho necessário à produção negação da lei ou de um autor incoerente. Por outro
das mercadorias consumidas pelos trabalhadores e consequente pressão
de aumento dos salários e redução da taxa de lucro, numa tendência de o lado, poder-se-ia argumentar ainda sobre a existência
sistema produtivo ser conduzido a certo “estágio estacionário”. de uma “necessidade relativa” da primeira tendência,
7
Antes de chegar até a concepção da crise na totalidade da reprodução
capitalista, tal como abordada no terceiro livro daquela obra de Marx, de pagamentos levar à queda em série de compromissos firmados
devemos indicar que a possibilidade da crise já se afirmava nas suas (MARX, I, t. 1, 1985, cap. 3).
análises anteriores. No primeiro capítulo do Livro I d’O capital, ao tratar No que se refere à transformação do dinheiro em capital, a compra de
da forma mercadoria, Marx (1985) já apontava para uma relação inerente força de trabalho e seu uso produtivo apareceria, no decorrer da análise
entre forma relativa e forma equivalente, deixando entrever uma possível do Livro I, como condição para a valorização do capital, pela extração
distinção entre os momentos da contradição interna entre valor de uso de mais-valia. Apareceria também como a característica fundamental da
e valor. Entre outras questões, indicava-se aí a possibilidade de não se reprodução ampliada do capital (ver Marx, I, t. 2, 1985, caps. 20 a 22),
consumar a realização da mercadoria, não se tornando ela valor de uso de maneira a evidenciar a centralidade da valorização em detrimento
para outro que não aquele que a produziu. De modo semelhante, no da mera produção de valores de uso, que lhe aparece como acessória,
desdobramento que exterioriza a antítese interna (entre valor de uso e segundo um entendimento que leva à conclusão de o capital se alçar
valor) da forma-mercadoria numa antítese externa entre mercadoria e como “sujeito automático”, subordinando aqueles que personificam tanto
dinheiro, os atos de compra e de venda implicam uma possibilidade da o trabalho como o próprio capital (MARX, I, t. 1, 1985, cap. 2).
não realização do valor contido na mercadoria. Porém, essa possibilidade 8
A título de breve apontamento, observamos que Harvey (1982) o
de crise, ainda aí analisada do ponto de vista de uma produção e consideraria como o primeiro corte da teoria da crise para posteriormente
circulação individualizada, adquiriria contornos efetivamente mais (HARVEY, 2015a; 2015b) a criticar; Heinrich (2013) o trata como
abrangentes na análise do dinheiro como meio de pagamento. Nesta, a uma inconsistente formulação editada por Engels e posteriormente
distensão temporal entre os momentos de compra e venda se alargava, abandonada por Marx; Kliman et al. (2013), Carchedi e Roberts (2013) e
abrindo caminho para os posteriores desenvolvimentos teóricos Kurz (2015) se dedicariam contra a posição de Heinrich; Kliman (2015) se
marxianos sobre o crédito e evidenciando a formação de uma cadeia de esforçaria em provar que Harvey (2015a) se distancia do próprio Marx;
interdependência, cada vez maior, entre compradores e vendedores (ou e Kurz (1995) constrói sobre este mesmo fundamento sua formulação
credores e devedores), a aumentar o potencial de uma falha na sequência sobre a ascensão do capital fictício, criticada por Prado (2011).

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Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates

não se impondo necessariamente na realidade, como da taxa de lucro são apenas formas específicas em
que se expressa de maneira capitalista a crescente
na proposição de leitura de J. Grespan (2012, p. 197). produtividade do trabalho. (MARX, III, t. 1, 1986, p. 182)
Ou, ainda, de um teorema superficial sobre a tendência
de crise que se origina de uma tendência estrutural
profunda de aumento da composição orgânica do capital,
sugerindo a possibilidade de uma realização futura da O que se tem, com isso, é um processo que pode
“lei”, conforme a sugestão de M. Postone (2008, p. 90- aparecer como “crescimento” ou “expansão” do capital
91). ou progresso (técnico), mas que, no fundo, tende a
representar uma reiteração de uma crise fundamental do
Vejamos, todavia, a lógica interna da formulação
capital, a estreitar a sua base de extração de mais-valia,
marxiana. O aumento da composição orgânica dos
na proporção agigantada de trabalho objetivado que não
capitais representa uma diminuição relativa do capital
gera por si nova mais-valia.
variável (v) sobre o capital total (C), incorrendo numa
diminuição também relativa da mais-valia extraída (m) Por outro lado, pela equalização da taxa de lucro, os
desse capital variável, e assim levando à queda da taxa capitais maiores, como maiores “acionistas” da classe
de lucro (m/C). capitalista de determinado setor, aparecem como tendo
direito de reclamar uma maior parcela na divisão do
lucro médio, exatamente por sua magnitude. O aumento
A tendência progressiva da taxa geral de lucro a cair
é, portanto, apenas uma expressão peculiar ao modo da composição orgânica do capital aparece, ao capital
de produção capitalista para o desenvolvimento individual, pois, como vantagem na competição com
progressivo da força produtiva social de trabalho. (...)
Como a massa de trabalho vivo empregado diminui outros capitais por maiores massas de lucro10, embora
sempre em relação à massa de trabalho objetivado, a mesma concorrência tenda a equiparar as taxas de
posto por ele em movimento, isto é, o meio de
lucros, reduzindo-as. A mobilidade do capital e sua
produção consumido produtivamente, assim também
a parte desse trabalho vivo que não é paga e que se centralização, na análise marxiana, agiriam no sentido
objetiva em mais-valia tem de estar numa proporção de reduzir as taxas de setores altamente lucrativos
sempre decrescente em relação ao volume de valor
do capital global empregado. Essa relação da massa e de aumentar aquelas de setores saturados, menos
de mais-valia com o valor do capital global empregado atraentes, por meio da expulsão de capitais face à
constitui, porém, a taxa de lucro, que precisa, por isso,
baixa rentabilidade. Por outro lado, mecanismos de
cair continuamente. (MARX, III, t. 1, 1986, p. 164)
controle de propriedade privada visariam monopolizar
tecnologias, diferenciais de fertilidade e localização de
Por se tratar de uma formulação em torno de uma solos e vantagens das mais diversas.11 O quanto terão
relação entre os componentes que atuam sob a forma capacidade, no longo prazo, para minimizar a queda da
do capital, a primeira questão que se interpõe, e que taxa de lucro, ou o quanto essa capacidade se mostrará
contribuiu sobremaneira para posteriores divergências pontual é uma importante questão a ser pensada.
interpretativas, diz respeito ao fato de que o número de É por essa chave, portanto, que a análise de K. Marx
trabalhadores empregados e inclusive a mais-valia deles permite compreender a contínua centralização do capital
extraída pode e deve aumentar, em termos absolutos, e a monopolização em diversas esferas produtivas
sem anular o determinante para a lei tendencial de que e do mercado como “guerra” pelas massas de lucro,
estejam decrescendo do ponto de vista do capital global face à tendência imanente de queda da taxa de lucro.
empregado9. Desse modo, o que é mais importante Essa formulação permite dar fundamentação teórica
ressaltar de toda essa passagem é a maneira como a nova ao quadro de um regime alimentar corporativo e
crise fundamental parece decorrer, contraditoriamente, policêntrico (MCMICHAEL, 2014), ou de agigantamento
do desenvolvimento das próprias relações sociais de dos conglomerados que agem na agricultura (BOECHAT,
produção: 2015) incluindo em suas práticas novas modalidades de
land grabbing. Apresentamos, com isso, a possibilidade
A taxa de lucro não cai porque o trabalho se torna mais de um aprofundamento das “narrativas de crise”, que
improdutivo, mas porque se torna mais produtivo.
Ambas, elevação da taxa de mais-valia e a queda envolve uma consideração sobre o entendimento de
uma “crise imanente” do capital a motivar práticas
9
“O número dos trabalhadores empregados pelo capital, portanto a massa
absoluta de trabalho posta em movimento por ele, portanto a massa de “espoliação” ou de “ajuste espacial”. Compreender
absoluta de mais-trabalho absorvida por ele, portanto a massa de mais-
valia produzida por ele, portanto a massa absoluta de lucro produzida Também este argumento, por assim dizer, empiricista pode
10

por ele pode, por conseguinte, crescer, e crescer progressivamente, comprometer uma aceitação do fundamento da teoria da crise, conforme
apesar da progressiva queda da taxa de lucro. Isso não apenas pode observa Kliman (2007).
ser o caso. Tem de ser o caso – descontadas oscilações transitórias 11
A análise dos processos de monopolização dos capitais, associados
– na base da produção capitalista” (MARX, III, t. 1, 1986, p. 167). Este é ao capital bancário, promovendo a constituição de um capital financeiro,
outro ponto controverso que, de acordo com Roberts (2014) e Kliman articulado a investidas expansionistas e à proteção estatal, organizou
(2015), Harvey (2015b) teria sugerido erroneamente que o aumento do o debate acerca do imperialismo, nas primeiras décadas do século XX,
número de trabalhadores empregados seria evidência da invalidade da tendo nas obras de Hilferding (1985), Lenin (1979) e Luxemburgo (1985)
“lei tendencial”. seus mais importantes referenciais.

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a particularidade da leitura de D. Harvey sobre esse um ajuste espacial de economias centrais com capitais
referencial é o caminho que permite a conexão do debate superacumulados.
sobre land grabbing com o debate sobre a teoria da crise. Por outro lado, em estudo mais recente sobre a crise de
2007/2008, Harvey (2011) retomaria especificamente um
tratamento negativo da teorização de Marx, negando-a
de maneira distinta do que parecia fazer anteriormente,
D. Harvey e a teoria marxiana da crise
numa aparente unificação das perspectivas que
apontam para a inconsistência da LQTTL com aquelas
Um importante leitor de K. Marx na atualidade é D. que ressaltam as suas contratendências:
Harvey, que aceita com ressalvas a formulação marxiana.
No primeiro livro em que delineia seus estudos dentro de Marx achava que tinha identificado um meio fundamental
uma perspectiva marxista, The Limits to Capital, escrito para explicar a queda da taxa de lucro [...]. Deslocar
nos anos 1970, Harvey (1982) apontava a existência o trabalho da produção era contraproducente para a
lucratividade a longo prazo. A tendência de queda dos
de três “cortes” ou níveis de crise, sendo a lei da queda lucros [...] e as crises a que inevitavelmente daria origem
tendencial da taxa de lucro (LQTTL) o primeiro deles. eram internas ao capitalismo e não eram explicáveis em
termos de limites naturais. Mas é difícil fazer a teoria de
No entanto, os processos de desvalorização, sobretudo Marx sobre a queda da taxa de lucros funcionar quando
por meio da inflação e de crises, iriam fazer retomar a inovação é tanto para economizar capital ou meios
patamares de lucratividade.12 Uma das formas acionadas de produção (por exemplo, pelo uso mais eficiente de
energia) quanto para economizar trabalho. O próprio
para “exportar” a desvalorização se daria por meio da Marx, na verdade, listou uma série de influências de
expansão territorial e da exportação de capitais. Essa contratendência para a queda da taxa de lucro [...].
Esta lista é tão longa que torna a explicação de uma
perspectiva embasaria suas formulações posteriores lei sólida de queda de lucros uma resposta mecânica
sobre o chamado ajuste espacial (HARVEY, 2005), como à inovação para economizar trabalho, que permanece
já mencionamos anteriormente, e que visivelmente se uma proposta insuficiente. (HARVEY, 2011, p. 82)14
articula como uma expansão territorial a mitigar os efeitos
da LQTTL13. Sugerimos também acima a possibilidade de
Não precisamos assumir o lado dos defensores
entender os fenômenos de land grabbing como parte de
da inevitabilidade ou da efetividade da teoria da crise
12
No capítulo 6 da referida obra, Harvey elabora sobre o movimento da lei marxiana. Basta-nos apontar que a crítica de D. Harvey
geral de acumulação capitalista até a LQTTL, para no capítulo seguinte
(2011) procura recuperar elementos de tentativa de
delinear sua abordagem sobre a reprodução ampliada do capital conduzir
à sobreacumulação de capital. Essa acumulação excessiva seria a superação daquela tendência, o que por si sugere a
causa primeira de crises, exigindo um processo de desvalorização do atuação da tendência mesma. O que nos parece mais
capital. Trata-se aí de um movimento que não é meramente resultado da
destruição de capitais que uma crise provoca, mas igualmente resultado importante ressaltar, para concluir, é que parece haver
da desvalorização contínua que o aumento da produtividade do trabalho um movimento generalizado de aumento da composição
reitera, a diminuir o valor adicionado às mercadorias produzidas em
orgânica de capitais, seja na agricultura e na mineração
escala aumentada (HARVEY, 1982, p. 196-203). Esta seria uma primeira
abordagem de uma teoria da crise (ou “first-cut” theory of crises). seja na indústria, promovendo em escala ampliada
Posteriormente, após tratar das questões do capital fixo, Harvey (1982, o aumento da produtividade do trabalho, ao menos
p. 413-445) faz uma longa imersão na discussão sobre o dinheiro e suas
relações com o capital produtivo, entrando no debate sobre o capital em potencial, o que requer em tese uma necessidade
financeiro. Da desproporção aí encontrada, passando pela desvalorização declinante de trabalhadores e uma ascendente de
materializada na inflação, Harvey circundaria uma segunda abordagem
matérias-primas, levando a graves consequências
teórica fundamental da teoria da crise, já neste ponto articulando as
obras de Marx às de Hilferding (1985) e de Lenin (1979). Por fim, seu sociais e ambientais com a reiteração desse modelo. A
olhar se voltaria para a dimensão geográfica da reprodução social sob o tese do “ajuste espacial”, assim, ao afirmar a existência
capitalismo, retomando as questões de Marx sobre a renda fundiária para
concluir sua análise da obra marxiana nos pontos sobre a mobilidade do de um “modelo produtivista” que se pauta pela difusão
capital e do trabalho. A obra, todavia, iria além e debateria ainda com a de inovações, conclui de modo contrário, por exemplo,
teoria do imperialismo, em especial com a de Luxemburgo (1985).
às “sete teses sobre o mundo rural” de Buainain et al.
13
Em outras obras, observamos a maneira como esse estudo de Harvey
se desdobrou, especialmente nos conceitos de “ajuste espacial” e de
(2014), segundo as quais a terra seria menos importante
“acumulação por despossessão” (ou “via espoliação”). Certamente, do que o capital neste modelo vitorioso. Quanto mais o
ainda, há a sua formulação consagrada da passagem do fordismo ao capital se impõe, mais ele parece requerer a expansão
pós-fordismo, conformando uma nova qualidade de reprodução social,
caracterizada pelo autor como marcada pela “acumulação flexível” territorial, e parece, pois, recolocar a importância da terra
e também pela “condição pós-moderna” (HARVEY, 1992). No que se como mecanismo de mitigação da sua crise imanente.
refere à noção de “ajuste espacial”, ela deriva de uma compreensão, já
esboçada em Harvey (1982), de que a crise gestada na dialética interna
Restaria saber o quanto se poderá, nos limites históricos
da sociedade civil (entre capital e trabalho e na reprodução ampliada dados, reproduzir esse modelo e seu “ajuste espacial”.
do capital) conduz à necessidade de uma expansão territorial (HARVEY,
2005). De certo modo, a consideração dessa expansão como sendo um
“ajuste” evidencia um diálogo com as chamadas “causas contrariantes” à 14
Com isso, Harvey (2011) toma partido de ambas as críticas ao esquema
lei da queda tendencial da taxa de lucro. Devemos nos perguntar sobre os de reprodução ampliada crítico de Marx. Primeiramente, aponta certa
limites dessa possibilidade na obra de Harvey (ver Toledo; Boechat; Pitta, indeterminação da LQTTL pela inovação economizar capital e trabalho,
2013), o que relaciona a discussão com a questão sobre as crises serem e, no final da citação, toma partido das “influências de contratendência”,
concebidas como cíclicas ou não. para, por cima, criticá-la como “proposta insuficiente”.

86
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates

Considerações finais

Para concluir, podemos lembrar a formulação sobre


a distinção para a agricultura entre tempo de produção
e tempo de trabalho, que tendia a ser igualada pela
industrialização dos processos produtivos no campo
(SILVA, 1981). A principal implicação da teoria da crise
marxiana é apontar uma tendência na qual, na produção
altamente tecnificada e mecanizada, tempo de produção
pode não significar um tempo de valorização suficiente
para auferir uma taxa de lucro que remunere o sistema
produtivo. A exclusão relativa e absoluta de trabalho vivo
dos processos produtivos, pela sua substituição pelo
trabalho pretérito e objetivado em elementos do capital
constante, sugere uma dissociação crescente entre tempo
de produção e tempo de trabalho. Com isso, por mais que
o tempo de vida do trabalhador continue a ser expropriado
dele mesmo, ele tende a ser gasto principalmente na busca
por emprego ou em atividades que não necessariamente
respondem pelo tempo de trabalho socialmente necessário.
A sugestão de uma crise do trabalho (HEIDEMANN et al.,
2014; Li, 2011) implica uma crítica ao modelo produtivista
como não mais gerador de emprego e de renda, como teria
sido outrora. Fica a questão do que fazer e como gestar o
excedente social crescente de tempo de não trabalho.
Por outro lado, a modernização da agricultura atrelada
ao projeto nacional de modernização do pós-guerra
parece encontrar seus próprios limites históricos, o que
não significa que o ajuste espacial não possa seguir se
dando ao nível dos monopólios e das corporações, ou
mesmo de países agindo estrategicamente para garantir
segurança alimentar, energética ou de suprimento de
matérias-primas para suas empresas. Land grabbings em
busca de sobrelucros na forma de renda da terra parecem
estar se dando num contexto de diversas crises, às quais
procuramos sugerir aqui a existência de uma profunda e
fundamental, impactando a taxa de lucro. Eles acabam
por representar o aumento do capital constante das
empresas, ou de seu patrimônio, que, como dissemos,
acaso superacumulado, tende a se desvalorizar. Seria
preciso que houvesse maneiras distintas para promover
essa “valorização” do patrimônio, uma vez que, enquanto
capital, de um modo geral, sua capacidade de se valorizar
pela exploração do trabalho parece se tornar elemento
questionável. A reiteração de mecanismos de land
grabbing, assim, adquire sentido social e histórico distinto
do que já teve para as fases de imposição da mobilidade
do trabalho e de industrialização nacional, e seus elos
com o capital financeiro precisam ainda ser buscados, o
que não se pôde fazer nos limites do presente artigo.

87
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

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Data de submissão: 26/10/2016


Data de aceite:26/06/2017
Data de publicação: setembro/2017

91
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai/ago.

Artigos

DA FINANCEIRIZAÇÃO AO LUGAR:
DOS NEXOS HEGEMÔNICOS ÀS CONTRA-RACIONALIDADES DO COTIDIANO

Marina Regitz Montenegro*


Universidade de São Paulo**

Resumo: As finanças alcançam, no período atual, uma centralidade inédita em todos os campos da vida social, assumindo um papel determinante
sobre as dinâmicas do espaço geográfico. Na medida em que envolve transformações na economia, na política e na sociedade como um todo, a
financeirização implica uma renovação dos próprios conteúdos do território e do cotidiano. Partindo de uma aproximação teórica sobre o processo
em tela, o artigo busca desvendar certos nexos da creditização do território brasileiro para, em um segundo momento, focar a capilaridade alcançada
pelas finanças entre a população pobre e seus impactos no cotidiano, onde a incorporação de nexos financeiros se combina à emergência de novas
contra-racionalidades.
Palavras-chave: Financeirização. Território. Cotidiano. Lugar. Contra-racionalidades.

FROM FINANCIALIZATION TO PLACE: FROM THE HEGEMONIC LINKS TO DAILY COUNTER-RATIONALITIES


Abstract: The finances reach, in the current period, an unprecedented centrality in all fields of social life, playing a leading role on the dynamics of
geographical space in contemporaneity (SANTOS, 1996; FRENCH et al., 2011). As far as it involves changes in economy, in politics in and society
as a whole (Christopherson et al., 2013), financialization implies a renewal of the contents of territory and of daily life. From a theoretical approach
about this process, the article seeks to uncover certain links of the Brazilian territory creditization to, in a second moment, focus the reach achieved
by finance among the poor and their impact on daily life, where the incorporation of financial links combines itself with the emergence of new coun-
ter-rationalities.
Key words: Financialization. Territory. Taily life. Place. Counter-rationalities.

DE LA FINANCIERIZACIÓN AL LUGAR: DE LOS NEXOS HEGEMÓNICOS A LAS CONTRA-RACIONALIDADES DE LO COTIDIANO


Resumen: Las finanzas alcanzan, en el período actual, una centralidad inédita en todos los campos de la vida social, asumiendo un papel determi-
nante sobre las dinámicas del espacio geográfico. En la medida en que involucra transformaciones en la economía, en la política y en la sociedad
como un todo, la financierización implica una renovación de los propios contenidos del territorio y del cotidiano. A partir de una aproximación teórica
sobre este proceso, el artículo busca desvelar ciertos nexos de la creditización del territorio brasileño para, en un segundo momento, enfocar la ca-
pilaridad alcanzada por las finanzas entre la población pobre y sus impactos en el cotidiano, donde la incorporación de nexo financieros se combina
a la emergencia de nuevas contra-racionalidades.
Palabras clave: Financierización. Territorio. Cotidiano. Lugar. Contra-racionalidades.

________________________________
* Doutora em Geografia, atualmente realiza estágio de Pós-Doutorado em Geografia na Universidade de São Paulo. E-mail: montenegromarina@hotmail.com
** Av. Prof. Lineu Prestes, 338 - Butantã, São Paulo - SP, 05508-000. Tel: (11) 3091-3769

92
Da financeirização ao lugar: dos nexos hegemônicos às contra-racionalidades do cotidiano

Introdução Gestada desde os anos 1970, uma nova configuração


do capitalismo mundial implicou a consolidação de um
“regime de acumulação com dominância financeira”
O protagonismo alcançado pelas finanças no período
(BOYER, 2000; CHESNAIS, 2005), ou ainda, de um
atual implica a reprodução dos nexos da financeirização
“capitalismo dirigido pelas finanças” (GUTTMANN, 2008).
em diferentes escalas. Se suas origens são globais,
A expansão deste processo, em sua contemporaneidade,
estes nexos redefinem, ao mesmo passo, processos nas
pode ser compreendida como “financeirização”, termo
escalas das formações socioespaciais e dos lugares.
crescentemente invocado nos debates sobre as
Visamos, nesta direção, compreender como o processo
dinâmicas do capitalismo contemporâneo. Segundo
de financeirização se realiza no território brasileiro
Christophers (2015), a financeirização, junto à
para aproximar-nos das novas formas de capilaridade
globalização e ao neoliberalismo, conformam um tripé
assumidas pelas finanças junto à população de
analítico capaz de distinguir o capitalismo atual de
baixa renda na metrópole de São Paulo. Propomos,
suas fases anteriores. Abrangendo um amplo processo
destarte, uma análise teórico-empírica do processo de
de transformação econômico, mas também cultural, a
financeirização da pobreza e de seus espaços na cidade.
financeirização envolve mudanças de comportamentos
Partimos da análise da conformação de um e valores na economia, na política e na sociedade como
regime de acumulação financeirizado e da crescente um todo (CHRISTOPHERSON et al., 2013), renovando,
imbricação entre as dimensões produtiva e financeira por conseguinte, os próprios conteúdos do território e do
para, em seguida, destacar as abordagens correntes cotidiano.
da financeirização. Dada a centralidade do processo
As determinações do regime de acumulação
em tela na contemporaneidade, analisamos, em um
financeirizado se afirmam em diferente escalas
segundo momento, a recente inserção da financeirização
no período da globalização, sinônimo, por sua vez,
no campo de conhecimento voltado às relações entre
do próprio processo de mundialização do capital
geografia e finanças.
(CHESNAIS, 2003). Conforme afirma Santos (1996),
As especificidades do processo de financeirização na a possibilidade de realização de uma mais-valia ao
formação socioespacial brasileira (SANTOS e SILVEIRA, nível global assume, atualmente, o papel de motor da
2001), ou ainda, a forma particular assumida pelo nexo vida social e econômica. A financeirização coincide,
“Estado-Finanças (HARVEY, 2011) é abordada, em assim, com o protagonismo assumido pelo capital
um terceiro momento, para compreendermos como a financeiro, mas também com a própria globalização da
creditização da sociedade e do território relaciona-se acumulação. Na visão de Lapavitsas e Powell (2013),
à expansão do consumo entre as diferentes classes de a financeirização corresponde, nesta direção, à busca
renda no país, mas, por outro lado, encontra-se igualmente de autoafirmação do sistema financeiro enquanto uma
na origem da generalização do endividamento. esfera autônoma da acumulação do capital e, ao mesmo
Apoiados na sistematização de informações passo, à reestruturação a longo prazo da economia
obtidas em trabalhos de campo, buscamos, finalmente, global em benefício de agentes financeiros hegemônicos.
desvendar novas formas de capilaridade assumidas Estes atores se estendem hoje dos tradicionais capitais
pelas finanças e pelo consumo na periferia de São Paulo bancários a instituições financeiras não bancárias como
e seus impactos no cotidiano da população pobre. investidores institucionais, fundos de pensão, fundos
Realiza-se, aí, a convivência dialética entre uma razão de de investimento coletivos, empresas financeiras e
ordem local e outra de ordem global (SANTOS, 1996) a sociedades seguradoras, os quais tende a assumir um
partir da combinação entre nexos hegemônicos e contra- crescente protagonismo financeiro (DIAS, 2009).
racionalidades emanadas do lugar. Alavancado pelas tecnologias da informação e da
comunicação, o novo sistema técnico característico do
período surge como condição e fator da globalização
Financeirização: uma aproximação conceitual financeira (CHESNAIS, 1998). Além de potencializar a
mobilidade dos capitais e permitir a instantaneidade
das operações, as redes digitais autorizaram a
As finanças alcançam, no período atual, uma constituição de um mercado em escala mundial. A
centralidade inédita em todos os campos da vida social, combinação entre políticas de desregulamentação e a
assumindo, por conseguinte, um papel determinante informatização resultou na passagem de um sistema
nas dinâmicas do espaço geográfico (SANTOS, 1996; financeiro controlado e organizado em âmbito nacional
FRENCH et al., 2011). Viveríamos hoje em um mundo com a um sistema auto regulamentado de âmbito global
“dominância da esfera financeira” (CHESNAIS, 1998), (GUTTMANN, 2008). O capital financeiro pode tirar, deste
onde os imperativos financeiros permeiam e sujeitam modo, crescente proveito de sua flexibilidade e rapidez.
todas as esferas da atividade social. E se outrora os bancos e instituições financeiras se

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

caracterizavam por sua atividade regional e nacional, crítica (Critical social accountancy) e pelas abordagens
alcançam hoje uma escala de ação mundial, operando socioculturais da financeirização da vida cotidiana
no mercado internacional de capitais, créditos e moedas (everyday life) (PIKE e POLLARD, 2010; FRENCH et al.,
(CONTEL, 2006). 2011).
Embora frequentemente empregado pela literatura O papel desempenhado pelas finanças em diferentes
anglo-saxã em análises sobre a crise das hipotecas regimes de acumulação é focado por autores da Escola da
norte-americana no fim dos anos 2000, o potencial Regulação, vertente que mais aprofundou este debate ao
analítico do conceito de financeirização abrange o conceber a financeirização como o regime de acumulação
processo mais amplo de reestruturação da economia sucessor do regime fordista (CHESNAIS, 2003). Enquanto
sob regência da esfera financeira. Conforme esclarece pioneiro dessa abordagem, Aglietta (1998) destaca a
Lapavitsas (2011), as origens deste conceito residem na emergência de um regime de crescimento patrimonial,
economia política marxista. Autores como Sokol (2013) e caracterizado pelo protagonismo dos mercados de
Aalbers (2008), por exemplo, concebem a financeirização ativos, pela multiplicação de investidores institucionais
como o deslocamento do capital dos circuitos primário, e pela crescente importância da regulação corporativa. O
secundário e terciário para o circuito quaternário do “regime de acumulação financeirizado” compreenderia,
capital, o qual não constitui um mercado de produção ou deste modo, o sucessor do regime fordista baseado
consumo, mas um mercado de especulação, ou ainda, não mais em uma nova forma de organização técnico-
um circuito de autoreprodução do capital. Estabelece- industrial - como no caso do toyotismo -, mas no
se, assim, um padrão de acumulação onde a realização protagonismo alcançado pelas finanças. Ainda no
do lucro ocorre cada vez mais por meio de canais fim dos anos 1990, Orléan (1999) define o “regime de
financeiros do que através da produção de mercadorias acumulação financeirizado” como aquele assentado
e do comércio. Lapavitsas (2011) adverte, contudo, na liquidez dos mercados de títulos, cujo núcleo duro
para a complexidade das relações existentes entre as residiria na governança empresarial. Boyer (2000), por
esferas das finanças e da produção, assim como para os sua vez, se questiona sobre a viabilidade de um regime
riscos de uma simplificação analítica que apregoa uma de acumulação governado pelo financeiro enquanto
relação direta entre a estagnação produtiva e a ascensão alternativa ao fordismo. A atualização das propostas
financeira. de Arrighi (1994) representa uma referência central
Nesta nova fase, passa a haver, em realidade, uma da abordagem regulacionista, daí a financeirização
estreita imbricação entre as dimensões produtiva ser compreendida também como parte integrante de
e financeira, a qual se manifesta, entre outros, pela um projeto neoliberal global que marca o retorno da
crescente associação entre redes industriais, comerciais hegemonia da fração financeira do capital, sendo a
e instituições financeiras. Entre o conjunto de atividades expansão financeira concebida como o próprio símbolo
modernas, multiplicam-se hoje as sinapses internas, cujo de maturidade do desenvolvimento capitalista (PIKE e
resultado é uma maior interdependência entre os agentes POLLARD, 2010).
do circuito superior da economia (SILVEIRA, 2016), ou A vertente da Contabilidade social crítica (Critical
seja, entre as empresas que comportam elevados graus social accountancy), por sua vez, se restringe mais
de capitalização, tecnologia e organização1 (SANTOS, propriamente às relações entre mercados financeiros
1975). A mundialização da indústria e dos serviços e corporações, priorizando as análise nos níveis meso
envolve, com efeito, uma crescente incursão na esfera e micro econômicos. Caracteriza-se, por conseguinte,
financeira. Ao mesmo passo, operações puramente como uma abordagem mais limitada à descrição dos
financeiras dos grandes grupos adquirem maior processos e efeitos envolvidos no crescente poder dos
importância no conjunto de suas atividades, decorrendo valores e métricas financeiros e das tecnologias a eles
em uma migração de capitais da esfera do investimento associados no âmbito das empresas, mas igualmente
para a esfera da especulação (CHESNAIS, 1998). entre os indivíduos. A financeirização é associada ao
No bojo dos debates atuais sobre financeirização, aumento da influência dos nexos dos mercados de capital
podemos distinguir três abordagens mais correntes (produtos, atores e processos) sobre os comportamentos
que, de certo modo, se revelam complementares: das empresas e famílias, ou ainda, a uma nova forma de
aquelas desenvolvidas por representantes da Escola competição pautada na rentabilidade e nos padrões da
da Regulação, pela leitura da Contabilidade social performance financeira (ERTURK et al., 2008).
Por fim, as abordagens socioculturais da
1
Segundo Santos (1975), a economia urbana dos países periféricos pode
ser compreendida a partir da formação de dois circuitos de produção e financeirização da vida cotidiana (everyday life)
consumo, concorrentes e complementares, que se distinguem em fun- tendem a se voltar à análise das formas através das
ção dos graus de tecnologia, capital e organização assumidos pelas ati-
quais o dinheiro e as finanças moldam o cotidiano nas
vidades urbanas. Quando estes são altos, trata-se do circuito superior,
incluindo sua porção marginal; quando são baixos, trata-se do circuito economias e culturas contemporâneas (FRENCH et al.,
inferior.

94
Da financeirização ao lugar: dos nexos hegemônicos às contra-racionalidades do cotidiano

2011). Segundo Martin (2002), a financeirização da vida direção, à atual agenda da disciplina. Reconhecer a
cotidiana está diretamente relacionada ao desmonte centralidade das finanças, desvendando as formas como
dos sistemas de proteção social, substituídos hoje pelo participam, através de redes de valor, da reprodução das
mercado privado em suas variantes. Nesta direção, desigualdades sociais e espaciais em múltiplas escalas
Langley (2007) compreende a financeirização como compreende, destarte, um novo imperativo.
um processo de individualização que condiciona os Embora assentada na maximização da mobilidade
indivíduos a assumir maiores responsabilidades e riscos dos capitais e na imaterialidade de suas variáveis
financeiros, visto que benefícios providos outrora pelo dominantes, a financeirização não é, certamente, um
Estado são substituídos por investimentos e previdências processo geográfico neutro ou a-espacial e tampouco
e seguros privados. Destaca-se ainda, neste campo, a implica uma pretensa desterritorialização (DAHER,
análise da ascendência dos valores financeiros sobre os 2016). Conforme já ressaltava Santos (1996) na década
sujeitos e as próprias subjetividades. de 1990, embora as finanças tenham adquirido uma
crescente autonomia no período da globalização, seguem
dependendo de uma série de fatores eminentemente
geográficos. Seu funcionamento depende não só de todo
Geografia e financeirização
um conjunto de infraestrutura de sistemas e objetos
técnicos, mas dos próprios “conteúdos normativos do
Enquanto temática, a financeirização se insere no espaço”, como as normas e leis de cada país que lhes
amplo campo de conhecimento voltado às relações garantem, por sua vez, ubiquidade e instantaneidade.
entre geografia e finanças. Os estudos geográficos das Há, por conseguinte, uma causalidade do fenômeno
finanças se iniciam propriamente com a publicação das finanças que deriva dos elementos que compõem o
seminal de Jean Labasse (1955) sobre a região de Lyon, espaço geográfico (CONTEL, 2016).
na qual o autor desenvolve uma inovadora análise sobre
No período atual, agentes hegemônicos institucionais
as relações entre a função financeira e a vida regional.
como investidores institucionais, fundos de pensão,
Desde então, registraram-se significativas mudanças
fundos de aplicação coletivos, empresas financeiras
conceituais e a diversificação dos temas abordados
e sociedades seguradoras, assumem um crescente
nesse subcampo disciplinar. Da evolução das escalas de
protagonismo na determinação dos conteúdos locais e
análise do fenômeno das finanças, inicialmente restrita
regionais. Os Estados Nacionais não deixam, no entanto,
às realidades locais e regionais, “a geografia passou a
de desempenhar um papel chave nas dinâmicas em
se preocupar com o alcance nacional e global de todos
curso, uma vez que delimitam o alcance da ação destes
os tipos de atores financeiros, permitindo ganhos
atores, mesmo em um cenário de desregulamentação
explicativos em relação entendimento do capitalismo
e desintermediação, o qual não deixa de ser, contudo,
atual, um capitalismo mundializado” (CONTEL, 2016,
autorizado pelo Estado. Conforme assevera Harvey
p.72). Ao longo desta trajetória, ao passo em que certos
(2011), há em cada Estado uma forma particular do nexo
conceitos perderam relevância, outros adquiriram
“Estado-Finanças”, ou seja, estabelecem-se variações
significados atualizados. Dentre os novos temas e
geográficas dos arranjos institucionais e alianças
termos surgidos recentemente no campo de uma nova
envolvendo a gestão de cada Estado no que tange à
“geografia das finanças” (MARTIN, 1999; FRENCH et al.;
circulação do capital em seus territórios.
SOKOL, 2013), destaca-se justamente a financeirização.
A financeirização envolve, ademais, não apenas um
Enquanto um campo de análise do presente em
enraizamento das redes e práticas financeiras, mas
expansão, a financeirização apresenta, certamente,
todo um processo de reconfiguração espacial que lhe é
desafios temáticos, teóricos e metodológicos a serem
inerente (PIKE e POLLARD, 2010). Emana e é controlada
enfrentados pela geografia. Segundo Pike e Pollard (2010),
a partir de determinados lugares, sujeitando os demais
a financeirização em curso, além de compreender uma
às suas estruturas e determinações (MARTIN, 2011).
oportunidade analítica para a disciplina, representa um
Representa, finalmente, uma forma contemporânea do
imperativo político-econômico para situar a finança no
processo de desenvolvimento desigual (CRISTPHERSON
centro da análise em geografia econômica e aprofundar
et al., 2013).
seus diálogos com os campos social, cultural e político.
Em um cenário onde os capitais podem circular cada vez
Para Sokol (2013), as finanças e a financeirização
mais livremente sem restrições, “a poupança é coletada
precisam ser incorporadas à conceitualização da
em diferentes regiões, potencialmente do mundo inteiro,
geografia econômica se esta pretende oferecer uma
para, em seguida, ser centralizada nas praças financeiras
análise sólida das economias contemporâneas
respectivas (Zurich, Londres, Paris etc) e redistribuída
crescentemente financeirizadas. O aprofundamento e
nas escalas nacionais e internacionais” (THEURILLAT
a renovação das leituras de uma geografia do dinheiro
e CREVOISIER, 2011, pp.2-3). Conforma-se, assim, um
e das finanças (MARTIN, 1999) se imporiam, nesta

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

espaço financeirizado de mercados interconectados, cuja tes financeiros no território brasileiro, garantindo não
lógica implica uma redistribuição que tende a beneficiar só maior velocidade, mas interconexão instantâneas às
as maiores empresas financeirizadas e as regiões onde operações (CONTEL, 2009).
localizam-se suas sedes. Com a reestruturação do sistema financeiro nacional,
Frente à conformação desta nova geografia da passou-se a autorizar, ao mesmo passo, instituições não
financeirização (DE MATTOS, 2014), impõe-se à geografia bancárias a atuarem como se o fossem, o que resultou
a tarefa de analisar este processo e suas consequências na multiplicação e diversificação dos agentes credores
(PIKE e POLLARD, 2010), atentando especialmente ao no país, dentre os quais se destacam não mais apenas
papel ativo do espaço e do lugar em suas dinâmicas os bancos privados, mas também agências financeiras
(FRENCH et al., 2011), ou ainda, aos seus determinantes de crédito pessoal e grandes redes varejistas de diversos
gerais e às suas configurações particulares, esforço ramos. Estabeleceu-se, assim, uma maior complexidade
que buscamos empreender a seguir a partir de um olhar da distinção entre instituições, produtos e serviços
sobre dinâmicas recentes no território brasileiro. bancários e financeiros. Cabe destacar que esta extensão
da oferta de crédito a instituições financeiras não
bancárias coincide com o processo de desintermediação,
ou seja, com a abertura das operações de empréstimo
Financeirização e creditização do território a todo tipo de investidor institucional, correspondente,
brasileiro por sua vez, a um dos processos constitutivos da
mundialização financeira (CHESNAIS, 2005).
O processo de financeirização da formação socioes- A renovação da base técnica e organizacional que
pacial brasileira (SANTOS e SILVEIRA, 2001) está direta- rege o funcionamento da atividade bancária e financeira
mente relacionado à reestruturação recente do sistema implicou, ao mesmo passo, a expansão do alcance das
financeiro nacional. A partir dos anos 1990, a maior in- finanças no espaço nacional. De acordo com Contel
serção do país na globalização envolveu a implementa- (2006), a conformação de uma nova topologia bancária,
ção de um conjunto de políticas relacionadas ao campo alcançada pela maior presença dos fixos geográficos
financeiro, como o ajuste fiscal, a realização de reformas bancários – como agências, caixas eletrônicos, postos
tributárias, a prática de juros e câmbio de mercado, a de atendimentos e correspondentes bancários – e a
abertura a fluxos de capitais estrangeiros, a desregula- difusão de novos canais eletrônicos garantiram não só
mentação e as privatizações de empresas públicas. Em a maior oferta de serviços bancários, mas uma ampla
um contexto de avanço da ideologia neoliberal, conjuga- expansão da concessão de crédito, resultando, por fim,
ram-se, assim, a liberalização normativa, econômica e em uma “hipercapilaridade das finanças” no território
financeira, a desnacionalização, a privatização e a imple- brasileiro.
mentação de um programa de estabilidade macroeconô-
Conforme coloca Sokol (2013), a expansão do sistema
mica com o Plano Real de 1994 (CONTEL, 2006), os quais
creditício representa um componente central do processo
resultaram, dentre outros, em uma maior concentração
de financeirização. Nos últimos anos, conformou-se
econômica e financeira no país.
no Brasil, com efeito, um cenário de ampla difusão do
As políticas de desregulamentação e desnacionaliza- crédito pelo território, o qual alcançou 54,7% do PIB em
ção alcançaram diferentes setores, dentre os quais o sis- 2014. Ao longo dos anos 2000, o ciclo de expansão da
tema financeiro, reestruturado profundamente a partir de oferta de crédito se sustentou no desempenho positivo
meados dos anos 1990 com a implementação do Progra- dos indicadores de emprego e renda, se estendendo,
ma de Incentivo à Redução do Estado na Atividade Ban- por conseguinte, às diferentes camadas de renda da
cária (PROES) e do Programa de Estímulo à Reestrutura- população através de modalidades específicas para
ção e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional cada segmento, como o crédito consignado, os cartões
(PROER)2. No plano do território nacional, este processo de crédito, o crédito pessoal, o crédito imobiliário e rural.
implicou, a consolidação da concentração financeira em Desde meados da década de 1990, a expansão do crédito
São Paulo, fortalecendo-se, por conseguinte, o seu pa- no país se baseou sobretudo em operações contratadas
pel de metrópole nacional e internacional. Já nos anos por pessoas físicas: enquanto em 1995, estas operações
2000, a implantação do Sistema de Pagamentos Brasi- movimentaram R$12,9 bilhões, em 2014 já alcançavam
leiro (SPB) surge como um instrumento normativo para R$ 1,412 trilhão (BCB, 2015). Cabe destacar que a
regular as transações efetuadas pelos principais agen- despeito da desaceleração do PIB nacional observada a
2
Com o PROES, desencadeou-se um amplo processo de privatização e partir de 2011, a oferta de crédito segue em expansão,
eliminação de bancos públicos estaduais que passaram a ser controla- haja visto o crescimento de 82% do volume de crédito
dos, em grande medida, por bancos privados estrangeiros. O PROER, por
ofertado entre 2010 e 2014 (BCB, 2015). Outro
sua vez, envolveu uma série de intervenções e alterações societárias em
bancos que levaram a uma redução da capacidade das regiões em co- indicador expressivo da nova realidade alcançada pelas
mandar suas infraestruturas e fluxos financeiros (CONTEL, 2006).

96
Da financeirização ao lugar: dos nexos hegemônicos às contra-racionalidades do cotidiano

finanças no território brasileiro consiste no aumento distanciando-se da explicação clássica relativa à


da bancarização. Enquanto em 1999, contabilizavam- propriedade dos meios de produção”.
se cerca de 49,9 milhões de contas-corrente, em 2015 Autorizada pela banalização do acesso ao crédito,
já eram mais de 108 milhões, ano em que a população a expansão recente do consumo alcançou também a
bancarizada chegava a 60% do total (BCB, 2015). população de baixa renda. No território brasileiro, e em
Embora a recente expansão da oferta creditícia no especial em suas maiores cidades, conforma-se hoje,
país tenha envolvido diferentes estratos da população, por conseguinte, uma pobreza permeada por novos
os segmentos de menor renda foram especialmente padrões de consumo – desejosa de certas marcas e da
focados e beneficiados por modalidades como o crédito frequência a certos tipos de estabelecimentos – mas
pessoal, cartão de crédito e crediário. Segundo Harvey também por uma nova escassez. Conforme esclarece
(2011), uma das características centrais do capitalismo Silveira (2011a, p.45):
contemporâneo reside na busca do mercado por se
estender também aqueles com rendimentos mais baixos,
O consumo ganha hoje um importante papel explicativo.
especialmente através da indústria de cartões de crédito e
Trata-se do acesso aos novos bens, tantas vezes
do endividamento. A população de baixa renda se destaca,
mascarado de afirmação social quando na realidade é
efetivamente, como o segmento mais tomador de crédito
uma forma de controle, e de obediência às normas que
no país: 60% dos tomadores, ou 20% da população adulta,
advém do processo de consumir e de um endividamento
possuem renda inferior a três salários mínimos. Em 2014,
difuso da população (...) Tal desigualdade estrutural
46% do volume de crédito concedido através do cartão
na qual escassez e consumo coexistem é herança e
de crédito parcelado e 45% do volume concedido através
cenário para a atual vida de relações.
do cartão de crédito rotativo se direcionaram apenas a
este estrato da população (BCB, 2015). Contudo, se em Pois, se por um lado, a recente difusão do crédito
um primeiro momento, o acesso facilitado ao crédito, permitiu efetivamente a expansão do consumo entre as
combinado a outros fatores, permitiu a expansão do diferentes classes de renda no país nos últimos anos; por
consumo, em especial entre os de menor renda (NERI, outro, implicou também a ampliação do endividamento
2011; MONTENEGRO, 2014); posteriormente, desvelou- e da inadimplência, sobretudo entre os pobres, uma vez
se o reverso da lógica da creditização generalizada, ou que um crédito fácil e desburocratizado é oferecido a
seja, o endividamento em massa e seus desdobramentos uma população sem condições de poupar e sem lastro. É
sobre o cotidiano. notória, nesta direção, a coincidência entre o avanço do
endividamento e a expansão da oferta de crédito no país
nos últimos anos3. No início de 2016, 60,8% das famílias
brasileiras encontravam-se endividadas; do total destas
Hegemonia do crédito e generalização do
dívidas, 77,4% haviam sido adquiridas através de cartões
endividamento
de crédito (PEIC/CNC, 2016). Conforme afirma Lazzarato
(2011), o cartão de crédito transformou-se na forma
A financeirização global da economia, a possibilidade mais simples de transformar seu proprietário em um
de acumulação em escala global, a mercantilização permanente endividado, uma vez que a própria relação
econômica e social e a progressiva transição de credor-devedor já se encontra inscrita nos cartões.
uma sociedade de produtores a uma sociedade de Objetos constituintes do espaço geográfico da
consumidores conformam tendências constitutivas e globalização intencionalmente concebidos para o
inter-relacionadas desta nova fase de modernização exercício de certas finalidades (SANTOS, 1996), os fixos
capitalista financeirizada (DE MATTOS, 2014). geográficos bancários, aos quais se somam hoje meios
O consumo, intermediado pelas finanças, assume, eletrônicos como cartões e smartphones, garantem
com efeito, um papel fundamental na determinação das ubiquidade às finanças e onipresença ao crédito no plano
atuais dinâmicas sociais, posto que com a globalização, do cotidiano (CONTEL, 2006). Artefato emblemático do
tornou-se um imperativo (SANTOS, 2000). Segundo período atual, o cartão constitui uma modalidade de
Bauman (2007), a atual “sociedade de consumidores” crédito com especial poder de difusão em diferentes
estabelece uma refundação das relações humanas à segmentos. Para além da publicidade em diferentes
medida dos mercados, sendo sua característica mais meios de comunicação, as estratégias para abarcar
proeminente justamente a capacidade de comprometer a população de baixa renda como usuários de cartões
seus membros enquanto consumidores. Ao analisarem de crédito envolve apelos de diferentes ordens como
as relações atuais entre geografia e consumo, Ballesteros correspondências, telefonemas, premiações e convites
e Carreras (2006, p.326) consideram o consumo como
3
Entre 2010 e 2013, observou-se um significativo aumento do percentual
“a perspectiva mais importante a partir da qual se deve de famílias endividadas, que passou de uma média anual de 59,1% a
entender a nova diferenciação das classes sociais, 63,9% (PEIC/CNC/ FECOMERCIO, 2013).

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personalizados (SCIRÉ, 2011). Há atualmente, no Brasil, menor e mais volátil, a rigidez das condições se agrava
cerca de 293 milhões cartões de débito emitidos, dos em casos de histórico de inadimplência. O acesso ao
quais 111 milhões encontram-se ativos, 158 milhões crédito fácil se torna, assim, mais oneroso aos estratos
de cartões de crédito emitidos, dos quais 84 milhões de menor renda, haja vista as altíssimas taxas de juros
ativos, além de 225 milhões de cartões de redes e lojas praticadas, por exemplo, no cartão de crédito, uma
(private label) (BCB, 2015). Ao antecipar recursos para a modalidade facilmente concedida, mas que cobra os
compra, o cartão potencializa o fenômeno do consumo, juros mais elevados do mercado através do instrumento
inclusive aquele de natureza conspícua, ou seja, de itens do rotativo. Além de permitir a realização de saques, o
supérfluos. A facilidade do crédito pré-aprovado induz crédito rotativo possibilita o pagamento de apenas uma
ao endividamento e, muitas vezes, à inadimplência, parcela mínima da fatura e o adiamento do restante para
sobretudo entre a população de menor renda, sem o mês seguinte, ao qual são acrescidos, no entanto, juros
garantias reais de solvabilidade e sem acesso ao crédito bastante elevados, chamados de “encargos contratuais”.
consignado, o que acaba por elevar as taxas de juros As taxas de juros praticadas no rotativo são as mais
praticadas pelas instituições credoras. Estima-se, nesta altas do mercado, alcançando valores superiores a 600%
direção, que 60 milhões de brasileiros se encontrassem ao ano4, daí o crescimento veloz e vultuoso das dívidas e,
inadimplentes no início de 2016, cifra equivalente a 41% por conseguinte, dos atrasos e da inadimplência.
da população com mais de 18 anos (SERASA, 2016). Conforme propõe Lazzarato (2011), a dívida assume
No bojo do processo de creditização da população um papel determinante para o entendimento de uma
de baixa renda, grandes conglomerados empresariais sociedade regida pela financeirização, De acordo com
e financeiros parecem ter reconhecido a “necessidade o autor italiano, ao passo em que indivíduos, famílias e
de desburocratizar o crédito”, posto que a rigidez e a firmas tornam-se progressivamente sujeitos à disciplina
quantidade dos requisitos – muitas vezes limitados dos mercados financeiros, a relação credor-devedor
à apresentação de RG, CPF e talões de cheques – se consolida como a relação central na sociedade
para o acesso a cartões e empréstimos se reduzem à ocidental contemporânea. Há, de fato, uma lógica do
medida que aumenta o custo do dinheiro (SILVEIRA, endividamento generalizado que permeia hoje todas as
2009). A financeirização logra alcançar, deste modo, escalas, ou seja, uma produção constante e sistemática
novos patamares, capilarizando-se junto aos estratos de devedores (LAZZARATO, 2011).
de menor renda. A oferta de crédito por instituições Ancoradas nas possibilidades técnicas e políticas do
bancárias, agências financeiras e redes comerciais período, a financeirização e a drenagem da poupança
acaba por provocar, destarte, não apenas a expansão do popular passam a se realizar através de novos canais.
consumo, mas a própria busca por novos empréstimos Conforme assevera Lapavitsas (2011), a financeirização
para quitação de dívidas prévias. Aprofunda-se, por da renda dos trabalhadores, ou das famílias em sentido
conseguinte, o ciclo vicioso entre acesso ao crédito e ao mais amplo, envolve aspectos diversos, mas inter-
consumo, endividamento crônico e aprofundamento da relacionados. Por um lado, como vimos, há a expansão
pobreza. da concessão de diferentes modalidades de crédito,
Verifica-se, com efeito, que o segmento mais pobre como o crédito imobiliário, os cartões de crédito, o
da população é aquele com maior comprometimento crédito para consumo, para educação e saúde etc. Por
relativo de sua renda com o pagamento de dívidas: 38,2% outro, tem-se a generalização da oferta de produtos e
dos tomadores de crédito com renda até três salários serviços financeiros como hipotecas, pensões, fundos
mínimos, equivalentes a 13,2 milhões de pessoas, de investimento, aplicações, previdências privadas e
apresentavam comprometimento de renda acima de 50% seguros diversos. Estes aspectos integram, por sua
no Brasil em 2014 (BCB, 2015). Este estrato é também o vez, o processo de mercantilização econômica e social
mais atingido pelo endividamento e pela inadimplência. neoliberal (CHRISTOPHERSON et al., 2013), evidenciado
Atualmente, 62,4% das famílias de menor renda no país pelo recuo contínuo da provisão pública dos mais
se encontram endividadas; dentre os inadimplentes, diversos serviços. O consumo torna-se, deste modo,
77,2% ganham até 2 salários mínimos (SERASA, 2016; progressivamente privatizado e mediado pelo sistema
PEIC/CNC, 2016). Conforme já apontava Baudrillard financeiro. Nesta direção, a extração da poupança
(1970), o processo mágico de realização imediata da popular pode ser compreendida como um processo de
compra se confronta, necessariamente, com a realidade “expropriação financeira” (LAPAVITSAS, 2011, p.620), ao
socioeconômica do indivíduo no vencimento de cada permitir a realização de lucros crescentes fora da esfera
prestação. dos salários.
A facilitação do acesso ao crédito tende a ser 4
As taxas de juros anuais cobradas no crédito rotativo pelo Itaú, por exem-
plo, chegam a 631%, pela BV Financeira a 610% e pela Losango a 565%
compensada pela imposição de juros mais elevados
(BCB, 2016). Dentre os inadimplentes com renda mensal até três salários
a aqueles que não possuem patrimônio e cuja renda é mínimos, 47% encontram-se inadimplentes na modalidade do crédito ro-
tativo (BC, 2015).

98
Da financeirização ao lugar: dos nexos hegemônicos às contra-racionalidades do cotidiano

A redefinição das práticas de consumo e a readequação referentes à inserção da periferia em seu mercado, às
da gestão do orçamento emergem como implicações do diferentes possibilidades de pagamento, às formas de
avanço da financeirização entre a população pobre, so- publicidade realizadas e às relações estabelecidas com
bretudo nas grandes cidades, onde a produção de neces- os pequenos negócios do bairro. A sistematização das
sidades é mais exacerbada e a topologia dos agentes e informações obtidas resultou em uma valiosa fonte de
fixos financeiros mais densa. A necessidade constante dados primários, visto que não dispomos de dados se-
de reorganizar o orçamento doméstico para conciliar o cundários específicos sobre o que entendemos por cir-
pagamento de parcelas e dívidas com a economia fami- cuito inferior da economia urbana e tampouco sobre as
liar se destaca entre estes processos. O acesso ao cré- transformações cotidianas resultantes do avanço da fi-
dito e a expansão do consumo representam, certamen- nanceirização na periferia da metrópole.
te, um alto custo para a população pobre. Como afirma Manifestação empírica da globalização, os vetores da
Harvey (2011, p.98), “em curto prazo, o crédito serve para financeirização se realizam hoje nos lugares, permeando
suavizar pequenos problemas, mas, em longo prazo, ten- o próprio cotidiano. Enquanto espaço do acontecer soli-
de a acumular as contradições e tensões. Ele espalha os dário e da interdependência obrigatória, o lugar não abri-
riscos, ao mesmo tempo que os acumula”. ga apenas vetores de uma racionalidade hegemônica,
Frente ao avanço da financeirização, a análise das re- mas também contra-racionalidades localmente criadas
lações entra a difusão do crédito e a expansão do endi- e sempre renovadas, conformando, assim, um híbrido de
vidamento, em suas múltiplas consequências, torna-se horizontalidades e verticalidades (SANTOS, 1996).
central para a compreensão da sociedade brasileira hoje, No período atual, as finanças e o consumo assumem
visto que vetores financeiros têm provocado diferentes progressivamente novas formas de capilaridade sobre a
implicações no território e na vida social, como um todo. pobreza e as periferias das grandes cidades. Uma des-
tas formas está relacionada à diversificação da topolo-
gia de agências financeiras e grandes redes de comércio
e serviços em metrópoles como São Paulo. Nos últimos
O cotidiano permeado pelas finanças: contra-
anos, estes agentes vêm buscando inserir-se em locais
racionalidades e resistências no lugar
considerados até então mercados desinteressantes. Daí
a crescente presença de agências bancárias, instituições
Procuramos analisar, a seguir, certas dinâmicas rela- financeiras de crédito pessoal, shopping centers, cadeias
cionadas aos impactos da financeirização no plano do de hipermercados e supermercados e filiais de grandes
cotidiano da população pobre, a partir de um olhar sobre redes de varejo e serviços não apenas em centralidades
a periferia da metrópole de São Paulo, onde a incorpo- populares, mas também em seus bairros periféricos.
ração de nexos financeiros se combina, não obstante, à
A divisão territorial do trabalho destas grandes corpo-
emergência de novas contra-racionalidades.
rações passa a incorporar, doravante, novas porções do
Trabalhos de campo realizados nos bairros de Cam- território urbano, conformando um movimento que conta,
po Limpo e Jardim São Luiz, na zona sul, e Itaquera, muitas vezes, com o auxílio do próprio Estado. Agências
na zona leste, e no Município de Taboão da Serra na financeiras de crédito pessoal como Crefisa, Finasa e Fi-
porção oeste da Região Metropolitana de São Paulo ninvest5, shoppings e redes varejistas como Extra, Casas
constituem um insumo primordial das análises que se Bahia, Magazine Luiza, Marabraz e Ponto Frio, entre ou-
seguem. Cabe destacar que 150 entrevistas e questio- tras, expandiram significativamente seu número de lojas
nários foram realizados junto à população de baixa resi- e sua área de atuação na Região Metropolitana de São
dente nestas localidades periféricas e junto a pequenos Paulo nos últimos anos. Embora concentrada nas áreas
negócios do circuito inferior da economia urbana e a es- centrais, a topologia destes estabelecimentos alcança
tabelecimentos do circuito superior aí localizados. Nas agora bairros periféricos da cidade, como Campo Limpo,
entrevistas realizadas junto aos consumidores, foram Jardim São Luiz e Socorro na zona sul, e Itaquera e São
priorizados questionamentos sobre locais de consumo Miguel na zona leste, assim como cidades que margeiam
de produtos e serviços de diferente natureza, da frequên- o Município de São Paulo e reúnem grandes periferia po-
cia e dos deslocamentos aos diferentes estabelecimen- bres, como Taboão da Serra, Carapicuíba e Itapecerica
tos, do uso de serviços financeiros e do endividamento. da Serra, logrando, assim, um alcance de maior escala
Nos questionários aplicados junto aos estabelecimentos junto à população de baixa renda. Muitas vezes alojadas
do circuito inferior, buscou-se analisar, entre outros, o dentro de shoppings, as redes varejistas de móveis, ele-
impacto da instalação de grandes empresas nos bairros 5
Finasa e Crefisa se destacam como as agências financeiras de crédito
periféricos, os efeitos da expansão do crédito e as rela- com o maior número de lojas em São Paulo. A Crefisa possui atualmente
ções estabelecidas com as grandes empresas em suas 63 lojas no Município de São Paulo e mais 36 nos demais municípios da
Região Metropolitana. Já a Finasa possui 47 lojas no Município de São
proximidades. Já nos questionários aplicados junto às Paulo, às quais se somam mais 36 nos demais municípios da Região
empresas do circuito superior, priorizaram-se questões Metropolitana.

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

trodomésticos e vestuário se destacam entre os agentes artigos de consumo diário se fundamenta, ademais, na
do circuito superior que têm alcançado maior capilarida- importância das situações de interação que conferem
de no território metropolitano6. sentido ao lugar no cotidiano (LINDÓN, 2006), ou ainda,
A proximidade de equipamentos de consumo e de de redes de sociabilidade características das redes de
grandes redes de varejo nas periferias acaba por po- vizinhança nas periferias.
tencializar os anseios reprimidos de certos produtos e Processos desta natureza expressam meios pelos
marcas globais e nacionais entre a população pobre que quais a racionalidade hegemônica financeira tem
pode acessar agora um crédito fácil, ainda que extrema- logrado alcançar uma maior capilaridade no território e
mente custoso. A importância do acesso a determinadas no tecido social. Contudo, os impactos cotidianos dos
marcas exerce, neste ponto, um papel central nas dinâ- nexos financeiros têm implicado, ao mesmo passo, a
micas em curso, uma vez que, conforme explica Sennet resistência e a emergência de contra-racionalidades,
(2006), a paixão auto consumptiva não se fundamenta reveladoras do papel ativo assumido pelo espaço e pelo
mais apenas na influência da publicidade e na lógica da lugar. Muitas vezes subestimado pela literatura recente
“obsolescência planejada”. Há, hoje, um maior envolvi- em financeirização, o caráter ativo do espaço encontra,
mento do consumidor em sua paixão pelo consumo, ex- como referido, certa expressão entre as abordagens
presso pela exaltação das marcas e da suposta potência socioculturais da financeirização da vida cotidiana
embutida nos objetos. O processo de consumo envolve, (COPPOCK, 2013).
desta forma, não apenas uma classificação e diferen- Na periferia de São Paulo, estas formas de
ciação social de objetos, mas também de signos, que se racionalidade divergentes, mas ao mesmo tempo
ordenam como valores estatutários no seio de uma hie- convergentes (SANTOS, 1996), se manifestam, entre
rarquia (BAUDRILLARD,1970). outros, em fenômenos analisados a seguir, envolvendo
A crescente oferta por parte do circuito superior vol- toda uma “economia dos centavos”, a convivência
ta-se, hoje, a uma demanda anteriormente voltada so- com a situação de endividamento a partir da utilização
bretudo aos pequenos negócios da economia popular do do crédito rotativo, o empréstimo de cartões, nomes
circuito inferior da economia (SILVEIRA, 2009). Frente à e terminais de pagamento eletrônicos, assim como a
proximidade das grandes redes e à maior acessibilida- presença de moedas locais.
de ao crédito, diversificam-se as práticas de consumo A situação de pobreza vivenciada cotidianamente
da população pobre em estabelecimentos de diferen- pelas camadas de baixa renda se manifesta, entre outros,
tes portes. Transformam-se ritmos e deslocamentos de na importância assumida por operações de pequeno
práticas características do cotidiano nos lugares. Re- valor, ou ainda, em uma verdadeira “economia dos
define-se, por conseguinte, o tamanho do mercado do centavos”, densamente presente nos bairros periféricos
circuito inferior que passa a enfrentar uma concorrência das grandes cidades (MONTENEGRO, 2014). Embora
altamente capitalizada, inclusive em bairros periféricos a possibilidade de pagamento com cartões venha se
que até então lhes eram cativos. Intensifica-se, ao mes- difundindo recentemente, o dinheiro à vista se mantém
mo passo, a drenagem de um fluxo já escasso de capital como a principal forma de circulação monetária na
que agora passa a ascender em maior volume do circuito economia popular. Há toda uma economia que circula
inferior, ou seja, da população pobre, rumo ao circuito su- na forma de centavos, visto que as próprias moedas
perior da economia, ampliando, finalmente, as formas de possuem ainda um valor central.
acumulação das grandes redes (SILVEIRA, 2016).
Haja vista o baixo poder de compra dos consumidores
Pequenos negócios seguem, porém, exercendo um nas periferias, cada cliente só pode comprar quantidades
importante poder de polarização sobre o mercado na muito pequenas ou demandar serviços relativamente
periferia. Determinados tipos de serviços e compras “baratos” em estabelecimentos como vendinhas,
menores e pontuais ocorrem, em sua maioria, em bicicletarias, chaveiros, sapateiros e copiadoras. A
estabelecimentos como vendinhas, açougues e salões compra fracionada de cigarros, balas e comprimidos por
de beleza. Tal frequência se explica não apenas pela R$ 0,50 ou o pagamento de centavos pelo uso da internet
facilidade garantida pela proximidade, mas também pela em lanhouses, por exemplo, manifestam a importância
permanência da possibilidade do fiado no comércio de deste fracionamento do capital e sua própria escassez.
vizinhança, mesmo que, muitas vezes, estes pratiquem Situações desta natureza, presentes na periferia de
preços mais altos do que os supermercados do bairro. São Paulo, revelam, ademais, quanto o dinheiro pode
A preferência pela pequena vendinha para a compra de “render” entre a população de baixa renda, tanto para o
6
A rede Casas Bahia possui atualmente 142 lojas espalhadas pela Região desenvolvimento de pequenas atividades quanto para
Metropolitana de São Paulo, das quais 84 se encontram no Município de a realização de seus consumos diários. Frente ao alto
São Paulo. A rede Ponto Frio possui, por sua vez, 49 lojas no Município,
contabilizando 79 pontos de venda na Região Metropolitana. Já a rede de custo de vida nas metrópoles e aos baixos níveis de
confecções Marisa possui 103 estabelecimentos na Região Metropolita- remuneração da maioria da população, aos quais se
na, das quais 54 localizadas no Município de São Paulo.

100
Da financeirização ao lugar: dos nexos hegemônicos às contra-racionalidades do cotidiano

soma hoje o endividamento generalizado, desenvolvem- um determinado cartão encontra-se cheio de despesas,
se diferentes táticas financeiras que garantem o sustento paga-se apenas o exigido e passa-se a não utilizá-lo até
das famílias até o fim do mês. que se consiga desbloqueá-lo. Entrementes, utiliza-se
O maior acesso ao crédito induz, em contrapartida, outros cartões próprios ou de terceiros. A banalização do
à expansão do consumo e à realização de compras de acesso aos cartões entre as diferentes classes de renda
maior valor em grandes estabelecimentos, as quais se reflete na posse generalizada deste artefato entre
não encontram, como referido, lastro na renda efetiva entrevistados na periferia paulistana, dentre os quais
da população pobre. Ao analisar as implicações da 60% possuíam mais de um cartão.
financeirização sob o consumo dos trabalhadores, A crescente mobilização de redes pessoais para o
Lapavitsas (2011) relembra que os gastos não se empréstimo de cartões de crédito, ou ainda, do próprio
baseiam, no entanto, apenas em decisões financeiras, nome revela, ademais, como os nexos financeiros per-
uma vez que envolvem também aspectos não meiam hoje a esfera da sociabilidade. Segundo o Data-
econômicos como compromissos morais, obrigações popular, entre 2010 e 2014 cresceu não só a quantidade
familiares e aspirações pessoais. Nesta direção, é de pessoas que pediram dinheiro ou o nome emprestado
importante pontuar que o recente impulso às compras para pagar contas ou como garantia para uma compra a
entre a população pobre brasileira atendeu, em grande um parente ou amigo, mas também a frequência destes
medida, a uma demanda legítima, mas reprimida durante empréstimos8. Entre os entrevistados na periferia paulis-
anos. tana, 40% declararam já ter usado cartões de terceiros e
Neste cenário, o recurso ao parcelamento das 42% já ter emprestado seus cartões a parentes ou ami-
compras no cartão de crédito ou ao adiamento do gos. Tais práticas envolvem a mobilização de vínculos
pagamento da fatura se destacam entre novas práticas próximos para o auxílio cotidiano, explicitando a impor-
mais “financeirizadas” para fazer o dinheiro render. tância das redes de apoio para indivíduos em situação
Diante da produção sistemática do endividamento, de pobreza, assentadas, em sua maioria, no localismo e
estabelece-se, hoje, uma relação cotidiana com a na proximidade (MARQUES, 2010). Das redes de relações
economia da dívida (LAZZARATO, 2011). Apesar das desenvolvidas na vida cotidiana no lugar, podem nascer
elevadas taxas de juros praticadas, a disponibilidade racionalidades de uma natureza divergente, mas que não
de um valor fictício suplementar todo mês leva muitas deixam de ser convergentes aos nexos da financeiriza-
famílias a considerar o limite dos cartões de crédito ção.
como parte prévia do orçamento, ao qual é acrescido de A crescente incorporação de terminais eletrônicos
antemão esta renda “extra”. Grande parte da população de cartões de débito e de crédito (conhecidos como
de baixa renda gasta, porém, muitas vezes, mais do que “maquininhas”) entre os pequenos negócios representa
ganha e, no momento de pagar as faturas dos cartões, outro fenômeno revelador da permeabilidade alcançada
recorre ao crédito rotativo e não paga o valor integral pelas finanças entre a população de baixa renda. Sua
da fatura, mas o mínimo exigido para o que cartão seja difusão, a partir de 2002, coincide com a implantação
“liberado” e este possa continuar a ser usado. Tal prática do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), referido
implica, como referido, o pagamento de juros bastante acima. Desde então, os chamados POS (points of sale)
elevados, o que acaba por multiplicar o valor final das alcançaram uma extrema capilaridade pelo território
faturas. O uso do desta modalidade de crédito revela- brasileiro, chegando às periferias metropolitanas e às
se, assim, uma armadilha cuja lógica tende a ampliar menores cidades. Estima-se que haja atualmente cerca
o grau de endividamento e inadimplência, dificultando de 4,9 milhões de máquinas de cartão em todo o país (BCB,
ainda mais a chance de solvência7. O constante recurso 2015). Sua incorporação pelas mais diversas atividades
ao crédito rotativo explicita a incorporação, ou ainda, a do circuito inferior reflete não apenas a banalização do
naturalização da condição de endividamento entre a acesso aos cartões, mas a decorrente mudança no uso
população pobre e como diferentes estratégias para lidar de instrumentos de pagamento tradicionais e o crescente
cotidianamente com esta condição nascem dos próprios interesse em oferecer esta opção adicional, presente
nexos financeiros. Conforme coloca Bauman (2007), em 87% dos pequenos estabelecimentos entrevistados
a generalização da concessão de crédito visa incutir a na periferia de São Paulo. Emitidos por instituições
prática da dívida não paga enquanto estratégia de vida, financeiras credenciadas, os terminais eletrônicos
convertendo o “viver a crédito” em hábito. representam, contudo, altos custos operacionais
A posse simultânea de diferentes cartões de crédito referentes ao aluguel das máquinas e às porcentagens
emerge, neste quadro, como outra estratégia derivada da sobre cada transação realizada através dos mesmos. Os
capilaridade alcançada pela financeirização. Enquanto
8
A dimensão do fenômeno da mobilização de redes sociais para o auxílio
7
De acordo com estudo da Serasa Experian (2015), os chamados “jovens financeiro se expressa, por exemplo, no fato de 25,5 milhões de brasilei-
adultos da periferia” representam 23% dos inadimplentes no Brasil, dentre ros terem emprestado seu cartão de crédito para parentes ou amigos em
os quais 34% se tornaram inadimplentes apenas em 2014. 2012 (ABECS, 2012).

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valores destas taxas variam conforme o ramo de atuação Estas formas alternativas de organização das
ou o porte da empresa em termos de faturamento. Na finanças também se fazem presentes em São Paulo9,
periferia paulistana, os aluguéis dos terminais variam conforme revela Paula (2014) em pesquisa sobre os
entre R$ 60,00 e R$ 100,00 mensais e as taxas cobradas bancos comunitários e as moedas locais (e/ou sociais).
sobre o cada operação de 2% a 5%. Fundamentada nos preceitos da economia solidária,
A incorporação das “maquininhas” para o pagamento a criação de bancos comunitários e moedas locais
com cartões implica, assim, uma aceleração da visa desenvolver redes locais contíguas de produção e
drenagem da poupança popular para o circuito superior, consumo em comunidades de baixa renda. A concessão
uma vez que se multiplicam os canais que a conduzem. de empréstimos tende a estar pautada em relações de
À tal subordinação financeira, acresce-se ainda uma confiança e de vizinha (PAULA, 2014), características
dependência técnica e organizacional, haja vista a de um cotidiano compartilhado no lugar, sobretudo por
imposição do uso exclusivo dos terminais eletrônicos aqueles em situação de pobreza.
de credenciadores como Visanet e Rede. Cabe destacar O alcance espacial de uma moeda local revela a
que a adoção dos terminais eletrônicos de pagamento importância da contiguidade e das redes de relação
pode resultar ainda no endividamento de seus locatários. aí desenvolvidas para a emergência de organizações
A partir da aquisição das “maquininhas”, é possível financeiras de outra natureza. A mobilização destas redes
solicitar aos bancos a antecipação do recebimento assentam-se no próprio sentido atribuído ao lugar pelos
do valor de futuros pagamentos a serem feitos pelos sujeitos em seu cotidiano (LINDÓN, 2006). Enquanto
clientes com cartões, como uma forma de crédito, ao expressões de uma racionalidade financeira divergente, os
invés de aguardar até o fim do mês para recebê-los. bancos comunitários e as moedas locais compreendem,
Oferecido aos estabelecimentos afiliados ao sistema ademais, uma forma de evitar a drenagem da poupança
Cielo, a Antecipação de Valores Recebíveis (ARV) tem popular, na medida em que impedem o afluxo financeiro
provocado o endividamento de pequenos negociantes, vertical para o circuito superior (PAULA, 2014).
visto que as operações em seus estabelecimentos não Nos lugares, reúnem-se, assim, diversas redes sociais
alcançam, muitas vezes, o valor antecipado, sobre o e financeiras, representantes, por sua vez, dos nexos da
qual ainda recaem juros. Dentre os pequenos negócios financeirização hegemônica, mas também de contra-
entrevistados na periferia de São Paulo, 27% declararam racionalidades localmente gestadas. Depreendem-se,
utilizar o serviço ARV. daí, abordagens como aquela das ecologias financeiras
Não obstante, ao mesmo passo em que estes novos (financial ecologies), segundo a qual a dinâmica espacial
nexos se capilarizam pela economia popular, emergem do sistema financeiro abrange uma composição de atores
também diferentes formas de contornar a rigidez que e instituições produtores de conhecimento financeiro local,
lhes é inerente. Daí os diferentes acordos estabelecidos além de práticas e de subjetividades distintos (FRENCH
entre pequenos comerciantes envolvendo o empréstimo et al., 2011). Buscando realizar “uma leitura das finanças
das máquinas e as porcentagens das operações para o mais sensível ao lugar”, Coppock (2013, p.482) destaca
uso das mesmas. Os “empréstimos” podem se estender como a reunião de redes sociais e financeiras variadas,
inclusive a estabelecimentos localizados em outras compreendidas como ecologias financeiras, molda as
partes da cidade, já que o uso do terminal poder se dar subjetividades financeiras e as condições de engajamento
através de uma linha de telefone fixo, de telefone celular com instituições financeiras do mainstream, mas também
ou de radiofreqüência. Tais práticas revelam a capacidade com organizações alternativas na vida cotidiana. Em cada
do circuito inferior em driblar a especialização extrema lugar, tem-se, em suma, a convivência dialética entre uma
dos objetos técnicos, ou ainda, a hipertelia de que nos razão de ordem local e outra de ordem global enquanto
fala Simondon (1958). Não obstante, isto se dá, em um ordens que se superpõem, se associam e se contrariam
contexto de aprofundamento de subordinação crescente (SANTOS, 1996).
aos nexos financeiros. Novas formas de capilaridade da financeirização
Por fim, verifica-se, ao mesmo passo, o surgimento sobre a pobreza e as periferias das grandes cidades têm
de novos padrões de engajamento financeiro para além provocado, hoje, diferentes implicações no território e
das redes financeiras hegemônicas. A emergência de na vida social como um todo. Seus impactos cotidianos
organizações econômicas como cooperativas de crédito, evidenciam como as finanças deixam de compreender
bancos comunitários, sistemas de moedas locais, um espetáculo da economia distante, consolidando-se,
clubes de troca de serviços por créditos representa, progressivamente, como uma esfera da qual os indivíduos
segundo Coppock (2013), novos meios de subverter os
impactos da financeirização. Para este autor, há toda uma 9
Segundo Paula (2014), havia 104 bancos comunitários instalados no país
em 2015, dos quais 4 encontram-se na cidade de São Paulo. Os principais
multiplicidade de espaços e sujeitos financeiros situados
produtos oferecidos pelo banco União Sampaio (na periferia da zona sul)
fora do mainstream aos quais devemos atentar. são o crédito para consumo, o crédito produtivo, o crédito cultural e o “Pu-
xadinho”.

102
Da financeirização ao lugar: dos nexos hegemônicos às contra-racionalidades do cotidiano

devem não apenas participar, mas a partir da qual devem de um padrão de provisão de riqueza baseado no
definir sua identidade (MARTIN, 2002). Os novos nexos mercado, indivíduos passam a ser obrigados a gerir seu
assumidos pela financeirização correspondem, porém, futuro financeiro através de investimentos e poupanças.
sobretudo ao processo de “expropriação financeira” A financial literacy corresponde, destarte, não apenas à
(LAPAVITSAS, 2011), o qual assume hoje uma natureza habilidade para “performar” segundo o ideal neoliberal,
superlativa por meio da multiplicação dos canais de mas à própria sujeição à disciplina dos mercados
extração da poupança popular e da produção generalizada financeiros (COPPOCK, 2013). No entanto, como coloca
do endividamento. Storper (2014), enquanto não houver políticas públicas
com capacidade regulatória para reformatar o mundo das
finanças, nenhuma educação financeira será suficiente
para proteger a sociedade e voltar a garantir o bem-estar
Considerações finais social.
Aos avanços recentes da financeirização do território e
No período atual, estabelecem-se novos nexos entre da sociedade brasileiros não correspondeu, como referido,
agentes hegemônicos dos mercados financeiros e a nenhum avanço no campo da regulação no sentido de
pobreza, ou ainda, entre os circuitos superior e inferior minimizar a generalização do endividamento e suas
da economia. O papel central das finanças nestes nexos repercussões sobre o cotidiano da população pobre. Em
se revigora diante das novas possibilidades técnicas um contexto de desregulação dos sistemas financeiros
e políticas do período. Ao mesmo passo em que ao nacionais e de mercantilização generalizada, revigora-
circuito superior interessa agora a liquidez do dinheiro se, contudo, justamente o imperativo de disciplinar os
oriundo das poupanças populares, este passa a garantir mercados financeiros, sobretudo em países periféricos
a capilaridade da financeirização junto ao circuito inferior. e semiperiféricos (DAHER, 2016). Frente à potência
Como resultado, “aceita-se o custo exorbitante do dinheiro dos preceitos neoliberais e dos ditames dos interesses
emprestado, o endividamento crônico como forma de hegemônicos no território brasileiro, tal imperativo faz-se
vida social e a definição de insolvência enunciada pelas ainda mais urgente.
grandes firmas” (SILVEIRA, 2009, p.74).
Frente ao avanço das formas de “capilaridade”
assumidas pelas finanças, à violência do endividamento
e à multiplicação dos canais de drenagem da renda
popular, consideramos, por fim, que cabe aprofundarmos
as análises sobre o discurso hegemônico que apregoa
a chamada “financial literacy” (educação financeira)
enquanto habilidade imprescindível em uma sociedade
regida, paradoxalmente, pela própria fabricação do
homem endividado (LAZZARATO, 2011). A “financial
literacy” envolve competências pretensamente requeridas
para lidar com a complexidade financeira que permeia a
vida social. Refere-se, nesta direção, ao conhecimento e
à compreensão de produtos e serviços financeiros com
os quais se deve lidar no cotidiano e às implicações de
compromissos financeiros. A “financial literacy” emergiria,
nesta direção, como solução para capacitar a sociedade
a lidar com a complexidade financeira e o risco (CLARK,
2014).
Contudo, para além da assimetria de informações
disponíveis aos cidadãos e aos agentes hegemônicos,
a financeirização avança em um contexto de recuo
dos sistemas de proteção social e de privatização de
bens e serviços universais. Em um mundo regido pelas
finanças e pelo mercado, o declínio da capacidade dos
sistemas de proteção social em garantir a segurança a
longo prazo tende a ser substituído pela individualização
da capacidade de garantia de bem-estar através da
aquisição da financial literacy e, finalmente, pela própria
subserviência aos nexos financeiros. Sob a ascendência

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

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Data de submissão: 10/03/2017


Data de aceite:30/05/2017
Data de publicação: setembro/2017

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Degradação das praças públicas e os fatores de riscos para a população: exemplos para a cidade de Natal/RN

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai./ago.

ARTIGOS

DEGRADAÇÃO DAS PRAÇAS PÚBLICAS E OS FATORES DE RISCOS PARA A POPULAÇÃO:


EXEMPLOS PARA A CIDADE DE NATAL/RN*

Maria Rosângela Gomes**


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho ***

Encarnita Salas Martin****


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho *****

Resumo: As condições de degradação em que se encontram algumas praças públicas da cidade recaem, diretamente, sobre a queda de sua
qualidade e a perda de suas funções, além de poderem oferecer riscos a seus usuários. Nesse sentido, o objetivo é verificar quais os fatores de
riscos potenciais que as praças públicas de Natal/RN oferecem para a população local, em virtude das incontingências advindas das condições
de degradação e inadequações presentes. Foram realizadas leituras sobre a temática em pauta, seguidas de levantamentos de dados secundários
sobre as características e condições de 168 praças públicas da cidade, selecionadas a partir de uma amostragem aleatória simples, estratificada
por bairro. Os resultados apontam que, diante das condições das suas estruturas de lazer, dos equipamentos urbanos de suporte, das condições
de limpeza, da arborização e da permeabilidade do solo nas praças analisadas, essas apresentam fatores de riscos potenciais, como acidentes
físicos, poluição do ar, do solo e visual; alagamentos, atos de violência, aumento de temperatura e desconforto térmico, para os seus usuários, para
a população do entorno e para a cidade como um todo, em virtude da abrangência do problema em questão.
Palavras-chave: Praças públicas. Riscos potenciais. Natal.

DEGRADATION OF PUBLIC SQUARE AND THE RISK FACTORS FOR THE POPULATION: EXAMPLES FROM THE CITY OF NATAL/RN
Abstract: The conditions of degradation in which are some public square of the city fall directly on the fall of his quality and the loss of their
functions, and can pose risks to their users. In this sense, the goal is to check what the risk factors, potential, that public square of Natal/RN offer
for the local population, because of absence of contingency resulting from degradation and inadequacies present conditions. Readings were held on
the subject in the agenda, followed by secondary data from surveys on the characteristics and conditions of 168 public square of the city, selected
from a simple random sampling, stratified by district. The results show that on the conditions of its leisure facilities, urban equipment support,
the cleaning conditions, afforestation and soil permeability in the public square analyzed, these, present potential risk factors such as, physical
accidents, pollution air, soil and visual; floods, acts of violence, increased temperature and thermal discomfort for its users, to the surrounding
population and for the city as a whole, because of the scope of the target problem.
Keywords: Public square. Potential risks. Natal.

DEGRADACIÓN DE LAS PLAZAS PÚBLICAS Y LOS FACTORES DE RIESGOS PARA LA POBLACIÓN: EJEMPLOS PARA LA CIUDAD DE NAVIDAD / RN
Resumen: Las condiciones de degradación en las que se encuentran algunas plazas públicas de la ciudad recaen directamente sobre la caída
de su calidad y la pérdida de sus funciones, además de poder ofrecer riesgos a sus usuarios. En este sentido, el objetivo es verificar qué factores
de riesgo, potenciales, que las plazas públicas de Natal/RN ofrecen para la población local, en virtud de las condiciones de degradación e y de
las inadecuaciones presentes. Se realizaron lecturas sobre la temática en pauta, seguida de levantamientos de datos secundarios sobre las
características y condiciones de 168 plazas públicas de la ciudad, seleccionadas a partir de un muestreo aleatorio simple, estratificado por barrio.
Los resultados apuntan que ante las condiciones de sus estructuras de ocio, de los equipamientos urbanos de soporte, de las condiciones de
limpieza, de la arborización y de la permeabilidad del suelo en las plazas analizadas, éstas, presentan factores de riesgos potenciales, como
accidentes físicos, contaminación del aire, del suelo y visual, inundaciones, actos de violencia, aumento de temperatura e incomodidad térmica,
para sus usuarios, para la población del entorno y para la ciudad como un todo, en virtud del alcance del problema en cuestión.
Palabras clave: Plazas públicas. Riesgos potenciales. Natal.
________________________________
* Artigo construído a partir do trabalho de dissertação de mestrado intitulado “As praças públicas de Natal/RN no âmbito dos problemas socioambientais urbanos”, apre-
sentado e defendido em março de 2012 junto ao Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. O mesmo
resulta de uma nova perspectiva de análise e de abordagem das informações e dos dados levantados na referida pesquisa, agora com foco nos fatores de riscos presentes
nos espaços estudados.
**Doutoranda em Geografia na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Campus de Presidente Prudente/SP. E-mail:
rosangelagms@hotmail.com
***Campus Presidente Prudente. Rua Roberto Simonsen, 305 – Presidente Prudente – Fone: 18 32295680
****Geógrafa e doutora em Geociências e Meio Ambiente - Docente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Cam-
pus de Presidente Prudente/SP. E-mail: encarnita.martin@gmail.com.
*****Campus Presidente Prudente. Rua Roberto Simonsen, 305 – Presidente Prudente – Fone: 18 32295680

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GEOgraphia, vol. 19, n.40, 2017: mai./ago.

Entretanto, por vezes, as inadequações de seus


Introdução
projetos urbanísticos, a falta de manutenção, os atos de
vandalismo e outros processos sociais envolvidos não
É notório, na paisagem dos centros urbanos
são compatíveis e favoráveis ao cumprimento de suas
brasileiros, que o rápido e desordenado processo de
reais funções.
ocupação do solo, sobretudo nas grandes cidades e
São muitos os problemas presentes nas áreas
regiões metropolitanas, acabou por produzir espaços
verdes, em termos de distribuição espacial, quantidade e
profundamente contraditórios e inadequados em
qualidade, mas, especificamente, para fins deste trabalho,
múltiplos aspectos naturais e sociais, e que expõem a
a discussão está centrada nas frequentes condições de
população citadina às mais complexas condições de
degradação em que essas se encontram. Condições que
riscos.
incidem diretamente na queda de qualidade, na perda de
O risco pode ser tomado como uma categoria de suas funções, e as caracterizam como espaços que, em
análise associada a priori às noções de incerteza, potencial, podem oferecer riscos de uso para os seus
exposição ao perigo, perda e prejuízos materiais,
econômicos e humanos em função de processos de frequentadores e para a cidade como um todo.
ordem “natural” (tais como os processos exógenos Assim como em outras cidades e capitais brasileiras,
e endógenos da Terra) e/ou daqueles associados ao
essa é uma situação bem marcante e presente na cidade
trabalho e às relações humanas. O risco (lato sensu)
refere-se, portanto, à probabilidade de ocorrência de de Natal. Conforme Gomes (2012), as praças públicas da
processos no tempo e no espaço, não constantes e cidade, no conjunto de suas áreas verdes, caracterizam-
não determinados, e à maneira como esses processos
afetam (direta ou indiretamente) a vida humana (Castro; se por diversos níveis de inadequação e degradação
Peixoto; Rio, 2005, p. 12). nos aspectos de lazer, ecológico e de infraestrutura,
contribuindo para a queda de qualidade das condições
O risco também é compreendido, aqui, enquanto uma ambientais1 urbanas.
construção social, a “percepção de um perigo possível, Essa é uma realidade também expressa na matéria
mais ou menos previsível por um grupo social ou por um publicada pelo jornal Tribuna do Norte (2004), que
indivíduo que tenha sido exposto a ele” (Veyret, 2007, p. destaca que as praças públicas da cidade, em sua grande
24). maioria, são espaços descuidados e aparentemente
As cidades brasileiras, embora com diferentes níveis de abandonados, sobretudo em virtude da pouca
complexidade, abrigam e expõem significativa parcela da arborização, da falta de manutenção, dos precários
população a diferentes condições de riscos, associadas, serviços de limpeza e de iluminação, além da crescente
entre outros problemas, às precárias condições no presença de usuários de drogas no local.
fornecimento de energia e de saneamento básico; ao Todavia, e fazendo uso das palavras de Acselrad
acesso à habitação, à saúde, à educação e ao lazer de (2001, p. 46), trata-se de problemas que, “exprimem-
qualidade, bem como à redução e às inadequações das se sob a forma de uma queda da produtividade política
áreas verdes; ao aumento de alagamentos, enchentes, dos investimentos urbanos, incrementando os graus
temperatura, poluição do ar, visual e sonora (Ribeiro, de conflito e incerteza no processo de reprodução das
2010). estruturas urbanas”. Também, reafirmam a crise da
Tais problemas se intensificam juntamente com a legitimidade das políticas públicas urbanas, em virtude
expansão dos centros urbanos, além de sustentarem da incapacidade de fazer frente aos riscos naturais e
e potencializarem os demais. Apresentam maior sociais (Acselrad, 2001).
crescimento de suas características sistêmicas quanto Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é verificar
maiores forem as cidades (Santos, 2005), exigindo quais os fatores de riscos potenciais que as praças
questionamentos e reflexões acerca de sua infraestrutura públicas de Natal/RN oferecem para a população local,
e a efetiva legitimidade das políticas públicas de serviços em virtude das incontingências advindas das condições
urbanos. de degradação e inadequações presentes nesses
Assim, e em um contexto mais amplo da frequente espaços.
ausência de investimentos em infraestrutura e na oferta O município de Natal possui 869.9542 habitantes , em
de serviços urbanos de qualidade que atendam todos os uma área de 167.263km², considerado como área urbana
setores e as camadas sociais das cidades brasileiras, é na sua integridade. O município está inserido no litoral
que se chama a atenção, também, para o caso das áreas oriental do estado do Rio Grande do Norte, localizado nas
verdes urbanas públicas. coordenadas geográficas 5° 47’ 42’’ de latitude sul e 35°
A área verde é um espaço que, em meio à estrutura 12’ 34’’ de longitude oeste (Figura 1).
da cidade, desempenha grande papel pela riqueza das Dentre outras áreas verdes existentes na cidade de
combinações de seus atributos na qualidade ambiental
urbana (Monteiro, 2009), tanto pelas suas funções O termo condições ambientais faz referência aos aspectos de ordem ecológica,
1

natural e social.
ecológicas como pela oferta de lazer para a população.
2
Estimativa para 2015 (IBGE, 2010).

108
Degradação das praças públicas e os fatores de riscos para a população: exemplos para a cidade de Natal/RN

Natal, ela dispõe de um conjunto de 2553 praças públicas praças públicas encontram-se distribuídas de forma
devidamente reconhecidas como áreas verdes, conforme desigual entre os 36 bairros da cidade, em termos de
consta no Plano Diretor do Município. oferta e demanda, a destacar a ausência nos bairros:
Na Lei Complementar n. 082, de 21 de junho 2007, no Salinas, localizado na Zona Norte; Cidade Nova, Planalto
capítulo III, artigo 6º, inciso XXXIV, a praça é uma “área e Dix-Sept Rosado, localizados na Zona Oeste. Pouco
verde com dimensões, em geral, entre 100m² (cem metros se conhece sobre a qualidade dessas praças públicas
quadrados) e 10 (dez) hectares, destinada ao lazer ativo e, mais ainda, sobre a relação entre as condições de
ou passivo e para manifestações da sociedade, podendo degradação e os eminentes riscos potenciais para a
ser dotadas ou não de vegetação” (Natal, 2007). As população local, presentes nesses espaços ao longo da
malha urbana.

Figura 1 – Mapa de localização geográfica da área urbana de


Natal/RN, com destaque para os bairros.

Fonte: Gomes (2012).

3
Os números e a distribuição das praças púbicas da cidade foram obtidos por Go-
mes (2012), a partir da atualização entre os dados disponibilizados pela Semurb e a
Semsur, órgãos responsáveis pela gestão das praças públicas do município.

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GEOgraphia, vol. 19, n.40, 2017: mai./ago.

Procedimentos Metodológicos No quadro abaixo (Quadro 1) é destacado o número


de praças públicas por bairro, e o número de áreas que
A princípio foram realizadas leituras, fichamentos e compuseram a amostra pesquisada.
discussões do material bibliográfico sobre a temática em
pauta, e de forma mais específica, sobre riscos, qualidade
dos serviços urbanos públicos, áreas verdes e praças.
Foram feitos, também, consultas e levantamentos
de dados secundários4 sobre a infraestrutura de um
conjunto de 168 praças públicas que se enquadram na
categoria de áreas verdes de Natal, selecionadas a partir
de uma amostragem aleatória simples, estratificada por
bairro.

Quadro 1 – Número de praças públicas por bairro de Natal/RN, com destaque para as áreas amostradas.

4
Os dados sobre as áreas amostradas foram obtidos junto ao banco de dados pri-
mários de Gomes (2012), onde consta o registro com todo o levantamento dos
equipamentos de lazer, infraestrutura, vegetação e condições de limpeza, juntamen-
te com o registro fotográfico, inédito, das praças públicas de Natal.

110
Degradação das praças públicas e os fatores de riscos para a população: exemplos para a cidade de Natal/RN

Fonte: Gomes, 2012. Organizado por Gomes, 2015.

Foram utilizadas, para as praças públicas amostradas, Os dados levantados foram devidamente organizados,
as informações que seguem: presença e/ou ausência quantificados e posteriormente analisados. Para tanto,
de vegetação arbórea; presença e/ou ausência de elencou-se um conjunto de aspectos considerados
iluminação urbana; estimativa da área permeável (em negativos em relação às condições das praças públicas
porcentagem); condições e entidades que realizam a analisadas, nomeados como indicadores “negativos”.
limpeza da área; existência e estado de conservação dos
Para cada um dos indicadores “negativos” foi
equipamentos de lazer. Para a escolha e a análise dos
associado e elencado um conjunto de fatores de riscos
aspectos trabalhados, tomou-se como base o exposto
potenciais, considerados pertinentes, e algumas das
por Cavalheiro et al. (1999), ao afirmar que,
possíveis consequências para a população usuária e
As áreas verdes são um tipo especial de espaço
demais habitantes da cidade. Veja o quadro a seguir
livre onde o elemento fundamental de composição (Quadro 2).
é a vegetação. Elas devem satisfazer três objetivos
principais: ecológico-ambiental, estético e de lazer. As informações sobre os indicadores “negativos”,
Vegetação e solo permeável (sem laje) devem ocupar, identificados nas praças públicas, foram interpretadas
pelo menos, 70% da área; devem servir à população,
conforme o exposto abaixo:
propiciando um uso e condições para recreação.

Quadro 2 – Descrição da relação entre os indicadores “negativos” e os fatores de riscos potenciais nas praças públicas de Natal, e
as possíveis consequências para a população local.

111
GEOgraphia, vol. 19, n.40, 2017: mai./ago.

Fonte: organizado por Gomes, 2015.

• Ausência de vegetação arbórea: não possuíam


Resultados e discussões
árvores em seu perímetro;
• Predominância de solo impermeável: área com As praças públicas de Natal são espaços que
estimativa de 30% a 100% de superfície impermeável; poderiam ser usados para as atividades de lazer
• Acúmulo de lixo: grande quantidade de lixo nos e de socialização da população ao ar livre, mas,
caminhos de passagem e nos locais de lazer. frequentemente, a sua baixa qualidade física – associada,
• Falta de iluminação urbana: postes de luz aqui, aos indicadores “negativos”, ausência de vegetação
com lâmpadas quebradas e/ou ausência de postes no arbórea, predominância de solo impermeável, acúmulo
perímetro da praça; de lixo, falta de iluminação urbana e depredação dos
equipamentos de lazer –, além de comprometer as suas
• Depredação dos equipamentos de lazer:
funções ecológicas, também, em potencial, oferece
equipamentos com predominância de ocorrências de
riscos de uso à população.
rachaduras, ferrugem, ferros e parafusos expostos e/ou
Assim, tem-se que, quanto mais negativos forem os
quebrados, entre outros semelhantes.
resultados demonstrados, pior será a avaliação final
Para a análise e a exposição dos resultados, foram (Nucci, 2008) dos espaços estudados.
gerados gráficos considerados apropriados ao formato
de cada questão, e feito uso de imagens de algumas
praças. E por último, a elaboração de um mapa com a Indicadores “negativos”
distribuição espacial das praças públicas de Natal,
conforme o número de sobreposições dos fatores de A análise dos indicadores “negativos”, para cada uma
riscos potenciais verificados, no caso, com ocorrências das 168 praças estudadas permite verificar que os casos
de 0 a 5 sobreposições. O mapa foi gerado no software com maior expressividade são o estado de conservação
ArcMap, versão 10.1, a partir do uso de arquivos shapefile dos equipamentos de lazer (50%) e acúmulo de lixo
das praças públicas da cidade, disponibilizado pela (47%), seguidos dos casos de predominância de solo
Secretaria Municipal de Urbanismo. impermeável (27%) e falta de iluminação (17%), e por
último, a ausência de vegetação arbórea (7%), conforme
exposto no gráfico abaixo (Figura 2).

112
Degradação das praças públicas e os fatores de riscos para a população: exemplos para a cidade de Natal/RN

Figura 2 – Gráfico com a porcentagem das condições indicadoras de fatores de riscos


nas praças públicas de Natal/RN.

Fonte: Gomes (2012). Organizado por Gomes (2015).

Vale ainda destacar que, em 80% do universo mau estado, seja por atos de vandalismo e/ou falta de
pesquisado, existe algum tipo de equipamento de lazer, e manutenção (Figura 3).
desses, mais da metade, especificamente 62%, estão em

Figura 3 – Gráfico com a porcentagem da presença e da ausência dos equipamentos de lazer


nas praças públicas de Natal/RN.

Fonte: Gomes (2012). Organizado por Gomes (2015).

113
GEOgraphia, vol. 19, n.40, 2017: mai./ago.

Também chama a atenção o expressivo número de tal serviço. Nas demais, o equivalente a 7%, a limpeza
praças que apresentam acúmulo de lixo, principalmente, a é realizada por ONGs e empresas privadas, a partir de
saber, que, em 74% desses espaços, a limpeza é realizada parcerias acordadas.
pelo serviço de limpeza urbana, sob responsabilidade Das 125 praças onde é verificada a atuação do serviço
da prefeitura municipal. Em 19% das áreas, a limpeza público de limpeza, 42% se encontram em condições de
é realizada pelos próprios usuários e moradores local, limpeza ruim, 38% razoável e 20% como bom (Figura 4).
especialmente nos casos em que não são assistidas por

Figura 4 – Gráfico com a porcentagem das entidades que realizam a limpeza


das praças públicas de Natal/RN.

Fonte: Gomes (2012). Organizado por Gomes (2015).

Observa-se que, a partir dos indicadores “negativos” Fatores de riscos potenciais


identificados, as praças públicas da cidade,
predominantemente, se caracterizam por não apresentar
Para melhor compreensão e visualização sobre as
uma boa qualidade. Além disso, estão associados a esses
ocorrências dos fatores de riscos potenciais verificados
indicadores fatores de riscos potenciais, que podem
nas praças públicas – aumento de temperatura e
trazer consequências danosas para a população e, mais
desconforto térmico, alagamentos, poluição do ar, visual
diretamente, para os seus frequentadores.
e do solo; atos de violência e acidentes físicos – e sua
O uso de indicadores é uma eficiente opção para distribuição por bairros de Natal, é apresentado, a seguir,
apontar as áreas carentes em infraestrutura e serviços, o gráfico (Figura 5) com detalhamento das informações.
bem como para auxiliar na análise da distribuição espacial Na sequência, são destacadas algumas imagens
dos riscos sociais (Ribeiro, 2010), além de diminuir a representativas de tais situações.
subjetividade das análises.

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Degradação das praças públicas e os fatores de riscos para a população: exemplos para a cidade de Natal/RN

Figura 5 – Gráfico com as ocorrências dos fatores de riscos potenciais


nas praças públicas nos bairros de Natal/RN.

Fonte: Gomes (2012). Organizado por Gomes (2015).

Acidentes físicos
No gráfico acima (Figura 5), observa-se que o fator de Nas imagens abaixo (Figuras 6 e 7), com vista parcial
risco de maior abrangência nas praças é o de acidentes da “Praça Fruteiras” e da “Praça Miriam Vasconcelos” nos
físicos, com destaque de maiores ocorrências no bairro bairros Potengi e Lagoa Nova, respectivamente, observam-
Potengi, e na sequência os bairros Neópolis, Lagoa Seca, se típicos exemplos de depredação e inadequações da
Lagoa Azul, Cidade Alta e Areia Preta, de modo que cada estrutura de lazer, e que, em potencial, oferecem riscos de
um apresenta o referido fator de risco pelo menos em acidentes físicos para os seus usuários.
cinco de suas praças públicas.

Figura 6 – Vista parcial da Praça Fruteiras, Bairro Figura 7 – Vista parcial da Praça Miriam Vasconcelos,
Potengi, Zona Norte de Natal/RN. Bairro Lagoa Nova, Zona Sul de Natal/RN.

Fonte: Gomes, 2012. Fonte: Gomes, 2012.

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GEOgraphia, vol. 19, n.40, 2017: mai./ago.

A presença de equipamentos de lazer estragados, seja Poluição do ar, do solo e visual


por atos de vandalismo ou por falta de manutenção por
parte da gestão pública, é uma condição corriqueira nas Como segundo fator de risco potencial de maior
praças públicas da cidade. Apesar disso, os equipamentos abrangência, tem-se a poluição, associada, neste trabalho,
continuam sendo usados pela população, o que demonstra às precárias condições de limpeza em que se encontram
falta de opções de lazer, além de aumentar a exposição as praças analisadas. As maiores ocorrências estão nos
aos riscos. bairros Potengi, Lagoa Nova, Cidade Alta e Rocas (Figura
A má qualidade e a inadequação da estrutura de lazer 5).
são caracterizadas pela falta de partes dos equipamentos, Nas praças públicas de Natal, são comuns a presença
falta de assentos e/ou encostos dos bancos, cabos de e o acúmulo de lixo de forma inadequada, por motivos de
aço arrebentados, ferros e parafusos expostos, ferrugem, falta de lixeiras, lixeiras inapropriadas ao uso, ou, ainda,
madeira desgastada e áspera, entre outros. porque não são devidamente usadas pela população para
São condições que favorecem a ocorrência de armazenamento temporário dos resíduos, ou, até mesmo,
possíveis acidentes para a população, uma vez que, no pela ineficiência e/ou ausência dos serviços de limpeza
ato de uso, se encontram mais suscetíveis a lesões e pública.
desconfortos que venham a atingir sua integridade física, Chamam a atenção também os casos em que
como fraturas e escoriações, entre outros acidentes mais determinados locais das praças são usados como
graves. depósitos de lixo a céu aberto, lixo esse, visivelmente,
As depredações da estrutura de lazer nas praças tam- produzido para além do perímetro de sua área, afetando,
bém podem levar a casos de abandono e desvalorização assim, as condições sanitárias e a estética desses
do patrimônio público, contribuindo para que se configu- espaços. Trata-se de um traço cultural da população que,
rem, cada vez mais, como espaços desvalorizados, ocio- mesmo que o caminhão da coleta de lixo passe, depositam
sos, locais de depósito de lixo, de usuários de drogas, o lixo em locais inadequados. Isso pode ser observado na
prostituição e como pontos estratégicos e favoráveis para “Praça Rio Grande do Norte”, localizada no bairro Cidade
atos de violência. Tal situação leva à perda de sua função Alta. Cabe destacar que essa praça tem muito mais
social e afasta a população, privando-a de um espaço de características de um canteiro do sistema viário do que
lazer ao ar livre e fazendo com que se utilizem, cada vez propriamente uma área verde. Na “Praça Irmã Vitória”, no
mais, de locais fechados e considerados seguros e “prote- bairro Rocas, a presença de lixo se repete (Figuras 8 e 9).
gidos”, como os shoppings.

Figura 8 – Vista parcial da Praça Rio Grande do Norte, Bairro Figura 9 – Vista parcial da Praça Irmã Vitória, Bairro Rocas, Zona
Cidade Alta, Zona Leste de Natal/RN. Leste de Natal/RN.

Fonte: Gomes, 2012. Fonte: Gomes, 2012.

A poluição gerada pelo acúmulo de lixo oferece água da chuva que venha a empoçar no local, ou mesmo
condições propícias para a atração e a proliferação de quando os resíduos são arrastados pelo escoamento das
cães, gatos, ratos, baratas, moscas e vermes no local, águas até as calçadas e ruas. Além do mais, quando o
expondo a população a possíveis infecções, a partir da lixo é arrastado até as ruas, torna-se, também, um fator
proliferação de vetores transmissores de doenças. agravante para o entupimento de bueiros, dificultando o
As infecções também podem ocorrer por meio do escoamento das águas e contribuindo para acentuar os
contato da população com o solo contaminado, ou com a casos de alagamentos na cidade.

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Degradação das praças públicas e os fatores de riscos para a população: exemplos para a cidade de Natal/RN

Compreende-se que o lixo urbano, quando tratado estratégicos e favoráveis para atos de violência. Tal
de forma inadequada, se apresenta como uma fonte de situação leva à perda de sua função social e afasta a
poluição, logo, um fator de risco, uma vez que influencia população, privando-a de um espaço de lazer ao ar livre
na queda da qualidade das condições ambientais e, direta e fazendo com que se utilizem, cada vez mais, de locais
ou indiretamente, na saúde dos habitantes da cidade fechados e considerados seguros e “protegidos”, como
como um todo. os shoppings.
A má qualidade e a inadequação da estrutura de lazer
são caracterizadas pela falta de partes dos equipamentos, Alagamentos
falta de assentos e/ou encostos dos bancos, cabos de
aço arrebentados, ferros e parafusos expostos, ferrugem,
O fator de risco alagamentos aparece em terceiro lugar
madeira desgastada e áspera, entre outros.
em termos de abrangência, com maiores ocorrências
São condições que favorecem a ocorrência de
nas praças públicas dos bairros Cidade Alta, Alecrim,
possíveis acidentes para a população, uma vez que, no
Praia do Meio e Quintas (Figura 5), associado à presença
ato de uso, se encontram mais suscetíveis a lesões e
predominante de superfícies impermeáveis nesses
desconfortos que venham a atingir sua integridade física,
espaços, que impedem a infiltração da água pelo solo e
como fraturas e escoriações, entre outros acidentes mais
dificultam a drenagem da água das chuvas, acarretando
graves.
os mais variados efeitos de suas consequências para
As depredações da estrutura de lazer nas praças os seus frequentadores e para os demais habitantes da
também podem levar a casos de abandono e cidade.
desvalorização do patrimônio público, contribuindo
As imagens a seguir (Figuras 10 e 11) apresentam
para que se configurem, cada vez mais, como espaços
o caso da “Praça Marechal Rondon” e a “Praça Câmara
desvalorizados, ociosos, locais de depósito de lixo,
Cascudo”, que retratam muito bem a condição de
de usuários de drogas, prostituição e como pontos
impermeabilização do solo, tão corriqueira em Natal.

Figura 10 – Vista parcial da Praça Marechal Rondon, Bairro Figura 11 – Vista parcial da Praça Câmara Cascudo, Bairro
Quintas, Zona Oeste de Natal/RN. Cidade Alta, Zona Leste de Natal/RN.

Fonte: Gomes, 2012. Fonte: Gomes, 2012.

Em relação aos possíveis casos de alagamentos nes- lâmina de água que escoa para as ruas e as calçadas, se
ses espaços, os problemas mais comuns são, a princípio, apresenta como fator que dificulta e/ou impede a passa-
a inviabilidade de uso das praças pelos seus frequentado- gem de pedestres e o tráfego dos meios de transportes.
res, em virtude da quantidade de água que fica empoçada
Para Monteiro (2009), para reagir a tais inconveniên-
no local. E, dependendo da qualidade dessas águas e do
cias, é preciso o aperfeiçoamento da infraestrutura urba-
seu contado com a população, isso expõe a possíveis ris-
na na canalização e na coleta das águas pluviais. Além
cos de contrair doenças de veiculação hídrica, como, a
disso, destaca a importância da presença das áreas ver-
leptospirose e as doenças de pele, causadas por fungos
des nos centros urbanos, uma vez que funcionam como
e bactérias.
verdadeiras válvulas reguladoras do escoamento, pela
O alagamento local também pode gerar transtornos no possibilidade de infiltração em meio à massa de edifica-
seu entorno e na cidade como um todo, pois, dependen- ções e ruas pavimentadas, além de serem complementos
do da profundidade das poças de água acumuladas e da necessários para o lazer. Outra opção para canalização

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GEOgraphia, vol. 19, n.40, 2017: mai./ago.

das águas pluviais, bem como para a amenização das Atos de violência
temperaturas locais, é o uso de “pavimentos frescos” nas
áreas verdes, a exemplo dos pavimentos porosos e dos Verifica-se que o fator de risco de violência aparece em
blocos de concreto permeáveis, os quais permitem que penúltimo lugar nas praças públicas pesquisadas, aqui,
a água da chuva infiltre entre as suas superfícies e seja unicamente, relacionado à falta de iluminação urbana
armazenada nas camadas inferiores. A água que antes no perímetro de cada área, seja porque as lâmpadas se
foi infiltrada pode evaporar e resfriar o pavimento em dias encontram quebradas ou pela carência ou inexistência
ensolarados (Gartland, 2010). de postes de luz. As praças com maiores ocorrências
Nesse contexto, Benini (2015) recomenda a utilização desses fatores estão nos bairros Neópolis, Lagoa Azul e
de infraestrutura verde, a exemplo da implementação de Bom Pastor (Figura 5).
parques, praças e jardins, tendo em vista que se trata de A falta de iluminação é frequente nas praças públicas,
uma possibilidade técnica e ecológica que agrega aos principalmente nas desprovidas de mobiliário urbano
espaços públicos os valores da multifuncionalidade, e que se configuram como “terrenos vazios”, com a
como na drenagem das águas pluviais, para o lazer e para presença apenas de vegetação em sua área, como é o
a recreação da população, além de permitir a inserção e a caso da “Praça sem identificação” no bairro Neópolis
valorização da natureza no ambiente urbano e a atuação (Figura 12).
na qualidade ambiental das cidades.
Outro caso bem frequente é a falta de postes de luz
nas praças públicas consideradas urbanizadas, em que
a iluminação do espaço se reduz somente à iluminação
proveniente da rua. Esse é um claro exemplo do que
ocorre na “Praça Bom Pastor” no bairro Bom Pastor
(Figura 13).

Figura 12 – Vista parcial da Praça “Sem Identificação”, Bairro Figura 13 – Vista parcial da Praça Bom Pastor, Bairro Bom
Neópolis, Zona Sul de Natal/RN. Pastor, Zona Oeste de Natal/RN.

Fonte: Gomes, 2012. Fonte: Gomes, 2012.

A falta de iluminação urbana aparece como uma de cidadania, permitindo aos habitantes desfrutar,
plenamente, do espaço público no período noturno.
condição propícia à maior incidência de atos de violência, Além de estar diretamente ligada à segurança pública
como furtos, roubos, agressões e até mesmo casos de no tráfego, a iluminação pública previne a criminalidade,
embeleza as áreas urbanas, destaca e valoriza
homicídio, principalmente no horário noturno. Assim, e
monumentos, prédios e paisagens, facilita a hierarquia
diante dos iminentes riscos de violência, acaba havendo viária, orienta percursos e aproveita melhor as áreas de
um aumento da insegurança dos usuários e da população lazer. (Aver, 2013, p. 11)
local para frequentar esses espaços.
Segundo Aver (2013), a iluminação pública assume É importante destacar que, assim como a falta de
papel fundamental na qualidade de vida e na segurança iluminação, a depredação dos equipamentos de lazer e o
dos habitantes das cidades. acúmulo de lixo – já associados a outros fatores de riscos
– também podem contribuir para agravar a violência no
A iluminação pública é essencial à qualidade de vida local, pois nessas condições a tendência é que essas
nos centros urbanos, atuando como instrumento

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Degradação das praças públicas e os fatores de riscos para a população: exemplos para a cidade de Natal/RN

praças públicas passem a ser menos usadas pela arbóreo não possibilita que os seus frequentadores,
população e “assumam” outras funções, que propiciam a durante o tempo de permanência no local, usufruam da
sobreposição de fatores de riscos. proteção proporcionada pelo sombreamento. A ausência
de arborização os expõe diretamente aos raios solares,
aos altos índices de temperatura e ao desconforto
térmico gerados.
Aumento de temperatura e desconforto térmico
A “Praça Sérgio Dieb” e a “Praça Niterói” nos
O fator de risco aumento de temperatura e desconforto
bairros Areia Preta e Redinha, respectivamente, assim
térmico, dentre os demais fatores já discutidos, é
como outras na cidade, retratam bem essa situação,
verificado com menor abrangência nas praças públicas,
além da visível condição de depredação dos bancos,
e apresenta maiores ocorrências nos bairros Areia
equipamentos fundamentais no lazer passivo (Figuras 14
Preta, Cidade Alta e Redinha (Figura 5). Está diretamente
e 15).
relacionado ao indicador ausência de vegetação arbórea.
Entende-se que a ausência de vegetação de porte

Figura 14 – Vista parcial da Praça Arquiteto Sérgio Dieb, Bairro Areia Figura 15 – Vista parcial da Praça Niterói, Bairro Redinha, Zona Norte
Preta, Zona Leste de Natal/RN. de Natal/RN.

Fonte: Gomes, 2012. Fonte: Gomes, 2012.

O aumento de temperatura e o desconforto que as áreas verdes exigem, não somente, mobiliário
térmico podem trazer, como consequências para urbano adequado, mas também uma vegetação que
os frequentadores desses espaços, ocorrências de propicie sombreamento adequado e acolhedor para os
insolação, com consequentes queimaduras e problemas usuários, principalmente em locais de clima tropical, cuja
de pele, desidratação, desmaio, dores de cabeça, entre função principal é amenizar o rigor térmico durante o ano.
outros. A vegetação, sobretudo a arbórea, por meio do
Vale ainda destacar que a ausência de arborização sombreamento, atenua a radiação solar incidente
é uma condição “negativa” que, quando associada à sobre os pedestres e sobre a superfície, reduzindo a
predominância de solo impermeável, agrava ainda mais temperatura superficial e, por meio da evapotranspiração,
a situação, uma vez que as superfícies pavimentadas proporcionando o resfriamento das folhas e do ar
tendem a ser mais quentes, aquecem sob o sol e liberam adjacente (Gartland, 2010). Assim, fornece, juntamente
essa energia armazenada para seus arredores. com as melhorias na qualidade ecológica do ambiente,
Também é importante destacar que, tão importante condições mais confortáveis e adequadas para os
quanto a presença de vegetação arbórea nas áreas momentos de recreação e socialização dos seus
verdes, é a sua distribuição, pois, para que os seus frequentadores ao ar livre (Nucci, 2008)
frequentadores se mantenham protegidos dos raios
solares durante os momentos de lazer e socialização, é
necessário que a arborização esteja estrategicamente
Distribuição espacial e sobreposição dos
posicionada em relação aos bancos, às quadras-
fatores de riscos potenciais
poliesportivas, aos playgrounds, à pista de caminhada e
aos aparelhos para musculação.
A partir da sobreposição dos fatores de riscos
Nesse contexto, Mascaró e Mascaró (2005) salientam
potenciais verificados individualmente nas praças

119
GEOgraphia, vol. 19, n.40, 2017: mai./ago.

públicas (aumento de temperatura e desconforto compreensão e visualização de como as ocorrências de


térmico, alagamentos, poluição do ar, do solo e visual; sobreposição se apresentam, é exposto, a seguir, o mapa
atos de violência e acidentes físicos), foi possível uma com a distribuição espacial das praças, na cidade (Figura
aproximação quanto às ocorrências e as interligações 16).
entre elas nesses espaços. Todavia, para uma melhor

Figura 16 – Mapa de distribuição espacial das praças públicas de Natal, conforme os números de sobreposições dos fatores de
riscos potenciais presentes.

Fonte: Gomes (2012). Organizado por Gomes (2015).

Das praças públicas amostradas, 22% não verificados nas praças públicas.
apresentaram nenhum dos cinco fatores de riscos A análise chama a atenção para o caso do bairro
trabalhados, 31% apresentaram pelo menos um fator, Cidade Alta, onde se concentram 10% dessas ocorrências,
destacando-se os casos de acidentes físicos. Já em seguido do bairro Potengi, com 9% dos casos, Neópolis
29% foram registradas duas sobreposições, sobretudo, com 7%, Lagoa Azul e Lagoa Nova, ambos com 6%, e
representadas pelos fatores de riscos acidentes físicos Praia do Meio e Rocas, ambos com 5%. Já os bairros Areia
e poluição. Em 14% foram registrados três fatores de Preta, Candelária e Quintas, individualmente, apresentam
riscos, com maior expressividade para os dois fatores já 4%.
mencionados, juntamente ao fator alagamentos. Outros
Com exceção dos bairros Cidade da Esperança,
4% apresentaram quatro sobreposições, e, não houve
Guarapes e N. Srª. de Nazaré, onde suas praças públicas
caso com cinco sobreposições. No total, somaram-se 244
não apresentaram os fatores de riscos potenciais, os
ocorrências dos fatores de riscos potenciais elencados e
demais bairros, individualmente, respondem por valores

120
Degradação das praças públicas e os fatores de riscos para a população: exemplos para a cidade de Natal/RN

que variam de 3% a 1% das ocorrências desses fatores. uma infraestrutura de qualidade e que, essencialmente,
Dos bairros que possuem praças públicas, em 91% priorize pela segurança e o conforto da população nos
deles verifica-se a presença de, pelo menos, algum dos momentos de socialização e lazer ao ar livre.
fatores de riscos analisados neste trabalho. Portanto, Além da quantidade e da localização das praças
reafirmam-se os casos de degradação e inadequações públicas na cidade, outros pontos fundamentais devem
nesses espaços, assim como os iminentes riscos aos ser priorizados nos planos urbanísticos, como a presença
quais seus frequentadores e a população local estão de vegetação, sobretudo arbórea, predominância de solo
expostos e suscetíveis diariamente. permeável, existência e manutenção de áreas para o lazer
As precárias condições em que se encontram as praças ativo e passivo (quadra poliesportiva, equipamentos de
públicas de Natal respondem não somente pela queda musculação, playground e bancos...), lixeiras, serviços de
das funções que poderiam desempenhar em termos limpeza, iluminação e segurança da população usuária e
ecológicos e sociais na cidade, mas também pelo fato em geral.
de se caracterizarem como espaços que podem oferecer Todavia, é importante destacar que a opção por
inúmeros riscos de uso para os seus frequentadores e privilegiar os indicadores “negativos” e os fatores de
para a população. Riscos que se estendem para a cidade riscos potenciais elencados neste trabalho, não apresenta
como um todo, pois a ocorrência e a abrangência desses a menor pretensão de colocá-los como focos principais,
fatores tendem a se intensificar, uma vez que alguns ou, ainda, de restringir as possibilidades de análise de
deles se somam aos demais. outros aspectos, considerados relevantes, mas, sim, de
colocá-los como um ponto de partida ao estudo sobre a
temática e, especificamente ao objetivo proposto.
Acredita-se que analisar as áreas verdes públicas,
Conclusões
a partir da perspectiva da relação entre indicadores
“negativos” e os eminentes riscos potenciais, e a
As praças públicas de Natal, embora com diferentes suscetibilidade da população a estes, se apresenta
níveis de complexidade, apresentam, predominantemente, como mais uma possibilidade de identificação,
degradações e inadequações em termos ecológicos, aproximação e compreensão dos problemas intrínsecos
segurança, limpeza e na infraestrutura de lazer, cuja à cidade. Apresenta-se como um instigante desafio de
incidência provoca queda de qualidade, além de oferecer abordagem quanto à sua construção e aplicação em
riscos de uso para a população local e, de forma mais termos teórico-metodológicos, além de ser um tema
direta, aos seus frequentadores. que, necessariamente, demanda maiores discussões e
Nessas condições, os usuários desses espaços e aprofundamento por parte de planejadores e gestores
a população da cidade como um todo, em virtude da públicos, pesquisadores e da sociedade civil.
abrangência do problema, se encontram diariamente
expostos a riscos potenciais, como acidentes físicos,
poluição do ar, do solo e visual; alagamentos, atos de
violência e aumento de temperatura e desconforto
térmico, conforme verificado por ordem decrescente de
ocorrências.
Trata-se de problemas que refletem a baixa qualidade e
a falta de condições das praças públicas de Natal enquanto
áreas verdes, e que dão margens para questionamentos
sobre a legitimidade e eficácia das políticas públicas
de serviços urbanos prestados à população. Além
disso, passam a ser cada vez menos frequentadas pela
população e passam a não desempenhar mais seu
papel como área de lazer. Quanto mais descuidadas,
mais a população desvaloriza, depositando resíduos e
destruindo os equipamentos existentes.
Sabe-se que são inúmeros os benefícios das áreas
verdes na cidade, entretanto, para que as praças
estudadas possam, efetivamente, desempenhar suas
funções ecológica, estética e de lazer, é necessário que
sejam incorporadas nas políticas públicas e nos planos
urbanísticos, sob um planejamento que contemple

121
GEOgraphia, vol. 19, n.40, 2017: mai./ago.

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Data de submissão: 08/03/2016


Data de aceite:10/04/2017
Data de publicação: setembro/2017

122
A contribuição da ecologia política e do sustainable livelihoods approach nos estudos ambientais no meio rural do Brasil: um olhar sobre os reassentados de Petrolândia

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai/ago.

Artigos

A CONTRIBUIÇÃO DA ECOLOGIA POLÍTICA E DO SUSTAINABLE LIVELIHOODS


APPROACH NOS ESTUDOS AMBIENTAIS NO MEIO RURAL DO BRASIL:
UM OLHAR SOBRE OS REASSENTADOS DE PETROLÂNDIA

Guilherme José Ferreira Araújo*


Universidade Federal de Pernambuco**

Edvânia Tôrres Aguiar Gomes***


Universidade Federal de Pernambuco****

Resumo: A ecologia política e o sustainable livelihood approach são respectivamente abordagens teórica e metodológica voltadas para o debate so-
bre temas relacionados à desigualdade social e ao estabelecimento de metas para o combate à pobreza. Ambas são recentes no campo da pesquisa
científica. A ecologia política foi germinada no período das grandes conferências ambientais da ONU, e o sustainable livelihood approach foi conce-
bido durante a década de 1980 com vistas a entender os principais fatores que contribuem com a pobreza em áreas rurais de países africanos. Este
artigo tem o objetivo de desenvolver uma aproximação teórica entre as abordagens estudadas e dessa forma contribuir com as discussões sobre
as desigualdades no acesso aos recursos naturais e os desdobramentos para a pequena produção agrícola no Brasil. Para o estabelecimento deste
trabalho foi realizado um amplo levantamento bibliográfico para identificar os pontos que unem a teoria da ecologia política e a prática metodológica
do sustainable livelihood approach. Em seguida foram elencados os principais problemas identificados nas pesquisas de campo em Petrolândia e
estabelecidas relações com as abordagens em questão. Nesse quesito, foram analisados pequenos produtores de coco dos perímetros irrigados de
Apolônio Sales e Icó-Mandantes. Nesses perímetros encontram-se agricultores com diferentes contextos socioeconômicos, porém com a mesma
origem de reassentamento e subsídio estatal. Todos são oriundos de uma transferência forçada em função da construção da Usina Hidrelétrica Luiz
Gonzaga. Nesse sentido, o estudo pretende iniciar um debate sobre as principais razões dessas diferenças e visualizar prováveis soluções.
Palavras-chave: Conflitos ambientais. Perímetros irrigados. Semiárido. Coco.

THE CONTRIBUITION OF THE POLITICAL ECOLOGY AND THE SUSTAINABLE LIVELIHOOD APPROACH IN THE ENVIRONMENTAL STUDIES IN THE
BRAZIL RURAL AREA: THE CASE OF RESETTLED PEOPLE FROM PETROLÂNDIA
Abstract: The political ecology and the sustainable livelihood approach are theoretical and methodological tools of analyses, which aims to debate
about theme concerning the social inequality and the establishment of goals to coping against poverty. Both are recent in the field of the scientific
research. The political ecology was born at the period of UN environmental conferences and the sustainable livelihood approach was conceived
during the 80’s aiming to understand the major factors, which contribute with the poverty in rural area in some Africans country. This article aims
to approach both field in order to discuss about the inequality on the natural resource access and the repercussion on the agricultural production in
Brazil. This work was done with literature review in order to identify how both approach can be used complementarily. Afterwards were selected the
major problems identified during the field works in Petrolândia Municipality and linked with both theme. Several interviews were done with small-scale
coconut farmers from the resettlement of Apolônio Sales and Icó-Mandantes. In these both resettlements there are farmers with different socio-e-
conomic context, however most of them are from the same origin. They are resettled people of a forced migration in order to construction of Luiz
Gonzaga Hydroelectric Power. So, this study has also the purpose to begin a debate about the reason of the farmers socio-economic difference and
to view possible solutions.
Keywords: Environmental conflicts. Irrigated schemes. Semiarid. Coconut.

________________________________
* Doutor em Geografia (UFPE). Professor substituto do Colégio de Aplicação (UFPE). E-mail: guigeorecife@gmail.com
** Departamento de Ciências Geográficas (DCG-UFPE), Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), 6º andar. Avenida Acadêmico Hélio Ramos, s/n - Cidade Universi-
tária, CEP: 50.740-530, Caixa Postal 7803 - Recife-PE.
*** Doutora em Geografia. Professora titular do Departamento de Ciências Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: torres@ufpe.br
**** Departamento de Ciências Geográficas (DCG-UFPE), Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), 6º andar. Avenida Acadêmico Hélio Ramos, s/n - Cidade Univer-
sitária, CEP: 50.740-530, Caixa Postal 7803 - Recife-PE.

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

LA CONTRIBUCIÓN DE LA ECOLOGÍA POLÍTICA Y DEL SUSTAINABLE LIVELIHOODS APPROACH EN LOS ESTUDIOS AMBIENTALES EN EL MEDIO
RURAL DEL BRASIL: UNA MIRADA SOBRE LOS REASENTADOS DE PETROLÂNDIA
Resumen: La ecología política y el sustainable livelihood approach son respectivamente, enfoques teóricos y metodológicos dirigidos al debate sobre
temas relacionados con la desigualdad social y el establecimiento de metas para la lucha contra la pobreza. Ambos son recientes en el campo de
la investigación científica. La ecología política fue germinada en el período de las grandes conferencias ambientales de la ONU y el sustainable live-
lihood approach fue concebido durante la década de 1980 para comprender los principales factores promotores de pobreza en las zonas rurales de
los países africanos. Este artículo tiene el objetivo de desarrollar una aproximación teórica entre los enfoques estudiados y de esa forma contribuir
con las discusiones sobre las desigualdades en el acceso a los recursos naturales y los desdoblamientos para la pequeña producción agrícola en
Brasil. Para la construcción de este trabajo se llevó a cabo un amplio levantamiento bibliográfico com el fin de identificar los puntos que unen la teoría
de la ecología política y la práctica metodológica del sustainable livelihood approach. También se codificaron los principales problemas identifica-
dos en las encuestas aplicadas en Petrolândia y se establecieron relaciones con los enfoques en cuestión. En este aspecto se analizaron pequeños
productores de coco de los Perímetros Irrigados de Apolônio Sales e Icó-Mandantes. En esos perímetros se encuentran agricultores con diferentes
contextos socioeconómicos, pero con el mismo origen de reasentamiento y subsidio estatal. Todos proceden de una transferencia forzada en fun-
ción de la construcción de la Planta Hidroeléctrica Luiz Gonzaga. En este sentido, el estudio pretende iniciar un debate sobre las principales razones
de estas diferencias y visualizar probables soluciones.
Palabras clave: Conflictos ambientales. Perímetros irrigados. Semiárido. Coco.

Introdução deve-se aprofundar a compreensão do pesquisador


acerca da subsistência e da sustentabilidade de um
determinado indivíduo e servir de suporte para elaboração
A ecologia política e o sustainable livelihood
de políticas públicas em prol da equidade social e da
approach são abordagens recentemente implantadas
justiça ambiental.
no campo da pesquisa científica. No final da década de
1970 iniciaram-se as discussões acerca de problemas O objetivo deste artigo é desenvolver uma
ambientais sob a luz da ecologia política e o sustainable aproximação teórica entre a ecologia política e o
livelihood approach foi lançado entre o final da década sustainable livelihoods approach com vistas de
de 1980 e começo da década de 1990, para servir como contribuir com as discussões sobre as desigualdades no
uma ferramenta de análise nos estudos das estratégias acesso aos recursos naturais e os desdobramentos para
de subsistência de pequenos produtores. a pequena produção agrícola. O âmago desta análise
visa responder se existe possibilidade de desenvolver
Ambas as abordagens estavam voltadas a
uma análise científica utilizando a ecologia política como
contribuir com estudos contra a desigualdade social e
uma abordagem norteadora em estudos ambientais e o
estabelecimento de metas para o combate à pobreza.
sustainable livelihoods approach como ferramenta para
A ecologia política corresponde a um conceito e uma
aplicar em um determinado caso. E se ambas as formas
perspectiva de análise dos problemas ambientais por um
de análises podem ser utilizadas para estudos no meio
viés político e ideológico, com o objetivo de compreender
rural brasileiro, tendo em vista o ambiente e o período
e contribuir com a redução dos conflitos ambientais nos
histórico nos quais foi concebido.
países subdesenvolvidos. Normalmente, a questão da
pobreza nos países pobres está relacionada às adversas A ênfase deste artigo será estabelecer relações entre
condições de subsistência. Nesse sentido, a perspectiva as abordagens citadas anteriormente, no entanto serão
da ecologia política proporciona o estabelecimento utilizados como exemplos empíricos estudos com os
de uma ponte para uma análise mais profunda sobre reassentados do Município de Petrolândia, Pernambuco.
os aspectos referentes às relações entre sociedade e Para este tópico foram pesquisados pequenos produtores
natureza. de coco dos perímetros irrigados de Apolônio Sales e
Icó-Mandantes, os quais são oriundos de um contexto
O sustainable livelihood approach foi criado por
de migração involuntária em função da construção da
Chambers e Conway1 na Inglaterra. É considerado um
Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga.
instrumento metodológico para análises em pesquisas
sociais, que se utiliza de um framework2 contendo um O ensaio é parte de um estudo de doutorado que
cenário real de vulnerabilidade dos pequenos produtores, integra o Projeto INNOVATE3 – Interplay among multiple
com cinco ativos de análise das condições da sua 3
O Projeto INNOVATE é uma parceria desenvolvida entre institutos de
subsistência, mais o âmbito político, as estratégias pesquisa brasileiros e alemães. Liderado pela Universidade Federal de
aplicadas para superar o cenário de vulnerabilidade e Pernambuco e a Universidade Técnica de Berlim, as instituições tem o
objetivo de estudar os usos e a ocupação do solo na região de Itaparica
os resultados dessas estratégias. A partir dessa análise no semiárido pernambucano e baiano. O projeto é composto por sete
subprojetos com cientistas de diversas áreas. Possui financiamento do
1
Ver Chambers e Conway (1991). CNPq e da Capes e também corresponde a um dos doze projetos científi-
2
Na seção referente à abordagem do sustainable livelihoods approach o cos na área de gestão sustentável da terra financiados pelo Ministério de
termo framework é discutido mais amplamente. Pesquisa e Educação da Alemanha.

124
A contribuição da ecologia política e do sustainable livelihoods approach nos estudos ambientais no meio rural do Brasil: um olhar sobre os reassentados de Petrolândia

uses of water reservoirs via innovative coupling of estavam voltados primordialmente para o surgimento da
substance cycles in aquatic and terrestrial ecosystems sociedade industrial.
–, parceria binacional entre universidades do Brasil e da
Alemanha.
O trabalho se inicia discorrendo sobre a ecologia
As raízes da ecologia política
política, buscando enquadrar cientificamente o termo,
como também relacionar seu campo de pesquisa e
origens na geografia. Em seguida o debate se propõe Antes de continuar o debate neste campo de estudo,
a desenvolver uma compreensão teórica sobre o é preciso estabelecer as origens que influenciaram
sustainable livelihoods approach, descrevendo os o pensamento atual. De acordo com Robbins (2005),
elementos apontados no seu framework e sua relação o aristocrata russo Peter Alexeivich Kropotkin foi o
com os estudos ambientais. Por fim, o artigo apresenta primeiro membro da linhagem da ecologia política. No
as questões ambientais em Petrolândia a partir da ano de 1921, quando faleceu, o geógrafo russo já era
perspectiva das abordagens trabalhadas. mundialmente conhecido como um filósofo anarquista,
cujos trabalhos acadêmicos enfatizavam as relações
entre a sociedade e a natureza.
Os estudos de Kropotkin no oeste russo, nas
Pressupostos epistemológicos da ecologia proximidades da Manchúria, e sua experiência com
política os Tungus, agricultores, entre outros nativos, foram
pioneiros na Rússia do século XIX e começo do século
De acordo com Bryant e Bailey (2000) os primórdios XX, visto que diante das adversidades da região não
da ecologia política estão nos anos 1970, e durante os existia nenhuma perspectiva de se explorar essa porção
anos 1980 e 1990 ocorreu sua expansão. Nesse período do país. Seu esforço originou mais pesquisas e debates
o conceito criou bases para nos dias atuais se consolidar sobre formas de crescimento de sociedades. E as
como uma fonte rica para pesquisas inovadoras que evidências colecionadas nas expedições junto a pessoas
abordam as questões ambientais nos países do eixo sul. e animais convenceu o cientista de que a sobrevivência
A ecologia política vem se configurando como área e a evolução são resultados de uma ajuda mútua,
provocadora no âmbito de pesquisas interdisciplinares. organização e cooperação entre indivíduos (ROBBINS,
Segundo os pesquisadores deste campo, as suas origens 2005).
partem da interface entre as ciências naturais, sociais A escocesa Mary Fairfax Sommerville desenvolveu
e política. Durante a década de 1980 foi amplamente nos finais do século XVIII e início do século XIX críticas
definida, sofrendo maior influência de pesquisadores dos voltadas contra a escravidão, a apropriação de terras
Estados Unidos e do Reino Unido (KRINGS, 2013). das populações aborígines, as imprudentes formas de
Segundo Robbins (2005), este campo traz uma degradação ambiental pela exploração humana através
abordagem política para discutir os problemas dos usos excessivos, das extrações e da introdução de
ambientais. Dessa forma, a questão ambiental, espécies exóticas, em detrimento das espécies nativas.
especificamente os acessos aos recursos naturais, Seguindo um caminho próprio, suas pesquisas tinham
exploração/extração de matéria-prima e degradação do um viés que apontava para os impactos humanos sobre
ambiente são pontos analisados politicamente. a terra e os impactos que a terra proporcionava às
sociedades. Com inúmeros artigos científicos publicados,
Diante dos avanços dos debates sobre as questões
Sommerville teve acesso a espaços geralmente restritos
ambientais, principalmente na década de 1980, a ecologia
a homens no campo da ciência, e, mesmo diante dos
política ganhou maior visibilidade, representando uma
preconceitos por causa do seu gênero, ela conseguiu
reflexão que surge em função da emergente necessidade
notoriedade com seus trabalhos, tornando-se um dos
por uma abordagem analítica que integrasse a
braços importantes para os estudos atuais da ecologia
compreensão política e o ambiente natural no contexto
política (ROBBINS, 2005).
da intensificação das degradações e demais problemas
identificados nos países do antigo Terceiro Mundo O pai da geografia moderna, Alexander Von Humboldt,
(BRYANT; BAILEY, 2000). também é considerado um dos primeiros a fazer ecologia
política em sua prática científica. Seus estudos durantes
De acordo com Zhouri (2006), a ecologia política surge
as expedições ao redor mundo durante o século XIX
em um momento em que se buscavam novas bases para
proporcionaram ao prussiano entrar em contato com as
as Ciências Sociais. Nessa ocasião, a proposta era de
mais variadas formas de vida humana e não humana em
superar dicotomias como objetividade-subjetividade,
meio a difíceis condições políticas e econômicas. Essas
indivíduo-sociedade, natureza-cultura. Toda a crítica
condições permitiram com que Humboldt desenvolvesse
era oriunda de movimentos políticos e acadêmicos que

125
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

uma aparente apreciação pelo contexto político e tinham raízes sociais e não eram determinadas pelos
econômico que as pessoas enfrentavam no seu dia a dia fatores ambientais, como era abordado pelo pensamento
(ROBBINS, 2005). dominante da época (ANDRADE, 1997).
O francês Elisee Reclus teve uma trajetória fundamen- O geógrafo Hilgard O’Reilly Sternberg, filho de um
tal na geografia. Sua obra A Terra: uma história descritiva alemão e uma irlandesa, iniciou sua inclinação para os
foi considerada apenas um pouco menos ambiciosa que estudos ambientais por ocasião do seu doutoramento,
Cosmos, a obra mais conhecida de Humboldt. Porém, concluído em 1956. Sua tese, intitulada A água e o
na obra de Reclus a análise sobre política e as questões homem na várzea do Careiro, tratou sobre as questões
relacionadas ao tópico homem e ambiente eram mais envolvendo a população ribeirinha e os cursos d’água.
explícitas que no trabalho do prussiano. O geógrafo fran- Nesse trabalho ele analisou as graves consequências
cês contribuiu no debate sobre a questão da justiça, es- do desmatamento para as comunidades, como as
pecialmente para os trabalhadores, apontando sua rela- enchentes que ceifaram a vida de muitos dos habitantes
ção com as transformações sociais e ecológicas, além (GUIMARÃES, 2011).
de desafiar a noção contemporânea de estrutura social e Antes de falecer em 2011, ocupava a cadeira de
práticas ecológicas (ROBBINS, 2005). professor emérito de geografia na Universidade da
O britânico Alfred Russel Wallace trouxe importantes Califórnia, em Berkeley. Suas análises enfatizavam
contribuições para as raízes do pensamento da ecologia a relação entre sociedade e natureza. O campo de
política. O geógrafo e também naturalista realizou pesquisa utilizado era a floresta amazônica brasileira. O
expedições na Amazônia e no sul da América Latina. Nesse foco do seu trabalho era questionar como comunidades
período, desenvolveu estudos sobre dominação social humanas afetam o meio ambiente, por meio do uso
e imperialismo. Realizou uma crítica sobre a hierarquia impróprio do solo, da água, da flora, da fauna e através
social e a gestão da terra nos lugares por onde andou, da concentração dos recursos nas mãos de poucos
ao mesmo tempo em que trocava correspondências com (SANDERS, 2011).
Charles Darwin construindo a teoria da seleção natural. O geógrafo e ambientalista Aziz Nacib Ab’Saber teve
Wallace relacionou evolução, justiça social e gestão um papel fundamental na luta pela questão ambiental no
da terra para oferecer uma crítica ao racismo e o já Brasil, destacando-se seus esforços pela preservação
emergente darwinismo social (ROBBINS, 2005). da Amazônia e da Caatinga. O cientista defendeu seu
Outro geógrafo de influência para os estudos da doutorado em 1956 com a tese Geomorfologia do sítio
ecologia política foi o germânico Friedrich Ratzel. urbano de São Paulo. Alguns de seus trabalhos foram
Suas pesquisas foram amplamente defendidas nos premiados, como o livro Amazônia: do discurso à praxis.
Estados Unidos pelos cientistas William Morris Davis, Os estudos do pesquisador também estavam voltados
Ellsworth Huntington e Ellen Churchill Semple, as quais para os problemas urbanísticos e ambientais de grandes
abordavam que as influencias das condições ambientais cidades. Ab’Saber sempre esteve à frente de embates de
determinavam a capacidade e as condições culturais cunho ambiental, e os últimos estavam relacionados à
dos povos. Seus seguidores buscavam assiduamente questão do Código Florestal Brasileiro e à transposição
codificar essa perspectiva dentro da prática científica. do Rio São Francisco (DOURADO, 2012).
Posteriormente esse pensamento foi criticado como O pensamento da ecologia política também estava
racista (ROBBINS, 2005). representado na obra de Manuel Correia de Andrade,
um pernambucano que se dedicou ao estudo do espaço
agrário brasileiro, sobretudo do Nordeste do Brasil. Em
A terra e o homem no Nordeste, publicada em 1963, o
As raízes da ecologia política no Brasil
professor Manuel debateu as relações injustas de posse
da terra e a proletarização do trabalhador rural (ANDRADE,
O médico-geógrafo Josué de Castro foi um dos 2011). Andrade também apontou problemas no cerne da
pioneiros no Brasil em pesquisas no que hoje se intitula sociedade originado pela desigual forma de distribuição
ecologia política. Natural de Recife, local onde germinou de terras, que se originou desde o período colonial com
seus estudos neste campo, Josué publicou em 1946 a a escravidão até os dias atuais com a ausência de uma
obra Geografia da fome. A preocupação do autor era com reforma agrária (MAIA, 2009).
a desigual distribuição dos alimentos, que influenciava a
nutrição da população. Seu trabalho aponta lugares de
subnutrição endêmica e sua relação com a falta de um
plano de produção agrícola adequado (ANDRADE, 1997). Definição da abordagem da ecologia política
No seu ensaio Alimentação e raça, publicado em 1936,
o autor apontou que causas da pobreza e da subnutrição Quando a ecologia política surge propriamente dita

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A contribuição da ecologia política e do sustainable livelihoods approach nos estudos ambientais no meio rural do Brasil: um olhar sobre os reassentados de Petrolândia

como campo de pesquisa, ela passa a ser definida com que os esforços para conservação ambiental, geralmente
o objetivo de aprofundar compreensão sobre a complexa compreendidos como uma atitude benigna, também
relação entre a natureza e a sociedade por meio de uma podem ter efeitos perversos para as comunidades. Por
análise criteriosa. O foco prioriza as formas de acesso exemplo, quando são estabelecidas áreas de preservação
e controle dos recursos naturais, com ênfase nas que expropriam antigos habitantes daquela área. Nesse
implicações que essa estrutura pode provocar para o caso, forma-se um cenário de exclusão diante de uma
meio ambiente e a subsistência dos pequenos produtores proposta de preservação ambiental (ROBBINS, 2005).
rurais (ROBBINS apud WATTS, 2000). A quarta tese se debruça sobre a questão da identidade
São dedicados esforços no sentido de entender que ambiental e os movimentos sociais. Neste ponto os
as mudanças ambientais e as condições ecológicas estudos se dirigem para os levantes sociais, enfatizando
também são resultado de processos políticos, em que os principais agentes, o ambiente e como essas ações
os custos e benefícios oriundos dessas mudanças são são desenvolvidas. As forças políticas e sociais são
distribuídos desigualmente entre os agentes (BRYANT; apresentadas para relacionar as questões básicas da
BAILEY, 2000). subsistência e a proteção ambiental (ROBBINS, 2005).
O objetivo é desenvolver uma reflexão crítica para Diante da complexidade de sua abordagem, a
expor o que está errado na gestão e na mudança ecologia política estabelece vínculos com diversos
ambiental, enquanto por outro lado são aplicados campos disciplinares, e portanto tem uma origem
esforços para pensar criteriosamente em alternativas ou intertransdisciplinar. São identificadas raízes nas áreas
adaptações frente ao problema da ineficiente gestão e da antropologia, da sociologia, da história, das ciências
exploração dos recursos naturais (ROBBINS, 2005). políticas e de áreas tecnológicas (ZIMMERER; BASSET,
De acordo com Robbins (2005), a ecologia política 2003).
possui quatro teses nas quais desenvolve seu campo de O termo ecologia política, por si só, não traz uma ideia
análise. A primeira tese aborda a questão da degradação específica em sua análise. Por se tratar de um conceito
e da marginalização, onde são debatidas as razões das genérico, enuncia uma ampla definição. Atualmente,
mudanças ambientais e como estas vieram a ocorrer. identificam-se diferentes formas de aprofundar sua
Aqui o estudo é orientado sob a perspectiva de que aplicação. Alguns autores se debruçam no âmbito da
a degradação da terra é oriunda principalmente do economia política, outros pontuam aspectos formais de
contexto político e econômico, contrariando afirmações instituições políticas, enquanto outro grupo se define
que apontam para os marginalizados como os principais mais focado nas questões voltadas para as mudanças
originadores das alterações no ambiente. ambientais (ROBBINS, 2005).
A segunda tese trata dos conflitos ambientais. Os campos interdisciplinares, como os estudos
São levantadas questões concernentes ao acesso ao ambientais e tecnológicos, são de grande importância
ambiente. A preocupação aqui é com quem tem acesso para a abordagem em ecologia política. Com o enfoque
e por quê. Os conflitos nesta análise são apresentados geográfico é necessário, ao mesmo tempo, entender as
para contribuir no debate das lutas de gênero, de classes contribuições que este campo proporciona para uma
e raciais. A tese busca analisar, por exemplo, a crescente profunda compreensão das mudanças ambientais,
escassez de produtos oriundos de terras apropriadas por em que a ênfase são as interações entre sociedade e
autoridades do Estado, empresas privadas ou das elites natureza utilizando a ecologia política como escala
sociais, que são os principais responsáveis em iniciar e (ZIMMERER; BASSET, 2003).
acelerar o conflito entre os grupos (ROBBINS, 2005). De acordo com Coy (2013), a ecologia política utiliza
Nessa perspectiva, os conflitos ambientais se enraízam as relações entre sociedade e natureza como sua
na sociedade quando determinado grupo (gênero, classe principal categoria. Seu campo de pesquisa busca uma
ou etnia) passa a ter o controle sobre os recursos coletivos abordagem com fins de analisar as relações conflituosas
em detrimento dos outros. Normalmente esse processo entre a sociedade e a natureza / homem e meio ambiente,
ocorre com apoio de políticas públicas intervencionistas como, também, as estratégias de sobrevivências dos
desenvolvidas pelas autoridades estatais ou em conjunto grupos mais vulneráveis. Por exemplo, os projetos para
com agentes privados (ROBBINS, 2005). Esses conflitos instalação de infraestrutura de grande porte na Amazônia
também podem ser originados a longo prazo em função e suas consequências para os grupos indígenas locais,
de medidas estabelecidas, cujos resultados danosos como a desterritorialização desses grupos e os demais
necessitam de um tempo maior para serem percebidos. impactos provocados nas comunidades locais que
A terceira tese apontada é referente à conservação e também são relocadas ou têm sua dinâmica econômica
controle. Aqui são trabalhadas as falhas nesse processo, alterada.
como também a exclusão política e econômica. A A questão crucial que se busca entender são as
compreensão desenvolvida nesta abordagem discute relações entre as transformações sociais e as condições

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

da natureza que estão intrinsecamente relacionadas impactos no tempo e no espaço que a força do capitalismo
com as tendências econômicas controladas por agentes provocou no ambiente natural e social dos países do
globais. O que será representado e concretizado através sul. Diferentemente dos países centrais, a pobreza e os
do acesso e do uso dos recursos naturais tanto para fins conflitos ambientais nos países subdesenvolvidos são
econômicos diretamente público ou privado (COY, 2013). predominantemente baseados na subsistência. Nesse
A análise das relações sociais frente ao uso do sentido, esse ramo da pesquisa social tem a chave
ambiente evoca, por si só, uma discussão politizada, ou para estabelecer as relações existentes entre pobreza
seja, uma visão política das relações entre sociedade e riqueza, degradação ambiental e processo político
e natureza, que é o principal tópico de pesquisa da (BRYANT; BAILEY, 2000).
ecologia política. Associado a este âmbito surgem Os desafios desse campo são entender e alertar a
questionamentos acerca dos diferentes cenários de sociedade para a ausência ou a quebra de compatibilidade
vulnerabilidade e quais os agentes que ocupam posição das ações de agentes do espaço, as quais resultam
central. A pergunta que se pretende responder é quem em desigualdades no acesso aos recursos naturais.
ganha e quem perde nesse jogo de relações? Como Nesse caso, são elencados dois grupos distintos, um
são divididos os custos nesse cenário? Identificar representado por agentes dominadores, que são aqueles
as injustiças nesse processo faz parte de um papel que possuem maior privilégio na aquisição dos recursos
fundamental neste estudo (COY, 2013). do território. O outro grupo é representado pelos agentes
Os trabalhos desenvolvidos no âmbito da ecologia desprovidos de igual oportunidade de acessar os
política têm trazido uma contribuição significativa para recursos naturais (ASCELRALD, 2010).
aprofundar a compreensão das relações entre sociedade A principal contribuição da ecologia política é para
e natureza numa perspectiva geográfica. A abordagem fortalecer o debate acerca dos problemas referentes às
abrange os esforços aplicados para engajar a dimensão relações sociedade e natureza com foco em conflitos e
política e ecológica diante das questões ambientais de mudanças ambientais nos países do eixo sul. As questões
um modo integrado (ZIMMERER; BASSET, 2003). como degradação ambiental (solo, água e ar), perda da
A geografia se diferencia das outras disciplinas biodiversidade, mudança climática global fazem parte da
em função da sua análise dos atuais processos pauta de análise, assim como seus processos, extensão
de globalização ambiental. Nessa perspectiva, e as principais causas que a originaram (KRINGS, 2011).
a compreensão deste campo vem fortalecer o O enfoque inicial da abordagem em ecologia política
entendimento sobre as esparsas e distintas decisões e foi sobre o espaço rural, enfatizando as questões
atividades em escala global referente ao ambiente local, que envolvem a sociedade e os recursos naturais,
especialmente concernente aos recursos naturais, como especialmente o solo e a agricultura dos países em
também acerca das mudanças econômicas, políticas e desenvolvimento do eixo sul do globo. Foram incluídas
culturais. Nesse sentido, é fundamental compreender nesse aspecto abordagens crescentemente geográficas
quais são os instrumentos motrizes que originam essas em consideração aos cenários urbano-industrial dos
transformações (ZIMMERER; BASSET, 2003). países do eixo norte do globo (ZIMMERER; BASSET,
A ecologia política no âmbito geográfico analisa os 2003).
sistemas de recursos como ecossistemas utilizados Para a ecologia política é importante compreender
sob a perspectiva política, que são pela natureza e pela que as mudanças ambientais trazem repercussões
constante transformação interligados com as atividades conflituosas nas decisões políticas4, e estas passam
humanas e tipicamente diferenciados pelas relações de também a influenciar a sociedade, as relações comerciais,
poder associadas com as questões de gênero, de étnica, os interesses dos indivíduos, seja em escala local,
de classe ou de renda (ZIMMERER; BASSET, 2003). nacional ou global. Neste caso, a dimensão histórica
Mesmo diante de diversas abordagens no campo tem papel fundamental para compreender como os
de pesquisa em ecologia política, seus especialistas processos se originaram (KRINGS, 2011).
estão em comum acordo em pontos básicos. Destaca- De acordo com Zimmerer e Basset (2003), a
se a concordância de que os problemas ambientais degradação ambiental alcança os espaços do campo
enfrentados pelos países subdesenvolvidos e os de com maior intensidade quando as forças econômicas
economia emergentes não são apenas um reflexo de entram em comunidades rurais fazendo com que as
políticas públicas ineficientes ou de falhas no mercado. instituições locais percam sua flexibilidade.
Essas forças foram cooptadas durante a ampla difusão De acordo com Gudynas (2010), os países
do capitalismo, principalmente a partir do século XIX subdesenvolvidos sempre tiveram o papel de servir
(BRYANT; BAILEY, 2000). como espaço de exploração dos recursos naturais, sem
Dessa forma, as pesquisas em ecologia política têm 4
Robbins (2005) aponta que as mudanças ambientais também podem
sido desenvolvidas principalmente para descrever os ser originadas devido às repercussões de decisões políticas conflituosas.

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A contribuição da ecologia política e do sustainable livelihoods approach nos estudos ambientais no meio rural do Brasil: um olhar sobre os reassentados de Petrolândia

considerar a possibilidade da escassez em função do pelas populações que já tinham a tradição de explorar
excessivo uso. Na América Latina, até o século XIX, a determinado espaço, também por impactos de práticas
degradação ambiental ocorria em função das ordens dos mercantis no mesmo ambiente ou pelas diferentes ações
países europeus; nos dias atuais, a degradação ampliou- espaciais mediadas por bens não mercantis como a água,
se e tem a formalização via legislação local. a terra, o ar, a biodiversidade, entre outros, e normalmente
nesses espaços há uma tendência de prevalência dos
agentes mais fortes (ASCELRALD, 2010).
No Brasil existem exemplos claros de como os
Um olhar sobre os conflitos ambientais na
conflitos ambientais são estabelecidos. Os casos de
América Latina
localização de projetos de instalação de infraestrutura
priorizam áreas ocupadas por grupos de baixa renda, e
As medidas para o crescimento econômico adotadas normalmente são comunidades tradicionais, indígenas,
durante o século XIX foram amplamente fortalecidas com quilombolas, atingidas por barragens (ASCELRALD,
o objetivo de intensificar o controle sobre os recursos 2010).
naturais. Dessa forma, identificam-se modos de usos da
Esse tipo de exploração ou dominação do espaço
natureza que resultam em conflitos ambientais atuais,
natural, resultando na desestruturação das condições
os quais foram causados pela maior integração com
de produção dos pequenos produtores ou comunidades,
a economia capitalista global, pela dependência dos
é nomeado de acumulação por espoliação, de onde
recursos naturais, pela degradação ambiental e pelo
são retirados os recursos de um grupo desprivilegiado
poder político centralizado (BRYANT; BAILEY, 2000).
politicamente para fortalecer o desenvolvimento
Conflitos socioambientais são aqueles relacionados capitalista (Harvey, 2005). O Brasil tem se aprofundado
ao acesso e também ao controle dos recursos naturais e nesse tipo de processo ao passo da crescente inserção
do território. Os agentes envolvidos enfrentam interesses de sua economia no mercado globalizado (ASCELRALD,
e valores divergentes, diante de um contexto de grande 2010).
assimetria de poder. Esses conflitos apresentam
O período colonial nos países subdesenvolvidos
diferentes concepções sobre o território, sobre a natureza
deixou um legado ambientalmente degradante e de
e sobre o ambiente, ao passo que vão estabelecendo uma
crescimento econômico dependente da exploração
disputa acerca do que se entende sobre desenvolvimento
dos recursos naturais. Na América Latina, por exemplo,
(SVAMPA, 2013).
a organização político-administrativa da colônia era
A instalação de megaprojetos configura-se como o estabelecida com o intuito de controlar as pessoas e o
estabelecimento dos conflitos, visto que todo ele tem a espaço natural localizados em sua jurisdição (ANDRADE,
tendência de reconfigurar o território em sua globalidade. 2011).
Normalmente, são impostos sem a autorização das
No Brasil, desde o século XVI já existe exploração
populações tradicionais, gerando assim fortes divisões
de matéria-prima para a Europa. O primeiro exemplo foi
na sociedade (SVAMPA, 2013).
o extrativismo do pau-brasil no Nordeste do País, em
Segundo Ascelrald (2010), os conflitos ambientais seguida houve a corrida dos minerais preciosos por todo
ocorrem, de fato, no momento em que a legitimidade o País, principalmente no eixo centro-sul (ANDRADE,
de certas formas de domínio do espaço é contestada 2011).
diante da alegação da existência da sobreposição de
Nos últimos anos do século XX, tem se intensificado
práticas espaciais indesejadas. A ocorrência de uma
a expansão de megaprojetos que tendem a aumentar
prática interage com o espaço em detrimento de outra,
o controle sobre os recursos naturais, a extração e
normalmente mais antiga.
a exportação de matérias-primas do espaço latino-
Na realidade social concreta, todo ambiente se americano, contudo, sem aumentar o seu valor agregado
apresenta com agentes antagônicos, e estes possuem (SVAMPA, 2013).
significados culturais que não compactuam, pois os
No último decênio, a América Latina vivenciou
modos de apropriação material e simbólica do espaço
plenamente a efetivação do Consenso de Washington,
também são diferentes. Nesse sentido, a desigualdade
já iniciada na década de 1990, como também sua
ambiental encontra possibilidade de se instalar mais
passagem para o Consenso das Commodities, baseada
facilmente, e, quando sobreposta às questões de ordem
na exportação em grande escala dos bens primários.
social, os conflitos tendem cada vez mais a se multiplicar
Esse segundo consenso se caracteriza pelo ingresso
(ASCELRALD, 2010).
de uma nova ordem com um viés econômico, político
Na análise sobre os conflitos ambientais são e ideológico, sustentado pelo crescimento dos preços
observadas diversas formas de usos dos recursos internacionais das matérias-primas e dos bens de
naturais, variando entre questões do direito ao acesso consumo, os quais possuem uma constante demanda

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

nos países centrais e emergentes. A aplicação desse conservação ambiental (BRYANT; BAILEY, 2000), uma vez
modelo traz resultados antagônicos para a região. De que nos últimos anos os movimentos pró-preservação do
um lado é notório o crescimento econômico e o aumento patrimônio histórico-natural têm conquistado grandes
das reservas monetárias, porém do outro lado são espaços no debate político.
visualizadas facilmente as assimetrias sociais, como a
concentração de renda e a desigualdade nos privilégios
conquistados pela exploração dos recursos (SVAMPA,
2013).
O“sustainable livelihoods approach”, uma
ferramenta para estudos no meio rural
A América Latina reproduz em grande escala os
padrões de desenvolvimento pautados numa perspectiva
antropocêntrica e instrumental. As exportações estão O sustainable livelihoods approach5 (SLA) é uma
em sua maioria baseadas em recursos primários. Com a ferramenta de análise com a proposta de aperfeiçoar a
exceção do Brasil, todos os países do Mercosul possuem compreensão do pesquisador acerca da subsistência
altos níveis de exportações de matérias-primas como os e da sustentabilidade de um determinado indivíduo.
minerais, petróleo, gás natural, produtos agropecuários, Normalmente, os estudos desenvolvidos com essa
entre outros. Países como Chile e Bolívia tem 80% de metodologia são aplicados para analisar a subsistência
suas exportações relacionadas a esses produtos. Para de indivíduos com baixas condições socioeconômicas
isso é necessária a apropriação de extensas áreas, e (CHAMBERS; CONWAY, 1991).
comumente a ocupação dessas terras traz resultados O termo sustainable livelihood traduzido literalmente
negativos para os seus antigos proprietários (GUDYNAS, para o português significa subsistência sustentável
2010). ou – como amplamente aplicado por autores nativos
A partir do ponto de vista da lógica de acumulação o do português – meios de vida sustentáveis. Para
consenso de commodities contribui profundamente com esta pesquisa optou-se manter o termo no original
a questão da desposse de terras, de recursos naturais para não ser confundido com o termo meio de vida,
e dos territórios, produzindo assim novas formas de anteriormente conhecido na sociologia rural, o qual não
dependência e dominação. Alguns elementos são corresponde completamente com o SLA. O conceito de
intrínsecos a essa dinâmica, por exemplo a escala dos meio de vida foi pioneiramente utilizado pelo sociólogo
empreendimentos, a tendência a monocultura, a falta brasileiro Antônio Candido na década de 1950, em sua
de diversificação econômica e uma lógica de ocupação obra Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira
territorial notavelmente degradante (SVAMPA, 2013). brasileiro e a transformação dos seus meios de vida
(PERERIRA; SOUZA; SCNEIDER, 2010). Embora ambos
A escala dos empreendimentos determina a sua área
os termos (meio de vida e sustainable livelihoods) sejam
de atuação, como também sua força no território. Em
pertencentes à mesma genealogia, possuem algumas
função de sua concentração econômica e os objetivos
diferenças conceituais, o que impossibilita sua discussão
político-econômicos, tais empreendimentos tendem a se
em conjunto.
consolidar no seu território de atuação com uma lógica
neocolonial, provocando uma fragmentação social e Também não será utilizado o termo “subsistência
regional, fortalecendo a criação de espaços produtivos sustentável”, mesmo com tradução equivalente, para não
dependentes do mercado internacional. Alguns surgir uma falsa ideia sobre o que está sendo proposto
exemplos claros são as indústrias de mineração a céu para discussão. Dessa forma, o pensamento será mantido
aberto, a exploração de petróleo e gás, a construção de tal qual foi concebido, com vistas a evitar prováveis
hidrelétricas, a expansão pesqueira e florestal (SVAMPA, limitações na tradução, uma vez que este é um termo
2013). carregado de questões que envolvem uma complexidade
cultural que, normalmente, não se exprimem literalmente
Diante das condições naturais que a América Latina
para idiomas distintos.
possui, a região poderia se converter em um espaço para
obter um intercâmbio regional e estabelecer um menor O SLA foi desenvolvido no final da década de 1980
uso de commodities e reformar seu espaço institucional e início da década de 1990 pelo Instituto de Estudos
para as questões ambientais. Tendo em vista a atual sobre Desenvolvimento6 (IDS), entre outros grupos, e
estrutura dos seus países, estes não tratam dos temas amplamente difundido pelo Comitê Consultivo em Meios
ambientais adequadamente (GUDYNAS, 2004). Nos de Vida Rural7. O primeiro órgão pertence à Universidade
países latino-americanos, assim como nos demais
5
Por uma escolha de tradução preferiu-se manter os termos e a sigla no
países subdesenvolvidos, as políticas ambientais diferem
idioma original.
dos países centrais. Nos primeiros existe uma fragilidade No original em inglês a instituição é traduzida por Institute of Develop-
6

em relação à conservação, prevalecendo a degradação. ment Studies.


No segundo grupo de países há uma tendência maior à 7
No original em inglês o termo é traduzido para Sustainable Rural Live-
lihoods Advisory Committee.

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A contribuição da ecologia política e do sustainable livelihoods approach nos estudos ambientais no meio rural do Brasil: um olhar sobre os reassentados de Petrolândia

de Sussex e tem o objetivo de realizar pesquisas voltadas corresponder aos padrões que permitem o crescimento,
para os desafios da pobreza, injustiça global, entre porém sem extinguir os recursos, no sentido de que as
outros. O segundo órgão pertence ao Departamento de gerações futuras também possam usufruir destes. E
Desenvolvimento Internacional (DFID)8 (DFID, 1999). O também contribuir com outros meios de vida em escala
referido departamento é dos 24 ministérios do governo local e global (PERONDI; SCHNEIDER, 2012).
inglês, sediado em Londres. O órgão possui a função A pesquisa com o SLA se utiliza de um framework9
de liderar trabalhos contra a extrema pobreza, por meio (Figura 1) para analisar as diferentes formas de
de criação de empregos, oferecimento de serviços em subsistência existente em um determinado ambiente,
educação, combate à violência, prevenção de desastres geralmente são aplicados para discutir a questões
e ajuda humanitária. relacionadas ao espaço rural, no entanto também tem
Em 1991, Robert Chambers e Gordon Conway aplicabilidade para áreas urbanas (ELLIS, 2000). A
publicaram o artigo Sustainable rural livelihoods: subsistência é formada por um conjunto de diferentes
practical concepts for the 21st century, considerado forças e fatores que estão constantemente variando; ora,
o trabalho inicial acerca do tema. O artigo tinha o variam os aspectos econômicos, ora, os naturais, entre
objetivo de explorar e elaborar amplamente o conceito outros (DFID, 1999).
de sustainable livelihoods. As ideias eram baseadas O framework (Figura 1) proporciona uma visualização
em capacidade, equidade e sustentabilidade. Para os de processos e atividades, o qual pode ser utilizado de
autores, livelihoods compreendem, em termos gerais, diferentes formas pelos pesquisadores com vistas a
pessoas, seus recursos e seus significados de vida, e redução da pobreza, sustentabilidade e estratégias de
nesse contexto podem ser incluídos alimentação, renda, desenvolvimento. O framework é concebido a partir de
entre outros (CHAMBERS; CONWAY, 1991). um contexto de vulnerabilidade social e ambiental, da
Para que a subsistência do pequeno produtor seja tendência à fome, da questão de gênero, das interações
ambientalmente sustentável é necessário que este existentes entre a questão ambiental e a pobreza, dos
mantenha ou aumente os bens naturais tanto no problemas da pobreza urbana e dos modos de vida
ambiente local como para o global, principalmente sustentável no campo (ELLIS, 2000).
relacionados àqueles a que sua própria subsistência A abordagem no SLA é aplicada comumente
está dependente. E como uma reação em cadeia também com indivíduos ou famílias em situação de pobreza.
deve trazer benefícios para subsistências de outros tipos Normalmente, ela não é desenvolvida com grupos ou
de produção, não diretamente relacionados a um único comunidades. Acredita-se que essa maneira de se fazer
tipo de atividade (CHAMBERS; CONWAY, 1991). a pesquisa é fundamental para entender as opções de
De acordo com Yu (2004), o SLA trata-se de um estratégias adotadas por cada indivíduo em busca
enfoque baseado em uma perspectiva holística com o da sobrevivência, considerando todos os aspectos da
objetivo de debater a redução da pobreza e promover vulnerabilidade e as condições adversas de vida (ELLIS,
o desenvolvimento. O SLA apresenta cinco capitais 2000).
(social, humano, financeiro, físico e natural) como ativos O framework (Figura 1) utilizado para as análises
essenciais e necessários para uma vida sustentável. foi estabelecido para oferecer suporte na elaboração
Esse modo de pesquisa social se diferencia dos demais de micropolíticas, ou seja, políticas públicas voltadas
em função do seu caráter pormenorizado nas análises para um grupo específico em espaços rurais, porém os
e por desenvolver um trabalho participativo junto com a resultados não se limitam a essa aplicação, as análises
comunidade. também servem para criação de macropolíticas, ou
O SLA traz uma proposta analítica, amplamente seja, políticas públicas voltadas para um público que
conhecida no cenário internacional. O enfoque está compreenda o amplo número de pequenos produtores
voltado para o modo como a população pobre dos do País (ELLIS, 2000).
ambientes rurais desenvolve suas estratégias de O termo micropolíticas se refere às intervenções que
enfrentamento às suas condições de vulnerabilidades afetam diretamente as opções de sobrevivência e as
(GRISA, 2009). A partir da visualização dos acessos aos estratégias a nível local. Estas podem ser originadas do
cinco elementos é possível verificar suas condições de governo nas suas diversas esferas, ONGs e também pelas
vulnerabilidade e a (des)igualdade nesses acessos. relações desenvolvidas entre os próprios produtores ou
O sustainable livelihoods approach (SLA) apresenta as deles com outras organizações. As micropolíticas podem
formas requeridas para se obter a subsistência, e essas
formas podem ser expressas por capacidades, direitos, 9
O termo traduzido literalmente do inglês significa quadro, porém a pala-
vra tem um sentido mais amplo que traz a ideia de base onde são esta-
acessos, entre outros. E para ser sustentável é preciso belecidas estruturas, ou, para o caso deste trabalho, base de onde se po-
dem retirar resultados a partir de determinadas análises. Nesse sentido,
8
A sigla será mantida como no original em inglês, que corresponde a De- a palavra não terá uma tradução em português para que não se limite o
partment for International Development. sentido que se quer expressar.

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

ser estabelecidas de diversas formas, por exemplo: também podem ser originadas para a macro. Neste
taxas, subsídios, microcrédito ou outras formas de ações caso, questões como simplificação de procedimentos
políticas que influenciem a sobrevivência da população burocráticos, promoção de equidade através de decisões
local como a formação de associações, cooperativas ou oficiais, remoção de barreiras de mercado do comércio
outros grupos que lutem pelos objetivos do grupo, o que em pequena escala são intervenções dependentes de
pode garantir a redução de tarifas, quebra de barreiras operações do governo em um sentido mais amplo (ELLIS,
comerciais ou influenciar intervenções propostas (ELLIS, 2000).
2000). O framework (Figura 1) do SLA apresenta os fatores
Sob o ponto de vista da macropolítica os impactos que afetam a subsistência dos produtores locais e as
podem ser mais significantes para os produtores de relações estabelecidas entre eles, além de também
nível local e influenciar com maior intensidade suas servir para o planejamento no desenvolvimento de novas
estratégias de sobrevivência. Do mesmo modo como atividades e avaliar a contribuição dos seus modos de
foram apresentadas intervenções para micropolítica, vida para a sustentabilidade (DFID, 1999).

FIGURA 1 – Quadro do sustainable livelihoods approach

Fonte: DFID, 1999.

A formação do framework acima é composta por


culturais, as quais também interagem com o contexto de
diversos elementos que somados podem contribuir para
vulnerabilidade. Diante deste primeiro momento, serão
discussão em prol da redução da pobreza. Inicialmente,
identificadas as Estratégias de Sobrevivência (Livelihoods
é elencado o Contexto de Vulnerabilidade (Vulnerability
Strategies), que surgem a partir dos resultados da
Context), onde são pontuadas questões do ambiente
interação dos processos anteriores, as quais têm o
da população local e sua influência nos seus meios
objetivo de encontrar Resultados das Condições de Vida
de vida. Em seguida, o contexto de vulnerabilidade é
(Livelihood Outcome), que podem ser o crescimento da
relacionado com os Ativos da Subsistência (Livelihood
renda, do bem-estar, a redução da vulnerabilidade etc.
Assets), localizados no pentágono, e são divididos
(DFID, 1999. Grifos nossos.).
em capital humano, capital natural, capital financeiro,
Os Ativos da Subsistência são identificados por meio de
capital físico e capital social. Todos estes influenciam
um pentágono. Cada ângulo corresponde a um capital e o
e sofrem Influências de Estruturas e Processos
acesso a eles pode modificar o formato do polígono, caso
(Transforming structure and processes), normalmente
os acessos sejam desiguais. Os capitais são divididos
regidas pelas esferas políticas e também por questões
em humano, social, natural, físico e financeiro. O primeiro

132
A contribuição da ecologia política e do sustainable livelihoods approach nos estudos ambientais no meio rural do Brasil: um olhar sobre os reassentados de Petrolândia

dessa lista representa as habilidades, conhecimento reconhecimento de limitações para a subsistência,


técnico e instrumentos (DFID, 1999). mesmo enfrentando os interesses das elites em encobrir
Na continuidade da lista encontra-se o capital social, ou distorcer os problemas para beneficiar a si mesmas.
que, apesar dos debates acerca deste termo, no contexto Dessa forma, é de suma importância habilidades prévias
do SLA significam as redes de contatos, relação patrão- e rigor com a análise social (DFID, 1999).
cliente, parceiros com interesses compartilhados, grupos Esta seção tem o objetivo de discutir as bases do
formalizados como associações, cooperativas etc. E “sustainable livelihoods approach” (SLA) de forma a
relações de confiança, reciprocidade e trocas, o que encontrar pontos em comum com o debate desenvolvido
facilita a cooperação, a redução de custos e a segurança na ecologia política. Dessa forma, esta pesquisa pretende
nas transações (DFID, 1999). provocar a discussão acerca do uso dessas abordagens
O capital natural vem em seguida, representando os como meios de estudo dos problemas existentes
recursos naturais necessários para a subsistência. Na para subsistência dos reassentados de Petrolândia –
sequência tem-se o capital físico, que compreende a Nordeste do Brasil.
infraestrutura básica e os bens que o produtor necessita
para manter sua subsistência. O quinto capital é o
financeiro, que são todos os recursos financeiros a que
Implicações para subsistência dos pequenos
os produtores têm acesso com o objetivo de alcançar
produtores de coco dos assentamentos
a subsistência, e aqui podem ser identificadas duas
irrigados de Petrolândia-Pernambuco
fontes principais: formas de poupança e regular acesso
a rendimento como pensão ou salário (DFID, 1999).
O Município de Petrolândia, situado na porção
Com o framework é possível identificar uma série de
pernambucana do Submédio São Francisco, sofreu
problemas e organizar um esboço para relacionar cada
inundação de parte do seu território para servir como
um deles. Também deve ser utilizado para visualizar com
reservatório da barragem de Itaparica, em função da
clareza as influências e os processos determinantes
instalação da Usina Hidrelétrica (UHE) Luiz Gonzaga,
para subsistência dos produtores locais e enfatizar as
inaugurada em 1988 (Brasil, 2010).
múltiplas interações entre os vários fatores que afetam
a subsistência dos produtores (DFID, 1999). A formação do reservatório repercutiu na
transferência de aproximadamente 10.500 famílias para
O objetivo do framework do SLA é oferecer um
reassentamentos. Mais de 21 mil pessoas moravam nas
suporte com diferentes perspectivas para engajar em um
áreas urbanas e mais de 19 mil habitavam nas áreas
debate coerente acerca dos diversos fatores que afetam
rurais. Os reassentamentos foram construídos com
a subsistência, sua importância e o modo como eles
agrovilas e lotes dotados de sistemas de irrigação. Os
interagem. Essa abordagem é de grande importância
assentamentos de Apolônio Sales e Icó-Mandantes são
porque contribui na identificação dos pontos importantes
os mais antigos do Município de Petrolândia e diferentes
que oferecem suporte à subsistência dos pequenos
em sua estrutura. O primeiro é o único em toda a região
produtores (DFID, 1999).
que não possui agrovila (SCOTT, 2009).
O framework foi criado para servir como uma
Após 27 anos da instalação dos reassentamentos
ferramenta versátil no planejamento e na gestão. A ideia
na região de Itaparica, evidenciam-se os desafios para
é também oferecer uma forma de pensar e debater a
subsistência dos reassentados e seus descendentes
subsistência de pequenos produtores, como também
(Domingues, 2009), em sua maioria produtores de
entender a complexidade dos fatores que a influenciam.
coco. Um grupo de agricultores, desde o período da
A contribuição esperada dessa ferramenta é o suporte
transferência forçada, foi instalado em terras sem
para elaboração de meios para se discutir a eliminação
aptidão para irrigação, onde as condições edáficas não
da pobreza (DFID, 1999).
são favoráveis para a instalação do sistema, visto que
A utilização dessa metodologia requer algumas
são terras com baixa permeabilidade, má drenagem,
orientações para que se alcance o melhor que esse
aumento natural de sais e elevada saturação por sódio
meio pode oferecer. Por exemplo, as pesquisas devem
trocável, caracterizando-se por solos naturalmente
ser desenvolvidas de modo participativo. Durante
salinos. Dessa forma, tais produtores iniciaram sua nova
a aplicação, o objetivo deve ser a neutralidade e o
vida em desvantagem econômica, alguns permanecendo
comprometimento com a luta em prol da eliminação
assim até os dias atuais.
das condições de pobreza. Dessa forma, pode ser
A maioria dos produtores enfrenta a questão da
estabelecido um importante diálogo com os parceiros
obsolescência da infraestrutura para irrigação instalada
para entender como os fatores políticos e econômicos
no final da década de 1980 e início da década de 1990,
contribuem com a perpetuação da pobreza no local. Esse
a qual não tem contribuído com o melhor uso dos
uso deve ser associado com meios que possibilitem o

133
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

recursos naturais. O sistema de irrigação apresenta região não apresentam forças suficiente para superar
diversos pontos de perda de água por rachaduras. Além as barreiras do mercado, permanecendo às margens
da falta de manutenção em muitos trechos, inclusive nas do sistema sem oportunidade de comercializar seus
estações de bombeamento, que acumula resíduo com produtos diretamente. Os agricultores, quando não são
facilidade, estes se transformam em barreiras naturais excluídos do meio rural, tornam-se dependentes de
dentro da canalização empatando a distribuição pelo grandes produtores ou de intermediários, os quais têm o
assentamento. controle sobre o acesso ao mercado e não compartilham
Outros produtores expandiram ilegalmente a sua área dos ganhos igualmente com os reassentados.
irrigada, em detrimento dos agricultores localizados no Diante do exposto, é evidente que a realização de
fim do sistema de distribuição, os quais não recebem a megaprojetos, como a construção de usinas hidrelétricas,
mesma quantidade de água daqueles que estão no início além dos objetivos de crescimento econômico para uma
do sistema. Com a expansão das áreas irrigadas a água região, também traz resultados negativos para os grupos
tem alcançado com muita ineficiência todo o conjunto. excluídos da mesma região. Sob a luz da ecologia política
Essa situação é agravada diante do racionamento de e as ferramentas do sustainable livelihoods approach,
água. Em períodos de estiagem a distribuição é limitada pode-se identificar com clareza as desigualdades no
por algumas horas durante o dia. Diversos agricultores acesso aos recursos naturais e como isso repercute na
afirmam que o período de tempo do racionamento não é subsistência de pequenos produtores.
suficiente para o cultivo.
Os problemas com o acesso aos recursos naturais,
neste caso, terra e água, resultam em um cenário de
Considerações finais
estagnação econômica para os pequenos produtores dos
assentamentos irrigados de Petrolândia. Essas questões
tomam uma dimensão amplificada quando são somadas Transformações ambientais provocam conflitos
a outros fatores como a desorganização institucional. nas decisões políticas. Em diversos casos toda uma
Os produtores afirmam que não existe associação ou comunidade pode sofrer consequências graves de
cooperativa de produtores reassentados que contribua obras realizadas sem o planejamento ideal. Portanto, é
com o escoamento do coco. Há mais de dez anos que necessário o reconhecimento do contexto histórico e das
eles não têm interesse nesse tipo de organização devido relações da sociedade com o ambiente antes de qualquer
a problemas de corrupção entre os antigos líderes. intervenção política sobre o ambiente.
Os níveis de escolaridade e conhecimento técnico A degradação ambiental, quando não abordada
também são fundamentais para superar os problemas adequadamente, tem a tendência a aumentar,
existentes. No entanto, grande parte dos produtores suplantando a economia de pequenos produtores,
não frequentou a escola regularmente. Todos são principalmente aqueles localizados em comunidades
dependentes de uma empresa que realize uma adequada rurais. A falta de ação ou o enfraquecimento de grupos/
assistência técnica e extensão rural, além de outra movimentos sociais retiram as oportunidades de
responsável pela manutenção dos equipamentos reconstrução de vidas ou da reformulação do espaço
utilizados no cultivo. Mesmo assim, as empresas não habitado, perpetuando os pequenos produtores no
têm funcionado em correspondência à demanda dos conflito pelo acesso aos recursos naturais.
reassentados. Os conflitos ambientais se apresentam normalmente
As dificuldades para acesso a crédito bancário são pelo domínio do espaço por outros grupos, sem debater
somadas aos problemas anteriormente citados. Os os novos usos da área com os antigos habitantes. Dessa
reassentados não disponibilizam de apoio governamental forma, o ambiente é ocupado com práticas sem interação
ou privado formal para consegui empréstimos nos com o entorno, nem com a história local. O sustainable
bancos locais. Muitos são dependentes de uma verba livelihoods approach, em conjunto com a ecologia
de manutenção temporária (VMT), implantada após política, sob a ótica dos conflitos ambientais, traz uma
a transferência como medida provisória que porém abordagem que oferece suporte para o debate sobre as
permanece até hoje. Há estabelecimentos revendedores questões das injustiças ambientais no campo brasileiro.
de insumos agrícolas e equipamentos que realizam um Os produtores dos reassentamentos de Petrolândia
tipo de financiamento informal, e os produtores compram foram transferidos para novas áreas, porém muitos não
para pagar no período da colheita. dispõem de ativos mínimos para sobreviver. O acesso à
Frente a um cenário de conflito ambiental água e à terra é frágil para alguns, enquanto para outros
representado pela limitação ao acesso aos recursos é inexistente, em função da falta de infraestrutura básica
naturais, crédito financeiro, extensão rural, serviços local. Os produtores não são organizados e possuem
técnicos e manutenção, entre outros, produtores da pouco engajamento político. A infraestrutura para captar

134
A contribuição da ecologia política e do sustainable livelihoods approach nos estudos ambientais no meio rural do Brasil: um olhar sobre os reassentados de Petrolândia

a água e também para cultivar a terra não se apresenta


da mesma forma para todos. Com esse cenário de
conflito ambiental, a questão da subsistência nos
reassentamentos torna-se mais complexa e a tendência
é a expulsão dos pequenos produtores e o agravamento
dos conflitos.

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Data de submissão: 24/12/2015


Data de aceite:25/06/2017
Data de publicação: setembro/2017

137
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai/ago.

ARTIGOS

MONITORAMENTO DO USO E DA COBERTURA DAS TERRAS


DO PARQUE NACIONAL DA SERRA DA CAPIVARA E ENTORNO NOS ANOS DE 1987 E 2010

Cláudia Maria Sabóia de Aquino*


Universidade Federal do Piauí**

Gustavo Souza Valladares***


Universidade Federal do Piauí

Renê Pedro de Aquino****


Universidade Federal do Piauí*****
José Gerardo Bezerra de Oliveira******
Universidade Federal do Ceará*******

Vanessa Garcias do Nascimento********


Universidade Federal do Piauí

Resumo: O processo de produção do espaço geográfico nas últimas décadas tem favorecido profundas transformações da paisagem e
consequentemente alterações nos ecossistemas originais, bem como tem acalorado debates no campo científico mediante os elevados níveis
de degradação dos recursos naturais, notadamente nos padrões de uso e cobertura das terras, fato que impulsionou a criação de Unidades
de Conservação da natureza para fins de gestão e manejo. Este estudo realizou mapeamento e análise das tipologias de uso e cobertura das
terras do Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC) e sua área de entorno nos anos de 1987 e 2010 a partir do emprego de imagens de satélite.
Posteriormente ao mapeamento e à análise procedeu-se ao estudo da dinâmica dessas alterações por meio de técnicas de interseção/cruzamento
por geoprocessamento dos mapas de uso e cobertura das terras obtidos para cada período (1987 e 2010). As classes estabelecidas foram as
seguintes: caatinga arbórea/arbustiva, caatinga arbustiva/arbórea, caatinga arbustiva e caatinga arbustiva aberta, área urbana, agropecuária
tradicional, cultura permanente, queimadas e escarpas. Constatou-se ter havido predomínio de classe estável na área de estudo da ordem de
93,09%, e apenas em 6,91% da área constatou-se alterações na paisagem. Os dados sugerem que o Parque Nacional da Serra da Capivara cumpre
de forma plena o objetivo de sua criação, qual seja: a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica.
Palavras-chave: Geotecnologias. Uso da terra. Cobertura vegetal. Unidade de Conservação.

MONITORING OF USE AND COVERAGE OF THE LAND IN THE SERRA DA CAPIVARA NATIONAL PARK AND SURROUNDINGS IN THE YEARS 1987 AND
2010
Abstract:The production process of the geographic space in recent decades has favored deep landscape changes and therefore changes in the
original ecosystems and have heated discussions in the scientific field by the high levels of degradation of natural resources, notably in patterns
of use and land coverage, a fact that spurred the creation of protected areas of nature to management and management purposes. This study
was conducted by mapping and analysing the use of typologies and coverage of the ground in the Serra da Capivara National Park (PNSC) and its
surrounding area in 1987 and 2010 from satellite images employment. Subsequent mapping and analysis proceeded to study the dynamics of these
changes through the intersection of technical/crossing by geoprocessing the use of maps and coverage of land obtained for each period (1987 and
2010). Classes established were: Caatinga tree/shrubby, Shrubby caating/tree caatinga, Srubby caatinga and Open shrubby caating, urban area,
traditional farming, permanent crops, conflagration and escarpments. It was found that stable class has predominated in the 93.09% order of the
study area, only 6.91% of change in the landscape of the area was found. The data suggest that the Serra da Capivara National Park meets in full,
the objective of its creation, which is the preservation of natural ecosystems of great ecological relevance and scenic beauty.
Keywords: Geotechnologies. Land use. Vegetation. Conservation Unit.

________________________________
*Doutora em Geografia, professora do Curso de Geografia da Universidade Federal do Piauí. E-mail: cmsaboia@gmail.com
**Campus Ministro Petrônio Portela, S/N. Teresina, PI. CEP: 64049-550. Tel: (86) 3215-5778
****Doutor em Geografia, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Piauí. E-mail: valladares@ufpi.edu.br
****Mestre em Geografia, professor do Curso de Geografia da Universidade Estadual do Piauí. E-mail: rene.uespi@hotmail.com
*****Rua Desembargador Berilo Mota, s/n, Bairro Dirceu Arcoverde CEP: 64078-213, Teresina, PI. Tel: (86) 3231-9280
******Doutor em Manejo de Pastagens, professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Ceará. E-mail: jgboliv@
gmail.com
*******Centro de Ciências, Departamento de Biologia. Campus do PICI - Bloco 906, Fortaleza, CE, Tel: (85) 33669806
********Graduada do curso de Geografia da Universidade Federal do Piauí. E-mail: vngarcias@hotmail.com

138
Monitoramento do uso e da cobertura das terras do Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno nos anos de 1987 e 2010

MONITOREO DEL USO Y COBERTURA DE LAS TIERRAS DEL PARQUE NACIONAL DE LA SIERRA DE LA CAPIVARA Y ENTORNO EN LOS AÑOS DE 1987
Y 2010
Resumen: El proceso de producción del espacio geográfico en las últimas décadas ha favorecido profundas transformaciones del paisaje y
consecuentemente cambios en los ecosistemas originales, así como ha acalorado debates en el campo científico mediante los elevados niveles de
degradación de los recursos naturales, especialmente en los padrones de uso y cobertura de las tierras, hecho que impulsó la creación de unidades
de conservación de la naturaleza para fines de gestión y manejo. Este estudio realizó mapeamiento y análisis de las tipologías de uso y cobertura de
las tierras del Parque Nacional Sierra de la Capivara (PNSC) y su área de entorno en los años 1987 y 2010 a partir del empleo de imágenes de satélite.
Posterior al mapeamiento y análisis se procedió al estudio de la dinámica de estas alteraciones por medio de técnicas de intersección/cruzamiento
por geoprocesamiento de los mapas de uso y cobertura de las tierras obtenidas para cada período (1987 y 2010). Las clases establecidas fueron
las siguientes: caatinga arbórea/arbustiva, caatinga arbustiva/arbórea, caatinga arbustiva y caatinga arbustiva abierta, área urbana, agropecuaria
tradicional, cultura permanente, quemadas y escarpas. Se constató tener habido predominio de clase estable en el área de estudio del orden de
93,09%, apenas en el 6,91% del área se constató alteraciones en el paisaje. Los datos sugieren que el Parque Nacional de la Sierra de la Capivara
cumple de forma plena el objetivo de su creación, que es la preservación de ecosistemas naturales de gran relevancia ecológica y belleza escénica.
Palabras clave: Geotecnologías. Uso de la Tierra. Cobertura Vegetal. Unidad de Conservación.

em 1937 foi criado o primeiro parque do País, o Parque


Introdução
Nacional de Itatiaia (Maciel, 2016). Pádua (1997) ressalta
que o processo de criação de parques naquela época
Desde épocas remotas, quando havia apenas cerca
considerava principalmente as belezas cênicas, sem
de duzentos milhões de habitantes em nosso planeta,
considerar critérios técnicos ou científicos e sem uma
os relatos de Platão e de Tertuliano já abordavam temas
ideia de sistema.
atuais a exemplo de mudanças de uso e cobertura da
terra e da intensidade com que buscamos retirar da terra Recentemente, no ano 2000, a Lei n. 9.985, de 18
os bens e serviços para nosso uso e sustento e, ainda, as de julho, instituiu o Sistema Nacional de Unidades de
consequências dessas ações para a nossa sobrevivência Conservação da Natureza – SNUC. O SNUC foi idealizado
(Castanheira, 2010). como uma forma de potencializar o papel das Unidades
de Conservação (UC), através de planejamento e
Por mudança da cobertura da Terra se entende
administração integrada com as demais UC, garantindo
a mudança dos materiais biofísicos que cobrem a
que amostras significativas e ecologicamente viáveis de
superfície da Terra, enquanto por mudança de uso da
diferentes populações, hábitats e ecossistemas estejam
terra se entende a mudança dos usos que o homem faz
adequadamente representadas no território nacional e
dela mantendo uma floresta ou derrubando-a para um
nas águas jurisdicionais. Além disso, permite que as UC,
campo de cultivo ou pastagem, tornando áreas rurais em
além de conservarem os ecossistemas e a biodiversidade,
urbanas, inundando vales com a construção de barragens,
gerem renda, emprego, desenvolvimento e propiciem uma
criando Unidades de Conservação, enfim, toda a gama de
efetiva melhora na qualidade de vida das populações
possibilidades de uso que se pode fazer da superfície da
locais e do Brasil como um todo.
Terra (Jensen, 2009).
Entre os objetivos do SNUC encontram-se: proteger
Para Houghton (1994) as mudanças de uso da terra
as espécies ameaçadas de extinção no âmbito regional
estão ligadas de forma complexa ao desenvolvimento
e nacional; promover o desenvolvimento sustentável
econômico, ao crescimento da população e ao avanço
a partir dos recursos naturais; recuperar ou restaurar
tecnológico que promovem no tempo e no espaço
ecossistemas degradados; proporcionar meios e
significativas mudanças nos diferentes sistemas
incentivos para atividades de pesquisa científica, estudos
ambientais.
e monitoramento ambiental; valorizar econômica e
Segundo Castanheira (2010), os ecossistemas estão
socialmente a diversidade.
em permanente mudança para uma variedade de escalas
O estado do Piauí possui quatro parques nacionais a
espaciais e temporais, com a mudança distinguindo-se
saber: o Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba,
entre conversão, que é a completa substituição de um tipo
o Parque Nacional de Sete Cidades, o Parque Nacional
de cobertura por outro, e modificação, quando mudanças
Serra das Confusões e o Parque Nacional da Serra da
mais sutis afetam a característica da cobertura da terra
Capivara, objeto deste estudo, que tem como objetivo
sem mudar a sua classificação global.
analisar as mudanças de uso e cobertura da terra no
Após os anos 1950 assistimos ao aumento sensível da
referido parque e seu entorno. Após a análise será
preocupação mundial com as mudanças nas formas de uso
possível inferir se o parque em questão está cumprindo
e cobertura das terras, posto estas ameaçarem recursos
os objetivos determinados em seu decreto de criação, no
fundamentais a vida, a exemplo da água. Essa preocupação
sentido de preservar ecossistemas naturais de grande
favoreceu a criação de parques nacionais no Brasil, processo
relevância ecológica e beleza cênica.
este iniciado em 1876 por André Rebouças, contudo, somente
Nesse contexto, procurou-se analisar as mudanças

139
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

de uso e cobertura da terra no Parque Nacional da Serra escuros laminados; ii) Formação Cabeças – arenitos
da Capivara, Piauí, e seu entorno, considerando os anos avermelhados com estratificação cruzada; iii) estreita
de 1987 e 2010. Cabe ressaltar que o Parque Nacional faixa contínua da Formação Serra Grande com arenitos
da Serra da Capivara é a única Unidade de Conservação grosseiros, conglomeráticos com leito de conglomerados
dentro do domínio das caatingas, como informa Brasil com estratificação cruzada; iv) Formação Sambaíba
(1991), fato que justifica a realização da pesquisa. de arenitos branco-avermelhados com estratificação
cruzada; v) significativa presença do Grupo Salgueiro,
caracterizado pela presença de micaxisto, quartzitos e
Material e métodos calcário cristalino, com intrusivas básicas e ultrabásicas
e concentração do grupo Caraíbas com gnaisses,
Localização e caracterização geoambiental migmatitos e quartzitos com lentes de anfibolito (Brasil,
da área de estudo 2006).

O Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC) e sua Geomorfologia


área de entorno estão localizados na região sudeste do
estado do Piauí. Ocupam áreas dos municípios de São Brasil (2006) identificou as seguintes unidades
Raimundo Nonato, João Costa, Coronel José Dias e Brejo geomorfológicas: i) Depressão com residuais do São
do Piauí. Distribui-se de forma descontínua entre as Francisco, ii) chapadões e depressões com residuais do
coordenadas -8º 30’ 69” e -9º 03’ 69” Sul e -42º 21’ 44” e meio norte e iii) depressões com residuais do nordeste.
-42 87’ 61” Oeste (Figura 1). As altitudes variam de 68 m (no munícipio de Anísio de
Abreu) a 273 m (no munícipio de Várzea Branca)
Geologia
Clima
A área está inserida na bacia sedimentar do
Maranhão-Piauí. As formações encontradas na área e sua Segundo Brasil (2006), a área de estudo localizada
correspondente constituição litológica são: i) Formação na região sudeste do Piauí caracteriza-se por
Pimenteiras, caracterizada por folhelhos e siltitos apresentar precipitações inferiores a 900 mm, elevada
evapotranspiração potencial e número de meses secos

Figura 1 – Localização geral da área de estudo – PNSC e Entorno


Fonte: Aquino et al., 2016.

140
Monitoramento do uso e da cobertura das terras do Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno nos anos de 1987 e 2010

variando de 9 a 10, configurando o predomínio das baseou-se na composição das bandas espectrais 3, 4
tipologias de clima árido e semiárido, culminando em e 5 do Landsat 5 TM, ajustadas a trabalhos de campo.
uma vegetação de Estepe (caatinga) arbórea aberta e A escolha dessas bandas justifica-se dado o fato das
localmente arbórea densa. mesmas mostrarem claramente os limites entre o solo, a
água e ainda quando combinadas realçarem a vegetação.
Para Novo (2010) e Jensen (2009) esta composição revela
Procedimentos metodológicos de modo mais expressivo o comportamento espectral da
vegetação e dos usos do solo, objeto do trabalho.
A análise das formas de uso e cobertura das As imagens empregadas com os respectivos pontos,
terras baseou-se em processamento e classificação órbitas, datas de passagem do satélite, sensor e resolução
de imagens Landsat TM/5 com resolução espacial estão listadas no Quadro 1. As imagens foram adquiridas
de 30 metros, por meio de técnicas computacionais, gratuitamente no site do Instituto Nacional de Pesquisas
com o objetivo de extrair informações sobre alvos da Espaciais (Inpe).
superfície terrestre, tais como: solo, vegetação e uso
A escolha dos anos (1987 e 2010) baseou-se na
da terra. A identificação das classes de uso das terras
disponibilidade das imagens pelo Instituto Nacional
e dos níveis de sua degradação se realizou por meio de
de Pesquisas Espaciais e referem-se a datas anterior e
procedimentos de processamento digital de imagens
posterior à criação do PNSC. As imagens selecionadas
de satélite (TM/Landsat-5), fundamentada em métodos
foram dos meses de agosto e setembro, objetivando a
fotointerpretativos com base no comportamento de
menor influência dos fenômenos da atmosfera nos níveis
refletância espectral de alvos e trabalho de campo.
de cinza das imagens.
No mapeamento das classes de uso das terras, foram
As imagens foram importadas para o software Arc Gis
estabelecidas as seguintes classes: caatinga arbórea/
10, em seguida, foram georreferenciadas no sistema de
arbustiva, caatinga arbustiva/arbórea, caatinga arbustiva
coordenadas geográficas (latitude-longitude), bem como
e caatinga arbustiva aberta, área urbana, agropecuária
nos sistemas de coordenadas UTM e Datum WGS 84,
tradicional, cultura permanente, queimadas e escarpas.
com base no método imagem-imagem. Após o registro
A identificação dessas classes baseou-se em chave de
das imagens com o uso do utilitário Mosaic, estas foram
interpretação, considerando as variáveis formas, textura,
mosaicadas; em seguida, com o utilitário Extract by
tonalidade, forma, tamanho e localização, conforme
Mask, a imagem foi recortada, considerando-se os limites
indicado em Novo (2010).
geográficos da área de estudo.
Na restituição de padrões de tipos de uso e cobertura
O mapeamento da dinâmica da cobertura vegetal
das terras, do ano de 1987, foram utilizadas as bandas
e do uso do solo foi realizado a partir do método de
espectrais 3 (faixa do vermelho), 4 (infravermelho
Classificação Não Supervisionada, com o objetivo de
próximo) e 5 (infravermelho médio) do Landsat 5 TM,
definir regiões homogêneas.
considerando-se a resposta espectral dos alvos, aliada a
A análise da dinâmica da cobertura vegetal e do uso
conhecimentos relativos a clima, solo e relevo conforme
do solo baseou-se em Batistella et al. (2002) e Mota et al.
sugeridos por Beltrame (1994).
(2013), em que os mapas dos dois anos avaliados são
Para o ano de 2010, as análises das imagens também

Quadro 1 – Características das imagens Landsat com cobertura de nuvens < 10% utilizadas para identificação de níveis de NDVI e tipologias de uso e cobertura vegetal
das terras no Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno, nos anos de 1987 e 2010.
Fonte: pesquisa direta e Aquino et al., 2016.

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GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

sobrepostos com o uso da função Intersect e analisadas As classes identificadas basearam-se em Novo
as áreas estáveis e as alteradas. (2010) e foram as seguintes: caatinga arbórea/arbustiva,
caatinga arbustiva/arbórea, caatinga arbustiva e caatinga
arbustiva aberta, área urbana, agropecuária tradicional,
Resultados cultura permanente, queimadas e escarpas.
A identificação das fácies de cobertura vegetal
Tipos de uso e cobertura das terras do (caatinga arbórea/arbustiva, caatinga arbustiva/arbórea,
Parque Nacional da Serra da Capivara e caatinga arbustiva e caatinga arbustiva aberta) considerou
entorno entre os anos de 1987 e 2010 a estratificação (distribuição das plantas conforme suas
alturas) e ainda a densidade entre as espécies.
Os resultados relativos aos tipos de uso e cobertura As Figuras 2a e 2b apresentam a distribuição espacial
das Terras do Parque Nacional da Serra da Capivara dos tipos de uso e cobertura das terras para os anos de
serão apresentados a seguir e basear-se-ão em Aquino 1987 e 2010. A elaboração desses mapas possibilitou a
et al. (2016). quantificação das classes, bem como a identificação dos
Considerando a afirmativa de Brasil (2006), de que o processos de alteração da paisagem.
uso e a ocupação das terras ao longo de várias décadas Com base nessas figuras, constata-se para o ano de
tem contribuído para o estabelecimento dos processos 1987 a seguinte distribuição espacial entre as classes:
de degradação e determinado a velocidade de sua 0,6% caatinga arbórea/arbustiva, 8,8% caatinga arbustiva/
ocorrência, esta parte do trabalho objetivará analisar o arbórea, 62,9% caatinga arbustiva, 9,5% caatinga
uso e a cobertura vegetal da área de estudo a partir de arbustiva aberta, 0,1% área urbana, 7,0% agropecuária
técnicas de sensoriamento remoto em uma perspectiva tradicional, 5,0% cultura permanente, 2,2% queimadas
multitemporal, para fins de avaliação da degradação e 4,0% escarpas. Para o ano de 2010 a distribuição
no Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno das fácies apresentadas anteriormente é a seguinte:
considerando os anos de 1987 e 2010. 0,7%, 8,9%, 66,2%, 9,2%, 0,1%, 6,2%, 3,0%, 1,7% e 4,0%
O estudo do uso e da cobertura do solo consiste em respectivamente.
caracterizar a vegetação e demais elementos naturais A Tabela 1 apresenta a distribuição dos diferentes
que revestem o solo, e identificar de que forma o homem tipos de usos e coberturas na área de estudo, entre os
está utilizando a área por ele ocupada. anos analisados.

Figura 2a – Uso e cobertura das terras no Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno, no ano de 1987.
Fonte: Aquino et al., 2016.

142
Monitoramento do uso e da cobertura das terras do Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno nos anos de 1987 e 2010

Figura 2b – Uso e cobertura das terras no Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno, no ano de 2010.
Fonte: Aquino et al., 2016.

Tabela 1 – Distribuição absoluta e relativa das classes de uso e cobertura das terras na região do Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno, nos anos de 1987 e
2010.
Fonte: pesquisa direta. Aquino et al., 2016.

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GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

De acordo com as análises dos dados apresentados (73,6%) do total apresentavam de 2,1 a 5,0 metros, apenas
na Tabela 1 relativos à distribuição geográfica dos tipos 22 indivíduos (0,37) ultrapassaram 8,0 metros de altura
de uso e ocupação das terras identificados, constata-se e 26,03% apresentaram uma altura média de 3,5 metros.
que: Esses dados confirmam o predomínio de uma caatinga
• Em ambos os anos analisados, evidencia-se que com fisionomia arbustiva com indivíduos bastante
as fácies de caatinga arbórea/arbustiva, área urbana, e ramificados na área de estudo e a presença de algumas
escarpas sofreram variação quase nula. árvores emergentes esparsas. Freitas (2010) afirma ser
• A classe caatinga arbustiva arbórea sofreu um o predomínio de estratos arbustivos um sinal de possível
acréscimo de apenas 0,1%; sucessão secundária na área de estudo.
• A classe da caatinga arbustiva aberta passou de
9,5% em 1987 para 9,2%, um decréscimo de 0,3%.
• A classe caatinga arbustiva passou de 62,9% Dinâmica de uso e cobertura das terras nos
em 1987 para 66,2% em 2010, um acréscimo de 3,4%, anos de 1987 e 2010
indicando estágio de sucessão ecológica.
A partir da interseção/cruzamento por
• As classes agropecuária tradicional e cultura
geoprocessamento dos mapas de uso e cobertura
permanente sofreram decréscimos de 0,7% e 1,9%
das terras obtidos para cada período (1987 e 2010) foi
respectivamente, entre 1987 e 2010.
possível gerar um mapa de monitoria (Figura 3) e analisar
• As queimadas, que em 1987 foram registradas a dinâmica do uso e da cobertura das terras para os
em 2,2% da área de estudo, em 2010 foram registradas anos em questão. O método envolveu a elaboração de
em apenas 1,7% da área do parque. uma matriz de dinâmica que caracteriza as alterações
• Em ambos os anos, evidencia-se que a caatinga ocorridas na área de estudo (Tabelas 2 e 3).
arbustiva é a classe de maior representatividade. A partir do mapa (Figura 3) e da matriz da dinâmica
• Constata-se uma coerência nos dados obtidos de uso (Tabelas 2 e 3) foram identificados os processos
na pesquisa com os encontrados por Lemos (2003). Esse mais significativos de transformação da paisagem que
autor, baseado no porte (altura e diâmetro), caracterizou ocorreram na área de estudo, assim como realizado por
uma hectare de caatinga do Parque Nacional Serra da Batistella et al. (2002) e Mota et al. (2013).
Capivara. Concluiu que dos 5.827 indivíduos amostrados As classes estabelecidas para o estudo da dinâmica

Figura 3 – Dinâmica do uso e da cobertura das terras do Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno, nos anos de 1987 e 2010.
Fonte: elaborado pelos autores.

144
Monitoramento do uso e da cobertura das terras do Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno nos anos de 1987 e 2010

Tabela 2 – Matriz de cruzamento do mapeamento da dinâmica de uso e cobertura das terras do Parque Nacional da Serra da Capivara, PI, Brasil, nos anos de 1987 e 2010,
valores absolutos em km2.
Fonte: os autores.

Tabela 3 – Matriz de cruzamento do mapeamento da dinâmica de uso e cobertura das terras do Parque Nacional da Serra da Capivara, PI, Brasil, nos anos de 1987 e 2010,
percentagem.
Fonte: elaborado pelos autores.

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GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

de uso foram as seguintes: estável; sucessão ecológica; Provavelmente, reflexo da criação do PNSC.
agropecuária; expansão agropecuária; extensificação A classe “expansão agropecuária” foi considerada
agropecuária; intensificação agropecuária; retração como sendo as áreas onde ocorreu conversão para uso
ecológica; expansão de áreas urbanas e outros. agropecuário (em suas várias modalidades). A expansão
Uma análise sucinta dos dados das Tabelas 2 e 3 agropecuária ocupava 12,83 km2, correspondendo a
permite inferir que nos diferentes tipos de cobertura 0,39% da área total. A conversão das terras para o uso
vegetal (caatinga) há predominância da classe estável, agropecuário foi realizada em áreas outrora ocupadas
evidenciando assim situação de estabilidade, ou seja, não por caatinga arbustiva e caatinga arbustiva aberta, que
ocorreram transformações significativas em relação ao representavam no ano de 1987, respectivamente, 0,1% e
tipo de uso e cobertura das terras no período analisado. 0,2% do total da área do parque.
Também se verificou na área processo de sucessão A classe “extensificação agropecuária”, com uma
ecológica. Ressalta-se que o termo sucessão ecológica área de 1,76 km2 (0,05% da área total), corresponde
é usado para descrever processos de alteração na à expansão da área cultivada, pela implementação da
vegetação sobre várias escalas, como temporal, espacial cultura permanente onde anteriormente existia apenas
ou vegetacional. De modo que sucessão é o processo uma agricultura tradicional.
ordenado de mudanças no ecossistema, resultante A classe “intensificação agropecuária” corresponde
da modificação do ambiente físico pela comunidade às áreas que antes eram cultura permanente e no ano de
biológica, culminando em um tipo de ecossistema 2010 foram identificadas como agricultura tradicional.
persistente – o clímax. Esse processo pode ser explicado Representam 0,03% da área.
devido à redução do uso da terra para a agricultura,
A classe “retração ecológica” indica as áreas onde
favorecendo a redução do número de queimadas, como
houve uma piora no estado da cobertura vegetal,
comprovam dados da Tabela 1, e ainda o abandono das
indicando um retrocesso do estado de equilíbrio. Esta
terras, que passaram a ser ocupadas, principalmente,
classe abrange 0,02% da área total. Nesse caso houve
por vegetação arbustiva em diferentes estágios de
a retração da caatinga arbórea/arbustiva para uma
desenvolvimento, quicá até o alcance do seu ponto de
caatinga apenas arbustiva.
equilíbrio.
A classe “expansão de áreas urbanas” indica a
Na classe “agropecuária”, que representa o rendimento
conversão de áreas rurais em áreas urbanizadas.
dos principais cultivos por unidade de área, houve
Corresponde às áreas que possuíam algum tipo de uso e
predomínio de situação de estabilidade com tendência de
passaram a ser urbanizadas. Ocupam 0,02% da área total.
sucessão ecológica para as classes de caatinga arbustiva
Em contrapartida, na classe denominada de “outros”,
aberta, caatinga arbustiva e caatinga arbórea arbustiva.
que corresponde às alterações que não se adéquam às
categorias anteriores e/ou categorias relevantes e que
ocupa 0,06 km2, constatou-se o processo inverso, qual
seja: a área urbana se tornou de agricultura tradicional.

Tabela 4 – Área e frequência relativa das classes de dinâmica de uso e cobertura das terras na região do Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno
Fonte: pesquisa direta. Aquino et al., 2016.

146
Monitoramento do uso e da cobertura das terras do Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno nos anos de 1987 e 2010

Com base na Tabela 4 constata-se ter havido da área de estudo, conforme consta na Tabela 5.
predomínio de classe estável na área de estudo da ordem Uma análise dos dados permite inferir que em 1987 a
de 93,09%, e apenas em 6,91% constatou-se alterações percentagem de cobertura vegetal natural era de 81,8%,
na paisagem. e em 2010 este valor passa a 85%, um aumento de 3,2%.
Através de análise combinada dos dados das Já os demais tipos de uso e cobertura das terras, que
Tabelas 2, 3 e 4, foi possível estimar a dimensão das em 1987 eram de 18,2, passaram em 2010 a 15,0, uma
transformações na cobertura vegetal natural (caatinga redução de 3,2% (Figura 4).
arbórea arbustiva, caatinga arbustiva/arbórea, caatinga
arbustiva, caatinga arbustiva aberta) e nos demais tipos
de uso e cobertura das terras (agropecuária tradicional,
área urbana, queimada, cultura permanente e escarpas)

Tabela 5 – Área e frequência relativa das classes de cobertura vegetal natural e demais tipos de uso e cobertura das terras no Parque Nacional da Serra da Capivara e
entorno, nos anos de 1987 e 2010.
Fonte: elaborado pelos autores.

Figura 4 – Área de cobertura vegetal natural e demais tipos de uso e cobertura das terras no Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno, nos anos de 1987 e 2010.

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GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

Conclusões

As principais conclusões obtidas neste estudo estão


elencadas a seguir:

• As classes de uso e cobertura das terras


identificadas foram: caatinga arbórea/arbustiva, caatinga
arbustiva/arbórea, caatinga arbustiva e caatinga
arbustiva aberta, área urbana, agropecuária tradicional,
cultura permanente, queimadas e escarpas.
• Em 1987 os diferentes tipos de cobertura vegetal
(caatinga arbórea/arbustiva, caatinga arbustiva/arbórea,
caatinga arbustiva e caatinga arbustiva aberta) ocupavam
81,8% da área de estudo, e em 2010 estas passam a
ocupar 85,0% da referida área. As demais classes (área
urbana, agropecuária tradicional, cultura permanente,
queimadas e escarpas) ocupavam em 1987 18,2% da
área, tendo uma redução relativa em 2010 da ordem de
17,4%, passando apenas a 15% da área.
• Uma análise da dinâmica das classes de uso e
cobertura das terras entre 1987 e 2010 indica que 93,09%
da área de estudo manteve-se em situação estável, e
apenas 6,91% da área sofreu alteração. Ressalta-se que
em parte essas alterações ocorreram no sentido de
aumento da classe sucessão ecológica, bem como pela
redução das áreas das classes agropecuária tradicional,
cultura permanente, queimadas e outros, além da
estabilidade da área urbana, que perfazem o grupo dos
demais tipos de uso de terras, de forma a aumentar as
coberturas vegetais dos tipos arbórea e arbustiva.
• Esses dados evidenciam a eficácia na criação de
Unidades de Conservação a exemplo do Parque Nacional
da Serra da Capivara. Esta constatação permite inferir
que o parque objeto deste estudo cumpre de forma plena
o seu papel, qual seja: a manutenção e a conservação da
biodiversidade do bioma onde está inserido o referido
parque. Esses dados revelam uma situação de equilíbrio
ecológico dinâmico na área com tendência à melhoria,
embora que pequena nas condições de degradação
ambiental.
• Comprovada a eficácia desta Unidade de
Conservação, recomenda-se a criação de outras no
estado do Piauí para fins de manutenção e conservação
da biodiversidade de áreas de relevante interesse do
estado.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Fundação de Amparo à


Pesquisa do estado do Piauí – Fapepi pelo apoio ao
projeto de pesquisa.

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Monitoramento do uso e da cobertura das terras do Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno nos anos de 1987 e 2010

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Data de submissão: 04/06/2016


Data de aceite:27/06/2017
Data de publicação: setembro/2017

149
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai/ago.

Artigos

RESERVAS EXTRATIVISTAS NA AMAZÔNIA:


MODELO DE CONSERVAÇÃO AMBIENTAL E DESENVOLVIMENTO SOCIAL?

Josimar da Silva Freitas*


Universidade Federal do Pará**

Armin Mathis***
Universidade Federal do Pará

Milton Cordeiro Farias Filho****


Universidade da Amazônia*****

Alfredo Kingo Oyama Homma******


Embrapa*******

David Costa Correia Silva********


Universidade Federal do Pará

Resumo: Fizemos uma demarcação da fronteira de conhecimento sobre reservas extrativistas como modelo de política de conservação ambiental
e desenvolvimento social. O objetivo foi de levantar a produção científica sobre temas relacionados à biodiversidade, ao extrativismo, à produção,
ao turismo e à relação do Estado com os moradores das reservas. A revisão se desenvolve a partir de quatro questões sobre os desafios das Resex
para a Amazônia. Como procedimento de identificação, seleção e inclusão dos trabalhos publicados sobre o tema foi adotado o Modelo Prisma. Para
isso foram utilizadas duas bases de textos nacionais e onze bases internacionais, com a combinação das palavras-chave extractive, reserve e Brazil,
durante os meses de maio e junho de 2016. Aqui concluímos que conservação e desenvolvimento não estabeleceram aliança porque o modelo de
gerenciamento do Estado é ineficiente, e as populações locais exploram a floresta para atendimento de necessidades básicas, na expectativa de
garantir alimentação e o mínimo de serviços sociais.
Palavras-chave: Extrativismo. Sistemas produtivos. Reservas extrativistas.

EXTRACTIVE RESERVES IN THE AMAZON: MODEL CONSERVATION ENVIRONMENTAL AND SOCIAL DEVELOPMENT?
Abstract: We have made a demarcation of the frontier of knowledge on extractive reserves as a model of environmental conservation policy and so-
cial development. The goal was to raise the scientific literature on issues related to biodiversity, to the extraction, production, tourism and the state’s
relationship with the inhabitants of the reserves. The revision develops from four questions about the challenges of Resex to Amazon. As identifica-
tion procedure, selection and inclusion of papers published on the subject was adopted Model Prisma. For this we used two bases of national texts
and 11 international bases, with combination of keywords extractive, reserve and Brazil, during the months of May and June 2016. Here concluded
that conservation and development not established alliance because the state management model is inefficient, and local people explore the forest
to meet basic needs, in expectation of ensuring feeding and minimal social services.
Keywords: Extractive. Productive Systems. Extractive Reserves.
________________________________
*
Doutorando em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), e Pesquisador
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM). Email: josimar-freitas@hotmail.com
** Rua Augusto Corrêa, 1 - Guamá, Belém - PA, 66075-110.
***Doutor em Ciências Políticas, professor associado, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido do Núcleo de Altos Estudos Amazôni-
cos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Email: armin.mathis@gmail.com.
****Doutor em Desenvolvimento Socioambiental, professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGAD-UNAMA), Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (PPGDSTU-UFPA). Email: mcffarias@gmail.com.
***** Av. Alcindo Cacela, 287 - Umarizal. Fone: 4009-3000
******Doutor em Economia Rural e pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, Belém (PA). E-mail: alfredo.homma@embrapa.br
******* Travessa Enéas Pinheiro, s/n, Bairro Marco, Belém - PA, 66095-903
********Doutorando em Desenvolvimento Socioambiental (NAEA/UFPA) e pesquisador bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
E-mail: davidcorreiasilva@hotmail.com

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Reservas extrativistas na Amazônia: modelo de conservação ambiental e desenvolvimento social?

RESERVAS EXTRACTIVISTAS EN LA AMAZONIA: MODELO DE CONSERVACIÓN AMBIENTAL Y DESARROLLO SOCIAL?


Resumen: Hemos hecho una demarcación de la frontera de conocimiento sobre las reservas extractivistas como modelo de política de conserva-
ción ambiental y desarrollo social. El objetivo fue realizar un levantamiento de la producción científica sobre temas relacionados a biodiversidad,
extractivismo, producción, turismo y la relación del Estado con las personas que habitan en las reservas. La investigación se desarrolla a partir de
cuatro cuestiones sobre los desafíos de las Resex para la Amazonia. Como procedimiento de identificación, selección e inclusión de los trabajos
publicados sobre el tema fue adoptado el Modelo Prisma. Con esta finalidad fueron utilizadas dos bases de textos nacionales y once bases interna-
cionales, combinando las palabras clave extractivista, reserva y Brasil, durante el periodo de mayo-junio 2016. Aquí concluimos que la conservación
y el desarrollo no establecen alianzas porque el modelo de gerenciamiento del Estado es ineficiente, y las poblaciones locales explotan la selva, para
cubrir sus necesidades básicas, con la expectativa de garantizar su alimentación y un mínimo de servicios sociales.
Palabras clave: Extractivismo. Sistemas productivos. Reservas extractivistas.

Introdução lo XX ao XXI assistiu à expansão da atividade pecuária


nas unidades de uso sustentável (Pantoja; Costa; Posti-
go, 2009). Não se formou uma coalizão social capaz de
A reserva extrativista (Resex) é uma categoria de
transformar a biodiversidade, os produtos e os serviços
unidade de conservação que permite a utilização de re-
ecossistêmicos da exploração florestal em reservas sus-
cursos ambientais por populações tradicionais de modo
tentáveis (Abramovay, 2010).
sustentável. A criação desse tipo de reserva surgiu com
as reinvindicações do movimento de seringueiros, no Diante da insegurança econômica consentida e/ou
estado do Acre, que protestavam contra os desfloresta- promovida por instituições estatais, as famílias produ-
mentos e a expansão extensiva de pastagens nos serin- ziram nova forma de governança local que difere dos
gais (Allegretti, 1989). pressupostos iniciais das reservas extrativistas (Freitas;
Silva; Rodrigues, 2016). Esse contexto nos leva a indagar:
A proposta surge juntamente com a consciência em-
por que os objetivos de conservação ambiental e desen-
pírica dos seringueiros e de todos aqueles que depen-
volvimento social ainda não se consolidaram nas Resex?
dem de atividades florestais para sobreviver na Amazô-
O que a literatura tem demonstrado sobre esse dilema de
nia (Allegretti, 1989, p. 23). O extrativismo vegetal (coleta
produzir e conservar? O modelo de gerenciamento das
de látex, castanhas, açaí, palmito, óleos etc.) e animal
Resex tem se mostrado eficiente? E as populações lo-
(caça e pesca) eram atividades históricas de populações
cais, como têm se comportado ao longo dos anos após
tradicionais. Em 1990, surgiram as primeiras Resex nos
a criação das Resex? O desafio desta revisão é buscar
estados Acre, Amapá e Rondônia. Naturalmente, as ati-
respostas para essas questões.
vidades extrativistas foram vistas como prioritárias, en-
quanto as dinâmicas agrícolas e a criação de animais de A partir desses questionamentos, este artigo faz uma
pequeno porte foram consideradas atividades comple- revisão das principais características do modelo de re-
mentares (Allegretti, 1992). servas extrativistas, com base nas políticas de conser-
vação ambiental e desenvolvimento social, bem como
As Resex são regulamentadas pela Lei nº 7.804/1989
considera temas relacionados à biodiversidade, ao ex-
e pelo Decreto nº 98.987/1990. Com isso surgiram o Sis-
trativismo, à produção, ao turismo e à relação do Estado
tema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) – Lei
com os moradores das Resex.
nº 9.985/2000, a política de subsistência de populações
tradicionais – Decreto 6.040/2007, e o Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO) –
Lei nº 11.516/2007. As pressões nacionais e externas Método e procedimento
decorrentes do assassinato do líder sindical Chico Men-
des em 22 de dezembro de 1988 favoreceram a criação
Os trabalhos que tratam do tema foram selecionados
das Resex como sendo a grande alternativa ambiental
a partir de um levantamento realizado em duas bases de
brasileira.
textos nacionais (Periódicos Capes e Scielo) e 11 inter-
Apesar desses instrumentos jurídicos, o discurso de nacionais (Annual Reviews, Cambridge Journals Online,
unidades de uso sustentável perde credibilidade, uma Ebsco, Jstor, Nature, Web of Science, Wiley Online Library,
vez que a pobreza econômica, a exclusão social e a de- World Scientific, Science Direct, Springer e Scopus), du-
gradação ambiental se tornam pertinentes (Hall, 1991). rante os meses de maio e junho de 2016.
Essa deterioração organizacional das Resex modificou a
Foram selecionados trabalhos publicados em portu-
ordem produtiva de tal modo que as atividades comple-
guês, espanhol e inglês, a partir de janeiro de 1990 até
mentares se tornaram prioritárias. A passagem do sécu-
maio de 2016. Este período se justifica por 1990 ser o

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago

ano de criação das primeiras Resex brasileiras nos esta- sos, anais e artigos de jornais. Também foram excluídos
dos Acre, Amapá e Rondônia. trabalhos sobre temas como reservas de indústrias mi-
A combinação de palavras-chave tanto para os arti- nerais, etnobotânica, ecossistemas marinhos, biodiver-
gos quanto para os livros on-line foram: extractive, re- sidade animal e unidades de conservação de proteção
serve e Brazil (nos três idiomas), além de cruzamento de integral ou de uso indireto.
operadores booleanos AND, OR e NOT. Foram priorizados Para análise dos textos, os trabalhos foram inseridos
trabalhos sobre questões ambientais, econômicas, so- em uma matriz contendo a identificação da base, o total
ciais, institucionais e territoriais que tratam do tema. de trabalhos, os selecionados, inclusos, excluídos, du-
Os temas comuns nos textos selecionados foram ex- plicados e descartados. Para isso foi utilizado o geren-
trativismo, criação bovina, agricultura, desflorestamento ciador de referências mendeley, que permitiu detectar as
e queimadas, extração madeireira, sistemas produtivos, duplicações de referências. A Figura 1 mostra o processo
direitos sociais e propriedade, biodiversidade, turismo, de levantamento e seleção dos textos.
políticas públicas, instituições, sendo os mais impor-
tantes. Foram excluídos da seleção dissertações, teses,
documentos técnicos, relatórios, resumos de congres-

Figura 1 – Processo de identificação e seleção dos trabalhos.

Fonte: adaptado de Moher et al. (2009).

O procedimento de seleção de textos está distribuído (1.881 + 9 – 1.793). A seleção teve por base os resulta-
em identificação, seleção e inclusão. O critério para iden- dos, as discussões e as conclusões de artigos e livros,
tificação foi pelo título e o resumo, o que significa que onde os 97 se referem aos selecionados e os 31 aos ex-
os identificados em bases de textos se referem aos ar- cluídos e justificados. Logo, os 66 trabalhos inclusos na
tigos completos, os adicionais de outras fontes a livros, análise qualitativa correspondem aos artigos completos,
e os excluídos e duplicados às repetições entre as bases livros e capítulos de livros.

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Reservas extrativistas na Amazônia: modelo de conservação ambiental e desenvolvimento social?

Desafios de sustentabilidade a biodiversidade com estratégias conhecidas como “po-


liticamente corretas” devem tentar fazê-lo fora de áreas
biologicamente importantes e das unidades de conser-
A política de demarcação de Resex sem prévio plane-
vação (Olmos et al., 2002).
jamento estratégico colaborou para que a compreensão
de direitos de propriedade ficasse confusa. A priorida- Existem graves problemas em Resex, e estes incluem
de para demarcar o maior número de reservas deveria mercados limitados para produtos florestais, vulnerabi-
acontecer o mais rapidamente possível, e, mais tarde, a lidade às flutuações de preços e altos custos de transa-
melhoria nas condições de vida (Fearnside, 1989). Elas ção, o que torna a autossuficiência econômica irrealista
oferecem um plano de estabilização em longo prazo para (Hall, 2004). Países desenvolvidos utilizam discurso ex-
um número de habitantes locais e ecossistemas regio- trativista e instrumentos econômicos em troca de ma-
nais (Geisler; Silberling, 1992). térias-primas. Apesar do discurso, esses países estão
aproveitando a Amazônia como fornecedora de matéria-
O reconhecimento das diferenças de gênero, devido
-prima mineral, intensivos em energia e como entreposto
ao conhecimento botânico refinado que as mulheres
comercial de seus produtos industrializados (Homma,
possuem no manejo de plantas, e pelo papel-chave em
2005).
produção, diversificação e desenvolvimento possibilita
o desempenho de economias vegetais (Kainer; Duryea, As áreas protegidas são chaves para a conservação,
1992). Quando bem-sucedidas, oferecem oportunidades todavia, além de problemas de gestão que o sistema de
econômicas aos grupos dessas áreas, mas não neces- áreas protegidas enfrenta, há lutas contra a pressão aos
sariamente protegem a floresta, portanto dependem de recursos naturais (Rylands; Brandon, 2005). Os formu-
respostas apropriadas às necessidades sociais (Brow- ladores de políticas ainda têm como desafio abordar a
der, 1992). contradição fundamental entre a natureza estática dos
direitos de propriedade e as dinâmicas econômicas de
Nos parâmetros extrativistas, a matriz operacional
concorrência em mercados onde as Resex pretendem
do modelo é de vulto bastante frágil, e tanto a pobreza
operar (Goeschl; Igliori, 2006).
quanto o mercado de mão de obra marginal afetam o
bem-estar dos habitantes (Homma, 1993). O extrativis- Em outros termos, o discurso “romântico” sobre con-
mo foi outro forte motivo para a criação de Resex, po- servação ambiental e desenvolvimento social prometia
rém, a economia extrativista tem se mostrado limitada se ser a fortiori para solucionar problemas socioambien-
comparada com a produção da pecuária e da agricultura tais. Contudo, essa posição tem provado ser insuficiente,
(Allegretti, 1994). de tal forma que o extrativismo por si, como garantia de
sobrevivência da população da floresta, perde seu valor
Em reservas com exploração do látex, os extrativis-
porque foi se esfacelando como importante vetor econô-
tas argumentam que, embora a borracha nativa não seja
mico face ao crescimento da agropecuária e da minera-
competitiva, os serviços ambientais de proteção à flores-
ção (Clement, 2006).
ta amazônica devem ser contabilizados e pagos por meio
de instrumentos econômicos (Allegretti, 1997). Em casos O extrativismo é uma estratégia de portfólio de sub-
específicos, como da população da Resex do Alto Juruá sistência, um conceito melhor compreendido por eco-
(estado do Acre), com o padrão de subsistência, a orga- logistas e conservadores, e não por trabalhadores do
nização e as alianças, é difícil de manter a diversidade campo na Amazônia, porque as economias extrativistas
cultural e ecológica (Begossi et al., 1999). foram ligadas às alternativas econômicas (Hecht, 2007).
Problemas, pressões e desafios externos repercutem no
Vários são os limites para a eficiência das Resex, com
processo decisório interno com reflexos importantes na
base em seus objetivos. Em reservas onde seringueiros
atitude dos Estados em suas tratativas internacionais
são as populações dominantes, o sucesso depende de
(Tescari; Vargas, 2007).
empoderamento local, superação de problemas, parce-
rias que permitam a regra de comutação, redistribuição Pelo viés de formulação e/ou mecanismo teórico as
de direitos e responsabilidades (Brown; Rosendo, 2000a). reservas extrativistas obtiveram credibilidade. A política
Na prática, as Resex apenas alcançam viabilidade quan- de criação de áreas protegidas teve êxito politicamente
do asseguram meios de vida sustentáveis aos morado- porque criou um mecanismo institucional de resolução
res da floresta, com rendimentos mais elevados, acesso de conflitos em torno da terra e da floresta; socialmente,
a serviços sociais como saúde, educação etc. (Brown; porque assegurou meios de vida para as gerações atuais
Rosendo, 2000b). e futuras; culturalmente, porque respeitou formas tradi-
cionais de uso dos recursos naturais; e ambientalmente,
Na Amazônia, a capacidade de conservar a biodiversi-
porque impediu o avanço dos desmatamentos (Allegretti,
dade em face do aumento crescente de destruição de flo-
2008).
restas através das Resex ainda carece de mais compre-
ensão (Levey, 2002). Cientistas que defendem conservar A grande oportunidade reside no impulso de criar
uma relação mais justa entre o Estado e as populações

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tradicionais, que assumem a tarefa de manutenção de freada do capital predatório é uma grande causa, mas,
recursos e subsistência (Moura et al., 2009). As Resex infelizmente, não resolve economicamente o problema
conciliam conservação com populações humanas, sen- das famílias residentes nas reservas extrativistas e tam-
do fundamental a formulação e a execução de políticas e pouco o histórico problema econômico da região amazô-
ações que visem integrar os promotores do governo com nica, por isso é relevante pensar em meios que possam
as demais partes envolvidas (Barros; Pereira; Vicente, equilibrar as demandas de preservação, sustentabilidade
2011). e manutenção de saberes locais (Barbosa; Moret, 2015).
A manutenção do extrativismo se justifica como uma É relevante entender que os limites biofísicos da na-
maneira de comprar tempo, enquanto não surgirem al- tureza, sua capacidade de resiliência e sustentabilidade
ternativas para evitar o êxodo rural ou ainda existirem para lograr um progresso, sem comprometimento de ge-
grandes estoques de recursos, mercados limitados, rações futuras (Carmo et al., 2016), contraria a concep-
dispersão dos produtos, inexistência de tecnologia de ção de que a abundância e a capacidade de resiliência
domesticação, aparecimento de substitutos naturais e/ sustentam o modelo de Resex. A contradição existe e
ou sintéticos, mercado marginal de mão de obra, confli- pouco se produziu sobre alternativas para esse dilema
to entre sustentabilidade econômica e biológica, entre que o modelo de Resex enfrenta: como assegurar o tripé
outros. Não se pode negar que a economia extrativa foi da sustentabilidade? Poucos trabalhos empíricos con-
também a razão e a causa do atraso regional, apoiando- seguiram demonstrar consistentemente alternativas ao
-se na disponibilidade dos recursos naturais e na crença dilema ou sua inviabilidade.
de sua inesgotabilidade (Homma, 2011).
Conservação ambiental e desenvolvimento social
não constituíram aliança porque o desgaste socioam-
Políticas públicas e dinâmicas em Resex na
biental promovido pela intervenção governamental não
Amazônia
respeitou os protagonistas (seringueiros) das Resex na
Amazônia (Freitas; Rivas, 2014). Estes dois termos tor-
naram-se apenas objetivos estratégicos, dos quais de- Gestão compartilhada com gestores e moradores co-
pendem de investimentos financeiros, pessoal qualifica- operam na formulação e efetivação de políticas públicas.
do, relações de confiança e interesse político no interior Se o objetivo da política é garantir a viabilidade de Re-
das instituições estatais. O resultado da insegurança é a sex como uma ferramenta sustentada na conservação,
extração madeireira, a criação de gado e as atividades de há pouca evidência de que os responsáveis políticos têm
roça, que poderão levar uma Resex a deixar de ser o que escopo suficiente para mudar a situação atual e acen-
é no decorrer do tempo e/ou sem extrativismo, como já tuada de bem-estar de comunidades (Goeschl; Igliori,
ocorre em algumas delas. 2004). Planejadores e formuladores de políticas preci-
sam urgentemente considerar os efeitos potenciais de
Tem o efeito positivo de criar uma insegurança fundi-
desenvolvimento planejado em florestas amazônicas,
ária, inibindo a expansão da fronteira agrícola (Homma,
com base em evidências compiladas em estudos ante-
2014). Criou-se uma falsa concepção de todo produto
riores (Kirby et al., 2006).
florestal não madeireiro ser sustentável, esquecendo-se
que a sustentabilidade econômica não garante a susten- As políticas públicas do Estado brasileiro para a
tabilidade biológica e vice-versa. Outro equívoco refe- Amazônia proporcionaram degradação ambiental e bai-
re-se à separação entre produtos florestais e produtos xo nível de adoção de tecnologias (Dias-Filho; Andrade,
florestais não madeireiros, como se tivessem regras eco- 2006). A pecuária e a produção de soja elevaram as taxas
nômicas distintas, e dessa frágil definição. de desmatamento em regiões fortemente influenciadas
por malhas rodoviárias, especialmente ao longo da ro-
De uma forma geral, as atividades extrativistas se ini-
dovia BR-364, que corta Rondônia, Acre e sudoeste da
ciam, passam por uma fase de expansão, de estagnação
Amazônia (Soares-Filho et al., 2006). São claras as de-
e depois declinam, no sentido temporal e da área espa-
monstrações de que as instituições brasileiras são frá-
cial. Dependendo das políticas de apoio ao extrativismo,
geis para estabelecer sua missão, tal como a elaboração
essas fases podem ser prolongadas e/ou até reduzidas
de políticas e estratégias para as reservas extrativistas
com o surgimento de novas alternativas (Homma, 2014,
(Fantini; Crisóstomo, 2009).
p. 17). A criação de unidades de conservação é ineficiente
para proteger a biodiversidade de áreas de alta priorida- Agricultura mais sustentável em áreas degradadas é
de (Françoso et al., 2015). Diante da pecuária, agricultura uma possibilidade estratégica à racionalização de áre-
e extração madeireira, o extrativismo não se sustenta e as protegidas. No entanto, a redução da destruição dos
há perdas de recursos ambientais além de seu limite em recursos naturais na Amazônia depende mais do desen-
reservas extrativistas. volvimento de atividades agrícolas mais sustentáveis
em áreas desmatadas, a que da coleta de produtos flo-
Proteger o bioma amazônico da exploração desen-

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Reservas extrativistas na Amazônia: modelo de conservação ambiental e desenvolvimento social?

restais e venda de serviços ambientais (Homma, 2010). As Resex não podem ser denominadas de unidades de
A necessidade de políticas econômicas voltadas para a conservação de uso sustentável quando promovem po-
viabilidade econômica da Resex será justa e eficiente se breza e estimulam agressão à natureza (Freitas; Floren-
houver investimento em processos produtivos menos tino; Souza, 2015).
complexos e em cadeias voltadas para populações tra- Por mais que a política ambiental das Resex seja úni-
dicionais, nem sempre viáveis (Negret, 2010). O manejo ca para todo o Brasil, as realidades sociais, econômicas,
de açaizeiros na foz do rio Amazonas, talvez, constitua ambientais e culturais são heterogêneas (Florentino; Sil-
exceção a essa regra, devido à rentabilidade e ao merca- va; Freitas, 2016). A dimensão continental da Amazônia,
do crescente da polpa de açaí, prescindindo da criação que representa 60% do território nacional e onde cabe
da Resex. todo o continente europeu com sobra de espaço, implica
Políticas de manutenção de reservas são mais efi- a incoerência do conceito de Amazônia Legal, necessi-
cientes quando sustentadas em relações democráticas. tando de planos estaduais para melhor atendimento das
Elas auxiliam gestores a realizar mudanças dentro de demandas de desenvolvimento. Dessa forma, o baixo
cenários demográficos e econômicos, para melhor uti- investimento e equipe inexperiente para lidar com ques-
lização dos recursos disponíveis (Newton; Endo; Peres, tões complexas comprometem o bem-estar de famílias e
2011). Em contrapartida, precárias condições de vida biodiversidade no presente e a continuidade de reservas
dos habitantes desses territórios condicionam ativida- de desenvolvimento no futuro.
des produtivas que causam degradação ambiental (Rie-
mann; Santes-Álvarez; Pombo, 2011).
A agricultura e a pecuária são os vilões do desflores-
Efeitos da pecuária nas Resex da Amazônia
tamento e/ou da perda de cobertura florestal que amea-
çam as Resex. O desmatamento, as estradas, a minera-
ção, a exploração madeireira e a tentativa de desafetação Condições de base ecológica, econômica, política e
de algumas áreas são impactos diretos sobre as áreas cultural precisam ser compreendidas e incorporadas no
protegidas (Veríssimo et al., 2011). A contínua pressão que diz respeito às decisões sobre a viabilidade, o papel,
humana gera fortes impactos às unidades de conserva- a localização e a extensão de Resex, bem como a imple-
ção de uso sustentável. Poucas alternativas econômicas mentação e o gerenciamento de tais sistemas (Salafsky;
se tornaram viáveis. O turismo pode se apresentar como Dugelby; Terborgh, 1993). Racionalidade no uso da terra
uma dessas, que depende de uma classe média com for- e da floresta contribui para a manutenção dos meios de
te poder aquisitivo, e mesmo assim não está isento de vida das famílias e das formas tradicionais de uso dos
riscos ambientais. recursos naturais.
As atividades de turismo têm se apresentado como Em escala mundial, se o objetivo é reduzir o desma-
uma alternativa para abrandar os impactos ambientais, tamento e as queimadas em florestas primárias da Ama-
porque apresentam dimensões sociais e ambientais zônia, há necessidade de analisar as políticas públicas
bastante completas (Ciommo; Schiavetti, 2011). O tu- mais amplas que favorecem o uso de áreas já desmata-
rismo é uma oportunidade crescente para criar postos das da região (Homma, 1996). A área desmatada consti-
de trabalho remunerados. Esta inserção contribui para tui a Segunda Natureza, e a floresta intocada, a Primeira
implementar uma coadministração eficaz e mais ampla Natureza. O desafio é transformar pelo menos parte da
na Reserva Extrativista Marinha de Corumbau (Ciommo; Segunda Natureza em uma Terceira Natureza com ati-
Schiavetti, 2012). vidades produtivas sustentáveis que gerem renda e em-
prego (Homma, 2014).
Nessa perspectiva, Santos e Schiavetti (2012) defen-
dem que gerentes institucionais e líderes comunitários A mistura de questões sociais, econômicas e institu-
precisam treinar os moradores para serem verdadeiros cionais que envolvem a criação e a manutenção de áreas
cogestores de Resex. Para os autores, esta ação é fun- protegidas na Amazônia gera um processo de degrada-
damental para se chegar ao caminho desejado, pois o ção ambiental, quando não acompanhadas por meca-
fortalecimento das famílias possibilita subsistência e in- nismos específicos de fortalecimento institucional dos
clusão, ajudando na conservação e no desenvolvimento órgãos governamentais e de envolvimento dos grupos
das localidades em que se situam as Resex. sociais diretamente envolvidos no processo (Pedlowski;
Dale; Matricardi, 1999).
Em essência, a insuficiência de políticas compromete
os propósitos de desenvolvimento das áreas de Resex. Nos termos de desflorestamento, após a criação da
As famílias que habitam as reservas estão politicamente Resex Alto Juruá houve aumento marginal no desma-
isoladas, com pouca capacidade de influenciar no pla- tamento permanente (o desmatamento per capita entre
nejamento dessas áreas, e ainda são prejudicadas na 1989 e 2000 dobrou, de 0,49 ha para 1,1 ha); enquanto
renda para a subsistência (Santos; Brannstrom, 2015). o desmatamento temporário está associado à coiva-

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ra, a agricultura de pequena escala continua a mesma pelo desflorestamento e as queimadas, e isso pouco está
(Ruiz-Pérez et al., 2005). A redução dos desmatamen- sendo explorado pela literatura acadêmica recente.
tos e queimadas na Amazônia depende de dois fatores Novas evidências empíricas ainda precisam ser gera-
fundamentais: o aumento da produtividade por área e a das para demonstrar o que já parece ser uma conclusão
intensificação do uso das terras nas áreas tradicionais plausível na literatura recente sobre o tema: As Resex
(Rebello; Homma, 2005). são realmente um modelo consistente de estratégia de
A presença da pecuária extensiva em Resex sinaliza desenvolvimento sustentável?
a necessidade de investigação adicional e formulação
de políticas para o dinamismo e a heterogeneidade do
uso da terra. Nessa perspectiva, a pecuária de pequena
escala é uma estratégia de geração de renda e uma alter-
Conclusões
nativa de renda para suprir necessidades e desejos dos
moradores (Salisbury; Schmink, 2007). As Resex nascem com base na concepção do extra-
No cotidiano das Resex, muitas famílias comerciali- tivismo (fundamento para conservação), onde a relação
zam bovinos e bubalinos por ser um retorno menos ar- primária do homem com a natureza manteria os recursos
riscado (Vadjunec; Rocheleau, 2009). Já os incêndios ambientas e um estilo de vida digno às populações des-
em áreas de Resex foram quatro vezes mais frequentes sas florestas. Completando quase três décadas de cria-
na alta do que em áreas de baixo impacto, isto é, quanto ção das primeiras Resex na Amazônia, a literatura sobre
mais próximo de estradas, maior é a tendência de quei- o tema tem mostrado sua ineficiência enquanto modelo
madas nas áreas florestais de Resex (Adeney; Christen- de desenvolvimento que garante políticas ambientais,
sen; Pimm, 2009). culturais, econômicas e sociais capazes de contribuir
para subsistência humana e estabilidade ecossistêmica.
Os extrativistas substituem produção de recursos
não madeireiros pela pecuária. As famílias que moram Parte dessa produção científica tem mostrado tam-
nas Resex estão encontrando imensas dificuldades de bém que a política de Estado está mais voltada para a
se manter, e isso tem levado a diversificar suas produ- demarcação de territórios para proteger a floresta e seus
ções no caminho de atividades predatórias (Maciel et al., recursos, do que a qualidade de vida de milhares de famí-
2010). lias. A subsistência de populações tradicionais e estabi-
lidade ecossistêmica condicionam a existência de Resex.
A título de exemplo, na Reserva Extrativista Chico
Portanto, as necessidades de subsistência têm motivado
Mendes foram desmatados 6,3% dos 970.570 hectares
populações tradicionais à mudança de cultura produtiva
para acomodar 10 mil cabeças de gado, uma expansão
para processos que causam maiores impactos.
de 11 vezes a área desflorestada para pastagem desde
que a reserva foi criada em 1990 (Peres, 2011). O desma- A pecuária e agricultura determinam o desflores-
tamento no nível doméstico indica que não são os novos tamento e as queimadas em Resex. Desse modo, “a
moradores da reserva que desmatam, e sim os residen- confiança econômica na pecuária e na agricultura ten-
tes de longa duração, que são mais propensos a investir de conduzir o extrativismo ao colapso, em função dos
na pecuária e agricultura (Vadjunec, 2011). baixos preços de mercado dos produtos extrativos e da
incapacidade de oferta”. Mais ainda, a expansão dessas
A pecuária é uma atividade com um produto mais fácil
atividades produtivas acontece porque os moradores
de vender e traz garantias de segurança para o produtor,
não são prioridade nas Resex.
e isso não acontece com o extrativismo, que tem preços
muito baixos no mercado (Gomes; Vadjunec; Perz, 2012). Aqui concluímos que conservação e desenvolvi-
Moradores elevam o desmatamento por meio de ativida- mento não estabeleceram aliança porque o modelo de
des de pecuária e agricultura. Para evitar desmatamen- gerenciamento do Estado tem se mostrado ineficiente
tos e queimadas na Amazônia, é possível o uso de áreas e as populações locais vêm explorando a floresta para
já degradadas (76 milhões de hectares) com atividades atendimento de necessidades básicas. “A ideia da ines-
produtivas adequadas (Homma, 2012). gotabilidade de recursos naturais tanto contribuiu para
redução e declínio dos produtos quanto para mudança
Uma das externalidades negativas do desfloresta-
produtiva em razão dos preços de mercado.”
mento é a atividade de fogo, portanto, a criação de Resex
na Amazônia não induziu eficientemente mudança para Dar atenção para as áreas com florestas que repre-
melhorar a degradação da floresta, e não há evidências sentam 82% da Amazônia ou para os 18% já desmata-
consistentes de que haja medidas adequadas para re- dos constitui o atual dilema político. O desenvolvimento
duzir ou gerar mudanças comportamentais de pequenos rural na Amazônia, a redução dos impactos ambientais
produtores (Carmenta et al., 2016). Maior disponibilidade e o cumprimento dos preceitos legais vão depender da
de recursos do Pronaf a partir de 2003 pode ter induzido criação de alternativas tecnológicas e ambientais.
os moradores com mais tempo de residência em Resex A ênfase na biodiversidade como sendo a grande op-

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Reservas extrativistas na Amazônia: modelo de conservação ambiental e desenvolvimento social?

ção futura para a Amazônia carrega equívocos na busca


futurística de produtos, esquecendo a biodiversidade do
passado e do presente, no qual estão as grandes oportu-
nidades. Há necessidade de ampliar o desenvolvimento
de tecnologias para o setor rural, se o objetivo concreto
for aproveitar os recursos da flora, fauna e desenvolvi-
mento de agricultura com plantas amazônicas.

Referências

ABRAMOVAY, R. (2010) Desenvolvimento Sustentável: qual a estratégia para o Brasil? Novos Estu-
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Data de submissão: 27/10/2016


Data de aceite: 22/06/2017
Data de publicação: setembro/2017

160
Análise espacial exploratória com o emprego do Índice de Moran

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai./ago.

ARTIGOS

ANÁLISE ESPACIAL EXPLORATÓRIA


COM O EMPREGO DO ÍNDICE DE MORAN

Antonio José Rocha Luzardo*


Universidade Federal Fluminense**

Rafael March Castañeda Filho***


Universidade Federal do Rio de Janeiro****

Igor Brum Rubim*****


Universidade Federal do Rio de Janeiro******

Resumo: Este trabalho aborda a análise exploratória de dados geoespaciais associados a feições de área, com o emprego de uma técnica de análise
espacial baseada no Índice de Moran, nas modalidades global e local, objetivando compreender os padrões de associação espacial (clusters)
existentes na distribuição dos dados da região de estudo, bem como identificar valores extremos desse conjunto de dados (outliers).
No desenvolvimento das atividades utilizou-se o aplicativo TerraView, um software desenvolvido e disponibilizado, gratuitamente, pelo Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que possui ferramentas para o cálculo do Índice de Moran Global (I) e do Índice de Moran Local (Ii), e que
permite a ponderação da matriz de dados pelo inverso da distância entre os polígonos das áreas e pela distância inversa ao quadrado.
A variável escolhida para este estudo foi o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), que representa uma evolução do Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), proposto pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que, embora também considere
saúde, educação e renda, na sua composição, trabalha com municípios, os quais são unidades político-administrativas menores.
Palavras-chave: IDH. Índice de Moran Global. Índice de Moran Local.

EXPLORATORY SPATIAL ANALYSIS USING MORAN INDEX


Abstract: This paper addresses the exploratory analysis of geospatial data associated with features of the area under study, with the use of a
technique of spatial analysis based on Moran’s Index, in both the global and local modes, in order to understand existing patterns of spatial
association (clusters) in the distribution of data of the study area, and identify extreme values of this data set (outliers).
In the development of activities, we used the TerraView application, a software developed and provided free of charge by the National Institute for
Space Research (INPE), which includes tools for calculating the Global Moran Index (I) and the Local Moran Index (Ii), and which allows the weighting
of the data matrix by the inverse of the distance between the polygons of the areas and the inverse distance squared.
The variable chosen for this study was the Human Development Index for Counties (HDI-C), an upgraded version of the Human Development Index
(HDI), utilized by the United Nations Development Program (UNDP). This novel version, which also measures average achievements in the same
three dimensions of human development – health, education and income – works for counties, which are smaller political-administrative units.
Keywords: HDI. Global Moran Index. Local Moran Index.

ANÁLISIS ESPACIAL EXPLORATORIA UTILIZANDO EL ÍNDICE MORAN


Resumen:Este trabajo realiza un análisis exploratorio de atributos geoespaciales asociados a objetos de geometría areal, con el empleo de una
técnica de análisis espacial basada en el Índice de Moran, en las modalidades global y local, con el objetivo de comprender los patrones de
asociación espacial (clusters) existentes en la distribución de los datos de la región de estudio, así como identificar los valores extremos de ese
conjunto de datos (outliers).
En el desarrollo de las actividades se utilizó la aplicación TerraView, un software desarrollado y disponible gratuitamente por el Instituto Nacional
de Investigaciones Espaciais (INPE), que posee herramientas para el cálculo del Índice de Moran Global (I) y del Índice de Moran (Ii), y que permite
la ponderación de la matriz de datos por el inverso de la distancia entre los polígonos de las áreas y por la distancia inversa al cuadrado.
La variable elegida para este estudio fue el Índice de Desarrollo Humano Municipal (IDH-M), que representa una evolución del Índice de Desarrollo
Humano (IDH), propuesto por el Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PNUD), que toma en consideración indicadores de salud,
educación y renta en su composición, además de trabajar con municipios, los cuales son unidades político-administrativas más pequeñas.
Palabras clave: IDH. Índice de Moran Global. Índice de Moran Local.

________________________________
*Doutorando em Geografia (UFF), professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ).
E-mail: antonioluzardo@gmail.com
**Instituto de Geociências – Campus Praia Vermelha – Universidade Federal Fluminense – Rua General Milton Gonçalves, s/n – Boa Viagem – Niterói, RJ – CEP 24210-346.
Tel.: 21-2629-5953
***Doutorando em Geografia (UFRJ), pesquisador em Informações Geográficas e Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E-mail: rafaelmarch43@
gmail.com
****GeoCart – Laboratório de Cartografia – Departamento de Geografia – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Avenida Athos da Silveira Ramos 274 – Cidade Universitária
– Rio de Janeiro, RJ. CCMN – Sala H1 – 017 – CEP 21941-916. Tel.: 21-2590-1880.
*****Mestrando em Geografia (UFRJ), analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). E-mail: igorbr1@
gmail.com
******Laboratório Espaço de Sensoriamento Remoto e Estudos Ambientais – Departamento de Geografia – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Avenida Athos da Silveira
Ramos 274 – Cidade Universitária – Rio de Janeiro, RJ - CCMN – Bloco I – Sala 012 – CEP 21949-900. Telefone: 21-2598-9535.

161
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

• Os valores observados são suficientes para analisar


Introdução
o fenômeno espacial a estudar?
• Existem agrupamentos de áreas com padrões
Este trabalho aborda a análise exploratória de dados
diferenciados na região de estudo?
geoespaciais associados a feições de área, com o
Tais questões são objeto das técnicas de análise
emprego de uma técnica de análise espacial baseada
espacial de dados agregados por área. O modelo de
no Índice de Moran, o qual foi proposto como uma
distribuição mais utilizado para dados de área é o
versão da medida estatística não espacial de correlação,
de variação espacial discreta, no qual se considera a
adaptada para o contexto espacial. Há duas expressões
existência de um processo estocástico [Zi, i = 1, 2, ....n],
estatísticas distintas para este índice: a mais antiga, de
onde [Zi] é a realização do processo espacial na área [i],
1950, refere-se ao índice global; a mais recente, de 1995,
ou seja, o valor assumido pela variável em estudo na área
proposta por Luc Anselin, refere-se ao índice local.
[Ai], e [n] é o número total de áreas [Ai].
O Índice de Moran Global (I) avalia a relação de
As referidas técnicas são essenciais para o
interdependência espacial entre todos os polígonos da
desenvolvimento das etapas de modelagem estatística
área de estudo e a expressa por meio de um valor único
espacial. Na análise espacial devem-se investigar os
para toda a região (Moran, 1950, citado por O’Sullivan;
outliers, não só no conjunto dos dados, mas também em
Unwin, 2010). O Índice de Moran Local (Ii) identifica a
relação aos vizinhos; bem como a não estacionariedade
relação existente entre um determinado polígono e a
(variabilidade dos dados) do processo espacial na região
sua vizinhança, a partir de uma distância predefinida,
de estudo, nos seus vários aspectos: variação na média,
por intermédio da covariância existente entre eles,
variância e covariância espacial.
permitindo o exame da homogeneidade/diversidade dos
As técnicas de análise exploratória visam a identificar
dados (Anselin, 1995, citado por O’Sullivan; Unwin, 2010).
a estrutura de correlação espacial, ou seja, a medida
estatística, associada à covariância espacial, que melhor
descreva os dados, a fim de estimar a magnitude da
Fundamentação teórica
autocorrelação espacial entre as áreas. Para tanto, as
ferramentas disponíveis são o Índice de Moran, o Índice
Análise espacial exploratória de dados de
de Geary e o Variograma (Câmara et al., 2002).
área

Em várias situações práticas, a localização geográfica


pontual de eventos ou fenômenos de interesse não está
Matriz de proximidade espacial
disponível. Muitas vezes, para onde uma variável tenha
Em Estatística, a correlação é uma medida que indica
sido observada ou medida, em vez de por pontos, os
quanto uma determinada variável varia em função de
dados são disponibilizados de maneira agregada por
outra, podendo ser de três tipos: direta (ou positiva),
unidade de área, tais como municípios, bairros, setores
quando as duas variáveis aumentam ou diminuem ao
censitários.
mesmo tempo; inversa (ou negativa), quando elas variam
Geralmente, o valor atribuído a essa variável refere-
em sentido contrário; ou nula. Porém, não se trata aqui de
se a uma contagem (enumeração), a uma taxa, ou a um
analisar apenas como duas variáveis se correlacionam
índice. De acordo com Xavier da Silva (2001), os índices
numericamente, mas sim de investigar o quanto o valor
são exemplos típicos de dados que utilizam a escala de
observado de uma única variável de área, numa região
intervalo; enquanto as taxas e contagens são exemplos
do espaço geográfico, é dependente dos valores dessa
de dados que empregam a escala de razão ou racional.
mesma variável nas localizações vizinhas.
Uma forma usual de visualização de dados agregados
A questão de fundo, como bem enfatizam O’Sullivan e
por áreas é o uso de mapas coloridos segundo o padrão
Unwin (2010), é: Como incorporar a noção de proximidade
espacial do fenômeno; são os chamados mapas temáticos,
espacial numa medida de autocorrelação? Para tanto, é
nos quais as cores indicam diferentes classes ou faixas
necessário capturar a relação espacial entre todos os
de valores da variável mapeada. A maioria dos usuários
pares de localizações (áreas), e isso se faz mediante
limita-se a essas operações de visualização, tirando
uma matriz, que os autores citados denominam matriz
conclusões preliminares, de modo intuitivo. Contudo, é
de estrutura espacial ou matriz de pesos espacial,
possível ir muito além dessa análise superficial. Quando
denotada por [W] – referente a weight, que significa
se visualiza um padrão espacial, é muito útil traduzi-lo
peso, em inglês –, em que cada valor [wij] depende da
em questões objetivas, como as apresentadas a seguir:
relação espacial entre as localizações [i] e [j] e de como
• O padrão observado é aleatório ou apresenta uma
se escolhe representar esse relacionamento.
agregação definida?
Para atribuir valores a cada elemento da matriz,
• Essa distribuição pode ser associada a causas
podem-se usar diferentes critérios, dentre os quais os
mensuráveis?
162
Análise espacial exploratória com o emprego do Índice de Moran

mais comuns são: matriz [W] não asseguram simetria. Para resolver esse
• Critério da distância: [wij = 1], se o centroide de [Ai] tipo de situação é válido forçar a simetria, impondo:
está dentro de uma determinada distância (estabelecida
pelo analista) do centroide de [Aj]; caso contrário, [wij = 0];
• Critério da contiguidade ou adjacência: [wij = 1], se Wfinal = (W + WT) / 2
[Ai] compartilha um lado comum com [Aj]; caso contrário,
[wij = 0];
• [WT] representa a matriz transposta de [W].
• Critério da vizinhança: [wij = 1], se [Aj] é um dos [p]
No estudo de processos sociais utilizam-se,
vizinhos mais próximos de [Ai] (o valor [p] é estabelecido
frequentemente, setores censitários ou outras unidades
pelo analista); caso contrário, [wij = 0]. administrativas para representar a agregação dos dados.
A matriz [W] considera a proximidade ou a vizinhança Nesses casos, é recomendável trabalhar com critérios
de primeira ordem, mas pode-se trabalhar com o simples para o estabelecimento da matriz [W], tais como
conceito de matriz [W] de segunda ordem, representada o de adjacência, pelo menos na fase exploratória da
por [W(2)]. No critério de contiguidade, os polígonos análise.
vizinhos de segunda ordem são aqueles adicionados Segundo Câmara et al. (2002), para estimar a
aos de primeira ordem quando se eliminam as fronteiras variabilidade espacial de dados de área, uma ferramenta
entre os polígonos vizinhos de primeira ordem. Esse básica é a matriz de proximidade espacial, também
conceito pode ser estendido à k-ésima ordem, com a referenciada como matriz de vizinhança [W]. Dado um
matriz resultante sendo representada por [W(k)]. Vale conjunto de [n] áreas, [A1,...,An], constrói-se a matriz [W(1)],
ressaltar que, no caso da matriz de primeira ordem, a
n x n, onde cada um dos elementos [wij ] representa uma
notação [W(1)] é simplificada para [W].
medida de proximidade entre [Ai] e [Aj], que pode ser
Como se pode observar, a adjacência permanece
calculada por um dos seguintes critérios:
uma grandeza binária, já que [wij = 0] indica polígonos
• [wij = 1], se o centroide de [Ai] está a uma determinada
não conectados e [wij = 1], polígonos conectados.
distância de [Aj]; caso contrário, [wij = 0];
No entanto, conforme ressaltam O’Sullivan e Unwin,
• [wij = 1], se [Ai] compartilha um lado comum com [Aj];
anteriormente citados, algumas relações de proximidade
podem ser consideradas mais fortes que outras, mesmo caso contrário, [wij = 0];
que, inicialmente, tenham o mesmo valor 1. Nesse caso, • [wij = lij/li], onde [lij] é o comprimento da fronteira
os valores [wij] poderão variar de 0 (interação fraca) a entre [Ai] e [Aj,] e [li] é o perímetro de [Ai].
1 (interação forte). Isso se consegue pela ponderação Nota-se que os dois primeiros critérios de proximidade
da interação entre dois polígonos (aplicação de pesos), são idênticos para os autores estudados (anteriormente
mediante a seguinte fórmula geral: citados) e produzem resultados binários; a diferença
reside no terceiro critério. No primeiro caso, os [p]
vizinhos mais próximos não são incluídos, mas há um
caminho alternativo que produz resultados não binários,
coincidentes com o segundo caso, exceto o fator inverso
da distância [dij] entre os centroides dos polígonos [i] e [j]
Onde: elevado a uma potência inteira [m].
• [dij] é a distância entre os centroides dos polígonos
[i] e [j];
• [m] é um inteiro (fator de potência); Índice de Moran Global (I)
• [lij] é o comprimento da fronteira comum entre os
polígonos [i] e [j]; Uma vez determinada a estrutura espacial de análise,
• [li] é o perímetro do polígono [i]. expressa pela matriz [W], qualquer medida particular de
autocorrelação pode ser concebida mediante a definição
Com essa abordagem, torna-se necessário aplicar de um modo de se mensurar a diferença entre valores
um fator de escala nos pesos, de modo a assegurar do atributo associado às localizações (áreas). A medida
que todos pertençam ao intervalo entre zero e um, por mais usada para este fim é o Índice de Moran Global (I),
intermédio de uma normalização, onde o somatório dos que é a versão espacial do coeficiente de correlação
valores de cada linha da matriz é igual a um, ou seja, linear de Pearson (Costa Neto, 2002) e que representa
100%. Os elementos da diagonal principal da matriz [W] o coeficiente de correlação para o relacionamento entre
são igualados a zero. A simetria da matriz de pesos é, os valores de uma variável espacial (atributo) e o valor
geralmente, requerida de tal forma que [wij = wij] em todos médio desta variável.
os casos. Porém, alguns métodos de construção da O Índice de Moran Global (I) é aplicado, usualmente,

163
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

em unidades de área às quais estejam associados Se houver correlação positiva dos dados, então a maioria
atributos do tipo racional ou de intervalo (Longley et dos polígonos vizinhos terá valores do mesmo lado da
al., 2005) e expressa a autocorrelação, considerando média e o índice será positivo, ou seja, [I > 0)], indicando
apenas o primeiro vizinho, ou seja, emprega a matriz de correlação espacial direta. Se os dados se correlacionam
vizinhança de primeira ordem, independentemente do negativamente, então a maioria dos polígonos vizinhos
critério de composição da matriz [W] escolhido. Usa-se terá valores de atributos em lados opostos da média e
esta expressão (Câmara et al., 2002): o índice será negativo, ou seja, [I < 0], caso este seja de
correlação espacial inversa. [I = 0] indica ausência de
correlação espacial.
I=
Análise diagnóstica da estatística global de Moran
Onde:
• [n] é o número de áreas; Na teoria estatística de regressão a equação do Índice
• [Zi] é o valor do atributo considerado na área [i]; de Moran Global (I) pode ser reescrita na seguinte forma
• [μz] é o valor médio do atributo na região de estudo; matricial:
• [wij] é o elemento [ij] da matriz de vizinhança
normalizada. I=
Observa-se na equação do Índice de Moran Global (I)
a seguinte função operacional dos seus componentes:
o numerador da fração é um termo de covariância; os Onde: [Z] é o vetor coluna de componentes [Zi - μz],
subscritos[i] e [j] referem-se a diferentes unidades de com [i = 1...n].
área ou polígonos na região em estudo; [Zi] é o valor A expressão matricial do Índice de Moran Global (I) abre
assumido pelo atributo na área [i]. caminho para o emprego de estatísticas convencionais
O cálculo do produto das diferenças entre o valor de [Z], de diagnóstico de regressão linear, com vistas a associar
em duas áreas, e a média global [μz] determina o quanto os p-valores (níveis de significância) aos resultados do
essas diferenças covariam. Se ambos os valores [Zi] e índice [I]. Porém, pelo fato de a estrutura espacial do
[Zj] estão do mesmo lado da média (acima ou abaixo), o mapa também ser um parâmetro na análise (a matriz
produto é positivo; se um dos valores é superior à média e [W]), uma abordagem mais usual de cálculo de p-valores
o outro é inferior, o produto é negativo; e o valor absoluto associados ao [I] baseia-se no método de Monte Carlo
total depende de quão próximos da média global [μz] (O’Sullivan; Unwin, 2010).
estão os valores de [Z]. Considerando que o analista não sabe, a priori, como
Os termos de covariância são multiplicados por a variável se comporta, ele, por meio da matriz [W], faz
[wij], o que faz com que as parcelas de covariância uma hipótese implícita sobre a estrutura espacial do
sejam ponderadas de acordo com a intensidade de mapa. Daí a necessidade de ele simular uma distribuição
sua interação espacial. Considerando o critério da empírica para a realização do teste de significância do
contiguidade (em modo binário), para cada valor fixado valor observado de [I].
O Índice de Moran Global (I) pode ser submetido a
de [i], os elementos [wij] e [j = 1...n,] serão iguais a um para
um teste estatístico cuja hipótese nula representa a de
os vizinhos adjacentes à área [i] e iguais a zero para os
independência espacial, condição esta dada por [I = 0].
vizinhos não adjacentes. Desse modo, o fator [wij] faz com
Portanto, a hipótese nula somente poderá ser rejeitada
que o termo de covariância seja incluído no cálculo de [I]
caso [I] resulte estatisticamente diferente de zero, para
somente para os pares de localizações (áreas) vizinhas,
um nível de significância preestabelecido. Normalmente,
segundo o critério de proximidade espacial considerado
trabalha-se com [p-valor = 0,05] ou [p-valor < 0,05], ou
no cálculo da matriz [W].
seja, com uma margem de confiança igual ou superior a
O denominador da equação de [I] representa divisão
95%.
pela variância (a menos do fator [1/n], que não aparece
Para estimar a significância do índice [I], sem
explicitado, devido à normalização prévia da matriz [W]).
pressupostos em relação à distribuição, pode-se realizar
Assim, assegura-se que o valor resultante de [I] não seja
um teste de pseudossignificância, que consiste na geração
alto simplesmente porque os valores e a variabilidade
de um determinado número de permutações, distintas
em [Z] são altos. Em essência, a divisão pela variância é
entre si, dos valores de atributos associados às áreas.
uma forma de normalização da covariância em relação à
O TerraView disponibiliza duas opções para o cálculo
variação dos valores do atributo[Z].
do Índice de Moran Global (I): 99 e 999 permutações; a
O resultado da equação de [I] é análogo ao que se
segunda é, geralmente, a mais utilizada.
obtém para um coeficiente de correlação não espacial.
Cada permutação produz um novo arranjo espacial,
164
Análise espacial exploratória com o emprego do Índice de Moran

onde os valores são redistribuídos entre as áreas e um


valor de [I] é calculado. Como apenas um dos arranjos
corresponde à situação observada, pode-se construir
uma distribuição empírica de [I]. Se o valor observado de
[I] para a região de interesse corresponder a um extremo
da distribuição simulada, então se trata de um valor com
significância estatística, pois isso indica que o resultado
obtido é atípico em relação à distribuição simulada.

Diagrama de espalhamento do Índice de Moran Global

O objetivo do diagrama de Moran Global – também


referenciado como Moran Scatterplot – é proporcionar
os elementos necessários para a comparação dos
valores normalizados do atributo, em cada área, com
a média dos seus vizinhos, construindo um gráfico
bidimensional de [z] (valores normalizados) por [Wz]
(média dos vizinhos), dividido em quatro quadrantes,
onde cada ponto representa uma área (polígono).
A Figura 1 ilustra o Moran Scatterplot, o qual exibe o
relacionamento entre o valor normalizado do atributo em
cada área [i] (eixo horizontal) e o valor médio normalizado
do atributo nas localizações vizinhas da área [i]. É
importante ressaltar que esse diagrama é construído
com base nos valores normalizados da variável, ou seja,
os valores originais subtraídos do valor médio global,
divididos pelo desvio-padrão.

Figura 1 – Moran Scatterplot

Adaptado de Câmara et al. (2002), p. 20

165
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Onde: mais pronunciada.


• O quadrante superior direito (Q1) contém os casos Assim, muitas vezes, é desejável examinar padrões
onde o valor do atributo de cada polígono e o valor médio mais detalhadamente. Para fazê-lo é preciso utilizar
do atributo nos polígonos vizinhos são maiores que a indicadores de associação espacial que possam ser
média global (ambos representados por alto): alto-alto relacionados às diferentes localizações de uma variável
(AA); distribuída espacialmente. Os indicadores locais
• O quadrante inferior esquerdo (Q2) contém os casos produzem um valor específico para cada área, permitindo,
onde o valor do atributo de cada polígono e o valor médio desse modo, a identificação de agrupamentos.
do atributo nos polígonos vizinhos são menores que a O Índice de Moran Local (Ii) foi concebido como uma
média global (ambos representados por baixo): baixo- ferramenta estatística para testar a autocorrelação local
baixo (BB); e para detectar objetos espaciais com influência no
• O quadrante inferior direito (Q3) contém os casos Índice de Moran Global (I); ele pode ser expresso para
onde o valor do atributo de cada polígono está acima da cada área [i] a partir dos valores normalizados [zi] do
média global (representado por alto), enquanto o valor atributo mediante a seguinte equação:
médio do atributo em polígonos vizinhos está abaixo
daquela média (representado por baixo): alto-baixo (AB);
• O quadrante superior esquerdo (Q4) contém os casos Ii =
onde o valor do atributo de cada polígono está abaixo da
média global (representado por baixo), enquanto o valor
médio do atributo em polígonos vizinhos está acima
daquela média (representado por alto): baixo-alto (BA). Onde: [zi] = [(Zi - μz) / δz] é a variável normalizada.
A maior concentração de pontos nos quadrantes Q1 e
Q2 é uma indicação de autocorrelação espacial positiva [I Da equação de [Ii] percebe-se que resultados
> 0]. Se os quadrantes Q3 e Q4 tivessem maior quantidade positivos são obtidos onde ocorrem concentrações de
de pontos, a indicação seria de autocorrelação espacial valores baixos ou de valores altos do atributo, enquanto
negativa [I < 0]. Caso os pontos estivessem igualmente resultados negativos decorrem da proximidade entre
distribuídos pelos quatro quadrantes, haveria uma valores baixos e altos na mesma área. Assim, o Índice de
indicação de ausência de autocorrelação [I ≈ 0]. Moran Local (Ii) dá uma indicação da homogeneidade e
Com base na teoria estatística de regressão linear, da diversidade dos dados.
é correto afirmar que o índice [I] equivale ao coeficiente
de regressão linear da reta de regressão [α] de [Wz] em
[z]; e que o Índice de Moran Global (I) é o coeficiente de Diagrama de espalhamento do Índice de Moran Local
correlação para o relacionamento entre os valores de
atributos e os valores médios de atributo dos vizinhos. Ao se trabalhar com o Índice de Moran Local (Ii) o
O diagrama de espalhamento de Moran também diagrama de espalhamento torna-se uma ferramenta
pode ser apresentado na forma de um mapa temático analítica por si mesma, pois cada ponto representativo
bidimensional, no qual cada polígono está associado ao de uma área (polígono) assume uma significação
seu respectivo quadrante no diagrama de espalhamento. própria, ao contrário do que se verifica no diagrama
Esse mapa temático contendo quatro classes (AA, BB, AB de espalhamento de Moran Global, onde os pontos,
e BA) pode ser chamado Mapa de Espalhamento do Índice individualmente, apenas contribuem como parcelas no
de Moran Global (I). É recomendado que os quadrantes cômputo do Índice de Moran Global (I).
Q1/Q2 e Q3/Q4 sejam representados em pares de cores A Figura 2 ilustra o diagrama de espalhamento do
diferentes, usando-se o efeito dégradé em cada par. Índice de Moran Local (Ii), onde os quadrantes são
definidos pelo valor médio global do atributo normalizado:
no eixo horizontal, a reta [zi = 0]; no eixo vertical, a reta
Índice de Moran Local (Ii) [∑wij zj = 0], indicativa do valor médio global do atributo
normalizado nos polígonos vizinhos de cada polígono
Os indicadores globais de autocorrelação espacial [i]. Os quatro quadrantes correspondem, cada um, às
fornecem um valor único como medida de associação diferentes combinações possíveis do valor do atributo na
espacial para todo o conjunto de dados, o que é útil na área [i] com o valor médio do atributo em seus vizinhos.
caracterização da região de estudo como um todo. Porém, Onde:
quando se lida com um grande número de áreas em uma • AA (alto-alto) e BB (baixo-baixo): representam áreas que
região, é muito provável que ocorram diferentes regimes contribuem para autocorrelação positiva; correspondem
de associação espacial e que apareçam máximos locais aos quadrantes Q1 e Q2 e indicam clusters (aglomerações)
de autocorrelação onde a dependência espacial é ainda de valores altos e baixos, respectivamente;
166
Análise espacial exploratória com o emprego do Índice de Moran

• AB (alto-baixo) e BA (baixo-alto): representam


áreas que contribuem para autocorrelação negativa;
correspondem aos quadrantes Q3 e Q4 e indicam áreas
de transição, com os valores altos cercados por valores
baixos do atributo, e vice-versa.

Figura 2 – Diagrama de espalhamento de Moran Local

Adaptado de Câmara et al. (2002), p. 20

Significância estatística do Índice de Moran Local Esse método é denominado permutação condicional.
Valores observados de [Ii] que sejam muito baixos ou
O Índice de Moran Local (Ii) explora o conceito de muito altos, relativamente a cada distribuição simulada
bolsões locais de correlação significativa ao permitir a resultante de cada rodada de permutações, são
identificação de agrupamentos de objetos (áreas) com considerados de interesse. Um p-valor, ou seja, um valor
valores de atributos semelhantes ou objetos anômalos de pseudossignificância, pode ser determinado a partir da
(Oliveira et al., 2013). Mas como fazer para determinar posição do valor da estatística local [Ii], relativamente ao
a significância estatística do resultado obtido para cada conjunto de valores obtidos para todas as permutações
valor de [Ii]? Segundo os autores anteriormente citados, realizadas, fixando-se [Ii]. Por exemplo, se a estatística [Ii]
o procedimento é similar ao adotado para o Índice de é a mais alta dentre todos os valores resultantes de 999
Moran Global (I), utilizando o método de simulação de permutações, então estima-se que seja uma ocorrência
Monte Carlo. em mil: [p-valor ≈ 0,001].
Para cada área, uma vez calculado e fixado o Uma vez determinada a significância estatística de [Ii],
respectivo Índice de Moran Local (Ii), permuta-se, é recomendável gerar um mapa temático, indicando as
aleatoriamente, o valor de atributo das demais áreas regiões com correlação local significativamente diferente
(tantas permutações quantas forem estipuladas pelo do resto dos dados. Essas áreas podem ser expressas
analista), e, para cada permutação, calcula-se o valor como bolsões de estacionariedade, com dinâmica
correspondente da estatística local até que se obtenha espacial própria e, por essa razão, merecem estudo mais
uma pseudodistribuição, para a qual seja possível calcular detalhado.
os parâmetros de significância de [Ii] (pelo fato de se
manter fixo o valor de [Ii] em cada rodada de permutações).

167
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Análise da estrutura espacial no TerraView – Função [Q2:BB]; 3 [Q3:AB]; 4 [Q4:BA].


LISA Considerando os agrupamentos, cada polígono é
classificado conforme sua posição em relação aos
O TerraView calcula o índice [Ii] através de sua função quadrantes, recebendo uma cor correspondente no mapa
LISA – sigla que significa Local indicators of spatial temático a ser gerado. Segundo Oliveira et al. (2013), o
association, em inglês –, cujo resultado é uma tabela MoranMap permite mapear áreas de agrupamentos (AA
com sete colunas, a partir da qual é possível gerar mapas e BB) e de transição (AB e BA), atípicos ou não:
temáticos para análise exploratória baseada no Índice • [AA]: demonstra o atributo acima da média para
de Moran Local (Ii). A seguir está o significado de cada a unidade e seus vizinhos, indicando a existência de
coluna: clusters de valores altos da variável analisada;
• [Z]: vetor dos desvios dos valores de atributo • [BB]: representa os atributos abaixo da média para
normalizados; os desvios são em relação à média global; a unidade e seus vizinhos, indicando a existência de
cada elemento de [Z] corresponde ao valor do atributo clusters de valores baixos da variável analisada;
normalizado numa área [i]; • [AB]: destaca o atributo acima da média para
• [Wz]: vetor da média ponderada local, ou seja, dos a unidade e abaixo da média para os seus vizinhos,
vizinhos da área [i]; cada elemento de [Wz] corresponde indicando a existência de áreas de transição;
à média ponderada, segundo a matriz de pesos espacial, • [BA]: indica o atributo abaixo da média para a unidade
dos valores de atributo normalizados dos polígonos e acima da média para os seus vizinhos, indicando a
vizinhos da área [i]; existência de áreas de transição.
• [MoranIndex]: Índice de Moran Local (Ii); é o resultado
obtido para o índice [Ii], um para cada polígono;
• [LISASig]: valor da estatística p (p-valor); corresponde Planejamento da investigação
ao nível de significância do índice [Ii], sendo um para
cada polígono; quando [LISASig > 0,05], a indicação é de Área de estudo
ausência de correlação espacial localizada;
• [BoxMap]: este campo assume um dos seguintes A área de estudo selecionada para o presente trabalho
valores numéricos, de um a quatro: 1 [Q1:AA], 2 [Q2:BB], é o estado do Rio de Janeiro, unidade da Federação com
3 [Q3:AB], 4 [Q4:BA], que representam a relação entre 92 municípios e 16.001.103 habitantes, dos quais 80%,
os valores de [Z] e [Wz] (vizinhos) em um diagrama de ou seja, cerca de 13 milhões, vivem na capital, de mesmo
dispersão dividido em quadrantes [Q]. O BoxMap permite nome, e na sua região de influência. Essa população
a geração de mapas temáticos de valores únicos. Vale conduz o estado à terceira posição no País, em termos
ressaltar que os conceitos de alto e de baixo podem de volume populacional, ficando apenas atrás dos
estar associados às melhores ou às piores condições, estados de São Paulo e Minas Gerais, primeiro e segundo
dependendo da natureza da variável analisada. colocados, respectivamente (IBGE, 2010a).
• [LISAMap]: este campo assume um dos seguintes
valores numéricos, de zero a três, que são gerados Ferramenta empregada
após a marcação da caixa [Avaliar significância] e da
escolha da quantidade de permutações (99 ou 999) A principal ferramenta utilizada na realização deste
para a realização dos testes de pseudossignificância, no trabalho é o aplicativo TerraView, um software que
TerraView. Os significados de cada valor do LISAMap são utiliza a biblioteca TerraLib e emprega o C++ como
os seguintes: 0 [não significante]; 1 [p-valor = 0,05] ou linguagem de código-fonte, o qual é desenvolvido e
grau de confiança igual a 95%; 2 [p-valor = 0,01] ou grau disponibilizado, gratuitamente, pelo Instituto Nacional de
de confiança igual a 99%; 3 [p-valor = 0,001] ou grau de Pesquisas Espaciais (INPE). Trata-se de um visualizador
confiança igual a 99,9%; de bases cartográficas para aplicações de Sistemas de
• [MoranMap]: este campo assume um dos seguintes Informações Geográficas (SIG), que possui uma interface
valores numéricos, de zero a quatro, que são gerados após amigável, bem como a capacidade de manipular dados
a marcação da caixa [Avaliar significância], no TerraView. vetoriais (pontos, linhas e polígonos) e dados matriciais
Este campo apresenta somente as sub-regiões cujos (grades e imagens).
valores foram considerados significantes (com intervalo O TerraView é um aplicativo ideal para aplicações
de confiança superior a 95%), diferentemente do BoxMap, acadêmicas, pois disponibiliza vários recursos
que não considera significância e apenas indica o geoestatísticos para análises espaciais, o que facilita
quadrante de cada polígono. O MoranMap funciona o estudo de conceitos mais técnicos, bem como
como uma combinação entre os resultados do BoxMap e disponibiliza ferramentas para o cálculo do Índice
do LisaMap. Os significados de cada valor do MoranMap de Moran Global (I) e do Índice de Moran Local (Ii),
são os seguintes: 0 [não significante]; 1 [Q1:AA]; 2 permitindo que a matriz [W] seja ponderada pelo inverso
168
Análise espacial exploratória com o emprego do Índice de Moran

da distância entre os polígonos [m = 1] e pela distância Etapas metodológicas


inversa ao quadrado [m = 2] (INPE, 2014).
Os valores do IDH-M relativos a cada município
Temática em análise fluminense, referentes aos censos demográficos
realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
A variável escolhida como ponto de partida para a Estatística (IBGE), são obtidos para três momentos
presente investigação é o Índice de Desenvolvimento distintos: 1991, 2000 e 2010. Portanto, a base de dados
Humano (IDH), que foi proposto em 1947, dentro do estabelecida consiste de 92 feições de área (polígonos),
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento descritoras dos municípios do estado do Rio de Janeiro,
(PNUD), com o propósito de medir o desenvolvimento a cada uma das quais estão associados três valores de
humano dos países no pós-Guerra, e considera três IDH-M, relativos às três épocas anteriormente indicadas.
dimensões envolvidas na identificação do bem-estar do Com a inclusão da dimensão temporal na investigação,
ser humano: vida longa e saudável (saúde), acesso ao objetiva-se ampliar o potencial da análise espacial
conhecimento (educação) e padrão de vida digno (renda) exploratória na área de estudo, pois as conclusões
(PNUD, 2014). referentes a uma determinada época poderão ser
O PNUD estabelece três níveis de qualidade para o confrontadas com as de outro momento, proporcionando
desenvolvimento humano: IDH baixo, para valores entre uma base de comparação relevante na análise dos dados.
0 e 0,5; IDH médio, para valores entre 0,5 e 0,8; IDH alto, Outro método empregado para ampliar o potencial da
para valores entre 0,8 e 1,0. A fórmula geral, que permite investigação consiste na aplicação de diferentes critérios
a construção e a combinação dos índices envolvidos, é de composição e ponderação da matriz de vizinhança
a seguinte: [W], como, por exemplo, a função inversa da distância.
Neste trabalho são empregados dois critérios, dentre
Índice = (valor observado – valor mínimo) / (valor máximo – valor mínimo)
os mais utilizados nos ensaios com o Índice de Moran
Global (I): contiguidade (ou adjacência) e distância.
A Fundação João Pinheiro (FJP) associou-se ao Em linhas gerais, as etapas metodológicas previstas
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em nos ensaios realizados com o Índice de Moran são as
1996, para realizar uma adaptação na metodologia seguintes:
do IDH, desagregando-o segundo unidades político- 1) Mapeamento do IDH-M para os municípios, em
administrativas menores. O novo índice criado, Índice de cada ano;
Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), resulta da 2) Geração da matriz de vizinhança [W] para
composição de três dimensões: longevidade, educação e os municípios, em cada ano, segundo o critério da
renda (Santos, 2005). contiguidade (1ª ordem), inicialmente sem ponderação.
A longevidade é medida pela esperança de vida ao Numa segunda fase, aplicam-se pesos baseados na
nascer. A educação é obtida pela combinação ponderada função inverso da distância;
da taxa de analfabetismo da população adulta de 15 3) Cálculo do Índice de Moran Global (I) para o estado
anos ou mais, com peso igual a 2/3, e do número médio do Rio de Janeiro, em cada ano, e o respectivo p-valor
de anos de estudos da população de 25 anos ou mais, (que representa o nível de significância do índice);
com peso igual a 1/3. A renda é representada pela renda 4) Cálculo do Índice de Moran Local (Ii) e dos
familiar per capita média ajustada (RFPC), expressa em indicadores associados para os municípios, em cada
salários mínimos, tendo por base o valor de setembro ano;
de 1991. Os valores calculados situam-se entre zero e 5) Geração do Mapa de Moran, baseado no indicador
um, onde o primeiro significa a pior situação e o segundo MoranMap, para os municípios, em cada ano;
representa a melhor. 6) Análise dos resultados obtidos nas etapas 3 a 5,
Segundo Santos, anteriormente citado, indicadores em cada ano, tendo como referência os mapas do IDH-M
podem ser definidos como medidas que sintetizam e gerados na etapa 1. Comparação dos resultados obtidos,
quantificam um subconjunto limitado de um universo com e sem aplicação de pesos na matriz de vizinhança
de variáveis observadas, regularmente, por um longo [W];
período (como, por exemplo, dados censitários); ou 7) Repetição das etapas 2 a 6, usando o critério da
de um conjunto de informações extraídas de fontes distância para cálculo da matriz de vizinhança [W]
secundárias, desse modo auxiliando na apreensão e aplicando pesos baseados na função inverso da
de fenômenos complexos por públicos diversos. Para distância;
essa investigação, cujos fenômenos de interesse são 8) Análise comparativa dos resultados obtidos,
de natureza socioeconômica, as dimensões escolhidas segundo os dois critérios de cálculo da matriz de
para serem exploradas são as do IDH-M. vizinhança [W], contiguidade e distância, ambos com
aplicação de pesos baseados no inverso da distância.
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GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Coleta e tratamento dos dados Os dados de IDH-M para os três anos (Figuras 3, 4 e 5)
foram obtidos através de ferramentas de consulta no
Fontes de dados próprio site do PNUD, onde também é possível baixar
as informações, em formato CSV, que significa valores
Os dados empregados na realização do presente separados por vírgula (PNUD, 2014).
trabalho foram obtidos na internet. Os sites do IBGE e
do PNUD possuem dados digitalizados nos formatos Procedimentos preparatórios
necessários para as análises espaciais realizadas neste
trabalho. No IBGE a base cartográfica municipal do Uniram-se os dados do arquivo vetorial contendo
estado do Rio de Janeiro está disponível, bem como no a malha municipal do estado do Rio de Janeiro e os
site do PNUD há dados sobre o IDH-M. dados do PNUD com o emprego do aplicativo ArcGIS,
Os limites municipais obtidos no site do IBGE estão gerando, então, a base de dados completa para as
em formato shapefile, no sistema geodésico SIRGAS análises espaciais. A Tabela 1 apresenta a distribuição
2000, em coordenadas geográficas. Esses dados dos municípios do estado do Rio de Janeiro por classe
geográficos digitais podem ser utilizados do modo de IDH-M:
como estão disponibilizados, sem necessidade de
qualquer tratamento cartográfico prévio (IBGE, 2010b).

Tabela 1 – Distribuição dos municípios do estado do Rio de Janeiro por classe de IDH-M.

IDH-M: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal.

Ensaio e resultados • [3º modelo]: critério da distância (d = 67km), com


pesos proporcionais ao inverso da distância entre áreas
Com o arquivo da base de dados preparado, utilizou-se vizinhas.
o programa TerraView para realizar os ensaios planejados. O [3º modelo] requer uma distância-base para
A construção da matriz de vizinhança [W], utilizando a avaliação de vizinhança entre áreas, a qual foi obtida
ferramenta [Criar matriz de proximidade / menu Análise], a partir de uma avaliação visual do grau de interação
foi realizada, para cada ano, com base em diferentes espacial entre municípios, nos mapas, considerando a
critérios de proximidade espacial e de ponderação, escala gráfica. Foi considerada a incidência de um fluxo
doravante denominados [modelos]. Foram considerados elevado de serviços e pessoas entre os municípios do Rio
na composição da matriz de vizinhança [W] os seguintes de Janeiro e de Niterói, cujas sedes estão distantes entre
[modelos]: si cerca de 40km. Desse modo, fixou-se uma distância
• [1º modelo]: critério da contiguidade (adjacência), linear de 0,6º de arco, o que corresponde a 67km,
sem aplicação de pesos; aproximadamente.
• [2º modelo]: critério da contiguidade, com pesos Uma vez gerada a matriz de vizinhança [W], o Índice
proporcionais ao inverso da distância entre áreas vizinhas; de Moran Global (I) e o Índice de Moran Local (Ii) foram

170
Análise espacial exploratória com o emprego do Índice de Moran

calculados para cada ano. Para cômputo do Índice de utilizadas nas análises e os respectivos valores do Índice
Moran Global (I) empregou-se a ferramenta [Estatística de Moran Global (I), para cada ano, bem como o p-valor
espacial]. As Tabelas 2 e 3 apresentam as configurações correspondente.

Tabela 2 – Modelos testados e os respectivos valores do Índice de Moran Global (I)

IDH-M: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal.

Tabela 3 – Resultados de p-valor para o Índice de Moran Global (I).

As Figuras 3, 4 e 5 apresentam os mapas temáticos


do IDH-M no estado do Rio de Janeiro, nos anos de 1991,
2000 e 2010, respectivamente.

Figura 3

Figura 4

171
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Figura 5

O Índice de Moran Global (I) permite detectar a baixos da variável, ou, então, discrepantes entre si. Para
incidência de autocorrelação espacial significativa na esse fim utiliza-se o Índice de Moran Local (Ii).
variável analisada (IDH-M) na área de estudo. No entanto, A Tabela 4 e as Figuras 6, 7 e 8 representam a
dado o número relativamente elevado de municípios distribuição dos municípios do estado do Rio de Janeiro
envolvidos nesta investigação, o cálculo de um único pelo MoranMap, no [1º modelo]: critério da contiguidade
índice global não é suficiente para identificar aglomerados (adjacência), sem aplicação de pesos.
de municípios com valores significativamente altos ou

Tabela 4 – Distribuição dos municípios do estado do Rio de Janeiro pelo MoranMap.


(Critério de contiguidade, sem peso)

172
Análise espacial exploratória com o emprego do Índice de Moran

Figura 6

Figura 7

Figura 8

A Tabela 5 e as Figuras 9, 10 e 11 representam a com pesos proporcionais ao inverso da distância entre


distribuição dos municípios do estado do Rio de Janeiro áreas vizinhas.
pelo MoranMap, no [2º modelo]: critério da contiguidade,

173
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Tabela 5 – Distribuição dos municípios do estado do Rio de Janeiro pelo MoranMap.


(Critério de contiguidade, com pesos proporcionais ao inverso da distância)

Figura 9

Figura 10

174
Análise espacial exploratória com o emprego do Índice de Moran

Figura 11

A Tabela 6 e as Figuras 12, 13 e 14 representam a com pesos proporcionais ao inverso da distância entre
distribuição dos municípios do estado do Rio de Janeiro áreas vizinhas.
pelo MoranMap, no [3º modelo]: critério da distância,

Tabela 6 – Distribuição dos municípios do estado do Rio de Janeiro pelo MoranMap.


(Critério da distância, com pesos proporcionais ao inverso da distância)

Figura 12

175
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Figura 13

Figura 14

Análise dos resultados necessário quanto maior o número de áreas envolvidas.


No [1º modelo] do Índice de Moran Local (Ii), para a
Os mapas temáticos de IDH-M fornecem várias composição da matriz de vizinhança [W], que emprega o
informações. Em 1991, havia dois municípios com IDH-M critério da contiguidade (adjacência), sem aplicação de
médio (Rio de Janeiro e Niterói), 31 municípios com pesos, não foram encontradas áreas do tipo BA. No ano de
IDH-M baixo e 59 municípios com IDH-M muito baixo. 2010, somente as classes AA e AB foram representadas,
Em 2000, havia dois municípios com IDH-M alto (Rio de com dois e quatro municípios, respectivamente, e a
Janeiro e Niterói), 48 municípios com IDH-M médio e 42 pequena quantidade de clusters e áreas de transição
municípios com IDH-M baixo. Rio de Janeiro e Niterói é coerente com o índice estatisticamente igual a zero:
passam do IDH-M médio para o IDH-M alto. Em 2010, [p-valor < 0,05].
havia um município com IDH-M muito alto (Niterói), 57 Os clusters de correlação positiva diminuíram: a
municípios com IDH-M alto e 34 municípios com IDH-M classe AA começou com cinco municípios, em 1991, e
médio. Niterói passou do IDH-M alto para IDH-M muito terminou com apenas um (Niterói) em 2010; a classe
alto; Rio de Janeiro manteve-se no IDH-M alto. BB se manteve com quatro municípios (dois passaram
Das três épocas para as quais o IDH-M foi mapeado, a NS e foram substituídos por dois outros até então
o ano 2000 apresenta a distribuição mais homogênea, não detectados). As áreas de transição AB também
onde 90 dos 92 municípios fluminenses são classificados diminuíram, passando de seis para três municípios. Não
nas faixas vizinhas centrais de baixo e médio, em houve ocorrência na classe BA. O destaque ficou com a
quantidades bem distribuídas: 42 e 48, respectivamente. emergência, aparentemente isolada, de Niterói na classe
Em face de tal equilíbrio, o p-valor do Índice de Moran AA, em 2010.
Global (I) apresenta todos os valores superiores a 0,05. No cômputo geral, trata-se de resultados pouco
Essa constatação, porém, não impede que o ano expressivos para a dinâmica constatada na variação
2000 seja incluído nos ensaios seguintes, realizados do IDH-M, no estado do Rio de Janeiro, no período 1991
com base no Índice de Moran Local (Ii), já que este a 2010, o que conduz ao questionamento de que até
permite identificar sub-regiões com diferentes regimes que ponto essa baixa expressividade se correlaciona
de correlação espacial, sendo o seu emprego tão mais com o [1º modelo]. Será que a inclusão de pesos no
176
Análise espacial exploratória com o emprego do Índice de Moran

modelo poderia aumentar o potencial de explicação do apenas uma alteração na composição da matriz de
comportamento espacial do IDH-M no estado do Rio de estrutura espacial, em relação ao [2º modelo], mantendo-
Janeiro? A resposta é sim. Uma constatação prévia pode se a mesma função de ponderação.
ver feita, visualmente, nos MoranMaps dos três anos. No ano 1991, observa-se uma quantidade significativa
O [2º modelo] do Índice de Moran Local (Ii) para a de municípios do tipo BA: são nove ocorrências nessa
composição da matriz de vizinhança [W], que emprega classe, contra apenas uma no [2º modelo] e nenhuma
o critério da contiguidade, com pesos proporcionais ao no [1º modelo]; a maioria dos quais formando áreas
inverso da distância entre áreas vizinhas, permite, por de transição para o cluster de municípios do tipo AA. A
intermédio da ponderação, diferenciar a intensidade da classe AB apresenta dez municípios, todos identificados
interação espacial entre vizinhos, com base na função pelo [2º modelo]. A classe AA apresenta 21 ocorrências,
inversa da distância de cada área para seus vizinhos em 1991, e na classe BB aparecem oito municípios,
(áreas adjacentes). contra apenas três detectados pelo [2º modelo].
No ano de 1991, observa-se, pela primeira vez, O número de ocorrências em classes diferentes da
uma área de transição do tipo BA, onde um município, NS, no [2º modelo], cai, consideravelmente, de 1991 para
com um IDH-M muito baixo, é totalmente cercado 2000, o que demonstra coerência com a constatação,
por municípios com IDH-M baixo, o que significa uma anteriormente citada, de pouca variabilidade nos valores
superioridade destes em relação àquele. Esse bolsão de IDH-M no ano 2000. Mesmo assim, pode-se constatar
de heterogeneidade não foi detectado pelo [1º modelo], que o número total de 23 de ocorrências nas classes AA,
no mesmo ano de 1991. Observou-se, também, que o BB, AB e BA é significativamente maior que o número
[2º modelo] ampliou em 40% o número de municípios 12, correspondente ao [2º modelo]. Vale destacar que a
do tipo AA, agregando-os ao grupo de mesma classe classe BA, no [3º modelo], apresenta cinco ocorrências
identificados no [1º modelo]. contra nenhuma no [2º modelo].
O ano 2000 é o que apresenta menor variabilidade nos A diferença entre o [2º modelo] e o [3º modelo] torna-
valores do IDH-M. Na classe AB, houve uma inclusão em se ainda mais acentuada na comparação de resultados
relação ao [1º modelo], enquanto os demais municípios para o ano 2010: são 44 ocorrências em classes
permaneceram inalterados. Na classe AA, foi confirmada diferentes da NS no [3º modelo], contra apenas 14, na
a tendência de agregação de municípios já observada no mesma classe, no [2º modelo]. O balanço pende para as
[1º modelo]. Também foram significativos os resultados classes de autocorrelação positiva (AA e BB), conclusão
para áreas do tipo BB, onde foram detectadas três novas coerente com o Índice de Moran Global (I) calculado para
áreas, contra nenhuma detecção nessa classe pelo [1º o [3º modelo], ano 2010: 0,144397 para um [p-valor =
modelo]. 0,01].
Nota-se que os clusters de correlação positiva O valor positivo relativamente baixo do Índice de
diminuíram: a classe AA começou com sete municípios, Moran Global (I), numa situação em que as classes
em 1991, e terminou com três, confirmando a emergência AA e BB são em número bem maior que as de tipo AB
de Niterói, mas ainda sem a presença do Rio de Janeiro; a e BA, indica que as parcelas negativas de desvios
classe BB começou com três municípios e terminou com em relação à média do IDH-M (classes AB e BA), nos
quatro, em 2010. As áreas de transição AB aumentaram municípios fluminenses, pesam relativamente mais que
de cinco para sete municípios. A análise de resultados as parcelas positivas (classes AA e BB). Em resumo: os
demonstra que o [2º modelo] mostra-se mais adequado contrastes entre os valores extremos de IDH-M (outliers)
para detectar os bolsões de heterogeneidade nos dados nas áreas de transição superam, em valor absoluto, as
de IDH-M, produzindo resultados mais completos. homogeneidades de concentração de valores de IDH-M
Mas como explicar a não detecção do município do acima ou abaixo da média (clusters).
Rio de Janeiro, de alto potencial turístico e boa qualidade
de vida? Não seria razoável esperar que ele fosse
classificado como AA ou AB? Será que a modificação Conclusão
do critério de composição da matriz de estrutura
espacial pode aumentar o potencial de explicação do As análises espaciais exploratórias realizadas neste
comportamento espacial do IDH-M no estado do Rio de trabalho foram centradas no uso dos Índices de Moran,
Janeiro? As respostas a essas perguntas também são em especial o Índice de Moran Local (Ii). Elas demonstram
sim. Uma constatação prévia pode ser feita, visualmente, o potencial dessa ferramenta no estudo da distribuição
nos MoranMaps, nos três anos. espacial de uma variável associada a feições de área
No [3º modelo] do Índice de Moran Local (Ii) para a numa dada região de estudo.
composição da matriz de vizinhança [W], que emprega o Os ensaios efetuados mostraram a importância
critério da distância (d = 67km), com pesos proporcionais da definição do modelo de estrutura espacial mais
ao inverso da distância entre áreas vizinhas, ocorre adequado para descrever o comportamento da variável;
177
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

no caso, o IDH-M dos municípios do estado do Rio de único. Além disso, é razoável supor que as conexões
Janeiro. Divididos em duas partes, os ensaios mostraram, terrestres entre municípios fluminenses sejam um fator
primeiramente, a importância da aplicação de pesos que até mais importante no estabelecimento de interações
levassem em conta a distância entre áreas vizinhas, os espaciais entre eles do que a existência de fronteiras
quais permitiram diferenciar a intensidade da interação intermunicipais comuns. Paralelamente, pode-se
espacial entre vizinhos. argumentar que o grau de interação espacial entre os
Em primeiro lugar, a função de ponderação escolhida municípios é diretamente proporcional ao potencial de
assume que os pesos são proporcionais ao inverso da influência mútua, capaz de levar a uma homogeneização
distância entre áreas vizinhas, que é o caso mais simples. dos valores de IDH-M.
De acordo com o critério da contiguidade, empregado no As análises exploratórias não esgotam as
[1º modelo] e no [2º modelo], áreas vizinhas são aquelas possibilidades de estudo do comportamento espacial
que compartilham uma fronteira comum. do IDH-M no estado do Rio de Janeiro. Desdobramentos
Uma vez fixado o critério da contiguidade na futuros desta pesquisa apontam para a necessidade de
composição da matriz de vizinhança, os ensaios aprofundar o entendimento dos fatores socioeconômicos
mostraram que a aplicação e a não aplicação de pesos e ambientais capazes de influenciar o IDH-M e de como
pode fazer uma diferença significativa na detecção de esses fatores variam nas diferentes sub-regiões do
bolsões de homogeneidade (clusters) e heterogeneidade estado.
(áreas de transição) nos dados, permitindo uma melhor Nesse sentido, seria interessante investigar o
compreensão do comportamento da variável na região comportamento espacial das variáveis componentes do
de estudo. IDH-M, bem como pesquisar, em trabalhos publicados,
Em segundo lugar, ficou evidente que o critério sobre que valores poderiam ser considerados na
utilizado na construção da matriz de vizinhança ou parametrização da distância de influência entre os
proximidade espacial [W] promove uma diferença ainda municípios fluminenses ao se aplicar o critério da
mais significativa na capacidade de o modelo detectar distância na composição da matriz de proximidade
sub-regiões com diferentes regimes de correlação espacial. Essas futuras investigações poderiam ser
espacial. Esse resultado ficou evidente na comparação subsidiadas por trabalhos socioeconômicos que
entre o [2º modelo] e o [3º modelo], sendo este último buscassem explicar a dinâmica entre os municípios
baseado no critério da distância. fluminenses.
A distância-base definida, de 67km, é considerada
satisfatória para expressar o conceito de proximidade
entre os municípios fluminenses, que na sua maioria
não são extensos e são conectados por uma malha
rodoviária densa. Ao impor este critério, o [3º modelo]
permite que municípios como Rio de Janeiro e Niterói,
que, separados pelo extenso corpo d’água da Baía de
Guanabara, mas ligados por vias terrestres e marítimas
de fluxo intenso, se tornem vizinhos, virtualmente, com
alto grau de interação espacial.
A distância entre o Rio de Janeiro e Niterói, de cerca
de 40km, é relativamente pequena, se comparada à
distância média entre municípios vizinhos no estado do
Rio de Janeiro, o que faz aumentar o peso da ligação entre
esses dois municípios que, no critério da contiguidade
do [2º modelo], permaneceram desconectados.
A premissa de fundo no [3º modelo] é que a matriz
de estrutura espacial mais adequada para o estado do
Rio de Janeiro tem por base o critério da distância, em
vez do critério da contiguidade, considerando que, num
certo sentido, a definição de [W] representa uma hipótese
sobre o fenômeno em estudo. Idealmente, a estrutura
espacial representada na matriz [W] deve corresponder a
algum aspecto do problema, que é significativo à luz dos
processos estudados.
O caso da interação entre os municípios do Rio de
Janeiro e de Niterói é notório, mas, certamente, não é
178
Análise espacial exploratória com o emprego do Índice de Moran

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XAVIER DA SILVA, J. (2001) Geoprocessamento para análise ambiental. Rio de Janeiro: Ed. do Autor. 227 p.

Data de submissão: 22/07/2014


Data de aceite:22/05/2017
Data de publicação: setembro/2017

179
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai./ago.

NOSSOS CLÁSSICOS

SUBIMPERIALISMO,
NA VISÃO DE UM GEÓGRAFO*

Milton Santos

Underdevelopment and Poverty: A Geographer’s View, pp. 38-47. In: The Latin American in Residence Lectures,
Number III in the series, 1972-1973. University of Toronto,1975.

“Subimperialismo”, a tese do Dr. Ruy Mauro Marini “Subimperialismo” de acordo com Ruy M.
é tanto uma teoria da ciência política quanto uma Marini
explicação de política econômica, tão bem como um
novo esforço de reinterpretação histórica e prospectiva.
Se eu entendi corretamente o procedimento
Longe de surgir para ser um novo slogan, esse tema
intelectual de Ruy Marini, penso que seu esforço
parece, ao contrário, ser capaz de servir como ponto de
poderia ser resumido em três partes: a descrição do
partida de uma ideologia política e um comportamento
contexto histórico, a tipologia das situações presentes e,
político, assim como um instrumento efetivo de análise
finalmente, a formulação de perspectivas, incluindo tanto
das realidades presentes e das perspectivas do futuro
o diagnóstico quanto a solução para a situação.
imediato.
Depois de ter lido alguns dos trabalhos do Dr. Marini
Por outro lado, esse tema será capaz, mais uma vez, de
(dentre eles “Brazilian Sub-imperialism”, Monthly
substanciar a unidade das ciências humanas e sua ativa
Review, vol. 23, nº 9, pp. 14-24; e Sous-Développement
solidariedade na explicação de importantes fenômenos
et Révolution em Amérique Latine, Paris: Edition
da nossa época, assim como no esforço de encontrar a
Maspero, 1972, especialmente os capítulos 2 e 4), me
solução para esses fenômenos. É este o motivo pelo qual
pareceu que a definição de subimperialismo pode ser
um geógrafo não irá sentir-se tão distante de um tópico
encontrada na conjunção dos seguintes fatores: 1) a
como este, o qual é apenas em aparência remoto às
concentração de produção e renda, cuja consequência
preocupações dos especialistas do espaço.
é “a superexploração do trabalho, que é o grande pilar
do esquema subimperialista”; 2) a ainda mais frequente
necessidade de recorrer ao setor externo; 3) a situação de
crise criada por essa política econômica e a necessidade
de apelar para novas formas de consumo estatal, tais
como a instalação de infraestrutura e a indústria militar, o
que serve como meios de buscar uma nova expansão do
* Sub-imperialism, as viewed by a geographer. Tradução de Thiago Machado. mercado para bens de capital.

180
Nossos Clássicos

Esses dados autorizam Ruy Marini a definir Finalmente, a necessidade de uma política de exporta-
subimperialismo como uma “fusão dos interesses ção agressiva deixou as forças armadas brasileiras supe-
militares e do grande capital” (...), “a forma que o requipadas, levando o Brasil, afirma Marini, a buscar uma
capitalismo dependente assume ao alcançar o estágio do posição de hegemonia no subcontinente, o que serve aos
capital monopolista e financeiro”, uma situação na qual interesses das grandes firmas, sem levar em conta tam-
“o problema do mercado constitui o eixo do esquema bém as aspirações populares ou a soberania das nações
(subimperialista)”. O Estado, portanto, ocupa um lugar vizinhas.
fundamental na explicação do subimperialismo. Este Apesar de concordar com a maioria desses
Estado tem o papel de regulador dos “choques” (o termo fundamentos e conclusões, a crítica básica que eu faria
é empregado por M. Mamalakis, “The Theory of Sectorial ao trabalho de Marini é relativa à sua negligência em
Clashes”, Latin American Research Review, vol. IV, nº 3, tratar o problema em termos de sistema-mundo, o que
Fall 1969, pp. 9-46) entre os interesses de diversos setores, é essencial para compreender o subdesenvolvimento em
assim como o de proteger as crescentes necessidades do diversos níveis. A carência de tal abordagem impede uma
sistema econômico internacional contra a demanda mais visão mais geral da questão, a qual deve ser tão atual
ou menos expressa pelo empobrecimento das massas quanto histórica, permitindo a análise e a perspectiva
e, também, das classes médias, cujo destino depende apropriadas.
da conjuntura alcançada pelos setores dominantes da
O caso brasileiro é apenas um submodelo de um
economia.
fenômeno mais geral.
Desde o tempo do governo do Presidente João Goulart,
explica Ruy Marini, “as tentativas de redistribuição da
renda provaram-se uma pobre solução do ponto de vista
do grande capital”. Depois do Golpe de Abril de 1964 a “Subimperialismo” e “países industrializados
situação reverteu-se ao seu curso “normal” por meio subdesenvolvidos”
da “crescente concentração de renda e de suas fontes
produtivas”. Àquele tempo, o novo regime apresentou Eu gostaria agora de examinar o ponto de vista
novas soluções. Dentre elas, a mais significante foi “elevar histórico dos países subdesenvolvidos e questionar se
a exportação de bens manufaturados” e “aumentar a não há um sinônimo entre aquilo que Ruy Marini chamou
demanda interna por bens de capital”. “A expansão das de “subimperialismo” e o que eu tenho intitulado de “países
exportações exigiu o crescimento do nível tecnológico, subdesenvolvidos industrializados” (Milton Santos,
o que, por sua vez, implicou grandes possibilidades para Les Villes du Tiers Monde, Paris: Editions N. Th. Genin,
a absorção de bens de capital”. Conjuntamente, e como Librairies Techniques, 1971). A velha taxonomia político-
consequência, havia um “crescimento dos gastos do geográfica que põe de um lado os países industrializados
Estado por meio de uma ativa política de desenvolvimento e de outro os países subdesenvolvidos (modestamente
da infraestrutura de transporte e eletrificação...” chamados de países não-industrializados) já não tem mais
indispensável para a expansão da produção de bens de significado, pois agora existem países subdesenvolvidos
capital e para a exportação de bens manufaturados. industrializados, tais como Brasil, Argentina, México,
Como em evidência, tudo estava inter-relacionado... Índia, Egito e, talvez, África do Sul.
Mas tal política teve um preço. “A grande indústria foi Uma industrialização dependente e pontual caracte-
desnacionalizada” e ali ocorreu um “reforço da tendência riza tais países subdesenvolvidos industrializados. De-
do capitalismo brasileiro ao monopólio no sentido de criar pendente porque a espinha dorsal do presente sistema
uma estrutura produtiva capaz de competir no mercado histórico, que é a tecnologia, é um privilégio dos países
internacional”. Contudo, o imperialismo internacional do centro: a dependência tecnológica provoca, por sua
recusou dividir alguns campos de produção, tal como a vez, a dependência financeira e uma dependência das
indústria aeronáutica e a tecnologia nuclear, e impediu o políticas econômicas dos países periféricos, assim como
seu desenvolvimento local. Esse movimento concentrado uma dependência nas formas de organização da produ-
e a política de crédito imposta pelo governo, com a ção, a exemplo dos monopólios. A dependência também
concordância do Fundo Monetário Internacional, levaram é evidente nos padrões de localização industrial. Por con-
à bancarrota inúmeras médias e pequenas empresas, ta de tudo isso, a industrialização dependente é também
enquanto os salários reais, o salário mínimo real e o salário pontual, pois grandes firmas tendem a se concentrar em
médio, todos, decresceram. A política de exportação de certos pontos do espaço nacional onde já existe uma
bens manufaturados, escandalosamente ajudada por concentração de infraestrutura e de capital de giro.
subsídios estatais, resultou em um crescimento do Produto
Um certo número de outras características diferencia
Interno Bruto (PIB) a taxas japonesas e a um estilo brasileiro
fundamentalmente os países subdesenvolvidos indus-
de empobrecimento da maior parte da população.
trializados dos países desenvolvidos. Primeiramente, os

181
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

países subdesenvolvidos industrializados têm sindicatos nacional. Essa situação pré-crise cria entre eles um apetite
ineficientes e uma verdadeira ausência de organização imperialista sobre os países menos desenvolvidos que são
sindical. Isto decorre de diversas razões, dentre elas, da susceptíveis a se tornarem clientes. Esta forma periférica
degradação do mercado de trabalho. A dificuldade dos de imperialismo, chamada de “subimperialismo” por
sindicatos manifestarem suas existências é agravada Marini, aparece quando o país subdesenvolvido se torna
quando a ditadura é estabelecida no país, a qual passa industrializado, especificamente quando pode prover
a arbitrar conflitos de interesses em favor de empresas um mercado interno com bens de consumo, embora
multinacionais e dos monopólios. Segundo: a opinião pú- o mercado possa ser pauperizado pelos monopólios,
blica, controlada e transmitida por poderosos meios de e quando possui indústrias de bens de capital, cuja
publicidade, comandados tanto de dentro do país quanto capacidade rapidamente torna-se superior à capacidade
de alhures, é ela mesma privada de meios para analisar de absorção do já comprimido mercado nacional.
corretamente as decisões da política econômica for- A situação do subimperialismo ou imperialismo de-
mulada pelo Estado. Finalmente, a dependência em si e pendente não é exclusividade brasileira, mas é uma situ-
as contradições inerentes à necessidade de sucessivas ação geral em todos os países subdesenvolvidos indus-
adaptações conjunturais força os monopólios, que são o trializados. As possibilidades externas da ação subimpe-
principal fator da instabilidade política, a se protegerem rialista, a qual cria um “segundo grau de dependência”,
de tal instabilidade e, assim, tornarem-se ainda mais po- são contingentes à situação geopolítica, à evolução his-
derosos e relativamente mais potentes do que nos países tórica e às condições presentes dos demais países, es-
desenvolvidos. Eles alcançam esse objetivo por meio de pecialmente os vizinhos. Isso seria útil para comparar as
apoio diplomático que lhes tem sido abertamente garan- situações do Brasil, da Argentina, da República da África
tido por cerca de duas décadas. do Sul e da Índia com aquelas do México e do Egito. Até
Essas opções de política econômica encerram o que ponto é isto uma consequência exclusiva do nível de
país em um ciclo vicioso. A cada dia, a necessidade de desenvolvimento nacional ou das opções de política eco-
importar para ser capaz de exportar aumenta, assim nômica e política internacional adotadas por cada país?
como a necessidade de exportar para que seja possível
importar. Isto significa um duplo empobrecimento
porque a política de exportação leva, por um lado, à
necessidade inevitável de se utilizar tecnologia a nível
Organização da produção e organização
internacional e, por outro lado, a uma busca de uma
espacial
competitividade inalcançável. Ao passo que a escala das
firmas se amplia, os recursos nacionais disponíveis para Os países subdesenvolvidos industrializados são ca-
outros usos decrescem: a dificuldade para a indústria racterizados por um mecanismo interno, exclusivamente
ser verdadeiramente competitiva ao nível internacional seu, que tem repercussões na organização geral da pro-
compele o Estado a garantir vantagens à exportação dução, no emprego e na organização do espaço. Estudos
que são crescentemente exorbitantes. Os subsídios para sistemáticos e amplos relativos às relações entre formas
certos produtos chegam a alcançar 50%, como acontece de organização da produção e modelos de organização
no Brasil; e ao fim, as classes pobres pagam a conta, e espacial são consideravelmente deficientes nos países
duplamente: primeiro, por meio do sistema tributário que é subdesenvolvidos. Mesmo geógrafos e outros especialis-
principalmente composto de impostos indiretos, afetando tas poderiam desempenhar um papel apreciável na com-
principalmente as classes mais pobres, e, em segundo preensão dos fenômenos da pobreza e sua manifestação
lugar, por conta de que o conluio entre a necessidade de espacial, desde que haja uma interrelação entre todos es-
importar e de exportar impede, na lógica do monopólio, a ses fenômenos.
realização da expansão desejável da produção orientada Tal abordagem serviria igualmente para demonstrar o
ao consumo de massa. Esse conluio contribui ao fato caráter secundário e residual de certas teorias correntes
que o salário real continua a diminuir e também reduz que, se examinadas separadamente, são apenas uma
as oportunidades para uma política econômica nacional abordagem parcial, no que dizem respeito a questões tais
independente. como marginalidade, dualismo, fenômeno migratório,
Assim, se há uma interdependência entre os macrocefalia, ou a questão de cidades primárias e o falso
países desenvolvidos, os países subdesenvolvidos problema do tamanho ótimo das cidades, sem esquecer
industrializados são dependentes. Na realidade, quanto o inexaurível problema da “habitação” padronizada como
maior a modernização, maior é a dependência. Como um problema fundamental dos países subdesenvolvidos,
sujeito e objeto de uma troca crescentemente desigual, mas que aparece mais vinculado ao mercado. Essas
eles são seduzidos a desenvolverem uma produção abordagens, além de não serem completas, apenas
orientada externamente, a qual entrava a industrialização reúnem, desde um ponto de vista analítico, epifenômenos,

182
Nossos Clássicos

e de um ponto de vista corretivo apenas oferecem de produção capaz de efeitos de multiplicação locais
soluções provisórias. (reservo essa expressão “metrópole completa” à mais
A questão essencial que deve ser encarada pelos importante aglomeração, desde um ponto de vista
geógrafos, economistas espaciais ou espaciologistas industrial, nos países subdesenvolvidos industrializados.
que trabalhem em países subdesenvolvidos refere-se Ver Milton Santos, Les Villes du Tiers Monde, op. cit.,
às relações entre formas de organização da produção e chap. IX).
aquelas de organização espacial na escala nacional ou A situação é diferente na segunda fase. A “mania
macro-espacial, e nas escalas meso ou micro-espacial. de crescimento” (a expressão é de Esra J. Mishan, The
Tal análise também inclui uma consequência ao nível Costs of Economic Growth, New York: Praeger, 1967, pp.
da vida individual, pois cada cidadão possui um “valor” 3-8) tendo atingido seu paroxismo, justapôs um mercado
diferente como produtor ou consumidor em relação à interno comprimido a uma necessidade crescente de
posição por ele ocupada no espaço nacional. Assim, exportação. A deterioração dos termos de troca piora e a
a conclusão possível seria a de que não existe solução contradição entre a necessidade simultânea de importar
para os problemas urbanos por meio da cidade e que o e exportar enfraquece o valor internacional das moedas
chamado planejamento urbano e regional é apenas um dos países subdesenvolvidos. A importação da divisão
embuste se examinado separado da política econômica e internacional do trabalho da primeira fase continua,
social de todo o país. enquanto outros elementos entram em foco com o
desenvolvimento da exportação de bens manufaturados.
Na maior parte do tempo, subsídios do Estado permitem
essas exportações, resultando em países pobres que
Fases do período tecnológico e a conexão entre ajudam os países ricos. Paradoxalmente, uma camisa
a organização do espaço e o subimperialismo feita no Brasil pode ser comprada a melhor preço em
Boston do que em São Paulo.
Para melhor compreender as relações contemporâneas Por outro lado, a preparação para a exportação de
entre a organização da produção e a organização espacial, matéria-prima gera verdadeiros “enclaves”. A existência de
é absolutamente necessário considerar o fato de que dois tipos de enclaves pode ser verificada. Primeiramente,
o sistema temporal presente corresponde ao período há enclaves reconhecidos caracterizados por cidades
tecnológico e é dividido em duas fases ou dois segmentos industriais, como Ciudad Guyana, na Venezuela, que
históricos do ponto de vista do comportamento dos são simplesmente partes do planejamento econômico
polos do sistema. Esta divisão é evidente quando se de países ricos, embora planejadores econômicos
considera a história do subdesenvolvimento como mercenários os representem como elementos do
sendo amalgamada à história da divisão internacional do planejamento econômico e espacial de países pobres.
trabalho. Desse modo, durante a primeira fase do período Há também enclaves ocultos, quando indústrias de
tecnológico ocorreu aquilo que os economistas sul- exportação se estabelecem em grandes cidades para
americanos têm com justiça intitulado de “a importação usufruir de infraestrutura e mão de obra barata.
da divisão internacional do trabalho”. Isto é, ocorreu a
A primeira fase do período tecnológico implica, do
transferência, sob certas condições e impondo certas
ponto de vista da organização espacial, uma acumulação
garantias, do maquinário de produção industrial dos
em certas aglomerações que já monopolizam, por
países desenvolvidos para os países subdesenvolvidos
exemplo, os meios de transporte ou comércio de
por meio da utilização in loco do “proletariado externo”,
produtos agrícolas. É por isto que se pode falar de uma
assim chamado por Toynbee, mas retendo um “terciário
acumulação cumulativa, que favorece a instalação de
externo” nos países dominantes (externo em respeito
estruturas monopolistas mais ou menos abertas, com
aos países dominantes). Consequentemente, os níveis
a desacumulação de capital e novamente acumulação
mais altos do terciário são deficientes nos países em
cumulativa da pobreza, ambas nas cidades e no campo.
industrialização. Uma pesquisa recente desenvolvida
Os países subdesenvolvidos industrializados, em
pela Harvard Business School descobriu que 600.000
geral, experienciaram uma industrialização “precoce”,
empregos nos EUA eram dependentes de operações
especificamente antes da primeira guerra mundial (o
estrangeiras de corporações multinacionais baseadas
caso do Egito é uma exceção e um exemplo essencial
nos Estados Unidos.
de efetividade da vontade política). É o monopólio, e
Durante a primeira parte do período tecnológico, as não a explosão demográfica, falta de capital ou mercado,
indústrias criadas segundo o processo de substituição de que ocasiona a terciarização da maioria das cidades,
importação constituíram, em certos pontos privilegiados a macrocefalia dos polos econômicos (geralmente a
do país e que são atualmente as poucas metrópoles capital dos países) e a migração interna, ou mesmo
completas dos países subdesenvolvidos, uma máquina externa, o subemprego e o desemprego. Nessa primeira

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fase, o espaço obteve uma especialização horizontal com um fator de concentração, a difusão de informação e
um tipo de estrutura urbana piramidal do ponto de vista consumo desempenha um papel de dispersão, ao passo
da produção industrial. Essa especificidade confere um que o Estado tem papel misto. Quando o Estado funciona
incontestável papel de direção à metrópole econômica em apoio aos monopólios, por meio da concentração
do país, apesar da sua dependência vis à vis os países de infraestruturas, ele age como um elemento da
estrangeiros. Cidades grandes, médias e pequenas concentração econômica e demográfica. Quando ele
são todas dependentes das cidades maiores e certos dissemina equipamentos territoriais de natureza social,
efeitos da multiplicação recíproca podem aparecer, ao tal como hospitais e escolas, ou mesmo oferece incentivo
tempo que isto é possível, a despeito das estruturas a camponeses, ele é um fator de dispersão. A cada tempo,
monopolistas, para preservar uma parte da decisão em quando há uma tendência de equipar um país de acordo
matéria de organização do espaço e da produção, sendo com uma certa ideologia de crescimento como um fator
esta principalmente destinada ao mercado interno. de desenvolvimento, os recursos tornam-se menos e
Durante a segunda fase do período tecnológico menos disponíveis aos fatores de dispersão.
a exportação torna-se uma preocupação essencial Isto explica porque, em uma situação de
tanto para o Estado quanto para as firmas nacionais subimperialismo, há um perfeito sinônimo entre, por
e, especialmente, para as internacionais. Assim, o um lado, monopólios e firmas multinacionais, e por
crescimento econômico das cidades pode ser realizado outro, macrocefalia e suas consequências: desemprego,
totalmente separado do restante da região ou país. subemprego, marginalidade, terciarização e o assim
Decisões relativas à atividade de produção dependem chamado “dualismo”.
cada vez mais da conjuntura interna às grandes firmas, Há aí uma certeira solidariedade entre os crescimentos
mas externa aos países, sendo o espaço objeto de uma urbano, demográfico e espacial, e o externamente
multiplicidade de influências oriundas dos polos de orientado crescimento econômico urbano monopolista.
decisão em várias escalas1. Mas os planejadores econômicos oficiais do imperialismo
Na primeira fase, os monopólios, estabelecidos onde continuam a pregar o crescimento estatístico à la Rostov
os equipamentos privilegiados já estavam localizados, ao mesmo tempo que fingem combater a macrocefalia,
que estão nas grandes cidades, foram compelidos a levar a expansão urbana e, mais recentemente, a poluição.
em conta as firmas pré-existentes. Assim, isto permitiu Eles propõem fórmulas, tais como descentralização
uma rede de interdependência que facilitou o crescimento concentrada, cujo efeito inicial é reduzir ainda mais os
e constituiu uma fundação para a difusão espacial dos recursos nacionais que de outra forma serviriam para
resultados conquistados. elevar as condições de vida da população ou ajudar
Durante a segunda fase, as firmas multinacionais o estabelecimento de uma política de produção que
ou extra-regionais, de acordo com a natureza de suas melhor serviria ao interesse geral. Consequentemente, a
operações, não exigem, na realidade, economias externas, teoria da descentralização concentrada numa situação
senão elas mesmas as criam. As externalidades são de de imperialismo dependente, ou mesmo de capitalismo
especial importância, mas a este respeito é o Estado que dependente, pode apenas ajudar a agravar uma
é o provedor, seja diretamente ou por meio de aparentes concentração concentrada e fazer o empobrecimento
empréstimos generosos de organizações bancárias mais generalizado. Esta é a situação ideal para a
internacionais. Esses gastos de equipamento são implantação mais fácil dos monopólios e para o reforço
externalidades, que indicam que a população de um país da situação de subimperialismo.
dominado é mais uma vez forçada a financiar as grandes
firmas de países dominantes.
Essa alocação de recursos tem repercussão no nível
da organização espacial. O espaço é organizado de
acordo com o jogo dialético dos fatores de concentração
e dispersão. As estruturas monopolistas constituem

1
A importação de novas tecnologias geralmente indica a necessidade de importar
novas matérias-primas. Por exemplo, no Estado da Bahia, os agricultores mais
pobres do Nordeste árido, longe de serem removidos do litoral, poderiam obter
dinheiro por meio da venda de algodão. A fabricação moderna que utiliza fibras
sintéticas vai afetar o mercado agrícola e empobrecer os agricultores e as cidades
vizinhas, e este empobrecimento não é exclusivo das pequenas cidades.A nova
equação de emprego, um resultado do aumento de escala das firmas, força todas
as cidades do país, sejam ou não aglomerações industriais, a se tornarem cidades
terciárias. Este é o caso em São Paulo, onde o número de favelas, assim como o
índice de desemprego, tem recentemente aumentado ao nível mais alto de todos
os tempos.

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Nossos Clássicos

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai./ago.

NOSSOS CLÁSSICOS

GEOGRAFIA E DEPENDÊNCIA: O DIÁLOGO ENTRE


MILTON SANTOS E RUY MAURO MARINI A PARTIR DA
TEORIA DO SUBIMPERIALISMO

Thiago Machado*

A tradução aqui apresentada do texto de Milton decorrência do exílio. Sob o título Underdevelopment and
Santos intitulado Sub-imperialism as Viewed by a Poverty: A Geographer’s View, o trabalho é composto por
Geographer, publicado em 1975, possibilita resgatar uma série de quatro artigos: Brazil: a Underdeveloped
o debate entre a Geografia e a teoria da dependência, and Industrialized Country, Development: Theories and
especialmente por dar visibilidade ao diálogo entre Milton Poverty, Sub-imperialism as Viewed by a Geographer
Santos e o sociólogo brasileiro Ruy Mauro Marini. Em e City Growth and Space Organization: Incomplete
que pesem os conflitos no seio da formulação da teoria Metropolis in Latin America.
da dependência, o que conferiu a Marini certo aspecto Apesar disso, o texto em questão é resultado
marginal no pensamento social brasileiro, estabelecer da participação de Milton Santos na conferência
uma visão geográfica do conceito de subimperialismo “Dependência Externa e Problemas de Desenvolvimento
parece responder aos anseios de Milton Santos em na América Latina e Caribe”, ocorrida em abril de
produzir categorias analíticas que superem a mera 1972 na Universidade de Toronto, momento no qual o
importação de teorias formuladas nos países centrais. geógrafo brasileiro ainda fazia parte do Departamento
Além disso, oferece o retrato de uma época em que a de Estudos Urbanos e Planejamento do Massachusetts
discussão do desenvolvimento, do subdesenvolvimento Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos. Com
e do imperialismo estava na ordem do dia nas ciências a participação de vários intelectuais latino-americanos,
sociais, inclusive na Geografia brasileira, contexto que como Aníbal Quijano, Octávio Ianni e Ruy Mauro Marini,
contribuiu para a sua virada crítica ao final da década de o evento era organizado de maneira que cada palestrante
1970. contasse com um comentador do seu trabalho. Desse
O texto está inserido numa coletânea publicada pela modo, ficou a cargo de Milton Santos comentar a
Universidade de Toronto como produto final do período palestra de Ruy Mauro Marini intitulada Subimperialismo
em que Milton Santos ocupou uma cátedra na Faculdade Brasileiro na América Latina, para a qual foi tomado como
de Artes e Ciências daquela universidade nomeada “The base o artigo de Marini publicado na Monthly Review em
Latin American in Residence Chair”1 no ano letivo de fevereiro daquele mesmo ano, Brazilian Imperialism2.
1972-1973, um dos tantos centros onde ele trabalhou em A discussão do subimperialismo estava plenamente em
acordo com os temas tratados por Milton Santos àquela
*Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Fede-
ral Fluminense e Bolsista CAPES. E-mail: machado.ta@gmail.com

SANTOS, Milton Santos. Underdevelopment and Poverty: A Geographer’s View,


1
²MARIANI, Ruy Mauro. Brazilian Subimperialism. Monthly Review, vol. 23, nº 9,
University of Toronto, 1975. 1972.

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

Divulgação da Conferência na revista The Varsity,


29 de março de 1972, Toronto, Canadá

época, sobretudo no que diz respeito à urbanização dos internacional do trabalho e as práticas imperialistas
países subdesenvolvidos e à especificidade do espaço do pós-guerra. Inaugurado a partir da publicação pela
nesses países frente aos processos de modernização CEPAL em 1949 do trabalho de autoria de Raul Prebisch,
capitalista e de planejamento econômico. Desse modo, Estudio Económico de America Latina4, a discussão do
a redação do texto a partir do seu diálogo com Ruy desenvolvimento brasileiro e latino-americano era um
Mauro Marini, em conjunto com os demais artigos da grande e rico campo de disputa de narrativas e estratégias
publicação de 1975, imprime o conjunto de debates que envolto no ambiente da industrialização nacional via
encontram uma forma melhor acabada na publicação substituição de importações e das disputas político-
na França de O Espaço Dividido3, também em 1975. ideológicas da Guerra Fria.
Neste livro, há trechos de transcrição quase completa
Especificamente no que se refere ao contexto
do artigo aqui traduzido e, é possível discutir a partir de
brasileiro, Ricardo Bielschowsky5 distingue cinco
tal obra, a assimilação ou não das teses da “dialética
correntes de pensamento estruturadas durante a
da dependência” e do “subimperialismo” na discussão
transição do modelo agroexportador para a economia
que Milton Santos promove sobre os circuitos superior
urbano-industrial: o desenvolvimentismo do setor
e inferior da economia urbana ao dar especial atenção
privado, representado por Roberto Simonsen; o
aos setores monopolistas, à necessidade de exportação
desenvolvimentismo “não-nacionalista”, liderado por
e à dependência tecnológica das indústrias nos países
Roberto Campos; o desenvolvimentismo nacionalista de
subdesenvolvidos.
Rômulo de Almeida e, posteriormente, Celso Furtado; a
corrente liberal que defendia a “vocação agrária”, liderada
por Eugenio Gudin; e à esquerda a corrente formada
O ambiente intelectual do debate da pelos intelectuais do Partido Comunista Brasileiro (PCB),
Dependência centrados na ideia da etapa “democrático-burguesa” de
transição ao socialismo.
Dentre tais correntes de pensamento emerge a
O debate travado nas ciências sociais latino-
organização de grupos de intelectuais a partir dos quais
americanas entre as décadas de 1950 e 1970 privilegiava
a formulação de teorias e interpretações da realidade
a discussão sobre a condição de subdesenvolvimento e
dependência dos países da América Latina frente à divisão 4PREBISCH, Raul. Estudio Economico de America Latina 1949. Nueva York:
Departamento de Asuntos Economicos, 1951.
³SANTOS, Milton Santos. L’espace Partagé: les deux circuits de l’economie urbaine
des pays sous-développés. Editions Librairies Techniques, M. Th. Génin, Paris, 5BIELSCHOWSKY, Ricardo Bielschowsky. Pensamento Econômico Brasileiro: o ci-
França, 1975. clo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995.

186
Nossos Clássicos

brasileira são empreendidas, principalmente vinculadas formulação do PCB8 (Partido Comunista Brasileiro) ao
à estratégia nacional-desenvolvimentista. Nesse sentido, negar as condições de uma etapa democrático-burguesa
os embates entre os teóricos da CEPAL (Comissão rumo ao socialismo no Brasil. Sob a liderança de Ruy
Econômica para a América Latina das Nações Unidas), Mauro Marini, contava com nomes como Vânia Bambirra
do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e, e Theotônio dos Santos, além de estreita colaboração
posteriormente, da Escola de Sociologia da USP formam com o economista alemão André Gunder Frank, figura
o corpo teórico que leva à teoria da dependência. de proa no debate da dependência. O seu artigo O
A CEPAL de Raul Prebisch, Celso Furtado, Aníbal Pinto, Desenvolvimento do Subdesenvolvimento9, publicado em
Maria da Conceição Tavares e Oswaldo Sunkel denuncia 1966, foi tanto um dos pontos de partida, mas também o
a deterioração dos termos de troca nas relações centro- alvo de muitas das críticas por conta do seu entendimento
periferia da divisão internacional do trabalho, ficando sobre o capitalismo colonial na América Latina.
conhecida como a escola do estruturalismo cepalino. Todos esses distintos grupos intelectuais são
Os intelectuais do ISEB, como Alberto Guerreiro Ramos, contemporâneos de um período em que havia acirrada
Ignácio Rangel, Rômulo de Almeida, Nelson Werneck disputa ideológica entre o capitalismo e o socialismo
Sodré e Hélio Jaguaribe, dentre outros, compartilhavam não apenas no campo das ideias, mas como sistemas
boa parte do diagnóstico cepalino e, em geral, defendiam político-econômicos viáveis, especialmente após o
a industrialização nacional como uma estratégia de sucesso da Revolução Cubana em 1959, a qual não só
superação do subdesenvolvimento. Destacam-se, assim, ampliou os ânimos revolucionários na América Latina,
como nacionalistas com vistas à formação de uma como também provocou a reação conservadora que levou
burguesia industrial capaz de, a partir de um pacto com aos golpes de Estado continente afora. Desse modo, o
as camadas populares, enfrentarem o desafio de mudar a debate da dependência acabou por ser desenvolvido no
posição do país na divisão internacional do trabalho. exílio de vários desses intelectuais, o que de certa forma
Pouco mais de uma década depois surge aquilo que contribuiu para a colaboração internacional e para a
ficaria conhecido como Escola de Sociologia da USP, reflexão da América Latina como um todo, influenciando
centrada na figura do sociólogo Florestan Fernandes6, substancialmente a experiência intelectual de Ruy Mauro
mas cujo protagonista da polêmica em torno da teoria da Marini.
dependência passaria a ser Fernando Henrique Cardoso.
Este, ao criticar a narrativa nacional-desenvolvimentista
predominante, busca destacar as relações de classes
Ruy Mauro Marini e a Teoria do Subimperialismo
sociais internas ao desenvolvimento do capitalismo
brasileiro, defendendo a incapacidade da formação de
uma burguesia nacional que levasse adiante a estratégia O economista Bresser-Pereira10 defende haver,
desenvolvimentista e a possibilidade de desenvolvimento portanto, três principais correntes da teoria da
por meio da poupança externa, naquilo que seria uma dependência: a nacional-dependente, a da dependência
forma de dependência associada via o investimento associada e a da superexploração do trabalho. A primeira
estrangeiro direto. O livro que Fernando Henrique Cardoso vinculada à CEPAL e ao ISEB, a segunda à Escola de
escreve em parceria com o sociólogo chileno Enzo Sociologia da USP, mas principalmente a Fernando
Falleto em 1969, Dependência e Desenvolvimento na Henrique Cardoso, e a última a Ruy Mauro Marini e seus
América Latina7, passa a ser reconhecido como o grande companheiros da POLOP. Contudo, boa parte da narrativa
referencial da chamada Teoria da Dependência, de forma empregada por teóricos de peso vinculados ao nacional
que boa parte do debate de então fique enviesado ao desenvolvimentismo, como Celso Furtado, privilegiava o
ofuscar uma das principais correntes de pensamento à debate do subdesenvolvimento, de modo que aos olhos
época. de hoje a disputa em torno da dependência tenha se
dado efetivamente entre as formulações personalizadas
Centro difusor de uma das interpretações mais
nas figuras de Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro
originais, porém submetida à censura e ao ofuscamento
durante muitas décadas, a POLOP (Política Operária)
era um grupo que pretendia criar as condições para 8O livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Licoln Secco, “Intérpretes do Brasil:
clássicos, rebeldes e renegados”, tenta resgatar intérpretes nacionais para além dos
a construção de um partido revolucionário no país consagrados, o que inclui aqueles vinculados ao PCB, tais como Octávio Brandão,
e, portanto, tinha uma posição radical à esquerda da Astrogildo Pereira e Leôncio Basbaum. A obra de outro ilustre filiado ao PCB, Caio
Prado Jr., polemiza com a linha central do partido sobre o Brasil e sua evolução
econômica, “A Revolução Brasileira”, cuja última edição foi publicada em conjunto
com “A Questão Agrária” pela Boitempo em 2014.
6Florestan Fernandes foi o primeiro intelectual latino-americano a ocupar a cátedra
voltada à América Latina na Universidade de Toronto no período letivo de 1969- 9Andre Gunder Frank, “The Development of the Underdevelopment”, em Monthly Re-
1970. Parte do seu trabalho aí produzido foi publicado no livro “Capitalismo Depen- view, vol. 18, nº 4, September 1966.
dente e as Classes Sociais na América Latina”, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.
10
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Do ISEB e da CEPAL à Teoria da Dependência.
7CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo Faletto. Dependência e Desenvolvi- In: TOLEDO, Caio Navarro (Org.). Intelectuais e Política no Brasil: a experiência do
mento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. ISEB. São Paulo: Editora Revan, 2005.

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Marini11. A dependência no contexto brasileiro estaria, desse


Se a proposição de Cardoso apontava para a modo, por trás do golpe de 1964, pois a estratégia de
industrialização viabilizada pela poupança externa João Goulart para a crise de acumulação, cujas reformas
e, de certo modo, uma posição resignada frente à de base centravam-se no fortalecimento do mercado
dependência, a formulação de Marini era anticapitalista interno, não agradavam ao capital monopolista, dado
e anti-imperialista, pois defendia que a superação da que sua produção centrada em bens de consumo
condição de dependência não poderia ocorrer nos duráveis encontrava dificuldades de demanda efetiva no
marcos do capitalismo. Tal posição era sustentada por mercado interno, além de que o aumento dos salários
duas teorias principais: a da superexploração do trabalho levaria a uma redução da taxa de mais-valor. A ditadura
e a do subimperialismo, ambas constituindo o eixo da militar teria oferecido, portanto, a viabilidade aos setores
dialética da dependência12. monopolistas ao agravar a dependência por meio de
uma acumulação de capital crescente ao mesmo tempo
Analisando o processo histórico da estratégia
em que ocorriam arrochos salariais e ampliava-se a
de substituição de importações no marco do pós-
desigualdade econômica no país. O subimperialismo
guerra, Marini afirmava que a industrialização latino-
estava atrelado a um tipo de capitalismo autoritário,
americana [e, sobretudo, a brasileira] integrava-se aos
implicando em subordinação econômica, concentração
setores monopolistas do imperialismo de modo que as
de renda e estratégia geopolítica expansiva.
suas economias permaneciam voltadas para o setor
externo, ao passo que a fragilidade do mercado interno Afinado ao trotskismo e ao pensamento de Rosa Lu-
pressionava os salários para níveis abaixo da capacidade xemburgo, Ruy Mauro Marini alicerçava tal formulação
de reprodução da força de trabalho. Ou seja, se o capital do subimperialismo no desenvolvimento desigual e com-
industrial em solo brasileiro não dependia dos seus binado do capitalismo e na necessidade de exportação
trabalhadores para que estes consumissem os bens de capitais, tal como defendia a ideia de revolução per-
industriais aqui produzidos, lhe era permitido pressionar manente, por meio da qual caberia aos trabalhadores,
para baixo os salários ao ponto que ficassem abaixo frente a uma burguesia nacional débil, empreender os es-
do nível necessário ao consumo básico médio dos forços para a superação da condição de dependência13.
trabalhadores. Por conta desse projeto político subjacente Marini esteve
sempre engajado politicamente, de modo que depois do
Somado à superexploração estava a própria
golpe, que interrompeu as atividades da POLOP, passou a
dependência tecnológica, pois para que ocorresse
integrar o MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária)
ganhos de produtividade necessários à competição no
durante o seu exílio no Chile, onde chegou a fazer parte
mercado internacional, fazia-se urgente o incremento na
do comitê central e participou ativamente do ambiente
composição orgânica do capital por meio da importação
que levou ao poder o socialismo democrático de Salva-
de maquinário, o que ampliava o endividamento em moeda
dor Allende. Com o golpe de setembro de 1973 parte para
estrangeira e a própria necessidade de exportação para
o México onde permanece até 1985, quando retorna ao
equilibrar a balança comercial. Para tanto, o Estado exercia
Brasil.
um papel crucial ao subsidiar os setores exportadores,
financiando diretamente os setores monopolistas, e A sua produção principal sobre o subimperialismo
ao garantir o investimento em infraestrutura e indústria brasileiro, a partir da qual Milton Santos estabelece a
de base que permitiam a formação bruta de capital. sua análise, conjuga os trabalhos 'Interdependência’
É na conjunção dos aspectos econômicos e políticos Brasileira e Integração Imperialista14, publicado na
que Marini forja a teoria do subimperialismo, pois a Monthly Review em 1965, Subdesenvolvimento e
perspectiva de resolver o problema da acumulação de Revolução15, originalmente publicado no México em
capital estava atrelada ao projeto geopolítico regional do 1969; e Subimperialismo Brasileiro16, também publicado
governo ditatorial brasileiro sobre o restante da América na Monthly Review em 1973. A importância desse
Latina, de forma que realizasse um subimperialismo conceito tem sido atestada recentemente pelo resgate
ou um imperialismo de “segundo grau” subordinado ao realizado por autores contemporâneos, como Raul
capital monopolista internacional.

11
O acirramento da discussão entre tais perspectivas se deu com a publicação por
parte de Fernando Henrique Cardoso e José Serra do artigo As Desventuras da ALMEYRA, Guillermo. “Ruy Mauro Marini”, em Pericás e Secco (Orgs.) Intérpretes
13

Dialética da Dependência, Estudos CEBRAP, nº 23, 1978. A resposta de Ruy Mauro do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados. (São Paulo, Boitempo, 2014).
Marini veio no artigo Las Razones del Neodesarrollismo (respuesta a F. H. Cardoso
y J. Serra), Revista Mexicana de Sociología, vol. 40, nº extraordinário, 1978. Apesar MARIANI, Ruy Mauro. Brazilian Interdependence and Imperialist Integration.
14

do combinado, Fernando Henrique Cardoso e José Serra não publicaram nos Estu- Monthly Review, vol. 17, nº 7, 1966.
dos CEBRAP a resposta de Marini, tal como este o fez ao publicar ambos artigos na
Revista Mexicana de Sociología, da qual era editor.
15
MARIANI, Ruy Mauro. Subdesarrollo y revolución. México D.F.: Siglo XXI, 1969.
MARIANI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependência. México D.F.: Ediciones Era,
12

1973. 16
MARIANI, Ruy Mauro. Brazilian Imperialism. Monthly Review, vol. 23, nº 9, 1972.

188
Nossos Clássicos

Zibechi17 e Virgínia Fontes18, tratando do protagonismo realidades urbanas e regionais. Desse modo, o seu diálogo
regional do Brasil e a força de setores da sua economia com Ruy Mauro Marini tem a preocupação de inserir no
em empreender a política imperialista de exportação debate tal dimensão espacial, a qual já vinha sofrendo
de capitais, a qual ganhou novo fôlego nos últimos 15 o seu escrutínio crítico em decorrência das teorias da
anos e merece ser analisada sob o quadro amplo do economia espacial que serviam para instrumentalizar o
desenvolvimento brasileiro atual. planejamento econômico nos países pobres da América
Latina e África. É ao partir dessas premissas, portanto,
que, ao tratar do subimperialismo de Marini, Milton Santos
o põe em equivalência à noção de país subdesenvolvido
Milton Santos e os Países Subdesenvolvidos industrializado.
Industrializados
Esse termo teria sido empregado pela primeira vez em
1971 no seu livro “Les Villes du Tiers Monde”21 e voltaria a
Como toda uma geração de intelectuais brasileiros, ser utilizado para uma análise da realidade brasileira em
Milton Santos também desenvolveu parte importante palestra proferida no período em que esteve em Toronto
do seu pensamento no exílio. Preso em 1964 quando como professor visitante, cujo texto transcrito faz parte da
presidia na Bahia a Comissão Estadual de Planejamento coletânea publicada em 1975, posteriormente traduzido
Econômico (CEP), onde estabeleceu contato aproximado como um dos capítulos do “Espaço e Sociedade”22,
com membros do Partido Comunista e com isebianos publicado em 1979. Milton Santos defende que o conceito
como Guerreiro Ramos e Candido Mendes19, Santos de país subdesenvolvido industrializado viria resolver um
partiu para o exílio na França ao conseguir com os amigos problema da “velha taxonomia político-geográfica23 que
franceses uma posição na Universidade de Toulouse. De lá põe de um lado os países industrializados e do outro os
parte para a Universidade de Bourdeux, e, posteriormente, países subdesenvolvidos, também chamados de “não-
para a Sorbonne, onde permanece até 1971. Depois industrializados”. De forma que a industrialização fosse
do período na França é convidado como pesquisador tomada como condição de desenvolvimento, haveria
visitante no Massachusetts Institute of Technology (MIT), agora países em que a industrialização existia apesar, ou
onde avança na redação do “O Espaço Dividido”, a qual é mesmo reforçava, o subdesenvolvimento, cujos exemplos
concluída no seu período em Toronto (1972-73)20. mais eminentes seriam àquela época Brasil, Argentina,
A década de 1970 é bastante profícua ao seu trabalho México, Índia, Egito e, talvez, África do Sul.
de compreensão da realidade do Terceiro Mundo ao Os países subdesenvolvidos industrializados seriam
circular não somente por universidades dos EUA e da marcados por uma industrialização dependente que se
Europa, mas também da América Latina (Universidade desdobraria em três aspectos: dependência tecnológica,
de Lima, no Perú; Universidade Central da Venezuela) e dependência das formas de organização da produção
da África (Universidade de Dar-es-Salaam), além do seu (monopólios) e dependência nas formas de organização
trabalho de consultor na Organização Internacional do espacial (concentrada e pontual). O aspecto espacial
Trabalho (OIT) e na Organização dos Estados Americanos é destacado, inclusive ao nível da definição do próprio
(OEA), que lhe permitiu realizar missões técnicas em conceito de país subdesenvolvido industrializado, já
diversos países africanos e latino-americanos. A sua que para o autor não basta a caracterização de matiz
análise do subdesenvolvimento centra-se nos processos econômica, mas, sobretudo, o aspecto da rede urbana,
de urbanização e sua crítica ao planejamento econômico pois “[o] nível de importância e complexidade alcançado
destaca a fragilidade do transplante teórico para os pelas suas metrópoles determina e espelha o nível de
países subdesenvolvidos de ideias concebidas segundo o industrialização de um país subdesenvolvido”24. Por
desenvolvimento econômico e espacial europeu e norte- conta disso, não bastam a quantificação e as tipologias
americano. industriais, o que interessa à análise é a integração
É nesse contexto que está o trabalho publicado no funcional e as conexões geográficas que permitem ir
Canadá, o qual, enquanto parte integrante do processo além dos enclaves industriais e permite a identificação
de pesquisa e redação de “O Espaço Dividido”, está do nível de aglomeração polarizadora que determina
preocupado com a realidade social e econômica dos a industrialização de um país subdesenvolvido.
países pobres, partindo, porém, de um olhar espacial, das SANTOS, Milton. Les Villes du Tiers Monde. Paris: Editions N. Th. Genin, Librairies
21

Techniques, 1971.
17
ZIBECHI, Raul. Brasil Potencia: entre la integración regional y um nuevo imperia-
lismo. Bogotá: Ediciones desde abajo, 2012. SANTOS, Milton. Brasil: país subdesenvolvido industrializado. Capítulo IX de Espa-
22

ço e Sociedade, Petrópolis: Vozes, 1979 (2º Edição, 1982).


FONTES, Virgínia Fontes. O Brasil e o Capital-Imperialismo: teoria e história. Rio
18

de Janeiro: Editora UFRJ, 2010. 23


Essa conceituação está inserida no mesmo contexto da análise do Sistema-Mun-
do, a partir da qual o sistema de Estados seria distinguido em centro, semi-periferia
CONTEL, Fábio Betioli. Milton Santos. In: Pericás e Secco (Orgs.) Intérpretes do
19
e periferia. Immanuel Wallerstein, “The Politics of the World-Economy: the States,
Brasil: clássicos, rebeldes e renegados. (São Paulo, Boitempo, 2014). the movement and the civilisations”, New York: University of Cambridge, 1984.
20
Ibidem, p. 398. 24
SANTOS, Milton. Espaço e Sociedade. 1982, p. 106.

189
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

A caracterização geral é, assim, resumida numa Ruy Mauro Marini ao identificar o papel do Estado
modernização e industrialização punctiformes, sua tarefa em três níveis, no subsídio direto do setor
dependentes e voltadas para o exterior. exportador, no investimento em infraestrutura e bens de
Sem o interesse de aqui esgotar a discussão capital que garantam os investimentos e na produção
empreendida pelo autor na época, destacamos a de bens intermediários. Nessa mesma lógica, a teoria
centralidade do conceito de período tecnológico, o qual da superexploração de Marini é consoante à teoria dos
precede a formulação daquele de meio técnico-científico dois circuitos da economia urbana de Milton Santos.
informacional25. Considerava-se que o período pós- O processo de modernização da economia, por meio
guerra seria desfavorável à industrialização dos países da industrialização voltada para fora, é viabilizada pela
subdesenvolvidos, tanto pelo domínio da tecnologia, superexploração da força de trabalho que passa a ter
situada nos centros econômicos, quanto pela lógica de recorrer ao circuito inferior da economia urbana
organizacional da produção em larga escala que para acessar os bens e serviços. Por isso que a ambos
favorecia a concentração e o monopólio. Os países circuitos, superior e inferior, são efeitos da modernização
subdesenvolvidos industrializados foram, portanto, no contexto subdesenvolvido.
aqueles que conseguiram antecipar a sua industrialização,
ainda que em marcos iniciais, para o período de transição Os pobres, na visão do nosso estudo, são aqueles que
não têm acesso, de modo regular, aos bens de consumo
do século XIX para o século XX. corrente considerados como o mínimo indispensável
numa certa sociedade. Muito raramente têm acesso
Países como Brasil, México, Índia, dentre outros, teriam
ao crédito institucional e representam o essencial da
se industrializado em duas fases distintas do período clientela dos pequenos estabelecimentos comerciais
tecnológico, em que na primeira as indústrias se organizam e artesanais, que oferecem crédito pessoal a taxas
usurárias. Trata-se, em geral, dos não-empregados e dos
espacialmente nas aglomerações que já ostentam as subempregados, mas também dos assalariados que
infraestruturas de transporte e de comércio, numa rede recebem muito pouco.28
urbana de estrutura piramidal (no caso do Brasil podemos
falar da “urbanização em arquipélagos”), ao passo que na Por fim, destaca-se o potencial interpretativo desse
segunda fase as condições dependem cada vez mais de período da obra de Milton Santos sobre a realidade do Brasil,
decisões externas ao país e, sob a tutela do investimento inserindo-se, desse modo, na tradição do pensamento
estatal, se voltam à exportação. A formação de enclaves social brasileiro que empreendeu grande esforço para
produtivos, dirigidos pelo estrangeiro e “autônomos” do compreender as grandes transformações que o país e a
resto da região ou do país reforçam o caráter punctiforme América Latina passavam no pós-guerra, período ainda
e dependente da industrialização. muito importante contemporaneamente, pois crucial para
O papel do Estado é destacado ao reforçar os fatores muito dos fatos que se sucederam nas décadas seguintes.
de concentração por privilegiar os setores monopolistas Uma análise mais minuciosa desse diálogo entre ambos
com os subsídios à exportação, enquanto os fatores de intelectuais se faz, contudo, urgente para que melhor
dispersão são restringidos pela capacidade limitada de identifiquemos a trajetória da Geografia no pensamento
consumo via mercado interno, decorrente do achatamento social brasileiro, bem como as condições contemporâneas
do poder de compra e as pressões sobre a massa salarial. sejam situadas em relação às teorias formuladas num
período que se impunha de forma dramática. Esperamos,
Isto explica porque, em uma situação de
finalmente, que essa tradução possa colaborar para que
subimperialismo, há um perfeito sinônimo entre, o debate do subimperialismo possa ser ampliado na
por um lado, monopólios e multinacionais, e por Geografia, além de atentar para a complexidade da obra
outro lado, macrocefalia e suas consequências:
desemprego,subemprego, marginalidade, terciarização de Milton Santos, em especial naquilo que se refere à sua
e o assim chamado “dualismo”26. reflexão sobre o Brasil.

Assim como defendido no início do capítulo sexto


de “O Espaço Dividido”27, o Estado apresenta-se como
aliado do circuito moderno da economia nos países
subdesenvolvidos. Aqui Milton Santos corrobora com

Para a discussão desses conceitos em Milton Santos ver O Período Tecnológico e


25

os Estudos Geográficos, em Revista do Departamento de Geografia da USP, vol. 4,


1985; e Espaço & Método, São Paulo: Nobel, 1985.

SANTOS, Milton. Subimperialismo, na visão de um geógrafo. GEOgraphia, v.19,


26

n.40, 2017, p. 180-184.

27
Milton Santos, O Espaço Dividido: os dois circuitos da economia urbana dos pa-
íses subdesenvolvidos, São Paulo: EDUSP, 2008, p. 161. 28
Ibidem, pp. 49-50.

190
Livros & Autores

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai./ago.

Livros & Autores

OBRAS DE DOREEN MASSEY

Spatial Divisions of Labor: social structures and the Space, Place and Gender. Minneapolis: University of
geographies of production. Nova York: Routledge, 1995 Minnesota Press, 1994.
(1984)
Part I. Space and Social Relations
1. The Issues
Part 2. Place and Identity
2. Social Relations and Spatial Organisation
Part 3. Space, Place and Gender
3. Uneven Development and Spatial Structures

4. Some Changing Spatial Structures in the Uni-


ted Kingdom Nesta importante contribuição ao pensamento
geográfico de seu tempo, Doreen Massey trabalha uma
5. The Effects of Local Areas: Class and Gender relação até então pouco aprofundada na Geografia: a
Relations relação entre espaço e gênero. Além disso, problematiza
6. Class, Politics and the Geography of Emply- abordagens teórico-conceituais de outros geógrafos,
ment como faz com David Harvey e Edward Soja no texto
intitulado Flexible Sexism. O livro é na verdade a reunião
7. The Reproduction of Inequality: A Questiono de artigos distintos, publicados em diferentes veículos
of Politics no período entre 1978 (“Industrial restructuring versus
the cities”) e 1992 (“Politics and Space/Time”). Seu
capítulo mais conhecido, divulgado através de várias
Primeira grande obra de Doreen Massey, numa outras publicações, é O sentido global de lugar, onde
abordagem marxista renovada, este livro provocou vivo apresenta sua famosa concepção de lugar como espaço
debate, antecipando questões que somente um tempo aberto, conexão de múltiplas redes, e onde a diferença
depois seriam devidamente consideradas. A própria decorre da especificidade dessas combinações muito
autora, no prefácio à segunda edição, destaca que mais do que da natureza dos fenômenos em si mesmos
sua formulação esteve ligada às grandes mudanças (artigo publicado em português em Arantes, A. 2000. O
econômicas e socioespaciais em curso, a partir da metade espaço da diferença. Campinas: Papirus, disponível em
dos anos 1960, especialmente no nível regional (que ela, http://www2.fct.unesp.br/docentes/geo/necio_turra/
genericamente, associa com o nível “subnacional”). A PPGG%20-%20PESQUISA%20QUALI%20PARA%20
questão do desenvolvimento espacialmente desigual é GEOGRAFIA/O%20ESPACO%20DA%20DIFERENCA%20
aprofundada a partir da realidade anglo-saxônica e, de -%20Arantes.pdf)
modo inovador, a divisão do trabalho é tratada também
na sua dimensão de gênero. Na segunda edição,
publicada onze anos após a primeira, são acrescentados
dois capítulos – o primeiro e o último no sumário acima
reproduzido.

191
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: jmai./ago.

For Space. Londres: Sage, 2005 / Pelo Espaço: uma nova World City. Cambridge: Polity, 2007.
política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2008.
Introduction: “the future of our world”?
Parte I. Estabelecendo o cenário
Part I. Inventing a world city
Parte 2. Associações pouco promissoras
Part II. The world in the country
Parte 3. Vivendo em tempos espaciais?
Part III: The world city in the world
Parte 4. Reorientações Concluding Reflections
Parte 5. Uma política relacional do espacial

Em seu último livro individual, Doreen Massey se volta


Segundo a própria autora, “o argumento fundamental para sua cidade, Londres, vista como Cidade Mundial –
deste livro é que importa o modo como pensamos o ou Global. Aqui ela aciona seu conceito de lugar como
espaço; o espaço é uma dimensão implícita que molda uma “constelação” identitária que problematiza o dentro
nossas cosmologias estruturantes. Ele modula nossos e o fora, como espaço aberto mais do que delimitado,
entendimentos do mundo, nossa atitudes frente aos receptivo mais do que exclusivo-excludente e sempre
outros, nossa política. Afeta o modo como entendemos em mutação. A partir daí ela trabalha questões como a
a globalização, como abordamos as cidades e que defende a possibilidade de “pensar a identidade do-
desenvolvemos e praticamos um sentido de lugar. Se no lugar [placed identity] não como uma reivindicação
o tempo é a dimensão da mudança, então o espaço é por um lugar mas como o reconhecimento da
a dimensão do social: da coexistência contemporânea responsabilidade inerente ao estar em um lugar [being
de outros. E isso é ao mesmo tempo um prazer e um placed]”.
desafio”. Trata-se da principal obra teórica da autora,
onde desenvolve sua tese do espaço como imbricação
de trajetórias, sempre em aberto, dotado, portanto, de
um grau de contingência e “eventualidade”, concepção
que tem claras consequências políticas, demonstrando Rogério Haesbaert
o quanto a autora defende a indissociabilidade entre
construção teórico-conceitual e ação política.

192
Resenhas

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai./ago.

Resenhas

GOMES, Paulo César da Costa. O lugar do olhar: elementos para uma geografia da visibilidade.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

Leonardo Name*
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)

Visibilizando potências e contradições do alguns de seus aspectos. Dizendo valorizar os quadros


“lugar do olhar” empíricos do saber geográfico com base no exercício
da observação e trazendo exemplos de várias artes,
Gomes dispõe-se a realizar uma análise geográfica da
organização espacial que intervém no interesse do olhar
e a indagar em que medida o espaço é um componente
Já faz mais de uma década desde que Gillian Rose
da produção e percepção de imagens – aqui darei mais
(2003), geógrafa com trajetória voltada a metodologias
atenção ao segundo ponto.
visuais, questionou a excessiva utilização de imagens
nos discursos geográficos. Segundo ela, a exibição A atuação de Gomes nesta temática é recente.1
indiscriminada seduziria a audiência, mas retiraria a Contudo seu reconhecido trabalho sobre espaços
autoridade da informação e da explicação geográficas públicos (Cf. Gomes, 2001 e 2002) nunca prescindiu de
de quem discursa. Na época, Felix Driver (2003) e James observação atenta de campo e, portanto, da visibilidade.
Ryan (2003) responderam à autora apontando que a Ademais, tais escritos ganharam projeção no mesmo
geografia desde suas origens valorizou a observação e momento em que Zeny Rosendahl e Roberto Lobato
produziu repertório bastante visual (mapas, desenhos e Corrêa, respectivamente na Universidade do Estado do
esquemas), atributos que lhe distinguiram das demais Rio de Janeiro (UERJ) e na UFRJ, faziam árduo trabalho
ciências modernas; e que mais importante que tentar voltado à divulgação e à valorização das geografias
controlar as imagens vinculadas à geografia, seria culturais anglo-saxã e francesa: desse rico contexto
compreender seus efeitos sobre o real e sobre o modo acadêmico fluminense sucedeu produção diversa em que
geográfico de se investigar os fenômenos; e fazer com se incluíam trabalhos pioneiros que propunham análises
que a disciplina, para isso, lhes dedicasse mais atenção relacionando espaços e imagens2 – tarefa que Gomes,
analítica.
1
O primeiro trabalho de Gomes tratando de imagens parece ser de 2008, sobre a
O livro O lugar do olhar: elementos para uma geografia cidade nos quadrinhos e em parceria com um orientando seu à época (Gomes e
Góis, 2008).
da visibilidade (2013), de Paulo César da Costa Gomes,
Dos muitos trabalhos de pesquisadores e pesquisadoras com filiação à geografia
professor e pesquisador do Departamento de Geografia
2

e que na década de 2000 atuavam no Rio de Janeiro, ver os de André Reyes Novaes
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), (2005 e 2010), atualmente docente na UERJ; Jorge Luiz Barbosa (2000 e 2013), à
época já docente na UFF; e Leo Name (2004 e 2013), hoje docente na UNILA. Cabe
foi publicado dez anos após este debate e tangencia
________________________________
*
Doutor em Geografia (UFRJ), Professor do Centro Interdisciplinar de Tecnologia,Infraestrutura e Território da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).
E-mail: leonardo.name@unila.edu.br

193
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

teórico erudito e interessado em cultura, depois se dispôs autor se apoia em certa morfologia que previamente
a também realizar – e cujo esforço culminou em O lugar designa o que é exibido e visto, ora valoriza certa lógica
do olhar. interna ao arranjo espacial que permite que existam
determinados pontos de vista. São proposições que
A obra parte da premissa de que há uma trama
efetivamente criam ótimas oportunidades de análise
locacional – arranjo físico de coisas, pessoas e
geográfica, mas que perdem de vista uma análise
fenômenos – da qual participam as imagens –
de imagens em circulação, o que poderia auxiliar na
representações visuais assentadas sobre diferentes
problematização a respeito dos graus de repetição de
suportes – e cujo desvelamento das coerências, lógicas
determinadas composições imagéticas e do porquê de
e razões é função específica da geografia. Participam
em cada contexto espaciotemporal algumas serem mais
desta trama locacional espacialidades que moldam
valorizadas que outras. Em outras palavras, poderia fazer
a visibilidade e suas imagens por meio de posições,
ver que a produção da trama espacial está relacionada
composições e exposições: a posição designa um ponto
a diferentes intencionalidades, imbricadas a redes de
de vista específico, que nos consente ver determinadas
poder que variam no tempo e no espaço.
coisas, objetos e pessoas que não veríamos de outro
ponto (ibid., p. 18-19); a composição é um conjunto Sente-se falta, também, de uma discussão sobre
estruturado de formas, cores ou coisas, i.e., o resultado algumas noções desenhadas por Walter Benjamin em
de uma junção estruturada de elementos, que produz seu mais notório trabalho (Benjamin, [1936] 1994).
algo novo e onde se tem um jogo de posições (p. 21- Escapa a Gomes que as imagens não só representam
22); finalmente, a exposição é definida por contexto ou determinados espaços como também fazem com
situação espaciais que, com base em uma classificação que se reproduzam tecnicamente, de forma seriada.
a priori, institui ou não a possibilidade de algo ser visto Escapa-lhe também a abordagem benjaminiana a
(p. 22). respeito do valor de exposição das obras de arte: no
passado relacionadas a práticas e espaços ritualísticos
Ante essas conceituações o autor apresenta
e não importando ou se proibindo sua exposição ao
possibilidades de investigação sobre três tipos de
público, elas foram crescentemente vinculando-se a
espaços: os espaços de apreciação de imagens, sobre
contextos de exibição, para finalmente se converterem
os quais se pode indagar quais arranjos espaciais e que
em imagens reprodutíveis e atingirem exacerbada escala
posicionamentos da audiência possibilitam mais ampla
de exponibilidade. Finalmente, quando Gomes (2013, p.
exibição; os espaços onde as imagens são produzidas,
55) pergunta-se sobre o porquê de em um museu um
cuja compreensão enseja pensar a respeito da posição do
extintor de incêndio não ser percebido como objeto de
olhar de quem produz as imagens, o contexto por detrás
arte, diferentemente de um quadro ou fotografia, está
dessa produção e a influência das técnicas sobre tudo
referindo-se à aura artística dos objetos, i.e., a uma
isso; e, finalmente, os espaços que nas imagens estão
“composição de elementos espaciais e temporais: a
representados, a respeito dos quais pode-se perguntar
aparição única de uma coisa distante, por mais perto que
por que alguns lugares parecem mais vocacionados
esteja” (Benjamin, op. cit., p. 170) – em outras palavras,
à apreciação como paisagens e à sua conversão em
certo deslocamento espaciotemporal destes objetos em
imagens.
relação a seus contextos originais de criação artística
Os aspectos potentes desta proposição teórica são,
(Cf. Name, 2004, p. 33-48; 2013, p. 59-66). Ou, ao modo
como se pode constatar, bastante visíveis. Em síntese,
de dizer de Gomes (2013, p. 59), infelizmente sem fazer
Gomes nos faz perceber que a visibilidade “depende da
menção a Benjamin: “reconhecemos também uma obra
morfologia do sítio onde ocorre, da existência de um
de arte pelo local em que ela está exposta, pela posição
público e da produção de uma narrativa dentro da qual
em que ela se encontra, seu contexto locacional, e pela
aquela coisa, pessoa ou fenômeno encontra sentido e
história que podemos associar a esse objeto”.
merece destaque” (p. 38). E referindo-se aos “regimes
Outra ausência que se pode sentir é o debate,
de verdade” propostos por Foucault, faz importante
promovido na revista Hérodote, que associou o conceito
discussão sobre a existência de regimes de visibilidade.
de paisagem à ideia de pontos de vista – tão caros à
Modulados pela espacialidade, para o autor eles fazem
abordagem de O lugar do olhar. Desde o final da década
com que se articulem diferentes posições, composições
de 1970, intelectuais como Maurice Ronai (1976) e
e níveis de exposição e se determine o que deve ser visto
Béatrice Giblin (1987) debateram a paisagem a partir de
ou mantido à sombra (p. 31): o quê e o como ver são,
duas compreensões associadas a respeito dos pontos
assim, tributários do onde ver (p. 52-53).
de vista, tanto no sentido locacional proposto por Gomes
Cabe apontar, contudo, que a construção de
– um ponto no espaço pelo qual se tem uma visão –
espacialidade na obra é um tanto atemporal: ora o
quanto no de um posicionamento ideológico sobre algo.
Nestes trabalhos apontava-se que as paisagens são
dizer que os livros de Barbosa e Name, derivados de suas respectivas teses de dou-
torado, são do mesmo ano de O lugar do olhar. instrumentos ideológicos, por um lado obtidos a partir

194
Resenhas

de uma seletividade ocular que revela ou oculta algo de quando ele comenta uma cena do filme Cidade de Deus3
acordo com determinada posição no espaço; por outro que, mostrando sob o mesmo ângulo e à mesma distância
por conta da espetacularização e da ilusão de harmonia uma sala de apartamento, revela em poucos segundos
que promovem, sobretudo quando em imagens do a transformação deste cômodo ao longo de décadas,
turismo, da publicidade e do cinema. no ritmo acelerado do crescimento e da consolidação
A trajetória de Gomes, por certo, não está associada do tráfico de drogas como atividade dominante nesta
às bases epistemológicas dos escritos benjaminianos comunidade carioca. Para o geógrafo, tratar-se-
ou da Hérodote, mas eles possibilitariam explicação ia de cena “antológica”, sobre a qual pergunta: “não
mais diacrônica do fenômeno da visibilidade, além de demonstraria essa cena de forma concisa e poderosa
uma explicitação da dimensão política das imagens. justamente a dependência dialética entre a organização
No entanto, o autor possui um posicionamento firme do espaço e a organização social? ” (p. 118).
quanto a isso, dizendo desconfiar de quem desconfia das Sobre essas afirmações não se poderia, ironicamente,
imagens: acusar a mesma “pretensiosa convicção” que Gomes
diz ver em alguns intelectuais críticos às imagens?
Aqueles que querem ver na exposição de imagens Afinal, para boa parte da audiência talvez o significado
um poder quase absoluto de convencimento e de
submissão dos espectadores são movidos, em sua dialético que ele vê na sequência de Cidade de Deus seja
maioria, por uma muito pretensiosa convicção. completamente despercebido; e provavelmente para
Acreditam que conseguem ver mais do que a maioria,
adivinham intenções, denunciam obscuros objetivos,
muitas pessoas – e devo dizer que esse é o meu caso –
rebatem qualquer outra possível interpretação. De fato, não haja muito a se indagar a um quadro antigo com uma
partem de uma posição de superioridade, se postam mulher sorrindo. Isto não faz com que quem olhe para
em um plano acima da visão e da compreensão
dos outros, a quem eles hipoteticamente atribuem as imagens do quadro ou do filme sem se exigir maiores
que aquelas imagens destinam a enganar. Só eles elucubrações seja ignorante, nem atesta que as análises
conseguiriam ‘ver’ as verdadeiras intenções nos
subterrâneos das narrativas. Há nesse comportamento
de Gomes e de especialistas em arte são equivocadas.
uma verdadeira “geografia” definida por uma posição No entanto, talvez revele que em O lugar do olhar, ainda
“espacial” que deixaria esse observador em vantagem que não intencionalmente, o autor faz diferenciação entre
para ver aquilo que os outros não enxergam, e dessa
posição privilegiada ele discursa e desvela aquilo que análises artísticas e análises políticas de imagens, sendo
sorrateiramente se esconde, invisível a todos os outros. que para ele somente as segundas parecem arbitrárias,
Dessa elevada posição, ele se coloca supostamente por possuírem bases ideológicas pré-determinadas, por
no mesmo plano daqueles que, interessadamente,
procuram se beneficiar da manipulação das imagens. isso passíveis de refutação.
O paradoxo dessa postura de superioridade é Creio não ser necessário explicar porque não se
maior quando esse observador diz ser movido pela
democratização do acesso aos verdadeiros sentidos, pode negar que interpretações filiadas a escritos e
contra as elites que produzem essas imagens cheias pressupostos da história da arte ou interessados em
de maldosas intenções – transformam assim suas
linguagens e técnicas artísticas também são, como
conjecturadas posições de superioridade nas de um
herói libertador. Recorrendo utilmente à metáfora quaisquer outras, movidas por interesses, visões de
do campo visual, podemos dizer que quando vistos mundo e intencionalidades – por ideologias, enfim...
sob esse ângulo, o que aparece com clareza nesses
“observadores” é o desprezo que sentem pela maior Assim, há contradições quando a acurada conceituação
parte das pessoas, imaginadas como inferiores e de Gomes a respeito de regimes de visibilidade,
incapazes de ‘ver com verdade’ (Gomes, 2013, p. 133-
instituintes e legitimadores de modos de ver e de regimes
134).
de verdade, entra em choque com uma crítica sua a
caminhos teóricos que visam a revelar justamente tais
Elegantemente, o autor não revela quem são seus
regimes de visibilidade e verdade.
alvos. No entanto, contraditoriamente algumas das
Ao se descartá-las, acusando-as de pretensiosas,
passagens de O lugar do olhar tornam esta sua crítica
corre-se o risco de também se jogar fora importantes
um tanto contraditória.
abordagens que, muito antes da geografia se interessar
Dois exemplos chamam mais atenção. O primeiro
pela análise de imagens, ajudaram a compreender
está nas páginas em que Gomes esmiuçadamente se
os efeitos que elas produzem sobre o real – uma das
detém nos argumentos de especialistas que tentam
indicações de Driver e Ryan apontadas no início deste
desvendar os “enigmas” por detrás da Gioconda pintada
texto. Mais especificamente, nos auxiliaram a ver como
por Leonardo Da Vinci em 1505. Desvelariam tais
espaços de determinados modos figurados em imagens
textos importantes dados sobre o sorriso de Monalisa e
de distintas mídias de fato várias vezes têm relação
sua paisagem de fundo: “o sorriso é efêmero” e faz “a
com intenções de poder – sejam de impérios coloniais,
passagem entre os dois lados da paisagem [no quadro]”,
de megacorporações internacionais, da geopolítica
sendo que “a ponte [na paisagem] revela o tempo que
internacional contemporânea ou do eurocentrismo
passa” – o tema do quadro, aliás, seria “o tempo que
transforma o espaço” (ibid., p. 73-78). O segundo ocorre 3
Fernando Meirelles e Kátia Lund, Brasil/França, 2002.

195
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.

racista, xenófobo e naturalizado no cotidiano, por


exemplo (Cf. Araújo, 2000; Dorfman e Mattelart [1972]
2005; Shohat e Stam [1994] 2006).
Ademais, se é desrespeitoso tentar trazer à luz
aspectos não tão visíveis ou inteligíveis da complexidade
do real, não seria também desrespeitosa a totalidade dos
discursos científicos, inclusive o modo geográfico de
se investigar os fenômenos? Mesmo concordando que
as ciências modernas não são as detentoras únicas da
produção do conhecimento, isto me parece temerário.
O “lugar do olhar” no qual Gomes se posiciona,
contudo, quer fazer ver as possibilidades de uma
metodologia para análise do fenômeno da visibilidade
e de suas imagens que seja baseada em categorias
espaciais e própria da geografia. Nesse sentido e a
despeito de suas contradições, O lugar do olhar é obra
inegavelmente de aportes que abrem o horizonte da
geografia e cujos objetivos são muito bem-sucedidos.

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