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Por um pensamento ambiental historico: O caso do Brasil

Regina Horta Duarte

Luso-Brazilian Review, Volume 41, Number 2, 2004, pp. 144-161 (Article)

Published by University of Wisconsin Press


DOI: https://doi.org/10.1353/lbr.2005.0005

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Por um pensamento ambiental


histórico: O caso do Brasil
Regina Horta Duarte

Through analysis of some environmental historical studies and their


methodologies, this article discusses how this literature can incorporate three
important epistemological issues of historical knowledge. Determinism is the
first epistemological process discussed, followed by the traditional tendency of
searching for historical origins. The third crucial point involves a discussion
of some relevant historical ontological premises.

A o debruçar-se sobre o estudo das sociedades do passado, o historiador


contemporâneo certamente sabe da impossibilidade de interpretações ou
análises que suprimam a particularidade do lugar de onde ele fala e do domí-
nio no qual realiza sua investigação. Como afirma Michel de Certeau , o gesto
do historiador liga suas idéias aos lugares sociais de onde fala, sendo a histó-
ria uma operação que articula um lugar social, uma disciplina do conheci-
mento e a construção de um texto. A história é, assim, parte da realidade da
qual ela trata, e “toda pesquisa historiográfica se articula a um lugar de pro-
dução sócio-econômico, político e cultural.”1 Nessa perspectiva em que o co-
nhecimento histórico se assume como uma operação, portanto, como uma
prática, esvai-se qualquer presunção de uma história total, que pudesse com-
preender e explicar exaustivamente as sociedades passadas. Fortalece-se o
pressuposto de que a história é sempre uma história para nós, para o pre-
sente, cujo objetivo é compreender e transformar. O projeto de elucidação
das formas passadas de existência de outras sociedades adquire pleno sentido
como parte do projeto de elucidação de nossa própria existência, inseparável
do nosso fazer atual, numa interpretação do passado mesclada à considera-
ção de “um porvir que deve ser feito por nós.”2

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ISSN 0024-7413, © 2005 by the Board of Regents
of the University of Wisconsin System

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Nesse sentido, acredito que a compreensão do interesse crescente dos


historiadores brasileiros pelos temas ambientais e do surgimento de uma
tendência de pesquisa direcionada pela busca de uma inserção na chamada
história ambiental deve ser guiada pelo exame do lugar social em que essas
pesquisas começam a ser realizadas.
A historiografia brasileira conta com uma fértil tradição de análise histó-
rica em que as relações entre a sociedade e natureza encontram-se privilegia-
das, exemplificada por trabalhos magistrais como Capítulos de História Colo-
nial (1907), de Capistrano de Abreu; Monções (1946), Caminhos e Fronteiras
(1957) e Visões do Paraíso (1959) de Sérgio Buarque de Holanda e Formação do
Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior. Esses importantes histo-
riadores brasileiros incorporaram a consideração das variáveis ambientais
como parte das condições sociais. Relacionaram fortemente a sociedade, a
cultura e a natureza, pensando como as relações dos homens com a natureza
são indissociáveis das relações que os homens mantém entre si. Refletiram
sobre como o diálogo com a natureza se amalgamou às percepções, valores,
leis e costumes dos homens. Construíram análises históricas baseadas no es-
tudo das práticas materiais da sociedade brasileira. Tais obras precisam ser
valorizadas na construção de uma nova historiografia ambiental brasileira
pela grande contribuição que representam, tanto pela impressionante pes-
quisa documental, como pela sofisticação teórico-metodológica.3
A sensibilidade ambiental presente nas obras desses importantes autores
foi obscurecida pela emergência de outros debates nos meios intelectuais
brasileiros, nas décadas de 60 e 70. Esses foram anos duros na história da
nossa sociedade, marcados pela ditadura militar, pela censura, pela violência
e cerceamento dos direitos políticos. Nessa situação limite, a questão ecoló-
gica aparecia nos meios intelectuais e acadêmicos como um tema de exclu-
sivo interesse do chamado Primeiro Mundo, como se esses problemas só
fizessem parte de um patamar superior de preocupações. Apesar da emer-
gência dos movimentos ecológicos internacionais, a relação com a natureza
foi muitas vezes considerada como uma temática secundária frente à miséria,
ao analfabetismo, ao desemprego, à falta de moradia e, principalmente, diante
da ausência de democracia no Brasil. O governo militar brasileiro, por sua
vez, rejeitou as propostas de conservação em Estocolmo, 1972, em consonân-
cia com representantes de outros países pobres, como Indira Gandhi que
apontou a pobreza como “a pior poluição.”4
Na mesma época, em países da Europa e nos Estados Unidos, os movi-
mentos ambientalistas já assumiam uma organização sistemática, incluindo
formação de partidos verdes e a ação de entidades não-governamentais,

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como o WWF (1961) e o Greenpeace (1971). Muitos interpretaram esse pio-


neirismo como decorrência do refinamento dessas sociedades, cuja riqueza
garantiria uma situação pós-materialista, ou seja, livre da preocupação com
necessidades mais urgentes. Movimentos ocorridos em países da América
Latina, África e Ásia, contrariam essa hipótese ao delinear um verdadeiro
“ambientalismo dos pobres,” combativo e afinado às condições de vida e tra-
balho de suas populações, sem necessariamente lançar mão de linguagens
ambientalistas: lutas de populações de vilarejos do Peru contra a poluição
das águas ou do ar por grandes companhias, protestos de populações indíge-
nas da periferia de Quito contra o despejo do lixo, recusa de comunidades da
ilha de Chiloé contra a empresa florestal Golden Spring, campanha contra as
represas de Narmada, movimento contra florestas comerciais em Chipko,
oposição contra a Shell na Nigéria, e tantos outros.5
A ascensão das ONGs também se apresentou como um elemento impul-
sionador das questões ambientais, engrossadas por militantes de esquerda e
pelo trabalho pastoral. Nas academias, trabalhos escritos em tom de denún-
cia realizaram narrativas de pilhagem, por onde riquezas se esvaíam pelas
“veias abertas da América Latina.” Curiosamente, instituições financeiras in-
ternacionais credoras de países pobres, como o BID e o Banco Mundial pas-
saram a condicionar seu apoio ao respeito a cláusulas de conservação, devido
à ascensão internacional das exigências ambientais. A difusão de propostas
de ecodesenvolvimento, conceito proposto por Ignacy Sachs, ocorreu através
da criação do Centro de Ecodesarrollo, no México, no início dos anos 70, al-
cançando países como Colômbia, Brasil e Venezuela (primeiro país do conti-
nente a instituir um ministério de ambiente, em 1978).6
O ambientalismo nesses países trouxe a emergência de outros debates,
além das propostas pacifistas e anti-nucleares enfatizadas pelos movimentos
ambientalistas europeus ou da ênfase na preservação e contestação do antro-
pocentrismo tão presentes nos EUA e na Austrália. Ativistas indianos e latino
americanos acrescentaram o questionamento do autoritarismo, tantas vezes
presente nas políticas ambientais impostas por organismos internacionais e
pelos governos, denunciando um verdadeiro “imperialismo verde” e propug-
nando a necessidade de uma etnoconservação oposta ao “mito de uma natu-
reza intocada.”7
Também a sociedade brasileira viveu uma intensa movimentação social
entre fins dos anos 1970 e início dos 80, com a ascensão de lutas dos operá-
rios, das mulheres, dos negros, dos seringueiros da Amazônia e da liderança
de Chico Mendes, da defesa dos direitos indígenas, da luta das mulheres nor-
destinas em defesa das plantações do babaçu, da constituição de movimentos
sociais ecológicos e também, last but not least, do delineamento de novas per-
cepções culturais e diferentes atitudes e interação com o meio ambiente.

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Em 1986, pela primeira vez no Brasil, os ecologistas se envolveram nas


disputas eleitorais, reunidos no Partido Verde. Simultaneamente, os mem-
bros do Partido dos Trabalhadores propunham um sentido político para as
lutas ambientais, enfatizando a necessidade de se falar de um “inteiro am-
biente,” com a inclusão dos aspectos sociais e políticos no debate ecológico. A
Constituição de 1988, elaborada por parlamentares democraticamente elei-
tos, dedica um capítulo inteiro às questões ambientais, inaugurando uma
nova e ousada perspectiva de luta ecológica no Brasil, ao instituir mecanis-
mos de controle diretamente relacionados à atuação da sociedade, rom-
pendo assim com uma longa tradição de atribuição da defesa do meio am-
biente à ação exclusiva do Estado.8 Nesse cenário de mudanças, a organização
da Rio-92 e do Fórum Social Mundial, realizado anualmente em Porto Alegre
desde 2001, trouxeram ainda grande ressonância do debate ambiental inter-
nacional no seio da sociedade brasileira. Há que se considerar ainda a esco-
lha, pelo presidente Lula, de Marina Silva—filha de um seringueiro do Acre e
companheira de lutas do líder assassinado Chico Mendes, considerado um
dos ícones do ambientalismo mundial—para a pasta do Ministério do Meio
Ambiente, desde janeiro de 2003. No processo de constituição de uma verda-
deira “Era da Ecologia,” o Brasil não apenas apresentou-se como ator, mas
certamente também como uma referência no cenário internacional.9
Se a ascensão dos movimentos sociais ecológicos mostra-se essencial para
a compreensão da sociedade brasileira nas últimas décadas, torna-se impor-
tante também sublinhar o ambientalismo como algo que ultrapassa a ação
dos ecologistas e certamente aponta para a constituição social, cultural e his-
tórica de novas percepções sobre a natureza e novas formas de interagir com
ela, processo em que os movimentos sociais ambientalistas são uma das
expressões de novas sensibilidades ou de novas “racionalidades ecológicas.”10
A historiografia brasileira dedicada às análises das interações entre as socie-
dades e a natureza ao longo do tempo pode ser então pensada como uma das
inúmeras práticas constituintes de uma nova postura cultural desta socie-
dade em relação ao seu meio ambiente.
Nesse entrecruzamento de práticas sociais renovadas, a temática ambien-
tal se faz cada vez mais presente na historiografia contemporânea brasileira
e certamente se constitui no debate do historiador com seu tempo, mesmo
que uma boa parte das obras em que o tema é tratado não se apresente
como uma história ambiental. Certamente tal postura se faz também em
diálogo com os acontecimentos internacionais, marcados por uma profunda
crise global, pelo questionamento do desenvolvimentismo, por grandes de-
sastres ambientais, pela ascensão de movimentos ambientalistas e pelo sur-
gimento de uma historiografia norte-americana e européia dedicada aos te-
mas ambientais.11

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Em 1991, a revista “Estudos Históricos” lançou o dossiê “História e Natu-


reza,” com textos de Donald Worster, José Augusto Drummond e Warren
Dean. Foram publicados alguns importantes trabalhos sobre a Mata Atlân-
tica, como “Floresta da Tijuca, natureza e civilização,” de Cláudia Heyne-
mann (1995), “A Ferro e Fogo—a história e a devastação da Mata Atlântica
Brasileira,” de Warren Dean (1996), “Devastação e preservação ambiental no
Rio de Janeiro,” de José Drummond (1997). Outros trabalhos se debruçaram
sobre as representações da natureza tropical brasileira criadas nos relatos de
viajantes, como “A Nova Atlântida de Spix e Martius, natureza e civilização
na Viagem pelo Brasil (1817 –1820), de Karen Macknow Lisboa(1997), ou
sobre uma extensa tradição crítica luso-brasileira frente aos aspectos preda-
tórios da ocupação do Brasil, desde o século XIX, focalizada no estudo “Um
sopro de destruição—pensamento político e crítica ambiental no Brasil
escravista (1786 –1888),” de José Augusto Pádua (2002). Recentemente, mais
duas revistas de história dedicaram dossiês ao tema da natureza, a “Revista
de História” da PUC-SP (2002), e a “Varia Historia” da UFMG (2003).
Entretanto, se a história se faz no diálogo com seu tempo, possui, si-
multaneamente, um caráter muito específico—o de dedicar-se ao estudo do
passado—diferenciando-se assim das outras ciências humanas. Nesse debate
tão amplo e urgente sobre o meio ambiente, o historiador necessita da geo-
grafia, dos estudos climáticos, dos saberes da biologia, da ecologia, da geolo-
gia, e tantos outros campos do conhecimento. Nesse intenso diálogo, o que
distingue a história dedicada ao estudo das relações entre o homem e a natu-
reza de todas as outras ciências ambientais, garantindo que ela se apresente
como um campo do conhecimento diferenciado? Em que se funda a especifi-
cidade do saber histórico na constituição de uma história ambiental obriga-
toriamente interdisciplinar? Como serão enfrentados os perigos de dissolu-
ção epistemológica e os riscos de uma história sem identidade?12
Somado a tudo isso, é importante notar que, apesar da existência de al-
guns estudos, como apontei acima, pouquíssimos historiadores brasileiros se
dedicaram a esta área. Muito do que se escreveu sobre o meio ambiente no
Brasil reside em preciosas análises de cientistas políticos, sociólogos, antro-
pólogos e geógrafos, como Milton Santos, Aziz Ab Saber, Ricardo Arnt, An-
tônio Carlos Diegues, e outros.13 Minha hipótese é a de que os historiadores
serão capazes de oferecer uma contribuição original aos estudos ambientais,
à medida que enfrentarem alguns temas epistemológicos decisivos na refle-
xão da disciplina histórica. Certamente não se deseja afirmar a história como
“província” ou “jardim” exclusivo dos historiadores strictu sensu.14 Mas
torna-se importante situar o metier do historiador, até porque para que
exista diálogo são necessários diferentes interlocutores. Surgem aqui algumas
questões a serem analisadas. O determinismo aparece como uma primeira
questão epistemológica, seguido da tradicional tendência histórica à busca de
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origens. Finalmente, os pressupostos ontológicos da história apresentam-se


como terceiro item a ser debatido.

1. História, natureza e determinismo


Um dos grandes marcos da reflexão sobre a natureza no Brasil é a publicação
de “Os Sertões,” por Euclides da Cunha, em 1901. Dedicado à análise exaus-
tiva da campanha contra Canudos, cidadela construída em pleno sertão por
um movimento milenarista, esse livro privilegiou as relações entre a geogra-
fia e a história, com pressupostos claramente ancorados em Ratzel, explo-
rando fatores ambientais, ecológicos e étnicos sob a perspectiva da antropo-
geografia. A primeira parte de “Os Sertões” enfoca a terra, com minuciosas
análises sobre a geologia, o clima, a paisagem, o regime de chuvas, a vegeta-
ção e as conseqüências da ação humana sobre o ambiente da caatinga, cená-
rio onde se desenrolou o sonho milenarista e sua repressão pelas tropas do
governo republicano. Após uma segunda seção sobre as raças, segue-se a nar-
ração detalhada dos eventos. O autor argumentava como a variabilidade
do meio físico refletia-se na história da região, preparando o advento de sub-
raças e atuando sobre as sociedades constituídas, moldando os homens como
representantes naturais do meio em que nasceram.15
Essa perspectiva influenciou toda uma geração de intelectuais brasileiros,
nos anos 1930 e 1940, que considerava Euclides da Cunha como um naturalista
que via “a Natureza como ela é, cheia de entrelaços e entrefolhos, que a ciência
mal pode separar.”16 Delineava-se a construção da natureza como uma reali-
dade primordial e essencial, algo mais verdadeiro sobre o qual a sociedade hu-
mana se desenvolveria, estabelecendo uma matriz interpretativa determinista
das relações entre sociedade e natureza no Brasil, com complexos desdobra-
mentos em uma concepção orgânica do Estado, em novas configurações da
mitologia da identidade tropical da Nação, seus desafios e seu destino.
Outra vertente do pensamento brasileiro subordinou o entendimento da
história dos mais variados aspectos da nossa sociedade a ciclos econômicos
definidos pela inserção forçada em uma lógica exclusivamente externa e inter-
nacional, na seqüência dos domínios português, inglês e norte-americano.17
Delineou, ao mesmo tempo, uma ordem da exploração de seus recursos na-
turais, como o pau-brasil, no século XVI, o ouro, no século XVIII, além do
esgotamento da terra pelos plantios da cana de açúcar, na região nordeste,
desde o XVII, e do café, na região sudeste, a partir do XIX. Estaríamos assim,
determinados por uma lógica inexorável de ciclos veiculados à divisão inter-
nacional do trabalho, como que traídos justamente pelas nossas exuberantes
riquezas naturais e abundância de terras agriculturáveis.
Nossa história ambiental passa a ser uma seqüência de destruições, como
exemplifica um dos primeiros livros de história ambiental sobre o Brasil, cuja
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tradução para o português alcançou grande ressonância, escrito pelo norte-


americano Warren Dean. “A Ferro e Fogo” narra a história da Mata Atlântica
através do desfile cronológico das mazelas, ganância e imprevidência da so-
ciedade brasileira, levando o autor a defender a obrigatoriedade de ensino,
pelos manuais escolares, do verdadeiro holocausto da Mata Atlântica.
Entretanto, a perspectiva do homem unicamente como um elemento
destruidor acaba por sintonizar-se à arraigada oposição entre a sociedade e a
natureza, na qual o homem, para criar a cultura, afasta-se do meio natural,
usando os seus recursos como uma espécie de armazém.18 Não nos espreita-
ria aí, dissimulado, o pressuposto de incompatibilidade, em que a ocupação
humana é sempre vista como a causa da destruição e o homem aparece como
o único grande erro da natureza?19 Finalmente, não se reforçaria um traço
marcante da autoconsciência ocidental moderna, com matrizes hobbesianas,
em que o homem se percebe como um ser naturalmente competitivo, econô-
mico, belicoso e destrutivo que o contrato social deve conter através de regras
estabelecidas?20 Como substituir uma história antropocêntrica por uma his-
tória antropofóbica?
É improvável que a história da sociedade brasileira seja o mero desenrolar
de um processo linear e crescente de destruição. Isso tem sido esclarecido por
novas abordagens historiográficas que, sem deixar de considerar a realidade
de uma herança de devastação, nem de refletir sobre as implicações de tal
fato, resgatam outras tradições culturais e outros aspectos das condições
históricas.
Em um instigante estudo sobre as atividades madeireiras no Brasil colo-
nial e os efeitos da política monopolista da Coroa Portuguesa, Shawn Miller
busca outro caminho que não o da crônica de destruição. Constatando que a
extinção das florestas não caminhou passo a passo com a abertura de terras
agriculturáveis, o autor lança a indagação sobre o papel dos recursos flores-
tais na acumulação de capital e riqueza dos colonos residentes no Brasil,
mostrando que ele foi praticamente inexistente. Construir uma história de
mão dupla implica necessariamente na consideração do fato que, para aque-
les colonos, a questão não era a da destruição da floresta, mas a de sua utili-
zação. Não há sentido, portanto, em culpá-los ou mesmo criminalizá-los,
numa perspectiva certamente anacrônica, já que comprometida com os ter-
mos e valores do ambientalismo moderno. Miller critica ainda a visão de
Dean segundo a qual haveria uma absoluta ignorância sobre as variedades
de espécimes vegetais e do seu valor: fontes documentais, tais como relatos
de naturalistas e documentos dos séculos XVII e XVIII, evidenciam como os
colonos, muitas vezes filhos de Europeus e povos nativos, possuíam íntimo
conhecimento sobre as florestas e suas árvores.
O monopólio português teve como conseqüência o fato de que a aniquila-
ção das madeiras de lei se tornou uma escolha mais racional para os colonos
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do que sua conservação, já que lhes era vedado qualquer exploração legal das
reservas. A comparação da destruição das florestas no Brasil com o ocorrido
em outros locais, como a Nova Inglaterra, contrapõe-se às afirmações de
Warren Dean de que os colonos luso-brasileiros teriam demolido a floresta
em níveis e dimensões sem paralelos em toda a história. O autor mostra ainda
como inúmeras recomendações, representações e ensaios, alguns deles anô-
nimos, denunciaram os danos causados pelo monopólio das madeiras pela
Coroa Portuguesa e propuseram outras práticas onde a destruição inútil das
madeiras seria evitada. Através da crítica ao determinismo e ao anacronismo
das interpretações obcecadas pela denúncia da destruição, Miller abre um
novo caminho para as análises sobre a natureza e a sociedade no Brasil, ressal-
tando que “a História, como a experiência, é uma professora refinada, mas
apenas se mantivermos em mente como o passado é diferente do presente.”21
O trabalho de Abreu Castro sobre o Brasil Colonial também demonstrou
como as atitudes em relação ao meio natural eram heterogêneas, pois alguns
portugueses e colonos luso-brasileiros, críticos das práticas imprevidentes de
muitos de seus contemporâneos, criaram formas de manejo de algumas es-
pécies arbóreas, em muitos pontos do território da então colônia do Brasil. O
autor conclui que o desmatamento em larga escala de algumas áreas da Mata
Atlântica, como no caso de uma extensa área no sul da Bahia, é muito recente
em nossa história, datando principalmente da década de 1940.22
José Augusto Pádua realizou um importante resgate de uma tradição
reflexiva—e certamente, bastante heterogênea—sobre a natureza do Brasil,
em textos publicados, entre 1786 e 1888, por naturalistas, médicos, artistas,
políticos e abolicionistas. O autor argumenta que o ambientalismo moderno
se constituiu na intensidade dos contatos entre a Europa e o mundo tropical,
evidenciando a singularidade da experiência histórica brasileira na constitui-
ção de novas sensibilidades. A condição periférica colonial e pós-colonial do
Brasil não impediu ou “atrasou” a emergência de uma nova postura em rela-
ção ao meio natural, mas antes se mostrou essencial para sua gênese no
mundo moderno. A visibilidade dos efeitos da devastação aliada aos saberes
científicos dos intelectuais formados na Universidade de Coimbra fez desses
atores sociais, habitantes do mundo tropical, observadores privilegiados das
mudanças no solo, nos rios e no clima, assim como do desaparecimento dos
espécimes. Nessa perspectiva, o autor afasta-se das matrizes explicativas em
que a história do Brasil é contada a partir da lógica européia . Conclui, tam-
bém, como a destruição da natureza foi considerada, por muitos atores his-
tóricos, como o preço do atraso, e só o período do pós-guerra, em fins dos
anos 1940, traria a vitória completa da idéia de que a destruição da natureza
seria o “preço do progresso.”23
José Luiz de Andrade Franco realizou ainda uma cuidadosa releitura das
práticas científicas de biólogos de instituições de pesquisas brasileiras, entre
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os anos 1920 e 1940, mostrando sua atuação como grupo relativamente coeso
e organizado em torno de ações pela proteção da natureza. Afinando-se ao
discurso nacionalista então predominante, estes cientistas obtiveram alguma
penetração na sociedade civil através de ações educativas no Museu Nacional
e atividades de várias associações então fundadas, como a Sociedade dos
Amigos das Árvores, a Sociedade dos Amigos da Flora Brasílica, a Sociedade
dos Amigos de Alberto Torres, dentre outras. Sua pressão obteve alguns re-
sultados, como as primeiras leis de proteção ambiental e a realização da Pri-
meira Conferência de Proteção à Natureza, assim como algum espaço junto
às instâncias decisórias do governo. Encontraram, entretanto, fortes limites
quando da instalação da ditadura do Estado Novo, em 1937.24
Essas pesquisas acabam por assumir um importante papel na reflexão so-
bre a nossa história, já que trazem à luz muitos acontecimentos e discursos
perdidos, mostrando a multiplicidade de possibilidades em nosso passado, a
heterogeneidade do que era apresentado como único e, principalmente, per-
mitindo a consideração de afrontamentos entre várias tendências no devir
histórico. A cada momento do passado, o futuro apresentava-se indetermi-
nado e era algo a ser construído.25 Por outro lado, tais análises evidenciam o
importante fato de que a história ambiental—renovada pela busca da com-
preensão de como os humanos foram afetados pelo meio ambiente ao longo
do tempo e, simultaneamente, como os humanos afetaram o meio ambiente
e os resultados disso—deve ser revigorada pela premissa de que as relações
dos homens com a natureza são indissociáveis das relações que os homens
mantém entre si ao longo do tempo.

2. História ambiental e busca de origens


Marc Bloch lamentou o esquecimento da sabedoria oriental de um antigo
provérbio árabe, segundo o qual “os homens parecem-se mais com o seu
tempo que com os seus pais.” Se for certo que a história se faz no diálogo dos
homens com seu tempo, é também importante ressaltar que o historiador não
pode deformar o passado pela projeção de suas próprias categorias. Afinal, é
justamente a história o saber que deve conjurar a quimera da origem, aquela
que desenrola fios do passado tão somente para tranqüilizar nossas escolhas
presentes e dar a elas um verniz de verdade inquestionável, porque eterna.
Esse é o caso da idéia da natureza como imperativo moral, como mostra
Willian Cronon, em que se pressupõe a existência de uma forma natural se-
gundo a qual o mundo é regulado em caráter “inato, essencial, eterno, inego-
ciável.” Nesse tipo de lógica, a natureza se torna uma autoridade moral, uma
deidade secular—origem, justificativa e razão de tudo. Também a idéia da
natureza como uma realidade pura, completamente autônoma dos contextos
históricos e culturais, onipotente e imutável em qualquer tempo e espaço,
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implica, “sem muita reflexão, que a natureza é Uma Coisa com Um Nome,
um monólito que pode ser descrito holisticamente da mesma maneira como
Deus o é” na cultura ocidental cristã.26
Alguém poderia ainda apontar a existência de um fator biológico trans-
cendente ao tempo histórico no fato de o homem sempre ter modificado a
natureza, retirando dela o seu sustento. Entretanto, o rol das necessidades
biológicas não é partilhado apenas pelas sociedades humanas, mas são co-
muns a todos os seres vivos. Nisso os homens não diferem das focas, dos pás-
saros, ou das árvores. O essencial das sociedades humanas e o que elas com-
partilham, diferenciando-se dos outros seres vivos, é o fato de se instituírem
criando cultura, significando o mundo a seu redor e agindo em sua transfor-
mação. Ao fazer isso, os homens extrapolam suas necessidades biológicas, in-
ventando inúmeras outras.27
A obsessão pelas origens, tão comum como indesejável entre os que se
dedicam à história, acaba por ser a busca de um começo que explica o pre-
sente, justificando-o ou condenando-o, sendo o “demônio das origens ape-
nas um avatar daquele outro satânico inimigo da verdadeira história: a
mania de julgar.”28 Aqui se delineia, portanto, uma segunda questão episte-
mológica essencial para a constituição da história ambiental brasileira, para
que, constituindo-se em um diálogo com nossa contemporaneidade, não se
constitua como a busca da origem das nossas percepções ambientais atuais,
nem se erija como base para julgamentos morais—positivos ou negativos—
das práticas dos vários atores, ao longo dos quinhentos e poucos anos de
nossa história, em relação ao meio natural.
Ao comparar diversas sociedades, deparamos com inúmeros exemplos de
práticas que resultaram em destruição ou conservação da natureza. Esses as-
pectos não podem, entretanto, servir como um fio condutor de uma narrativa
histórica linear. Na busca de origens da consciência ecológica, construiu-se a
imagem das populações indígenas como possuidoras de uma relação originá-
ria e idealizada com o meio ambiente, numa verdadeira naturalização desses
povos com sua “absolvição ecológica,” como se sua cultura não representasse
o consumo de recursos naturais e provocasse mudanças (esse discurso, para-
doxalmente, ao tentar “defender” os índios, acaba por negar-lhe a própria
condição humana). Por outro lado, não podemos nos esquecer que muitas so-
ciedades indígenas construíram relações sociais baseadas em esquemas de re-
ciprocidade com o seu entorno, absolutamente diversas da lógica capitalista,
na qual a produção envolve a subordinação de tudo ao desígnio humano.29
Outras vezes, a análise de vertentes críticas na sociedade brasileira se deu
pela busca das origens do pensamento ecológico atual e das políticas am-
bientais contemporâneas. Sob esse prisma, são interpretadas como etapas,
ainda que limitadas e mesmo frustradas, de um processo que só o presente
tornou visível, surgindo como tentativas embrionárias de implantação de
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uma política ambiental adequada. Como exemplo, podemos citar a recor-


rente atribuição de um sentido preservacionista às leis portuguesas de 1605 e
1797 de controle da exploração do pau-brasil. Entretanto, as restrições não
possuíam o sentido de uma regulamentação ambiental. Desejava-se simples-
mente reservar os benefícios do comércio da madeira à Coroa Portuguesa e
seus concessionários.30
Abandonar o mito da busca das origens é instaurar a possibilidade de que
o saber historiográfico sirva ao nosso diálogo com o passado e à possibilidade
da transformação do nosso presente.

3. Natureza e devir
Chegamos assim ao terceiro ponto e último ponto desse debate. O conheci-
mento histórico evidencia a importância de uma reflexão ontológica que ori-
ente o estudo do passado. Definido como “ciência dos homens no tempo,”
constitui-se como um saber sobre a duração e, principalmente, sobre a cons-
tante mudança.31 A história ambiental tem discutido amplamente a necessi-
dade do abandono do dualismo entre a sociedade e a natureza, buscando
uma nova compreensão de uma relação entendida para além de uma mera
influência do meio sobre os homens ou vice-versa. Se considerarmos a socie-
dade e a natureza em seu devir histórico, percebemos que as significações e os
simbolismos construídos acerca da natureza são tão dinâmicos e mutáveis
como as identidades que as sociedades constroem para si. Não existe a natu-
reza, objeto fixo e imutável, estável e estabelecido, entidade de sentido trans-
histórico.32 Para o historiador, importa o que as diferentes sociedades insti-
tuíram e significaram como sendo a natureza, a forma como representaram a
paisagem, as florestas, a fauna, a proximidade dos rios ou a escassez da água,
as doenças que as atingiram, as catástrofes naturais. Mas também interessa
como as sociedades deram respostas diferentes às condições do meio natural
e como dele se apropriaram, modificando-o.33
A consideração da natureza como uma idéia humana não deve implicar,
como alerta Cronon, , em um relativismo segundo o qual o mundo não hu-
mano seria irreal ou mero reflexo de nossa imaginação. Poderia se concluir
ainda que, sendo tudo uma interpretação, qualquer visão seria tão válida ou
aceitável como qualquer outra. A natureza é uma realidade inegável, mas é
também um “terreno de debate” (contested terrain) no qual se enfrentam
concepções diversas, cada uma delas se apresentando como universal e mais
verdadeira. Apresentar a idéia de natureza como um conceito historicamente
construído não implica em concluir que a natureza seja apenas uma idéia.
Não se trata de substituir uma perspectiva objetivista por outra subjetivista,
mas sim de pensar nas relações humanas em que se constituem formas de
pensar e agir sobre o mundo natural. Tais práticas pertencem ao nosso
tempo, nosso espaço e nossa cultura.34

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A clássica obra de Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso, publi-


cada em 1959, é um exemplo pioneiro dessa problemática, ao discutir os sim-
bolismos que constituíram uma natureza edênica no Brasil colonial, nos sé-
culos XVI e XVII. Obras recentes também trazem análises agudas sobre essa
historicidade, como no caso do estudo de Heynemann sobre a Floresta da Ti-
juca, plantada no Rio de Janeiro entre 1861 e 1874 por ordens de D. Pedro II,
exemplificando um processo de reificação da natureza, expresso na idéia de
sua utilidade, nos esforços de ereção de um conhecimento silvícola, mas tam-
bém na inscrição da floresta e suas paisagens em uma história nacional.35
Ao estudar as investigações sobre a natureza no Brasil colonial do século
XVIII, Prestes demonstrou como a percepção dos naturalistas luso-brasileiros
formados na Universidade de Coimbra possuía um caráter utilitário. As pro-
postas de racionalização da exploração que se seguiram à ameaça de escassez
dos recursos naturais distanciavam-se das percepções contemporâneas. Ter-
mos como conservação, preservação e extinção assumem sentidos diferentes
nos discursos ecológicos do século XX, no qual o conceito de ecossistema de-
limitou novos campos de investigação e novas concepções de mundo, com a
emergência de uma outra natureza.36
Arruda analisou a constituição simbólica dos espaços geográficos de fron-
teira, no Brasil, onde a exuberância da paisagem atraiu pelas riquezas e pelo
desafio que representou. Utilizando a fotografia como documento da trans-
formação das paisagens, esse autor buscou demonstrar a existência de uma
inflexão na concepção de natureza no Brasil em fins do século XIX, em repre-
sentações que privilegiavam aspectos plásticos, utilitários e urbanizados.37
Em estudo dedicado ao Pantanal, Costa apresenta a invenção histórica
daquela região, mundo em que realidade e fantasia se mesclaram na narrativa
de aventureiros, jesuítas, viajantes e cientistas. Este “mundo singularmente
aquático,” de paisagens alagadas, geografia mutável e território evanescente
ganhou significados diversos ao longo do tempo, integrando, sucessivamente,
a história da América hispânica e luso-brasileira, representada ora como um
paraíso repleto de belezas, mistério e riquezas escondidas, ora como lugar
inóspito e mortal.38
Enfim, a pergunta a ser realizada pelo historiador pauta-se pelo desejo de
compreender o que se constituiu como natureza para os homens de diferen-
tes sociedades. Sua indagação dirige-se ao estudo da maneira como visões es-
pecíficas do que é a natureza constituíram-se como práticas históricas dife-
rentes, em tempos e lugares variados. Se a história traz o encontro com os
outros possíveis do homem, traz também o conhecimento das outras manei-
ras de significar a natureza. Se, por um lado, não podemos compreender o
outrora e o alhures da humanidade a não ser em função de nossas próprias
categorias, a operação historiográfica viabiliza, em compensação, retornar
tais categorias, repensá-las, compreendê-las e, principalmente, transformá-
las. Tornamo-nos, assim, capazes de entrever novas formas dos homens se

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inter-relacionarem, mas também outras maneiras de significar o meio natu-


ral, já que “toda elucidação que empreendemos é finalmente interessada, é
para nós em sentido efetivo, porque não existimos para dizer o que é, mas
para fazer ser o que não é.”39
Inúmeros pesadelos rondam nossa sociedade contemporânea: o acirra-
mento do efeito estufa; a escassez da água e de outros inúmeros recursos
naturais, que se esvaem no desperdício de um consumo frenético; as conse-
qüências ainda imprevisíveis da produção e do consumo de alimentos gene-
ticamente modificados; a utilização de armas químicas; a transformação da
Amazônia em um deserto. Além destas ameaças à continuidade biológica
da espécie humana, há uma outra não menos terrível, a saber, a possibilidade
de uma total homogeneização das sociedades em um mundo neoliberal e
globalizado. Tal tendência—certamente já delineada desde fins dos anos
1940, quando o modelo desenvolvimentista passou a sistematizar um padrão
a ser alcançado pelos países “subdesenvolvidos”—implicaria no gradual e
inexorável desaparecimento da diversidade das culturas humanas. Em sua
emergência, o discurso desenvolvimentista apresentou-se como um sonho
de um futuro promissor para as nações pobres, desde que elas estivessem
dispostas a pagar “o preço do progresso,” reestruturando-se completamente
em busca de prosperidade material e progresso econômico. A história das úl-
timas décadas traz a história do domínio dessa representação, mas também
da continuidade do empobrecimento e da exploração, em um mundo mo-
derno que se erige sobre o sofrimento de milhões de pessoas, a supressão de
culturas locais e a destruição da natureza.40
É certamente um erro considerar a biodiversidade separadamente da
sócio-diversidade que a povoa. O caso da Amazônia é um bom exemplo:
sempre mostrada em imagens fabulosas de árvores, rios e animais selvagens,
constitui-se, na verdade, não apenas por outras paisagens (pântanos, savanas
e cidades), mas também pelas práticas de inúmeros atores sociais que percor-
rem seus territórios e neles constroem suas vidas (índios, mestiços, migran-
tes e imigrantes, descendentes de escravos, pescadores, seringueiros, milita-
res, missionários, comerciantes, turistas, ambientalistas , mineiros, cientistas
e tantos outros). Paralela à variedade de espécies, há uma variedade da expe-
riência humana: reconhecer isso implica em uma postura diferenciada, que
ultrapasse a visão da preservação de uma floresta imaginariamente “intacta,”
ou seja, uma floresta tal como ela não existe.41
O Brasil, assim como toda a América Latina, possui uma incrível, des-
lumbrante biodiversidade. Mas não menos impressionante é a sua multipli-
cidade cultural, constituída pela diversidade de populações e, certamente,
pela multiplicidade de formas de relação com a natureza ao longo de sua his-
tória. Claro que não se trata, como alerta Escobar, de ingenuamente defender
uma “preservação de tradições.” A lógica histórica nos ensina a inadequação
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das análises que atribuíram um caráter estático a certas sociedades e o perigo


da idealização do passado. Antes, importa alertar para como esse pluralismo
cultural e suas lutas podem carregar alternativas de ser e fazer, valores diver-
sos e outras formas de instituição social que ultrapassem a mera busca de
bens e serviços.42
Há uma série de aspectos da reflexão ambiental para a qual o conheci-
mento histórico traz perspectivas e possibilidades analíticas muito especiais,
diferenciando-se dos outros campos do saber voltados para a mesma ques-
tão, apresentando-se como um metier que possui indagações e métodos espe-
cíficos, tais como a crítica ao determinismo, o abandono da busca de origens
e a percepção da constituição histórica e social da natureza pelo homem. O
estudo das sociedades humanas ao longo do tempo pode contribuir para um
pensamento ambiental no qual o homem não seja compreendido como um
elemento externo à natureza ou por ela determinado, mas como aquele que
continuamente, ao reinventar a sociedade, reinventa a natureza.

Notas

A autora agradece ao CNPq e à Fapemig.

1. Michel de Certeau, A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


1982, 65 –66.
2. Cornelius Castoriadis, A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1982, 196 –197.
3. Sobre esses autores e a análise da história e natureza, ver: Ricardo Benzaquém
Araújo. Guerra e Paz – Casa Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30,
Rio de Janeiro: Editora 34, 1994; Milton Santos. Renovando o pensamento geográfico.
In- Maria Àngela D’Incao. História e Ideal São Paulo: Brasiliense, 1989; Azib Nacib
Ab’Saber. Tempos e espaços na mira de um historiador. In- Maria Àngela D’Incao.
História e Ideal; Robert Wegner, A conquista do oeste, a fronteira na obra de Sérgio
Buarque de Holanda, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000; Regina Horta Duarte,
“Nature and Historiography in Brazil (1937 –1942),” Iberoamericana – América Latina
España Portugal , vol.3, n.10, Berlin, 2003, pp. 23 –36.
4. Andréa Zhouri, A maturação do verde na construção do inteiro ambiente.
Ambiente e Sociedade – possibilidades e perspectivas de pesquisas. Campinas: Textos
Nepam (Série Divulgação Acadêmica), n.2, 1992, p. 65 –102; José Carlos Barbiere, De-
senvolvimento e meio ambiente: as estratégias de mudanças da Agenda 21, Petrópolis:
Vozes, 1997, p. 24.
5. Joan Martinez-Alier, Justiça ambiental (local e global), In- Clóvis Cavalcanti
(org), Meio ambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas, São Paulo:
Cortez, 1999, 215 –231; José Augusto Pádua, O nascimento da política verde no Brasil:
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158 Luso-Brazilian Review 41:2

fatores exógenos e endógenos. In- Hector R. Leis. Ecologia e política mundial, Rio de
Janeiro: Vozes, 1991, 135 –161.
6. Ilse Sherer-Warren, ONGs na América latina: trajetória e perfil, In- Meio am-
biente, desenvolvimento e cidadania: desafios para as ciências sociais, 2. ed, São Paulo:
Cortez, 1998, 161–180; Guillermo Castro Herrera, Historia ambiental (feita) na Amé-
rica Latina, Varia Historia, 26, janeiro 2002, 33 –45; Enrique Leff, Ignacy Sachs y el
ecodesarrollo, In- Desenvolvimento e meio ambiente no Brasil, Porto Alegre: Pallotti/
APED, 1998, 165 –172.
7. Ramachandra Guha, O biólogo autoritário e a arrogância do anti-humanismo,
In- Antônio Carlos Diegues (org), Etnoconservação, novos rumos para a conservação
da natureza, São Paulo: Hucitec/Nupaub, 2000, 81–100; Antônio Carlos Diégues, O
mito moderno da natureza intocada, 3. ed, São Paulo: Hucitec, 2001.
8. José Drummond, A legislação ambiental brasileira de 1934 –1988, comentários
de um cientista ambiental simpático ao conservacionismo. Ambiente e Sociedade, II
(3/4), 1998, 127 –149.
9. Em julho de 1992, o Rio de Janeiro abrigou três conferências simultâneas: a
UNCED, o Fórum global e a reunião do Business Council for Sustainable Develop-
ment. Sobre as repercussões dos eventos na sociedade brasileira, ver: Eduardo Viola e
Héctor Leis. O ambientalismo multissetorial no Brasil para além da Rio-92: o desafio
de uma estratégia globalista viável. In- Meio Ambiente, desenvolvimento e cidadania,
desafios para as Ciências Sociais. 2. ed. Florianópolis: Cortez, 1998, 134 –160. O termo
“era da ecologia” é de Donald Worster, Transformaciones de la tierra, Panamá: Im-
prenta Universitária, 2001, 7 –21. Sobre a expressão internacional da ecologia, ver:
José Augusto Pádua, O nascimento da política verde no Brasil. . . , 135 –142. 161.
10. Sobre a racionalidade ecológica no sentido amplo de como cada sociedade
humana constrói diferentes modelos produtivos e idéias de natureza, ver Manuel
Gonzáles de Molina, La crisis de la modernidad historiográfica y el surgimiento de la
historia ecológica In- Historia e meio ambiente, o impacto da invasão européia.
Coimbra: Centro de Estudos de Historia do Atlântico, 1999, p. 39; Sobre a necessidade
de descentrar o ambientalismo dos movimentos sociais, ver Andréa Zhouri, Am-
bientalismo e antropologia: descentrando a categoria de movimentos sociais. Teoria
e Sociedade, 8, dez. 2001, 10–29.
11. Sobre o surgimento da História ambiental e sua relação com a crise contempo-
rânea e com a ascensão dos movimentos ambientalistas, ver Donald Worster. Para fa-
zer história ambiental. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. 4(8), 1991, 198 –215; Manuel
González de Molina. La crisis de la modernidad historiografica y el surgimiento de la
historia ecológica, 17 –51; Stefania Gallini, Invitación a la historia ambiental. Cuader-
nos Digitales: publicación electrónica en historia, archivística y estudios sociales.
V.6(18), octubre 2002.
12. Sobre esses dilemas da historiografia contemporânea, ver o editorial Histoire
et sciences sociales. Um tournant critique? Annales ESC, mars/avril 1988, 2, 291–293.
13. Milton Santos, Território e sociedade, São Paulo: Perseu Abramo, 2000, Azib
Nacib Ab’Saber, Os domínios da natureza no Brasil, são Paulo: Ateliê Editorial, 2003;
Ricardo Arnt & Stephan Schwartzman, Um artifício orgânico, transição na Amazônia
e ambientalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1992; Antônio Carlos Diegues, O mito mo-
derno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996; Mauro Leonel, A morte social
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Duarte 159

dos rios. São Paulo: Perspectiva, 1988; Tereza Urban, Saudade do matão – relembrando
a história da conservação da natureza no Brasil. Curitiba: Ed. Da UFPR; Fundação O
Boticário de Proteção à Natureza; Fundação Mac Arthur, 1998; Eduardo Viola et al.
Meio ambiente, desenvolvimento e cidadania. São Paulo: Cortes/UFSC, 1995; Zanoni
Neves, Navegantes da integração, os remeiros do rio São Francisco, Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1998; Andréa Zhouri, Árvores e gente no ativismso transnacional, as di-
mensões social e ambiental na perspectiva dos campaigners britânicos pela floresta
amazônica. Revista de Antropologia, São Paulo, 44(1),2001, 9 –52; Lúcia da Costa Fer-
reira et al. Conflitos sociais em áreas protegidas no Brasil: moradores, instituições e
ONGs no Vale do Ribeira e litoral sul, SP. Idéias, 8(2001), 115 –149; Fábio Olmos et al.
Correção política e biodiversidade: a crescente ameaça das “populações tradicionais”
à Mata Atlântica. In- Ornitologia e conservação – da ciência às estratégias. Jorge L.B.
Albuquerque et al (orgs). Tubarão: Editora Unisul, 2001, 279 –311; Manuela Carneiro
da Cunha et al. Enciclopédia da Floresta. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
14. Como quer evitar Stefania Gallini, Invitacíon a la historia ambiental, 6 –7.
15. Euclides da Cunha, Os Sertões, São Paulo: Ediouro, 2003.
16. Edgar Roquette Pinto, Euclides da Cunha naturalista, In- Seixos Rolados, estu-
dos brasileiros. Rio de Janeiro:s/e, 1927, 276. Sobre a influência de Euclides da Cunha
sobre os intelectuais brasileiros, ver: Nísia Trindade Lima, Um sertão chamado Brasil,
Rio de Janeiro: Editora Revan, 1998; Candice Vidal e Souza, A pátria geográfica, sertão
e litoral no pensamento social brasileiro, Goiânia: Editora UFG, 1997; Regina Horta
Duarte, “Em todos os lares, o conforto moral da ciência e da arte . . .”: a Revista
Nacional de Educação e a divulgação científica no Brasil (1932–1934), Revista Man-
guinhos, História,Ciência e Saúde, 11(1), jan/abr 2004; Roberto Ventura, Euclides da
Cunha, esboço bibliográfico, São Paulo: Cia das Letras, 2003; Nancy Leys Stepan. Pic-
turing tropical nature. New York: Cornell University Press, 2001, 27,120–148, 216.
17. Sobre uma abordagem crítica dessa perpectiva, ver: Ciro Flammarion Car-
doso, As concepções acerca do “sistema econômico mundial” e do “antigo sistema
colonial,” Modos de produção e realidade brasileira, org. José Roberto Lapa Petrópolis:
Vozes, 1980, Carla Anastasia, Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na pri-
meira metade do século XVIII, Belo Horizonte: Autêntica, 1998, 9 –27; Luciano Mar-
tins, Politique et développement economique, structures de pouvoir et système de deci-
sions au Brésil , PHd diss., Université René Descartes, 1973.
18. Manuel Gonçalvez de Molina, La crisis de la modernidad historiográfica, 38.
19. Eduardo Viveiros de Castro. Prefácio. In- Ricardo Arnt. Um artifício orgânico,
p. 13 –23; Mauro Leonel, A morte social dos rios, 15; Antônio Carlos Diegues, Etnocon-
servação da natureza: enfoques alternativos. In- Etnoconservação, novos rumos para a
proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Hucitec, 2002, 1–46. Para Dean, “A flo-
resta tropical é um lugar inóspito para o homem.(. . .) Podemos visitar a floresta tro-
pical e até especializarmo-nos na extração das mil e uma raridades que ela oferece,
mas não moramos nela, exceto em desespero. O ‘morador’brasileiro da floresta vive
em suas margens, perto de cursos de água ou campos (. . .) para viver no meio da flo-
resta, os moradores da floresta necessariamente a derrubam.” Warren Dean, A ferro e
fogo. . . , 28 –30.
20. Marshal Sahlins, Folk dialectics of nature and culture. In- The use and abuse of
biology. The University of Michigan Press, 2000, 93 –107.
UWP: Luso-Brazilian Review page160

160 Luso-Brazilian Review 41:2

21. Shawn William Miller, Fruitless Trees – Portuguese conservation and Brazil’s
colonial timber. California: Stanford University Press, 2000, 231, 259, 128/129.
22. Carlos Ferreira de Abreu Castro, Gestão florestal no Brasil Colônia. PhD, Pro-
grama em Desenvolvimento Sustentável, UNB, 2002.
23. José Augusto Pádua, Um sopro de destruição – pensamento político e crítica am-
biental no Brasil escravista (1786–1888). Rio de janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002.
24. José Luiz de Andrade Franco. Proteção à natureza e identidade nacional, 1930–
1940. PhD, Programa de Pós-Graduação em História, UnB, 2002.
25. Michel Foucault, Nietzche, a genealogia e a história. Microfísica do Poder. Rio
de Janeiro: Graal, 1984, 26; Mauro Leonel, A morte social dos rios. . . , xxvii; G.G. Escu-
ret. Les sociétés et leurs natures. Paris: Armand Colin, 1989.
26. William Cronon, Uncommon Ground, rethinking the human place in nature.
New York: Norton & Company, 1996, 34 –36.
27. “A humanidade tem fome, é certo. Mas ela tem fome de que e como?” Corne-
lius Castoriadis, A instituição imaginária da sociedade . . . 164.
28. Marc Bloch, Introdução à história. Lisboa: Publicações Europa-América, 31–36.
29. Para a crítica ao mito do bom selvagem na história das relações dos índios com
a natureza no Brasil, ver: Warren Dean, A ferro e fogo, 38 –58; José Augusto Drum-
mond, Devastação e preservação ambiental no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Editora
da Universidade Federal Fluminense, 1997., 31–49; Fábio Olmos, Correção política e
biodiversidade . . . Para a diferente lógica presente nas relações entre sociedades indí-
genas e o entorno, ver: Eduardo Viveiros de Castro, Prefácio. . . , 22; Keith Brown Jr &
André Victor L. Freitas. Diversidade biológica no Alto Juruá: avaliação, causas e ma-
nutenção. In- Enciclopédia da floresta:. ., 31–43.
30. José Augusto Drummond, A legislação ambiental brasileira. . . ., 130; /Shawn
William Miller. Fruitless Trees. . . . 43 –70.
31. Marc Bloch. Uma introdução à história. . . , 30.
32. “Nature is always culture before it is nature.(. . .) Our view of the natural
world is always historically constituted by human material and perceptual interac-
tions, so that our understanding of it is always a form of social knowledge.” Nancy
Leys Stepan. Picturing tropical nature. New York: Cornell University Press, 2001, 15.
33. Como exemplo, as transformações da sociedade moderna podem ser reladas à
constituição de diferentes concepções sobre o ambiente, considerando-se o impacto
persuasivo e criativo da experiência colonialista, entre os séculos XVII e XIX. A expe-
riência vivida em áreas tropicais, especialmente ilhas, e o encontro com as suas popu-
lações e seus saberes sobre a natureza foram elementos decisivos na formação de con-
cepções científicas nas quais mesclaram-se práticas de preservação, crítica social e a
percepções imperialistas diferenciadas. Richard Grove, Green Imperialism, colonial
expansion, tropical island edens and the origins of environtalism, 1600–1860, Cam-
bridge University Pres, 1995.
34. Willian Cronon, Uncommon Ground. . . , 20–56.
35. Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso. 6.ed. São Paulo: Brasiliense,
1984; Claúdia Heynemann, Floresta da Tijuca, natureza e civilização. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1995.
36. Maria Alice Prestes, A investigação da natureza no Brasil Colônia, São Paulo,
AnnaBlume, 2000.
UWP: Luso-Brazilian Review page161

Duarte 161

37. Gilmar Arruda, Fotografias de cidades de fronteira: a vitória sobre a natureza.


In- Natureza na América Latina: apropriações e representações. Londrina: Editora
UEL, 2001, 167 –192.
38. Maria de Fátima Costa, História de um país inexistente – o Pantanal entre os sé-
culos XVI e XVIII. São Paulo: Estação Liberdade: Kosmos, 1999.
39. Cornelius Castoriadis, A instituição imaginária da sociedade. . . , 197; Eduardo
Viveiros de Castro, Prefácio. . . , 19.
40. Arturo Escobar. Encountering development – the making and unmaking of the
Third World. Princeton University Press, 1995, 4 –5, 213 –214. Ver também: Gustavo
Esdeva. Desenvolvimento. In- Wolfang Sachs (ed). Dicionário do desenvolvimento –
guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: Vozes, 2000, 59 –83.
41. Candance Slater, Entangled edens – visions of the Amazon. University of Cali-
fornia Press, 2002; Hugh Haffles, Amazonia: a natural history. Princeton University
Press, 2002; Paul E. Little. Amazonia: territorial struggles on perennial frontiers. Johns
Hopkins University Press, 2001; Manuela Carneiro da Cunha et al. Enciclopédia da
Floresta, Mauro Leonel, A morte social dos rios. . . .
42. Arturo Escobar. Encountering development. . . , 215 –218. Para uma visão crítica
dos problemas que o uso do conceito de “populações tradicionais” pode acarretar,
desconsiderando as mudanças históricas nessas sociedades e mesmo sua naturaliza-
ção, ver: Lúcia da Costa Ferreira. Conflitos sociais em áreas protegidas no Brasil: mo-
radores, instituições e ONGs no Vale do Ribeira e Litoral Sul, SP. Idéias, Campinas,
8(2): 115 –149, 2001.

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