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Albina R. Torres (Botucatu-SP) Irismar R. de Oliveira (Salvador-BA)
Antônio H. G. Vieira Fº (São Paulo-SP) Jair de J. Mari (São Paulo-SP)
Antonio W. Zuardi (Rib. preto-SP) José A. Del Porto (São Paulo-SP)
Arthur G. Andrade (São Paulo-SP) José de S. Fonseca Fº (São Paulo-SP)
Beni Lafer (São Paulo-SP) José Givaldo M. de Medeiros (J. Pessoa-PB)
Carmita H. N. Abdo (São Paulo-SP) José Manoel Bertolote (Geneve-Suíça)
Cleto B. Pontes (Fortaleza-CE) Juarez O. Castro (Belo Horizonte-MG)
Dênio Lima (Brasília-DF) Luiz Dractu (Londres-UK)
Edna Marturan (Brasília-DF) Luiz Meira Lessa (Salvador-BA)
Eurípides C. Miguel Fº (São Paulo-SP) Marco A. A. Brasil (Rio de Janeiro-RJ)
Fábio L. Gastal (Pelotas-RS) Maria Carmem Viana (Vitéoria-ES)
Florence Kerr-Corrêa (Botucatu-SP) Mário R. Louzã Neto (São Paulo-SP)
Francisco B. Assumpção Jr. (São Paulo-SP) Miguel R. Jorge (São Paulo-SP)
Genário A. Barbosa (João Pessoa-PB) Paulo S. S. Abreu (Porto Alegre-RS)
Helena M. Calil (São Paulo-SP) Ronaldo R. Laranjeira (São Paulo-SP)
SUMÁRIO/CONTENTS
Carol SONENREICH*
Giordano ESTEVÃO*
Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO*
RESUMO
“Doença” é o termo que o médico usa para estudar e tratar situações vividas pelo paciente. É um
instrumento do saber, um conceito, uma abordagem do “caso” do ponto de vista médico. Podemos
traçar a história de tal conceito, separadamente da história dos quadros que ele designa. A história
da “esquizofrenia”, conceito criado por Bleuler, é diferente da história das casos de sofrimento
aos quais ele aplicou este nome. Em geral o discurso científico não é idêntico ao objeto que ele
trata. As pessoas vivem situações, os médicos as expressam, estudam, classificam. Definimos o
conceito de doença mental como perda da liberdade de escolher e conduzir-se conforme suas
escolhas. Consideramos doenças: dependência de drogas, fobias, obsessões-compulsões, delírio,
na medida em que se manifestam independentemente da vontade da pessoa. A soma de sintomas
não é o melhor critério para fazer o diagnóstico, nem os estudos que associam sintomas a alte-
rações de certas regiões encefálicas são o melhor método de estudo psiquiátrico. Precisamos de
pesquisas adequadas para este nível de patologia. A definição de doença pela qual optamos elabo-
ra-se conforme uma visão do ser humano. Implica a idéia de liberdade, da possibilidade de agir e
determinar-se pela reflexão autônoma, referência a valores, responsabilidade. Temos consciência
das limitações da liberdade pelas condições de vida, ambiente, hereditariedade. Mas achamos que
para o estudo psicopatológico, psiquiátrico, convém dar prioridade aos aspectos ligados a liberda-
de, mais do que àqueles ligados aos determinismos físicos ou psíquicos.
A
1. Entendemos por “Doença” um construto médico, um instrumento
para estudar e tratar certas situações. As manifestações do paciente, suas
queixas (consideradas “sintomas”), na linguagem da medicina constituem
“sinais”, que podem ser associados a alterações biológicas, causas, meca-
nismos. Para médicos, a “doença” é um conceito, elaborado para sugerir
projetos de trabalho, de pesquisa clínica e de laboratório ou um projeto de
tratamento. As atividades médicas permitem validar estes conceitos, testar
sua legitimidade; quando não servem, precisam ser corrigidos ou substitu-
ídos por outros.
pontânea: a criança não adquire a forma lógica de pensar antes de 10-12 anos
de experiências de vida (Piaget, 1969). A relativa “novidade” do pensamento
lógico nos faz pensar que ele é mais frágil, portanto vulnerável, em condições
patológicas. Experiências significativas de fracasso no relacionamento com
os outros podem levar ao colapso deste modo difícil de organizar a comunica-
ção. Não é mais a experiência própria que sustenta o conteúdo do pensamen-
to, mas elementos mais primários, lugares comuns, em geral fornecidos pelas
mídias. O pensamento delirante refere-se basicamente a influências externas:
heróis populares, máquinas, forças mágicas. Estes perseguem, determinam,
influenciam. Interpretações alternativas não são tomadas em consideração, e
o doente não pode escolher entre várias versões. Aquela que ele aceita não é
a melhor: é a única, para ele.
Nos pacientes desagregados, agitados, deprimidos ou nos cognitiva-
mente rebaixados existe perda de domínio sobre a conduta. A inaptidão
para escolher como se comportar não é apenas óbvia, mas sobretudo parece
ser o melhor critério para definir, identificar a “doença”.
O que entendemos por doença é sempre perda, não unicamente em
termos quantitativos, mas também na organização (o que seria mais quali-
dade do que quantidade), de modo que o conceito de valor é implicado.
4. O conceito de “doença mental” é raramente debatido nas publicações
psiquiátricas, exceto naquelas dedicadas especificamente a este assunto. Po-
rém, indiretamente, a definição deste conceito está sempre posta em questão.
Os códigos de classificação da Associação Mundial de Saúde e da American
Psychiatric Association falam de transtornos, pois não querem rotular como
doença os conjuntos de sintomas, síndromes cujas causas e mecanismos não
são conhecidos. Portanto, causa, mecanismo e patogenia seriam condições para
se definir o conceito de doença. Declarar que doença mental não existe, que é
um mito, significaria pensar que ela não incluiria alterações orgânicas, que não
seria causada por agentes físicos, como acontece com as doenças gástricas,
pulmonares, cerebrais...
Basaglia (1979, p. 375) declarava que a etiologia da doença mental
seria uma complexa interação entre a experiência do paciente e sua coloca-
ção social, os métodos do médico e suas convicções, os valores culturais do
ambiente e a ideologia dominantes. Para isso, seria necessário um encontro
interdisciplinar, no qual os sistemas científicos pudessem ser reciprocamen-
te contestados. A visão positivista da doença mental tornaria impossível o
encontro com o doente. Apesar de falar correntemente sobre a doença men-
tal, Basaglia decidiu suspender a vontade de saber o que ela é, como defini-
la. Assumiu a tarefa de abolir o “manicômio”, e a procura de uma definição
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B
Falou-se e ainda se fala da psiquiatria como um instrumento criado
pelos médicos, representando as classes dominantes, para impor silêncio
aos que protestam contra as várias formas de opressão social. A verdadeira
“loucura” seria a da sociedade, que proíbe a palavra aos que se rebelam,
rotulando-os de doentes e trancando-os em asilos (Goffman, 1971) ou “ma-
nicômios”. Rejeitamos tais afirmações.
No terceiro milênio a.C., uma farmacopéia neosumeriana tratava de dis-
túrbios mentais e físicos, assim como a escola babilônica de medicina (orientada
por uma deusa), no século 18 a.C. Os nomes dados às doenças eram os dos deu-
ses e demônios que as provocavam. Eram punições por pecados, por intermédio
de miasmas, frio, secura. As terapias consistiam em orações, junto com plantas,
ossos de animais, dedos de mortos, fezes, urina (para enjoar o demônio?). Desde
o século VII a.C. a medicina helênica falava da doença como “fenômeno natural”,
sendo errado separar a mente do corpo. As Ajurvedas indianas, nos séculos VII-
VIII a.C., incluíam alterações físicas e mentais (Sendrail, 1980).
Os médicos, ao longo da história, propuseram uma versão sobre
a doença mental e procuraram tratamentos médicos para ela. Contra a
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SUMMARY
“Illness” is the term that psychiatrists use to study and to treat situations lived by the patient. It is
an instrument of knowledge, a concept, an approach for the “situation” from the medical point of
view. We can draw the history of such concept separately, or study the history of the “situation” it
designates. The history of “schizophrenia” - concept created by Bleuler - is different from the history
of cases of patients with this kind of psychical suffering. The scientific speech is not identical to the
object it treats. People live situations; physicians express, study and classify these situations. We de-
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fine the concept of mental disease as the loss of freedom to choose and to behave according to these
choices. Drug addictions, phobias, obsession-compulsions and delusions are illnesses, since these
patients act independently of their options. The sum of symptoms is not the best criteria to establish
the diagnosis, nor the studies that associate symptoms to alterations of specific encephalic areas are
the best method of psychiatric study. We need appropriate researches for this pathology level. The
definition of illness we chose is elaborated according to a vision of the human being. It implicates the
idea of freedom, the possibility to act and to determine oneself based on the autonomous reflection,
with reference to values and responsibility. We are aware of freedom limitations by life conditions,
environment and hereditariness. But we think that for the psychopathologic and psychiatric study, it
suits better to give priority to aspects related to freedom, more than those linked to the physical or
psychic determinisms.
Serviço de Psiquiatria
Hospital do Servidor Público Estadual “FMO”
R. Pedro de Toledo, 1800
04039-901 – São Paulo – SP
Email: pgpsiq@deltabr.com.br
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RESUMO
A autora, partindo do postulado de que “como tratamos nossos doentes depende de como con-
cebemos suas doenças”, acompanha as conceituações utilizadas por um grupo de psiquiatras do
HSPE-FMO para o diagnóstico e tratamento das toxicomanias ao longo das últimas décadas. O
último conceito, de 1999, afirma que “As toxicomanias são doenças provocadas pelo uso constan-
te ou repetido de substâncias psicoativas, com perda das possibilidades de controlar as quantida-
des e as circunstâncias nas quais são consumidas e conseqüente prejuízo para o comportamento
do paciente”. Esta formulação teve seus antecedentes, que, a cada momento, designavam distintas
conseqüências psicopatológicas e terapêuticas. O procedimento da autora opera em dois níveis.
Primeiro, revela a pertinência do postulado inicial e, segundo, verifica na psicopatologia e na
terapêutica as incidências das diferentes formulações.
*Psiquiatra e Psicanalista. Médica Assistente do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual
“FMO” - São Paulo - SP
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tores, o alcoólico negaria o que torna evidente por outros modos, no próprio
discurso, minorando seu uso ou dependência, ao mesmo tempo em que o
afirma; ou mesmo dizendo não ter bebido, com hálito intensamente alcoó-
lico. Por outro lado, na psiquiatria filiada ao DSM-III, ao final dos anos 80
e inícios dos anos 90, surgiram as “Escalas de Negação”, com a finalidade
de avaliar simultaneamente a gravidade do alcoolismo e sinais de melhora
de alcoólicos em tratamento. Desses estudos, destacamos aqui alguns:
Goldsmith and Green’s. Denial Rating Scale (DRS). J Nerv Ment
Dis 1988; 176:614-620. A escala é concebida pelo fato dos autores terem
formulado que a negação da doença era um entrave no tratamento; avaliar
este evento e localizá-lo teria valor terapêutico.
Allan CA. Acknowledging alcohol problems. The use of a visual
analogue scale to measure denial. J Nerv Ment Dis 1991; 179(10):620-5.
Newsome RD, Ditzler T. Assessing alcoholic denial. Further examina-
tion of the Denial Rating Scale. J Nerv Ment Dis 1993 Nov; 181(11):689-94.
Ino A, Tatsuki S, Nishikawa K. The Denial and Awareness Scale
(DAS). Nihon Arukoru Yakubutsu Igakkai Zasshi 2001 Jun;36(3):216-34.
Os autores fazem uso dessa escala com valor prognóstico e para o
acompanhamento da evolução do tratamento.
Neste ponto, gostaríamos de ressaltar as conseqüências clínicas e te-
rapêuticas dos conceitos de alcoolismo de 1971, de Sonenreich.
• Conseqüências Psicopatológicas
Estabelece um corte em relação às idéias anteriores. O alcoolismo
ganha estatuto de entidade clínica e não de sintoma.
Através de categorias fenomenológicas, tais como a vivência, a tempo-
ralidade e a consciência, o autor constitui uma psicopatologia do alcoólico e
chega ao conceito de “mentira do alcoólico”, de valor heurístico, clínico e tera-
pêutico. Com este conceito, o alcoolismo não é mais um efeito químico danoso
sobre um corpo, mas a “vivência sucedânea da consciência alterada”.
A vivência produz uma alteração psíquica desse ser no mundo, com
uma temporalidade feita de instantes do presente que não se articulam nem
ao passado e nem ao futuro - um ser cristalizado na sua incongruência, ali-
jado da comunicação, já que “a realidade perdeu para ele a consistência”.
A mentira do alcoólico, sob sua forma da negação da doença, tem
importância diagnóstica e valor preditivo de gravidade.
• Conseqüências Terapêuticas
Essa psicopatologia do alcoólico implica que sua cura não se esgota
e nem se restringe à abstinência. Torna a psicoterapia indispensável, pois
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CONCLUSÕES
Os esforços de novas formulações psicopatológicas são de valor heu-
rístico, demonstrando-se como ferramentas potentes, tanto do ponto de vis-
ta diagnóstico como do terapêutico e, portanto, demonstrando o aforismo
clínico conhecido “a teoria é indissociável de sua prática”.
Os conceitos de alteração da vivência da realidade, da temporalidade
nas toxicomanias, mostram-se fundamentais para condução de seu diagnós-
tico e tratamento.
O fato de se verem confirmadas as teses de Sonenreich por vários
autores, indica, sobretudo, uma aproximação mais efetiva do real desta clí-
nica, concorrendo para uma melhor eficácia de nossos diagnósticos e tra-
tamentos.
Estas idéias, além de se mostrarem profícuas, inspirando vários auto-
res nacionais, têm transbordado, inclusive sobre autores psicanalistas que já
ensaiam pensar a toxicomania não mais como ligada à oralidade, mas, sim,
como a invenção de um novo objeto-droga que produziria uma espécie de
apagamento do simbólico, sendo a denegação um conceito importante para
o diagnóstico e tratamento naquela clínica.
Vejamos a formulação de Durval Mazzei Nogueira Filho (Nogueira
Filho, 1999), em seu livro Toxicomanias, em que partindo do conceito de
discurso em Lacan nos traz a seguinte formulação do Discurso do capitalis-
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ta: “Um sujeito em sua falta de gozo estrutural demanda ao saber científico
a produção de um objeto perfeito capaz de um gozo que, sem conseqüência,
venha fechar sua castração, sua divisão, sua miséria, (...) capaz de pro-
duzir o gozo que falta” (p.30). (Tarrab, 1995 apud Nogueira Filho, 1999).
Tomando em conta esta formulação e considerando que o encontro do to-
xicômano com a droga é um encontro fortuito, um mal encontro, este autor
desconsidera as teorias sejam as de oralidade, regressão à fase anal ou fálica
ou ainda, outras, de “traumas passados”, defesas, ou as que vêem a toxico-
mania como sintoma para valorizar a vivência da droga e suas conseqüên-
cias, e chega à seguinte formulação: “A droga interferiria neutralizando a
barra do sujeito, cujo gozo não passaria mais pelos significantes, apagando
a borda da pulsão, tornando-a uma espécie de instinto, apagando o sim-
bólico, com acesso RI (Real- Imaginário), espécie de gozo total, com o
apagamento do Outro na impossibilidade de barrá-lo. Um gozo do corpo,
numa relação droga-gozo ao invés da relação da castração com o objeto
causa de desejo a”. (Nogueira Filho, 1999).
Desta proposição pode-se tirar as seguintes conseqüências, se-
gundo Nogueira Filho (1999):
“A barra que representa a divisão do sujeito deixa de oferecer resis-
tência à significação” (p.53).
“A principal conseqüência deste estado de coisas é o apagamento do
Outro”(p.53).
“Produz-se uma opacificação do discurso falado, nas emoções vivi-
das, nas experiências existenciais efetivadas, sinalizando, assim, o
abandono do significado e do deslizar metonímico do significante e
do desejo” (p.53).
“O traço unário não mais discrimina, passando a uma organização do
tipo +/-, em consonância com a ausência ou presença da droga” (p.53).
“Há pelo apagamento da diferença um apagamento do sexual, em
que estaria implícita a castração em relação com o desejo: opera-se
uma “instintivação das pulsões” (p.54).
“Desaparecendo o valor do objeto enquanto tal, constrói-se assim
um novo real pulsional, que procura o prazer não mediado pelo ob-
jeto, em que exclui o acaso, tornando-se determinado por pura repe-
tição, determinada não pelo passado do sujeito, mas pela construção
deste artefato” (droga) (p.54-55).
“A pulsão marca o necessário como erótico, a droga marca o eróge-
no como necessário, para além do auto-erótico, fora do logos. Como
os instintos não falham, o saber tem valor de verdade” (p.56).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Freud S. A Negativa. In: Obras Completas, vol. XIX (trad.: José Octavio
Aguiar de Abreu). Rio de Janeiro: Imago; 1976. p.293-300.
Nogueira Filho DM. Toxicomanias. São Paulo: Escuta; 1999.127p.
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SUMMARY
Starting from the postulate “our conception of diseases depends upon how we treat our patients”,
the author follows the formulations on drug addiction in use by psychiatrists during the last de-
cades in HSPE-FMO. According to its last 1999 formulation, “drug addiction is a disease re-
sulting from the constant or repeated use of psychoactive substances with loss of the possibility
of controlling the amount that such substances are consumed and consequent deterioration in
the patient behavior”. In each case this formulation has its antecedents that designate different
psychopathological and therapeutic consequences. The author works on two levels: first revealing
how pertinent is the initial postulate and, second, verifying the psychopathological and therapeutic
incidence of the distinct and different formulation on drug addiction.
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RESUMO
A partir do relato de caso de uma paciente dependente de múltiplas substâncias, a abordagem feno-
menológica da toxicomania, apresentada por Carol Sonenreich, em 1971, será discutida neste artigo.
A ênfase será dada no estudo psicopatológico do caso, a fim de elucidar em que medida as alterações
psíquicas dos toxicômanos não decorrem apenas dos efeitos neuroquímicos da droga sobre o orga-
nismo, mas, sobretudo, de como expressam as conseqüências de uma vivência de descontinuidade e
inconsistência provocada pelo uso das substâncias. Desta forma, o conceito de cura da dependência
química deixa de estar situado em processos orgânicos e neuroquímicos e os objetivos terapêuti-
cos extrapolam os limites da desintoxicação e manutenção da abstinência. A compreensão de tal
psicopatogenia aponta para a psicoterapia como um instrumento privilegiado no tratamento destes
pacientes, por ser talvez o único capaz de produzir uma ressignificação de tais vivências.
INTRODUÇÃO
No exercício de sua clínica diária, o psiquiatra depara-se freqüente-
mente com diversos entraves na abordagem dos dependentes químicos, com
uma vultosa taxa de insucesso terapêutico. Apoiar o diagnóstico da toxicoma-
nia em critérios baseados nos códigos de doenças pode significar restringir-se
ao reducionismo da soma de sintomas. Tal procedimento pode contribuir para
uma terapêutica parcial e ineficaz, que limita seus objetivos à desintoxicação
e à abstinência e compreende os efeitos da droga unicamente sob o domínio
do organismo – e não a partir das vivências do indivíduo.
Este artigo se propõe a discutir o caso de uma paciente dependente de
múltiplas substâncias psicoativas, a partir da abordagem psicopatológica da
toxicomania apresentada em 1971 por Carol Sonenreich. O autor estabelece
rupturas em relação às idéias anteriores acerca do alcoolismo, que era con-
siderado um sintoma e não uma entidade clínica distinta. Para Sonenreich,
* Médica residente do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual “FMO” – São Paulo, SP.
** Psiquiatra e Psicanalista. Médica Assistente do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual
“FMO” - São Paulo, SP.
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RELATO DE CASO
Neste relato, será apresentado o caso da paciente M. C. A., de 40
anos, feminina, parda, casada, natural e procedente de São Paulo, católica,
desempregada.
M. procurou o ambulatório com a queixa de que seu corpo estava
“tremendo por dentro”.
Ela conta que sua história psiquiátrica teve início na infância. Sua
mãe sempre a considerou como uma criança “hiperativa”, tendo-a levado,
por esta razão, a diversos psicólogos e psiquiatras desde os sete anos. A pa-
ciente não se recorda, entretanto, de ter feito uso de medicações. Não tinha
muitas amizades e nem era muito comunicativa. Repetiu a segunda série
primária. Considerava-se desatenta e achava quase impossível concentrar-
se nas aulas. Não conseguiu ir além da oitava série, pois o interior da sala de
aula já não a interessava mais. Seu interesse, a partir de então, era apenas “a
rua”: a liberdade da rua, os companheiros da rua, as festas.
Bebeu pela primeira vez em uma dessas festas, aos quatorze anos.
Sentiu-se tão bem que já não conseguia mais ir a festas sem beber. A pas-
sagem à dependência foi muito rápida e logo passou a beber sozinha, che-
gando em casa embriagada diariamente. Achava que sua família não dava
real importância à dimensão do problema, o que, em sua opinião, apenas
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Sua mãe é viva, tem 69 anos, aparenta ter boa saúde e é hipertensa.
Seu pai faleceu no fim de 2004 por problemas cardíacos. Seus irmãos têm
36, 34 e 26 anos. Dois deles gostam de beber, mas não há história de alcoo-
lismo, uso de drogas ou problemas psiquiátricos na família. Ela conta que,
desde que começou a se tratar, sua família tem estado mais próxima. Conta
que há muitas pessoas ao seu lado dando-lhe apoio ao tratamento. Entretan-
to, sente-se com muito medo, insegura e incapaz. Gostaria de estar inserida
em algum tipo de emprego, no qual pudesse “trabalhar para si mesma”.
Considera que a psiquiatria pode ajudá-la a conseguir isto. Em relação aos
antecedentes médicos, é hipotireoidea, em uso de levotiroxina 50mcg/d.
Não havia alterações ao exame físico, além de sobrepeso.
EXAME PSÍQUICO
Na admissão na enfermaria, a paciente havia acabado de apresentar
uma recaída no uso de drogas. Apresentava-se, no momento da interna-
ção, com cuidados de higiene comprometidos e com algum prejuízo no
pragmatismo. Estava vigil, com processos psíquicos bastante acelerados e
campo vivencial estreitado, devido a um quadro de extrema ansiedade, que
traduzia o grande investimento afetivo numa ideação delirante de cunho
persecutório. Não se tratava de um delírio estruturado, sistematizado. No
entanto, as vivências alucinatórias complexas, visuais e auditivas, bastante
vívidas, dominavam o quadro psicopatológico. A paciente sentava-se e le-
vantava-se da cadeira diversas vezes em direção ao lavatório, para lavar as
mãos de “todo aquele sangue” que via escorrer por seu corpo e sair por seus
poros. Por conta disto, é compreensível que toda a atenção da paciente es-
tivesse voltada para as próprias vivências alucinatórias, pouco interagindo
com o resto do ambiente e nem sempre respondendo às minhas perguntas, o
que explicava sua hipovigilância e hipertenacidade. Estava desorientada no
tempo, mas com orientação autopsíquica e espacial mantidas. Diante deste
fenômeno vivido com grande intensidade afetiva, a paciente não dava mar-
gem à possibilidade de melhor avaliar sua memória de evocação. Aparen-
temente não tinha déficits na memória de fixação. Relatou ter feito uso de
substâncias psicoativas ilícitas, mas não era capaz de precisar quais e nem
as quantidades de que fez uso. Apresentava crítica prejudicada em relação a
seu estado psicopatológico.
EVOLUÇÃO
A paciente realizou tomografia de crânio, eletroencefalograma e per-
fil laboratorial, todos sem alterações. Foi medicada inicialmente com clona-
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DISCUSSÃO
A relevância de se discutir este caso reside muito mais nas possibilida-
des de compreensão da psicopatologia do toxicômano, valendo-se da história e
exame psíquico da paciente, do que numa possível dúvida diagnóstica. Pretendo
discutir a toxicomania a partir da proposta de Sonenreich (1999), segundo a qual
as alterações psíquicas dos toxicômanos não são apenas efeitos da ação química
da droga sobre o encéfalo, mas também expressam as conseqüências do modo
de viver e conceber o mundo dos drogados. Se a questão é de uma alteração da
vivência provocada pelo uso das drogas, torna-se claro que o tratamento não se
resume apenas na desintoxicação e abstinência, uma vez que é essencial tratar o
psiquismo alterado por esta vivência alterada que a droga produz.
Abordar a dependência química significa inicialmente compreender o
conceito desta síndrome, que segundo Nogueira Filho (2005), está inserida
num espectro clínico amplo que raramente, talvez nunca, possa ser abordada
por uma leitura unidimensional. Apoiar o diagnóstico desta paciente em cri-
térios baseados nos códigos de doenças pode significar valer-se de uma inter-
pretação baseada no reducionismo da soma de sintomas, que não compreende
a complexidade da percepção da realidade do paciente e da sua relação com o
mundo. Nogueira Filho (2005) ainda reflete que a referência nosográfica mais
utilizada na prática psiquiátrica, o CID-10, traduz a clara intenção dos autores
em enquadrar a atividade médica no molde verificacionista e em franquear a
passagem à ideologia de tom biológico e comportamental. O DSM-IV, as-
sim como o CID-10, propõe uma multiplicidade de diagnósticos e sintomas
relacionados aos transtornos por uso de substâncias, o que não corresponde
necessariamente a uma apreensão fenomenológica do caso. O DSM-IV, por
exemplo, distingue, dentre outras modalidades de adoecimento pelo uso de
substâncias, a intoxicação aguda, o uso nocivo, a síndrome de dependência, o
estado de abstinência, os transtornos psicóticos e a síndrome amnéstica. Tais
códigos descrevem e tratam das características dos quadros, mas em momen-
to algum conceituam os modos de adoecer.
Partir do conceito de doença mental como perda da capacidade de
escolha significa compreender a toxicomania como a perda da liberdade de
abster-se das drogas. Sonenreich, em 1999, cita Postel (1998), que compre-
ende esta doença como a tradução de uma relação alienante com uma droga
mais ou menos tóxica, tendendo a subordinar toda existência do sujeito à
procura dos efeitos do produto. A paciente em questão exalta esta posição
de alienação diante do mundo e servidão à droga quando diz: “Não sou
capaz de nada, só de beber” ou então “Perdi muita coisa e vendi muita
coisa para meu consumo. Perdi emprego, amizade, coisas boas. (…) Perdi
o sentido das coisas.”
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CONCLUSÃO
O estudo psicopatológico do caso, ao valer-se do conceito de toxicoma-
nia de Carol Sonenreich, busca elucidar em que medida as alterações psíquicas
dos toxicômanos não decorrem apenas dos efeitos neuroquímicos da droga sobre
o organismo, mas, sobretudo, expressam as conseqüências de uma vivência de
descontinuidade e inconsistência provocada pelo uso das drogas. Através de tais
categorias fenomenológicas chega-se ao conceito da “mentira do alcoólico”, de
valor heurístico, clínico e terapêutico. A principal implicação no tratamento do
dependente químico a partir de tal abordagem reside no fato de que o conceito de
cura deixa de estar situado apenas na especificidade reducionista dos efeitos neu-
roquímicos e farmacológicos. Desse modo, os objetivos terapêuticos extrapolam
os limites da desintoxicação e da manutenção da abstinência. A compreensão de
uma psicopatogenia provocada pela vivência alterada da realidade, secundária ao
uso das drogas, aponta para a psicoterapia como um instrumento privilegiado no
tratamento destes pacientes, talvez o único capaz de transformar e produzir uma
re-significação da qualidade destas vivências. Esta abordagem permite um enten-
dimento peculiar e integrador do toxicômano, e pode significar maiores chances
de sucesso terapêutico destes pacientes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Baltazar ML. Notas de Aula do Curso “Psicopatologia: Contribuições à No-
sologia”. Aula: “A alteração da vivência da realidade no alcoolismo e
demais dependências químicas e suas conseqüências clínicas e terapêu-
ticas”. XX Congresso Brasileiro de Psiquiatria, Florianópolis, 2002.
Resumo publicado nos Anais do XX CBP, 16-18 out 2002, p.38.
51
SUMMARY
Based on a clinical report of a patient dependent of multiple substances, the phenomenological
approach of drug dependence, presented by Carol Sonenreich, in 1971, will be discussed in this
article. The emphasis will be done in the psychopathological study of the case, to elucidate in
which way the psychic alterations of the drug dependents are secondary not only to the neu-
rochemical effects of the substance, but, specially, to how they express the consequences of an
experience of discontinuity and inconsistence provoked by the drugs. Therefore, the concept of
cure in chemical dependence is not anymore situated in the organic or neurochemical processes;
and the therapeutic objectives overstep the limits of desintoxication or maintenance of withdrawal.
The comprehension of this psychopathogeny points to psychotherapy as a privileged instrument
in the treatment of these patients, for being the unique resource able to produce a re-signification
of these experiences.
Serviço de Psiquiatria
Hospital do Servidor Público Estadual ”FMO”
R. Pedro de Toledo, 1800
São Paulo - SP
04039-901
Tel. 50 88 81 21
Email: braga.luciana@pop.com.br
52
Diva REALE**
RESUMO
A autora examina alguns aspectos da formação do psiquiatra na contemporaneidade, enfocando
os primeiros passos da formação do psicoterapeuta. O texto se inicia com um breve apanhado
do cenário das psicoterapias em geral, com ênfase na articulação entre o campo psiquiátrico e o
campo psicanalítico. Em seguida, relata a experiência com os primeiros passos da formação psi-
coterápica de residentes em Psiquiatra da Infância e Adolescência, através do curso Psicoterapia
Dinâmica de Adolescentes. Destacam-se aspectos que interferem no aprendizado tais como: pre-
sença ou não de experiência prévia na clínica psicoterápica e em psicoterapia pessoal, apetências
e definições prévias de linhas de atuação dentre outros. Na parte final, examina-se criticamente
um conjunto de relatos e observações informais, que permitem configurar um (res)caldo cultural
institucional batizado como psiquiatria neo-liberal, enfatizando-se as possíveis repercussões ne-
gativas na formação das novas gerações de psiquiatras.
* Este artigo baseou-se no trabalho “A formação do Psiquiatra e do Psicoterapeuta”, apresentado no XXI Ciclo de
Debates do Hospital do Servidor Público Estadual: “Psiquiatras da nova geração”, em 14 de agosto de 2004.
** Psiquiatra, psicanalista, mestre em Medicina Preventiva - FMUSP. Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da USP SEPIA -IPHC / FMUSP - São Paulo – SP.
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* Neste curso conto com a colaboração, desde a implantação, da psicanalista Fernanda Freire.
**Conto com a terapeuta de família Daniela Rothschild, com quem divido a coordenação pedagógica e supervisão de
casos, e de Nídia A. Vaillati, que atende as famílias em PFB junto com os residentes, alunos do curso.
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II. Avaliação
No nível teórico avalia-se o empenho, a forma e qualidade da apre-
sentação do conteúdo dos textos previamente selecionados. Em alguns anos
realizamos também um trabalho escrito. A nota final deriva primordialmen-
te da atividade teórica.
No nível prático, a avaliação se dá pela capacidade do residente em
se empenhar para poder se aproximar daquilo que se pode esperar de um
psicoterapeuta iniciante, como, por exemplo, que ele se adapte às necessi-
dades psíquicas de seu paciente, na medida suficiente para que a relação
que se estabeleça entre eles assemelhe-se mais a uma relação psicoterapêu-
tica e menos a uma relação clínico-psiquiátrica.
A avaliação das atividades práticas tem, sobretudo, um caráter de feedba-
ck, para que o residente leve consigo uma primeira opinião acerca de suas carac-
terísticas estilísticas na clínica. Ela vai sendo realizada informalmente durante as
supervisões, constituindo outro aspecto formativo de sua prática profissional.
Com a finalidade de tornar a exposição mais clara, apresentamos um
quadro, que didaticamente nos aponta as diferenças que vêm sendo obser-
vadas entre as duas relações terapêuticas:
Relações terapêuticas
Coloquialidade ampla
Coloquialidade restrita
Ritmos do diálogo (abertura p/ associações
(pergunta/resposta)
do paciente)
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Parte II
Psiquiatria para que e para quem? Ou as Cruzadas nunca terminam
As formas de apresentação do campo psiquiátrico para os residentes
variam. Não abordarei aqui aquilo que constitui o esperado a ser encontrado
numa Residência em Psiquiatria. Examinarei certas características da prá-
tica do ensino em psiquiatria que ocorrem no cotidiano e na informalidade
da supervisão/discussão clínica. Nestes momentos, que não são os momen-
tos solenes de ensino, como aulas expositivas, reuniões de serviços, cursos
estruturados etc, surgem opiniões e posições que têm mais ligação com o
caldo cultural institucional, ou mesmo com o resíduo deste caldo, além de
reproduzir a síntese pessoal que cada profissional faz da clínica. Reunirei
aqui algumas reflexões a partir de observações e relatos informais sobre este
rescaldo institucional, que chamarei de psiquiatria neo-liberal. Este termo
designa neste texto um conjunto de deslizes (re)produzidos pela invasão
da prática médica por aspectos ideológicos inerentes à lógica capitalista de
mercado. Em poucas palavras, refiro-me a práticas onde a desumanização
– desvalorização do humano – evidente tanto no contato médico–paciente,
quanto na adoção de determinadas concepções e técnicas é ocultada (ou
justificada) por racionalizações pseudo-científicas. Em outras ocasiões, tal
desvalorização do humano é tratada como normal e como um efeito inevi-
tável das condições (lastimáveis) do serviço público em geral.
No âmbito da prática profissional, o jovem residente pode sofrer uma an-
siedade antecipatória por seu futuro profissional, delineado pelos efeitos que as
pressões (inevitáveis) exercidas pelo mercado de trabalho impõem aos iniciantes.
O cenário apresenta contrastes marcados: para uma minoria, uma
clínica praticada com preços incomuns, inacessível à maioria dos profis-
sionais e pacientes de classe média, e representa o shangrilá atingido pelos
eleitos. Por outro lado, sabe-se que as opções de empregos públicos ou pri-
vados (principalmente plantões) pressupõem jornadas de trabalho extensas
e extenuantes (incluindo deslocamentos por longas distâncias cruzando a
cidade de ponta a ponta). Temos a impressão de que o atendimento de pa-
cientes conveniados em consultório não se tornou ainda prática habitual
entre psiquiatras. No entanto, na rapidez com que as conclusões são tiradas
no afã diário (portanto reproduzindo ideologias comuns na nossa sociedade
atual), uma análise simplista (dentro da ideologia neo-liberal) dita que tais
contrastes são retrato de mérito pessoal e competência técnica, numa duali-
dade simplificadora: winners de um lado e loosers do outro.
O IPQ-FMUSP é um bom lugar para examinar este rescaldo ideo-
lógico, por inúmeras razões, dentre as quais citarei apenas uma: a USP é
considerada, ainda hoje, na área médica, como a instituição que oferece um
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Gilliéron E. Introdução às Psicoterapias Breves. São Paulo: Martins Fontes;
1993.
Hegemberg M. Indicação de Psicoterapia de acordo com diferentes enqua-
dres. (Dissertação de Mestrado). São Paulo: Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo; 1988. 170p.
Reale D. Psicoterapia Dinâmica Breve de Adolescentes. In: Assumpção Jr
F, Reale D. (eds.). Práticas Psicoterápicas da Infância e Adolescência.
São Paulo: Manole; 2002.
Riva D, Forbes J. Complexo de cientista. Folha de São Paulo. Caderno Mais,
11/07/2004, p.17.
Schoueri PL. Transferência em PDB. In: Segre D. Psicoterapia Breve. São
Paulo: Lemos Editorial; 1997.
Szambock M. Indicações e contra-indicações da PDB. In: Segre CD. Psico-
terapia Breve. São Paulo: Lemos Editorial; 1997.
SUMMARY
In this article, the author analyses some aspects of the psychiatric education process, including a re-
flection about the first steps of the psychotherapeutic training. The fist part of the article focuses on a
brief evaluation of the actual scene of the psychodynamic psychotherapy, particularly the articulation
between the psychiatric and psychoanalytic fields. Then, the experience of an initial training of Child
and Adolescent Psychiatry residents in the Adolescent Brief Psychotherapy is reported. The major
aspects that interfere with the learning process are: previous experience as a psychotherapy patient or
with psychotherapeutic practice; previous options for some psychotherapeutic line. In the last part of
the article, the author exposes a critical examination of diverse informal observations, which permit to
configure an institutional cultural broth called neoliberal psychiatry, and discusses if this local culture
can lead to a negative influence in the learning process of the new generations of psychiatrists.
Diva Reale
R. Itacolomi, 333 cj 35.
Higienópolis,
01239-020
tel: 32570983
dreale@uol.com.br
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RESUMO
PHILIPPE PINEL (1745-1826), médico francês, foi introdutor da função médica no hospício, ao liber-
tar das correntes os loucos de Bicêtre. O autor mostra um pouco de sua vida e de sua obra, os prêmios
que concorrera, a freqüência aos salões de Madame Helvetius, os Ideólogos, dos quais era um dos
membros, seus discípulos, seus métodos de tratamento, o amigo JEAN BAPTISTE PUSSIN (1746-
1811), o precursor da reforma. Mostra, também, que PINEL foi o criador da Residência Médica.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bailly PB. Souvenir d’ une élève des Ecoles de Santé de Strasbourg et de Paris,
pendant la révolution. Strasbourg: Strasbourg Medical, 1924, p. 52.
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SUMMARY
It was the French doctor PHILIPPE PINEL (1745-1826) who introduced medical practice into
hospices, when he released the insane in the Bicêtre asylum from their chains. The author shows
a little of his life and works, the prizes that he competed for, his frequenting of the salons of
Madame Helvetius and the Ideologues (which he was a member of), his disciples, his treatment
methods and his friend JEAN BAPTISTE PUSSIN (1746-1811), the implementer of his reforms.
It also shows that PINEL was the creator of Medical Residence.
Guido Palomba
Rua Manoel da Nóbrega, 2064
São Paulo – SP
04001-006
Tel. 38 84 12 31 / 38 87 88 45
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RESUMO
Objetivos: Avaliar a mortalidade e morbidade somática dos pacientes com diagnóstico de transtorno
esquizofrênico e delirante persistente após dez anos de admissão na enfermaria de psiquiatria do
HSPE durante o período de 1991 a 1995. Métodos: A amostra foi composta por 85 pacientes. O per-
fil médico foi avaliado através de inventários sócio-demográfico, psiquiátrico e de saúde somática.
Os óbitos ocorridos neste período foram avaliados. Resultados: Dois terços dos pacientes tinham
problemas com sua saúde somática, os quais necessitaram atenção e tratamento especializado. Para
cada indivíduo com uma boa saúde somática nós encontramos 1.55 indivíduos com ao menos uma
doença somática. Houve uma relação estatística significativa entre dependência de nicotina e presen-
ça de outras doenças. Durante os dez anos de seguimento ocorreram oito óbitos. O Índice de Morta-
lidade Padronizado (IMP) na nossa amostra foi de 195,5%, comparado com as taxas de mortalidade
no mesmo período na região metropolitana de São Paulo, ajustados por idade e sexo. Conclusões:
Os pacientes esquizofrênicos e delirantes têm elevadas taxas de disfunção não só no campo psíqui-
co como somático. A alta prevalência de problemas somáticos deve estar relacionada com fatores
extrínsecos, como dependência de nicotina, estilo de vida sedentária, nutrição inadequada, efeitos
adverso dos psicotrópicos, e também a prováveis fatores intrínsecos da própria doença.
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MÉTODOS
Amostra
Foram selecionamos todos os prontuários médicos dos pacientes interna-
dos na enfermaria de psiquiatria do Hospital do Servidor Estadual de São Paulo
(HSPE-SP) do período de janeiro de 1991 a dezembro de 1995 que receberam
diagnóstico de psicose na alta, correspondendo aos códigos 29.3 a 29.5 da nona
edição da classificação das doenças pela Organização Mundial de Saúde (OMS-
CID-9). Os prontuários foram revisados e selecionados de acordo com dois
critérios de inclusão: 1) apresentar diagnóstico de transtorno esquizofrênico ou
transtorno delirante persistente de acordo com a CID-10 (OMS). O diagnóstico
foi realizado de acordo com os dados da admissão na internação, aplicando o
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Procedimentos
Coleta de dados – os dados demográficos foram coletados diretamen-
te. A atividade profissional foi classificada de acordo com o status funcional
realizado por um departamento médico pericial autônomo.
Os dados clínicos gerais foram coletados quando havia notificação
sobre tabagismo, uso de álcool ou outras substâncias psicoativas. Os diag-
nósticos ou procedimentos foram notificados (doenças que levaram a um
tratamento clínico, intervenção cirúrgica, terapia física, dieta etc.). Os pa-
cientes que apresentaram diagnóstico médico além do psiquiátrico foram
considerados como pacientes com morbidade somática.
Análise Estatística
Foi realizada inicialmente análise descritiva das variáveis demográ-
ficas e clínicas. A média e o desvio-padrão das variáveis contínuas foram
calculadas. Desfechos somáticos favoráveis ou desfavoráveis foram con-
siderados para a análise estatística. O desfecho somático foi considerado
favorável quando não havia nenhuma morbidade somática associada. O
desfecho somático foi avaliado após dez anos da internação na qual os pa-
cientes iniciaram o estudo.
Foi realizada uma cross-table entre as variáveis clínicas e demográ-
ficas usando o chi-square para as variáveis categoriais e t student para as
variáveis contínuas. Foi realizada análise da variância para detectar modi-
ficações ao longo do tempo. Foi considerado significante do ponto de vista
estatístico quando p< 0.05, com Intervalo de Confiança de 95%.
Para análise das taxas de mortalidade foi calculado o Índice de Mor-
talidade Padronizado – IMP (ou Standardised Mortality Ratio – SMR) para
avaliar o possível excesso nas taxas de mortalidade, dividindo o número
de óbitos ocorridos na amostra durante os dez anos de seguimento (1991 a
2000) pela soma do número de óbitos esperado na população geral da re-
gião metropolitana de São Paulo do período em questão, pareados pelo sexo
e idade multiplicado por 100.
RESULTADOS
Oitenta e cinco pacientes foram incluídos, 46 (54.1%) homens e 39
(45,9%) mulheres. Após dez anos da internação índice, o grupo apresentava
idade média de 47(+/- 11,7) anos. Setenta (82,4%) eram brancos, 12 (14,1%)
negros e 3 (3,5%) de outras etnias. Cinqüenta e quatro (63,5%) eram soltei-
ros, 15 (17,7%) casados 14 (16%) separados e 2 (2,3%) viúvos. Quarenta e
sete (55,3%) completaram o ensino superior, 15 (17,6%) o ensino médio,
12 (14,1%) o ensino fundamental e 5 (5,9%) eram analfabetos. Em relação
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DISCUSSÃO
A amostra de pacientes internados na unidade de psiquiatria do HSPE
com diagnósticos de psicoses não afetivas, há quatorze anos, foi caracterizada
por maioria de brancos, solteiros, com bom nível escolar comparado com o
padrão da população brasileira e em sua maioria inativos profissionalmente.
Mais da metade dos pacientes da amostra recebeu diagnóstico de
transtorno esquizofrênico, 28,2% recebeu o diagnóstico de transtorno de-
lirante persistente e 14,1% de psicoses não especificadas. Os sintomas
tiveram início tardio; por outro lado, os indivíduos receberam o primeiro
tratamento psiquiátrico logo após o surgimento dos sintomas. O fato de
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das patologias não psiquiátricas. Uma vez que sabe que seus pacientes têm
estas patologias, o psiquiatra clínico fica mais atento às prescrições, às pos-
síveis interações e de certa forma, cobra o seguimento concomitante das
diversas especialidades.
Com isso, podemos supor que nossa amostra, composta de pacientes
com transtornos delirantes persistentes e esquizofrênicos, tem uma alta in-
cidência desses diagnósticos somáticos e, na grande maioria, recebeu algum
tipo de tratamento especializado. Além do diagnóstico, podemos supor que
o tratamento dessas condições acaba sendo também freqüente e que nossa
amostra apresenta índices mais baixos de subdiagnóstico e subtratamento
de patologias somáticas do que os pacientes que fazem tratamento psiquiá-
trico em instituições que não estão inseridas em um hospital geral.
Podemos perceber que a alta prevalência de problemas somáticos in-
depende de um diagnóstico precoce, e que estes devem estar associadas a
fatores externos, como alimentação, tabagismo, sedentarismo, obesidade,
entre outros, e também a prováveis fatores intrínsecos associados à própria
doença psiquiátrica, que levariam a uma disfunção do organismo.
É possível concluir, através de nossos achados, que a presença de
problemas somáticos independe do correto tratamento da patologia psiqui-
átrica; contudo, a evolução psiquiátrica pode determinar a evolução da mor-
bidade somática. Os casos residuais, que são os mais graves do ponto de
vista psicopatológico e que em geral culminam com uma deterioração men-
tal do indivíduo, apresentam mais problemas somáticos. Nenhum paciente
desse grupo ficou entre os pacientes saudáveis do ponto de vista somático.
Esse achado pode indicar que talvez as alterações somáticas tenham uma
correlação com a gravidade psicopatológica.
Portanto, os indivíduos com diagnósticos de transtornos esquizofrê-
nicos e delirantes com mais idade seriam mais suscetíveis à degeneração de
seus sistemas fisiológicos do que os indivíduos da população geral. A vida
sedentária, o alto índice de tabagismo e os prováveis descuidos com a pró-
pria saúde provavelmente têm um peso acentuado para a ocorrência dessa
morbidade. O uso de antipsicóticos sabidamente tem efeitos colaterais, entre
eles o aumento de peso, a dislipidemia e o aumento da tolerância à insuli-
na, acarretando prejuízos ao funcionamento fisiológico. Talvez estes fatores
ambientais possam ser mais intensos nos pacientes residuais, que têm maior
prejuízo; contudo, não podemos desconsiderar a probabilidade de alterações
biológicas – que acompanham esses transtornos psiquiátricos – que possam
potencializar a alta prevalência de doenças somáticas. A maioria das patolo-
gias envolvidas é causada em parte por fatores que podem ser prevenidos,
como obesidade, tabagismo e sedentarismo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Alstrom CH. Mortality in mental hospitals with especial regard to tubercu-
losis. Acta Psychiatr Neurol 1942; supplement(42).
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Dixon L, Weiden P, Delahanty J, Goldberg R, Postrado L, Lucksted A, Leh-
man A: Prevalence and correlates of diabetes in national schizophre-
nia samples. Schizophr Bull 2000; 26(4):903-12.
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84
SUMMARY
Objectives: Evaluate the mortality and somatic comorbidity after ten years of an admission at
the HSPE inpatient unity during the period of 1991 to 1995 with diagnostics of schizophrenic
disorder and persistent delusion disorder. Methods: The sample was composed by 85 subjects.
All medical charts were evaluated using socio-demographic, psychiatric, and somatic health in-
ventories. All deaths occurred within this period were evaluate. Results: 2/3 of the subjects had
problems with their somatic health, which required medical attention and specialized treatment.
For each subject with a good somatic health we found 1.55 subjects with at least one somatic di-
sease. There is a statistically significant relationship with nicotine dependence and the presence of
health diseases. During ten years follow-up we found eight deaths. The Standard Mortality Ratio
(SMR) was 196,5% in our sample compared to the mortality ratio occurred at the same period
at the metropolitan Sao Paulo region, adjusted by age and sex. Conclusions: The patients with a
schizophrenic and persistent delusional disorder had high levels of mental and somatic health dys-
function. The high prevalence of somatic problems might be related to extrinsically factors like:
nicotine dependence, sedentary life style, inadequate nutrition, and the long-term adverse effects
of the psychiatric medications. Intrinsically factors related to the psychiatric disorder might be
related to this high prevalence.
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Rodrigo FERNANDEZ*
Débora Pastore BASSITT**
RESUMO
A partir da discussão do caso de uma paciente com sintomas tanto do dito espectro fóbico-obses-
sivo quanto de suposta natureza alucinatória, procurou-se estabelecer critérios diagnósticos que
permitissem uma abordagem mais apropriada de indivíduos com quadros situados na zona entre
a fobia/obsessão/compulsão e os transtornos delirante-alucinatórios. Para tanto, lançou-se mão de
uma releitura dos conceitos adotados pelos códigos tomados como referência no campo da pes-
quisa bem como no da prática clínica. Concluiu-se, por fim, que há utilidade na adoção de mode-
los diagnósticos distintos do preconizado na CID-10 ou no DSM-IV, que nem sempre são capazes
de se adequar à miríade de possibilidades psicopatológicas observada na clínica psiquiátrica.
Introdução
Tem-se observado muitas vezes na prática clínica, fato corroborado
pela literatura, que nem sempre o modelo diagnóstico proposto pelos códi-
gos adotados para pesquisa e referência médico-legal possibilita o estabele-
cimento de um diagnóstico acertado, sem o conseqüente projeto terapêutico
adequado. As razões para essas limitações estão além do escopo do presen-
te trabalho, devendo, entretanto, haver uma discussão mais aprofundada
acerca do tema.
Buscou-se, no caso exposto a seguir, a identificação da entidade no-
sológica que melhor explicasse o quadro clínico da paciente em questão, a
fim de se propor a melhor conduta terapêutica. Para tanto, chegamos à con-
clusão de que seria mais conveniente abandonar os modelos propostos pela
CID-10 e DSM-IV, decisão que acabou por se evidenciar acertada, tendo
em vista a favorável evolução clínica da paciente.
Relato de caso
Identificação: VEV, 35 anos, separada, quatro filhos, natural e pro-
cedente de São Paulo, auxiliar de enfermagem, kardecista
Queixa e duração: Medo e esquecimento há cerca de um ano e meio
* Médico residente do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo “FMO”.
** Médica psiquiatra preceptora do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo
“FMO”. Doutora em Ciências da Saúde pela FM – USP.
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mais qual era seu material, quais seus pacientes e o que estava fazendo.
Relata que isso tem acontecido esporadicamente nas últimas semanas, mas
que o marido, antes de sair de casa, dizia-lhe que isso já acontecia – certa
vez, derrubou-o para fora da cama e não se recordava disso.
Antecedentes pessoais: Filha mais nova de prole de três, nascida
de parto normal hospitalar sem complicações; teve doenças próprias da in-
fância, sem seqüelas. Iniciou os estudos aos sete anos, cursando até o fim
do segundo grau; repetiu a sétima série porque faltava muito às aulas e a
quinta série, após episódio em que tentou cortar os pulsos no banheiro da
escola, mas diz não se lembrar os motivos desse ato; fez curso para auxiliar
de enfermagem, exercendo essa função atualmente. Menarca aos 11 anos;
primeiro namorado aos 14 anos; primeira relação sexual aos 17 anos, mas
prefere não falar sobre o assunto por motivos que preferem não explicitar,
somente informando que houve violência na ocasião. Conta que nessa épo-
ca o pai a levou para fazer um exame confirmatório da gravidez, quando no
local, a médica foi hostil com ela, machucando-a ao examiná-la e dizendo
que vagabunda tem que ser tratada desse jeito mesmo.Tem quatro filhos,
sendo a mais velha fruto de um relacionamento com um namorado que era
alcoólico e com quem preferiu não viver, apesar de a família ter insistido
muito para que isso acontecesse; só voltaram a falar com ela após o nas-
cimento da menina. Casou-se aos vinte e oito anos, após sair de casa por
desentender-se com o pai; conhecera o namorado há três meses e teve três
filhos com ele; diz que brigavam muito, separando-se por ocasião das três
últimas gestações. Relata que brigavam muito, pois ele implicava demais
com a enteada, chamando-a implicante e chegando a ameaçar seu namora-
do de morte, mas nunca tinha tais atitudes na frente da paciente, que tem
receio de que ele possa ter intentado abusar da filha, pois esta já o acusou
de tentar agarrar duas de suas amigas. Ultimamente a paciente vinha discu-
tindo freqüentemente com o marido; agrediam-se verbalmente e, no dia em
que ele foi embora de casa, chegaram a agredir-se fisicamente.
Antecedentes mórbidos: Etilista social; nega uso de drogas ilícitas
ou tabagismo.Relata dois episódios de uso de medicação para emagrecer (o
primeiro aos dezenove anos, durante três meses, por orientação de endocri-
nologista, e o segundo episódio aos vinte e três anos, quando comprou por
dois meses uma fórmula vendida pela televisão). Conta, nas duas ocasiões,
que ficou agitada inicialmente e depois se sentia animada, tendo dificuldade
para interromper seu uso (da primeira vez por falta de dinheiro e, da segun-
da, porque pararam de vender o produto).
Antecedentes familiares: Pai falecido por IAM, mãe falecida por
pneumopatia; irmãs e filhos hígidos; filha mais velha grávida de 5 meses
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(diz sobre isso que desejava outro destino para a filha, pois sabe que ela terá
muitas dificuldades).
Exame físico: Sem alterações sugestivas de patologias, além da
obesidade.
Exame psicopatológico: Paciente consciente, vigil, globalmente
orientada, com amnésia lacunar; certa hipervigilância, sem marcada hipo-
tenacidade; sensopercepções e representações sem alterações evidentes no
momento do exame (diz que vê e ouve os espíritos principalmente à noite
em sua casa). Humor depressivo, com afeto congruente; velocidade normal
dos processos psíquicos, com estreitamento do campo vivencial. Discurso
com discreta pressão, sem alterações em seu curso, com conteúdo centrado
na problemática vivenciada. Crítica parcial quanto a sua patologia; pragma-
tismo preservado.
Evolução: Em discussão após a apresentação do presente caso em
reunião clínica, optou-se por introduzir fluoxetina e clonazepam, tendo
sido levantada a hipótese de ansiedade generalizada com períodos de dis-
sociação, que explicariam os esquecimentos e os episódios de auto-mu-
tilação. Além disso, iniciou-se psicoterapia. Durante a internação, foram
realizadas dosagem de TSH e de T4 livre, ambas com resultados dentro do
padrão de normalidade; também se realizou tomografia computadorizada
de crânio, que não demonstrou nenhuma alteração, bem como um eletro-
encefalograma, que resultou normal. Depois de internada na enfermaria
psiquiátrica do HSPE, com alguma melhora do quadro psicopatológico, a
paciente recebeu alta, passando a ser acompanhada em hospital-dia e pos-
teriormente em ambulatório. Recebeu até 60mg/dia de fluoxetina e, ini-
cialmente, 0,5mg/dia de clonazepam, sendo aumentada progressivamente
a dose até 6mg/dia em razão da excessiva ansiedade e queixas de insônia
e recrudescimento dos sintomas depois de iniciar as atividades do hos-
pital-dia e o seguimento psicoterapêutico; substituindo-se fluoxetina por
paroxetina até 40mg/d sem melhora significativa das queixas da paciente,
decidimos por interromper o uso de inibidores seletivos de recaptação
de serotonina (ISRS), mantendo somente clonazepam na dose atual de 5
mg/d. Durante as sessões de psicoterapia, acabou por contar que sua filha
mais velha nasceu de uma gravidez conseqüente de um estupro que não
foi divulgado, o que indispôs sua família contra ela e seus pais a excluí-
ram das relações cotidianas; em razão da agressão sofrida, relata que sem-
pre foi, a partir dessa ocasião, inferior aos outros, em particular às suas
irmãs, que não foram violentadas e que nunca fizeram nada de errado.
Ao longo da terapia, diz eventualmente que a vida não vale a pena, seria
melhor morrer, mas não o faz porque tem os filhos pequenos.
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90
3. Conclusão
A partir da argumentação apresentada até aqui, pode-se afirmar que a
apresentação da paciente não caracteriza um quadro delirante-alucinatório.
Resta então discutir-se quanto à nosografia pertinente, bem como sua pro-
vável etiologia e o tratamento mais adequado para a hipótese apresentada.
II. Demonstração de se trata de um quadro fóbico-obsessivo-
compulsivo segundo a concepção de Sonenreich
1. Conceitos de transtornos fóbico e obsessivo-compulsivo segundo
o DSM-IV
Segundo estabelecido no DSM-IV em citação de Kaplan (2003), o
transtorno de pânico sem agorafobia seria caraterizado por:
A. a e b:
a. ataques de pânico recorrentes e inesperados
b. pelo menos um dos ataques foi seguido por período de 01 mês
(ou mais) de uma ou mais das seguintes características:
• preocupação persistente acerca de ataques adicionais
• preocupação acerca das implicações do ataque ou de suas
conseqüências
• uma alteração comportamental significativa relacionada aos ata-
ques
B. ausência de agorafobia
C. os ataques de pânico não se devem aos efeitos fisiológicos diretos
de uma substância ou de condição médica geral
D. os ataques de pânico não são melhor explicados por outro trans-
torno mental como Fobia Social, Fobia Específica, TOC, Trans-
torno de Estresse Pós-traumático ou Transtorno de Ansiedade de
Separação
Já a definição de ataque de pânico dá-se pelos seguintes critérios
do DSM-IV (não sendo codificável per se, havendo que incluí-lo em outro
transtorno):
Um período distinto de intenso temor ou desconforto, no qual quatro
ou mais dos seguintes sintomas desenvolveram-se abruptamente e alcança-
ram um pico em 10 minutos:
a. palpitações ou ritmo cardíaco acelerado
b. sudorese
c. tremores ou abalos
d. sensações de falta de ar ou sufocamento
e. sensações de asfixia
f. dor ou desconforto torácico
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94
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SUMMARY
Based on a clinical report of a patient with symptoms of phobic-obsessive pattern as well as those
of delusional nature, we tried to establish diagnostic criteria which allowed us to handle with
cases located in the zone between phobia-obsession/compulsion and delusion/hallucination. To
do it, we suggest a new approach to the concepts utilized by the diagnostic codes usually cited by
clinical and theoretical researches. We concluded, in the end, that it would be useful if one tried
to adopt diagnostic models different from the usually utilized by psychiatrists in research as in
clinical practice.
96
RESUMO
Sarcoidose é uma doença inflamatória sistêmica, de causa desconhecida, que ocorre em todo o mundo e
acomete pessoas de todas as idades e etnias. O diagnóstico requer evidência histológica de granulomas
não-caseosos em um ou mais sistemas de órgãos afetados. Os pacientes situam-se na faixa de 20 a 40
anos de idade no momento do diagnóstico. A neurosarcoidose ocorre em aproximadamente 5% a 15%
dos casos de sarcoidose. Neste relato, será apresentado o caso de uma mulher de 42 anos, com história
clínica de depressão com sintomas atípicos relacionada ao envolvimento do sistema nervoso central
por sarcoidose. A avaliação clínica e o sucesso terapêutico com antidepressivo são descritos, bem como
a importância de um encaminhamento adequado para a investigação clínica e o tratamento.
INTRODUÇÃO
Sarcoidose é uma doença inflamatória sistêmica, de causa desconhecida,
caracterizada pela presença de granulomas não-caseosos em um ou mais siste-
mas de órgãos afetados (Weinberger, 2001; Thomas e cols., 2003; Burns, 2003).
Os granulomas podem ocorrer aleatoriamente pelo organismo, sendo
mais freqüentes nas formas pulmonar e nos linfonodos do mediastino e na re-
gião hilar (Thomas e cols., 2003). Segundo estes mesmos autores, os pacien-
tes podem ser assintomáticos, ter resolução espontânea ou desenvolver doença
progressiva acometendo vários sistemas, incluindo queixas psiquiátricas.
Estudos epidemiológicos comparativos demonstraram que fatores
geográficos, étnicos e genéticos estão fortemente associados às característi-
cas clínicas destes pacientes. Thomas e cols. ainda apontam que a incidên-
cia da doença é maior em negros dos Estados Unidos (EUA) e na população
da Escandinávia, parecendo ser menos comum em brancos dos EUA, japo-
neses, indianos, espanhóis e populações sul-americanas.
Afeta predominantemente indivíduos entre 20 e 40 anos, sendo as
mulheres mais afetadas que os homens. Quando atinge pessoas acima de 40
97
RELATO DE CASO
Paciente feminina, 42 anos, parda, compareceu à avaliação psiquiá-
trica com queixa inicial de “tontura, fraqueza e formigamento nas pernas
que subia à cabeça” há 7 meses. Relatava também quedas em via pública
devido à fraqueza e permanecia em casa deitada na cama com uma “tristeza
profunda”, desânimo, inapetência e insônia intermediária. Ao exame foi
observada uma lentificação dos processos psíquicos em um campo viven-
cial estreitado. Há 6 meses, em outro serviço, havia iniciado uso diário
de Fluoxetina 20 mg e Clonazepam 1 mg com pouca melhora. Trouxe
ainda tomografia computadorizada de crânio evidenciando espessamento
de haste hipofisária com realce pós-contraste. No interrogatório informou
amenorréia de 1 ano, sem avaliação. Com a apresentação psicopatológica
levantou-se hipótese de transtorno depressivo orgânico (F06.32, Classifica-
ção Internacional de Doenças - CID–10) e amenorréia a esclarecer. Foram
prescritos Fluoxetina 40 mg e Clonazepam 1 mg diariamente.
Em 2 meses, mantinha sintomas depressivos, queixou-se também de
polidipsia, vômitos, xerostomia e síncopes. Apresentava sonolência diurna e
insônia, não tolerando a Fluoxetina. Na ocasião, foi medicada com Sertralina
50 mg ao dia e solicitada avaliação neurocirúrgica após o resultado da Res-
sonância Magnética (RNM) de crânio, na qual observava-se: “espessamento
concêntrico de infundíbulo pituitário e corpos mamilares, com impregnação
interna pelo contraste”. Evidenciou-se também “impregnação dos sulcos en-
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DISCUSSÃO
Duwve e Turetsky (2002) afirmam que, dada a baixa incidência desta
doença na população, a inclusão da sarcoidose no diagnóstico diferencial
dos transtornos mentais não é realizada freqüentemente. Descrevem o caso
de uma mulher negra, de 37 anos, com transtorno psicótico secundário a
comprometimento central por neurosarcoidose, sem investigação clínica
consistente, medicada apenas com antipsicóticos e com diversas interna-
ções. Durante os 6 anos de hospitalizações, o diagnóstico prévio de neu-
rosarcoidose era desconhecido ou até ignorado, demonstrando a falta de
integração entre clínicas e serviços que prestaram assistência.
Lipscombe e cols. (2003) relatam que características clínicas das le-
sões envolvendo o hipotálamo e a haste hipofisária dependem da localiza-
ção, grau de extensão adjacente e da progressão.
As lesões envolvendo o hipotálamo e haste podem levar a deficiên-
cia hormonal da hipófise anterior, causadas tanto por comprometimento da
liberação dos peptídeos hipotalâmicos quanto por compressão glandular.
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ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A.; 2001. p. 480–3.
SUMMARY
Sarcoidosis is a multisystem granulomatous disorder of unknown etiology that occurs throughout
the world and affects people of all races and ages. Diagnosis requires histological evidence of wi-
despread noncaseating epithelioid cell granulomas in more than one organ. Patients are typically
between 20 and 40 years of age at the time of diagnoses. Neurosarcoidosis occurs in approximately
5% to 15% of sarcoidosis cases. A case is presented of a 42 year-old woman with a clinical history of
atypical depressive symptoms related to the involvement of the central nervous system due to sarcoi-
dosis. The clinical evaluation and the successful treatment with antidepressant therapy are described
as well as the importance of an adequate referral to clinical investigation and treatment.
102
*Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Professor Titular da Faculdade de Medicina da USP.
**Entrevista publicada originalmente na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, março de 2005.
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veria ser feito não com verbas da Saúde, mas da área de Bem-Estar Social.
Nada é mais difícil para as pessoas comprometidas por psicose ou alguns
outros transtornos psiquiátricos do que entender a lógica da sociedade: são
explorados, entram em conflito com os vizinhos, com a polícia, são vítimas
da dificuldade de compreensão sobre as regras do jogo social. Precisam de
alguém que intermedeie – e isso é institucional. Já houve a fantasia de que
a desinstitucionalização seria possível. De acordo com o muito informativo
livro Loucos pela vida, de Paulo Amarante e colaboradores, a proposta para
o Brasil era desinstitucionalizar, desconstruir a doença mental como um
problema médico e vê-la como um problema psicossocial. A razão de se
usar a palavra manicômio para designar qualquer hospital psiquiátrico, por
exemplo, foi uma decisão estratégica para identificar todos os serviços hos-
pitalares com os manicômios judiciários. Mas o que aconteceu? Em vez de
desinstitucionalização, houve des-hospitalização, aquilo que Rotelli conde-
nou nos Estados Unidos. No mínimo, isso foi uma aventura irresponsável.
M.T.: Qual é a diferença entre des-hospitalizar e desinstituciona-
lizar?
V.G.F.: Para desinstitucionalizar, as propostas seriam ainda mais
radicais: os pacientes deveriam se tornar autônomos. O que houve, na me-
lhor das hipóteses, foi trans-institucionalização: a pessoa saiu do hospital
para ir para o Caps, que é uma instituição. Um artigo no British Medical
Journal, em novembro de 2004, demonstra trans-institucionalização e au-
mento da população carcerária doente mental em seis países da Europa,
inclusive na Itália. Estamos, de fato, incapazes de desinstitucionalizar.
Por quê? Porque, diferentemente de 1960, não temos nenhuma dúvida
de que essas são doenças médicas incapacitantes. O pós-guerra trouxe
a expectativa de que, através de intervenções psicossociais, haveria pre-
venção em todos os níveis, inclusive na reabilitação dos doentes mentais.
Com a indisponibilidade de qualquer tratamento médico eficaz para esse
tipo de problema – não existia nada, a não ser o eletrochoque – todas
as fichas foram colocadas na chamada abordagem social-comunitária, de
inspiração psicodinâmica. O principal articulador nos Estados Unidos foi
Gerald Caplan. O problema é que nada daquilo foi submetido a teste de
eficácia – era intuitivamente correto, lógico, dentro dos conhecimentos da
época, só que acabou prometendo mais do que podia fazer. As promessas
do movimento psicodinâmico-psicossocial-comunitário e da “psicanálise
nas instituições” não puderam ser cumpridas. Quais eram elas? Em famí-
lias saudáveis, não haveria doentes mentais; em uma sociedade solidária,
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*Os trabalhadores da DINSAM – Divisão Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde – no Rio de Janeiro, em 1978,
teriam sido desencadeadores do futuro movimento antimanicomial ao denunciar as más condições de quatro hospitais psiqui-
átricos do Estado, de acordo com a versão apresentada comumente por autores ligados ao movimento. (Nota do E.)
117
vavelmente teriam percebido que melhor seria readequar algumas das institui-
ções. Mas a época era de revolução; uma revolução não-sangrenta, exceto para
os pacientes e para as famílias. Esse movimento se torna “Movimento da Luta
Antimanicomial” e sua bandeira passa a ser o fechamento dos hospitais. O que
está por trás disso continua sendo a mesma coisa: melhores condições de tra-
balho, mais poder, mais direito de dizer o que fazer para cada paciente, condi-
ções mais agradáveis de trabalho. Quais são essas condições mais agradáveis?
Desconsidera-se os casos mais complicados e mais difíceis, como se eles não
existissem; seleciona-se os casos mais adequados para o modelo que a equipe
pretende seguir; propõe-se atividades em grupo para ajudar criativamente essas
pessoas a se sentirem melhor; também o profissional de saúde procura se sentir
mais feliz, realizado e, de preferência, mais bem remunerado. Quem fala isso
sobre os centros italianos não sou eu. É Kathleen Jones, Professora Emérita de
Política Social na Inglaterra. Ela visitou os serviços: atendiam neuróticos e psi-
coses leves, em grupo, em psicoterapia, ambientes assépticos, algumas horas
por dia, bem remunerados. Não é uma maravilha? O que aconteceu, na Itália,
em muitos centros comunitários, foi que eles só ficaram com os casos de que
podiam dar conta.
M.T.: O senhor acha que é isso que acontece nos Caps?
V.G.F.: Com exceção da remuneração. Você tem alguma dúvida?
M.T.: Eu não sei.
V.G.F.: Vá a um Caps, veja quantos pacientes estão amarrados na
cama. Nenhum.
M.T.: E isso não é bom?
V.G.F.: Isso quer dizer que paciente psiquiátrico não precisa ser amar-
rado na cama? Não. Quer dizer que o paciente que precisa ser amarrado na
cama, enquanto o medicamento não funciona, não está no Caps. Onde ele
está? Ou em algum manicômio residual, ou num pronto-socorro, ou preso,
ou com alguma família que o mantém em casa, a duras penas para ambos. A
maioria dessas pessoas não entra nas estatísticas. Elas não existem. Quando
estão nas ruas, passam a fazer parte da paisagem. Outro dia, entrevistei o
senhor Raimundo. Conhece o senhor Raimundo? Você conhece: é aquele se-
nhor que fica na Pedroso de Moraes*, sentado naquela esquina, escrevendo.
*A Pedroso de Morais é a avenida de grande circulação em bairro abastado de São Paulo; Raimundo tem sua casinha
de madeira no canteiro central da avenida. (Nota do E.)
118
Ele está lá, segundo me disse, há mais de dez anos. Olhando, dá a impressão
de que não toma banho. Se ele te der uma folhinha de papel, será mais branca
do que essa do seu caderno. Ele escreve frases, sem maior coerência ou con-
teúdo. O bairro todo passa pelo lugar do seu Raimundo, dá água, comida. Só
que o seu Raimundo está psicótico, há muitos anos, e está na rua. Há outros
psicóticos que, de repente, podem se tornar violentos devido a delírios ou
alucinações. Uma vez, visitando o Juqueri, vi um paciente amarrado na cama
porque avançava nos olhos ou nos testículos – de outras pessoas, ou dele mes-
mo. Esses indivíduos existem, e não vão para os Caps; estão doentes e não
estão sendo atendidos adequadamente.
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V.G.F.: Imagine que ele ouve uma voz. Essa voz diz para ele seguir
algo escrito em algum livro religioso. Por exemplo: ao ver algo de condená-
vel, ele tem que arrancar os próprios olhos. Não faltam textos para sugerir
esse tipo de coisa. Ou que tal o caso da enfermeira norte-americana Andrea
Yates, que afogou seus cinco filhos na banheira? Sofria de depressão psicótica
pós-parto, foi tratada com antidepressivos de penúltima geração. A indicação
específica para ela teria sido eletroconvulsoterapia; mas, no Texas, fazer ECT
é muito complicado. Recebeu alta; em casa, quando o marido foi trabalhar,
afogou todos os filhos, um atrás do outro; depois telefonou à polícia, e espe-
rou ser presa. Foi condenada à prisão perpétua. O marido a defendeu no tribu-
nal. Minha pergunta é: quem deveria ser condenado? A sociedade do Texas.
M.T.: O senhor afirma então que no modelo de Saúde Mental preconi-
zado pelo Sistema Único de Saúde, essas pessoas não podem ser tratadas.
V.G.F.: Obviamente, elas precisam de tratamento médico ultra-es-
pecializado. Num caso como o de Andrea Yates (e eles existem aqui), é
necessário um centro capaz de fazer eletroconvulsoterapia, sob anestesia,
com cuidado intensivo. Onde é possível fazer isso na rede pública no Bra-
sil? Em alguns centros universitários e em poucos hospitais públicos. Tente
fazer isso fora daí. Em primeiro lugar, o ECT não é remunerado pelo SUS.
Por isso, alguns hospitais filantrópicos o aplicam, mas sem as condições
técnicas adequadas. Tente regulamentar isso. Participei de uma audiência
pública na Câmara Federal; estava lá o autor de um projeto para regulamen-
tar o ECT, o Deputado Marcos Rolim. Levei um vídeo para mostrar como
se faz ECT aqui no Hospital das Clínicas: uma senhora idosa entra, deita,
põe os eletrodos de monitorização, é anestesiada, faz a convulsoterapia, le-
vanta, toma café e vai embora para casa – a maior parte dos nossos clientes
são ambulatoriais. Surpresa na platéia: “quer dizer que não é na marra, 450
volts, passando uma motocicleta por cima das pessoas?” Não. O ECT é um
procedimento médico que salva vidas. No caso da Andrea Yates, poderia ter
salvo a vida de cinco crianças e a dela. Só que, na Câmara Federal, os mé-
dicos foram contra, por considerarem o projeto uma intervenção na auto-
nomia do médico; o Conselho Federal de Psicologia foi contra, porque não
quer que a eletroconvulsoterapia seja reconhecida pelo SUS. Um absurdo.
O projeto foi rejeitado; conseqüentemente, até hoje a rede não tem como
atender casos como o de Andrea Yates. O que é isso?
M.T.: Um momento. Na proposta da Reforma Sanitária da Saúde
Mental, não se leva em conta a existência dessas pessoas? Ou eles acham
que é possível dar conta delas no ambiente do Caps?
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V.G.F.: Todos sabemos que essas pessoas não podem ser atendidas
nos Caps, a não ser que o Caps se torne uma unidade de cuidados intensivos
em psiquiatria.
M.T.: No modelo, os Caps 24 horas deveriam ser capazes de acom-
panhar casos graves durante até cinco dias. Prevê-se que a pessoa não saia
do Caps no período.
V.G.F.: Isso que você descreve chama-se “hospital psiquiátrico de
agudos”.
M.T.: Tenho notícia de que esse parece ser um problema bastante
concreto no modelo: não há lugar para agudos.
V.G.F.: Agudos precisam de Unidade Psiquiátrica. Chega uma certa
hora em que não se pode negar assistência; em cinco dias, o caso do seu
Raimundo ou o de Andrea Yates não se resolvem. Mas eles não têm que
ficar num manicômio.
M.T.: O hospital psiquiátrico não pode ser substituído pela enfer-
maria psiquiátrica no Hospital Geral?
V.G.F.: A enfermaria psiquiátrica no Hospital Geral é útil, principal-
mente em regiões em que não se pode ter uma instituição mais sofisticada.
Há entre essas enfermarias aquelas que são manicomiais. Por quê? Por mis-
turar patologias num mesmo ambiente; por não ter equipes com o número
de funcionários e a competência técnica necessários. A remuneração do
leito psiquiátrico pelo SUS não é compatível com a manutenção de um
serviço adequado. Os casos mais graves deveriam ser remunerados como
Alta Complexidade.
M.T.: Mas essas enfermarias são pequenas. Falta a elas essa carac-
terística de imensidão do que é chamado de manicômio.
V.G.F.: A lógica é manicomial: uma equipe mal treinada lida simul-
taneamente com doenças diferentes. Não adianta dizer que as enfermarias
psiquiátricas da Unicamp, de Ribeirão Preto, da Escola Paulista de Medici-
na, do Servidor Estadual, ou a da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul – as melhores que temos – dão conta de tudo. Eles não podem atender
vários casos muito graves. Em uma delas, não se podem atender homens.
Precisaríamos de muitas unidades psiquiátricas no Hospital Geral. Como
se faz para não ficar manicomial? Pode-se, por exemplo, criar unidades
121
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caz, ou apenas por ser compatível com uma teoria ou ser bem intencionado.
É necessário adotar procedimentos que funcionem. Não vai ser o PNASH
[Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares] que vai mudar
essas coisas. O texto do PNASH para psiquiatria foi baseado numa pesqui-
sa de satisfação do “cliente externo... no Grupo Hospitalar Conceição” no
Rio Grande do Sul. Nada se sabe dessa pesquisa. Imagine se alguém per-
guntar a um usuário: “Você quer tomar eletrochoque?; quer ser amarrado
na cama?; quer tomar remédio sedativo?”. Avalia-se assim a eficiência de
um sistema? Foi perguntado se a pessoa precisa de ECT; se é preciso ficar
temporariamente contido no leito enquanto toma um soro ou espera uma
medicação fazer efeito; se tem impulsos agressivos agudos; se precisa de
uma medicação sedativa durante algum tempo, para controlar sintomas psi-
cóticos ou agitação? Ao mesmo tempo, o PNASH não serve para remunerar
decentemente um serviço melhor. Só é levado em conta para reduzir a diária
hospitalar, já aviltante, conforme o número de leitos de uma instituição,
independentemente da qualidade dos seus serviços. Isso parece o garrote
espanhol. É mais uma forma de fechar leitos e impedir a oferta de servi-
ços hospitalares, adotada desde que o Projeto Delgado foi derrotado, ao
não conseguir impor o fechamento obrigatório dos hospitais. Se fosse para
aumentar a receita para serviços extra-hospitalares, a estratégia deveria ter
sido ir ao Congresso, ao Ministério da Fazenda, dizer: “precisamos de mais
recursos para a área de saúde mental; isto aqui causa prejuízos de bilhões
de dólares por ano”. A verba para a Saúde Mental – R$ 600 milhões por
ano – é irrisória perto do prejuízo, dos custos indiretos das doenças mentais.
O que precisaria ser dito é: “temos hoje boa medicina, boa psiquiatria, boa
eficácia, boa prevenção secundária; vamos investir num sistema eficiente,
treinar bem as equipes, dar os medicamentos essenciais e diminuir as reper-
cussões econômicas e sociais disso”. Mas não é o que acontece. O Ministé-
rio vai ao Congresso se vangloriar do fechamento de leitos e promete fazer
mais Caps. Por quê? Como reivindicar psiquiatria de alta complexidade, se
o compromisso é com cuidados primários e com o movimento basagliano,
que pretende negar a psiquiatria e desmedicalizar os problemas de Saúde
Mental? Como dizer que a eletroconvulsoterapia é um procedimento eficaz
e seguro, que deve ser utilizado por salvar vidas, que deve ser remunerado
para ser bem utilizado, quando os seus aliados querem caracterizar o ECT
como tortura? Falávamos de três conflitos...
M.T.: O senhor explicitou dois: socialismo versus capitalismo, psi-
quiatria dinâmica versus psiquiatria biológica.
123
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em que ele participava de corridas de saco e com ovo na colher. Isso me revolta.
Cadê a Ética, o respeito humano, o direito dessa pessoa de ser preservada? É
um indesculpável abuso.
M.T.: Qual deve ser, no seu entendimento, o destino dos Caps?
V.G.F.: Para os Caps funcionarem bem, devem estar adequados ao
local em que se encontram. Em um município de 30 mil habitantes, um
Caps pode ser o centro de triagem e de referência, até estabelecer um pro-
grama de reabilitação semelhante ao hospital-dia, por exemplo. O problema
é: ele não serve para moradia, nem para hospitalização aguda. Ele serve
como centro para coordenar um programa de prevenção em vários níveis.
Mas uma coisa é certa: não substitui o hospital e nem o asilo.
M.T.: Qual deveria ser o lugar do psiquiatra nesse Caps que o se-
nhor descreveu?
V.G.F.: Custa formar um psiquiatra: seis anos de Medicina, dois anos
de residência, mais alguma especialização. Como a questão é de saúde pú-
blica, o que é melhor: ter um médico generalista com formação básica em
psiquiatria numa cidade com 30 mil de habitantes, ou levar um psiquiatra
para uma cidade de 30 mil habitantes? Lógico que deveria ser um médico
generalista com conhecimento de psiquiatria. Não é necessário ter um psi-
quiatra em cada Caps, um psiquiatra em cada cidade. Mas se esse generalis-
ta precisar de uma supervisão ou de uma consultoria, então deve haver um
psiquiatra a quem ele possa recorrer. Existem perto de nove mil psiquiatras
no Brasil. Com 180 milhões de habitantes, não é possível esperar que a as-
sistência esteja centrada no psiquiatra. Mas na hora que houver um proble-
ma psiquiátrico mais complexo, dá para transferir a responsabilidade para a
equipe multiprofissional? Não dá.
M.T.: Os defensores do modelo atual acham que dá?
V.G.F.: Sim. Mas os membros das equipes multiprofissionais não têm
formação para isso. Como se prova que não têm? Simples: basta pedir que
entrevistem dez pacientes e formulem um diagnóstico clínico. Impossível.
Mesmo um clínico geral – e muitos psiquiatras que fizeram residência há
muito tempo e não se reciclaram, também – não sabe fazer diagnósticos di-
ferenciais. Seria preciso um sistema de educação continuada para garantir
qualidade, como se faz em alguns países. O resto é falso: “vamos fazer uma
assembléia para decidir se damos alta ou não para uma pessoa”. Bonito? Um
dia assisti a uma palestra, aqui no Instituto de Psiquiatria, quando contaram
125
uma experiência em que uma decisão dessas foi tomada em reunião de equipe:
a opinião do psiquiatra valia quase tanto quanto a da cozinheira do serviço.
Eu comentei que quando o psiquiatra e a cozinheira trocam de papéis, quem
sofre é a comida. Então, vamos preservar responsabilidades e competências,
porque estamos lidando com a vida de uma outra pessoa que está sofrendo;
vamos parar de tratar isso como se fosse mais simples do que é, pois não é
simples. Tenho 35 anos de psiquiatria, e tenho medo de não saber o que fazer
em muitas situações. Como posso esperar que alguém sem vivência, que não
conhece a literatura, com formação em área complementar, possa tomar deci-
sões desse tipo? Não posso aceitar. Eu sou médico; agora, toda vez que tiver
um parto, vou entrar? Não; não tenho competência para isso. Se as pessoas
ficassem dentro da ética, da responsabilidade, da competência e da honestida-
de, teríamos menos problemas. As pessoas estão correndo riscos desnecessá-
rios, e estão fazendo outras pessoas correrem riscos desnecessários.
M.T.: O senhor, ao se contrapor aos partidários da Reforma, defen-
de uma especificidade da psiquiatria frente aos outros profissionais, mas
para confundi-la com a medicina.
V.G.F.: Confundir não, identificar com a medicina. A única coisa
que a psiquiatria tem de eficaz é a abordagem médica. É uma especialidade
médica, como a neurologia ou qualquer outra.
M.T.: E seu objeto...
V.G.F.: ... é o indivíduo doente mental, desde as doenças mentais
mais leves, como o transtorno de pânico, até as doenças mentais mais gra-
ves, até a demência. Quem define melhor a psiquiatria é o maior psiquiatra
da Grã-Bretanha, o maior psiquiatra da língua inglesa de todos os tempos,
Aubrey Lewis. A definição dele, que eu uso muito: “Psiquiatria é o estudo
do comportamento anormal do ponto de vista médico: ela se ocupa com o
diagnóstico, o prognóstico, a prevenção e o tratamento.”*
M.T.: Não há nada mais próprio à psiquiatria do que ela ser medicina?
V.G.F.: A psiquiatria é uma especialidade médica, não é outra coisa.
Não é psicanálise, não é terapia comportamental, não é psicofarmacologia,
não é nada disso. Ou não? Quem disser que não, por favor me conte o que
é então a psiquiatria.
*A definição apareceu em “Empirical or rational? The nature basis of psychiatry”. Lancet, 1967. A tradução é do
professor Valentim, para: “Psychiatry…is the study of abnormal behaviour from the medical standpoint: it is therefore
concerned with diagnosis, prognosis, prevention and treatment”. (Nota do E.).
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Carol SONENREICH *
* Médico psiquiatra. Diretor do Serviço de Psiquiatria do Hospital do servidor Público “FMO” – São Paulo - SP
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tal deve ser tomada por uma piada, equívoco, opinião. Falava-se (Talbott,
1985) de desastre da desinstitucionalização. Foi compensada em parte por
uma rápida expansão dos serviços de internação, predominantemente par-
ticular (Dorwart, 1988).
Em 2000, uma conferência realizada na Alemanha nos informa sobre
a situação em diversos estados europeus. Aparece claramente que, nos paí-
ses do leste europeu, sob regime comunista, a questão da “reforma psiquiá-
trica não se colocava”. Na República Democrática Alemã só se iniciou uma
reforma depois de 1989, depois da unificação. Do outro lado, na República
Federativa Alemã, o parlamento recomendou em 1971 uma reforma, sem
fechamento de hospitais psiquiátricos, mas com reestruturação.
Como no resto do mundo, na Europa a reforma foi aplicada somente
nos países mais ricos. Os regimes comunistas nunca a adotaram. Nem na
China, nem em Cuba proclamou-se o objetivo de reduzir o número de leitos
psiquiátricos.
A Itália merece observação destacada, especialmente pela importân-
cia que é dada à “reforma”, associada ao nome de Basaglia, legalizada em
1978. A lei “180”, aprovada por entendimento entre as lideranças parti-
dárias, não foi a primeira, mas foi a mais radical na abolição do hospital
psiquiátrico, Até 1996, todo hospital psiquiátrico deveria ser fechado. Este
prazo foi adiado para 31 de Março de 1998, mas até hoje não concluído.
Em 1985, Papeschi declarava ser errada esta lei, e exigia sua recon-
sideração. Pederzini (1986) dizia que a filosofia da lei 180 fazia parte da
cultura de morte. A viúva de Basaglia, Franca Ongaro (1988) constatava
que por falta de instrumentos, persistiam na Itália “manicômios dos mais
degradantes”. A hospitalização seria necessária, para elaborar a identidade
do delirante, escrevia Sarli (1986), citando Basaglia.
Saraceno, que muitas vezes fez afirmações incompreensíveis sobre
a doença mental e seu tratamento, escrevia (1990) que a reforma não teria
sido “contra o asilo”, mas exaltava a terapia comunitária.
Parece que muitos hospitais psiquiátricos italianos declararam for-
malmente seu fechamento, mas freqüentemente escondem a realidade sob
outros nomes (Bassi-Parma, 1999).
O Ministro da Saúde, F. di Lorenzo (1991), declarava que a Lei 180
foi um remédio quase pior que a doença. Favoreceu verdadeiras tragédias,
atos de violência. As famílias foram muito mal tratadas.
Em 1996 jornais protestavam contra a perspectiva de mais fechamen-
tos de hospitais.
Tais informações serão desconhecidas para os “lutadores antimani-
comiais” do Brasil? A figura e a atividade de Basaglia, na visão de Colucci
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(2001) - autor da única biografia dele que conhecemos - não são das mais
merecedoras de um culto. Ele não conseguiu o cargo universitário que de-
sejava, em Parma, e foi para o “manicômio” de Gorizia, que representava o
oposto da carreira universitária. Neste lugar, nada conseguiu realizar “por
falta de apoio das autoridades (1961). Sua saída de lá não foi bem vista por
seus companheiros; Jervis o acusava de carreirismo (1977). Mudou-se para
Trieste já com apoio material da OMS (173). Em 1977, foi eleito secretário
nacional da Psiquiatria Democrática. Preferiu não debater o significado da
“doença mental”, enquanto não fosse realizada a transformação da institui-
ção. Uma “auto-suspensão científica, para não atrasar a luta antimanico-
mial”. Às vezes dizia que a doença mental existe, outras vezes a via como
um instrumento de rotulação, e o manicômio como instrumento de des-
truição daquele que foi rotulado (1979), ou: “Não quero dizer que doença
mental não exista, mas que nós produzimos uma sintomatologia - o modo
de exprimir-se a doença conforme o modo que pensamos em questioná-la
- porque a doença constrói-se e exprime-se sempre conforme as medidas
adotadas para enfrentá-la”.
Os autores da biografia citada acham que Basaglia não fez muito para
os pacientes, para a psiquiatria, mas fez muito para sua carreira.
Conhecemos uma série de tomadas de posição dos psiquiatras brasi-
leiros, contrários ao fechamento indiscriminado de instituições e leitos psi-
quiátricos, como objetivo de uma “reforma”. Sempre proponho caminhos,
meios de melhorar as condições hospitalares, de criar modos alternativos
de atendimento, de valorizar os ambulatórios, o tratamento na comunidade.
Assim orientamos toda nossa atividade, na Unidade Psiquiátrica no Hospi-
tal-Geral, no HSPE de São Paulo.
Argumentar com veemência contra o uso de leitos psiquiátricos ou
contra o “modelo hospitalocêntrico” foi, e continua sendo, uma prática
mais exercida por não-médicos, seja exercendo poderes públicos, seja como
componentes eventuais da “equipe de saúde mental”. Alguns deles susten-
tam esta posição por achar – equivocadamente – que a “reforma”, assim
como foi proposta por Basaglia, teria um caráter popular de esquerda, o
que é decididamente falso. Somente os governos mais conservadores, nos
países mais ricos do mudo, adotaram tais medidas.
Outros, por interesses corporativistas, acham que assim podem abrir
grandes campos de trabalho para eles mesmos ou para suas categorias pro-
fissionais. Encontraram apoio em pessoas que exercem, de uma forma ou de
outra, o poder, continuando uma linha que não foi interrompida durante as
ditaduras. Num fórum organizado pelo Conselho Federal de Psicologia, em
31 de Maio de 2000, foi enaltecida a abolição do “modelo hospitalocêntrico,
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Alencar AI. Estudos de psicologia 1997; 2(2):421-423.
Barreto F. Entre as aves e as feras. Casos Clínicos em Psiquiatria 2004;
6:6-11.
Basaglia FO. Assistenza psiquiatrica: proposta de integrazione della lege
180. Prospettive Sociali e Sanitari 1988; 15:1-4.
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