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Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Rio de Janeiro
2010
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A nova ordem cerebral:
a concepção de ‘pessoa’ na difusão neurocientífica
2010
A nova ordem cerebral
A concepção de ‘pessoa’
na difusão neurocientífica
Aprovada em:
_______________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte – PPGAS-MN- UFRJ (Orientador)
_____________________________________________________
Profa. Dra. Sônia Weidner Maluf – PPGAS-UFSC
______________________________________________________
Profa. Dra. Jane Araújo Russo – IMS - UERJ
________________________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho – PPGAS-MN-UFRJ
________________________________________________________
Prof. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna – PPGAS-MN-UFRJ
___________________________________________________________
Profa. Dr. José Sérgio Leite Lopes – PPGAS –MN-UFRJ (Suplente)
___________________________________________________________
Profa. Dra. Lilian Krakowski Chazan – CLAM/IMS/UERJ (Suplente)
Azize, Rogerio Lopes
Instigante e desafiador são bons adjetivos também para a orientação do professor Luiz
Fernando Dias Duarte. É evidente nesta tese o diálogo com as suas pesquisas. Os seus
trabalhos e orientação direta são aqui uma referência ‘física’; mas há também uma
referência ‘moral’ que levarei comigo: uma postura pedagógica aberta e sensível, que
marca as suas posições ao mesmo tempo em que confere autonomia. Por tudo isso,
obrigado.
O professor Octavio Domont de Serpa Júnior aceitou guiar-me pelos caminhos para
mim desconhecidos do Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Fico muito grato pela sua
atenção e paciência.
Por convites para falar em contextos diferentes a respeito de resultados parciais desta
pesquisa, agradeço às professoras Sônia Weidner Maluf (UFSC) – minha orientadora no
mestrado – e Carmem Susana Tornquist (UDESC), ao professor Guido Korman
(Universidade de Buenos Aires) e a Gabriel Cid de Garcia (produtor cultural da Casa da
Ciência/UFRJ). Agradeço também aos professores e colegas com quem tive a
oportunidade de trocar idéias nos congressos da ABA, da ANPOCS e na RAM.
Por motivos diferentes, seja pela amizade ou pela interlocução (quase sempre pelos dois
motivos), as pessoas a seguir mereceriam uma página de agradecimentos cada um.
Listá-los neste formato é uma injustiça que tentarei desfazer depois pessoalmente:
Lilian Krakowski Chazan, Marta Regina Cioccari, Nicolás Viotti, Luiz Felipe Benites,
João Duarte, Martinho Braga Batista e Silva, Marcos Castro Carvalho, Naara Luna,
Guido Korman, Mercedes Sarudiansky, Neide Eisele, Eduardo Riaviz, Vanessa Nahas,
Tade-Ane do Amorim, Luiza Larangeira, Antonio Holzmeister, Luciana Lombardo,
Bruno Marques, Indira Caballero e Diana Lima.
A tese é dedicada a quem não sei como agradecer:
À Luana.
Uma observação faz-se necessária. Grande parte dos dados etnográficos desta
tese é composta por material impresso, em variados registros. Para facilitar a sua
visualização na mancha gráfica do texto, optei por dois formatos de citação.
Referências etnográficas serão apresentadas no formato centralizado, e em corpo
de texto 12, como a seguir:
Nos nossos dias, sabemos que é o nosso cérebro o que sustenta, gere e
origina o nosso sentido de eu (self), de pessoalidade (personhood), o
nosso sentido dos outros e a nossa humanidade (humanness). O cérebro
é um órgão complexo, como o coração, os rins, e o fígado. Mas quando
pensamos nesses órgãos, não nos tornamos românticos ou nos
preocupamos com eles como entidades encerradas em si próprias (unto
themselves). (Gazzaniga, 2005, p.31)
Referências teóricas, por sua vez, serão apresentadas em corpo de texto 11 e com
recuo, como no exemplo abaixo:
Introdução.................................................................................................................... 1
Capítulo 1 - Uma pessoa e 100 bilhões de neurônios ............................................12
1.1 O cérebro como órgão pessoal .................................................................................... 12
1.2 Uma antiga boa nova .................................................................................................. 32
1.3 Algumas perspectivas críticas ao ‘cérebro como pessoa’ ........................................... 49
Capítulo 2 - Divulgação dos produtos da psicofarmacologia: o cérebro, suas doenças
e seus medicamentos .................................................................................................. 58
2.1 Um não prescritor no Congresso Brasileiro de Psiquiatria ....................................... 65
2.1.1 Entre os estandes ................................................................................................................ 70
2.1.2 Trabalho de campo em um campo dividido.......................................................................... 89
2.2 Fisicalismo, naturalismo e subjetividade na publicidade de psicofármacos .............. 96
2.2.1 Natureza antidepressiva (ansiolítica, antipsicótica...)............................................................ 99
2.3 Debates morais em torno da psicofarmacologia ....................................................... 122
Capítulo 3 - O cérebro para leigos: cérebro, neurônios e neurotransmissores na vida
cotidiana................................................................................................................... 139
3.1 A neurociência amplia os seus círculos ..................................................................... 141
3.2 “Neurônios são umas bolinhas cheias de fios”: o cérebro para crianças ................. 153
3.2.1 Quando o cérebro rouba a cena: aplaudindo neurônios no teatro......................................... 164
3.3 O “cérebro nosso de cada dia”: divulgação científica da “neurociência do cotidiano”
......................................................................................................................................... 180
3.3.1 Neurociência de “rede na varanda” .................................................................................... 184
3.3.2 A “auto-ajuda no seu ápice” .............................................................................................. 200
3.3.3Um “órgão fantástico” ....................................................................................................... 210
Capítulo 4 - Fragmentos de um órgão midiático: o cérebro no jornalismo, na
publicidade e no cinema ........................................................................................... 219
4.1 Notícias do cérebro ..................................................................................................222
4.2 O cerebralismo em peças publicitárias .....................................................................230
4.3 Avatar: neurônios e sinapses em um blockbuster ....................................................239
4.4 O cérebro como sujeito do capitalismo ....................................................................248
Considerações finais ................................................................................................ 256
Referências bibliográficas ........................................................................................ 268
1
Introdução
cultura ocidental moderna. Ele possui uma posição hierarquicamente superior a outros
órgãos do corpo humano, e, de certa forma, ao corpo ele mesmo. Além disso, a noção
Uma idéia bastante divulgada hoje é a de que cada indivíduo se confundiria com
o seu cérebro. Aquilo que somos e sentimos seria um produto direto dessa complexa
entre o público leigo, por meio de diversas formas de difusão dos saberes sobre o
O cérebro tornou-se uma espécie de ‘ator social’, ou ao menos isso está muito
mais evidente nos últimos anos. As neurociências, afirma Alain Ehrenberg (2008:80),
Mas é fato que há algo de novo no ar: uma onda de ‘ufanismo’ neurocientífico que
carrega consigo uma concepção objetiva de pessoa, movida, ao menos em parte, pelo
que essas imagens podem dizer acerca da subjetividade humana. Assim como o resto do
As páginas que se seguem falam de uma tensão entre idéias como cérebro e
mente. Se, um dia, estas duas palavras já se referiram a coisas diferentes, hoje, ao menos
no que se refere ao material aqui analisado, temos duas idéias que estão sobrepostas e
hierarquizadas. De certa forma, temos um novo cogito, não mais com a forma penso,
logo existo, mas sim uma espécie de existo porque tenho um cérebro que pensa.
historicamente relacionado à esfera do transcendente, que pode ser visto como sede da
distâncias entre carne e espírito ou cérebro e mente hoje são outras. Cada vez mais, a
ciência propõe possibilidades que funcionam como pontes entre esses pares, uma vez
biologia do espírito”, como nos fala Changeux (1985) a respeito das neurociências.
semântico do qual o público leigo lança mão em seu cotidiano para falar dos mais
uma popularização de saberes ligados aos conhecimentos ‘psi’, como inconsciente, ego,
ato falho, etc. Ecos de uma ‘cultura psi’ convivem hoje de forma complexa com um
Trata-se aqui de pensar o papel da difusão científica neste processo. Mas também
refletir sobre uma mudança mais ampla em termos de visão de mundo, a partir da qual
sempre parece escapar pelos dedos dos sistemas que pretendem enquadrá-las em
continuar fazendo sentido entre os estratos aos quais Velho está se referindo, mas ela
temporais que marcariam uma ‘cultura psicologizada’? Minha idéia é assim abrir um
não no sentido em que substitua de todo uma cultura ‘psi’, já que coexistem de uma
forma complexa, algumas vezes formando polaridades, outras vezes formando pares
para explicar a sua condição, e neurônios e sinapses podem dividir a mesma mesa com
um vocabulário ‘psicologizado’.
psicanálise está ameaçada pelas descobertas da neurociência”. Ora, por si só, em uma
tensão entre dois campos do saber; em sua resposta, ele afirma que
1
A respeito da qual, aliás, existe importante produção na antropologia brasileira, ou ao menos
em diálogo com ela. Ver, por exemplo, Figueira, 1985.
2
Revista Veja, edição 2147, ano 43, n.2, como parte da reportagem “A conquista da memória”,
p.78-87.
5
respeito de que talvez não sejam diferentes, de um certo ponto de vista – é um dos temas
em expectativas para o futuro, que trabalham com a noção de que a ciência avança de
forma incomensurável. E esta ‘boa nova’ – o quão nova seriam algumas questões
levantadas pela neurociência é outra das questões que serão aqui abordadas – deve ser
Changeux:
encontrar uma “penicilina para a doença mental” (Andreasen, 2005); estaríamos recém-
saídos do que o Congresso americano designou a “década do cérebro” (os anos 90), mas
períodos “do cérebro” e “da neurociência” parecem apontar para um novo capítulo do já
tão debatido fisicalismo que constitui um dos traços marcantes da cultura ocidental,
traço que foi exacerbado durante o século XX. Uma certa noção de pessoa está
informada hoje por um cerebralismo, uma visão de mundo que liga um indivíduo ao seu
cérebro e situa neste órgão o locus de nossa identidade pessoal. Entendo aqui a idéia de
um cerebralismo como uma face específica de um mais amplo fisicalismo, termo que
como um déspota que domina a nossa subjetividade, um órgão imperador que rege
estados de humor e define a nossa identidade. Falamos da química cerebral com certa
serotonina”, que parece ser hoje hegemônica entre o público leigo, da mesma forma que
marketing dos laboratórios farmacêuticos tem uma influência central nessa mudança de
perspectiva:
7
jornalística. Com isso quero dizer que nem sempre os personagens cerebrais – o cérebro
moderno, não apenas dos saberes científicos, mas com certeza em comunicação com
eles.
formato de divulgação científica. Boa parte dos textos que serão utilizados tem o
objetivo de se comunicar com um público amplo. Isso me trouxe uma vantagem: uma
ciência que trabalha com uma matéria invisível à grande maioria das pessoas precisa
neurociência precisa fazer escolhas, e é neste ponto que se torna um discurso ainda mais
caráter social, uma forma de discurso totalmente embebida no universo do qual ela faz
8
divisão de tarefas senão buscando matéria-prima na rede de símbolos que constitui uma
cultura específica? O cérebro tem por trás de si história e tempo, ciência e política,
Avatar.
popularização científica para crianças e adultos, ou oferecem cursos, por exemplo, sobre
discurso sobre o cérebro e suas doenças, que emana da chamada psiquiatria biológica e
organizou cada etapa do trabalho de campo nos capítulos pertinentes, já que se trata de
um campo heterogêneo.
O título da tese faz por merecer uma observação. Quando pensei que poderia ser
demais. Afinal, o que se apresenta aqui é um esforço etnográfico localizado, ainda que
saberes sobre o cérebro. Mas o tom grandioso da expressão “nova ordem cerebral” não
neurociência se apresenta hoje, como um sistema ambicioso que pode dar conta de
concepção nativa pela qual navego nos capítulos a seguir, divulga-se a idéia de que o
9
cérebro seria uma ‘última fronteira’ do conhecimento sobre o corpo humano, uma
que celebra tanto os avanços já atingidos na pesquisa sobre o cérebro, quanto se anuncia
um porvir venturoso no qual este órgão não seja mais um mistério, mas sim uma
como o órgão da pessoa, a estrutura biológica que nos define enquanto indivíduos. Mas
não se pode tomar esta idéia como verdade científica sem reflexão. A própria noção de
indivíduo é uma variação ideológica da noção de pessoa, entre outras possíveis. Ainda
que esta idéia esteja longe de ser recente na história da cultura ocidental moderna,
procuro demonstrar que diferentes olhares estavam sendo lançados para diferentes
cérebros, e isso atendo-me somente a idéias tão recentes quanto aquelas que surgem no
século XVIII. É neste capítulo ainda que introduzo algumas críticas à idéia do ‘cérebro
como pessoa’, e especialmente ao tom de boa nova que costuma ser utilizado nesta
termo ‘neurociência’.
cérebro, o mesmo pode ser dito das doenças mentais. Aqui e ali, a terminologia
‘doenças cerebrais’ começa a ser de uso mais comum para designar variantes de
lançando o olhar na direção de uma indústria cujos interesses comerciais passam (ou
paralelo entre as sensações às quais estão ali expostos e os efeitos da química dos
medicamentos no cérebro dos seus pacientes. Ainda neste capítulo, aventuro-me pela
massa de material publicitário ao qual tive acesso neste evento, peças que divulgam para
o público leigo e para médicos saberes sobre as doenças e sobre as moléculas, nesta
outro esforço etnográfico central da tese. Como se cria um público mais amplo
paralelo a seus trabalhos com hard-science, ou mesmo, por algum tempo, dedicando-se
peculiar, que passa por uma coleção de livros infantis – e uma peça de teatro neles
mesmo passar a ilustrar peças publicitárias, a neurociência torna-se mais pop e alguns
como Ludwig Fleck e Joseph Dumit, discuto aqui a forma e conteúdo deste esforço de
característica mais fragmentar do que o utilizado nos capítulos anteriores. Com o passar
uma comparação entre o que se divulga nos meios de comunicação de massa como um
Por último, observo que tentei evitar a construção de um ‘capítulo teórico’, antes
de deixar falar a etnografia. Na medida do possível, procurei fazer com que teoria e
órgãos do corpo humano. Cada vez mais, o cérebro, cuja possibilidade de transplante
ainda soa como ficção científica, é visto como o órgão pessoal por excelência, aquele
que de fato define e carrega identidades individuais, em comparação com outros que
3
Trata-se de uma tradução livre. Sempre que for este o caso, vou inserir o texto original em nota
de rodapé. “La plupart des interrogations représentatives de problème de l’identité
personnelle ne sont pas d’abord celles du philosophe professionnel, mais de l’homme de la
rue qui s’interroge, le plus souvent confusément, sur ce qu’il est. “Qui suis-je?”, “qu’est-ce
que le moi?”, porquoi suis-je encore le même en depit des différences morphologiques,
psychologiques et contextuelles?”, “qu’est-ce qui fait qu’un seul et même homme existe
successivement comme un conceptus, un embryon, un foetus, un bébé, um enfant, un
adolescent, un adulte, um veillard?”, quelle est la relation entre mon corps e moi?”, “ai-je un
cerveau ou suis-je mon cerveau?””...
13
estudantes (que não fazem parte da minha etnografia), mas também em material que se
propõe a comunicar com um público não iniciado nos ramos da ciência que se ocupam
do cérebro. Neste capítulo, assim como nos seguintes, minha principal fonte etnográfica
é do segundo tipo, aquela que tem como objetivo declarado atingir um público leigo,
adaptando tanto a forma quanto o conteúdo da mensagem para esse fim. Foi
encontrei repetidas evidências da noção, hoje muito em voga, do cérebro como órgão
córneas que já foram parte de outro corpo, não pairam dúvidas de que o receptor
continua a ser quem ele é. Mas o cérebro é um órgão-limite para a concepção ocidental
moderna de pessoa, um “limite somático” (cf. Ferret, 1993, p.12 e p.99), além do qual
cessamos de ser nós mesmos, seja para definir a identidade pessoal em vida, seja para
definir os limites entre vida e morte5. O cérebro – não a cabeça, nem a ‘mente’ ou a
4
Assim como em material de divulgação de psicofármacos, produzidos pela indústria
farmacêutica, como veremos no capítulo 2.
5
Refiro-me ao conceito, no qual não pretendo me demorar durante o texto, de “morte cerebral”
ou “morte encefálica”. Trata-se, segundo Macedo (2008), de um conceito relativamente
recente, já que o primeiro protocolo para definir os critérios desta nova morte seria de 1968.
A mesma autora, em sua etnografia entre os profissionais envolvidos nos processos em torno
da definição deste tipo de morte, explica que “a morte encefálica ocorre quando o encéfalo
não possui nenhuma atividade orgânica, perdendo assim a capacidade de funcionar como um
centro integrador das demais funções do corpo” (ibidem, p.2). Atente-se para o lugar que o
órgão possui já nesta definição, o de “centro integrador”, uma espécie de central de comando
do corpo.
14
‘alma’, mas o órgão físico ele mesmo6 –, neste contexto cultural, é muitas vezes
sinônimo de indivíduo.
morais a este ou aquele órgão do corpo humano não é uma novidade. Ainda hoje o
cerebral (de ordem física e moral) que tiveram grande aceitação nos séculos XVIII e
XIX, mesmo entre o público leigo, ainda que, em algumas de suas versões, tenham
O cérebro, por assim dizer, ganhou vida própria, um órgão ao qual se faz
referência na terceira pessoa. Ora, alguém poderia argumentar que é assim também que
nos referimos aos nossos rins. Mas não se atribui aos rins a sede da nossa personalidade,
como hoje a atribuímos ao cérebro (cf. Greenfield, 1997), tampouco o controle da nossa
6
Variações desta ideia podem ser encontradas tanto no campo da filosofia quanto no da
literatura. Mas ainda não se trata de pensar no cérebro em si, mas sim na ‘alma’ ou na
‘cabeça’. Para o primeiro caso, ver o experimento de pensamento apresentado por John
Locke em seu Ensaio sobre o entendimento humano (1690), imaginando qual seria o
resultado se a alma de um príncipe passasse a ocupar o corpo de um sapateiro. Thomas Mann
(2000 [1940]), a partir de um mito indiano, imaginou uma troca de cabeças entre dois amigos
envolvidos em um triângulo amoroso com uma mulher. A preeminência da ‘cabeça’ sobre o
corpo fica evidente quando os dois sujeitos resultantes da troca passam a exibir os hábitos da
cabeça que recebe o corpo, e não ao contrário, como se vê nesta passagem: “O que nesse
pormenor ficava cabalmente demonstrado era a importância decisiva, indubitável, da cabeça
para a personalidade de um ser humano aos olhos de toda a gente. Procure imaginar que seu
mano, seu filho ou um concidadão qualquer entre pela porta, exibindo sobre os ombros a
bem conhecida cabeça, e veja se, mesmo que haja algo desusado no resto de suas pessoas,
pode-se alimentar a menor dúvida quanto à identidade real desses homens!” (p.88).
15
memória e da inteligência.7 Nós não somos os nossos rins, ainda que qualquer afecção,
em qualquer órgão humano, possa estar cercada de questões de ordem moral, e não
7
Ao menos não dentro do escopo da lógica biomédica, sistema hegemônico, ainda que não
exclusivo, na cultura ocidental moderna. Já em termos comparativos, diferenças radicais
saltam aos olhos, mesmo no que diz respeito à anatomia do corpo humano. Ver, a este
respeito, Kuriyama (1999), em um trabalho sobre as divergências entre as medicinas grega e
chinesa. Ele coloca lado a lado uma imagem produzida por Vesalius (1543) e outra
produzida por Hua Shou (1341), possibilitando uma comparação entre diferentes ‘anatomias’
do corpo humano. O primeiro destaca a estrutura muscular, enquanto o segundo baseia-se
nos pontos relacionados à acupuntura: “Em Hua Shou perdemos o detalhe muscular do
homem vesaliano; e na verdade os médicos chineses não dispunham sequer de uma palavra
específica para ‘músculo’. A muscularidade foi uma preocupação peculiar ao Ocidente. Por
outro lado, os meridianos (tracts) e pontos da acupuntura escapavam completamente à visão
ocidental da realidade. Assim, quando os europeus no seiscentos e do setecentos começaram
a estudar os ensinamentos médicos chineses, as descrições do corpo que encontraram
pareceram-lhes ‘fantásticas’ e ‘absurdas’, como lendas de uma terra imaginária” (p.8).
8
Em uma releitura, percebi que este exemplo não era casual, e guardava algo de pessoal.
Durante a confecção da tese, tive que me submeter a intervenções cirúrgicas nos rins para
corrigir problemas congênitos e, posteriormente, tratar cálculos. Como resultado, as pessoas
passam a me perguntar pela saúde daquele órgão como se perguntassem,é claro, pela minha
própria. Resolvido o processo, ainda assim, eu ficava atento a qualquer dor que surgia
naquela região, preocupado com alguma nova manifestação. Passei a ouvir histórias sobre os
rins, como, por exemplo, que eles seriam a sede do medo para a medicina chinesa
tradicional, o que nunca confirmei. Após a primeira cirurgia, cometi o erro de assistir ao
vídeo que me foi entregue pela equipe médica, no qual estava gravada a parte principal do
processo. Após uma hora e quarenta minutos – mais ou menos o tempo de um longa
metragem – assistindo ao meu próprio interior sendo corrigido, fui tomado por uma inédita
sensação que eu pudesse talvez caracterizar como de ‘ansiedade’, sem pretender que isso se
aproxime de qualquer categoria nosológica oficial. Mas algo foi ali somatizado, como se os
rins também pudessem servir à operação simbólica que liga partes ao todo.
16
Por sua vez, no que diz respeito ao cérebro, é bastante evidente uma dinâmica
que permite tomar a parte pelo todo. Essa, ao menos, é a ideia que vemos se repetir em
único indivíduo” (Percheron, 1987, p.95). Essa mesma equivalência pode ainda ser
explicitada em uma fórmula, o que confere à ideia uma aura de regra lógica acerca da
direções, a ponte pela qual se comunicam os discursos científico e leigo. Por um lado, é
ao discurso científico que cabe (no sentido em que a ciência detém esta autoridade no
9
Refiro-me a um momento contemporâneo no qual o cérebro ocupa um lugar central na
concepção fisicalista de pessoa. Mas é possível encontrar, especialmente no universo da
ficção, outros órgãos ou membros que respondem por um todo físico e moral. Le Breton
(1995) entende assim o romance de Maurice Renard, Les mains d’Orlac, de 1920, que teve
uma transposição para o cinema já em 1924, dirigida por Robert Wiene. No romance como
no filme, um pianista chamado Orlac tem suas mãos decepadas em um trágico acidente, e
recebe em substituição um implante das mãos de um suposto assassino recentemente
guilhotinado. Mas estas novas mãos parecem trazer consigo uma nova personalidade para o
brilhante pianista, que passa a produzir uma música medíocre e se nega a tocar em sua
mulher. Quando assassinatos começar a ocorrer em torno de si, inclusive o de seu próprio
pai, Orlac cogita a ideia de que ele teria se tornado o próprio assassino de quem recebeu as
mãos. Ao final, desvela-se que o pianista era vítima de uma trama com o objetivo de
chantageá-lo, mas, a essa altura, afirma Le Breton, “estamos totalmente dentro do imaginário
da identidade singular dos órgãos, da metamorfose da personalidade que se seguiu ao
implante (...). O romancista consegue jogar habilmente com o fantasma do destino inerente a
certos órgãos simbolicamente significativos (aqui as mãos, ali o coração, o cérebro, etc.), e
suspeitos de transmitir as virtudes ou os defeitos do homem a quem eles foram arrancados”
(id., p. 55-56).
17
consistem em um modelo de pessoa, entre o público leigo. Por outro, há que se levar em
conta que o público amplo não é ‘estranho ao cérebro’, no sentido em que não é recente
a circulação de saberes sobre este órgão, cuja centralidade em nosso corpo como um
ocidental moderna.
A noção de que “somos nosso cérebro” dá título a uma peça de teatro encenada
Abrir mão de seu próprio cérebro, nesta cena de ficção, é abandonar a si mesmo,
“deixar de ser eu”. O órgão que se vai é a pessoa, que deixaria de ser ela mesma;
10
Teve sua estreia em julho de 2003, no Centro Cultural Ricardo Rojas, em Buenos Aires. A
peça está baseada em textos do psiquiatra Sergio Strejilevich, e faz parte de uma trilogia
cujos próximos tópicos seriam a genética e a teoria do caos. A intenção é criar, assim se
afirma em uma apresentação não assinada, “espetáculos de divulgação científica
concebendo-o a partir de uma sensibilidade artística” (p.13). O livro com o texto da peça foi-
me presenteado pelo amigo Nicolas Viotti, a quem agradeço.
18
aquele corpo. Neste palco, a pessoa não é exatamente definida por um corpo indiviso,
visto que, em contraste com o cérebro, o trânsito de alguns de seus órgãos é aceito sem
divulga uma concepção cerebralista de pessoa, quando uma das personagens afirma que
não gostaria de perder o seu cérebro “justo agora que se conhece um pouco mais”, algo
desprendida; afinal, que seria este “yo” que se conhece um pouco mais?
‘cérebro como pessoa’ com uma noção de conhecimento de si que me parece remeter ao
‘mental’, como uma instância de outra ordem relativamente ao aparato biológico. Isso
pode soar ambíguo em um primeiro momento; mas logo veremos que esta habilidade
bilíngue é pretendida pelo discurso neurocientífico, que tem como objetivo ultrapassar
presença de interlocutores – nas quais tensões são mais comuns do que concordâncias.
doenças são sinal desse lugar especial e controverso do cérebro. O adjetivo apaixonados
já avança aqui a ideia de que tais discursos não são ideologicamente neutros – e isso
inclui, é claro, o meu próprio. Muito pelo contrário, ideias relacionadas ao cérebro estão
cérebro, tido como o sítio biológico da mente e daquilo que nos define como indivíduos,
19
vale especialmente o que Le Breton (2005, p.56) afirma valer para todas as outras
particularmente rico para aceder à noção de ‘pessoa’ que faz parte de uma determinada
visão de mundo. Como afirmaram Russo e Ponciano, a propósito deste tema, “examinar
indica novos modos de construção de si” (2002, p.349). Mas este é um ponto de vista
modificar a frase acima, invertendo a ideia de que possamos depreender uma noção de
que tal noção é um produto deste órgão, gerada e sustentada por ele, que caberia a uma
Nos nossos dias, sabemos que é o nosso cérebro o que sustenta, gere e
origina o nosso sentido de eu, de pessoalidade, o nosso sentido dos
outros e a nossa humanidade. O cérebro é um órgão complexo, como o
coração, os rins, e o fígado. Mas quando pensamos nesses órgãos, não
nos tornamos românticos ou nos preocupamos com eles como entidades
encerradas em si próprias. (Gazzaniga, 2005, p.31)11
trata de um ramo científico que produz em seu discurso uma concepção de pessoa. É o
self; no limite, este é o órgão que produz a nossa concepção de pessoa; a neurociência
11
“In our era, we know that it is our brain that sustains, manages and generates our sense of self,
of personhood, our sense of others and our humanness. The brain is a complex organ, like
the heart, kidneys, and liver. But when we think of those organs, we don’t get romantic or
concerned about them as entities unto themselves”.
20
paralelo com a categoria físico-moral, como usada em Duarte (1986) para designar
perturbações relacionadas a uma totalidade da pessoa, que tem consequências para além
da sua manifestação no corpo. Alguém poderia dizer já agora que qualquer tema
considerado normal – é, em algum nível, físico-moral, assim como todo debate e fazer
científicos seriam também “guerra e discurso”. Mas digamos que algumas querelas
científicas em torno do corpo humano são mais morais do que outras, expondo essa
tensão de forma mais evidente – vide não apenas aquelas que dizem respeito ao cérebro,
trazem para a cena pública limites (ou o desmonte dos limites) entre vida e não-vida,
Em debates que dizem respeito ao cérebro estão em jogo alguns dos valores
não é um órgão como outro qualquer; ele está em posição hierarquicamente superior a
compor uma nova e peculiar versão dualista, na forma corpo/cérebro, que parece
cérebro12. Não se trata de uma interpretação forçada, mas de uma ideia explicitada. Para
Nesse sentido, ainda que o discurso da neurociência esteja embasado numa crítica ao
ela radicaliza, por outro lado, algumas características do sujeito moderno, em especial
si (Russo e Ponciano, 2002). Outro modelo que salta aos olhos é o do progresso
contínuo do sujeito, que pode melhorar o seu cérebro através dos ‘bons hábitos’ da
12
Como já afirmei, estas produções, tanto nacionais quanto estrangeiras, e heterogêneas quanto
ao grau de ‘cientificidade’ que imprimem ao seu discurso, constituem em grande parte o meu
corpo de informantes.
22
melhoria no próprio cérebro, que se mostra hoje aos olhos dos neurocientistas com
acesso privilegiado a este interior como um órgão plástico, cujas redes neuronais estão
respeito à ideia que me serve como fio condutor desta sessão: ela compara o cérebro,
que seria um “órgão pessoal”, com outros órgãos do corpo humano, definidos como
impessoais:
13
Ortega (2008) chama atenção para o momento no qual Hans Castorp, o engenheiro que
protagoniza o romance A montanha mágica, de Thomas Mann, se defronta pela primeira vez
com uma imagem de raio X do seu próprio corpo. Castorp fica maravilhado e, ao mesmo
tempo, mais consciente da sua mortalidade após visualizar parte de seu esqueleto. Ortega vai
ressaltar a transformação pela qual passa o personagem após este episódio: “A partir deste
momento, ele deixa para trás a sua existência burguesa e dá início aos estudos científicos e
filosóficos, transformando-se em um intelectual e cortando os laços com o mundo além dos
confins do sanatório. Ele é invadido por uma vontade de saber sobre o corpo, que abarca
desde o estudo da anatomofisiologia até o da metafísica, num processo que lembra o
percurso descrito nos romances de formação (Bildungsroman) alemães, cujo modelo clássico
é Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister, de Goethe. Para Castorp, a autoformação
intelectual está ligada à descoberta e ao conhecimento do corpo, o que poderíamos
denominar de somatização do ideal clássico da Bildung, de Bildung fisiológica. O
conhecimento do interior do corpo representa uma metáfora eficaz do conhecimento de si”
(Ortega, 2008, p.128-29).
23
produzida pelo canal BBC, chamada Brain story15, na qual ela aborda tópicos como
vista de que o cérebro controla todas as nossas ações e emoções, definindo quem nós
somos. Na introdução ao primeiro episódio, enquanto ela passeia por ruas de Jerusalém,
em uma sequência entrecortada por imagens que mostram a diversidade religiosa que
marca aquele local, fica ainda mais evidente qual a posição e as promessas da
14
“... your unique, highly personal view of the world – your mind – hardly lies in the
mechanical workings of your liver, heart, or lungs. As medical technology marches forward,
these vital yet impersonal organs will be transplanted with increasing ease and frequency.
Working as I do every day on the chemistry of the brain, I have to admit some bias. Even so,
it is the brain, after all, when assaulted by drugs, psychiatric and neurological disorders, and
head injuries, that is primarily at the root of any changes in character, emotions, or
consciousness. There, among the tangle of invisible cells, electrical impulses, and molecules
ranging from the awesome intricacy of the proteins to the spooky simplicity of gases, down
there where time counts to less than a thousandth of a second, somehow a unique, subjective
experience is generated in each one of us – an experience of consciousness”.
15
Não pude descobrir se a série teve veiculação por algum canal brasileiro. A série foi ao ar pela
primeira vez na Inglaterra no segundo semestre do ano 2000. O seu primeiro episódio, cuja
apresentação reproduzi aqui em parte, foi projetado no Centro Cultural Casa da Ciência da
UFRJ, por ocasião de um evento chamado “Paisagens Neuronais”, realizado nos dois
primeiros meses de 2009. A principal atração eram fotografias ampliadas do universo
microscópico de diversas partes do sistema nervoso, enviadas por laboratórios de
neurociências ao redor do mundo, produzidas a partir de técnicas de coloração aplicadas aos
neurônios e seus prolongamentos. Quanto ao filme, agradeço o convite de Gabriel Cid para
comentá-lo com a plateia.
24
rede neuronal, esta introdução à série traz um tom de promessa futura, de uma boa nova
ainda não atingida pelas possibilidades científicas atuais. Ainda assim, insinua-se uma
busca de correlatos neurais para sentimentos, emoções e mesmo para os “mais intensos
sentimentos espirituais”.
A neurocientista afirma que podemos explicar qualquer coisa sobre nós mesmos
surgimento de um self. Mas, para demonstrar de forma pedagógica como a rede neural
se organiza, e como as células do cérebro se comunicam, é no mundo lá fora que ela vai
16
“... as a neuroscientist, my view is that we can explain everything about ourselves by looking
inside. I’m sure it has to be the brain that makes us who we are – our hopes, our fears, our
thoughts, our dreams are all somehow hidden away inside our heads. I’m convinced there
isn’t a single aspect of our lives that doesn’t reside in the sludgy mass of our brain cells. I’m
convinced that one day we will be able to interpret even our most intense spiritual feelings in
terms of the workings of the brain. Research is finally bringing us closer”.
17
Note-se a animização do cérebro: o adjetivo ‘adulto’ qualifica ‘cérebro’, como se o cérebro
fosse uma pessoa.
25
comparação com o espaço construído. O cérebro, em sua imensidão neuronal, pode ser
18
“The 100 billion neurons in the adult human brain have been linked previously to the number
of trees currently in the Amazon rain forest. Yet I now think that a bustling metropolis, like
New York City, would be a better analogy. New York City can be divided up on a gross
scale into different boroughs, then into different districts and neighborhoods, and finally into
blocks. But within each block there is an incessant activity both restricted to local spheres of
influence as well as interaction with the “higher” levels of neighborhood – district, borough
and so on. Any one room in a building on a block could, perhaps, be fancifully likened to a
neuron. The constant activity within any building, with people darting, lingering, resting, and
rushing between rooms and out into the wider world of the street and the city itself, would be
similar to the chemichals, or transmitters, that are used as messengers from one brain cell to
the next. Transmitters are used to the bridge the gap, the synapse, between neurons. First,
one neuron generates an electrical signal lasting a thousandth of a second, and of one
amplitude ranging, anywhere from some sixty thousandths to ninety thousandths of a volt:
this is the action potential, an electrical bip that hurtles down to the end of the neuron at
speeds up to 250 miles per hour. Once it reaches the end of the neuron, the electrical impulse
acts as a trigger for the transmitter to be released. The transmitter then diffuses rapidly across
the narrow synapse between the two cells, and joins in a molecular handshake with an
appropriate custom-made chemical (receptor) embedded on the outside of the target neuron.
This molecular handshake, perhaps more akin to a hand fitting in a glove, initiates the final
step, the generation of a new action potential in the target cell. This process, synaptic
transmission, is the best-known mechanism by which brain cells communicate with one
another; it is regarded as the basic building of virtually all brain operations”.
26
como a ‘natureza’, comparável a uma gigantesca floresta, mas é também possível traçar-
paralelo que se estabelece é com Nova Iorque, uma das metrópoles mais cosmopolitas
metrópole servem de símile para explicar como se dá o trânsito entre células, através do
pequeno vazio entre os neurônios chamado sinapse. Os neurônios não se tocam; trata-se
luva, uma imagem para representar o sistema contíguo, mas não contínuo, como é
sobre o cérebro provenientes do campo da neurociência com obras centrais das ciências
cidades e a vida do espírito. A cidade, em Simmel, tem efeitos algo danosos sobre a
interiores e exteriores” (p.578) – que gera nos indivíduos uma “intensificação da vida
nervosa” (p.577). Para se proteger, o habitante da grande cidade, coagido pelo excesso
responder ao mundo exterior com o entendimento, e não com a alma, deslocando a sua
reação para o “órgão psíquico menos sensível, que está o mais distante possível das
oposição à saúde dos nervos, e fere a subjetividade individual, que busca no caráter
27
aos nervos, mas como essencial para o bom funcionamento do cérebro: “os efeitos da
experiência são os de modificar não tanto o número dos próprios neurônios mas, antes,
as conexões entre eles. Como uma generalização ampla, vimos que quanto mais
‘natureza cerebral’ serve de modelo para a complexidade da metrópole, assim como esta
empresta a sua imagem para que uma neurocientista possa explicar como o órgão
funciona.
recebem um sinal positivo. Esse pequeno desvio, explorando a relação que a autora
construiu entre cérebro e cidade, e o paralelo com o texto de Simmel, que ressalta os
riscos da grande metrópole para a saúde mental, são úteis para demonstrar o caráter
social e histórico de discursos sobre o cérebro, os quais servem como metáfora do seu
tempo.
(Greenfield, 1997, p.3) no que diz respeito ao entendimento do ser humano. Neste órgão
que pesa cerca de um quilo e trezentos gramas estariam guardados os últimos mistérios
da nossa ‘natureza’. Para de fato vencer essa suposta última fronteira, as ciências que se
28
ocupam do cérebro, agregadas pelo termo ‘neurociência’, teriam que ser bilíngues,
segundo Susan Greenfield, para dar conta não somente da fisiologia de um órgão, mas
precisamos ser bilíngues. Com isso quero dizer que devemos investigar
tanto a neurociência – as operações físicas do cérebro – quanto os
fenômenos subjetivos do sentimento. Precisamos nos familiarizar com as
questões em torno do estudo dos eventos tanto físicos quanto
epifenomenais do cérebro se de fato queremos compreender ambos.
(Greenfield, 2000, p.2)19
nome de uma perspectiva cerebralista da pessoa. Se nós somos o nosso cérebro, todas as
capacidades humanas, para o bem e para o mal, estão relacionadas a este órgão, e não a
que faz uso da ideia de “mentes” e “espíritos”. Ao mesmo tempo em que a autora afirma
que as doenças mentais “afetam o cérebro e seu produto, a mente” (p.17), ela pode
inverter a ordem de causalidade e afirmar, algumas páginas antes, que “as doenças
mentais são uma condição que aflige as mentes, os cérebros e os espíritos de bilhões de
Rodin.
Seja o que estiver pensando “o pensador”, este conteúdo é material e passível de ser
como parece ser a mensagem veiculada nesta imagem, de uma possível “moderna
modelo de pessoa, uma categoria de análise antropológica que autores como Mauss
seria apenas uma variação. Este modelo de pessoa ao qual me referia seria justamente
aquele que, como afirma Duarte a propósito de suas reflexões sobre a categoria ‘nervos’
e o ‘sistema nervoso’, “se veio a conhecer como o ‘indivíduo’, uma totalidade indivisa,
existência” (2010, p.2). Tal sistema interior parece ter-se deslocado da representação
mais abrangente do ‘sistema nervoso’ como um todo para o cérebro em especial; mas
continua valendo uma perspectiva ‘totalizante’, que Duarte definiu em trabalho recente
indivíduo não é, como já se pode divisar, nova. Mas esta antiga “hegemonia do cérebro”
pode ganhar novas roupagens, merecedoras de análise. Ainda que a hegemonia não seja
baseia. O meu foco está voltado justamente para a difusão das “modernas formulações
neuronais”, para o novo formato que o cérebro passa a ganhar em nosso tempo, cujas
origens mais diretas remetem à virada do século XIX para o século XX; é neste
momento que o cérebro se torna mais molecular, com um novo vocabulário cujas
veremos, são de cunho recente, já que nascem no período citado. Na virada seguinte de
século, elas já fazem parte do acervo semântico do qual mesmo o público leigo lança
mão em seu cotidiano. Chamarei aqui de ‘cerebralismo’ a uma concepção de pessoa que
relaciona cérebro e indivíduo, que tem hoje ampla divulgação nos meios de
esperança de que a cafeína me possibilite manter a atenção por mais tempo. Como em
várias outras situações semelhantes, momentos de descanso eram invadidos pelo meu
tema de pesquisa, já que o cérebro ou algum tema relacionado pareciam estar em todo
lugar em meu entorno. Ligasse eu a televisão, passasse por uma banca de revista ou
parasse para um café, o meu tema de pesquisa surgia, como se me lembrando para onde
eu deveria voltar.
Ao lado da mesa que ocupei, em uma cafeteria, havia um balcão com alguns
folhetos disponíveis para os clientes. Um deles, assinado pela Associação Brasileira das
consumo dessa bebida e explicava como ela atua. O café, afirmava-se, atuaria contra o
20
“On July 17, 1990, the then president of the United States, George Bush, proclaimed that
every effort should be made to ‘enhance public awareness of the benefits to be derived from
brain research’. We are currently in the middle of the ‘Decade of the Brain’. A general
interest in the brain is official”.
33
Como fiz durante todo o período de campo, guardei este folheto entre outras
peças publicitárias e jornalísticas que faziam alguma menção ao cérebro, a maioria delas
encontradas mais por obra do acaso do que por um esforço sistemático e organizado de
trabalho de campo21. Deixei-a junto a outras duas peças de uma campanha publicitária
Niquitin, uma “terapia de reposição de nicotina” indicada para quem deseja parar de
nicotina. A terceira aponta para a caixa do produto que controlaria estes sintomas
desagradáveis.
21
Analiso parte desse material no capítulo 4.
34
ainda que se trate de um produto que ajuda a cortar um hábito tido como prejudicial à
saúde, os “receptores” do cérebro parecem muito satisfeitos, ao menos antes que lhes
mencionada por Schivelbusch como estando em pauta muito antes das descobertas da
neurociência moderna:
22
“Although since the seventeenth century tobacco and coffee had been considered particularly
suitable for the intellectually active, their effects stand in remarkable contrast to one another.
Tobacco calms, coffee stimulates. Normally one would assume that these contradictory
qualities cancel each other. Yet the opposite is true: they complement each other. The
common goal both were used to achieve was the reorientation of the human organism to the
primacy of mental labour. The brain is the part of the human body of the greatest concern to
the bourgeois civilization. It alone was developed, cultivated, and cared for in the
seventeenth and eighteenth centuries. The rest of the body, necessary evil that it was, merely
served as a support for the head. Coffee and tobacco, each in its particular way, assisted this
reorientation. Coffee functioned positively, arousing and nourishing the brain. Tobacco
functioned negatively, calming the rest o the body – that is, reducing its motoricity to a
minimum – as was necessary and desirable for mental, i.e., sedentary, activity.”
35
Poudre [O bom uso do tabaco em pó], no qual se afirma que o tabaco “torna o cérebro e
os nervos mais secos e estáveis. Isso conduz a uma faculdade de julgamento sólida, a
uma mais clara e circunspecta faculdade de razão, e a uma maior constância da alma”
os séculos XVII e XVIII é tão grande quanto a que existe entre um vocabulário ainda
atual. Aspectos positivos do consumo ficam de lado, o que pode ser atribuído à cruzada
no século XVII e a relação da cafeína com o cérebro, elas permanecem de alguma forma
Indústria de Café, encontramos relação semelhante, ainda que o foco seja o prazer, e
vocabulário para se referir aos efeitos do café e do tabaco, esta relação já estava
construída séculos antes. Ora, é claro que aquilo a que se chama ‘o cérebro’ em
períodos históricos tão distantes não é exatamente a mesma coisa. Mas o exemplo serve
para mostrar que o cérebro, já há muito, estava na ordem do dia. Antes que qualquer
exame moderno torne este órgão mais transparente ao escrutínio de cientistas e médicos
para que se possam analisar os efeitos de certas substâncias, já se tomava café com o
sobre o cérebro. Também não é minha intenção qualquer tom anticientificista; é fato que
substâncias com algum efeito no sistema nervoso. Estes dados com intervalo de cerca
esforços nesta direção podem ser encontrados em Duarte (1986), no que diz respeito aos
nervos e ao sistema nervoso, e em Vidal (2005, 2009), no que diz respeito mais
Susan Greenfield fala não é nova; explicar os fenômenos físicos do cérebro e ao mesmo
epifenômenos, e construir uma ciência materialista da mente é uma ideia que nos leva
aos séculos XVIII e XIX, quando surgem primeiros esforços sistemáticos para localizar
nossa ‘natureza’ e fazer parte de um acervo cotidiano mesmo entre o público não
especializado. A transição do século XIX para o século XX marca, nesse sentido, uma
da ‘neurociência moderna’. Todo um vocabulário que passa hoje por intenso processo
momento no qual tais personagens surgem, já que sequer haviam sido nomeadas antes.
O cérebro do qual se fala hoje, esse ente composto por unidades discretas interligadas
da pessoa, ao cérebro que obteve sucesso para além dos fóruns científicos, chegando a
um público mais amplo, uma característica compartilhada com a difusão pública dos
que viveu entre 1758 e 1828, estudou medicina em Estrasburgo e Viena, onde se tornou
um médico de sucesso. Em 1794, Gall teria sido indicado para se tornar o médico
responsável pela saúde do imperador da Áustria, mas recusou o convite para preservar a
sua independência e por não se sentir atraído pela vida na corte (cf. Finger, 2000,
p.122).
Ao contrário do que costuma ser afirmado, ele nunca propôs o uso da palavra
frenologia, termo pelo qual ficaram conhecidos os seus esforços para atribuir ao, e,
2000). O termo é devido aos seus seguidores, e significa “estudo da mente”, o que não
condizia exatamente com a proposta de Gall, cujo foco eram as manifestações visíveis
dos trabalhos do cérebro. Mas vejamos o que significava um cérebro ‘visível’ naquele
38
momento23.
seriam “congênitas, essenciais e irredutíveis” (Changeux, 1985, p.25), e cada uma delas
estaria relacionada a uma parte específica do córtex cerebral24, que seria composto por
vários órgãos, parte da sua teoria que ele chama de organologia. Gall elabora uma lista
com 27 características (algumas imagens mostram que poderiam ser, no total, 35),
sendo que oito delas seriam específicas do ser humano, enquanto as outras 19 seriam
compartilhadas com os outros animais 25. Entre aquelas compartilhadas apenas pelos
padrões diferentes que podem ser observados, apalpados e interpretados quando se toca
23
Parto da ideia de que a noção de visibilidade do cérebro é não apenas mediada pelo discurso
científico – apesar deste ser um importante agente nesse processo –, mas está relacionada a
condições culturas e históricas mais amplas, em que tais discursos estão inseridos. Nesse
sentido, a propósito da construção social de imagens fetais, Chazan (2007, p.25) afirma que
“ver não é apenas ter a retina estimulada pela radiação luminosa que atravessou as outras
estruturas do globo ocular. O ato de ver inclui implicitamente a compreensão do que está
sendo visto. Daí decorre a importância aqui atribuída ao papel desempenhado pela cultura do
‘sujeito que vê’ na configuração desse olhar. Por ‘configuração do olhar’ entende-se a
construção mesma do olhar, modelada pelos códigos que circulam dentro de uma
determinada cultura, seja ela qual for”.
24
Trata-se da camada mais externa do cérebro dos vertebrados, e está associada às chamadas
funções superiores ou complexas do cérebro, como a linguagem, o pensamento, a memória e
a atenção.
25
Este dado foi encontrado em Finger (2000); Jean Pierre Changeux (1983) apresenta outro
número – a proporção seria de 8 para 20.
39
características morais da pessoa não sobreviveu ao tempo, e veio a ser alvo de muitas
críticas, por mais de um motivo. De qualquer forma, Gall afirmava que o seu foco não
era o crânio: “o objeto da minha pesquisa é o cérebro. O crânio é apenas uma expressão
(cast) fiel da superfície externa do cérebro, e, consequentemente, não é senão uma parte
menor do objeto principal” (Gall, 1796, apud Finger, 2000). As hipóteses de Gall
Gall em designar uma parte do córtex cerebral responsável pelo ‘sentimento religioso’ e
canal inglês BBC, de que “um dia seremos capazes de interpretar até mesmo os nossos
pretensão, como se pode ver, não é nova, tanto para os sentimentos religiosos, como
para outros temas que já estavam na lista de Gall, como o ‘amor pela prole’, o ‘instinto
cérebro tem, então, uma genealogia possível, ainda que aqui em uma versão
pelas suas teses, que vão além de querelas científicas, e se misturam ao campo político e
religioso, mostrando o quanto essas esferas são permeáveis. O mesmo império que o
convidou a ser o médico responsável pelo seu soberano, após alguns anos foi
atenção sobre si e suas ideias. A conexão direta feita por Gall entre o intelecto – além de
cheio a crença em uma alma imaterial (cf. Finger, 2000). Por outro lado, a forma como
Gall apresentava o cérebro – uma entidade compartida, sem um poder central, com cada
área responsável por uma característica ou faculdade – era uma metáfora política mal
vista pelo império. Ou seja, Gall era acusado ao mesmo tempo de materialismo e de
uma posição politicamente subversiva (cf. Changeux, 1983). Este cérebro sem poder
central proposto por Gall, esta mente fatiada e subdividida, com diferentes faculdades
sendo atribuídas a diferentes partes discretas, soava aos poderes políticos dominantes
como uma tese perigosa. Tanto em Viena – onde Gall foi proibido de fazer conferências
Ciências –, as ideias relacionadas a Gall e à frenologia de forma mais geral eram vistas
como uma ameaça à estabilidade do Estado (Jeannerod, 2008). Gall deixou Viena em
1805 e viajou pela Europa; voltou, com sucesso, a proferir palestrar em países tidos
origens, no século XIX, dos conceitos da neurociência, a ideia de que a mente está
que a ideia da mente como situada ou epifenômeno do cérebro seja um princípio hoje
universalmente aceito, uma afirmação que não leva em conta outras perspectivas sobre a
pessoa, e resistências a este modelo que vai, de fato, ganhando hegemonia. Assim como
difusão entre o público leigo, tendo ele mesmo se engajado em palestras e dissecações
públicas que atraíram a atenção tanto de cientistas quanto do público mais amplo para o
Ela oferecia uma nova maneira de se olhar para o cérebro, e uma vez que
se apoiava em medidas objetivas tinha todo o lustre de uma verdadeira
ciência. Como tal, rapidamente capturou o espírito do tempo. A
frenologia tornou-se popular porque parecia apresentar às pessoas uma
abordagem mais ‘científica’, bem como uma nova base para a
moralidade, algo que poderia ser medido e não implicava ideias difíceis
e abstratas, como o espírito (soul). (...) Era uma nova forma de gerar
largas somas de dinheiro; panfletos, livros e modelos de frenologia
começaram a proliferar. De fato, a frenologia tornou-se uma parte da
vida de muitas pessoas. Assim como hoje itens que vão de canecas a
jóias exibem signos do zodíaco, no século passado [XIX] bengalas, por
exemplo, poderiam ter um pequeno busto personalizado de frenologia na
42
crença nos astros e no zodíaco, uma forma de afirmar o caráter pouco científico das
teorias de Gall e seus seguidores. Ainda que tenha caído em desuso após sucessivos
ataques, as ondas de localizacionismo cerebral que continuam ainda hoje mostram que
talvez Gall tenha feito, de um certo ponto de vista, as perguntas certas, mas ainda sem a
passagem do século XVIII para o século XIX, com a pecha de charlatanismo e de uma
pseudociência sem fundamentos, utilizada como uma forma de angariar dinheiro. Mas
Seria tão estranha ao nosso tempo a imagem de alguém carregando o seu ‘busto
frenológico’, como uma espécie de carteira de identidade moral? Ora, uma ou outra
conferência, que o seu antigo colega de faculdade Paul Churchland – filósofo conhecido
por seus trabalhos em filosofia da mente e por defender uma postura eliminativista em
relação ao que ele chama de ‘psicologia popular’28 – carregaria consigo na carteira uma
foto de sua mulher, também famosa no campo. Mas, na verdade, não se trata de uma
27
“It offered a new way of looking at the brain, and because it relied in objective measurements
it had all the lustre of a true science – as such it rapidly captured the spirit of the times.
Phrenology became popular because it seemed to present people with a more ‘scientific’
approach as well as with a new basis for morality, something that could be measured and did
not entail difficult and abstract ideas, like soul. (...) it was a new way of making large
amounts of money: phrenology pamphlets, books and models all started to proliferate.
Indeed phrenology became a part of many people’s lives. Just as today items ranging from
mugs to jewellery bear signs of the zodiac so in the last century walking canes, for example,
would have a tiny, personalized phrenology bust on the handle”.
28
Voltarei a este ponto na próxima sessão.
43
imagem do rosto ou do corpo da pessoa, como se imagina num primeiro momento, mas
imageamento.
Nenhuma destas duas imagens está diretamente seguida de uma legenda que
relacione aquele cérebro com as faculdades morais da pessoa que o porta. Mas é por si
só interessante que uma imagem como essa seja utilizada em contextos de apresentação
“parte da vida das pessoas”, algo que Greenfield aponta no que diz respeito à frenologia
em tom acusatório. Na epígrafe desta sessão, destaco justamente uma sua colocação a
respeito da declaração oficial, feita pelo então presidente dos Estados Unidos, de que os
anos 90 seriam a década do cérebro, e esforços não deveriam ser poupados para
interesse geral na neurociência passa a ser então oficial; ora, na verdade o cérebro está
em pauta muito antes de qualquer declaração oficial. Por outro lado, uma concentração
de esforços de pesquisa em uma determinada área tende a gerar não somente uma
29
Como veremos no capítulo 3, trata-se de um nome central no que diz respeito à divulgação de
neurociência no Brasil para um público amplo. O endereço do blog é
http://www.suzanaherculanohouzel.com.
44
vocabulário ‘neuro’ que já faz parte do nosso cotidiano, para além dos muros dos
laboratórios.
É no final do século XIX que o cérebro começa a ganhar a forma que apresenta
contemporaneamente. Com isso quero dizer que neste momento histórico começamos a
XX.
ramos científicos que se ocupam do cérebro. Mas vejamos como profissionais desse
campo definem essa área de pesquisa eles mesmos, nas três formulações a seguir:
elas estão no prefácio a uma enciclopédia da área, em uma curta entrevista concedida
divulgação de neurociência.
designar esta “disciplina científica”, quanto o fato de que as especialidades que formam
o seu corpo não sejam novas. É evidente a pretensão a ser uma prática interdisciplinar, e
30
Entrevista para a revista Veja, como parte de uma reportagem de capa cujo título é “Os
segredos da memória”. Veja, edição 2147, ano 43, n.2, 2010.
31
“But what do we mean by "neuroscience"? The word has been defined in various ways during
its relatively short history; no formal definition will be attempted here. For our purposes, the
word is considered in its broadest interdisciplinary sense. Thus, using "neuroscience" as an
umbrella term covering all those sciences trying to understand the brain and nervous system
and involved in the investigation of how the brain and nervous system mediate behavior,
including the mental and emotional life of humans, any scientist from whatever discipline
biomedical, physical, behavioral - interested in trying to understand the mechanisms
underlying mind-brain function, may well be considered a neuroscientist. New terms and
fields have developed covering different aspects of brain and nervous system research, e.g.
neurobiology, cognitive science, neural computing, etc. But we consider all of these simply
subsets of the overall, unified "neuroscience"”.
46
neurocientista da UFRJ Roberto Lent a situa no final do século XX, sem ser específico a
respeito do ano. A definição de Kandel, curta como deve ser no caso de uma entrevista a
uma revista semanal voltada para o público amplo, vai direto ao ponto da redução da
Adelman e Smith (2004) afirmam que o termo deve ter sido provavelmente usado pela
primeira vez no final dos anos 50 do século passado por Ralph W. Gerard. Valenstein33
(2005, p.132) confirma esta fonte, e afirma que Ralph Gerard foi um neurofisiologista
envolvido nos debates que, ainda em meados do século XX, discutiam se a transmissão
no sistema nervoso (tanto periférico quanto central) se dava por meio elétrico ou
twisted molecule” (ibidem, p.161), uma ideia que estabelece uma conexão direta entre
no segundo.
antes. O termo ‘neurônio’ é utilizado pela primeira vez em 1891, cunhado por um
cientista alemão, Wilhem von Waldeyer, a partir da palavra grega para fibra ou corda
(cf. Abraham, 2005, p.34), para designar as unidades funcionais do sistema nervoso.
32
Não deixa de ser curioso este desejo unificador da neurociência, em um momento no qual
tanto se fala sobre a excessiva especialização e compartimentalização das disciplinas. É
como se a organização desta nova ‘superdisciplina’ refletisse a posição mesma do cérebro
em relação ao resto do organismo, como uma espécie de superentidade que organiza a
totalidade da qual faz parte.
33
Valenstein, Elliot S., The war of the soups and the sparks. O autor é professor emérito de
psicologia e neurociência na Universidade de Michigan.
47
XIX. Já a palavra ‘sinapse’ foi introduzida pelo neurofisiologista britânico Charles Scott
nervoso, como parte de um livro-texto mais amplo, ele julgou precisar de um termo para
hiato (gap) ainda puramente hipotético naquele momento, já que não havia ainda
tecnologia para visualizá-lo 34. O termo ‘sinapse’ teria sido sugestão de um amigo da
academia, especializado em grego, a partir da palavra que naquele idioma tem o sentido
de apertar, afivelar ou entrelaçar. Fica claro que essa era uma opção entre outras
comunicam os neurônios; nomeia-se o que sequer era visível para tornar mais real a
suposta fenda: “Sherrington preferiu esta palavra a outras alternativas que pareciam
implicar uma conexão física mais próxima do que aquela que ele acreditava haver entre
O final do século XIX e início do século XX foi um período, como se pode ver
cérebro. Foi nesse período que a chamada ‘doutrina neural’, proposta pelo espanhol
Santiago Ramon y Cajal, que embasa ainda hoje os saberes da neurociência, teria sido
neurociência, por ter sido responsável pela teoria neuronista; segundo essa hipótese, “as
34
Contam os historiadores da neurociência e neurocientistas que a fenda entre os neurônios só
pode de fato ser vista por volta de 1950, com a introdução da microscopia eletrônica.
48
chamava reticularismo.
Uma vez tendo vencido esta batalha científica, a teoria neuronista traz um novo
problema: se as células do sistema nervoso não se tocam, qual seria o motor do fluxo de
informações entre os neurônios? Como se daria a travessia da sinapse? O que vale para
o sistema nervoso periférico valeria também para o sistema nervoso central? Ainda em
meados do século XX, a ideia de que agentes químicos estivessem envolvidos no ‘salto’
sináptico no caso específico do cérebro era ainda muito contestada por fisiologistas,
ainda que aceita no que diz respeito ao sistema nervoso periférico. “A química – afirma
refúgio da alma!”.
histórica ao qual não me proponho aqui. Aos meus objetivos etnográficos, acredito ser o
bastante ter marcado a juventude de uma série de conceitos centrais para a neurociência
contemporânea, e que parecem estar, após pouco mais de um século, tão incrustados em
discursos cotidianos, mesmo entre o público leigo, que soa como se eles sempre
tivessem existido35.
algo novo. A noção de que seria este órgão que faz de nós aquilo que somos e onde
cerebral. Por outro lado, todo um vocabulário ‘neuro’ que passa hoje por um amplo
35
Ainda assim, ressinto-me de não apresentar uma história mais completa, que ofereça um
quadro com melhor definição deste período entre a organologia de Gall e o surgimento das
teses centrais que embasam a neurociência contemporânea, e mesmo do vocabulário hoje
utilizado. Um esforço neste sentido poderia mostrar os próximos passos deste trabalho.
49
soam hoje tão incrustados na natureza dos nossos cérebros, e por isso soam ahistóricos,
como se sempre se soubesse que eles estavam lá, são conceitos criados já às portas do
século XX, quando a chamada ‘neurociência moderna’ dava os seus primeiros passos
caminho para as hipóteses que até hoje sustentam as ciências do cérebro. Mesmo antes
disso, novos capítulos no que diz respeito a esforços localizacionistas tentam provar,
como no caso de Paul Broca, em 1861, qual é a área do cérebro responsável pela
articulação da linguagem.
começem, neste mesmo período, a estabelecer debates nos quais figuram o cérebro e
cerebrais” (p.40). Para ele, esses termos estavam em equivalência, nesta ordem, aos
fatos sociais e aos indivíduos: ou seja, existe algo no fato mental que não pode ser
explicado pelo vibrar das células cerebrais, no mesmo sentido em que o todo ultrapassa
a soma das partes. O autor investe contra o fracionamento da vida mental associado ao
50
localizacionismo cerebral:
relação ao seu substrato físico, sem negar que tal substrato é condição necessária à
existência da representação, mas não pode explicá-la totalmente, em uma crítica a ideia
do psíquico como epifenômeno do cérebro. Ele deixa claro que se trata de uma
entidade metafísica:
nada será, pois, tão absurdo quanto erigir a vida psíquica sobre uma
espécie de absoluto, que não viria de lugar nenhum e que não se
ligaria ao resto do universo. É evidente que o estado do cérebro afeta
todos os fenômenos intelectuais e que é fator imediato de alguns deles
(sensações puras). Mas, por outro lado, conclui-se do que foi dito que
a vida representativa não é inerente à natureza intrínseca da matéria
nervosa, pois que subsiste em parte por suas próprias forças e tem
maneiras de ser que lhe são peculiares. A representação não é um
simples aspecto do estado em que se encontra o elemento nervoso no
momento em que ocorre, não só porque ela se mantém mesmo quando
esse estado não mais existe, como porque as relações das
representações são de natureza diferente das relações dos elementos
nervosos subjacentes. A representação é algo de novo, que certas
características da célula naturalmente contribuem para que se produza,
mas que não são suficientes para formá-la, uma vez que a elas
sobrevive e manifesta propriedades diferentes. (Durkheim, 1970
[1898], p.37)
mesma proporção das manifestações que reduzem a pessoa ao cérebro. O autor aplica a
essa relação uma lógica semelhante àquela proposta para pensar a autonomia dos fatos
também existiriam como coisas, exteriores à superfície necessária para que eles existam,
Sem sair da escola sociológica francesa, outro texto importante faz menção a
pesquisas que envolvem o cérebro. Sem negar de todo que aspectos orgânicos
contribuam para a desteridade, Hertz (1980 [1909]) questiona se tais aspectos seriam
suficientes para explicar a “preponderância absoluta da mão direita se isso não fosse
anatômica para a “preeminência da mão direita” contra a qual o autor vai se colocar é o
sabemos, enerva os músculos do lado oposto” (ibidem, p.100). Neste caso, então, não se
trata de uma crítica ao localizacionismo cerebral; Hertz vai opor-se à ideia de que a
citada assimetria sirva como explicação única da preferência pela mão direita, como
propôs o anatomista, cirurgião e antropólogo físico francês Paul Pierre Broca36 (1824-
um debate na linha nurture vs. nature em torno do cérebro. De certa forma, a proposta
de Hertz é muito moderna – ou, certas proposições atuais da neurociência não são assim
tão recentes –, já que parece de acordo com uma visão plástica do cérebro, órgão que
meio ambiente.
Ao que parece, não são novas as tensões entre diferentes perspectivas no que diz
Jacyna (1992) afirmam que o tema não pode ser compreendido se divorciado da cultura
sentido também que, para Percheron (1987), os discursos sobre o cérebro não são
fato político” e nuançado: como já foi sugerido em seção anterior, enquanto de forma
geral os localizacionistas eram tidos como hostis à ordem, adversários da pena de morte,
É claro que construir esse tipo de relação fica mais fácil quando se trabalha com
o passado. Mas uma análise, ainda que superficial, de uma determinada posição dentro
53
da filosofia contemporânea, pode nos dar algumas pistas de relações possíveis com o
eliminativista”:
“psicologia popular”), porque enquanto a segunda trabalha com conceitos que fazem
portanto, é coerente com elas como parte de uma explicação científica unificada sobre o
Vale dizer que esse posicionamento defendido por Paul Churchland e colegas
filiados a esta corrente gera uma resposta por parte de outros autores que advogam, a
cujo objetivo é se comunicar com um público mais amplo 37. Um dos argumentos
centrais de Ricoeur é o combate ao que ele considera ser um amálgama semântico que
reuniria dois discursos: um que diz respeito ao corpo e ao cérebro, e outro que diz
respeito à mente. Para Ricoeur, essas seriam perspectivas heterogêneas, que não podem
tipo específico, que não pode ser comparado com a relação que se tem, por exemplo,
com a própria mão ou com os olhos. O cérebro, em sua opinião, não faz parte da nossa
experiência corporal (bodily experience); ele seria um objeto da ciência e não da nossa
37
Changeux é explícito no que diz respeito a esta comunicação voltada a um público amplo. Ao
comentar o caráter revolucionário da descoberta de uma fenda entre os neurônios, ele afirma
que “a descoberta da sinapse e das suas funções lembra, pela amplitude das suas
consequências, a do átomo ou do ácido desoxirribonucleico. Abre-se um novo mundo e
parece oportuno alargar este campo de saber a um público mais vasto que o dos especialistas,
e, se possível, permitir que compartilhem do entusiasmo que anima os investigadores deste
domínio” (Changeux, 1985, p. 10). Na capa do livro, uma edição portuguesa, já é dito se
tratar de uma obra com pretensões em atingir um público amplo: “Informar e, se possível,
despertar o interesse dos leitores sobre as ciências do sistema nervoso. Parece chegado o
momento de abrir ao grande público um domínio até agora reservado aos especialistas”.
38
“In the one case it is a question of neurons and their connection in a system; in the other one
speaks of knowledge, action, feeling – acts or states characterized by intentions, motivations
or values. I shall therefore combat the sort of semantic amalgamation that one find
summarized in the oxymoronic formula “The brain thinks”. [...] ...I do not see a way of
passing from one order of discourse to the other: either I speak of neurons and so forth, in
which case I find my self in a certain language, or I speak of thoughts, actions and feelings
that I connect with my body, to which I stand in a relation of possession, of belonging”
(Changeux e Ricoeur, 2000, p.14-5).
55
para o público amplo não teria justamente este efeito: o de construir uma percepção
feitos no Brasil, como responsável por tudo o que sentimos e fazemos em nosso dia a
dia. Acredito que o ambiente em que estamos vivendo já tenha incorporado essa visão
este debate de forma mais intensa é um sintoma disso. Ainda que seja ingênuo atribuir
esse espírito cerebralista do nosso tempo somente ao sucesso público das neurociências
exatamente aquilo que Ricoeur diz não existir: uma experiência corporal do cérebro,
mesmo entre um público leigo, por oferecerem uma leitura mais objetiva daquilo que
faz de nós quem nós somos. Nos seus últimos trabalhos (2000, 2007), a antropóloga
Emily Martin também vem ensaiando respostas a esse tipo de pretensão. Tomando
Para Martin, então, a tensão entre diferentes modelos de pessoa não se joga
somente na arena científica, mas em um circuito cultural muito mais amplo, no qual o
discurso científico está inserido. Uma noção de pessoa cujo centro é o cérebro faz parte
de uma espécie de pedagogia científica, já insinuada aqui, e que será aprofundada nos
uma visão de mundo cerebralista tem sido divulgada pela neurociência e pelo marketing
dos laboratórios farmacêuticos, que trabalham com a ideia de que as ‘doenças da mente’
ser uma proposta nova. Essa ideia tem sido defendida por Fernando Vidal, que
argumenta ser uma postura apressada tomar a ideia do ‘cérebro como pessoa’ como uma
neurais nelas baseados). Vidal segue justamente na direção contrária, como ilustram as
39
“U.S. folk psychology will not necessarily be replaced by the view that inner states are neural
structures, any more than a habitual gambler’s view that a score of 21 wins a hand of
blackjack would be replaced by the view that habitual gambling is caused by possessing a
particular set of genes. If a more reductionistic and brain-based picture of human action
displaced our current everyday mental concepts, it would not be because (or solely because)
the neural net theory had won in the court of scientific opinion. It would be because the
environment we live in (and that scientific theories are produced in) had shifted so that a
brain-centered view of a person began to make cultural sense”.
57
“qualidade ou condição de ser um cérebro” (Vidal, 2005, 2009; Ortega e Vidal, 2007).
Aquilo que a neurociência contemporânea decreta, então, ter descoberto – ser o cérebro
a essência do que nos define como seres humanos, como afirma Andreasen (op. cit.) –
40
“A good number of 20th- and 21st- century neuroscientists seem to think that their convictions
about the self are based on neuroscientific data. In fact, things happened the other way
around: brainhood predated reliable neuroscientific discoveries, and constituted a motivating
factor of the research that, in turn, legitimized it.”
41
“Neurocultural discourses, and neuroethics with them, mask the continuity that exists, since
the early 19th century, in the main assumptions, in the ‘big’ questions being asked (about the
nature of consciousness or the mind-brain relation), and in the answers to them as well (e.g.
mind as reducible to brain or mind as an emergent property). The claim that the 1990s were
declared the Decade of the Brain because ‘the success of the scientific method partially
replaced older notions of the soul or mind-body dualism with the doctrine that mind… is the
brain’s exclusive output’ (Lepore, 2001) is typical of the ahistorical triumphalism
characteristic of the neuro-field.”
42
Ver Sourkes, 1998, em comentário sobre os trabalhos de Georges Cabanis (1757-1808), nos
quais este último posiciona o estudo da atividade mental como parte da fisiologia,
relacionando o físico e o moral.
58
mentais dos mais diversos tipos têm, em sua origem, um desequilíbrio do cérebro,
e consequência. Por si só, esta constatação nos coloca uma questão: as doenças seriam
da mente ou do cérebro? Tal aspecto da saúde humana deve ser referido como ‘saúde
entre cérebro e mente, mas sim uma hierarquia na qual o cérebro tem na mente um
epifenômeno, trata-se de uma falsa questão. Neste caso, ainda que o vocabulário
utilizado seja ‘saúde mental’, é ao cérebro que se está referindo em última instância.
tese, no que diz respeito tanto à neurociência contemporânea, quanto ao material ligado
à psicofarmacologia.
que curou o seu próprio cérebro, no qual a neurocientista Jill Bolte Taylor relata como
percebeu que estava tendo um acidente vascular cerebral, até ao que ela chama de “my
stroke of insight”: uma tomada de consciência de que ela poderia, em parte, “assumir o
ela afirma que “a saúde mental de nossa sociedade é estabelecida pela saúde mental dos
primeira seria o que significa “saúde mental” no contexto da frase de Taylor; a segunda
seria a propósito da relação que a frase estabelece entre mente e cérebro. Não
precisamos ir muito longe para perceber que o termo ‘mente’, no trecho apresentado,
biológica, nos apresentam hoje: uma visão fisicalista da mente, que trabalha com a
possibilidade de uma base biológica para as doenças mentais em suas mais variadas
formas. Assim, cérebro, mente e sujeito se confundem, saúde mental parece ser um
cerebral.
Outro ponto merece também atenção no trecho destacado acima. A ideia de que
43
A expressão foi traduzida para o português como “meu derrame de sabedoria” (“stroke”
significa, também, por metonímia, derrame). A sua escolha caminha na direção do lado
direito do cérebro/mente: “Com base em minha experiência de perder o lado esquerdo da
mente, acredito inteiramente que o sentimento de paz interior está localizado no circuito
neurológico do lado direito do cérebro” (idem, p.169). Os termos mente e cérebro são
utilizados de forma intercambiável para se referir aos dois lados do órgão. Já se entrevê aqui
uma relação próxima entre diferentes aspectos da subjetividade e lateralidade cerebral: a
“paz interior” tem endereço no lado direito do cérebro – lado que a autora passa a valorizar
mais durante o seu processo de recuperação, e a usar conscientemente; enquanto isso, à
esquerda estaria um circuito neural que ela escolheu não recuperar, devido ao seu “potencial
para ser cruel, preocupar-se sem cessar ou ser verbalmente abusivo com relação aos outros
ou a mim mesma” (idem, p.151-52). Por enquanto, deixo apenas sublinhado o sinal positivo
dado à escolha e à autonomia, para retomar mais a frente uma discussão sobre a relação
entre tais valores e representações presentes no marketing de psicofármacos.
60
a saúde mental de uma sociedade é estabelecida pela saúde mental dos cérebros que a
formam traz embutido o pressuposto, nada óbvio, de que uma sociedade é formada por
cérebros. Temos aqui uma pista etnográfica para a nossa hipótese de que um acento no
cerebralismo – face específica da ideia mais ampla de fisicalismo – marca não apenas
sociedade.
trabalho de campo44.
prováveis, mas não por isso menos significativos. Estão envolvidos em uma batalha os
HQs e recentemente transpostos para o cinema. O que nos interessa aqui é o poder
imediato desabilitado para a batalha e cai no solo repetindo frases como “sinto muito,
sinto muito, é minha culpa”, e ainda “ma-mãe? / calma, filho, calma” (como se estivesse
revivendo um diálogo com sua mãe). Finda a batalha, aproxima-se da vítima uma
mutante sua aliada, também com poderes psíquicos, e explica o que aconteceu: “Caliban
o infectou com uma psicose temporária. Você está revivendo o seu passado... Preciso
44
Se é que faz sentido fazer esta divisão, levando em conta a forma como se deu esta etnografia.
Boa parte dos dados se apresentaram quando eu estava, por assim dizer, com a guarda
etnográfica baixa. Por isso considerei importante salientar as condições de possibilidade de
fazer este trabalho, composto por um campo heterogêneo, o que vai ficando mais evidente a
cada capítulo.
61
consertar isso rápido, antes que os danos sejam permanentes. Se eu puder bloquear os
mutante infectado com o “vírus psicoativo” volta ao normal, sem ter consciência do que
se havia passado45.
Nessa cena de ficção, a psicose pode ser causada por um vírus, o que por si só já
lhe conferiria uma base exclusivamente de ordem fisiológica; por sua vez, a cura da
atingido, o que traz também a cura para o palco do cérebro enquanto órgão físico. O
etnográfico não é casual. Isso fala do quanto a ideia de uma saúde/doença cerebral está
poderíamos chamar de uma cultura leiga, muito para além dos espaços eruditos ou
técnicos. Além disso, ao comentar esse espaço em que a princípio seria pouco provável
‘científico’, mas justamente pensar a forma como esses discursos (mais ou menos
respeito de uma temática próxima, o DNA – o parentesco fica por conta de ambos os
45
Deparei-me ao acaso com esta cena em “Guerra Civil: X-Men n. 1, 2006”. Os personagens
principais da revista são mutantes, heróis ou vilões que nasceram com determinadas
características mutagênicas que conferem diferentes habilidades especiais a cada um.
62
leigo como parte de uma ‘mística do cérebro’, que se reflete na ampliação do espaço
ocupado por temas relacionados a este órgão, sua saúde, suas doenças e seu
próprio momento em que escrevo. Tais situações serão relatadas no decorrer dos
46
Comparando a genética à figura antropológica do “sujeito cerebral”, afirma Vidal (2009, p.
6): “Ao julgar pela sua presença na mídia, o self genético parece ser o adversário mais forte
do sujeito cerebral. O genoma vem-se tornando de fato uma metáfora moderna para a alma”.
47
“Popular culture matters. For many consumers, media stories, soap operas, advice books,
advertising images, and other vehicles of popular culture are a crucial source of guidance and
information. These are not simply escapist sources. They are narratives of meaning, helping
their attentive listeners deal with social dilemmas, discover the boundaries of socially
acceptable behavior, and filter complex ideas. (…) The point of our analysis is not to identify
popular distortions of science or to debunk scientific myths. The interesting question is not
the contrast between scientific and popular culture; it is how they intersect to shape the
cultural meaning of the gene.”
63
sua pesquisa em busca por maior verossimilhança. O texto destacava que “áreas
doença. Uma animação – aliás de tipo bastante comum na TV quando o assunto remete
fluem pelo vazio entre os neurônios, sendo captado por uma espécie de tubo do outro
edição da revista Viver mente e cérebro, cuja capa é ilustrada por um traje masculino,
sendo que a cabeça é substituída por uma maça verde, apodrecida em algumas partes. A
os males mais diversos, passando pelo Alzheimer, Parkinson e autismo, até a depressão,
a ansiedade e o stress.
como uma faceta importante de um fenômeno mais amplo, a difusão de saberes sobre o
cérebro. Hoje estes temas são inseparáveis, já que o discurso dos laboratórios
perspectiva fisicalista das doenças mentais, tanto para o público leigo quanto para os
ainda sem muita clareza de como isso poderia ser feito – e coletar material publicitário
pessoas”, o que fez desta reunião a terceira maior em sua especialidade, conforme
evento de grandes proporções, cuja programação se espalhava por mesas redondas sobre
os mais diversos temas (67, ao todo), conferências especiais, simpósios, fóruns, sessões
48
As informações estão disponíveis no edital de concorrência para apresentação de proposta
comercial de empresas candidatas a prestadoras de serviços de montagem para o mesmo
congresso no ano seguinte.
65
aos estandes da indústria farmacêutica, o que de fato fiz na maior parte do tempo
expositores”.
Ao fazer a inscrição, recebi um crachá com uma tarja azul clara (identificada no
Programa Oficial do Congresso como “azul bebê”), que indicava a minha categoria de
estudante e o meu nome. Ao ler o livreto com o programa oficial do congresso, percebi
Mais do que uma diferença, as cores pareciam marcar uma hierarquia de proximidade
“azul bebê” para os estudantes de qualquer área aparentemente significava uma posição
66
menos prestigiosa naquele ambiente. Mais alguns momentos e percebi que isso poderia
ter implicações práticas no que dizia respeito à minha inserção em alguns espaços. Logo
no grande salão de recepção aos congressistas, deparei-me com uma placa na qual se
lia:
Versões mais sucintas deste texto se repetiam em outras placas espalhadas pela área dos
expositores. Como uma de minhas intenções era acessar material publicitário, fiquei
Estado. Não apenas eu não estou habilitado a prescrever, como sequer sou um
um novo personagem que não os laboratórios, e que poderia incidir nas relações que eu
obedecer a um determinado critério, e não aos congressistas. A cor “azul bebê” em meu
estandes. É claro que eu não tinha a intenção de me fazer passar por médico, ou mesmo
amplo salão ocupado pelos expositores. Uma linha imaginária dividia este salão em dois
já que voltei várias vezes aos mesmos estandes em momentos e dias diferentes do
congresso. Procurei visitá-los com atenção a todos, mas sem dúvida alguns deles – pelo
área dos estandes variava ao sabor das atividades mais chamativas. Como se vê, as
escolhas estavam sujeitas à minha avaliação subjetiva a cada momento, o que terá
Optei por uma apresentação não linear que toma como ponto de partida cada
estande em separado. Uma vez que os exemplos possíveis seriam vários, concentrar-me-
ei em alguns que considero mais significativos, no que diz respeito à densidade das
Não foi sem alguma ansiedade que dei os primeiros passos no que me parecia
68
psicofármacos. A comparação com um centro de compras pode soar como uma crítica
moral, visto que eu estava em um congresso científico; mas, de fato, é a imagem mais
Visto de cima, a partir de um andar mais alto, ficava evidente uma diferença entre os
congressistas circulando era claramente maior no lado ocupado pela indústria, onde
novas ações de marketing se sucediam a cada momento. Os dois lados eram separados
– visto de cima, a partir do ponto de onde foram tiradas as fotos – era ocupado
campo, com regras que teriam que ser decodificadas em pouco tempo, já que se tratava
de uma experiência curta, de quatro dias, ainda que bastante concentrada em um espaço
físico relativamente pequeno – mas não por isso menos complexo e denso de
significados.
70
marketing dos estandes. O primeiro expositor que prendeu minha atenção – na verdade,
recebi alguns brindes: um biscoito da sorte, com a mensagem “Preparado para ver as
coisas de forma diferente?”, e um pequeno brinquedo de plástico, com uma lente que
do Cymbalta!”.
49
No Brasil este medicamento tem indicação na bula para tratamento de transtorno de depressão
maior. No site www.cymbalta.com, vemos que o medicamento é indicado no mercado
americano também para transtorno de ansiedade generalizada, fibromialgia e para as dores
relacionadas à neuropatia diabética.
50
Em conversa com a funcionária de um estande, perguntei como eu deveria me referir à sua
categoria profissional. Ela se apresenta como “representante de vendas da indústria
farmacêutica”. Na internet encontrei cursos de “formação de propagandistas e promotores
para a indústria farmacêutica”. Casualmente, andando por Rosário, na Argentina, deparei-me
com um “Centro de Estudios Superiores”, um de cujos cursos oferecidos era o de “agente de
propaganda médica”. Para designar os profissionais que trabalham nos estandes das
indústrias, utilizarei o termo promotor ou propagandista; muitos dos funcionários dos
estandes eram de fato representantes de vendas dos laboratórios, o que não parecia ser o caso
de todos eles. Parece ser uma profissão a respeito da qual não foi feito ainda qualquer
esforço etnográfico no Brasil, tanto quanto sei; mas, tomando como referência a experiência
que tive no CBP, e a presença frequente destes profissionais nas salas de espera de
consultórios médicos, eles parecem ser um elo importante de ligação entre indústria
farmacêutica e médicos.
71
com o “além do óbvio”. O foco da ação de marketing estaria nos sintomas físicos da
balcão com serviço de café e alimentação. No chão do estande estavam impressas frases
depressão fez de mim uma pessoa solitária”, “meu sonho é voltar à vida que eu tinha
antes”, “vivo preocupada e não consigo resolver nada”, “minha vida não é mais como
soluções: um deles mostra uma mulher com as mãos na cabeça e destaque para a frase
traços que indicavam outros termos: perda de prazer, tristeza, ansiedade, queixas
impresso central do estande destacava uma mulher sorrindo e a frase “eu posso ter a
minha vida de volta” – e, a partir da palavra ‘vida’, indicavam-se os termos tempo com
distribuído. Fica mais do que evidente, ao menos no que diz respeito a esse estande, a
relação entre a depressão e uma imagem feminina. Isso não deveria ser surpresa já que,
uma prevalência na proporção de 2:1 entre mulheres e homens (Justo e Calil, 2006)51.
Entro por uma porta, convidado pelos funcionários, sobre a qual se lê “planetário
estava escura quando entrei. Em alguns segundos, cercado por quatro paredes, tem
51
Em uma primeira abordagem, o ‘dado epidemiológico’ poderia justificar o porquê da
prevalência de imagens femininas no marketing relacionado à depressão e aos
antidepressivos, mas vale desconfiar um pouco dos números, já que a própria produção do
dado científico pode ser generificado, influenciado pela representação da biomedicina acerca
do feminino. A respeito das representações diferenciais da medicina sobre o feminino, ver
Martin 2006 e Rohden 2001.
73
início a projeção de uma série de poemas e letras de músicas, que giram em torno do
grupo presente. Trechos de João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque, Nelson Sargento
e outros poetas e compositores são projetados nas paredes, circulando por elas, sendo ao
por cima” e felicidade. A contraposição dos poemas claramente nos leva da doença à
otimista. No escuro e cercado por mais sete pessoas, não tenho condições de tomar
tratamento das dores relacionadas à neuropatia diabética; chama-se atenção ainda para
Ainda nesse mesmo estande, o laboratório traz um móvel com 48 gavetas, uma
estrutura de madeira denominada “parede dos sentidos”. Entre uma maioria de gavetas
brancas, algumas coloridas (azuis e verdes) trazem o nome dos cinco sentidos humanos.
Somente estas gavetas coloridas podem ser abertas. A ideia é que, ao abrir as gavetas
‘audição’ um fone e o dizer “aperte no play” (mas que não emitia qualquer som), a
gaveta do olfato traz um sachet perfumado, o ‘tato’ apresenta uma substância gelatinosa
(mas que não gruda nos dedos) e a gaveta do paladar oferece pequenas balinhas.
com a vida e os sentidos acarretada pelos estados depressivos e, por outro, o estímulo
dos sentidos dos congressistas. A escolha de marketing fica ainda mais clara quando
52
A experiência estética tem como referência uma das atividades no Museu da Língua
Portuguesa, em São Paulo.
74
que incluem
atuam os neurotransmissores:
óbvio”, que seria tratar os sintomas emocionais – ficava agora mais clara. Como não se
noradrenalina.53
Percebi nas experiências desse estande que eu deveria estar atento a uma relação
fina entre os medicamentos e as ações de marketing, relação esta que nem sempre é tão
deveria atentar também para um possível diálogo surdo entre os estandes, visto que eu
mais diretamente aos funcionários dos estandes como um estudante com interesse em
parecia-me um dos mais peculiares. Talvez por isso, durante os quatro dias de
com este espaço, ao qual voltava ciclicamente. As atividades oferecidas pelo estande
apresentava sobre uma bancada. O formato do espaço pode remeter a várias imagens:
projetos de Oscar Niemeyer); em torno desta estrutura funcionava um bar, onde eram
53
Na monografia disponível no estande sobre o Cymbalta, parte do texto é dedicada a
diferenciar a estrutura química de Cymbalta, Prozac e Strattera (este último um inibidor
seletivo de recaptação de noradrenalina), todos os três fabricados pelo mesmo laboratório. O
texto ressalta que não se trata de isômeros, apesar de compartilharem algumas características
químicas: “entretanto são moléculas distintas, com diferenças estruturais, sendo que
Cymbalta não foi desenvolvido a partir de Prozac, que é um ISRS. Essas diferenças
estruturais podem ser consideradas em relação aos diferentes efeitos clínicos proporcionados
por cada uma das drogas”.
76
área próxima a este e outros estandes. Uma vez terminadas as atividades, era nessa
parece ser masculino – em corrida, e traz a palavra “pânico” impressa sobre ele.
Em uma primeira aproximação, tomei um drink não alcoólico. As três opções de drinks
disponíveis no bar eram nomeados por adjetivos e assim deveriam ser pedidas: rápido,
eficaz e barato; esse último, por exemplo, era feito com suco de laranja, suco de
não alcoólicos criados sob encomenda para este estande por uma empresa especializada
receita deste último contem Monin Blue Curaçao, groselha, mix de limão e Sprite).
No primeiro dia de congresso, chamou minha atenção uma grande tela para pintura, em
um dos cantos deste estande, com várias pequenas latas de tinta próximas a ela. Além de
outras formas, mais ou menos irregulares – um duende, um gato, olhos, uma estrela, um
coração, a palavra ‘Rivotril’ em destaque – lia-se na parte de baixo da tela a frase “viva
a psicanálise”. Tive o reflexo de fotografar esta imagem, pois achei interessante essa
54
Distúrbios epilépticos, transtornos de ansiedade (pânico, fobia social), transtornos do humor
(transtorno afetivo bipolar e depressão maior), síndrome das pernas inquietas, síndrome da
boca ardente.
77
Quando voltei, algumas horas mais tarde, àquele mesmo ponto, a tela continuava lá,
multiplicado, a tela tinha menos espaços vazios, e da frase “viva a psicanálise” havia
sobrado somente o “viva”; como eu havia visto a tela em dois momentos diferentes, era
possível perceber que o resto da frase havia sido deliberadamente coberto por novas
simplesmente traços.
78
Perguntei a um dos promotores se eles haviam trocado a tela. Ele me disse que
não, e explicou que se tratava de uma “obra coletiva”, que qualquer pessoa poderia fazer
uso das tintas e pintar alguma coisa. Comentei sobre a frase que havia sumido, e ele me
disse “é, só ficou o viva... deve ter sido algum psiquiatra clínico que passou por aqui... e
esse ‘Rivotril’ não fomos nós, porque a ANVISA não permite”. Uma resposta curta,
psicanálise; e também, mais uma vez, a ANVISA, órgão cujos olhos estariam
Uma segunda situação ocorreu após mais uma volta pelos estandes, e um retorno
ao espaço do “pânico”. Desta vez estava acompanhado de uma amiga, que encontrei por
havia estudado alguns anos antes. A companhia dessa colega ajudou-me a perceber uma
tensão nem sempre explícita naquele espaço entre diferentes paradigmas que convivem
nas áreas Psi. Quando nos aproximamos do estande, ela se mostrou surpresa por uma
das atividades organizadas pelo laboratório ser uma oficina de arte, na qual se poderia
usuário, efeito que não combinaria com atividades artísticas criativas. De qualquer
forma, nos aproximamos do bar para tomar um coquetel (ainda não alcoólico naquele
seu drink, que era servido com uma espécie de gelo seco, que faz com que a bebida
solte fumaça. Ao passar por mim e minha amiga, ele faz um comentário comparativo
em tom jocoso: “legal, só que o Rivotril não solta fumaça”, ao que minha amiga
como o Rivotril”.
pequenos impressos, monografias do produto e sobre doenças por ele tratadas, além de
uma série de DVDs que continham filmes promocionais que seriam parte de um
explicou que os filmes trazem casos de pânico interpretados por atores, e “serve para
55
Trata-se de curtas metragens produzidos para a Roche, com diferentes roteiros. Em um deles,
uma mulher conta como os sintomas de pânico do seu ex-marido levou ao fim do casamento;
em um outro, uma mulher apresenta os sintomas durante uma trilha na mata com os amigos,
interrompendo o passeio, para a decepção de todos. Um texto no verso do CD termina com a
frase “A síndrome do pânico pode acontecer com qualquer um e não marca hora para alterar
a rotina e prejudicar quem está sofrendo desse mal”.
80
pelo estande descrita acima, acompanhado de uma colega psiquiatra, percebi que essa
regra era tratada com ambiguidade. Quando nos aproximamos, fomos atendidos por
publicitário. Ela nos questionou: “Alguém visita vocês?” – uma frase que eu ouviria
com frequência em vários estandes durante o congresso. Ela se refere aos representantes
interpretavam as regras da ANVISA. Ela disse que não poderia me entregar alguns
materiais “porque os fiscais da ANVISA estavam de olho”, mas que os folhetos estão
estaria ferindo algum critério ético de pesquisa antropológica, mas conclui que, se havia
momento pude identificar a presença dos referidos fiscais, ainda que eles fossem
todos os dias do congresso, eu tive que fazer uso do serviço de guarda-volumes, tal a
considerável. Eu voltava para casa com algumas sacolas de material publicitário dos
arredores deste estande que acontecia uma espécie de happy-hour, com música,
boas oportunidades para conversas informais com as poucas pessoas que eu conhecia.
congresso trazia apenas duas páginas dedicadas à publicidade: a página dois era tomada
justamente por um anúncio do Rivotril, no qual se destaca o seu “rápido início de ação”,
Este espaço destacado de divulgação faz eco com a informação depois obtida a
respeito do atual sucesso de mercado do Rivotril. Números aferidos no ano de 2009 pelo
instituto IMS Health, que audita a indústria farmacêutica, apontam o Rivotril como o
segundo medicamento mais vendido do país em 2008 (ano seguinte ao congresso que
nesta lista, e sequer aparecia na lista dos 10 mais vendidos em 1998, apesar de já estar
revista semanal Época, que destacava em sua capa de 23 de fevereiro de 2009 uma
chamada com o texto “A vida com calmante – como o Brasil se tornou o maior
psiquiatra entrevistado pela revista afirma que “os médicos fazem isso porque o remédio
é barato (a caixinha mais cara custa R$13, cerca de U$6,50 no câmbio do momento),
antigo e seguro (...) mas ele pode mascarar quadros mais graves”. Ainda que haja uma
visão crítica na observação deste psiquiatra, lembrei-me de já ter visto esses adjetivos
sendo atribuídos ao Rivotril: barato e seguro eram os nomes de dois dos drinques não-
tornar uma espécie de referência em sua área de atuação; mais do que isso, no caso de
geraria; indo além, uma pílula pode mesmo passar a significar um certo tipo de
56
O primeiro deles seria o número de pessoas em sofrimento psíquico: “transtornos de
ansiedade e depressão são comuns nas grandes cidades, castigadas pela violência, pelo
trânsito e pelo desemprego. Mas a pesquisa São Paulo Megacity, uma parceria do Hospital
das Clínicas de São Paulo com a Organização Mundial de Saúde, revela que 40% dos
moradores da região metropolitana sofre de algum tipo de transtorno psiquiátrico”. Isso
remete a uma relação que não é nova na cultura ocidental: a ideia de doenças da civilização,
de males do espaço urbano.
83
ser entendida pelos leitores, que compartilham esta referência (caso contrário, muito
Dia58, como tendo afirmado antes da entrada no programa o seu desejo de “sair rica para
beber muito champagne (...) Não sei como será a vida comendo olho de cabra. O
máximo que posso dizer é que não sei como vou viver sem o meu Rivotril e o meu
secador de cabelo”. Em uma foto ao lado deste texto, ela aparece em um vestido de festa
momentos nos quais o trabalho de campo irrompe de surpresa em meio à vida cotidiana.
Eu subia uma rua no bairro da Gávea (zona sul do Rio de Janeiro), em uma área
ocupada por casas de alto padrão; sem nenhuma relação com minhas atividades de
exames de uma pessoa da minha família em busca de uma segunda opinião a respeito de
uma possível cirurgia. Ao virar uma esquina, deparei-me com um muro pichado com a
palavra ‘Rivotril’; não havia outras paredes pichadas nesta mesma área, então aquela
intervenção parecia ser isolada. Fiquei congelado alguns minutos em frente ao muro
pichado, lamentando não portar uma máquina fotográfica ou um celular com o qual
57
O músico Ed Motta define assim um seu próximo disco, um retorno ao “pop dançante” após
discos instrumentais, em uma nota na coluna Gente Boa, de Joaquim Ferreira dos Santos, no
suplemento de cultura do jornal O Globo, data de capa 7 de setembro de 2009.
58
Coluna social de Bruno Astuto, na edição de 11 de agosto de 2009. Entre os jornais diários
que circulam no Rio de Janeiro, O Dia ocupa um lugar entre O Globo, que pode ser
considerado um jornal voltado para a elite letrada, e os periódicos populares, mais baratos e
voltados para as classes populares.
84
Iluminada a posteriori por esta nova experiência, agora aquilo me soava como uma
espécie de pichação feita por um grupo de resistência, uma manifestação intrusiva que
foi logo apagada em poucas horas, mas que falava, assim como as observações de
Alguns dias depois, pedi a um amigo que frequenta o bairro – e costuma passar
justamente naquela rua – que fotografasse o muro pichado. Ele me ligou posteriormente,
comentando – com alguma ironia – que talvez eu “estivesse trabalhando demais”, já que
ele não conseguia encontrar o tal muro pichado, ainda que passasse por ali com alguma
frequência. Imagino que, assim como no caso na tela coletiva no estande do Rivotril,
ainda que por outros motivos, alguém tenha passado uma mão de tinta por cima da
pichação, devolvendo a cor branca ao muro da casa. Seria o “Rivotril” pichado naquele
muro, em uma área hipoteticamente habitada e frequentada por pessoas com acesso a
certo, mas também psicanálise e outras linhas de psicoterapia, tão intrusivo quanto o
ansiedade”. Considerei eu mesmo que uma massagem não faria mal, sendo aquele o
terceiro dia de congresso. O massagista por quem fui atendido era um fisioterapeuta;
pergunto a ele sobre a relação entre as massagens e o medicamento Lorax®, ao que ele
responde: “olha, eu não tenho conhecimento farmacológico, mas lendo ali [na estrutura
efeitos positivos da massagem, como ela “mexe com os meridianos, como comprovado
pelos orientais; mas essa coisa dos meridianos e a nossa explicação hormonal na
verdade é a mesma coisa, né”, e segue explicando como a massagem pode atuar no
hormonal” da biomedicina Ocidental pode ter um caráter pedagógico, mas não deixa de
mostrar como diferentes sistemas de crença circulam naquele espaço, ainda que
poucos metros dali, no espaço dedicado ao Depakote®, o que chamava atenção eram
obras de arte. Este estande tinha como garoto-propaganda o pintor Van Gogh, imagem
que prendeu minha atenção. Por experiência própria de pesquisa e também pelo relato
personagens conhecidos da história universal. Van Gogh pode ser bipolar, assim como
Abraham Lincoln ou Mark Twain são indicados como tendo tido depressão; o subtexto
visa diminuir o estigma em torno destas doenças, ao mesmo tempo em que fala das
também no tempo.
explicou que Van Gogh era “bipolar e sofria de crises convulsivas. A ideia é que se o
Depakote existisse na época, ele não teria se matado, cortado a orelha ou casado com
que ele talvez também não tivesse pintado o que pintou e da forma como pintou, se
pensarmos o sujeito em sua totalidade; mais um segundo e percebi que o meu incômodo
falava das minhas crenças e acusava um algo que eu poderia chamar de etnocentrismo,
uma postura que seria aconselhável ter sob controle. Questionei ainda por que a coluna
do estande trazia um impresso com a palavra “EvoluiR” com a primeira e a última letras
divulgando uma nova apresentação “extended release”, cujas iniciais explicavam o ER.
Outros dois estandes, que estavam lado a lado na área dos expositores,
aumento de peso –, mas por razões diferentes. O estande do Zyprexa era maior em
tamanho e recebia um maior movimento de congressistas; quem passava por ali poderia
tirar uma foto de recordação do congresso – o que, aliás, eu fiz, como uma forma de
abaixo da frase “Zyprexa 10 anos. Obrigado por fazer parte dessa história”. Outra
atividade neste espaço era uma espécie de corrida em bicicletas ergométricas, cujo
vencedor levava como prêmio uma garrafa squeeze, do gênero utilizado por ciclistas e
outros atletas.
87
Enquanto observo três congressistas competindo, tiro uma foto minha no sistema
laboratório, composto por iogurte natural sem açúcar, flocos de milho sem açúcar e
gente faz isso para que os médicos digam aos seus pacientes ‘façam exercício, comam
melhor’”. Em uma tarde, uma extensa fila se formou rumo a este estande porque o ex-
brindes à ideia de que antipsicóticos podem, ou não, causar aumento de peso. Passei por
este estande em um horário de almoço, e uma fila já tinha se formado para ter acesso a
um prato com arroz, batata palha e carne. Como o serviço estava parado para reposição
dos alimentos, houve certa demora. Atrás de mim, uma mulher comenta que uma certa
demora “faz parte da estratégia, né?, ficar de frente pro Aripiprazol, não tem jeito”,
comentário que gerou risos em outras pessoas na fila. Fosse proposital a estratégia de
consciência que ali se tem das “estratégias” de marketing dos laboratórios, que podem
Dois dias depois, neste mesmo estande, era distribuída como brinde uma fita
métrica, do tipo que se usaria para tomar as medidas corporais, o que me deixou
surpreso; afinal, se antipsicóticos podem gerar aumento de peso, por que investir em um
89
brinde para os médicos que realçaria este possível aumento de medidas? O funcionário
do estande me esclarece que o Abilily não engorda, “pelo contrário, o Abilify atua de
aumentar, onde aumenta, ele ajuda a reduzir, atua como um regulador”. Não me era
óbvia a relação direta entre essa atuação do medicamento e o aumento de peso, mas
segui em frente com o diálogo e questionei para que então a fita métrica, ao que ele
respondeu com um sorriso: “porque quando a pessoa perceber que as medidas estão
ali para enviar uma mensagem diretamente aos médicos, e indiretamente aos seus
pacientes. Não pude deixar de notar que a alimentação no estande do medicamento que
“não engorda” era mais pesada, enquanto o estande que divulgava o Zyprexa investia
em estratégias junto aos médicos que visavam gerar uma mudança de estilo de vida,
Refiro-me ao suposto “psiquiatra clínico” que teria desenhado por cima da frase “viva a
que minha colega psiquiatra tinha a respeito das técnicas de marketing neste mesmo
estande. Essa tensão não deveria ser exatamente uma surpresa, já que expressa, de certa
forma, uma diferença entre perspectivas que marcam o campo da saúde mental/cerebral.
Se há alguma novidade trazida pelas situações etnográficas aqui descritas, é que elas
orgânico, abrindo caminho para a ampliação daquilo que podemos chamar uma
Mas isso não significa que não haja vozes dissonantes. Como imaginei que
chegaria ao congresso às cegas, com uma ideia na cabeça por certo, mas sem ter grande
privilegiados, a quem poderia recorrer caso necessário. Antes de viajar a Porto Alegre,
fiz contato – mediado muito gentilmente por uma professora minha – com um psiquiatra
alguns colegas seus, com quem também tive oportunidade de conversar; alguns
O contato com esse grupo não foi constante durante os dias de congresso, até
mas se mostrou, além de agradável, útil para que eu entendesse a natureza das diferentes
fim de tarde do primeiro dia de congresso, encontrei este grupo fazendo um happy-hour
pelo meu ‘guia’ como um antropólogo que estava ali com interesses etnográficos;
91
enquanto tomávamos alguma coisa, expliquei de forma sintética que o meu trabalho
farmacêutica.
Naquele grupo, o tema de pesquisa encontrou eco, visto que eles não se
conhecido psiquiatra brasileiro, que teria dito, antes de uma palestra, ao explicitar o seu
carrego esta marca; mas quem não carrega alguma marca na vida?”. Ela sorri e comenta
comigo que “esta marca” não é como qualquer outra, e fica clara a sua posição crítica ao
eventos dos quais participariam. O meu guia me questionou: “É essa tribo que você quer
colega dele indica que eu procure comparar os discursos dos mesmos profissionais nos
mesas-redondas, nas quais o tom mudaria, visto não haver explícito interesse comercial,
59
Quando isso não é óbvio, ou seja, quando não se trata de uma palestra explicitamente
organizada pelos laboratórios para divulgar um determinado produto, os palestrantes
apontam, no primeiro slide de apresentações que usam recursos visuais, o que chamam de
“conflito de interesses”, o seu vínculo com algum laboratório farmacêutico.
92
e os profissionais “teriam uma outra postura com o objetivo de angariar um certo tipo de
respeito entre os pares”. Outro ponto que o grupo destaca é que eu deveria estar atento
Foi impossível seguir todos estes conselhos, ainda que tenham sido muito
forma, os conselhos por si sós falavam de uma diferença e tensões naquele espaço.
específico, sem que isso seja explicitado claramente, pode ser motivo de discussões
acaloradas.
interesses”, que consiste em tornar tal vínculo explícito. Mas isso não zera a
caso de uma cena que se passou em uma mesa sobre “depressão grave” (um dos
serotonina). Ele defendeu-se nos seguintes termos: “por favor, numa mesa em que se
fala de conflito de interesses, não diga que eu privilegio este ou aquele antidepressivo,
60
Entre as oito conferências especiais do congresso, por exemplo, uma delas apresentava
resultados do trabalho de uma pesquisadora italiana a respeito da “neurobiologia da paixão
amorosa”. Em outro registro, às vésperas da entrega do texto final desta tese, uma edição do
programa Globo Repórter, que vai ao ar pela rede Globo de Televisão, foi todo dedicado à
idéia de que o enamoramento apresenta sinais externos e internos mensuráveis e visíveis ao
escrutínio científico. Todos eles em total relação com o cérebro.
93
Após a mesa, fiz uma breve entrevista com o psiquiatra questionado. Apresentei-
indústria, mas que explicitou este “conflito de interesse” na introdução de sua fala, e que
estava divulgando uma molécula e não deixava isso claro”. Conversamos sobre o papel
da indústria farmacêutica, o que ele definiu como “uma espécie de mal necessário... em
um mundo ideal devia ser diferente”, mas que hoje “95% dos estudos são desenvolvidos
Ficava claro que havia no ar uma tensão com o papel da indústria no congresso,
mesmo nestas podem surgir desconfianças de que a palestra tenha um determinado viés
com o objetivo de divulgar um ou outro medicamento, sem que isso esteja claro.
sobre o quão surpreendente poderia ser a área dos estandes da indústria para um
bastante agressivas. Antes de partir, ouvi falar sobre o congresso em outros anos,
quando o personagem “Zé do Caixão”, de José Mojica Marins, foi utilizado como
ansiedade; ou ainda sobre teorias a respeito de mecanismos de controle dos médicos por
61
Sigla para Food and Drug Administration, o órgão americano que regulamenta o mercado de
remédios, entre outras coisas.
94
através do código de barras no crachá, o que permitiria às indústrias saber qual assunto
congressistas. Mas cabe ressaltar que qualquer diversão oferecida sempre relacionava
alguma maneira o estado no qual supostamente o paciente pode ser colocado através
mundial da área, passando por carimbos e chegando a uma fita métrica que simboliza a
nas mesas redondas, nos estandes ou em discursos isolados aqui e ali – falavam sobre a
62
O livro de Tanya Luhrmann (2000), Of two minds: the growing disorder in american psychiatry, foi
esclarecedor da minha experiência de campo, ainda que a posteriori. Professora da Universidade de
Chicago, ela realizou uma etnografia entre os residentes de psiquiatria. Neste momento de formação, os
residentes estão, de certa forma, aprendendo a ver ‘doenças’ que não podem ser diagnosticadas com
marcadores biológicos, ao menos não diretamente. Ela explora as tensões no processo de aprendizagem
em uma área na qual diferentes paradigmas estiveram por muito tempo em debate: refiro-me ao
paradigma que se convencionou chamar “psiquiatria biológica” em tensão com uma linha psicodinâmica.
Luhrmann preocupa-se em mostrar que a psiquiatria parece encaminhar-se para um paradigma de ordem
fisicalista-reducionista, no qual uma das ‘lentes’ utilizadas pelos psiquiatras para entender os transtornos
mentais estaria sendo perdida. A autora toma partido e interpreta este movimento como uma perda que
levaria os psiquiatras e a sociedade como um todo a ‘ver’ menos complexidade do que antes. (Luhrmann,
2000:24) Tal perda fica evidente quando ela analisa unidades psiquiátricas nas quais o ‘modelo de
doença’ segue o paradigma da psiquiatria biológica: “A paciente estava falando com o médico sobre a
história da sua alma, e ele escutava através do relato a forma e o equilíbrio do seu cérebro” (ibidem:135)
95
vale destacar o lugar que me era atribuído no espaço dos expositores. Desde o começo,
a minha condição explícita de estudante no crachá não foi impedimento para que me
fosse entregue – ou para que eu pudesse coletar sem ser questionado – uma grande
por volta das 11 da manhã, eu já tinha mais material impresso do que poderia carregar
comigo, e mais do que eu já tinha tido acesso em vários anos de interesse no assunto.
momentos, não só minha condição de estudante não era levada em conta, como fui
medicamentos. Voltei para casa com algum excesso de bagagem nas mãos e um novo
laboratórios farmacêuticos. Abordo ainda as críticas que vem sendo direcionadas a uma
indústria que cresce sob fogo cerrado, e a moralidade em torno do uso de psicofármacos
bagagem. Brindes de diversos tipos, folheteria em diversos formatos e até blocos com
outras peças do mesmo gênero às quais eu já tinha tido acesso em salas de espera de
Uma primeira tarefa era classificar este material, ‘deixá-lo falar’ de alguma
forma, abrindo espaço para que semelhanças e contrastes viessem à tona a partir da
63
Como dito antes, o material me era entregue sem muito critério ou questionamento. Quando
não analisavam a categoria impressa no meu crachá de identificação, eu tinha acesso
irrestrito aos brindes e ao material publicitário disponível. Isso só não aconteceu nas poucas
vezes em que fui questionado sobre minha condição profissional, ou quando era requisitado
o preenchimento de uma ficha com informações pessoais, o que incluía o CRM (número do
médico no Conselho Regional de Medicina). Entre este material, havia uma sacola plástica
que continha um kit com caneta, monografia do produto, impressões de artigos científicos
que falavam sobre a molécula e dois blocos de receituário médico para medicamentos de uso
controlado.
64
Já na pesquisa do mestrado (Azize, 2002) eu acumulara bastante material publicitário de
laboratórios farmacêuticos, incluindo psicofármacos. Naquele momento, o foco era tentar
compreender o lugar da categoria “qualidade de vida” no marketing das chamadas ‘drogas
do estilo de vida’, com atenção especial para marcas que se tornaram um grande sucesso de
vendas, como o Viagra, o Xenical e o Prozac, que chegaram ao mercado com o estatuto de
moléculas revolucionárias para o tratamento de disfunção erétil, obesidade e depressão, nesta
ordem (Azize 2002, 2006).
97
da sua forma, que incluía pequenos folhetos, artigos científicos, anúncios publicitários e
linguagem técnica, com gráficos que comparam sua eficácia ante placebo e outras
submetidos. Outra parte tem como objetivo a difusão de saberes sobre doenças do
determinada doença, que informam seus sintomas e via de regra sublinham a ideia de
que se trata de uma “condição médica” real, e não alguma fraqueza moral do indivíduo.
Tentei organizá-lo reunindo em blocos separados peças que diziam respeito (1) ao
me oferecesse um frame de análise. Mas o que veio à tona foi outro tema, que se
doença de Alzheimer. Deparei-me neste momento com uma questão: por que boa parte
da natureza?
há nada de óbvio na escolha destas ilustrações, mas sim algo a ser interpretado, visto
98
tentar respondê-la, mais uma observação se faz necessária. Não há dúvida de que esse
lá fora’, no sentido de meio ambiente natural, ilustra, apenas para citar alguns exemplos,
continuar. Tais imagens fazem sentido dentro de uma estética do bem-estar – por certo,
acompanhar de valores a ela solidária, como, num forte exemplo, a ideia de “qualidade
como afirma Duarte (2005:158), uma das linhas de força que comporiam o sistema
cosmológico mais amplo da cultura ocidental moderna (Duarte et allii, 2006), e por isso
será transversal a tantos temas e passível de tantas significações. Assim sendo, aquilo
que será dito aqui a respeito da relação que se estabelece entre alguns medicamentos
mais amplo. Por outro lado, a ‘natureza’ como valor – seja no que diz respeito às suas
sentido em que se presta a uma pluralidade de significados que podem ser atribuídos ao
65
O tema suscita uma imensa bibliografia, com aproximações filosóficas, históricas e
etnográficas. Ver Lenoble (1990), Lovejoy (1993), Thomas (1988), Corbin (1989), Schama
(1995) e Sahlins (2004), apenas para exemplos mais pertinentes no que diz respeito a
reflexões internas à cultura ocidental. Pensando em termos comparativos, a questão ganha
ainda mais complexidade, se levarmos em conta cosmologias mais fluidas no que diz
respeito, por exemplo, à distância que separa (ou não) seres humanos e animais, nas quais a
própria noção de natureza faz pouco ou nenhum sentido, como parece ser o caso de
cosmologias ameríndias cunhadas de perspectivistas, nas quais “as categorias de Natureza e
Cultura (...) não só não subsumem os mesmos conteúdos, como não possuem o mesmo
estatuto de seus análogos ocidentais; elas não assinalam regiões do ser, mas antes
configurações relacionais, perspectivas móveis – em suma, pontos de vista” (Viveiros de
Castro, 2002: 349).
99
da Editora Globo), procura atrair turistas para aquela região através do seguinte
formato: uma foto em página-dupla de uma praia deserta, com céu e mar azuis e cercada
por área verde, é atravessada na parte inferior por uma faixa preta com os dizeres “Para
lembrar que é um antidepressivo, colocamos esta tarja preta”. A relação é mais do que
O que não me parece tão evidente é o fato de que o uso da ideia neste contexto
circuito muito mais amplo do que o especializado no tema; mas o principal ponto que
me fez guardar esse anúncio por tantos anos entre o meu material de campo é a relação
entre as sensações evocadas pelo que poderia ser definido como um ambiente natural
66
“Tarja preta”, devido justamente a carregarem esta marca na caixa do produto, é como são
referidos os medicamentos de controle especial, entre eles, por exemplo, os antidepressivos e
os anorexígenos (para emagrecer). Cabe à Agência Nacional de Controle Sanitário
(ANVISA) fiscalizar a comercialização deste tipo de medicamento. A expressão tem
também um uso popular: uma pessoa considerada desequilibrada por alguém pode ser
chamada, de forma jocosa, de “tarja preta”. Uma coletânea de contos com este título foi
publicada pela editora Objetiva em 2005, com autores como Pedro Bial (repórter,
apresentador de TV), Jorge Mautner (músico e escritor) e Adriana Falcão (escritora,
roteirista de TV e cinema). Esta última constrói seu conto no formato de um diálogo (ou,
melhor dizendo, dois monólogos paralelos) entre uma mulher e o seu cérebro, que ganha
vida própria, discutindo se ela deveria ou não telefonar para uma desilusão amorosa.
100
arsenal simbólico mais amplo, ao mesmo tempo em que são reforçadas por ele.
qual os laboratórios lançam mão em suas estratégias de marketing, seja para divulgar
segunda metade do século XVIII, quando, segundo Corbin (1989), emerge o desejo
67
O que nos remete mais uma vez às atividades propostas pelos estandes dos laboratórios
farmacêuticos aos médicos no Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Lembremos que as
atividades propostas – massagens, uma corrida entre bicicletas ergométricas, a parede dos
sentidos – construíam correlações entre sensações e os efeitos dos medicamentos.
101
Não é minha intenção aqui fazer um longo apanhado histórico sobre a relação
entre natureza – menos ainda sobre a particularidade das águas68 – e cura, mas tão
somente apontar que não se trata de uma novidade no Ocidente moderno. Atentemos
que algo de pouco saudável no ritmo ou estilo de vida urbano aparta dos “ritmos da
1944)69, o Dr. Boris Sokoloff, apresentado na orelha do livro como “famoso médico
apresentação, afirma-se que se trata de “um livro para ler e guardar. Em casa, no
escritório, nas estações de veraneio ou em viagens, ele poderá ser útil a qualquer
vida civilizada” está no livro em oposição ao “instinto da raça humana”. Nos últimos
séculos, a humanidade iria “de mal a pior”, adquirindo “péssimos hábitos, os quais,
deixado de ouvir a “frágil voz de nosso amigo – o instinto, que nos foi dado pela
natureza para nos guiar através da vida” (p.12). A ciência médica teria um papel
68
Trabalho mais do que cuidadoso tomando estâncias hidrominerais como ponto de partida é o
de Marras, 2004.
69
Intitulado “Doenças da civilização: você pode curá-las”.
102
nas duas ou três décadas anteriores à publicação (lembremos que a edição original é de
1944), a medicina teria dado um grande salto na descoberta de causas e curas para a
Um capítulo inteiro está dedicado ao sistema nervoso; para ele, o cérebro seria o
“órgão da civilização”, mais especificamente o lóbulo central, responsável pelo que ele
chama uma vitória do homem sobre o mundo orgânico e inorgânico. É o lóbulo central
que “inventa os aeroplanos, que idealiza os arranha-céus, que constrói barcos e navios,
que escreve novelas, forma linguagens e cria filosofias” (p.230). Mas “reflexos
produzindo um excesso de excitações elétricas... a causa real dos conflitos mentais, das
neuroses e psicoses”. Vejamos então como o Dr. Boris Sokoloff propõe o tratamento de
cansado”, a quem qualquer esforço fatiga, “meio deprimido e (que) revela, com
frequência, o desejo de morrer, mas raramente atenta contra a própria vida”. O paciente
Ainda que o salto histórico possa parecer grande demais, ecos deste desejo pelo
mar e por um contato mais próximo com a natureza como lugar de cura da melancolia
anúncio publicitário como o acima descrito, no qual uma praia na Bahia é apresentada
como tendo efeito antidepressivo. O desafio aqui é descrever como esta relação se
natureza ilustra tais peças publicitárias. Temos que compreender ainda de qual natureza
que não se trata de uma indicação real de contato com a natureza lá fora, mas sim uma
apareciam o branco e tons suaves do azul, amarelo ou verde – e pelos temas gráficos
que, invariavelmente, traziam em algum ponto, quando não em destaque frontal, uma
imagem da natureza, como campos de trigo, praias, um girassol, tulipas, céu limpo e
claro, um casal na grama brincando com um cachorro, um pássaro livre de sua gaiola;
ambientes.
participei, é ilustrado por um casal que caminha acompanhado de um cachorro por uma
calçada, em uma área cercada por grama e árvores. Em torno desta calçada, árvores,
Na contra-capa, o mesmo casal está deitado sobre a grama, no que poderia ser o quintal
de sua casa ou um gramado qualquer; a mulher, sorridente e com pés descalços, brinca
com o animal, na iminência de jogar uma bola para que ele a apanhe.
105
cerca de 30 anos, vestida com roupas brancas, aparece em meio a um campo de trigo
com o rosto tranquilo em discreto sorriso, em um dia de céu azul. Apesar da imagem de
conotação positiva, ela está cercada por palavras que indicam os sintomas para os quais
o título do impresso chama atenção: dor de cabeça, tristeza, dores nas costas, perda de
claras passeia por uma praia, caminhando sorridentes e com os pés descalços pela areia
molhada, ambos aparentando em torno dos 35 anos. Desta feita, trata-se de uma peça
voltada para o público leigo, relacionada, ainda que isso não seja explícito – devido à já
aos sintomas físicos da doença – estratégia utilizada também na publicidade voltada aos
Podemos encarar o trecho acima como uma versão para o público leigo do texto
destacado mais acima (item 2.1.1) a partir de uma monografia do Cymbalta voltada aos
médicos. Lá, como aqui, há uma mistura de certeza e incerteza a respeito da hipótese
acreditam...” soa somente como uma hipótese, ainda que o restante do texto seja mais
físicos da depressão – aparece agora em tom menos erudito. Temos aqui de novo em
costas, tocando a região do ombro e da nuca como se apontasse uma área na qual
experimenta dor, é acompanhada da frase: “Eu não tinha ideia de que minhas dores
poderiam estar relacionadas à depressão”. Ao que parece, dores com causa inespecífica
célula a célula, uma ideia coerente com pesquisas – muito em voga – que buscam
torna, podemos dizer, plenos de subjetividade; ou, por outro lado, esta leitura da
manipulação.70
Mas não podemos deixar de chamar atenção para a ideia de que cérebro e corpo
sejam entidades diferentes, ainda que interligadas e que ambos sofram com sintomas da
química ‘desregulada’ dos neurotransmissores – uma ideia que não parece ter um
vemos com frequência no material de campo é uma construção que propomos chamar
70
Trata-se de um bom exemplo, dentro do campo da difusão de saberes da psicofarmacologia,
do que Paul Ricoeur considera um amálgama semântico inadequado entre discursos que
dizem respeito ao cérebro e ao corpo, por um lado, e à mente, pelo outro, em seu debate com
o neurocientista Jean Pierre Changeux (2000), conforme apontei no primeiro capítulo.
109
Lundbeck – cuja logomarca, vale dizer, traz uma estrela-do-mar – voltados para o
público leigo têm como tema gráfico de capa um girassol, que se destaca sobre um
ansiedade’, outro tem como tema a ‘depressão’, enquanto um terceiro discorre sobre
71
Este formato de um dualismo fisicalista (corpo/cérebro) possibilita pensarmos em contraste
com o dualismo corpo/cabeça que Duarte (1986) descreve em sua pesquisa sobre a “vida
nervosa” em um universo de classes populares nos anos 80. Em um trecho que me parece
significativo, até por oferecer um exemplo empírico, o autor analisa a categoria “atacar”, em
sua relação com corpo e cabeça: “É comum, portanto, dizer-se que uma doença específica
atacou tal órgão diretamente, ou o corpo em geral (é particularmente usual a referência a ter
os pulmões atacados), assim como referir-se a uma fonte de perturbação que tenha atacado a
cabeça (“acho que foi a morte do pai que lhe atacou a cabeça”). Teríamos, aliás, neste último
caso, o pólo oposto – mais exclusivamente moral – ao do “ataque” ao fígado, que
considerávamos como o limite “físico”dos “ataques” transcorridos no plano da interioridade
corporal. Pois o que me interessa aqui desenvolver é o modo como se arma uma lógica
interna do atacar desencadeada em certos nódulos por “entradas” físicas e morais.
Resumindo, poderíamos montar um quadro em que teríamos no alto [cabeça/nervos]
estímulos “morais” atacando a cabeça (e, portanto, diretamente os nervos) e embaixo
[corpo/fígado/sangue] estímulos “físicos” atacando o fígado (basicamente através do
sangue)...” (Duarte, 1986, p. 168) O par cabeça/nervos, no universo do qual fala Duarte,
seria então o ponto de ataque de “estímulos morais”, enquanto o corpo receberia as entradas
físicas regulares (comida) e irregulares (droga e doença). No caso do discurso cerebralista da
publicidade de psicofármacos aqui analisada, caminha-se justamente na direção de um
esvaziamento de qualquer dimensão moral para as chamadas “doenças do cérebro”, que
acometem um órgão específico (e não a ‘pessoa’) e podem, por isso, ser explicadas em sua
dimensão física. O exemplo destacado por Duarte quando menciona a dimensão de ataque
[moral] à cabeça dá continuidade ao contraste entre aquele universo etnográfico e este no
qual me movo. Recentemente, ouvi o relato de uma pessoa próxima à minha família nuclear
de origem, que há tempos vem se tratando com psicofármacos para um quadro de depressão.
Ele afirmou saber exatamente quando ficou doente: ao deparar-se com o corpo de um
parente seu morto em circunstâncias trágicas, ele teria sentido uma espécie de curto-circuito
no cérebro, que ele teatralizava com um gesto de mão sobre a cabeça e pela imitação de um
ruído elétrico, como se tivesse sentido um choque. A diferença é que aqui não se trata de um
“ataque à cabeça”, mas do início de uma disfunção cerebral que ele tentará corrigir com
medicamentos que interferem nos neurotransmissores. Ou seja, o cérebro é atingido em sua
fisicalidade elétrica e química, e por estes meios deve passar um mecanismo de tratamento.
110
transtorno de ansiedade generalizada –, uma foto mostra dois homens, uma mulher e um
cachorro voltando de uma praia, em um dia de céu claro, caminhando por uma estrutura
de madeira sobre a areia, uma imagem bastante semelhante a outras descritas aqui. Já no
folheto que aborda formas mais graves da depressão, parte da mesma campanha, há uma
imagem ilustrativa interna que também se refere à natureza, mas foge à regra de
apresentam podem apontar para diversos sentidos; a árvore seca de vida representaria o
vazio da doença, uma natureza de aspecto doente e negativo, assim como outras cenas
– publicação da Roche voltada aos médicos, mas também disponível em salas de espera
a ser o medicamento Ixel), e tem como tema gráfico o desenho de uma gaivota. Nesta
por amigos, de perfil e de frente), sempre sentado em uma cadeira, próximo a uma
bipolar. Nesta peça podemos entender melhor a que se refere o “brilho interior”: uma
foto na segunda página mostra Daniel em sua mesa próxima à janela, acompanhado por
mais duas pessoas; Daniel está mostrando aos dois amigos uma foto, supostamente
tirada por ele, e lemos na legenda “Daniel: Paciente com Transtorno Afetivo Bipolar
Apaixonado por fotografia”; logo abaixo a chamada principal afirma que “Quando o
paciente com Transtorno Afetivo Bipolar está encoberto pelos sintomas, amigos e
A ‘natureza lá fora’ não passa em branco: pela janela aberta atrás de Daniel, a
grama, marca o início de uma senda que atravessa o gramado e leva a uma área
arborizada – uma espécie de estrada azul e amarela rumo a uma área verde iluminada
pelo sol. O tratamento, então, permitiria que um ‘verdadeiro Daniel’ revelasse seu
química ou ao que poderia ser visto como uma produção neuroquímica de um estado
subjetivo; pelo contrário, é ela que permite vir à tona o que se anuncia como a verdade
esconderia uma suposta verdade do sujeito, como uma espécie de maquiagem química;
ela justamente permite que o indivíduo venha à tona em sua plenitude e possa expressar
a sua verdadeira natureza antes “encoberta pelos sintomas”. Uma relação especular
parece se construir entre as imagens de uma boa natureza lá fora (o meio ambiente
114
primeira ilustra a publicidade de psicofármacos, a segunda pode ser atingida pelo seu
interior”. Nela pode ser lida a chamada “O melhor da música New Age” (trata-se de
uma coletânea deste estilo), e a ilustração mostra um beija-flor voando, próximo a uma
gaiola aberta, da qual o pássaro teria saído, e o slogan “liberdade para viver”.
‘encobririam as causas’ do problema, ou, nos termos da colega e psiquiatra com quem
encontrei no congresso (ver item 2.1), “chapariam”. No caso desta propaganda, o efeito
aprisionamento, usando justamente uma gaiola aberta para inverter essa relação.
O Paxil foi o primeiro remédio aprovado pelo FDA para transtorno de ansiedade social
Magazine trazia o slogan “Your life is waiting”72; a chamada para o Paxil no site do
laboratório GlaxoSmithKline mantém a mesma linha: “relieve the anxiety, reveal the
material, de um ‘verdadeiro eu’ que estaria encoberto pelos sintomas de uma doença
que se passa no cérebro, e que pode ser descortinado por uma intervenção química no
72
Como se pode ver, um dos argumentos dos quais a publicidade relacionada aos psicofármacos
e de divulgação das doenças a eles associadas lança mão com frequência é a categoria “vida”
ou o verbo “viver”. Trata-se de uma categoria de estatuto complexo no horizonte semântico
da cultura ocidental, assim como ‘natureza’. Neste exemplo, assim como no caso da capa do
CD citada mais acima, ‘vida’ corresponde a um estado a ser atingido por meio de uma gestão
psicofarmacêutica, e não a uma qualidade intrínseca ao sujeito; no caso da gaiola, há uma
oposição evidente entre ‘vida’ e liberdade, por um lado, e a imobilidade, por outro. Temos
aqui um exemplo etnográfico da polarização apontada por Duarte (2004a) entre os valores
românticos da vida e do movimento (ou fluxo) e um “horror à imobilidade – ou à
permanência como imobilização” que marcaria uma teoria romântica da Pessoa, com ecos
aqui. Em um certo sentido, aliás, o material publicitário sobre psicofármacos ilustra
perfeitamente uma tensão entre o cientificismo iluminista e os valores românticos.
116
categoria, como não poderia deixar de ser, entendemos que a ideia de um “brilho
interioridade, ainda que não se trate de uma interioridade psicológica – uma das
para que o indivíduo possa revelar uma verdade ou um brilho interior – ou,
Este jogo entre imagens da ‘natureza lá fora’ e uma verdade interior a ser revelada pelo
acesso a uma ‘natureza cerebral’ fala de mais uma relação cara à cultura ocidental
moderna: cada um de nós é dotado de uma interioridade única, uma singularidade; o que
sistema simbólico aqui analisado, tem uma base biológica localizada em um órgão
específico.
relação neste material entre fisicalismo e subjetividade – sendo mais explícito, entre
uma teoria fisicalista dos males mentais (que aqui seriam mais adequadamente referidos
primeiro momento, já que o termo ‘interioridade’ não costuma ser utilizado para
estar em relação direta com a interioridade do sujeito, sem qualquer mediação. Torna-se
possível – e coerente, neste contexto – aquilo que Changeux (1980) chamou uma
cultura onde circula. Ao contrário, é possível perceber neste material alguns de nossos
traços cosmológicos centrais. Chamo a atenção para uma chave interpretativa que
moderna: este nos remete para uma dimensão de escolha e liberdade individual,
nosso sistema de valores (cf. Duarte et alli, 2006). Juntos, subjetivismo e naturalismo
conformariam
– na verdade, reproduz – este sistema de valores. Por outro lado, com a autoridade de
cérebro constrói e reforça a ideia de onde partiu.73 Isso pode ser percebido tanto pela
de fato, algo paradoxal, que nos remete à pergunta central deste item da tese: como
essas imagens da “natureza”, que encarnam uma ideia de “liberdade”, paz de espírito,
das doenças ou dos sintomas que essas peças divulgam? Como poderíamos interpretar a
Russo (2001) oferece uma pista de análise que me parece convincente para esta
convivência entre valores aparentemente não solidários entre si. A autora analisa a
Prozac e Florais de Bach, “não apenas externa, no mundo, mas muitas vezes interna ao
terapêutico relacionado à esfera da “nova era” – esta última tendendo ao que ela chama
entre mente e corpo, “No caso da psiquiatria biológica, por causa do antimentalismo. No
73
Trata-se, então, de um movimento incessante. Lembremos que este material publicitário
consiste em uma importante fonte de informação também para os médicos, que por sua vez
prescrevem não apenas um medicamento, mas por vezes o aparato simbólico que cerca o
produto.
119
uma “corporificação do mental”, para utilizar outra ideia feliz do texto, “fonte comum
um meio ambiente natural que representa reequilíbrio, liberdade e encontro com uma
certa verdade interior – simbologia esta que estaria, em tese, mais próxima a uma visão
ideia de um indivíduo expressivo (cf. Taylor, 1997) fosse rebatida para dentro de uma
“individualismo qualitativo” (cf. Simmel, 1995 [1903]), e nos remete, mais uma vez, à
Não estaria essa obrigação de viver conforme a sua originalidade expressa nas
ideias de liberdade, da “vida esperando lá fora”, do brilho interior que deve ser
de si, tampouco com a ideia de “natureza”. Esta convivência complexa se faz possível
através da diluição do dualismo corpo/mente que marca este material, já que a ideia de
manipular os mecanismos de controle de humor pode ser representado como o “eu real”,
uma verdade que estaria encoberta pelo ‘mau funcionamento’ do cérebro. Produz-se, ao
mesmo tempo em que se desvela, a “natureza” do ser, no sentido da sua verdade mais
íntima, sua personalidade, o pássaro que sai de sua gaiola e ganha liberdade. Uma
verdade que não é quimicamente produzida, e nesse sentido cairia na seara do que
toda a diferença. Não há aqui lugar para uma oposição entre natural e artificial, nem
não estão em contradição74. Essa combinação peculiar reflete uma outra que está
presente, de acordo com Nikolas Rose, na variante da noção de ‘pessoa’ que ele chamou
74
Vale dizer que esta não-contradição entre natural e artificial não é uma exclusividade deste
material de campo. Trata-se de uma característica típica das biotecnologias contemporâneas.
Vejamos, por exemplo, como Luna (2007) reflete sobre este aspecto, no que diz respeito às
novas tecnologias reprodutivas: “É difícil estabelecer limites entre o natural e o cultural em
um campo em que se altera a biologia continuamente pela intervenção técnica. Natureza
assistida deixa de ser natural? As tecnologias de procriação, ao ampliarem o leque de
escolhas na área de parentesco, enfatizam seu caráter intencional. Em contrapartida, mesmo
escolhas que aparentemente contrariem a natureza podem surgir de uma lógica que toma o
parentesco natural por referência.” (p. 276)
121
estruturação molecular destas drogas se imiscui uma ética, e as drogas elas mesmas
personificam [embody] e incitam formas de vida específicas nas quais o ‘eu real’ é ao
mesmo tempo ‘natural’ e está por ser produzido” (Rose, 2003:59). Eu diria ainda que
este ‘eu real’ a ser produzido pode ele mesmo ser visto como uma manifestação da
Idéia que, de certa forma, dilui uma oposição fácil entre natural e artificial no que diz
Tanto as fotos quanto as cores escolhidas fazem lembrar algo das indicações
curativas que incluem contato com a natureza; ao mesmo tempo, trata-se de um material
que difunde uma posição fisicalista a respeito dos males do sistema nervoso, remetendo-
contrário, são valores que se apóiam mutuamente, assim como natureza e tecnologia. Se
voltarmos ao anúncio do governo da Bahia que abre esta sessão, vamos ver que lá a
tanto nas apostas fisicalistas de explicação dos males da mente/cérebro, quanto nas
imagens do meio ambiente que ilustram tal material – representa uma espécie de re-
de uma intervenção química no cérebro. Nos termos nativos, isso fica explícito em
brilho interior” que estaria encoberto pelos sintomas. Desenha-se aqui uma forma
neuroquímico (cf. Rose, 2003; 2007), cuja verdade interior pode ser desvelada pela
si, em um amálgama semântico que tem um órgão rei no topo da sua hierarquia.
uma interioridade neurológica – uma noção que nos fez referir ao indivíduo qualitativo
simmeliano, já que remete a uma singularidade, ainda que de um tipo particular, que
natureza e tecnologia são valores que se apóiam mutuamente; mais do que isso: através
publicidade de psicofármacos; tal valor compartilha a mesma face da moeda com uma
cerebralismo fazem parte de uma mesma tendência; são, neste contexto, termos
trata apenas de afirmar a materialidade destes males, mas negar explicitamente vínculos
aspecto moral relacionado a estes males. Chegamos então a outro ponto de debate: o
negativa. Ainda que haja menções esparsas a outras formas de tratamento (são
drogas, história familiar), nunca é demais sublinhar que se está referindo neste material
a males do cérebro gerados por um desequilíbrio químico. Mas, para além desta
constante re-afirmação de uma hipótese cerebralista, outro ponto também ventilado com
frequência merece destaque: a negação ativa de uma dimensão moral para os mesmos
males.
75
A própria ideia de um ‘complemento’ para designar outras terapias que não as de caráter
medicamentoso em peças publicitárias de laboratórios farmacêuticos que divulgam doenças
já aponta para a centralidade da neuroquímica.
125
jornal (recortados do caderno Folha Equilíbrio, da Folha de São Paulo) com o objetivo
países, é claro no trecho acima. Ainda que em espelho negativo, ouvimos aqui o eco das
relacionadas às “grandes cidades” (a própria negação ativa por si só não deixa de ser um
76
A internet é uma interminável fonte de material a respeito das relações entre psicofármacos e
discursos sobre cérebro e medicamentos. Uma simples busca pelo nome da molécula pode
nos levar a sítios inesperados. Ao pesquisar o termo Efexor, encontrei um relato que
relaciona o medicamento, cérebro, sonhos e felicidade: “Alguém já observou uma correlação
entre uso de antidepressivos e sonhos maravilhosos? Alguns dos momentos mais felizes de
minha existência foram os sonhos que eu tinha quando tomava Efexor... (...) Não eram
sonhos necessariamente fantásticos no visual ou na história - embora eu também tivesse
sonhos assim. Eram muitas vezes sonhos "comuns" - eu estudando numa escola, eu numa
versão alternante do meu trabalho... mas a sensação de felicidade era algo incrível. Como se
uma parte do meu cérebro, responsável pela sensação de felicidade plena, só funcionasse a
todo vapor durante os sonhos, e sob efeito do Efexor. (...) Eu tinha sonhos nos quais eu
atingia um estado de tanta felicidade interior que jamais imaginei um dia sentir. Cheguei a
brincar que o Sentido da Vida era sonhar tomando Efexor... :-)”. Trata-se de um texto
assinado e registrado em nome de Augusto C. B. Areal, disponível em
http://www.infobrasilia.com.br/pessoais/sonhos/antidepressivos_x_sonhos.htm (o grifo é
meu). O argumento central de Areal relaciona o uso do medicamento com uma mudança no
padrão dos sonhos. A ideia de que uma parte do cérebro seria “responsável pela sensação de
felicidade plena” e de que esta parte pode ser excitada por uma pílula é tão somente um
ponto de apoio ao argumento, ponto já tomado como pressuposto.
126
não seja este o caso específico desta campanha do laboratório Wyeth. Corta-se aqui
qualquer vínculo entre a doença e outras possíveis causas que não as físicas. Como
corolário, pede-se a compreensão de que nada possa ser feito, nem pelo paciente nem
se:
médica” é repetido duas vezes, com o reforço do adjetivo “real” na segunda vez. Por ser
uma “condição médica”, afirma-se que a depressão não é um mal de outra natureza, um
oposto possível sendo o de condição psicológica; e o seu caráter “real” quer conferir
membros do corpo:
uma falta de “força” ou “caráter”. Não se trata disso. Existem as reações normais e
específico”.
cérebro/mente, construindo uma equivalência com outros males não (ou menos)
que conferiria critérios mais objetivos ao universo da saúde mental. Em síntese: para
em relação ao seu estado. Esta característica não diz respeito somente aos males do
cérebro, tratando-se sim de um traço geral dos discursos que transitam entre a
orientação sexual; mais uma vez, minha ancoragem etnográfica situa-se no ponto de
encontro entre o discurso científico e a forma como ele é apropriado pelo público leigo.
ligados ao Instituto Karolinska, na Suécia, 78 encontrei esta nota em uma coluna social
do jornal O Dia:
leigo, um fenômeno que apenas começa a ser explorado. No caso acima, a travesti
determinada característica deste órgão define a sua opção sexual, que não passaria então
77
Trata-se de um ponto complexo. Por outro lado, veremos mais à frente que a difusão de
saberes das neurociências que se aproxima, em alguns casos, do discurso de auto-ajuda, nos
direciona a uma noção de gestão cotidiana do próprio cérebro.
78
Uma análise antropológica deste estudo e do contexto no qual está inserido pode ser
encontrada em Carvalho, 2008. Meu foco limita-se a esta nota no jornal O Dia, por certo
consequência da ampla divulgação que os resultados deste estudo tiveram na mídia de
massa, merecendo, por exemplo, uma reportagem na revista Veja.
129
por uma escolha de caráter subjetivo ou por uma história de vida, e pode ser objetivada
através de exames de neuro-imagem. Por esta razão, não deveria ser alvo de objeções,
doenças do cérebro, assim como a sexualidade, são vistas como uma dimensão sobre a
qual o indivíduo não tem controle, e, por isso, não poderia ser culpabilizado.
a relação do indivíduo com o seu cérebro estão atravessados por valores centrais para a
no lado esquerdo do cérebro está baseado na noção de escolha, de que o cérebro não é
controlado por um destino imutável, e que uma pessoa poderia optar por reativar ou não
O seu ponto de partida, tomando como base a questão da lateralidade cerebral, das
espontânea ter muito mais controle do que imaginávamos sobre o que ocorre no interior
próprio cérebro, e ter feito uma opção por dar um “passo à direita”, evitando
79
O contraste é curioso: um AVC tem uma expressão física difícil de contestar e Taylor vai
ressaltar em seu livro a noção de escolha na sua relação com o seu próprio cérebro após um
derrame; por sua vez, o diagnóstico ‘cerebral’ via exames de neuro-imagem (pet-scans ou
fMRI) para transtornos de depressão e ansiedade é muito mais controverso, e todo o material
publicitário de psicofármacos que sublinha uma hipótese baseada no desequilíbrio de
neurotransmissores justamente ressalta que não há reação ou escolha possível por parte do
indivíduo, que precisa sim de medicamentos. Reconheço que se trata de material etnográfico
de naturezas diversas, mas a comparação me parece pertinente, já que ambos os discursos
marcam um encontro na relação da pessoa com algo que se passa em seu cérebro.
130
farmacêuticos. Por outro lado, assistimos a repetição de alguns termos nesta passagem
que já foram vistos naquele material: assumir o comando do cérebro está, também aqui,
possibilidade de que ‘escolhas’ possam ser feitas no que diz respeito ao cérebro e
mesmo que possamos controlá-lo. O que nos interessa, para concluir este capítulo, é
possuem uma face relacionada ao valor da escolha, o que nos remete a uma dimensão
moral. Refiro-me especialmente aos debates suscitados pelo uso de psicofármacos com
seara, fica mais do que evidente o quanto o uso de medicamentos que atuam no sistema
nervoso é atravessado por questões de ordem moral, que em muito ultrapassam uma
Tal uso vem sendo referido na literatura como enhancement, o que pode ser
necessário para sustentar ou restaurar a boa saúde”. O tema ganhou destaque para muito
laboratórios farmacêuticos oferece pistas neste sentido; ainda que se trate os males do
qualidade de vida nas peças de divulgação, um deslizamento semântico que não deve
passar despercebido – afinal, a busca por mais qualidade de vida não é o exato
132
com alguma consequência direta na vivência corporal; o limite entre uma intervenção
muito tênue, envolvendo um debate sobre quais seriam os limites da medicina e quais
estados físicos devem ou não ser alvo de intervenções medicamentosas, cirúrgicas etc.
(Parens, 1998), e nos relembra o estatuto ambíguo que a ideia de ‘droga’ possui na
O amplo uso que vem sendo feito de antidepressivos e ansiolíticos fez com que o
fenômeno pop), lançou mais uma vez em fórum público o debate sobre as possíveis
81
Ver Vargas, 1998. O autor faz uso da noção de drogas em seu sentido mais completo:
“aquelas substâncias químicas, naturais ou sintetizadas que produzem algum tipo de
alteração psíquica e corporal, e cujo uso, em nossa sociedade, é objeto de controle (caso do
álcool e do tabaco) ou repressão (caso das drogas ilícitas) por parte do Estado. Mesmo que
trivial, é preciso não esquecer que ‘drogas são ainda todos os fármacos’”. (Vargas,
1998:122) O autor deixa ainda uma pista relacionada aos nossos esforços nesta tese quando
afirma que “ainda são escassas as pesquisas que investiguem o problema das drogas do
ponto de vista crítico de suas práticas de consumo e de suas relações com os saberes e as
práticas médicas” (ibidem:122). Voltarei a este tema mais adiante.
133
“pílulas da felicidade” 82. Uma pergunta importante é se a ampliação do uso desta classe
fazendo com que não só fossem tratadas doenças clinicamente diagnosticadas como a
depressão e a ansiedade, mas também houvesse um uso que provocaria nas pessoas a
passagem de um estado normal para outro. Este assunto avança para muito além de uma
Em que sentido o debate a respeito da ideia de enhancement pode nos ser útil
Algumas vozes têm se levantado em um tom denunciatório para apontar que muitas das
82
O conceito, na verdade, não seria novo; em 1955 o laboratório Wallace teria comercializado a
molécula meprobamato sob o nome fantasia Miltown, a primeira droga psicoativa para tratar
a ansiedade da vida cotidiana, “a prescription drug for the worried well” (Elliott, 2004:1).
Ele não era comercializado como sedativo, mas como tranqüilizante. Este ponto, vale
sublinhar, comunica-se com a ideia de qualidade de vida, repetida com frequência na
publicidade de psicofármacos (e em muitas outras frentes publicitárias dos laboratórios
farmacêuticos, como no caso dos medicamentos ligados à saúde sexual), no sentido em que
nos chama atenção para a importância de um deslizamento semântico: “os americanos
ansiosos – afirma Elliott – não queriam ser sedados, mas quem poderia discutir com um
pouco mais de tranqüilidade?”. Miltown foi um sucesso, tornou-se um fenômeno de cultura
pop, Newsweek o chamou de ‘aspirina emocional’. Na mesma direção, eu poderia afirmar,
refletindo sobre meu material de campo, que nem todos os consumidores de remédios para o
cérebro se vêem como portadores de um transtorno cerebral; mas quem pode argumentar
contra a busca por mais qualidade de vida? Não seria esta uma chave interessante para
pensarmos sobre a atual elasticidade dos diagnósticos psiquiátricos hoje em dia?
134
ideológico da cultura ocidental moderna, muito além dos interesses de uma indústria.
Por outro lado, não se pode desprezar a capacidade de multiplicação dessas ideias,
quando eles atendem ao interesse de uma corporação tão poderosa, e que ocupa um
humano.
De qualquer forma, parece-me mais fértil refletir aqui sobre a relação entre
difusão destes males, está atravessado por estas questões e nos lança em uma
interessante bifurcação. Elliott (2004) retrata bem essa questão ao afirmar que a vida
moderna nos impulsionaria em duas direções morais distintas. Uma delas diz respeito à
herança de uma tradição moral84 que valoriza a noção de autenticidade; conceitos como
true to yourself só fariam sentido porque acreditamos possuir selves individuais, que
devemos ter um comprometimento moral com a manutenção dessa unidade. Uma ética
83
Ver, por exemplo, Moynihan e Cassels (2005). Os autores fazem um esforço de denúncia das
técnicas de marketing da indústria farmacêutica, referindo-se a uma entrevista dada por um
executivo do Laboratório Merck à revista Fortune, “há 30 anos atrás” (1975?), na qual ele
afirma seu desagrado a respeito da limitação dos consumidores da Merck às pessoas doentes.
O seu sonho seria um momento no qual o laboratório começasse a criar medicamentos para
pessoas saudáveis. Para Moynihan e Cassels, esse tempo já chegou: as novas estratégias da
indústria estariam focadas em campanhas ambíguas de awareness-raising, visando informar
a população a respeito de determinada doença ou transtorno – o problema é que tais
campanhas seriam publicidade de medicamentos travestida de esforço para informar a
população a respeito de uma doença pouco conhecida e da existência de um tratamento. Sem
meias palavras, o livro mostra que existem profissionais de marketing especializados em
criar doenças, uma forma sofisticada de vender medicamentos. Moynihan foi também um
dos editores de um dossiê especial da revista PlosMedicine sobre o chamado disease
mongering.
84
Tradição que ele circunscreve à cultura americana, mas poderíamos afirmar que hoje
atravessa o Ocidente como um valor importante.
135
da autenticidade nos ensina que uma vida plena de significado passa pela descoberta e
pela busca de valores, ideais e talentos que seriam peculiares a cada um de nós enquanto
indivíduos. Mas esse vocabulário moral surgiria em um pano de fundo que valoriza a
adoção de uma identidade flexível e adaptável, contra a ideia de que temos que nos
reinventar a cada momento, transitar por diferentes identidades para que tenhamos uma
fluidez e um espírito adaptável, por vezes esses valores vão de encontro à identidade
caráter transitório, não existe sem consequências para a vida íntima, se lembrarmos da
como criar um discurso que coloque ordem na ambiguidade entre os valores da leveza e
outro.
psicofármacos seria uma das formas de atingir esse fim – ou estaríamos sendo fechados
que o self é um dado, uma realidade preexistente; essa visão negligenciaria aquilo que
seu argumento está na seguinte pergunta: por que alguns tipos de self-improvement são
enhancement?
seu aspecto competitivo, a questão se torna ainda mais complexa, já que estratégias de
vistas em certos contextos como uma espécie de doping. Mas, não deixa de haver um
competição, mas há regras severas (em tese) para o uso de qualquer molécula que possa
que me parece, não há dilema moral quando existe implicação e esforço individual em
estudar ou buscar terapias nas quais haveria uma implicação subjetiva evidente, um
gestão neuroquímica mostra-se como um desafio para o futuro próximo, um assunto que
valoração de determinados traços que portamos, e dos quais podemos, ou não, querer
nos livrar. Os críticos diriam que o Prozac configura um artifício, um atalho não-natural
considerada mais “natural”, por carregar uma implicação mais radical do indivíduo, e
esfumar das fronteiras do que venha a ser um estado a ser medicalizado em termos de
cérebro e suas doenças para um público mais amplo. A indústria farmacêutica tem sido
escopo mais amplo para o uso de medicamentos. Afinal, conforme a lógica destacada na
funcionamento do cérebro como forma de atingir um estado ‘natural’. Por outro lado,
uma maior elasticidade dos diagnósticos psiquiátricos, em paralelo com uma ampliação
valores como aprimoramento, autonomia e criação de si, em relação aos quais a política
estranhar que, com a maior difusão de saberes que visam tornar o cérebro mais
86
Como afirma Duarte a respeito de um conceito aparentado, talvez sinônimos: “A perfectibilidade (...)
implica o uso sistemático da razão para o avanço do ser humano em suas condições de relação com o
mundo. Essa perfectibilidade, por outro lado, só pode se desencadear (segundo seus ideólogos
originários) através da “experiência” em relação ao mundo exterior. A razão humana só viceja através do
contato dos sujeitos com o mundo propiciado pelos “sentidos”; ela depende da maneira pela qual eles
percebem o mundo que os cerca, e é através desses sentidos que vão poder construir as suas novas formas
de relação com o mundo e se tornar eventualmente cada vez mais aperfeiçoados, mais capazes, mais
senhores do seu futuro”. (Duarte, 1999:24-25)
139
responde o outro; “mas que invasão de privacidade”, “não se pode nem mais ser
neurônio em paz”, eles reclamam, após concordarem que estão realmente sendo
cientista vestido com um jaleco branco e óculos que os observa (assim somos levados a
A cena soaria insólita – afinal, de que forma neurônios poderiam falar em off, o
que pressupõe em primeiro lugar ‘falar’ e, em segundo, uma possível presença –, não se
tratasse dos primeiros momentos de uma peça de teatro infantil sobre a forma como o
cérebro (e o sujeito que porta tal cérebro) funciona, encenada em um teatro na zona sul
do Rio de Janeiro87 para uma audiência de cerca de 20 crianças, seus pais e (assim
e funções estariam no palco não apenas falando, mas fazendo escolhas e interagindo
entre si na pele dos atores da peça, uma adaptação feita a partir da coleção de livros
87
A peça estava sendo encenada na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, área “nobre” do
Rio de Janeiro.
140
autoria do neurocientista Roberto Lent88. Em duas das encenações, entre crianças e seus
reações da audiência.
simplificadas, que visam atingir um público amplo. Refiro-me aos neurocientistas que
público leigo, crianças e adultos, seja para mostrar como o funcionamento do cérebro se
reflete diretamente nos mais diversos aspectos da nossa vida cotidiana, seja para indicar
caminhos para atingir o bem-estar ou uma melhor “qualidade de vida” através de uma
gestão cotidiana atenta do cérebro e da vida. Não estão incluídos neste esforço
Meu foco etnográfico são determinados espaços de interseção entre esta vertente
parte de meus dados. As seções nas quais este capítulo se subdivide, após a primeira, na
qual faço uma breve digressão teórica, partem de diferentes formas de divulgação dos
88
A próxima sessão será dedicada à análise desta coleção de livros e de sua versão teatral, então
me permito apresentar o autor mais a frente.
141
sentido da frase “estão sendo observados” se justificaria fazendo alusão aos avanços nas
técnicas de mapeamento e registro cerebral, que permitem ver e estudar o cérebro vivo,
miríade de notícias sobre correlatos neurais para quase tudo, da depressão à ansiedade,
reportagens com este teor podem ser encontradas em diversos veículos de comunicação
aparato técnico. O que quero destacar é a sua visibilidade sem microscópios ou alta
neurotransmissores circulam com frequência nos espaços de uma cultura leiga 90,
89
Não me parece ser o caso aqui de explicar diferentes aparatos técnicos utilizados para analisar
o cérebro, como o PET scan, o fMRI ou o eletroencefalograma.
90
Estou usando este termo para designar sujeitos e espaços não especializados em
neurociências, neurologia ou psiquiatria.
142
em fóruns científicos.91
“doenças do cérebro”, agora vou explorar frentes de difusão ainda mais amplas a
respeito da relação entre o traço cultural que estou chamando de cerebralismo e a noção
ocidental moderna de ‘pessoa’. O ponto de partida etnográfico não será mais a ideia de
que as doenças da mente são na verdade do cérebro, mas sim a de que, virtualmente,
mais ou menos subjetivo – tem em sua base uma explicação cerebral, sobre a qual a
neurociência contemporânea tem algo a dizer. Avanço sobre espaços e superfícies que
popularizam uma noção mais difusa e abrangente, que vou sintetizar por enquanto como
A visibilidade que o cérebro tem hoje entre os círculos leigos deve-se, em parte,
destaque no que diz respeito à pesquisa de bancada, mas que também produzem
material que visa atingir e ampliar o público leigo interessado na relação entre
Roberto Lent, com sua coleção de livros infantis, e, no caso de Suzana Herculano-
91
O termo visibilidade está sendo utilizado aqui em sentido amplo, referindo-se não somente às
imagens do cérebro e suas células veiculadas na cultura popular, mas sim ao volume de
exposição de ideias sobre o órgão e suas funções, acompanhados de ilustrações ou não. Uma
análise mais específica sobre imagens do cérebro (mais especificamente os PET scans,
tomografias por emissão de pósitrons) em veículos de comunicação de massa pode ser
encontrada em Dumit, 2004.
143
Houzel, com seus livros de divulgação científica –, procurei seguir pistas que me
são os termos utilizados hoje pelos próprios cientistas, ao menos entre o meu material
de pesquisa, para designar um esforço em falar da sua ciência para o público leigo.
Esses termos, acredito, não são gratuitos, no sentido em que ressaltam um objetivo
Com meus interesses assim organizados, fui levado a uma etnografia que
‘estar lá’, no teatro ou em curso de neurociência voltado ao público leigo; mais tarde,
144
episódios de um quadro sobre neurociência que estava (na verdade, está no presente
Televisão.
Fantástico), acredito ser provável afirmar que, hoje, grande parte das pessoas, ao menos
nas classes médias e altas das áreas urbanas, esteja mais consciente – ou convencida –
funcionamento deste órgão tem um papel central não apenas em nosso estado de saúde,
mas também participa em nossas ações e escolhas mais corriqueiras. Acredito que isso
linguagem acessível e sedutora aos não iniciados, muito mais focada em curiosidades da
que afligem, segundo uma certa lógica, este órgão. O ponto de partida aqui é a
percepção de que o discurso neurocientífico tem consequências para muito além dos
limites dos laboratórios, o que fica particularmente claro quando os cientistas que
ocupado pelo discurso neurocientífico hoje e, neste sentido, também estão ‘observando’
145
o cérebro, ou, melhor dizendo, estão analisando a profusão de discursos sobre o cérebro
que emanam do campo científico e se difundem das mais diversas formas pelos círculos
sociedade”, que teria como um de seus objetivos, nas palavras do pesquisador britânico
Scott Vrecko,
ganham uma vida própria, dando origem ao que Vrecko denomina uma “neurologia
popular” – que estendo aqui para uma neurociência popular –, termo que define “the
views and beliefs that lay people have about their brains, which provides a basis for
explaining, predicting and managing themselves and others” (Vrecko, 2006, p. 300).
Ainda que não possa ser isolada como causa única do surgimento do que Vrecko
está chamando uma “folk neurology”93, o espaço que a neurociência ganhou enquanto
92
“to reflect upon the ways that the theories, treatments, and explanations of the neuroscience
are changing the understandings that lay individuals have of themselves and their worlds and
are giving rise to what might usefully be thought as a sort of ‘folk neurology’. (…) The
molecular facts of contemporary neuroscience have ceased to be simply scientific facts –
isolated in specialist journals and esoteric discussions – but also have come to provide the
basis for forms of folk neurology that have, to an extent, a life of their own in everyday
culture.”
93
Como já vimos, é muito mais provável que a figura antropológica do “sujeito cerebral”
(Vidal, 2005 e 2009; Ortega e Vidal, 2007) seja causa da grande legitimidade da
neurociência contemporânea ente o público leigo, mais do que sua consequência.
146
imagem do órgão em si, que passa a ser visto como um retrato vivo de nossa identidade
pessoal. É possível traçar um paralelo entre o maior apelo que o cérebro vem ganhando
neurociência. Retomando mais uma vez a situação algo paralela da genética, que
também vem passando por ampla divulgação pública, Nelkin e Lindee (1995, p.5)
afirmam que
neurociência que circulam entre o público leigo, tendo como origem o discurso e certas
produz interesse no público leigo a respeito de um tema de fama tão esotérica quanto o
cérebro, mas não iniciado, tem acesso a um corpo de ideias que informa essa peculiar
importante introduzir alguns argumentos e autores que ajudam a iluminar este fenômeno
94
“It is not coincidence that the popular appropriation of genetics has intensified just as
scientists around the world have begun an effort to map and sequence the entire human
genome, for in presenting their research to the public, scientist have been active players in
constructing the powers of the gene.”
147
fenômeno muito mais amplo do que aquele analisado nas próximas sessões. É
escolhidos (e com alguns materiais especificamente) seja justificada. Para isso, lanço
(1979). Segundo ele, tal coletivo existe, de forma bastante genérica, “sempre que duas
conceito ganha em densidade quando ele propõe uma estrutura geral para os coletivos
de pensamento:
consideradas científicas, mas a qualquer “work of the mind”. Essencial para minhas
pretensões é a diferença que Fleck vai construir entre o que ele chama de círculos
“[the rediness for] directed perception, with corresponding mental and objective
determining ‘what can be thought in no other way’”. (ibidem, p.99; grifos do autor)
ampliando aquilo que Fleck chamou de círculo exotérico, em torno dos saberes da
neurociência. Este círculo seria formado, segundo ele, pelos “amadores educados”, em
tão amplo quanto for a capacidade de comunicação dos especialistas que formam o
círculo esotérico; o diálogo será tão claro quanto maior for a concordância em torno de
especialistas. Ora, a imagem que Fleck criou para entender como se dá a circulação de
fatos científicos entre circuitos especializados e leigos ajuda a iluminar o meu recorte de
concentrar naquela produção que tem por objetivo atingir e ampliar as fronteiras mais
externas do círculo exotérico que orbita em torno dos saberes sobre o cérebro. Ou seja,
meu foco se volta para a divulgação mais simplificada, com potencial para atingir
95
“There is a graduated hierarchy of initiates, and many threads connecting the various grades
as well as the various circles. No direct relation exists between the exoteric circle and that
creation of thought but only one mediated esoterically. Thus most of the members of the
thought collective are related to the works produced by the thought style only through
trusting the initiated.”
149
mais simples do que, por exemplo, os livros de Antonio Damásio (como por exemplo
No caso das produções de Damásio e Sacks, ainda que possam ser incluídas sob a
rubrica da divulgação científica, trata-se de textos mais difíceis, e sem qualquer intenção
lúdica, como parece ser o caso dos de Herculano-Houzel e Lent. Em síntese, estou
trabalhando com uma linguagem de divulgação científica que mira nos limites mais
externos da esfera dos leigos interessados, sejam eles crianças ou adultos, e que possui o
Como não poderia deixar de ser, uma outra justificativa para a escolha do
possivelmente não por acaso – cresceu juntamente com o espaço ocupado pelos meus
quadro na TV, podemos dizer que ela se tornou uma ‘celebridade’ no campo da
quais passaram os trabalhos, seja entre os livros e o teatro, seja entre os livros (e entre
150
leigos que etnografei são uma escolha arbitrária – como costuma ser na definição dos
forma a este material são, ao que me parece, defensáveis. Não avancei por artigos de
difusão científica entre os pares, tampouco pelos livros texto, que podem servir como
o tema.
uma reflexão sobre a circulação de um objeto aparentado ao meu. A sua atenção se volta
para um aspecto peculiar da produção de fatos sobre o cérebro: as imagens de PET scan,
tão proeminentes na mídia (ele se refere à americana, mas o caso brasileiro não é
diferente neste aspecto), analisando o efeito visual destes cérebros em cores que “travel
easily and are easily made meaningful” (Dumit, 2004, p.4). O autor ressalta o “poder
legendas que designam a qual tipo de cérebro/pessoa ele corresponde, o que pode variar
outras arenas públicas – ele se refere, por exemplo, ao jornalismo científico, filmes,
ativismo dos pacientes – estas imagens são acompanhadas pelo “seguinte pressuposto
151
manifesto: mente = cérebro, existem tipos de cérebro (brains have types), estes tipos são
pessoas (these types are people)” (ibidem, p.141). Seu interesse – e um manifesto
incômodo com esta possibilidade96 – passa então por esta equivalência direta entre
imagens do cérebro sendo coladas a tipos de pessoas, e a forma como elas são usadas e
‘natureza humana’. A estes fatos objetivos sobre cérebro e corpo que viajam por
“recebidos” as transformações pelas quais estes fatos passam até chegar ao público mais
amplo (cf. Dumit, 2003, p.39). Ao entrar em contato com estes fatos-recebidos
o seu self-objetivo.
We might call the acts that concern our brains and our bodies that we
derive from received-facts of science and medicine the objective-self.
The objective-self consists of our taken-for-granted notions, theories
and tendencies regarding human bodies, brains, and kinds considered
as objective referential, extrinsic, and objects of science and medicine.
That we “know” we have a brain and that the brain in necessary for
our self is one aspect of our objective-self. We can immediately see
that each of ours objective-selves is, in general, dependent on how we
came to know them. Furthermore, objective-selves are not finished but
incomplete and in process. With received-facts, we fashion and
refashion our objective-selves. (Dumit, 2004, p.7)
Para Dumit, este self-objetivo constitui uma categoria ativa de ‘pessoa’, mutável
no sentido em que novos fatos recebidos podem gerar adaptações em como entendemos
96
Incômodo que o autor externaliza ao se perguntar, a respeito das imagens de PET scan: “What
if they are true? This questions trip me up, catches me off guard, posing a sublime moment
of reflection: What do I believe (what do I know) about mental illness, sexual difference,
sexuality difference, my own cognitive abilities, brain patterns, and identity? I am fascinated
and horrified by the possibility posed here, of a world in which technology can tell me who I
truly am”. (Dumit 2004, p.141)
152
sentido, muito próximo às ideias de Fleck), já que novas categorias de ‘pessoa’ vão
Ainda que concorde com esta estrutura circular em termos da constituição deste
self-objetivo, acredito que seria ingênuo não perceber o lugar de autoridade ocupado
retórica que nos apresenta fatos sobre nossos corpos, cérebros e selves. Pegando de
no século XV, com autoridade para definir, no exemplo por ele tratado, as origens da
sífilis –, parece-me ser da neurociência um lugar destacado de autoridade que vai definir
uma nova “atitude sociopsicológica prevalente” (Fleck, 1979, p.3), que passa a definir
Ao expandir-se por círculos exotéricos que parecem ser cada vez maiores, o
mesmo tempo em que – já que não somos completos estranhos ao cérebro – estão
receber definições tão diferentes como “as unidades funcionais do sistema nervoso” (em
alvo forem crianças). Seja como for, a retórica de uma ciência dominante tende a deixar
marcas duráveis na forma como entendemos a nós mesmos. Vejamos, então, em que
nesta seção não diz respeito ao conteúdo do seminário, mas sim a uma obra que
como é comum em eventos científicos. Entre eles havia um livro infantil chamado “O
com rosto humano (olhos, nariz, boca), braços, pernas e um bottom com os dizeres “eu
Esta foi a primeira publicação com a qual me deparei – ao menos foi a primeira
que prendeu a minha atenção – de divulgação dos saberes das neurociências, com a
científica”. Em seu currículo 98, os trabalhos com este perfil são colocados à parte, em
centrais da tese. Em cada volume, enquanto um garoto de nove anos de idade chamado
Ptix (um apelido formado pelas iniciais de Pedro Tiago Irineu Xavier, o nome do
garoto) se apaixona pela primeira vez (no volume 1), toma a presença de um mico na
porta de seu apartamento pela de um assaltante (volume 2), joga por acidente uma bola
de futebol no quintal da vizinha (volume 3), aprende a andar de bicicleta (4) e faz um
dever escolar (5), vemos paralelamente o que está acontecendo em seu cérebro. Em
cada volume, contrói-se uma relação direta entre essas atividades e estruturas, áreas ou
97
O professor Lent possui graduação em Medicina (1972), mestrado (1973) e doutorado (1978)
em Ciências Biológicas (Biofísica), todos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), na qual trabalha atualmente, no Instituto de Ciências Biomédicas (era diretor do
Instituto em julho de 2008, quando captei o seu currículo na plataforma Lattes, onde também
se informa que ele chefia o laboratório de neuroplasticidade). É autor ou co-autor de mais de
50 artigos publicados em periódicos científicos, e também autor e organizador de um livro
texto chamado “100 bilhões de neurônios”, pelo qual recebeu o prêmio Jabuti, conferido pela
Câmara Brasileira do Livro. Entre 2005 e 2007, Lent foi membro do comitê do CNPq de
popularização científica. Além da coleção de neurociência para crianças, que será comentada
aqui, ele escreve regularmente artigos de divulgação científica na revista Ciência Hoje On
Line, além de outros veículos. Na versão para crianças, também na internet, desta mesma
revista, é possível encontrar outras “aventuras” dos mesmos personagens da coleção. (ver
www.cienciahoje.uol.com.br) Concentrei-me na análise de sua coleção de livros para
crianças, e em sua posterior adaptação para o teatro, porque meus interesses, como já foi
dito, estão voltados para a divulgação mais simplificada, para públicos o mais amplos
possíveis. Mas o seu trabalho com divulgação científica antecede a coleção infantil. Outros
artigos seus de divulgação, além de entrevistas para veículos de comunicação de massa,
como a revista Veja, e citações em reportagens, serão utilizados de forma mais errática.
98
Lattes, mas também em outros mais resumidos, como o que encontrei no site brainhood.net.
155
neurônios os grandes protagonistas da série, são eles que traçam planos e estratégias que
Os cinco volumes da coleção têm uma estrutura semelhante. Nas primeiras duas
a partir da área do cérebro onde atuam e a partir de suas funções específicas. No caso de
O próprio nome deste neurônio já merece atenção, pela relação direta que se estabelece
entre uma parte do cérebro e um sentimento, insinuando uma localização específica não
somente para a memória, mas para o sentimento de nostalgia. Nas tramas, Zé Neurim
tem um papel central; ele funciona como uma espécie de célula gerente que recebe
uma linguagem acessível ao público-alvo99, o texto explica na primeira página o que são
neurônios:
se segue, não simplesmente por ser o seu autor – o que poderíamos dizer de qualquer
obra de ficção –, mas por ser o único com domínio técnico do acesso a um mundo
microscópico no qual se passam as situações. A ficção que se seguirá tem este caráter
cientista e seu microscópio, que pode contar em terceira pessoa o que se passa ‘na
cabeça’ do garoto. Lembremos que o autor é também narrador e cientista, e tem sua
99
A coleção está indicada para crianças de 8 a 12 anos, conforme informação que consta no
currículo do autor.
157
representando o fluxo de sinais entre os neurônios, que tem sempre a direção do axônio
para os dendritos.
Na última página de cada volume, onde ficam as “dicas para os adultos” – uma
espécie de manual para que se possa possa explicar às crianças o que se passa no livro –,
Esta página constitui mais uma camada discursiva nos livros, que traz, além da
trama em si, voltada para o público infantil, informações para que os adultos possam
situar as crianças leitoras em uma breve história dos neurônios, o que acentua o projeto
“ideia do neurônio como unidade biológica do cérebro dos animais”, que foi
“estabelecida no final do século XIX pelo cientista espanhol Santiago Ramón y Cajal”.
nas ilustrações dos livros de duas formas: ou como um encaixe literal, como se fossem
para outros neurônios, segurando o axônio próximo aos ouvidos e boca assim como
eletrônico, quando não se trata de um diálogo entre dois neurônios, mas sim de “mandar
uma mensagem para o cérebro todo”. Na peça de teatro, o sistema de comunicação entre
os neurônios inclui ainda o uso de telefone celular. Seja como for, em todas estas
neste material, a mesma coisa acontece no primeiro volume da coleção na seção “dicas
para os adultos”
saberes das neurociências as relações e limites entre corpo, cérebro e mente. Fica claro
que temos uma hierarquia de controle, que traz o cérebro como um gestor tanto das
situações em que o cérebro de fato poderia ser vivenciado como uma ‘experiência
concordem com o conteúdo dos livros, baseados em uma certa visão de mundo e de
pessoa.
No primeiro volume da coleção, o garoto Pedro Tiago apaixona-se pela sua nova
vizinha. Mas, durante a história, vamos perceber que dizer “Ptix apaixonou-se” é apenas
nível neurológico, “um neurônio lembrador, quer dizer, um neurônio que ajuda a
neurônios para saber o que teria gerado a estranha reação, que incluía sintomas físicos
159
Neurim busca informações ligando para seus “parentes e colegas”, dois outros
neurônios: com Ocipitaldo Luzes, “do setor de cores e sombras do cérebro de Ptix”,
pouco se esclarece, apenas que o garoto “tinha visto uma menina morena, com olhos
claros, bonita, bonita”; em diálogo com Olívio Gravador, “do setor de sons e chiados”,
Zé Neurim pergunta se ele havia escutado algo, e o neurônio responsável pela audição
responde que “nem a Camila – alvo da paixão do garoto – falou qualquer coisa, nem
muito menos o Ptix, que ficou só com a boca aberta”. A rede neuronal é constituída por
antropomorfizados.
cérebro todo, como se fosse uma mensagem de correio eletrônico”. Após alguns
deste contato, Zé Neurim vai descobrir que a causa estava no “setor de paixões e
felicidades”, onde trabalha o Acumbente dos Prazeres. Nas “dicas para os adultos”,
vamos aprender que o núcleo acumbente é a área do cérebro envolvida no controle das
emoções:
Quando Ptix e Camila se encontram, o Acumbente afirma que foi tomado por
“uma reação muito esquisita. Não pude me controlar, e saí cantando, falando alto,
mandando mensagens para vários locais do cérebro do Ptix. Depois, quando acalmei,
emoções com um trecho do romance Dom Casmurro, lido recentemente pelo garoto. No
trecho, transcrito e ilustrado no livro de Roberto Lent, lê-se: “Capitu ergueu-se rápida,
eu recuei até a parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. ... Não
dinâmica cerebral que explica a paixão de Ptix é projetada sobre o livro de Machado de
um novo encontro entre Ptix e Camila, controlando as funções corporais do garoto, para
que ele tivesse que deixar a sala de aula (e ir ao banheiro, devido a uma ‘dor de
barriga’), no exato momento em que Camila iria ao dentista, gerando um novo encontro
‘casual’. E, “se a reação do Ptix se repetisse igual que o Dom Casmurro – Zé Neurim
controle: o garoto fica como se “tivesse sido enfeitiçado” e o Acumbente, por sua vez,
fica “totalmente fora de si, dando ordens para o coração do Ptix bater mais rápido, a
respiração acelerar, o suor suar, e assim por diante”. Conclui-se, em relação de causa e
Terminada a trama, e antes das “dicas para os adultos” – em uma estrutura que
Na página seguinte, vê-se um cérebro cinzento, mas com uma área iluminada
colorida em vermelho, ao lado de uma foto que mostra uma mulher olhando a tela de
Nestas duas páginas, constrói-se sempre uma ponte entre as aventuras dos
para crianças, não se trata meramente de uma fantasia ficcional, mas de fatos científicos
adaptados para uma apresentação ao público infantil. Na ‘vida real’ a qual se tem acesso
“ligam” uns para os outros, gerando uma atividade que permite, em tese, visualizar as
justamente como manchete a frase “Não é mais ficção”. O ponto central da entrevista é
explicar – nas palavras de Lent – que “as descobertas feitas com base nas técnicas de
mapeamento e registro cerebral” não são mais coisa de ficção científica, “como as
filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, no qual uma empresa oferece
serviços para apagar memórias indesejadas, fazendo uso de neuroimagem para orientar
Lent, esta possibilidade não estaria “muito distante da realidade”. Ele se mostra
preocupado com os limites éticos do uso dessas técnicas, que já estariam em aplicação
realizado no estágio atual das técnicas que propõem uma visualização ou uma
certo universo de representações que circula entre o público leigo. Algo de semelhante
existe, neste sentido, entre a forma como ele se coloca na entrevista e a própria estrutura
dos livros infantis: nas duas é possível identificar um trânsito entre ‘ficção científica’ e
realidade científica. Mas há uma diferença importante: talvez por consistir em uma peça
100
Revista Veja, ano 39, n.38, data de capa 27/09/2006 [páginas amarelas].
163
base são retratadas de forma menos reflexiva. Atente-se para o fato de que os exemplos
próximos. No primeiro caso, o uso de técnicas para medir a ativação de áreas do cérebro
para fins comerciais é citado entre os possíveis riscos éticos gerados por intervenções
em uma ‘escolha subjetiva’ entre mais de uma marca já não me parece possível. Já no
neurociência está cercado de uma aura positiva, que comprova a conclusão correta de
sentimentos e emoções recebe sinais diferentes conforme o contexto no qual está sendo
discutida.
Atribuir esse nível de agência ao cérebro e suas células nos remete a uma
mente/corpo na cultura ocidental moderna, ainda que tal divisão subsista em algumas
Cérebro, talvez sem esta intenção, nos fornece mais um signo deste esgotamento: “a
revista que une as partes”. A questão é pensar quais são os termos desta união: une
porque se trata de um espaço de discussão para os dois temas?, ou une porque cérebro e
mente, na verdade, tornaram-se uma e a mesma coisa, sendo a mente uma espécie de
consistiria em uma
Essa diluição dos limites entre os dois planos permite representações como esta
Lembremos agora que a coleção de livros infantis foi condensada em uma peça
apaixonado ou o que é que você tem na cabeça, menino?”101, classificada como “teatro
infantil”, iria reestrear na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, no Rio de Janeiro,
para uma nova temporada com apresentações em junho e julho de 2008, todos os finais
de semana, aos sábados e domingos. Eu havia perdido a chance de ver a peça em uma
respeito da qual só me inteirei quando já era tarde demais. Ainda que se tratasse de uma
101
Tanto a coleção de livros infantis quanto a montagem da peça de teatro contam com o apoio
da FAPERJ – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. Os livros são
uma co-edição da FAPERJ com a editora Vieira e Lent, na qual Roberto Lent é membro do
conselho diretor.
165
linguagem, uma faceta que se perde quando analisamos somente os livros publicados;
pensei ainda que seria curioso ver ao vivo quais as soluções cênicas encontradas para
colocar neurônios no palco, como transformar atores em neurônios, como dar corpo às
para o início da peça, munido de meu diário de campo, com a intenção de acompanhar o
lotação estivesse esgotada, mas não foi este o caso. Quando me aproximei da bilheteria,
ouvi um diálogo entre um homem que fazia publicidade de uma outra peça infantil a ser
abandonados...”. Brincava-se naquele ambiente com a ideia central que animava a peça,
uma encarnação física da paixão em uma célula do cérebro. Era inevitável, ainda que
em minha volta entre adultos e crianças, e que poderiam ter algum conteúdo relacionado
ao tema da peça. Alguns destes diálogos aparecerão aqui, sem que as pessoas sejam
identificadas.
102
Nem é preciso mencionar que essa natureza inquieta e bastante ativa de meu objeto de estudo
colaborou para que o trabalho de campo se esticasse no tempo e levasse com ele o meu
cronograma. A decisão de ‘sair do campo’ e não acumular mais qualquer novo dado sempre
poderia ser revertida frente à tentadora notícia de uma montagem teatral de divulgação de
neurociência, ou mesmo frente a uma reportagem onde o cérebro era citado de forma
significativa na semana seguinte. Não é fácil ignorar dados de campo que por vezes se
desenrolam na sua frente, visto se passarem no universo pelo qual circulo. Isso me lembrava
da estranha sensação que sempre tenho frente aos filmes de júri, quando se pede que os
jurados ignorem uma determinada evidência ou situação que acabou der mencionada.
166
do coração, que tem uma expressão facial entre o surpreso e o assustado, entram e saem
veias e artérias.
concordando com essa primeira impressão. Mas logo depois atentei para um pequeno
personagem de pé sobre uma das veias/artérias, do qual sai um balão, como nas
(quatro pernas, quatro braços), que representam o corpo da célula, com seus dendritos e
axônio, semelhante às ilustrações dos livros que deram origem à peça. O coração está
167
em destaque, mas é um neurônio, então, quem controla as suas reações. Temos aqui a
no outro, temos uma hierarquia que mostra quem dita as regras a um coração que parece
surpreso com o que está se passando, manipulado por um neurônio que tem a autoridade
se trata:
posicionar em meio à pequena algazarra das crianças. Atrás de mim, uma mulher,
acompanhada de duas crianças, possivelmente suas filhas, diz para uma delas que “eles
não vão aproveitar nada, não sabem nem o que é um neurônio”, referindo-se às crianças
mais jovens no grupo que entra. Uma de suas filhas, que aparenta cerca de nove anos,
com um ar sério, de óculos e com um tom vitorioso de quem se encaixa na faixa etária
103
No entanto, é curioso que, para simbolizar a ‘paixão’ do neurônio, apele-se à ilustração de
um coração, já que o paradigma científico atual defende que não apenas a razão, mas
também os sentimentos e as emoções são consequência da atividade cerebral. Encontrei o
coração como metáfora de emoções ou como designando o ‘centro’ de uma questão em
outros discursos relacionados ao cérebro. A introdução do livro de Jill Bolte Taylor sobre o
seu acidente vascular cerebral e o processo de recuperação chama-se “Coração a coração;
cérebro a cérebro”, mostrando que essa diarquia ainda tem fôlego na cultura ocidental
moderna. Outro exemplo está em uma notícia veiculada no Jornal da Ciência, de circulação
virtual e livre para qualquer interessado, por via de e-mail, a respeito do neurocientista
Miguel Nicolelis: “Nicolelis em seu trabalho de pesquisa pretende, além de explicar
comportamentos motores e princípios de funcionamento dos circuitos neurais, que em breve
essa interface cérebro-máquina possa ser "a base, o coração de algo chamado neuroprótese
cortical que sirva para a restauração das funções motoras que sofreram algum tipo de lesão".
JC e-mail 3832, 21 de agosto de 2009, (por Alex Sander Alcântara, da Agência Fapesp, 21/8)
168
pretendida pela peça, lembra que existe uma indicação (eu não sabia ao certo onde) de
que o espetáculo seria adequado somente para crianças acima de seis anos.
A ideia de “aproveitar” ou não a peça deixa transparecer que a razão de estar ali
seria, ao menos em parte, educativa. Havia crianças na sala com idade abaixo da
educativos podem não ser os únicos que movem os pais, misturando-se ao lazer. Essa
aos pais se aquilo que se passava no palco era real, ou seja, se a representação do
funcionamento dos neurônios que se vê no palco teria de fato um paralelo biológico que
A sala é ocupada por cerca de 50 pessoas, entre elas 21 crianças. No áudio, antes
da presença de qualquer ator no palco, ouve-se o que parecem ser ruídos de impulsos
No decorrer da peça, os sons desses ‘impulsos elétricos’ são emitidos pelos próprios
atores, quando eles entram em contato físico para transmitir alguma mensagem,
uma tela ao fundo. O diálogo entre os neurônios, já referido no início deste capítulo,
que logo saberemos se tratar do sobrinho do cientista, entra em cena e surpreende o tio.
conversavam; enquanto o garoto observa, o tio ensina que “eles moram dentro do seu
169
cérebro e comandam tudo o que você faz, pensa e sente”. O garoto, parecendo bastante
excitado e ativo, anuncia ao tio-cientista que precisa sair, pois ainda precisaria fazer
muitas coisas naquele mesmo dia. O desdobrar-se da peça vai consistir justamente na
apresentação destes afazeres do garoto, mas sempre do ponto de vista de seus neurônios.
O garoto se retira do palco, e o tio-cientista ‘pensa’ em voz alta “ah, se eu pudesse ver o
“o que é que você tem na cabeça?”, de uso corrente em um registro leigo, são utilizadas
aqui em outra direção, apontando para a possibilidade de que esta ‘visualização’ seja
possível em sentido literal, por acesso direto às imagens do cérebro. É um bom exemplo
neurocientífica, que volta ao público leigo, em um circuito contínuo. Ora, vamos assistir
É como se o “ver o que se passa nessa cabecinha” fosse equivalente ao que toda a
viagem à “cabecinha” de Pedro. Uma tela desce do alto frente ao palco, onde passa a ser
projetada uma animação, enquanto uma voz em off anuncia uma “viagem ao cérebro”:
com tempo bom, sujeito a muitas sensações”. Essa “viagem” marca uma passagem para
os principais protagonistas da peça. São eles que atuam a partir deste momento, e os
baseada, logo, meu olhar tinha o filtro da obra original; eu me perguntava como o
material de cinco volumes da coleção seria transposto para uma peça com pouco menos
de uma hora. Antes do palco, meu olhar se ocupava da platéia, atento a reações que
pudessem de alguma forma ser registradas. Só então chegava ao palco, no qual a peça
era encenada em três camadas: (i) o “mundo real”, (ii) o mundo interno ao cérebro e (iii)
algumas vezes projetadas numa tela atrás do palco, onde se passava aquilo que os
neurônios ‘viam’.
O tema central da peça é a paixão de Pedro por sua nova vizinha, como no
primeiro volume da coleção de Roberto Lent. Em torno desse eixo, as temáticas dos
outros volumes se articulam: Pedro vai aprender a andar de bicicleta, fazer o dever de
casa e jogar futebol, ganchos que servem para destacar neurônios de funções
específicas, responsáveis pelo equilíbrio e movimentos, pela audição, pela visão, pela
masculino, mas representado por uma atriz – aliás, a mesma que faz o papel do garoto
questão de gênero tem importância aqui porque o neurônio responsável pelas emoções,
efeminado e o sonhador, em relação aos outros neurônios. Tanto na peça quanto nos
livros, os neurônios têm sexo, mais ou menos explícito. No quarto volume, intitulado
dupla com Zé Neurim para evitar maiores acidentes com a bicicleta nova, que Ptix havia
recebido de seu pai como presente de aniversário. Eles são apresentados da seguinte
forma no livro:
É claro que a aventura não será tão simples. Após um primeiro tombo, os
descontrole do sistema, como, por exemplo, quando Pedro tem uma performance ruim
estão sempre pedindo que ele se controle, e, em uma ocasião, que ele “seja macho”.
Neste sentido, é possível dizer que neurônio tem sexo: razão, força e equilíbrio
104
Ao final do livro, repetem-se as duas páginas que apresentam um cientista e uma técnica
relacionada ao tema do volume. Vê-se a foto de uma mulher a cuja cabeça estão conectados
uma série de fios. Um aparelho paira sobre a cabeça do sujeito estudado: “Está vendo esse
objeto branco na mão da Tita? [a cientista] É um estimulador magnético do cérebro! Com
ele, Tita estimula um local determinado do cérebro de uma pessoa, e aos mesmo tempo capta
qualquer contração que os músculos realizam através dos fios colocados no corpo. O
computador guarda tudo, e ela estuda depois.” Nestas páginas, onde se apresenta sempre
uma técnica de estudo do cérebro e/ou um especialista no assunto, equiparam-se as emoções,
movimento e a relação entre o cérebro e os sentidos.
172
Estar “desligado”, por exemplo, é uma questão recorrente na fala dos neurônios,
ressaltado como algo negativo, porque “um neurônio nunca pode estar desligado”, como
afirma em dado momento o neurônio da visão. Quando Pedro erra um chute no futebol,
“desligado”; afinal, diz ele, “está na memória do Pedro chutar”. O Acumbente passeia
pelo palco com um ar apaixonado, sem se importar com o jogo. Ele é acusado por
atento e os neurônios, então, “se ligam” tocando uns nos outros, como uma forma de
De uma forma jocosa, a peça oferece dados para pensarmos também nas relações
termos religiosos por partes do cérebro, ou o cérebro ele mesmo. Isso acontece quando
Pedro ganha uma bicicleta como presente de aniversário e resolve aprender a andar
sozinho, situação a qual me referi acima. Esse processo de aprendizado é vivido pelo
grupo de neurônios como uma grande aventura. No livro como na peça, após vasculhar
garoto aparece pedalando; ele, então, telefona (no livro) / conversa (na peça) com
neurônios, que haviam montado no palco, com os seus próprios corpos, um formato de
bicicleta, caem no chão, assim como Pedro. O garoto não desiste e tenta mais uma vez,
o que gera uma interjeição de Giraldo: “Oh meu São Hipotálamo, valei-me!”. Nesta
nova tentativa, Pedro consegue pedalar, e os neurônios reagem com alegria: “Ele
conseguiu, nós conseguimos... seja o que o São Cerebelo quiser!”. Em mais de uma
173
Com estas frases que substituem santos ou “céu” por partes do cérebro, algo de
compartilham de uma mesma visão de mundo, o que permite sorrir frente a estas piadas.
Trata-se de uma visão de mundo que confere aos discursos científicos um lugar
determinadas especialidades, como é o caso das neurociências nos dias atuais. O que
talvez nos permita, estressando a proposta de Russo e Ponciano, falar em uma neuro-
A adaptação teatral oferece um outro momento que nos permite falar da ciência
dever escolar que Ptix precisa fazer, uma redação cujo tema é “As cidades”. E era dever
escolar estava pronto. Olívio Gravador, o neurônio responsável pela audição, “sentindo
que a mãe do Ptix falou com voz de brava”, liga para Zé Neurim para lembrá-lo da
sobre essa cidade imaginária retratada no desenho animado; ainda no telefonema com a
mãe, Pedro a acalma, dizendo que já saberia sobre o que escrever. O “esquecimento do
neurônio lembrador” será motivo mais à frente no livro para que se apresente às
crianças a relação entre os neurônios e a memória. Duas imagens são apresentadas lado
diferenças.
peça, o tema da redação não é mais “As cidades”, mas sim a futura profissão de Pedro,
no estilo “o que você quer ser quando crescer?”. Pedro escreve então sobre o seu desejo
de seguir a profissão do tio. No texto da redação, que ouvimos em off, o garoto enaltece
o trabalho do tio, afirmando que “ele sabe ver coisas que ninguém imagina. Ele parece
um artista. Tá sempre inventando alguma. Ele sempre diz que é importante acreditar nos
sonhos e fantasias porque daí saem as grandes sacações”. Mais a frente - lembremos que
a peça retrata um dia na vida de Pedro, justamente o dia do seu aniversário -, o garoto
175
vai receber de presente do tio um microscópio. Agradecido, o menino diz “irado, agora
chamado público leigo. Mas estamos tratando aqui de um órgão particular do corpo
comparado a outros do corpo humano nos dias de hoje, é razoável imaginar que algo
entre um cientista e um artista feita na peça. Ambos ocupam um lugar de exceção, ainda
que por diferentes motivos. Em comum, ambos podem ser vistos – e o imaginário
popular está recheado destas representações – como loucos ou gênios ou ainda como
visionários. Se lembrarmos da análise feita por Elias (1995) do lugar social ocupado por
Mozart, temos aqui um possível paralelo. Também Amadeus é visto pelo autor como
“arte de artista”, entre o artista submetido aos ditames da sociedade de corte e aquele
Elias situa Mozart no entroncamento entre dois mundos sociais, e talvez por isso
positivo justamente por este seu acesso a ver o que ninguém imagina, a inventar coisas
novas. Aqui, estar, digamos, um passo além de seu tempo vendo o que ninguém vê e
limite curioso entre os fatos científicos e a ficção. Nas duas vezes em que assisti a peça
percebi que a ciência representada naquele formato suscitava nas crianças uma certa
dúvida a respeito da relação entre o que elas viam no palco e a expressão de uma
que aconteceram próximos a mim por ocasião da primeira sessão. Durante a peça,
entre os dois mundos que se apresentam no palco, e questiona “Mamãe, eles controlam
o Pedro?”, recebendo de sua mãe uma resposta positiva, “sim, eles controlam”.
seguinte diálogo:
Os questionamentos das crianças mostram que para elas a relação entre o que se
via no palco e o que ocorre no corpo não seria tão direta – e isso poderia indicar, talvez,
algo mais do que um mero estágio em que a criança ainda está por dominar o conceito
divulgadas na peça e o seu paralelo na ‘vida real’ e no corpo de cada um de nós. Ainda
na saída da primeira sessão, uma mulher em minha frente dizia “Filho, eu achei muito
177
centro cultural na saída da peça, enquanto duas mulheres adultas folheavam a coleção
de livros de Roberto Lent, em destaque na vitrine, uma (que havia assistido a peça) dizia
para a outra (que não assistiu) que “então os neurônios ficam brincando dentro do
Meu testemunho pessoal, aliás, é o de que a peça diverte. Apesar da tensão por
estar ali a trabalho, tomando notas, achei tudo aquilo muito engraçado – afinal, a peça
não é um ‘drama’ do cérebro, mas sim uma comédia com piadas em torno do órgão e
suas células –, ainda que munido de uma perspectiva crítica do enfoque algo
reducionista que era encenado, em especial no que diz respeito à explicação que se dá
Em outro contexto, falando sobre a possibilidade de testes mais refinados que possam
de certos espaços que frequentei com intenção etnográfica, sendo a peça apenas um
espectadores da peça não marcaram um encontro entre si. Apesar disso, o que nos
178
sociabilidade cada vez mais específicos relacionados às novas verdades do corpo – ele
se refere aos grupos que tendem a se formar em torno de doenças, mas porque não
considerar os grupos que se reúnem para ouvir as boas novas da neurociência? –, talvez
possamos designar uma situação como esta que etnografei como de neuro-
sociabilidade.
Tanto os livros quanto a peça possuem um tom educativo, que visa mostrar, de
modo que as crianças entendam, uma certa perspectiva sobre como o cérebro funciona.
O foco central é a vida cotidiana, que, em cada momento, em cada sensação, seria uma
livros –, você poderá descobrir como é que o cérebro funciona, como é que os neurônios
Mas este processo educacional vai além de uma tradução de saberes sobre o
cérebro para o público infantil. Trata-se de um discurso sobre como a pessoa funciona,
comandada pelo seu cérebro. Os neurônios são tão humanizados quanto a pessoa como
mas não simplesmente uma aula de biologia, que mostra certos fatos sobre o
passa a frente é uma perspectiva sobre a ‘pessoa’, que à equivale ao seu cérebro, muito
179
fora do palco, as vozes dos neurônios em off, como no início, voltam mais uma vez. Um
deles comenta surpreso que eles estariam sendo aplaudidos. Um segundo, mais
rabugento, retruca perguntando “agora você acha que está no teatro? Depois do
neurônio apaixonado, agora tem neurônio ator...”. Para a minha surpresa, o primeiro
reage a isso fazendo uso de um vocabulário que me parece, a princípio, de outra ordem:
“você é um neurônio neurótico”. Ora, um sinal discreto se manifesta aqui de uma outra
psicanálise. De forma em alguns momentos tensa, mas aqui jocosa, uma perspectiva
anterior – convive com outros discursos que também deixaram marcas duradouras.
De qualquer forma, mais uma vez os neurônios tinham toda a razão. Eles foram
aplaudidos de pé nas duas encenações nas quais estive presente. Pelo antropólogo,
inclusive.
105
Esta seria a novidade educativa que se leva às crianças: aprende-se neste contexto que se é
um cérebro, ou ao menos que este órgão está implicado em todas as nossas ações cotidianas.
A professora Sônia Maluf, em um contexto no qual eu apresentava resultados parciais desta
pesquisa, lembrou-me que a situação lembra uma conhecida passagem relatada por Maurice
Leenhardt em Do Kamo, o trecho no qual um nativo argumenta ser novidade para eles o
corpo, e não o espírito, conforme pensava o antropólogo. Fico grato pela idéia, que ainda
cabe desenvolver.
180
UFRJ106 alcançou grande êxito, o que pode ser aferido pelo grau de exposição tanto da
Ela é o cérebro107 por trás de um sítio na internet, criado no ano 2000; seis livros
lançados entre 2002 e 2009 por diferentes editoras (Vieira e Lent, Objetiva, Jorge Zahar
e Sextante); uma coluna quinzenal no jornal Folha de São Paulo (caderno Folha
106
Atualmente, Suzana Herculano é professora da UFRJ, parte do quadro do Instituto de
Ciências Biomédicas, Departamento de Anatomia, no qual dirige o laboratório de neuro-
anatomia comparada. Ela graduou-se em Biologia (UFRJ) em 1992, defendeu o mestrado em
1995 em Neurociência (Case Western Reserve University) e o doutorado também em
Neurociência em 1999 (Université Paris VI). É importante salientar que o relato feito neste
capítulo diz respeito somente (não é pouco, na verdade) à sua atividade como divulgadora
científica do que ela chama de “neurociência da vida cotidiana”.
107
Usar esta expressão neste ponto corre o risco de soar como ironia; na verdade, ela é mais do
que adequada, por mais de um motivo. Em primeiro lugar (estou aqui levando em conta a
lógica nativa), trata-se de um pressuposto deste material um grau de equivalência bastante
evidente entre o cérebro e o indivíduo que porta o órgão. No blog da neurocientista
(www.suzanaherculanohouzel.com), uma das primeiras imagens é justamente a do seu
próprio cérebro. Em outro registro, há que se levar em conta os diversos usos metafóricos e
metonímicos para a palavra cérebro que estão tanto previstos em nossa gramática formal
quanto fazem parte da linguagem cotidiana. Algumas destas possibilidades, como veremos,
vai de encontro às revisões que as novas ciências do cérebro têm feito. O Houaiss prevê
derivações por metonímia, como no caso de “João é todo cérebro”: “indivíduo que privilegia
a razão sobre a emoção”; ou ainda como em “o cérebro da equipe”, o “indivíduo que lidera
intelectualmente; cabeça”. Ora, essa divisão entre uma razão situada no cérebro, e uma
emoção situada alhures soaria hoje no mínimo equivocada, mesmo para um leigo com acesso
ao material de popularização que exploro aqui, no qual as emoções, da mesma forma que a
razão, seriam um produto cerebral.
181
2008. Todos estes trabalhos têm como objetivo levar os saberes da neurociência a um
público amplo, construindo sempre uma conexão entre saberes sobre o cérebro e a vida
seu nome não são incomuns na mídia impressa, em jornais e revistas.108 Ela também
vem sendo contratada para proferir palestras por empresas como Petrobrás, Bradesco,
“as aplicações da neurociência à vida cotidiana” – como ela afirma em seu sítio na
internet – tem grande sucesso e espaço crescente de divulgação. Ainda que o fenômeno
designado aqui ‘cerebralismo’ não possa ser explicado tomando como causa o trabalho
de uma única pessoa, é também verdade que produções individuais, e certos sujeitos
Estas afirmações podem soar um tanto exageradas, já que não fiz qualquer
estudo sistemático de recepção entre o público leigo. Mas, por outro lado, propus-me a
etnográfica.
Se levarmos em conta os espaços por ela ocupados, cada vez mais prestigiosos
em termos de acesso ao grande público, é possível ter uma medida do sucesso do seu
108
Entre os programas de TV estão o Mais Você, que vai ao ar na Rede Globo de Televisão nas
manhãs de segunda a sexta; Happy Hour, no canal de TV a cabo GNT; programa Amaury
Jr.; os programas de entrevistas Roda Viva e Sem Censura. Na mídia impressa, já foi
entrevistada pela revista Época e pelo jornal Estado de São Paulo. Uma breve (auto)biografia
da neurocientista pode ser encontrada em seu blog na internet, no endereço
www.suzanaherculanohouzel.com
182
também que existe um público ávido pelo consumo de saberes acessíveis sobre o
influentes de 2008”, em uma edição especial com este destaque, chamada Época 100.
aquelas [pessoas] que nos inspiram e nos fazem ser quem somos.
Consideramos que o critério mais importante para alguém estar na lista
não era ter fama, poder ou dinheiro. Era, mais do que isso, ter
desenvolvido, durante o ano de 2008, um trabalho, atividade ou
pensamento que tivesse servido de modelo e influído de modo claro no
comportamento ou na mentalidade nacional. Era ter influência, tanto
pelas ideias quanto pelos atos”. (Helio Gurovitz, diretor de redação, na
apresentação à edição, pg.10, 8/12/2008, ed.551) (grifo meu)
O grifo logo acima quer destacar o quanto a frase do diretor de redação parece
autores já citados, pela força de uma concepção de pessoa colada ao cérebro, a ideia de
redação da citada revista, tão difícil e criteriosa quanto a escolha dos 100 mais
influentes teria sido a escolha de quem escreveria sobre eles: “na verdade – ele afirma –,
os próprios autores dos textos poderiam formar outra lista de gente influente no país”. O
professora Suzana Herculano no quesito “cientista”. Estas deferências, por dois anos
divulgação e à exposição pública que deu cada vez mais evidência a tais esforços. O
pública, para além dos fóruns mais estritos entre pares cientistas, o que a autoriza como
109
Estou pensando no uso que Velho (1987) faz do conceito de prestígio para analisar contextos
de mobilidade social e individualização no Rio de Janeiro, como algo que pode ser
“conferido ao ator pelo grupo ou grupos sociais a que pertence. (...) a partir do espaço social
que lhe é conferido ou obtido, o indivíduo agente empírico desempenha papéis que
permitirão a elaboração de uma identidade mais ou menos sólida, respeitada, gratificante”
(Velho, 1987, p.45-6). É claro que o autor está trabalhando com um contexto bastante
diverso do meu, mas a referência me parece pertinente. A partir dessa transferência de
prestígio de um “padrinho” – manifesta no texto da revista Época citado, e na apresentação
de Lent ao seu primeiro livro –, Suzana vai galgar vários degraus até se tornar ela mesma o
rosto e a maior porta-voz da divulgação neurocientífica no Brasil.
184
possível encontrar regularidades, especialmente no que diz respeito aos principais temas
abordados, que tendem a se repetir nos livros e pelas outras mídias. O que se propõe
aqui é uma abordagem etnográfica deste material, descritiva e analítica, como não
poderia deixar de ser. Além de acumular livros, colunas e material televisivo, navegar
pelo sítio na internet e pelo blog, frequentei em 2007 um curso oferecido pela
plantão”, cuja tarefa consiste em “pensar o lado cerebral de tudo o que acontece ao seu
redor”, tecendo comentário “sobre a vida, o universo e tudo mais”, como ela afirma em
seu blog na internet. A palavra “tudo” não é repetida gratuitamente nas duas frases;
trata-se, de fato, de um modelo explicativo do mundo, com algo a dizer sobre os temas
mais diversos. A essa perspectiva de grande abrangência, que pode abordar os temas
Foi após terminar sua formação de pós-graduação, com passagens pelos EUA,
França e Alemanha, que ela voltou para o Brasil, com o objetivo de trabalhar com
divulgação científica, o que ela começou a fazer em 1999. Mas o que teria levado uma
anunciava na orelha do livro um número total de 60.000 exemplares vendidos. Mas este
número não reflete uma média regular de venda por livro lançado; o seu primeiro
lançamento pela editora Sextante – que corresponde ao seu quinto livro de divulgação –
é responsável por metade deste número, dado que merece atenção e comentários mais
abaixo.
que a internet tenha um poder de alcance amplo, o caminho trilhado entre o sítio virtual
Fantástico na Rede Globo demonstra que a proposta da neurocientista foi muito bem
recebida, por um público cada vez mais amplo, e ocupando espaços de cada vez maior
também por uma retórica que visa tornar acessível e aplicável no dia-a-dia um conjunto
no conjunto de sua obra de divulgação, é preciso atentar para o percurso editorial feito
por Suzana Herculano. Se o primeiro livro lançado, chamado “O cérebro nosso de cada
2002, em sua 8ª edição em 2007), foi publicado por uma editora menos conhecida no
mercado, a Vieira e Lent Casa Editorial110, os três livros mais recentes – dois deles
Este percurso editorial será marcado por uma mudança de estilo na retórica de
divulgação – o que pode ser percebido claramente por qualquer leitor atento, ainda que
científicas a respeito do cérebro (ou seja, sobre quem nós somos e como funcionamos) e
muda de tom mais a frente, assemelhando-se a uma retórica de auto-ajuda (ou seja,
Não se trata de um material de fácil apresentação; digo isso não tanto pelo
volume de informação, mas por sua imensa variedade temática, o que por vezes torna
difícil construir uma síntese para descrever os livros como um todo. Um deles pode ser
composto por explicações neurocientíficas para questões tão variadas como “por que
cheiros ruins passam com o tempo?” até “por que a gente se arrepende?”. Um outro tem
seu foco nos “prazeres da vida cotidiana” e sua relação com o cérebro. Virtualmente,
humanos para o qual não haja uma explicação da neurociência. Deixei de pensar nesta
110
Para ser mais exato, tratava-se ali de dois momentos iniciais, já que era o primeiro livro de
divulgação de Suzana e também o primeiro livro lançado pela editora.
187
característica do material como algo que dificulta a sua apresentação e análise – afinal,
como tratá-lo etnograficamente? – para percebê-la como uma questão a ser explorada. A
internet, além dos textos que deram origem à primeira publicação de Suzana, é possível
neurônio, por exemplo, deixa de ser uma “bolinha cheia de fios”, como se apresentava
Neste, a autora afirma em uma auto-apresentação que o objetivo dos textos é explicar
redação da revista Época referiu-se às “100 pessoas mais influentes do Brasil em 2008”.
Na revista, ele afirma que se trata ali de um destaque às pessoas que “nos fazem ser
quem somos”; já no livro de Suzana – uma dessas pessoas –, afirma-se que quem faz de
nós o que somos é o cérebro. O leitor que passa pelas duas publicações vai sendo
a uma perspectiva muito específica a respeito do que faz de cada indivíduo o que ele é:
o que somos e fazemos é um produto direto do nosso cérebro. Ainda que o conteúdo e o
que é a glia, ou o glutamato ou mesmo termos mais conhecidos do público leigo como
na varanda” (no mais recente, lançado em 2009) – como ela define o tom que gostaria
de imprimir aos seus textos – desenham um cenário de intimidade crescente entre leitor
e autora, assim como entre leitor e conteúdo. Reforçar essa cena de ‘intimidade’ entre
público leigo de que os saberes sobre o cérebro, naquele formato, são acessíveis; e
depende também do sucesso da ideia de que aquele saber de fato diz alguma coisa sobre
Minha hipótese de análise é a de que esse ‘tom de intimidade’ foi avançando até
o ponto em que é possível perceber algumas tendências. Uma delas é a de que a autora
passa a flertar com o estilo da auto-ajuda, com um tom mais claramente normativo, que
propõe uma espécie de higiene cotidiana relacionada ao cérebro, no sentido em que uma
‘saúde cerebral’ está relacionada ao bem estar geral de todo o organismo 112. A segunda é
que os textos vão ficando cada vez mais distantes de suas referências de base, artigos
científicos mais áridos nos quais o público leigo em busca da linguagem mais leve que
caracteriza este tipo de divulgação não teria interesse. Este movimento pode ser
percebido ‘fisicamente’ nos livros: aqueles lançados pela Vieira e Lent, seus primeiros
112
Isso pode ser percebido até nos títulos dos livros com este perfil, lançados pela editora
Sextante. Refiro-me ao “Fique de bem com o seu cérebro: guia prático para o bem-estar em
15 passos” e ao “Pílulas de neurociência para uma vida melhor”, lançados respectivamente
em 2007 e 2009.
190
bibliográficas ao final de cada pequeno artigo, estabelecendo uma relação direta entre
uma medicina familiar, e a circular internamente entre uma camada leiga; sobre este
fato que a origem científica das ideias vai se afastando gradualmente dos textos de
abordagem cada vez mais leve de temas ligados à “neurociência do cotidiano” vai
linguagem cifrada em sua origem. Aqui, uma boa administração da vida cotidiana é
lidando, ao menos no caso dos livros, com a difusão letrada de uma concepção de
organismo é bem visto. Sua legitimidade emana justamente de uma valorização de suas
bases científicas, ainda que a apresentação das ideias seja adaptada a uma leitura leve,
de fácil aceitação, próxima ao leitor não iniciado em neurociência; este é o tom de uma
linguagem científica em nível controlado, para que a mensagem e a sua ciência de base
não percam legitimidade. Muito pelo contrário, é através desses mecanismos que a
cotidiano. O primeiro e segundo livros foram lançados pela editora Vieira e Lent113 em
2002 e 2003, e guardam entre si uma estrutura em comum. São compostos por pequenos
capítulos com não mais do que quatro páginas e não menos do que duas cada um,
113
Um dos membros do conselho diretor da editora é o neurocientista Roberto Lent. No sítio
virtual da editora, afirma-se que a empresa nasce com a vocação de divulgação cientifica: a
editora foi criada em 2002, “com o objetivo editorial de promover a aproximação entre
ciência e sociedade. Levar ao grande público leitor o conhecimento produzido nos
laboratórios brasileiros, em todas as áreas do conhecimento, inclusive estudos sobre cultura,
arte e literatura”. (www.vieiralent.com.br) Em seu primeiro livro, Suzana Herculano
reconhece o papel de Roberto Lent como um “padrinho” no campo da divulgação, o que nos
mostra uma conexão entre os projetos dos dois e a relação entre esta sessão e a anterior. O
primeiro livro de divulgação de Suzana Herculano-Houzel foi também o primeiro livro
lançado pela editora.
192
fonte de onde aquela relação entre neurociência e vida cotidiana teria sido retirada. Esta
informação pode soar pouco relevante, mas não o é: como já disse, os livros posteriores
vão vendo as referências científicas ficarem mais distantes dos textos, ao final do livro
(caso do livro publicado pela editora Zahar, em 2007 e do primeiro lançamento pela
Sextante, também em 2007) ou sequer ao final (caso do seu livro mais recente, lançado
doença” e “novas terapias”. Em termos gerais, o livro procura desfazer o que seriam
alguns mitos a respeito do cérebro – alguns deles já parte do senso comum –, como o de
que usamos apenas 10% de nossa capacidade cerebral ou o de que o tamanho do cérebro
circular, que se inicia com alguma questão simples relacionada ao cotidiano, caminha
por alguma hipótese encontrada no campo das neurociências e termina com alguma
referência ao mote que abre o texto, quase sempre de uma forma lúdica. Por exemplo:
de oxigenação no cérebro levaria ao bocejo; por sua vez, o contágio aconteceria porque
193
“quando observamos uma ação ou imaginamos ações ou objetos, nosso cérebro ativa
exatamente os mesmos circuitos utilizados quando realizamos nós mesmos aquela ação,
segundo livro de divulgação, lançado também pela editora Vieira e Lent, em 2003, um
assunto que ganha destaque também em entrevistas e no curso que frequentei sobre a
Roberto Lent já mostra que o sistema de recompensa do cérebro atua para muito além
neurocientífica para o hedonismo, uma justificativa biológica para a busca por prazer ou
mesmo explicar uma certa dinâmica de consumo. A autora define o tema principal deste
seu segundo livro através da pergunta “o que nos faz querer sempre mais?” (Herculano-
uma perspectiva universalista? A resposta para esta pergunta estaria no citado sistema
em outras palavras, prazer – a comportamentos que surtem bons efeitos, sejam eles
procurar algo que foi bom”. (ibidem) Motivação é o nome que ela dá à antecipação
deste prazer, “um gostinho do prazer que logo deve chegar”. Mas veremos que este
sistema, no qual estão envolvidas algumas estruturas do cérebro, com destaque para o
amplo, que pode ser ativado também através de um trabalho bem feito – através da
corriqueiras (ao menos, em princípio, para o público alvo deste tipo de literatura, é
importante salientar). O cérebro estaria envolvido nos prazeres mais intensos das
‘drogas’ proibidas, nos mais aditivos, mas também em atividades mais prosaicas como
beber um chope. Tais prazeres, que a autora subsume sob os itens sexo, drogas, música
e comida, seriam
195
livro abre alas para um novo passo: falar sobre o cérebro não inclui apenas curiosidades
sobre o funcionamento do órgão, seja ele adequado e saudável ou não; conhecer melhor
este cérebro nos possibilitaria uma gestão da vida e de seus pequenos prazeres. O órgão
espaço para o cérebro nas mais prosaicas cenas cotidianas O livro a respeito dos
“prazeres da vida cotidiana” antecipa uma virada editorial e discursiva que parece se
solidificar alguns anos depois, quando a autora passa a publicar livros pela Sextante,
uma editora especializada no gênero conhecido como autoajuda, o que será assunto da
próxima sessão.
Em paralelo a esta virada discursiva, um outro livro foi publicado pela Jorge
Zahar Editor, em 2007, com foco em curiosidades a respeito da relação entre o cérebro e
a vida cotidiana. O fator contagiante do bocejo repete-se aqui em destaque, e vai dar
cotidiano”. Trata-se do primeiro de uma coleção dirigida pela própria Suzana, chamada
vida cotidiana”.
são perguntas que vão de “Por que sentimos saudade?” a “Por que sentimos dor?”,
passando por “Por que é tão difícil guardar um segredo?”. Os textos trazem explicações
pergunta aqui citada, por exemplo, a resposta estaria em uma “proibição” articulada
Por uma razão semelhante à que torna mentir trabalhoso: seu cérebro
lembra do assunto secreto, prepara todos os circuitos adequados para
mencioná-lo, como faz com qualquer outro assunto que venha à mente,
mas na hora H... não pode executar o programa preparado, porque o
córtex pré-frontal, sede do controle executivo, lembra que aquele
programa foi proibido. A proibição pelo córtex pré-frontal de falar no
assunto coloca o córtex cingulado anterior em alarme, monitorando suas
palavras para ter certeza de que você não dará com a língua nos dentes –
mas também deixando você terrivelmente angustiado com o segredo a
manter. (Herculano-Houzel 2007a, p. 132)
Em média, neste livro os textos são um pouco mais curtos do que nos dois
lançados pela Vieira e Lent, entre 1 e 2 páginas, com raras exceções. As referências
bibliográficas aparecem apenas no final do livro, e não logo após cada texto, como era o
caso dos primeiros livros. Essas características mostram uma tendência no modelo de
divulgação que parece deixar o texto ainda mais palatável, se imaginamos que ao leitor
utilizadas pela autora; em alguns capítulos, uma nota remete o leitor às referências
bibliográficas – mais uma vez textos publicados em revistas de referência no campo das
As dinâmicas cerebrais explicam temas que podem, com ressalvas, ser definidos
como de caráter mais exclusivamente físico como a coceira, os espirros e soluços. Mas
também avançam sobre questões que envolvem uma ordem mais evidentemente
discurso que naturaliza e universaliza noções como o gosto e o nojo, o que atrai e o que
causa repulsa, tema de larga abordagem em mais de uma vertente das ciências humanas
e sociais, que mostram o seu caráter histórica e culturalmente variado.114 Para responder
Assim como o cérebro tem regiões que cuidam de cada um dos gostos
que sentimos, ele possui também outra região cuja especialidade é
registrar gostos desagradáveis, que provocam o tal desgosto, ou nojo.
Informações de vários sentidos podem disparar um sinal nessa região
cerebral do desgosto, a porção anterior do córtex da ínsula. (...) Sentir
nojo é tão importante que o mesmo alarme de desgosto, disparado no
cérebro quando você já cheirou ou comeu algo ruim, é acionada quando
você recebe uma proposta injusta (e faz você recusá-la), e também à
simples visão de uma cara de nojo em outra pessoa. Isso é muito
importante porque a expressão de nojo é universal: embora cada povo
tenha sua lista de comidas preferidas ou desagradáveis, pessoas em todas
as culturas e de todas as etnias torcem o nariz de uma mesma maneira,
com a mesma careta, contraindo o músculo corrugador da face, quando
não gostam do que comem. E se eles não gostaram, o mais seguro é você
ficar longe daquela comida. O problema é que as crianças, em geral
muito sensíveis a sabores amargos, e adultos cheios de frescura
protegem bem demais seus cérebros e estômagos e torcem o nariz para
qualquer comida que não seja perfeitamente segura, ou que eles vejam
outra criança recusar. O que explica, aliás, porque o “prato infantil” é
universal. Quero ver alguma criança torcer o nariz para o famoso bife
com batata frita... (Herculano-Houzel, 2007a, p.34-5)
texto são ideias a respeito de um caráter universal dos gostos, das emoções e sua
expressão facial. É mais do que evidente que esta perspectiva a respeito da ‘natureza
114
Para apenas três exemplos na antropologia e na história, ver Douglas (1976), Elias (1994) e
Vigarello (1996).
198
humanos ganham uma roupagem de objetividade científica. Cada pequeno texto é uma
nova peça em um quebra-cabeça cujo resultado final é uma concepção de ‘pessoa’ mais
aproximada ao seu cérebro; isso, é claro, se assumirmos que o leitor tomas essas
é difícil encontrar ideias a respeito do cérebro que tragam algum conforto pelo fato de
explicar uma ou outra reação humana. No dia em que comecei a redigir esta sessão do
capítulo, apesar de ter acordado muito cedo para trabalhar no horário em que produzo
melhor, não conseguia achar um gancho para começar a escrever. Quem já passou pelo
processo de confecção de uma tese, ou exerce qualquer função que envolva esforço
passar das horas, a mistura de frustração com a primeira linha que insiste em não
aparecer no papel e um cansaço que pode ser sentido no corpo, como se se tratasse de
um trabalho braçal, vai se tornando extenuante. Por um momento, pensei em como seria
bom se isso tivesse uma explicação que não colocasse em jogo minha competência, ou,
em termos mais gerais, não envolvesse a minha subjetividade. E se, realmente, naquela
manhã específica, algum mecanismo cerebral pudesse explicar porque eu não conseguia
Na verdade, tal explicação existe, e está acessível mesmo para quem pouco
comecei a folhear o livro “Por que o bocejo é contagioso?”. Acabei encontrando uma
Não posso dizer que entendi exatamente o que eu li no texto acima. Visualizar o
processo descrito não é uma tarefa simples, mesmo para um leigo interessado nos
Ainda assim, admito que o texto trouxe algum conforto. A citação acima é parte
do material que compõe meu corpus etnográfico; ao mesmo tempo, ele apresenta uma
tese que ensina algo sobre mim mesmo, com a qual eu poderia – e deveria, se quisesse
percebia que discursos contemporâneos sobre o cérebro não são de todo estranhos à
para representar o cansaço, culpando o cérebro de uma forma que torna a fadiga mental
inevitável, e tratando o órgão como algo extrínseco ao sujeito, ainda que o determine,
de uma situação formal de campo. Eu enfrentava uma fila para conseguir entradas para
o teatro em um centro cultural no Rio de Janeiro quando percebi que uma moça logo
atrás lia uma edição do livro “Fique de bem com o seu cérebro”, o primeiro lançamento
metrô, mas esta era a primeira situação que facilitava uma abordagem.
que a capa do livro era diferente do de minha edição. Meu exemplar traz na capa uma
ocupado pelo couro cabeludo aparece recortada em partes, uma imagem que nos remete
importância de dormir bem (representado por uma cama) e também de cultivar boas
chamada logo abaixo do nome de Suzana diz “autora de O cérebro nosso de cada dia”,
seu primeiro livro de popularização científica. A edição que a moça lia trazia a foto da
do Fantástico”. Àquela altura, o material de Suzana Herculano já tinha uma versão para
programado, uma oportunidade rara, de ter algum contato com a atitude mental dos
consumidores do material que eu analisava. A moça – cuja idade poderia girar em torno
201
dos 30 anos – comentou que gostava de “ler tudo o que cai na mão sobre ciência para
ser formada em história por uma universidade pública do Rio de Janeiro, mas estar
ela, estava na prateleira de auto-ajuda, gênero do qual ela afirmou não ser leitora,
científica. A moça comentou que “muita gente não lê [o livro em questão] porque tem
preconceito com [o gênero] auto-ajuda”. Eu não escondo minha opinião, e afirmo que
“por outro lado, muita gente lê justamente porque esta relação foi estabelecida”.
Suzana Herculano mudaram de prateleira nas livrarias, migrando de sessões com nomes
como “ciência” ou “divulgação científica” para a parte de auto-ajuda. Mais do que uma
“Pílulas de neurociência para uma vida melhor”, também lançado pela Sextante, em
2009, informava-se que acima de 60.000 cópias já teriam sido vendidas para o total dos
livros de divulgação da autora. Cerca de metade do total diz respeito às vendas somente
de “Fique de bem com o seu cérebro”, o primeiro livro que assume um tom voltado ao
desenvolvimento pessoal. Eu ainda não tinha essa informação – fornecida pela própria
autora – quando tive a oportunidade de conversar na fila do teatro com uma leitora. Mas
os dois tinham razão: o rótulo auto-ajuda pode despertar algum preconceito e ressalvas
reposta, em “Fique de bem com o seu cérebro: guia prático para o bem-estar em 15
uma vida melhor, baseados em uma espécie de higiene cerebral que atravessa o
para deixar de ser notada. O livro foi publicado pela editora Sextante, especializada
nessa linha de publicações. Cada capítulo – o que não parece ser casual – começa com
um verbo no imperativo, como “cuide bem da sua saúde física”, “sorria e busque a
Apenas a título comparativo, é bom lembrar que esse tipo de publicação voltada
ao público leigo com uma proposta de higiene, treinamento e cuidados cotidianos com o
cérebro (e com o corpo) tem um equivalente em seu aparentado discurso dos nervos.
Duarte (1986), a partir de uma consulta às entradas da Biblioteca Nacional, mostra que
para o público não especializado (...) e que reiteram as fórmulas do discurso do nervoso
como veículo de moralização” (p.67-8). A semelhança entre os títulos que ele cita –
todos publicados entre 1966 e 1976 – e alguns livros mais recentes de neurociência para
o público leigo é evidente: “Viva em paz com os seus nervos”, “É fácil dominar os
nervos”, “Nervos fortes e sadios: libertação radical dos distúrbios nervosos”, “Nervos,
Por semelhança, não seria demais afirmar que o discurso que aproxima o
203
capítulo passa por uma espécie de tomada de consciência do que o seu cérebro e os
conhecimentos acumulados pelas neurociências podem fazer por você, desde que o
leitor mostre disposição para colocar em prática alguns conselhos e acatar determinadas
Este enfoque mostra sintonia com uma visão ampliada do que seja saúde e bem-
estar, e do papel possível que o discurso das neurociências pode ocupar na busca por
estresse e cultivo dos relacionamentos, indicados porque gerariam uma resposta positiva
204
no cérebro. Cuidados com o corpo e a mente teriam um efeito direto sobre este órgão,
que por sua vez se reflete em um bem-estar generalizado, já que tudo depende do
chamei de um dualismo fisicalista, no qual o cérebro faz par com o corpo, como se
capítulo “cuide bem da sua saúde física”, que abre o livro, Suzana Herculano afirma que
contínua, indica-se uma escuta atenta do próprio corpo. Este mecanismo de controle, na
verdade, também está determinado biologicamente. Não se trata de uma escuta de uma
consciência algo desprendida do próprio corpo e que pode observar a si mesmo, atento a
uma forma peculiar: estão biologicamente interiorizados e se somam aos outros cinco
consciência de si, através deste novo sentido, passa a ser um mecanismo inerente à
nossa biologia, a qual temos acesso através de uma escuta atenta dos sinais que o
consideradas adequadas, pelo discurso (neuro)científico. Mas toda essa mecânica fica
quem és”, mas afirma ser adequado uma adaptação da frase para tempos em que a
formato “know how you love, and you will know who you are”. Como sexualidade,
que se propõe a falar sobre “a vida, o universo, e tudo mais”, como se afirma no blog de
ajuda não acontece sem alguma tensão. De certa forma, a breve conversa que tive na fila
de teatro com uma leitora do livro “Fique de bem com o seu cérebro” ilustra isso. Na
verdade, no que se refere ao conteúdo, muitos dos assuntos que Suzana Herculano
aborda neste novo momento editorial – no qual já publicou dois livros, e outros estariam
206
a caminho – já haviam sido trabalhados antes. A importância dos cuidados com o corpo,
atitude positiva são assuntos que já circulavam pelos livros anteriores. Mas não se pode
intervencionista.
programa Roda Viva, que vai ao pela TV Cultura nas segundas à noite115. A entrevistada
foi questionada por Mariluce Moura, diretora de redação da revista Pesquisa FAPESP.
extenso.
115
A transcrição e o vídeo podem ser encontrados na internet no endereço
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/311/entrevistados/suzana_herculanohouzel_2008.htm
A entrevista foi ao ar em 17 de março de 2008, quando já havia sido lançado o livro “Fique
de bem com o seu cérebro”, a primeira incursão da autora por este gênero misto entre
divulgação científica e auto-ajuda.
207
dois termos ao seu favor. O conteúdo de seu material reuniria o melhor da divulgação
científica – aquela que possui alguma utilidade e interesse ao público amplo, e que pode
trazer mais qualidade de vida – com o melhor da auto-ajuda – aquela que está baseada
em fatos científicos, e não seria reflexo de opiniões pessoais sem embasamento sólido.
É a isso que ela chama a “auto-ajuda no seu ápice”, expressão que emprestei
para o título desta sessão. O rótulo é aceito, mas com ressalvas; trata-se sim de auto-
ajuda, mas não uma qualquer. De categoria algo acusatória, a noção de auto-ajuda passa
estabelecidas cientificamente.
como parece atestar o sucesso comercial do livro lançado pela Sextante, bastante
superior aos lançamentos anteriores. Um novo livro foi lançado pela mesma editora,
baseado nas colunas que Suzana Herculano manteve no jornal Estado de São Paulo, e
especializadas em cuidar da motivação, que nos faz sentir prazer e querer mais de tudo o
que foi bom” (Herculano-Houzel, 2009, p.39), ou ainda “o sistema que nos traz prazer,
entre um restrito círculo esotérico e um hoje muito mais amplo círculo exotérico (cf.
massa, como veremos na sessão a seguir. Quando o foco passa a ser sobre a gestão e
fronteiras temáticas que podem ser abordadas, ao ponto que a neurociência se torna um
sistema explicativo que pode opinar virtualmente sobre qualquer assunto que diga
116
A respeito do imperativo da busca por prazer e felicidade, caberiam maiores
desenvolvimentos etnográficos (já que o material de neuro-autoajuda que encontrei vai além
do que pude comentar aqui) e teóricos (a bibliografia é vasta e importante); ver Cambbell,
2001; Sahlins, 2004; Bruckner, 2002.
209
quando se debruça também sobre a “vida normal”, como Suzana coloca em um trecho
eu acho que esse livro deixa bem claro que tem um mundo enorme se
abrindo para a gente graças à neurociência. Graças à possibilidade que a
gente tem de olhar para o cérebro da gente funcionando e usar esses
conhecimentos para entender o que é vida saudável, normal, porque eu
acho que é um desvio muito feliz da tradição, justamente, que a ciência,
como um todo, teve no século XX de se concentrar em patologias.
Vamos usar as doenças para entender como o cérebro funciona
normalmente. (o grifo é meu)
Um dos aspectos deste discurso é fazer parte de um corpo mais amplo de divulgação de
práticas de “neuroascese”, termo definido por Ortega e Vidal (2007, p. 260) como “uma
Segundo os mesmos autores, existiria uma ampla gama de produtos relacionados a esta
relacionadas ao cérebro – que envolvem, como já deve estar claro, o resto do corpo –
são um traço central do que venho chamando aqui de um cerebralismo. Mas estaria
interessados em saberes sobre o cérebro – tomando como base o tema desta sessão, os
sistema pronto para nos trazer felicidade e bem-estar, desde que o sujeito siga
determinadas normas de conduta físicas e morais. O cérebro deve ser mais produtivo,
atento, máquina de melhor memória e aprendizagem; mas ele deve, em paralelo, ser
uma máquina cujo bom funcionamento nos mostra os caminhos do prazer, da felicidade
nos presenteia sempre que algo vai bem com mais motivação, o mecanismo cuja
antecipação é apresentado como o grande motor do dia-a-dia. Foi com esta retórica, de
mãos dadas com um discurso sobre curiosidades da vida cotidiana, que a divulgação
117
Os episódios estão disponíveis para download na internet, e podem ser assistidos online na
página virtual do programa Fantástico, no endereço
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,JOR222-15607,00.html
211
grande cérebro, que ela pode manipular e girar, mostrando partes específicas do órgão
nos temas abordados. Até o momento no qual escrevo, quatorze episódios já foram ao ar
no Fantástico trazem agora na capa uma foto da neurocientista, o que não ocorria antes.
neurocientífica reverbera nos produtos anteriores, e as capas dos livros passam a ser
apresentação à 3ª edição do livro “Por que o bocejo é contagioso?”, já com sua foto na
capa, a autora brinca com a ideia de que o cérebro seria mesmo um “órgão fantástico”,
É justamente o formato deste livro que será aproveitado como animador inicial
do quadro, já que sempre se lança um “Por quê?” pouco antes da neurocientista entrar
o cérebro, presente fisicamente na tela da TV, ganha uma aura mística, já que encarna
118
Luna (2007), em sua pesquisa sobre as novas tecnologias reprodutivas, faz uso do termo
“encantamento pela ciência” em um sentido próximo ao qual quero conferir aqui: “O
objetivo de analisar as tecnologias reprodutivas não é demonizar a técnica ou assumir uma
metafísica anticiência (...). A intenção é discutir de que forma a opção por tratamento de
reprodução assistida e a linguagem de eficácia e de risco utilizada por médicos, pacientes e
analistas sociais integram o contexto de encantamento pela ciência.” (Luna, 2007, p. 100) (o
grifo é meu)
212
todos as respostas dos ‘por quês?’ formulados para animar os programetes. Não se trata,
deste encantamento, que passa a girar em torno do cérebro e de sua principal porta voz
Trago este tema aqui não gratuitamente. Em seu último livro, “Pílulas de
neurociência para uma vida melhor” – lançado em 2009 também pela Sextante –, no
assim que uma determinada organização de “moléculas” pode se tornar “poesia pura”.
213
Ainda que vários dos temas abordados por Suzana se repitam em seu movimento por
capítulos do livro “Por que o bocejo é contagioso?”, a pergunta de partida é “por que
sofremos com filmes que sabemos ser de ficção?” (Herculano-Houzel, 2007, p.143-44).
A resposta nos remete ao que seria a “base fisiológica da empatia”. Segundo esta
tese, “observar ou mesmo imaginar uma pessoa em um certo estado emocional ativa
observador”, uma área que representa “a sensação subjetiva de dor”. Sem esse
mexendo na parede”. Ao ser adaptado para a televisão, o mesmo tema tem como ponto
continuar assistindo a uma cena triste ou a filmes de terror, ainda que isso traga uma
sensação incômoda:
Por que, então, você não para de assistir esse sofrimento todo? Porque,
ao mesmo tempo, outra porção do córtex da ínsula se ocupa das
sensações do seu próprio corpo - e sabe que ele vai muito bem, obrigado,
seguro e íntegro no escurinho do cinema ou no sofá da sua casa. Assim
conseguimos ter empatia com os outros, na tela ou na vida real, e sentir o
que eles estão sentindo, mas sem misturar as sensações dos personagens
com as nossas. O resultado, quando as emoções dos outros nos afetam, é
uma vida mais harmoniosa em sociedade. E também diversão garantida,
quando a ínsula em nosso cérebro transforma a ficção em um pouquinho
de realidade. (quadro Neurológica, veiculado no programa Fantástico em
13/09/2009)
fenômeno biológico, o quadro vai mais longe e constrói uma ligação direta entre a
que a formam (cf. Taylor, 2008), mas também níveis de harmonia social estariam
partes do cérebro.
ganhou espaço na mídia de massa soe como uma lógica todo-poderosa, que não
encontra aqui e ali focos de resistência. É fato que a divulgação de saberes médico-
congresso médico recebe, com tom de pichação, uma intervenção com o texto “viva a
psicanálise”, numa clara manifestação que parece opor mente e cérebro, e diferentes
práticas de construção de si. Deparei-me com uma cena aparentada quando frequentei
foi-me entregue por um amigo que sabia de meu interesse no tema. Lá se explicava que
cursos oferecidos, pelo seu preço – paguei R$300, cerca de U$160 –, são voltados para
215
as camadas médias e altas da cidade, que podem arcar com estes custos e possuem
interesse nos temas abordados. Naquele momento, além do curso que eu freqüentaria,
oficina de roteiro e cinema, mas podem passar também por teatro, psicanálise e
filosofia.
Em quatro aulas, com cerca de duas horas cada, era oferecida uma síntese de
temáticas abordadas nos livros de divulgação que já haviam sido lançados, temperados
por dicas básicas de neurofisiologia. Como já disse, os assuntos se repetem entre livros
– que estariam à venda durante aulas seguintes –, o curso, colunas de jornal e o próprio
quadro na TV.
seria a área de atuação das pessoas que ali estavam. Imaginei que entre os alunos
haveria curiosos de vários tipos, mas esperava uma maioria ligada à área biomédica.
Não foi o caso. A sala destinada ao curso estava cheia, com 25 pessoas ao todo. Quando
área da saúde, três pessoas levantaram a mão, duas psicólogas e um terceiro cuja
aposentados e um rapaz na faixa dos 20 que depois me disse praticar esgrima e ter
mecanismos do cérebro).
ali uma introdução ao modus operandi do cérebro. Um dos temas era “a forma como o
palavras, ditas por ela em voz alta, os de melhor performance lembravam entre 5 e 7
palavras, entre listas de cores ou conceitos, o que demonstraria estarmos todos limitados
Após estes testes, um homem presente, contando por volta dos 50 anos,
com uma negativa simpática, simplesmente dizendo que esta ideia não fazia sentido
para a neurociência, para quem atenção estaria ligada a ‘foco’. Um pouco mais tarde,
este mesmo homem questionou a respeito de certas sensações (um dos temas da aula era
neurose”. Mais uma vez ela disse que não, que na verdade se tratam de sensações
outro aluno, que eu também situaria em seus 55-60 anos, que pediu ao primeiro que não
primeiro argumenta que gostaria de ouvir o que a neurociência tem a dizer sobre a
psicanálise. O debate entre os dois não foi além, é verdade, mas saí dessa primeira aula
com uma sensação curiosa: na zona sul do Rio de Janeiro com uma assistência de classe
média-alta, alguém que fazia uso de um vocabulário psicanalítico viu-se fora de lugar,
mostravam uma tensão entre dois temas que foram objeto de ampla popularização em
Este homem que falou em ‘neurose’ e ‘atenção flutuante’ não voltou para as aulas
sobre a saúde e a boa gestão do cérebro e do corpo, da que ao caráter ‘negativo’ das
certa neurociência – avança sobre uma gestão da vida, sobre um bom gerenciamento do
cérebro, cuidados com a saúde cerebral e, como procurei demonstrar, sobre um discurso
de si, justamente intervindo sobre o órgão no qual se pretenda que este ‘si’ resida. No
limite, qualquer área do comportamento humano pode ser visada e adestrada por alguma
misterioso, muitas vezes tratado como a grande caixa-preta do corpo humano. Uma
se mostrando, além de um discurso poderoso, que encontra eco e campo fértil entre o
como a produção artística, é tanto fruto do esforço de quem a produz, como do tempo
no qual surge – e que gera as condições de possibilidade para que determinados pares de
como uma luva sobre o que estou chamando de cerebralismo – nada mais do que um
superior em relação ao resto do corpo. Some-se o lugar social ocupado pelo cérebro na
temos como resultado um espaço sob medida para diversos níveis de tradução entre um
Avatar? Este conjunto, que talvez não pudesse soar mais heterogêneo, compartilha a
diversas. Segundo os críticos, a escola de samba não foi bem em seu desfile. O enredo
teve destaque positivo, mesmo entre uma série de problemas; ela era composta por 15
homens que vestiam uma fantasia nas cores preta e prata, e se chamava “Os neurônios”.
pessoa ser canhoto, o que isso representa no cérebro, qual a mudança genética que faz a
pessoa ser canhoto?”.119 A reportagem ganha um tom jocoso, que termina em futebol,
devido a uma crença corrente nesse esporte de que os canhotos tendem a ser muito
119
Não voltarei ao tema, mas no primeiro capítulo comentei o texto de Hertz (1980[1909]), que
discute a possibilidade de questões simbólicas, religiosas e culturais serem também
determinantes no que diz respeito à preeminência da desteridade. A reportagem/entrevista
citada aconteceu no jornal Bom dia Rio, que vai ao ar pelas manhãs na Rede Globo de
Televisão.
220
cinema. Trata-se de uma presença de tal modo abrangente que qualquer pretensão a dar
conta do fenômeno como um todo seria frustrada; por isso sublinharia a exemplaridade
primeiro momento, distantes entre si, mas que, assim pretendo, compõem o pano de
contemporânea e também permite estabelecer pontes entre o que se diz sobre o cérebro
e valores mais amplos relacionados a uma certa noção de pessoa. Se abrirmos o ângulo
da lente com a qual miramos, percebe-se que dados em princípio isolados estão,
também eles, conectados, formando uma grande rede. Assim, o que pode parecer um
mero conjunto de artefatos isolados em circulação entre uma cultura leiga mostra-se um
produto social, que reflete e afeta o ethos cultural (cf. Nelkin e Lindee, 1995, p. ix).
Minha aposta é a de que tais fragmentos podem ser dados etnográficos tão
importantes quanto qualquer levantamento mais sistemático, desde que fique claro o
que possuem em comum e a razão pela qual este formato se impôs à coleta de dados
impuseram outra postura etnográfica, na qual era necessário manter um radar atento em
sentido amplo, do cérebro. Muitos dados foram ativamente procurados por mim,
enquanto outros me caíam nas mãos no que parecia ser obra do acaso. Mas não acredito
ser o ‘acaso’ uma boa explicação para o conjunto de dados que fazem referência – direta
Estes ‘personagens’ fazem hoje parte da cosmologia espontânea que atravessa uma certa
visão de mundo, o que se reflete na comunicação de massa. O que soa casual, frente a
Uma coleta não sistemática, neste caso, fala sobre a natureza do objeto de
análise. É claro que este formato está relacionado ao meu recorte etnográfico. Tivesse
apenas para citar um exemplo, e os caminhos seriam, obviamente, outros. Mas a opção
mais adiante, já que nem sempre ele está em destaque nas manchetes de uma
uma ‘verdade científica’ algum ponto relacionado ao tema abordado. Por vezes eu
outras, era pego de surpresa em um momento de lazer ou descanso. Alguns dados eram
alguma leitura casual ou presenteados por amigos que sabiam do meu interesse pelo
222
tema.
Época ou Isto É – poderia trazer alguma menção ao cérebro, o mesmo valendo para os
científicas, com páginas específicas sobre o tema, caso, por exemplo, de O Globo e do
jornal Folha de São Paulo. Ainda assim, não cessava de me surpreender com a
neurociência.
têm um formato de “caixa preta” (cf. Latour, 2000), já é um dado da ‘natureza humana’
2009, um voo da Air France que fazia a rota Rio de Janeiro-Paris caiu no Atlântico,
comunicação, inclusive uma matéria de capa Revista Veja, que falava sobre estatística
de segurança no espaço aéreo, como era a vida de alguns daqueles passageiros, entre
outras questões. A reportagem informa que 13 milhões de pessoas voam por dia, e os
números mostrariam que é mais fácil morrer em decorrência da picada de uma abelha
223
Durante a reportagem, o tema não será mais abordado através deste prisma
cerebral. Não há qualquer outra menção a localizacionismos como este, e não se lança
– para sustentar o que foi dito. Com isso não quero dizer que o cérebro cai de
‘paraquedas’ na reportagem, mas sim que uma afirmação dessa natureza pode ser
lançada como fato, sem maiores justificativas. O tema é uma tragédia aérea; a menção
na mídia, teria passado por estas linhas da mesma forma como por outros parágrafos
apresentados na reportagem.
Veja121, um leitor de livros digitais lançado pela empresa Amazon em 2007, o cérebro se
faz presente mais uma vez. Discute-se em duas páginas se a leitura neste formato é
entrevista com Maryanne Wolf, apresentada como “uma das maiores especialistas na
área da neurociência que estuda os efeitos da leitura no cérebro”, tem quase o mesmo
120
Veja, edição 2.116, ano 42, n.23, 10/06/2009, na reportagem “A dor, o medo... e os
números”, p. 76-88.
121
Veja, edição 2.139, 18/11/2009, caderno especial sobre tecnologia, p.178-79.
224
menos taxativas e declarações que mostram ainda não haver comprovação dos dados;
isso ocorre quando a revista questiona a neurocientista a respeito de suas pesquisas, que
futuros, mas “ainda” não existentes. Se eles existem para o caso da relação entre
cérebro, indivíduo e internet, não haveria por que não imaginar que dados possam ser
sentido às palavras. Esse mesmo roteiro pode levar até 100 vezes mais
tempo, caso a pessoa não tenha o hábito de ler. Seu cérebro fica tomado
com a tarefa básica de decodificar o texto – e não consegue ir muito
além disso.
laboratórios são retratadas pela neurocientista como uma ‘foto nítida’, o que transmite a
ideia de imagens que falam por si e retratam uma realidade auto-evidente, quase como
se não precisasse ser interpretada. Seria possível, então, ver no cérebro os efeitos dos
diferentes tipos de leitura, assim como se pode ver o medo acontecendo, no caso da
tecnológico; de diferentes formas, saberes sobre o cérebro são lançados para explicar a
texto sobre a respiração, indica-se respirar de forma lenta e profunda, porque assim se
cuidados com o cérebro que passam por cuidados com o corpo. Assim como uma
respiração mais lenta, certos alimentos são indicados para preservar a saúde deste órgão.
Dicas de comportamento, que incluem novas posturas tanto físicas quanto morais,
cuidados e atitudes quanto à gestão do cérebro que podem garantir mais saúde e
122
Revista Veja, ano 42, n.49, na reportagem “Pausa para respirar”, p.182-190.
226
de capa sobre a importância da alimentação para manter uma boa saúde, a revista Época
correlaciona uma lista de alimentos com quatro itens para os quais eles podem ou não
Tão comuns quanto as reportagens sobre temas diversos que trazem, de alguma
forma, o cérebro como um coadjuvante são aquelas nas quais ele é a manchete. Mais
semana, inclusive enquanto esta tese é finalizada. Neste sentido, o trabalho de campo
nunca acabou. Em um dos exemplos mais recentes, a revista Veja traz em sua capa o
rosto de um homem jovem, com uma ‘entrada’ em sua testa para um pen-drive. A
manchete anuncia, em um formato que mostrarei ser comum, que foram descobertos
“Os segredos da memória: a ciência desvenda os mecanismo do cérebro que nos fazem
mente sem lembrança, citado anteriormente, no qual uma empresa presta serviços para
preservá-la. Pesquisas recentes permitem vislumbrar o dia em que será uma realidade a
123
Revista Época, n.574, na reportagem “Comer bem para viver melhor”, p.72-80.
124
Revista Veja, edição 2.147, ano 43, n.2, 13/01/2010. Esta chamada de capa refere-se a uma
reportagem interna chamada “A conquista da memória”.
227
modificada na parte interna da revista em que se encontra a matéria, agora como uma
científica:
Uma ilustração interna mostra duas cabeças lado a lado: na primeira, estão
neurais”, a ideia de que várias áreas, por vezes distantes entre si, estão envolvidas em
conotações negativas. Implica frieza ou cálculo – como se o mesmo órgão não fosse
responsável por processar as emoções”. Por certo, neste aspecto, cérebro e coração
ainda parecem manter uma instável diarquia enquanto órgãos responsáveis, nesta
ordem, pela razão e pela emoção. Trata-se de uma representação poderosa, que não
228
parece abandonar nossa visão de mundo mesmo frente aos esforços da neurociência
para demonstrar que ambos são gerados no cérebro. O termo ‘cerebral’ ainda guarda
uma conotação específica, que por vezes não inclui as emoções ou as improvisações,
como podemos ver em dois exemplos. Um deles encontrei em uma, por assim dizer,
Descrito como cerebral por quem não vê mais longe do que o próprio
nariz, ao contrário, Lévi-Strauss tinha uma sensibilidade rara para o
mundo material. As descrições que faz em Tristes Trópicos [Cia. das
Letras], a minúcia com que conhece bichos, plantas e constelações e os
faz figurar nas suas análises de mitologia, sua recuperação da lógica do
sensível no livro O Pensamento Selvagem [Papirus], tudo isso atesta,
para quem o sabe ler, a convergência rara da inteligência e da
sensibilidade. 125
musical mais “cerebral” recebe sinal positivo, em contraste ao “jorro intuitivo” de uma
lado, razão e inteligência, e, por outro, intuição e sensibilidade. Como afirmou Martin
125
Manuela Carneiro da Cunha, em texto especial para a Folha de S. Paulo, publicado em
8/11/2009, intitulado “Grande homem, grande pensador”.
126
Revista Piauí, n.30, março de 2009, no artigo “Milhas à frente”.
229
(2000), uma visão de mundo não se modifica somente porque uma batalha parece ter
imagens, via de regra, mostram diferenças entre cérebros, argumentando que se trata de
uma expressão de diferenças entre tipos de pessoas (cf. Dumit, 2004). Algumas destas
pesquisas são amplamente divulgadas na mídia. Uma delas tem como chamada
principal uma frase que sintetiza bem a pretensão destas imagens coloridas do cérebro
esta chamada, anuncia-se uma pesquisa que teria “descoberto que os homossexuais são
mais parecidos com pessoas do sexo oposto”, justificando biologicamente, ou, mais
traduzidas por legendas, que “nos homens homossexuais e nas mulheres heterossexuais,
há mais atividade dos neurônios na amígdala esquerda”, e menos atividade nesta mesma
Alguns temas abordados neste formato mereceriam, apenas para a sua discussão,
toda uma tese. Estão sendo “mapeadas” em pesquisas que envolvem técnicas de
– no caso desta última, a sua origem física no cérebro tem sido especialmente objeto de
Concluo esta sessão afirmando, mais uma vez, os seus limites. Um levantamento
127
Não pretendo me estender sobre este tema, que foi amplamente analisado por Joseph Dumit
(2004).
128
Revista Veja, ano 41, n.25, 25/06/08, p.168-69.
230
exaustivo na mídia poderia renovar, a cada mês, o volume de exemplos citados aqui.
Algumas peças publicitárias também fazem parte do que se apresenta aqui como
têm no cérebro um órgão crucial, ainda que seja importante levar em conta as nuanças
apresentadas, conforme os produtos ou ideias que estão sendo divulgadas. Com isso
quero dizer que tais mensagens se aproximam, em graus diferentes, de uma concepção
exemplo, situa a mente no cérebro ou, pelo contrário, celebrá-lo. De qualquer forma, em
sendo um tema que passa a fazer parte mais frequente e importante em nossas
ideias e valores.
veiculado em um formato sedutor, como cabe a uma mensagem publicitária. Por outro
divulgação de ideias da ciência sobre o cérebro e a sua circulação entre o público leigo.
Atento a isso, Dumit lembra que “None of us really come as strangers to the brain, since
the foundational metaphors of brain science pervade popular culture, and have for some
time” (Star, 1992, p. 205 apud Dumit, 2004, p. 141). A publicidade não cria relações
com o cérebro a partir do nada; nestas mensagens, cristalizam-se noções que já circulam
vender um produto ou divulgar uma ideia. A presença deste órgão, seja em qual
fácil e direta. Fosse o cérebro um estranho ao público leigo, ele sequer seria utilizado
Os formatos e as razões para esta presença são vários, assim como os produtos e
faculdade, e uma rede neural pode ser apresentada em um contexto no qual se valoriza
uma concepção de pessoa que nega uma determinação neurológica para a relação entre
Apresentei no capítulo anterior uma peça de teatro infantil na qual atores davam
mundial, adaptado para o Brasil por uma agência de propaganda que atua no país.
nova variedade do refrigerante, mas parecem não chegar a um acordo a respeito das
propriedades do produto. O olho, que diz “saber ler”, afirma se tratar de uma “coca-cola
zero” a garrafa do produto em sua frente; duas línguas retrucam que o sabor “é de coca-
cola”. Obviamente, trata-se de uma estratégia para divulgar a ideia de que esta versão do
refrigerante não difere em sabor do seu original. Os olhos veriam uma diferença no
rótulo que o paladar não pode acusar. Interrompendo este breve debate, entra em cena
então um cérebro, que apresenta uma face humana, com olhos, boca e mesmo pequenos
tom de voz grave, reclamando: “Vocês estão me dando dor de cabeça. Se vocês não se
entenderem, você vai lamber sabão e você descascar cebola. É o sabor de Coca-Cola
com zero açúcar. Fui claro, inúteis?”. Aparentando uma certa vergonha, olho e língua
fecha a discussão, o cérebro desautoriza os órgãos que discutiam, mas sem desmentir as
quem, no limite, pode definir com maior precisão no que consiste uma determinada
experiência sensória.129
129
O comercial da Coca-Cola zero está disponível na internet em
http://www.youtube.com/watch?v=nk7fWDLkIRc
233
inicia com uma animação do que seria o ambiente interno do cérebro, mostrando um
comunicam, o que é representado por uma espécie de brilho ou luz que vai atravessando
o corpo das células, seus dendritos e axônios. Enquanto isso, o áudio apresenta ruídos
que lembram pequenas descargas elétricas, enquanto ouvimos uma locução em off:
do indivíduo que supera uma situação adversa. “Força do pensamento” não seria o fluxo
desafiado. Note-se ainda que, nesta representação muito peculiar das relações entre
cérebro, corpo e capacidade individual, diz-se que aquilo que “a ciência diz os meus 100
‘eu’ nesta frase, o que sugere a noção do cérebro como pessoa. Mas, ao mesmo tempo,
constrói-se a ideia de uma polaridade entre aquilo que diz “a ciência” e as capacidades
neurônios, mas sim algo que diz respeito a uma dimensão subjetiva representada pela
apresentação nuançada desta determinação direta, está mais próximo de uma exceção do
que da regra. Em outra campanha publicitária, reforça-se mais uma vez uma
fundamental do sistema nervoso. É com humor e com o cérebro que uma faculdade
Um anúncio de jornal mostra um homem relativamente gordo, com a barba por fazer,
deitado em um sofá, bocejando, com um controle remoto nas mãos, como se estivesse
assistindo à televisão. Ele veste uma espécie de pijama branco em duas peças, que
recobre todo o corpo, deixando de fora somente a cabeça e as mãos. Na parte superior
da roupa, na altura do peito, lê-se a palavra “neurônio”, numa clara alusão à ideia de que
interpretado por Sylvester Stallone, aparece treinando para uma luta, em uma sequência
de grande esforço físico, que culmina na subida de uma escada. Desta vez, trata-se de
todo vestido de branco, desta vez mais magro, carrega no peito a palavra ‘neurônio’, a
130
Também este comercial pode ser visto na internet em
http://www.youtube.com/watch?v=e7_5tqOHMxY
235
única coisa que o identifica enquanto tal. Finda a sequência de imagens de esforço
físico, uma voz em off afirma que “Está na hora de colocar esses neurônios pra
ser preguiçoso, algo descuidado e obeso (a gordura corporal aqui está atravessada pelo
sinal negativo que a marca, ao menos entre as classes médias), ou levantar-se desta
letargia, neste caso muito mais magro, estudar e ‘trabalhar’. Vale para o neurônio o que
Esta campanha da faculdade Unisuam atravessou o meu caminho mais uma vez,
em uma ação de marketing que estava sendo conduzida como parte deste esforço de
mesa ocupada por mim e alguns amigos. Eles vestiam uma camiseta com a palavra
por eles fosse respondida corretamente, eu ganharia uma camiseta semelhante à que eles
vestiam. A questão era simples, e eu voltei para casa com um souvenir deste inesperado
na ideia de que o neurônio seria a sede da inteligência, ou, eventualmente, seria uma
pessoa.
garoto-propaganda, o que por certo sinaliza o espaço midiático que vem sendo
131
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=m5HpWWqGWQo
236
conquistado por alguns profissionais da área. Entre os comerciais que compunham uma
Nicolelis, cujas pesquisas a respeito de possíveis interfaces entre cérebro máquina vêm
ganhando grande notoriedade, a ponto do cientista ser cotado para receber o prêmio
Nobel e escolhido para estrelar uma campanha publicitária. Nicolelis foi considerado
pela revista Época um dos 100 brasileiros mais influentes do ano de 2009, e vem
Caros Amigos.
câmera, que ele inclusive ajusta em um certo momento, manipulando o foco, ele diz:
“Minha avó me dizia: nunca desista, transforme os seus sonhos em vôos, como Santos
Dumont. Infelizmente, pra voar na ciência, eu tive que voar pra longe do Brasil, mas fiz
descobertas que podem fazer um dia uma pessoa voltar a andar ou tratar o mal de
Parkinson. Falta agora usar a ciência para transformar a realidade social do meu país.
Vó, estou voando; desistir...” e o neurocientista faz sinal negativo com a cabeça.132 Em
off, ele continua a sua fala, dizendo “essa é a minha vida, esse é meu clube”, seguido
ilimitado e pode ser pra você”, enquanto se lê na tela “Nextel, bem-vindo ao clube”.
tecnologia de comunicação que ele está representando na peça publicitária. Para além de
direção contrária, pode-se imaginar que isso consiste em uma valorização do próprio
132
Em uma entrevista concedida a revista Caros Amigos, Nicolelis afirma ser a avó uma
inspiradora intelectual.
237
Nextel, dizendo um texto simpático sobre a sua avó a respeito de seguir seus sonhos”133.
produtos relacionados a uma proposta de gestão do cérebro. Neste caso, não se trata do
uso do cérebro ou neurônios como motivos que animam uma mensagem comercial, mas
devido aos meus constantes acessos neste sítio fazendo uso de palavras-chave como
‘cérebro’ e ‘neurociência’, surgiu na tela uma publicidade com o seguinte texto: “Quer
dicas sobre como manter o seu cérebro em forma? Visite a academia do cérebro”.134
Uma ilustração mostrava um senhor com aspecto de cientista ou professor, com cabelos
brancos, óculos e jaleco apontando para as palavras “brain gym” (ginásio ou academia
cereal da empresa Kellogg, chamada “Live Bright” (viva com brilho), uma “brain health
bar” (barra de saúde do cérebro), “uma maneira gostosa de ajudar o seu cérebro a se
Quem não quer um pouco mais de força cerebral? Ajude a manter o seu
cérebro em forma com livros, palavras-cruzadas, estimulantes cerebrais
(brain teasers), e, claro, nutrição apropriada. As barras Live Bright™ da
Kelloggs™ são um ótimo início. Cada barrinha contém 100 mg de DHA
Omega-3, um nutrient importante que ajuda no apoio à saúde do cérebro.
133
A fonte pode ser encontrada pela ligação
http://www.suzanaherculanohouzel.com/journal/2009/9/10/neurocientista-agora-e-garoto-
propaganda.html
134
Fui levado então à seguinte url:
http://www.amazon.com/gp/feature.html?ie=UTF8&docId=1000256971&ref=dsp_adv_2068
88875_28318173)
238
Mas o que considerei mais interessante é que esta nova página, também do site
encontrei na página, cada uma levando a um novo produto que poderia ser encontrado
e linhas dos chamados alimentos funcionais. Uma nova série de itens era indicado a
outra chamada “Tome a sua porção diária de DHA”, que levava a salmão, vitaminas e,
mais uma vez, à “barra de saúde cerebral”. Essa experiência na internet mostrou-me o
quanto a ideia de saúde cerebral parece ter se tornado um bem passível de consumo, a
partir do momento em que passa a ser encarada como um aspecto da saúde que pode ser
produtos voltados para o cérebro, o que inclui o material encontrado no site da Amazon,
com destaque para uma grande indústria editorial de livros que trazem curiosidades,
dicas ou modelos de auto-ajuda, que podem estar mais identificados ao que Ortega
manter o cérebro em boa forma –, mas que pode estar relacionado também à ideia do
cérebro como o órgão cuja fisiologia está diretamente ligada ao prazer, como
Em dezembro de 2009, chegou aos cinemas o filme Avatar, dirigido por James
tornou a maior bilheteria da história do cinema, seguido por Titanic, do mesmo diretor.
Quando vi o trailer do filme, programei uma sessão como trabalho de campo, porque o
moderna. Resolvi então inserir neste último capítulo um esforço descritivo e analítico
do filme, visto se tratar de uma mensagem que chegou a milhões de pessoas no mundo,
ambientalistas, que se passa no ano 2154, quando os humanos já teriam esgotado boa
240
parte dos recursos naturais na Terra (apesar deste planeta não aparecer em nenhum
ainda que o planeta estaria atravessando uma crise econômica de grandes proporções, o
que de fato ocorria no ‘real’ planeta Terra quando do lançamento do filme. Frente a este
chamado Pandora, ambos submetidos aos interesses de uma corporação que dita ordens
e paga as contas. O principal motivo seria a exploração de um minério precioso que tem
o nome – não sem ironia – de unobtainium, o que poderia ser traduzido como ‘algo que
não pode ser obtido’. O minério em si não parece ter o mesmo valor para uma
civilização nativa local, os Na’vi; mas a necessidade de que estes últimos fossem
deslocados de sua vila, uma árvore-casa sob a qual se descobrira a maior jazida de
unobtainium, será motivo de tensões, desacordos e violência por parte dos exploradores
alienígenas.
filme, e fica claro desde o início que eles não economizariam no uso da força; por sua
vez, os cientistas têm uma postura diplomática e, de alguma forma, antropológica: eles
buscando entender a sua forma de vida e os traços essenciais daquela cultura. Mas fica
claro que o objetivo desta postura é, no limite, ganhar a confiança dos nativos para
135
Com exceção do protagonista central do filme, Jake Sully, o fuzileiro que será convertido à
causa dos Na’vi, e uma piloto do grupo.
241
mantêm contato com os nativos encarnados não em seus corpos, mas em “avatares”,
corpos semelhantes aos dos habitantes de Pandora (de pele azul, maiores em tamanho e
mais fortes que os humanos, com os ossos ‘naturalmente’ reforçados com fibra de
carbono), produzidos geneticamente a partir de uma fusão entre DNA humano e Na’vi.
Esses corpos são controlados apenas pelo humano que emprestou seu material
semelhantes – que impediria que estes fossem, por assim dizer, ‘pilotados’ por outro
humano. Em outras palavras, uma pessoa é igual a um avatar. E aqui começam mais
lugar de seu recém-falecido irmão gêmeo, um cientista (“PhD”, informa o filme) que
estava sendo treinado para operar um desses avatares. Com a morte acidental do irmão,
o seu gêmeo é convidado a substituí-lo, inclusive porque ele seria o único a poder fazer
isso, devido à coincidência de material genético. A conexão entre humano e avatar dá-se
136
Não havia tempo para uma longa pesquisa a respeito da origem etimológica do termo
‘avatar’. Mas encontrei uma referência que indica uma conotação de caráter religioso:
“Avatar é o boneco de Deus na Terra. Do sânscrito Avatara (que significa "Descida", no
sentido "do céu para a terra"), esse nome se refere à manifestação de uma deidade em nosso
mundo. Há duas formas de Avatar: o direto e o indireto. Direto (sakshat) é quando o Deus
aparece diretamente, seja como Vishnu, seja como o arbusto flamejante pra Moisés. Indireto
(avesa) quando investe de poderes uma pessoa, como ocorre com Jesus, Krishna, Buda,
Vasudeva, etc.” (disponível em http://somostodosum.ig.com.br/
conteudo/conteudo.asp?id=09439) (acessado em 25/01/2010) O termo tem sido amplamente
utilizado para designar uma representação de um indivíduo em superfícies virtuais, sejam
redes sociais ou jogos; cria-se um personagem que é o seu ‘avatar’.
242
‘piloto’ que tem o seu avatar, antes da primeira conexão do principal protagonista, pede
que ele “esvazie a sua mente”, com um tom de ironia, já que ela o considera
despreparado para a missão, alguém sem treino e potencialmente truculento. Tão logo o
herói Jake Sully ‘acorda’ em seu avatar, um cientista o saúda com a frase “bem-vindo
ao seu novo corpo”. Explica-se então que esta conexão só é possível quando os sistemas
especificamente uma sincronia entre cérebros e sistemas nervosos como um todo. Não
se trata de um cérebro transplantado, mas de uma unidade entre dois corpos diferentes,
possibilitada através da unidade neural estabelecida, mediada por uma máquina. Eles só
seu sistema nervoso. No momento tenso em que se dá esta primeira conexão, um dos
cientistas tem nas mãos uma tela onde se vê de forma isolada o cérebro do protagonista
central do filme, e ele afirma “gostei deste cérebro, tem muita atividade”.
243
Figura 15 – acima, o personagem central do filme ‘acorda’ pela primeira vez em seu avatar, o
seu “novo corpo”; abaixo, a semelhança de traços faciais entre uma das cientistas e o seu avatar,
entre os quais se diz haver uma sincronia entre sistemas nervosos.
Duas questões são interessantes para se pensar o filme como parte de uma
dentro do corpo do avatar. Sem qualquer explicação mais refinada, percebemos que há
uma chave explicativa no sistema nervoso central: na primeira conexão entre o ‘herói’
do filme e seu avatar, há um claro destaque para a coincidência biológica entre ‘corpo
137
Este aspecto não é, em representações cinematográficas, exclusividade de Avatar. Na
verdade, o cinema americano tem sido fértil em produzir histórias nas quais cérebro equivale
à mente, e onde aspectos como a memória têm uma localização clara e material, podendo
inclusive ser apagados, como é o caso de Brilho eterno de uma mente sem lembrança. Para
uma análise de alguns destes filmes, ver Ortega, 2006.
244
chamado Substitutos (Surrogates, estrelado por Bruce Willis), que teve sua estréia em
data próxima a Avatar, os seres humanos já não se relacionam mais a partir de seus
corpos originais, que ficam seguros em casa conectados a uma máquina, mas sim por
meio de robôs comandados à distância, que poderiam ser considerados seus avatares. A
aparência destes robôs-avatares pode ser ou não semelhante ao do seu dono, o que
permite ter substitutos mais jovens, ou onde correções físicas do corpo ‘original’
possam ter sido feitas. Não entrarei em detalhes a respeito da trama policial deste filme;
o que me chamou a atenção após tê-lo assistido foi um comentário postado no blog do
A mesma relação é construída em outro sítio na internet, em texto não assinado, entre a
138
http://www.sidneyrezende.com/noticia/62547+o+que+bruce+willis+tem+em+comum+com+u
m+neurocientista+brasileiro [postado em 02/11/2009] [acessado em 03/12/2009]
245
No primeiro texto, afirma-se que o filme Substitutos teria o “dedo” das pesquisas
desenvolvidas por Nicolelis; no segundo, tal pesquisa seria um possível primeiro passo
cai bem em filmes de ficção científica. O que tais comentários parecem perder de vista é
que alguns dos temas de fundo trabalhados por estes filmes, como a coincidência entre
mente e cérebro, e a redução da pessoa a este órgão, não seriam novidades do início do
século XXI. Nestes casos, mais uma vez, o pressuposto é o de que uma figura
neurociência contemporânea, e não, como defende Vidal (2005, 2009), uma figura
questões cerebrais no filme não param por aí. O segundo ponto a destacar é o de que a
metáfora cerebral de maior impacto do filme está relacionada a uma questão de ordem
139
http://www.acidezmental.xpg.com.br/a_ciencia_do_filme_avatar.html
246
nativos de Pandora.
faz uso também da imagem de uma grande cidade para explicar como funciona a rede
passagem, ela menciona ter abandonado a ideia de que o cérebro pode ser comparado à
certa forma isso vai incluir também toda organização social dos Na’vi – e uma rede
neural. É importante destacar que Pandora é uma espécie de paraíso idílico, no qual os
Na’vi vivem em uma espécie de conexão biológica com o meio ambiente natural. Além
de altos e azuis, outra característica central de seus corpos é uma espécie de feixe de
fibras que saem de seus cabelos (no limite, da própria cabeça), através do qual eles
estabelecem uma conexão com os cavalos que montam e com animais alados com os
quais estabelecem uma relação pessoal. Os feixes que saem dos Na’vi e dos animais se
comandos passam a ser dados mentalmente, o que nos remete mais uma vez a uma
e praticam seus rituais, a cientista vivida pela atriz Sigourney Weaver explica aos
investidores e militares como funciona a biologia da floresta naquele planeta, após uma
Caso você não saiba, aquelas árvores eram sagradas para os Omaticaia
[o nome de um grupo específico entre os Na’vi] (...) Eu não estou
falando de algum tipo de “religião pagã”, estou falando de uma coisa
247
real, de uma coisa mensurável pela biologia da floresta. (...) O que nós
deduzimos é que há algum tipo de comunicação eletroquímica entre as
raízes das árvores... como as sinapses entre os neurônios. E cada árvore
tem 10 mil conexões com as árvores em volta; e deve haver um trilhão
de árvores em Pandora. (...) São mais conexões do que o cérebro
humano. Entendeu? É uma rede, uma rede global, e os Na’vi podem
acessá-la, eles podem fazer upload e download de dados... memórias, em
lugares como os que você acabou de destruir.
investidora, que ironiza o fato de cada árvore ser sagrada naquele local. Não se trata de
entender os rituais coletivos dos Na’vi em torno de certas árvores nos seus próprios
termos, mas sim em termos científicos. Os rituais passam a fazer sentido para a cientista
quando ela consegue encontrar uma explicação de caráter científico para o que está
acontecendo; ou seja, uma explicação na qual razões são subsumidas a cadeias causais
demonstráveis pelo método experiental. 140 O tom pejorativo com o qual se fala de uma
“religião pagã” é substituído por uma teoria científica a respeito de uma relação
mensurável: a natureza é como uma rede neural, na qual as árvores se comunicam nos
mesmos termos que neurônios e sinapses. Mais do que isso, a própria população local
possibilita pensar que, na ficção Avatar, é como se todo o material vivo do planeta
milhões de espectadores mundo a fora. O maior sucesso da história do cinema faz parte,
tese.
140
Esta redução do ritual à ciência foi uma análise emitida pelo meu irmão Rafael Azize, a
quem deixo crédito e uma dívida aqui.
248
abrangente disciplina. Ao olhar para trás, e refletir sobre as origens das pesquisas
1985; Clarke e Jacyna, 1992; Finger, 2000; Herculano-Houzel, 2002; Abraham, 2005;
Valenstein, 2005). Um dos meus objetivos aqui é aplicar, ainda que de forma
aqui analisada), buscando compreender justamente em que sentido ele pode reproduzir e
ao mesmo tempo realimentar uma visão de mundo na qual a própria ideia de uma
equivalência entre cérebro e indivíduo ocupa uma posição importante, senão central.
Já em tom conclusivo, destaco nesta última sessão o que acredito ser uma
afinidade eletiva entre duas ordens de discurso cujo parentesco não é evidente: o da
empresarial, por um lado, quanto, por outro lado, à postura que se espera de um
corporação e mesmo do sistema capitalista como um todo, por outro (Malabou, 2008)142;
desempregado), por um lado, e por outro a forma como idealmente um sujeito deve
141
Estou pensando no momento que Boltanski e Chiapello (1999) chamam o “terceiro espírito
do capitalismo”, que seria “isomorfo ao capitalismo mundializado” (p.57), sistema no qual a
renovação tecnológica é central e reengenharia, fusões, cortes, flexibilidade, terceirização e
rápidos movimentos de adaptação a novas circunstâncias de mercado são palavras e valores
centrais. Para a dupla de autores, não existiria somente um “espírito do capitalismo”, mas
vários, e o conceito consiste em um “conjunto de crenças associadas à ordem capitalista, que
contribuem para justificar esta ordem e a sustentar, legitimando-as, os modos de ação e as
disposições que são coerentes com elas” (ibidem, p.46). Procurei demonstrar em um artigo
(Azize, 2009) que o cinema contemporâneo tem sido fértil em produções que criticam este
momento do “terceiro espírito”, denunciando a ampliação da insegurança profissional na
direção dos quadros executivos das empresas, atingindo extratos médios e altos.
142
Quando boa parte desta sessão já estava avançada, encontrei no livro de Catherine Malabou
(2008) uma perspectiva muito semelhante, e passei então a lhe ser devedor. Um exemplo
interessante a respeito do caráter político e cultural de representações sobre o cérebro – e
problemas que elas podem trazer – foi já trabalhado aqui e está também citado por Marc
Jeannerod justamente no prefácio ao livro de Catherine Malabou: “Lembramos as
dificuldades enfrentadas no período napoleônico por Franz Josef Gall. O seu sistema,
subdividindo a mente em faculdades distribuídas entre diferentes áreas do cérebro, era visto
pelos poderes dominantes como uma ameaça à unidade e à estabilidade do estado”
(Jeannerod, 2008: xi).
250
conseguem evoluir
O trabalho de Martin faz eco com a tese de Lópes Ruiz (2004), na qual ele
corporativo:
que é responsável pela sua carreira, que pode “investir” bem ou mal nela, que pode
cultivar o seu “capital destreza” (Lópes Ruiz, 2004), como se fosse “o proprietário de si
251
mesmo como um portfólio de ações” (Martin, 2007). Minha hipótese é a de que este
conjunto de valores de alguma forma está presente também em discursos de difusão dos
no qual o assunto central são softwares e jogos eletrônicos para o que se chama
uma última peça está sendo encaixada pela mão de uma pessoa. Na manchete, lê-se, em
formato de pergunta e resposta: “Você pode virar um gênio? O que há de verdade nos
novos jogos que prometem melhorar o desempenho do seu cérebro – e são cada vez
mais vendidos”. O princípio por trás destes jogos, conforme se afirma no texto da
matéria, é o de que “seu cérebro funciona como um músculo. Quanto mais usá-lo, mais
forte ele ficará”, e a prática de esportes é utilizada como um exemplo de referência 144.
Especialistas na área são citados para sustentar a ideia de que “Qualquer forma de
atividade de aprendizado é boa, pois ela desafia o cérebro, e o cérebro gosta de ser
desafiado”. Em outra passagem, um neurocientista afirma que “Quase tudo pode ser
Um jogo eletrônico tem o objetivo de treinar os usuários para “extrair o máximo de seu
fazem ressonância entre si. O órgão passa a ter determinadas características positivadas
143
Revista Época, n. 512, 10 de março de 2008, p.66-72.
144
Não me deterei sobre esta relação entre uma bio-ascese e uma espécie de neuro-ascese, que
mostra um paralelo da cultura do culto ao corpo com a do culto ao cérebro. Sobre este ponto,
ver Ortega (2009).
252
a ele são atribuídos determinados valores que recebem um sinal positivo em nosso
Isso mostra que a produção de discursos científicos sobre o cérebro não está fora de um
fluxo de metáforas que estão em circulação muito para além dos muros dos laboratórios,
“mito” de que só usamos 10% do nosso cérebro, tentando também identificar de onde
essa crença teria partido. Em sua opinião, a dificuldade em aceitar a ideia de que na
verdade usamos todo o nosso cérebro pode estar na “pergunta inevitável de quem estava
habilidades?”. Concordo com ela, mesmo que partindo de outras referências para
estar aí refletidos nesta teoria hoje superada sobre o percentual que usamos do nosso
cérebro. Mas o texto sobre neurociência suscita ainda outras reflexões possíveis
Façamos agora uma pequena experiência com a resposta que a própria autora fornece:
outro lugar. Na parte sublinhada, troquemos neurônios por pessoas. Agora, lembremos
dos laços humanos. Neste novo formato, se ele fosse possível, o trecho de Suzana
Amor líquido, ambos de Zygmunt Bauman, no qual o autor analisa a fluidez dos laços
em comum é uma leitura de como laços são estreitados ou desfeitos com maior fluidez
em nosso tempo.
Parece longe de ser casual o fato de que uma neurocientista como Suzana
neurociência parecem ecoar entre si. Não tive acesso às palestras elas mesmas, mas o
recompensa” parecem servir como uma luva ao espírito do tempo. O cérebro, como já
disse Le Breton sobre o corpo, é rascunho, passa a ser visto como algo da ordem do
moldável, do gerenciável.
Você pode ter o controle do seu cérebro, assim como é importante não perder o
controle da sua carreira. Este cérebro moldável é passível de auto-gestão, assim como os
popularização. Talvez essa relação entre valores explique por que a neurocientista mais
conhecida no país entre o público leigo venha sendo convidada a dar palestras para
grandes corporações. Motivações, o uso do bom estresse, evitar o mau estresse e outros
gerenciamento daquilo que as ciências do cérebro afirmam ser a grande fonte do self.
cérebro é, quanto àquilo que se diz que podemos – e devemos – fazer com ele, há uma
forte afinidade entre tais discursos e um outro que diz respeito aos ideais de
melhor lugar para pensar esta relação do que os espaços – objetos, lugares – de
255
corpo organizado de regras para uma higiene cerebral, e de como isso pode influenciar o
nosso ‘estilo de vida’. Há uma afinidade eletiva entre conceitos centrais para a
que se atribui a eles, quanto a certas metáforas utilizadas para explicar o que esse órgão
faz – e certos valores positivados na cultura contemporânea. O cérebro seria, então, uma
(Malabou, 2008:40).
indivíduo ou pessoa em nosso tempo, mas sim mostrar através de que equivalências
esse processo se instala. Não basta dizer que o cérebro está sendo humanizado, no
sentido em que se fala dele como um indivíduo sujeito autônomo; temos que pensar a
socialização do natural; são sim ambas devedoras de valores que correm no espírito do
Considerações finais
que faz de nós o que somos – prescinde de qualquer oficialidade que tenha declarado
século XXI. Uma leitura físico-moral, quer do cérebro em si (Vidal, 2005, 2009), quer
do sistema nervoso em termos mais amplos (Duarte, 1986), antecede o ufanismo que
Mas isso não significa que não seja pertinente investigar novas faces de um
fenômeno nem tão jovem assim. Pelo contrário, o que procurei sublinhar aqui é que os
imensamente, isso sem falar nas relações que podem ser estabelecidas com o espírito de
cada tempo.
eventualmente pode substituir outras concepções de pessoa, está longe de ser uma
novidade no campo das investigações sobre o cérebro, mas conta hoje com novas
ideias que circulam frequentemente pela mídia de massa – e apontam projetos anteriores
formulação recente, como demonstrei – tem a forma de uma super disciplina que serve
de guarida a várias outras especialidades, desde que haja interesse no cérebro por parte
dos profissionais envolvidos. De certa forma, é como se a ciência autorizada para falar
do cérebro e o próprio órgão tivessem algo em comum: a neurociência pode falar sobre
“a vida, o universo e tudo o mais” porque o cérebro seria responsável por tudo aquilo
que o ser humano faz e sente. Uma ciência hegemônica para um órgão hegemônico.
espécie de neurobiologia do espírito, estavam a olhar para outros cérebros; não porque o
órgão em si tenha mudado, mas porque por certo mudou todo o contexto simbólico que
o cerca. Não se trata, é claro, de uma característica exclusiva dos discursos sobre o
diferença sexual como produto de uma agenda política nova, em um mundo no qual era
preciso justificar a diferença entre os gêneros em novas bases. O órgão permanece, mas
os olhares lançados sobre ele são outros, o que faz toda a diferença.
desta investigação, no sentido em que propõe ser o cérebro a própria fonte do nosso
sentido de pessoa. Nesta estrutura epifenomenal, não se trata de negar a idéia de mente,
cérebro.
fazendo uso das ideias disponíveis no mercado, ponto que talvez tenha sido
258
exaustivamente sublinhado nesta tese, não por descuido, mas pela sua importância.
Como sublinha Jeannerod (2008, p. XIV), “The brain itself has not changed. (…) What
macroscopic interactions over which the brain has little influence”. As metáforas para
como matéria-prima o acervo semântico e simbólico que nos rodeia; isso vale
especialmente (ou ao menos fica mais evidente) para os momentos em que um corpo de
(Fleck, 1979).
Quando a neurociência quer ser lida como “filosofia de rede na varanda”, faz-se
neurônios passam a ser “bolinhas cheias de fios” (para crianças), o cérebro passa a ser
como uma metrópole ou como uma floresta, corpo e cérebro dançam uma ciranda de
mútua influência. No sentido inverso, como vimos na análise que propus para o filme
Avatar, é uma floresta que passa a ser como o cérebro. Seja qual for a direção na qual
caminha a metáfora, o cérebro fica parecido com a natureza, com nossas cidades ou com
já esperado. Não me parece ser essa a grande novidade apresentada aqui, ainda que
aspecto que me parece mais interessante é a conexão entre essa idéia de ‘doenças do
cérebro’ e as imagens da natureza. Meu esforço foi o de demonstrar uma ligação direta
reequilíbrio natural ‘cá dentro’ das pessoas, a ser atingido justamente por uma
intervenção no cérebro. Trata-se de um aparato simbólico que torna mais palatável, mais
O que se insinua, e agora quero afirmar de forma mais taxativa, é a relação entre este
continua sendo ali reproduzido; mas, desta feita, se trata de uma interioridade
parecem dizer as imagens, passam por algo que se dá no cérebro e possui algum grau de
materialidade.
praias, jardins e pássaros livres de uma gaiola, que relacionam o uso de psicofármacos a
certos males seriam ‘doenças do cérebro’, não se dá sem oposições, mais ou menos
como pessoa viceja não sem resistências, ou, melhor dizendo, em convivência tensa
nova, assim como não o é o fenômeno da sua divulgação entre um público amplo. Já a
hoje já com raízes profundas em nosso cotidiano foi na verdade plantado na transição
entre os séculos XIX e XX. Em outras palavras: por um lado aquilo que é apresentado
subjetividade humana – não é pretensão recente; por outro, todo um vocabulário que já
hoje parece incrustado em nossa ‘natureza cerebral’ e entrou para a linguagem cotidiana
funcionamento do cérebro.
por esta tese, que eu mesmo poderia chamar de falhos, mas prefiro encará-los como
de história da neurociência – como não poderia deixar de ser – e mais recentes ainda os
investimentos que incluíssem uma análise mais refinada do contexto social e político no
que ser feitas, e muito resta ainda sobre o que trabalhar. O material analisado de
Procurei concentrar esforços sobre material produzido no Brasil. Mas, nesta linha, há
muito material acumulado em minha estante, e por certo muito mais fora dela,
especialmente no que diz respeito à ponte que se estabelece entre a divulgação científica
e a autoajuda, sob títulos como “mantenha o seu cérebro vivo”, “deixe seu cérebro em
forma”, “transforme seu cérebro, transforme sua vida”, e muitos outros. Um diálogo
Salem, 1992) é um esforço ainda por ser feito. Na última sessão do capítulo 4 ensaiei os
cérebro como se apresenta hoje é uma boa metáfora para o que encontrei: cada ponto
Afinal, o que busquei em todos os aspectos desta etnografia foi este espaço no
qual o discurso científico e o leigo quase se tocam, como se fosse uma conexão
sináptica. Também esta forma de comunicação soa contígua, mas não contínua (ou um
aperto de mão com luva, como definiu Greenfield), no sentido em que, por mais que se
vocabulário esotérico em jogo, palavras que entram para a vida cotidiana, mas cujo
moderna ocidental. A opção por não priorizar formas mais eruditas de discurso a
na mídia de massa foi consciente: era justamente a amplitude da difusão de idéias sobre
o cérebro, e como este órgão ganha hegemonia nas representações de uma suposta
que usa e ressignifica saberes neurocientíficos passa a fazer parte do acervo semântico
do qual fazemos uso no cotidiano para falar sobre saúde e doença, assim como emoções,
As representações do cérebro são sempre produto do seu tempo, por mais que
todas elas pareçam inscritas em uma suposta natureza das coisas, assentadas em uma
fisiologia que sempre foi assim. Política, religião, economia, mundo do trabalho são
alguns dos temas com os quais a noção de ‘pessoa’ que emana de discursos sobre o
cérebro/indivíduo ideal. Talvez, como afirma Geertz (1989), não faça sentido perguntar
simbolização; mas parece fazer sentido afirmar que as representações do cérebro – mais
simbólico no qual estão inseridas. Pois, se uma hegemonia do cérebro não é nova no
que diz respeito a quem dita as ordens no corpo, a divulgação de novas idéias sobre este
em marcha. Trata-se de uma concepção letrada e científica de pessoa, mas que parece
estar em ampliação para círculos cada vez mais abrangentes. É isso que tentei mostrar
aqui: longe dos fóruns científicos, o cérebro e as ciências que dele se ocupam ganham
fenômeno humano; além disso, as ciências do cérebro passam a produzir uma espécie de
bula para o bem viver, um conjunto de regras para quem queira buscar mais
mundo, assumindo assim uma vocação intervencionista (cf. Russo e Ponciano, 2002).
antropológicos, especialmente a respeito das classes médias onde vicejaria uma cultura
individualista nas áreas urbanas, hoje não me parece exagero falar em uma
e social, que passa a informar com um vocabulário e saberes específicos uma forma de
entender as mais diversas faces do comportamento. É claro que, no caso dos discursos
mais internalizadas, nas quais se aceita um ponto inerentemente mais vago para a
localização da personalidade, responda ele pelos termos mente, alma ou como se queira.
De forma coerente com uma sociedade na qual o discurso científico ocupa uma posição
que avança pelos sentimentos e emoções. Mas neste trabalho fiz uma ressalva que
acredito ser importante a estas hipóteses. Não se trata de substituir certas linhas mestras,
continuam operantes como ideais no discurso neuro-psiquiátrico, mas eles são usados
no contexto de uma linguagem fisicalista que tem hoje no cérebro um foco, e por isso
vontade; neurônios são apresentados como indivíduos agentes autônomos, que podem
contemporâneo.
cérebro passa a ser lócus de uma série de cuidados de si. Neste caso, as chamadas
tecnologias do self ganham uma faceta bastante peculiar, com um desenho quase literal,
já que self e cérebro se confundem no discurso que gera equivalências entre órgão e
espaços cada vez mais prestigiosos, e que atingem um público cada vez mais abrangente
vigilante sobre um órgão que se mostra com alguma relutância às novas tecnologias? É
aí que entra a importância de uma perspectiva que trata a mente e seus ‘produtos’ como
epifenômenos. Metáforas são construídas para que se tenha acesso a uma imagem
possível de como o ‘órgão do espírito’ funciona; o cérebro, então, pode ser ‘como um
músculo’ – e não por acaso se escolhe como equivalente algo que pode ser exercitado,
que podemos ver crescer (ou não), de manifestação claramente física, e justamente em
corpo, passou a ser um rascunho sobre o qual podemos fazer escolhas, e não mais um
uma série de aspectos, seríamos também a expressão das tensões entre nature e nurture.
neurociencia não se limita mais a dizer quem nós somos, e passa a difundir idéias sobre
como devemos ser, se quisermos esticar nossa saúde no tempo, ou ganhar mais
qualidade de vida.
sistema de divulgação científica como o que foi analisado aqui, o foco não está nos
responsáveis pelo prazer que sentimos nas ações as mais corriqueiras, através de
termos mais abrangentes que instaura uma nova pedagogia. Ela pode ser explícita, como
A busca pelo bem-estar e pela qualidade de vida, por se manter motivado e por
manter o corpo saudável por dentro e por fora, que marcam a cultura urbana ocidental
neurocientífica.
tempo, que temos que buscar as fontes do discurso científico sobre o cérebro. Se cérebro
é quase hoje um sinônimo para pessoa em certas esferas discursivas, questionar-se sobre
uma identidade, em certo sentido, mais fluida, que pode se reinventar conforme novas
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