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TEORIA DOS PAPÉIS*

*Texto produzido pelos psicodramatistas Beatriz


Weeks, Carlos Rubini e Marta Echenique,
para uso em aula pelos alunos do IDH.

Moreno sempre se refere ao homem em situação, imerso no social e buscando


transformá-lo através da ação e, assim sendo, o conceito de papel, que pressupõe ação e
relação, é central na sua teoria. Ele estende o conceito de papel a todas as dimensões da vida.
“O papel pode ser definido como as formas reais e tangíveis que o eu adota. Eu, ego,
personalidade, personagem, etc... O papel é uma cristalização final de todas as situações numa
área especial de operações por que o indivíduo passou (por exemplo, o comedor, o pai, o
piloto de avião”. (Moreno, 1972)
A Teoria dos Papéis se sustenta sobre dois eixos essenciais: a espontaneidade em sua
dimensão individual e o fator TELE em sua projeção social.
Moreno define TELE como:
“Tele (do grego- distância, agindo à distância) foi definido como uma ligação
elementar que pode existir tanto entre indivíduos como também entre indivíduos e objetos e
que no homem progressivamente, desde o nascimento, desenvolve um sentido das relações
interpessoais (sociais). A Tele pode, assim, ser considerada como fundamento de todas as
relações interpessoais sadias e elemento essencial de todo método eficaz de psicoterapia.
Repousa no sentimento e conhecimento da situação real das outras pessoas. Ocasionalmente,
pode nascer de uma situação de transferência. Nossas averiguações mostram, nitidamente, que
o Tele existe sempre, desde o primeiro encontro, e que cresce de um encontro para outro.
Pode, por vezes, ser deformado pelas influências de fantasias transferenciais. Mas,
habitualmente, cada relação humana sadia depende da presença e eficácia do Tele. (Moreno,
Psicoterapia de Grupo e Psicodrama, 1975)
No Dicionário de Psicodrama e Sociodrama, temos a origem do termo “papel”:
“Conceito extraído por Moreno do teatro grego clássico, em que diversas partes dramáticas
eram escritas “em rolos”. Nos séculos XVI e XVII, quando o teatro moderno surgiu, os papéis
dos personagens dramáticos foram registrados em roles (fascículos de papel), a partir dos
quais cada parte da obra passou a ser um “papel”. Portanto, a origem do termo deve ser
rastreada no teatro, cujas perspectivas adotou, e não na psiquiatria ou na sociologia.”
(Menegazzo, 1995.)
É importante, entretanto, considerar a abrangência e importância do tema, ampliando
essa visão:
A noção do papel, não está ligada a um certo autor em particular, nem a um
determinado ramo das ciências apenas. No âmbito das Ciências Sociais diversos autores
trataram, não só do conceito de papel como também de sua função e importância dentro do
sistema social. Destacaram seu caráter psicossocial que influencia a formação da
individualidade e coletividade, pelos padrões de conduta individual e coletiva representados
pelos papéis.
Não há dúvida que este conceito oferece inúmeras possibilidades de investigação sobre
a relação indivíduo e sociedade, junto às disciplinas que tratam dos fenômenos pessoais e
coletivos, tais como a psicologia, a sociologia, a antropologia e a filosofia. Para muitos autores,
as teorias de papel são consideradas o ponto de ligação entre elas.
No teatro, o ator desempenha papéis diante de um público. Na vida real, em sociedade,
os indivíduos têm funções, determinadas por seu viver em coletividade, o qual se realiza pelo
desempenho de papéis. O conceito de papel é o ponto de união entre a dimensão individual do
ser humano e sua dimensão social. “todo papel é uma fusão de elementos particulares e
coletivos, é composto de duas partes: seus denominadores coletivos e seus diferenciais
individuais.” (Moreno, Fundamentos de la Sociometria - 1972).
O papel, conceito social, conecta-se com a espontaneidade, de cunho individual, como
síntese unificadora. Assim, Moreno definiu papel como a menor unidade observável de
conduta (pai, irmão, líder, jogador, bombeiro, patrão, etc...) e destaca o aspecto da dinâmica
inter-relacional através desta definição: „O papel é a forma de funcionamento que o indivíduo
assume no momento específico em que reage a uma situação específica, na qual outras pessoas
ou objetos estão envolvidos‟. (Moreno, Psicoterapia de Grupo e Psicodrama, 1975)
Vivendo em sociedade o ser humano tem necessidade de adaptar-se às normas de
convivência, chamadas de conduta, e adota papéis para desempenhá-las. Por vezes, escolhemos
papéis e por outras eles nos são impostos.
Em qualquer exercício de papéis, há influência do social, mas há também um campo
de especificidade e particularidade. Se não houvesse, não haveria transformação, movimento e
mudança na sociedade e no indivíduo. Para Moreno, isto só é possível, teoricamente, pela
existência do fator espontaneidade.
A originalidade teórica de Moreno é incluir o conceito de papel desde o
nascimento, afirmando que o eu surge dos papéis e não o contrário, e também na compreensão
do homem como um ser relacional e ser social.
Antes e após o nascimento, a criança, como já dito, vive em um mundo
indiferenciado chamado de Matriz de Identidade. É nesta matriz que a criança vai gradualmente
se constituindo. Os primeiros papéis a aparecer foram os denominados por Moreno de papéis
psicossomáticos.
“Os primeiros papéis a aparecer são os fisiológicos ou psicossomáticos. Sabemos que
entre o papel sexual, o do indivíduo que dorme, o do que sonha e o do que come, desenvolvem-
se vínculos operacionais que os conjugam e integram numa unidade. Num certo sentido,
poderíamos considerá-la uma espécie de eu fisiológico um “eu” parcial, um conglomerado de
papéis fisiológicos.” (Moreno, Psicodrama,1972)
Vemos nesta citação de Moreno, dois conceitos importantes. O primeiro é a
sinalização de que através dos papeis psicossomáticos a criança gradualmente vai tendo
consciência de seu corpo, ressaltando que os diversos papéis fisiológicos vão estabelecendo
vínculos e interligando-se. O segundo é o conceito de que os papéis criam conglomerados,
cachos.
Moreno divide os papéis em papéis psicossomáticos, sociais e psicodramáticos.

1-PAPÉIS PSICOSSOMÁTICOS

São assim denominadas as condutas relacionadas às funções fisiológicas (papel de


respirador, papel de ingeridor, papel de fonador, etc...). Esses papéis surgem da vincularidade
da matriz de identidade e relacionam o indivíduo com o meio. Sua principal finalidade é a
diferenciação do indivíduo, pois com eles começa a tarefa de superação da relação fusional com
o meio.
Esses papéis são responsáveis pela constituição do eu fisiológico e seu exercício
registra no cérebro, gradualmente, a imagem corporal do sujeito e as marcas emocionais ligadas
a elas, constituindo concomitantemente o psiquismo. Corpo e psiquismo se mostram aqui
inseparáveis.
Os papéis psicossomáticos se alicerçam na interação mãe–filho e na
complementariedade dos dois. Cada criança os vive de um determinado modo, dependendo das
atitudes e satisfações que encontra nos primórdios da identidade. Evolutivamente, cada papel
que surge tende a se aglutinar com outros, formando um aglomerado ou “cacho” de papéis.
A partir do modo pelo qual foram experienciados os papéis psicossomáticos e do
desenvolvimento de seus fatores T (tele) e E (espontaneidade) a criança continua o processo de
assimilação de novos aglomerados de papéis, sem que a princípio possa fazer distinção entre
papéis reais e papéis imaginários.

2-PAPÉIS PSICODRAMÁTICOS OU DA FANTASIA

Na fase de realidade total, a criança começa a imitar algumas formas de ação que
observa. Moreno diz que “o processo de construção de imagens e o processo de co-ação, na
adoção do papel do comedor, fornece-nos uma chave para as causas subjacentes no processo
de aprendizagem emocional, atribuído por alguns a imitação”. Portanto, para Moreno existe
um processo infantil de adoção de papéis e não imitação. “Essa adoção infantil de papéis
consiste em duas funções: dar papéis (doador) e receber papéis (recebedor)... A mãe, ao dar
alimento, aquece-se em relação ao filho para a execução de atos de uma certa coerência
interna. O bebê, por seu lado, ao receber o alimento, aquece-se para a execução de uma
cadeia de atos que também desenvolvem um certo grau de coerência interna. O resultado desta
interação é que estabelece gradualmente, uma certa e recíproca expectativa de papéis nos
parceiros do processo. Essa expectativa de papéis cria as bases para todo o intercâmbio futuro
de papéis entre a criança e os egos-auxiliares.” (Moreno, Psicodrama,1972)
Na fase da brecha entre fantasia e realidade, a criança divide o mundo em duas classes
de coisas - as reais e as imaginárias, aparecem dois tipos de papéis, os psicodramáticos,
também chamados de fantasia, e os sociais. Ela desempenha papéis de super-homem, mulher-
maravilha, fadas, duendes e outros para experimentar suas possibilidades de ser, ampliando seu
horizonte existencial e suprindo suas limitações. O exercício destes papéis, de diferentes
formas, nos acompanha durante toda vida, com funções de superação, de antecipação de novos
papéis e de transcendência.
Os papéis psicodramáticos ajudam a criança a experimentar aquilo que chamamos
“psique”. (Moreno, Psicodrama,1972)

3-PAPÉIS SOCIAIS

Com o desenvolvimento neuropsicomotor da criança, da inteligência e dos fatores E e


T, a função de realidade introduz uma mudança fundamental e uma nova etapa do
desenvolvimento infantil: o segundo universo. Moreno diz que a „função de realidade opera
mediante interpolações de resistência que não são introduzidas pela criança, mas que lhe são
impostas por outras pessoas, suas relações, coisas e distâncias no espaço, e atos e distâncias
no tempo.” (Moreno, Psicodrama,1972) Fica delimitado o âmbito da imaginação quanto ao seu
poder e função.
A criança já assimilou rudimentarmente os papéis que são representados
cotidianamente no contexto social. Cada um deles deixa entrever, por trás de sua manifestação,
a trama complexa dos papéis básicos em que se sustenta sua cultura e seu grupo social.
Ouvindo Moreno:
“Os papéis sociais desenvolvem-se numa fase subsequente e apoiam-se nos papéis
psicossomáticos e psicodramáticos, como formas anteriores de experiências.” (Moreno,
Psicodrama, 1972)
E ainda:
“Os papéis sociais contribuem para o que denominamos sociedade. (Moreno,
Psicodrama, 1972).
Os papéis psicodramáticos e os sociais correspondem a conjuntos diferenciados de
unidades de ação e mantêm uma tensão dinâmica, formando cachos ou aglomerados que se
transformam ao longo da vida do indivíduo.
Os psicodramáticos correspondem à dimensão mais individual da vida psíquica e neles
opera predominantemente a fantasia, enquanto que nos papéis sociais, opera principalmente a
função de realidade.
Na terceira fase da matriz de identidade com a presença das funções de realidade e
psicodramática, completam-se as condições para o surgimento do eu. Da dinâmica entre
aglomerados de papéis (psicossomáticos, sociais e psicodramáticos), que são comunicantes
entre si, através de “vínculos operacionais”, constitui-se o eu e o “si mesmo”.
Nessa fase adquire-se a capacidade de iniciar processos de aquecimento diferenciados,
para o desempenho espontâneo de um ou de outro tipo de papel, com a adequação da ação do
sujeito aos seus próprios papéis. Também a partir dessa fase inicia-se a possibilidade de
representação e inversão de papéis. Gradualmente, a experiência da realidade, vai somando à
adoção de papéis iniciados com os papéis psicossomáticos, as várias possibilidades de interação
dos papéis sociais e psicodramáticos.
O processo de desenvolvimento de um novo papel passa por três fases distintas, de
acordo com o grau de espontaneidade ou de liberdade:
1º- Role-Taking - é a tomada do papel ou sua adoção, que consiste em simplesmente
imitá-lo, a partir dos modelos disponíveis.
2º- Role-playng - é o jogar o papel, explorando simbolicamente suas possibilidades de
representação.
3º- Role-Creating - é o desempenho do papel de forma espontânea e criativa.
Toda dramatização, jogo ou qualquer técnica psicodramática, somente pode acontecer
quando papéis são colocados em ação e, através destes, personagens interatuam, se vinculando
como interlocutores. Não existe papel sem contra-papel. O grau de saúde – doença pode ser
medido pela capacidade da pessoa de inverter papéis ou experienciar o outro.
Como Moreno considera que o eu “é revelado pelo desempenho de papéis”, ele
privilegia sobremaneira, a técnica do role-playing, com todo seu desdobramento pedagógico
(aprendizagem e treinamento) e terapêutico. A finalidade do role-playing como jogo
psicodramático de papéis “é proporcionar ao ator uma visão do ponto de vista de outras
pessoas, ao atuar no papel dos outros, seja em cena, seja na vida real”.

REFERÊNCIAS
Menegazzo,CarlosMaria e outros.Dicionário de Psicodrama e Sociodrama,Àgora,1995
Moreno, Jacob,Levy. Fundamentos de la Sociometria, Buenos Aires,1972
------------------------ Psicodrama,S.Paulo,Cultrix,1972
------------------------ Psicoterapia de Grupo e psicodrama, S.Paulo,Mestre Jou,1975
------------------------ Quem sobreviverá? Goiania, Dimensão,1992
------------------------ Sociometria, S.Paulo,Febrap,2020

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