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Nascido no gueto: o jovem e a difícil tarefa de

“tornar-se pessoa” nas periferias do Brasil


24 de junho de 2015 | Fernanda Bassani

Para o filósofo alemão Nietzsche (2008), o processo de formação do indivíduo ao longo


da vida deveria ter por finalidade “tornar-se aquilo que se é”. Colocada em oposição à
tradição socrática do “conhece-te a ti mesmo” [1], essa máxima traz a possibilidade de
tomar a vida como uma obra e não como uma trilha previamente rascunhada, a ser
desvendada. “Tornar-se aquilo que se é” pressupõe sequer suspeitar aquilo que se pode
ou deve ser, em um jogo com o destino que une o “ser” com o “vir-a-ser”. Um exemplo
disso seria o trabalho do artista que, em geral, tem uma intuição inicial, mas cujo
sentido e significado de sua obra só se dão enquanto acontece o trabalho. Ao final, ele
se torna ao mesmo tempo autor e expectador, sendo a obra algo que resume uma nova
maneira de apreender o mundo.

Essa resumida explanação de uma premissa filosófica complexa abre espaço para uma
reflexão atual: como se dá o processo de “tornar-se jovem” nas periferias do Brasil
contemporâneo? Antes de mais nada é importante esclarecer que o “ser jovem” é uma
construção social Moderna, amparado em discursos das Ciências Humanas. Saberes que
se disseminaram no início do século XIX, a partir de necessidades governamentais de
conhecer a população urbana crescente, para manejá-la de maneira a garantir
produtividade econômica e ordem política, consolidando o sistema de produção
capitalista. Seja por práticas individualizantes – as técnicas disciplinares presentes na
escola, família, fábrica, etc. - ou por biopolíticas voltadas a conhecer e prever
fenômenos coletivos – tais como natalidade, morbidade, doenças, saúde, etc. – essas
estratégias deram origem a economia política e suas estatísticas produtoras de
realidades convenientes (Foucault, 1998).
Ao longo do século XIX, estes saberes acoplaram-se as conquistas em Direitos
Humanos, produzindo a noção de grupos sociais, diferenciados por suas
“especificidades” e unidos por uma igualdade desigual: a necessidade de ter direitos
preservados e deveres a serem cumpridos. Segundo Foucault (1988), esse movimento de
“estatização do biológico”, ajudou a consolidar noções do “sujeito que sou” ou o “tipo
de sujeito que sou”, conforme as mensagens disponíveis pelos padrões médico-psico-
sociais, mediados pela lei. Proliferou noções sobre a forma como devo ser
governado e como devo me governar, para não ferir o enunciado. A busca pelos
oráculos, como a psicologia, as técnicas espirituais, o estudo e demais discursos
potencializados pela mídia, tornou-se na Modernidade a forma de alcançar “A verdade”
sobre meu Eu. Como efeitos disso, instalam-se as dicotomias: o “cidadão de bem” em
oposição ao “bandido”, o “agressor” e a “vítima”, o “homem culto” e o “sujeito sem
cultura”. Abandona-se o convívio ambivalente com o trágico, que traria a possibilidade
de construir-se como pessoa pela experiência. A vida como obra de arte fica para trás.
Nesta esteira, o século XX marcou a emergência da noção de adolescente, como “um
ser em ebulição por impulsos e hormônios”. Trata-se de um “sujeito em formação”, que
deve aprender a civilizar seus instintos. Já a ideia de jovem, surge ligada as Ciências
Sociais, como um ser no auge da saúde, aptidão produtiva e utilidade social, mas
também com potencial de contestação. A associação entre jovem e violência, por sua
vez, é uma produção das décadas de 80 e 90, quando o jovem deixa de ser “o futuro do
amanhã” para ser “o problema de hoje” (Gonzales e Guareschi , 2008). Essa mudança
seria efeito da desregulamentação do mercado neoliberal, que produziu excedentes de
miseráveis, não mais atendidos por um Estado de Bem Estar Social, em retração na
América. No Brasil, trata-se do período em que as favelas se disseminam, abrigando
migrantes e o operariado desempregado, pressionados a ocupar as margens das grandes
cidades. Essa concentração da pobreza permite ao Estado Penal emergente (Wacquant,
2004) atuar de maneira seletiva, fazendo das periferias alvos de dispositivos marcadores
e punitivistas – como a polícia e a justiça criminal. Em que pese os criminosos
representarem uma parte pequena das periferias, esses espaços transformam-se em
ícones simbólicos da desordem e perigo.
Ao estudar a formação de periferias nos Estados Unidos, Wacquant (2004) utiliza o
conceito de gueto, para referir-se a um meio sócio-organizacional que usa o espaço para
maximizar os lucros sobre um grupo visto como pervertido/perversor e minimizar o
contato com seus membros. O gueto estabelece uma noção de limite informal com o
resto da sociedade, a partir de um encapsulamento institucional (criam-se instituições
internas para gerir precariamente o espaço, sem que seus membros precisem sair) e
do estigma, que é a diferenciação imposta aos seus moradores, pela construção de uma
identidade maculada. Apesar das favelas brasileiras diferenciarem-se dos guetos
norteamericanos por não possuírem como causa determinante a questão racial, mas sim
as desigualdades sociais (que, ao fim, acabam vulnerabilizando em sua maior parte
negros e negras), esse conceito auxilia a compreender o cotidiano dos jovens que são
alvo dos dispositivos punitivistas: os abordados pela polícia, os internados das
fundações sócio-educativas e os presos.
As barreiras invisíveis que cercam as favelas levam a um intercâmbio interno, fazendo
com que culturas como o samba, o hip hop e o funk proliferem-se, expressando o
cotidiano de discriminação e violência, mas também de solidariedade, alegria e
sensualidade. Porém o paradoxo entre os ícones hostis produzidos sobre o gueto e a
afinidade interna, gera uma ambivalência em seus moradores (Wacquant, 2004). Isso
porque os “iguais” diferenciam-se, sobretudo em relações – instáveis - entre os campos
da legalidade e ilegalidade. O campo da ilegalidade atravessa e constitui as favelas,
como forma de sobreviver ao abandono do braço social do Estado. Como exemplo,
pode-se citar desde as atividades criminosas do tráfico de drogas, até as estratégias
informais de consumo, driblando os deveres do Mercado (o transporte irregular, as
ligações diretas de luz e internet, etc). Estas últimas, por sua vez, não ferem noções de
“trabalhador” e “bandido”, que encontram-se fortemente demarcadas no interior das
favelas. Mas, a máquina de identidade coletiva única que o gueto engendra segue
produzindo uma só identidade para fora: a do criminoso, fortemente armado e que não
possui qualquer habilidade para o trabalho.
O jovem morador de periferias, talvez seja o que mais fortemente sinta os efeitos da
produção de identidades maculadas que o gueto atualiza. Ao diferenciar-se dos demais
jovens da cidade, pelo distanciamento espacial e simbólico e aproximar-se dos seus
“iguais” pela cultura, sente-se fortemente representado, por exemplo, pelo rapper que
ataca as forças policiais com suas músicas ácidas. A melodia realiza o duelo que ele não
pode honrar, quando foi revistado pela polícia, muitas vezes por uma simples
suspeição. Por outro lado, sente medo e raiva, quando se vê diante de tiroteios
provocados pelo tráfico de drogas, que perfuram as paredes de seu casebre, ao retornar
após um dia de trabalho e/ou estudo. A menina da favela, igualmente, sente-se atraída
pela musicalidade funk, que inspira seus sentidos, convocando-a a uma explosão
sensual. Por outro lado, sente-se violada, quando vê sua feminilidade reduzida a um
objeto a serviço da dominação violenta do chefe do tráfico, mensagem presente em
muitas melodias.
Mesmo separadas, as favelas mantém conexões sólidas com os fluxos da sociedade de
consumo, cujos convites difundem em suas expressões culturais. O Estado, incapaz de
atentar para a potência da indústria cultural periférica, segue enviando tropas de
abordagem policial e de controle social vigilante, a fim de monitorar os riscos de uma
juventude zombeteira e sensual. A maior parte dos jovens que frequenta os bailes funks,
veste-se como rappers ou reúne-se nas esquinas das periferias não são criminosos. Mas
sua proximidade com uma cultura vista como marginal, os coloca em uma encruzilhada.
Uma de suas opções é incluir-se em políticas públicas compensatórias, tornando-se
sujeitos subjugados em “oportunidades” de profissionalização para subempregos.
Relações que entendem sua criatividade e rapidez, produzidas pela sobrevivência em
condições precárias, como sinais de uma malandragem nociva. Ou então, podem optar
pela proposta mais reivindicada em tempos de debate sobre a redução da maioridade
penal: assumirem a identidade do “bandido”, projetada pela mídia, e atualizada pela
polícia, o braço do Estado que ele melhor conhece, desde que nasceu.

“Tornar-se aquilo que se é” para o jovem que vive em periferias brasileiras é uma
armadilha, pois a poesia que o sustenta abraça a morte, seja ela política ou física. Talvez
coubesse, nesse caso, um retorno a filosofia de Nietzsche, permitindo-se abraçar o
trágico da vida em favelas como potência criativa para seus jovens, ao invés de buscar
higienizá-la em torno de dicotomias modernas entre o “bem” e o “mal”.

Brazil, L. G. Do “conhece-te a ti mesmo” ao “torna-te o que tu és”: Nietzsche contra


Sócrates em Ecce Homo. Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 2º semestre de
2012 – Vol. 5 – nº 2 – pp. 30-45
Foucault, M. História da Sexualidade I: A vontade de saber. (20ª impressão), Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1999.
Gonzales, Z. K. Guareschi, N. M. Discursos sobre juventude e práticas psicológicas: a
produção dos modos de ser jovem. Brasil. Revista latino-americana de Ciências Sociais.
6(2): 463-484, 2008, http://www.umanizales.edu.co/revistacinde/index.html
Nietzsche, F. Ecce Homo. São Paulo, Companhia das Letras: 2008
Wacquant, L. QUE É GUETO? CONSTRUINDO UM CONCEITO
SOCIOLÓGICo. Rev. Sociologia e Política, Curitiba, 23, p. 155-164, nov. 2004

Fernanda Bassani, Psicóloga, Doutoranda em Psicologia Social e Institucional –


UFRGS

Atua no sistema penitenciário do Rio Grande do Sul há 10 anos

Email: febassani@hotmail.com

[1] “Conhece-te a ti mesmo” é uma frase supostamente escrita no templo do oráculo de


Delfos e que, mais tarde foi atribuída a Sócrates. Traz um pensamento complexo, que
orientou a civilização ocidental em torno da busca de verdades essencializadas.
Nietzsche por sua vez, propõe a convivência com o trágico e com a ambivalência, ao
invés do culto - e produção – de dicotomias entre bem e mal, por exemplo (Brazil,
2012).

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