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Adeus às ilusões “re”

Pivetes : encontros entre a psicologia e o judiciário / Cecilia Maria Bouças


Coimbra, Maria Livia Nascimento, Lygia Santa Maria Ayres, organizadoras;
Fonte:
Paula Saules Ignácio ... [et al.]
Curitiba : Juruá , 2008

Vera Malaguti Batista

A década de 70 do século XX produziu uma ruptura epistemológica na


criminologia, um deslocamento de paradigma e também de método e objeto. O
rotulacionismo produzido pela escola progressista americana (labeling approach)
já havia circulado para denunciar o crime como construção social e o criminoso
como identidade social degradada a partir da própria ação do sistema penal.
Assim, o objeto de estudo da criminologia não era mais o crime ou a
criminalidade, mas o processo de criminalização.
Mas o livro escrito nos anos 30 por Georg Rusche na Escola de Frankfurt,
desaparecido nos anos de chumbo da Europa, reaparece ao final dos 60 e é
atualizado por Otto Kirchheimer, passando a ser lido nos anos 70. 1 Punição e
Estrutura Social trata da adequação histórica dos sistemas penais do Ocidente
aos mercados de mão-de-obra no processo de acumulação de capital. Melossi e
Pavarini demonstrariam o vínculo funcional entre a fábrica e a prisão a partir da
Revolução Industrial européia2. A partir de Rusche e Kirchheimer, também
Foucault participa da ruptura criminológica demonstrando o poder simbólico e
configurador do sistema penal na seletividade com que opera contra as
ilegalidades populares. Ele vai ainda mais longe, desbravando os dispositivos
disciplinares para a constituição de corpos dóceis. No final de sua vida já estava
trabalhando com a idéia de uma estratégia ainda mais densa e capilarizada: o bio-
poder.
O certo é que, a partir dos 70, a criminologia crítica constitui-se como um
saber que deslegitima o sistema penal como solução à conflitividade social. A
1
Cf. Gizlene Neder in Nota introdutória à edição brasileira em Punição e estrutura social, de
G. Rushe e O. Kischheimer, Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2004.
2
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: origens do sistema penitenciário
(séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2006.
2

partir daquelas leituras já não se podia crer nas ilusões “re”: reeducação,
ressocialização, reintegração. Pelo contrário, a clientela do sistema penal foi
sempre a dos dessocializados, desintegrados, desclassificados. A prisão surge
como um grande fracasso nos seus objetivos explícitos, mas sempre um sucesso
para diferenciar, arrumar e controlar as ilegalidades. A justiça penal é construída
para o controle diferencial das ilegalidades populares.
A América Latina era um território de resistência nos anos 70, com a
incorporação da criminologia crítica e uma produção de alta qualidade. O olhar
latino-americano de Rosa Del Olmo mostra esse percurso no seu livro dos anos
70, A América Latina e sua Criminologia.3 Uma das categorias surgidas na nossa
periferia é a extensão do conceito foucaultiano de “instituições de seqüestro”
(prisões, escolas, asilos etc.) para a colônia em si; nosso continente seria um
“território de seqüestro”. A partir da lógica de incorporação ao capital central, os
ciclos econômicos constituem “moinhos de gastar gente”. 4
O fim do século XX e o começo do XXI apresentam uma atualização deste
processo de acumulação de capital: “a projeção genocida de um tecno-
colonialismo correspondente à última revolução (tecno-científica) faria empalidecer
a cruel história dos colonialismos anteriores”. 5 Aí está, diante dos nossos olhos,
uma realidade aterradora. Como os militantes anti-franquistas na Espanha, temos
que reconhecer que a “democracia”, pela qual tanto lutamos, tortura, extermina e
mata muito mais do que nunca.
Loïc Wacquant demonstra o gigantesco processo de criminalização da
pobreza nos Estados Unidos, a partir das novas estratégias de destruição do
Estado Previdenciário e da construção de um Estado Penal. 6 Alessandro De
Giorgi, nessa vertente crítica, trabalha a economia política da pena no
desemprego pós-fordista com a idéia de excedente. A pós-industrialização se
3
DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua Criminologia. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de
Criminologia/Revan, 2004.
4
Cf. Darcy Ribeiro in O pocesso civilizatório: estudos de antropologia da civilização. Petrópolis:
Vozes, 1987; e O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
5
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p.
122.
6
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de
Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2003.
3

apresentaria como uma explicitação do excesso de mão-de-obra, o regime de


excesso.7 O ponto nevrálgico do poder passa a ser então o controle do tempo
livre, energia viva. Ele fala dos novos dispositivos “à contenção de uma população
excedente e de um surplus de força de trabalho desqualificado; elas prescindem
explicitamente da consumação de um delito, das características individuais de
quem está envolvido nele e de qualquer finalidade reeducativa ou correcional,
para orientar-se no sentido da ‘estocagem’ de categorias inteiras de indivíduos
considerados de risco”. Ele se vale então da idéia de cárcere atuarial, a partir das
“representações probabilísticas baseadas na produção estatística de classe,
simulacros do real: imigrantes clandestinos, afro-americanos do gueto, tóxico-
dependentes, desempregados”. É o atuarismo penal que vai produzir as
metrópoles punitivas.
O prefácio de Dario Melossi para o livro de De Giorgi é uma aula de
atualização histórica da criminologia crítica. Ele parte do exemplo norte-americano
que, nos anos 70, num movimento direto contra a juventude rebelde dos 60,
começou a expandir massivamente a população carcerária e a população “sob
medidas”, submetida às autoridades “correcionais”. Esse processo vem se
intensificando de tal maneira, que nos Estados Unidos, a possibilidade de um
jovem afro-americano ser criminalizado já está se aproximando dos 50%! Ao
contrário do que previram os criminólogos críticos até os anos 70, o aumento nas
formas de probation (ou outras alternativas penais) ocorrem junto com a pena de
prisão. E não só isso, mais prisões e também regimes mais severos e
recrudescimento da pena capital.
O que me pareceu ainda mais importante para nós, aqui nas trincheiras da
periferia, é a discussão em torno da perda de sentido do “disciplinamento” no
mundo pós-industrial. De Giorgi demonstra como as instituições criadas na
modernidade para o ensinamento disciplinar vão perdendo a razão de ser. Em seu
lugar florescem as estratégias de armazenamento, incapacitação e neutralização.
Melossi chama a atenção para o tipo de emprego perdido nos anos 70 e 80:
“trabalhos relativamente bem pagos, estáveis, sindicalizados, em grande parte
7
GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro:
Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2006.
4

masculinos, com benefícios generosos de tipo assistencial e centrais ao processo


produtivo; ‘mas agora predomina’ um novo tipo de emprego, muitas vezes part-
time, flexível, com pouca ou nenhuma proteção, em grande parte feminino e
‘marginal’ ao processo produtivo”.8
Ele fala também dos ciclos econômicos do capitalismo e do embate
duríssimo que se deu nos anos 70, em particular nos Estados Unidos, contra os
movimentos de insubordinação (pacifistas, socialistas, Black Panthers, etc.). A
partir de Nixon, começa a circular a propaganda contra a “criminalidade”, ou a
insubordinação, ou falta de controle de determinados grupos sociais. Ele afirma
que mesmo em momentos de aumento de emprego repetiu-se o refrão do risco
social e sua eterna emergência. Essa circulação de idéias se intensificou nos
últimos 25 anos. O aumento da penalização é análogo a um processo geral de
disciplinamento para uma profunda “reengenharia” na economia: o salário médio
do trabalhador norte-americano foi reduzido em 20% no mesmo período.
Se a classe operária mais forte foi sendo expulsa do centro produtivo e
perdeu protagonismo, fortaleceram-se os intelectuais da virtualidade e a
mcdonaldização dos serviços.

O que pretendo afirmar, em outras palavras, é que o cárcere parece


perdurar obstinadamente como uma espécie de grande portão de
ingresso ao contrato social, ou mesmo como introdução à forma de
trabalho subordinado. É um pouco como se a descoberta dos
comerciantes holandeses (e de outros similares), no início do século XVII
– isto é, a descoberta de que eles podiam “utilmente” “pôr para trabalhar”,
juntamente com os seus capitais, os pobres, os mendigos, os
vagabundos, os ladrõezinhos, os rebeldes que o processo de
racionalização da agricultura estava expulsando dos campos –
continuasse a se reproduzir junto com a “colonização” capitalista de
“novos territórios”, territórios que podiam estar dentro de uma jurisdição
política e social específica. Um exemplo dessa situação é o
deslocamento dos negros americanos do sul para o norte dos Estados
Unidos entre o primeiro pós-guerra e os anos 1950, ou a entrada em
massa no mercado de trabalho das mulheres, especialmente as de cor,
dos anos 1970 em diante. Vale notar que as taxas de encarceramento
feminino nos Estados Unidos, embora ainda bastante baixa em termos
absolutos, aumentaram de modo sensivelmente maior do que para os
homens.9

8
GIORGI, Alessandro De. Op. cit., p. 17.
9
Op. cit., p. 21.
5

Os novos segmentos sociais vão constituir uma “classe operária em


formação”, inserida em novos processos de produção e sem sentido de si (ou
consciência de classe). Ele mostra como, também, ciclicamente, essa nova classe
será tratada como “perigosa”, “subproletariado”, “lumpen”, “underclass” pelas
velhas categorias operárias e avalizados pelos “comentários autorizados que se
encarregam de racionalizar esse ponto de vista”. Melossi conta que os
trabalhadores de Reggio Emília tinham uma palavra de ordem há cem anos atrás:
“unidos somos tudo, divididos somos canalha”.
Os ciclos do capitalismo se reproduzem nos sistemas punitivos:

O fato é que, quando isso acontecer, e la canaille não for mais a canalha,
este será também o momento em que novamente o cárcere será visto
como um resíduo arcaico do passado e serão previstas novas
“alternativas” punitivas, “correcionais” e “reeducativas”; ao mesmo tempo,
em algum canto do mundo, as primeiras patrulhas em busca de uma
nova “canalha” estarão começando a apressar-se, num incansável
movimento, em direção aos confins do contrato social/império. 10

Na periferia do capitalismo este processo social depara-se com 500 anos


de solidão. Os ciclos econômicos são moinhos de gastar gente, e principalmente
de gastar gente jovem. 11 Desde a conversão, genocídio e aniquilamento das
civilizações indígenas, passando pelos 400 anos de escravidão, assistimos a um
processo histórico de criminalização da infância e juventude pobre no Brasil. E, a
atual fase tecno-científica do capital está mesmo assustando a cruel história dos
ciclos anteriores.
No Brasil, o processo de criminalização da juventude indígena, afro-
descendente ou simplesmente pobre (como diria Joel Rufino dos Santos) constitui
longa permanência.12 No trabalho sobre a política criminal de drogas e seus
efeitos sobre a juventude popular, dei-me conta do olhar que permaneceu
incólume do Império à República. As formulações criminológicas de apoio ao
liberalismo econômico no século XIX desenvolveram a mirada lombrosiana, social-

10
GIORGI, Alessandro De. Op. cit., p. 23.
11
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
12
SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do social: como podem os intelectuais trabalhar para os
pobres. Rio de Janeiro: Global, 2005.
6

darwinista e perigosista. No entanto, ao estudarmos os processos, cem anos


depois, constatamos que as ficções científicas das “perversões” e as
características hereditárias do biologismo criminal foram sim histórias de miséria e
abandono.13 Pequenas infrações introduzem crianças e jovens a um processo de
criminalização que aprofunda e reifica o processo de “marginalização” ou
“exclusão”, dois conceitos perigosos para dar conta da miserabilização porque
“vitimizam” essa juventude. Temos que pensar essa energia viva, esse tempo livre
como uma categoria de força, uma potencia que é, na verdade, o grande e eterno
recalcado da história brasileira.
O fato é que, dos capoeiras aos funkeiros, uma parcela massiva da nossa
força jovem tem que ser controlada minuciosamente, da teoria à prática: do
correcionalismo ao ressocialismo, do cerco aos quilombos às blitzen e incursões
policiais. O inimigo é sempre o mesmo, construído através da história do medo
nas cidades.

No começo do século, analisando as soldadas 14, a impressão é de que


não havia escapatória possível para aqueles destinos: uma vez “caídas”
no sistema, não havia como fugir dos asilos, da polícia, do juiz ou das
soldadas. Esta impressão permanece no final deste século. O sistema em
si constitui-se numa armadilha. Através do discurso de “recuperação, da
ressocialização e da reeducação”, o que se percebe são os objetivos bem
claros: medidas de contenção social elaboradas com critérios bem
explícitos na sua seletividade.15

A atualização desse liberalismo no capitalismo contemporâneo é um


aprofundamento da barbárie. Os dados sobre a morte violenta de adolescentes no
Rio de Janeiro e no Brasil atestam uma realidade aterradora. Nos últimos dez
anos foram assassinados cerca de 35.000 jovens, apenas no Rio de Janeiro. A
cada ano são mortos, pela polícia, cerca de 1.000 jovens. A partir de 1994, ano
chave para a implantação e aprofundamento do neoliberalismo no Brasil, percebe-

13
BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.
ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2003.
14
Op. cit., p. 65 – “à soldada” era uma prática comum no começo do século XX, em que meninas
“abandonadas” eram entregues para trabalhar em “casas de família”. As famílias deveriam vestí-
las, calçá-las, alimentá-las e depositar mensalmente em caderneta da Caixa Econômica Federal
quantias que variavam de 5 a 10 mil réis, o que nunca se dava na prática. O que acontecia mesmo
era uma forma de permanência do trabalho escravo no pós-Abolição.
15
Op. cit., p. 130.
7

se uma progressão geométrica na criminalização, encarceramento e extermínio da


juventude popular brasileira. Estaríamos diante de um colossal filicídio.
Nesse quadro sombrio devemos dar adeus às ilusões re. O controle social
da juventude, essa energia viva para as utopias futuras, é construído na
articulação de um discurso sócio/médico/jurídico, entre a falta e a demonização:
entre a carência e a delinqüência. O menino pobre aparece como representação
“daquele que naturalmente cairá no crime”, se não for contido pela polícia ou pelo
voluntariado, ou pelos dois, na simbiose da prevenção/repressão. Dançar para
não dançar. Para a atualização da incorporação periférica ao capitalismo, é
necessário um processo muito mais letal de criminalização e aniquilamento. O que
deve ser neutralizado é justamente a potência transformadora da juventude
popular.
Na trincheira do judiciário, aonde desfila em massa nossa pobreza, temos
que trabalhar a partir do fim das ilusões. Se a criminalização é um processo
histórico de controle seletivo, nas instituições penais só podem avançar as
estratégias de redução de danos, transformando a terapêutica do correcionalismo
numa clínica política e libertária.16

16
Cf. a produção acadêmica e a clínica de Cecília Coimbra, Maria Lívia do Nascimento, Regina
Benevides, Eduardo Passos, Cristina Rauter, Silvia Tedesco e discípulos, enfim o conjunto de
reflexões oriundas da área de Psicologia da Universidade Federal Fluminense.

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