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DISCUSSÃO
Para circunscrever a presença da barbárie na atualidade é preciso
reconhecer, em primeiro lugar, que ela faz parte de um longo processo histórico
animado pelas forças de Tanatos. No início da Primeira Guerra, Freud já acusava
uma aliança indissolúvel entre progresso e barbárie, e não poupou tinta ao escrever
sobre sua decepção para com os intelectuais de língua alemã em seu escrito
Reflexões para os tempos de guerra e morte (FREUD, 1915a). Acreditamos que a
barbárie de nosso tempo, aponta para a repetição de desastres iguais ou
semelhantes ao que o mundo viveu no século passado, a experiência da
segregação e dos campos de extermínio, que tiveram como condição a
racionalidade técnica e científica.
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1930[1929], p.88), Freud nos coloca diante das relações dos seres humanos entre si
como causa do mal-estar na vida em comunidade, que diz respeito aos laços
sociais, ao ser humano na condição de vizinho, de ajudante, de objeto sexual de
outro, de membro de uma família, de um Estado. Um terreno no qual será difícil se
manter à margem de certas concepções ideais e chegar a estabelecer o que se
qualifica, estritamente, como cultural. É necessário aceitar que o traço cultural
esteve implícito já na primeira tentativa de regular as relações humanas. Um ponto
particularmente difícil, pois invoca o ser humano a se despir de algumas exigências
ideais em prol de apreender aquilo que é propriamente cultural. É possível afirmar
que o traço cultural esteja dado a partir da primeira tentativa de regulamentar essas
relações sociais, caso contrário ainda viveríamos sob o imperativo da força física. “A
convivência humana só se torna possível quando se reúne uma maioria que é mais
forte que cada indivíduo e que permanece unida contra cada um deles” (FREUD,
1930[1929], p.98). Ao adquirir o estatuto de direito, o poder da sociedade se opõe ao
poder do indivíduo, e esse é o passo cultural decisivo, como ocorre em Totem e tabu
com a união dos irmãos. A ideia é que com a civilização as leis não deixem ninguém
a mercê de uma força bruta. Assim, a civilização impõe suas restrições e a lei exige
que ninguém fuja delas. A primeira exigência cultural é a justiça, a garantia de que a
lei criada não será violada a favor de um único indivíduo. Num momento posterior do
desenvolvimento cultural, a lei deixa de expressar a vontade de uma pequena
comunidade - casta, camada de uma população, grupo étnico – que se comporta em
relação a outras massas, talvez mais amplas, de modo semelhante a um indivíduo
violento. A finalidade é originar um estatuto legal para o qual todos os capacitados a
conviver em comunidade tenham contribuído com o sacrifício de seus impulsos, de
modo a não permitir que ninguém seja submetido a força bruta.
Freud nos coloca diante de um paradoxo: ao mesmo tempo que o
desenvolvimento cultural é alicerçado na renúncia das pulsões, o que pressupõe um
quantum de insatisfação, de recalque, para a boa convivência em comunidade,
ainda há um resto de liberdade individual que tende a se satisfazer em detrimento da
massa. É o que causa a hostilidade contra a qual devemos lutar, que se faz cada dia
mais presente na contemporaneidade através do resgate dessa força bruta,
retratada aqui como barbárie.
Como visto, uma das peculiaridades da civilização é manter a ordem social.
Para isso faz uso de leis e normas morais e éticas com o intuito de regular a terceira
fonte de mal-estar: a relação entre os homens. É nesse contexto que deve ser
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algo que vem à tona no momento em ela se torna arrogante de si. Sua proposta é
oferecer uma resposta a destruição, saques e mortes, resultantes de um processo
civilizador que queria opor a barbárie ao modernismo. Deste modo, admite que
civilização e barbárie são duas máscaras “adversárias e cúmplices de uma mesma e
única humanidade” (MATTÉI, 2002, p. 158).
Assim, civilização e barbárie são conceitos que estabelecem uma relação
dual na qual a primeira produz a segunda. Em Freud, a civilização produz a barbárie
a partir excessiva supressão da agressividade. O autor postula em seus escritos a
respeito da tendência primitiva do homem a crueldade. O bárbaro que nos habita
busca destruir o mundo desconhecido que o provoca e fascina ao mesmo tempo.
Em seus escritos sobre a guerra, Freud afirma que a violência humana é
intrínseca à condição biológica do homem, “o horror à guerra é a expulsão das
sementes de barbárie de dentro de si mesmo” (FUKS, 2012, p.53) que se manifesta
nos conflitos de relação desde o mais remoto processo de civilização.
A invenção psicanalítica rompeu fronteiras com sua formulação teórico-
clínica, muitas vezes inspirada na diversidade da produção cultural – da obra de arte
à filosofia, da produção literária erudita aos periódicos populares –, e contribuiu com
as diversas áreas do conhecimento humano, transformando-se em objeto
privilegiado de análise e crítica desde a modernidade. Freud foi astuto ao apreender
teórica e tecnicamente as figurações do mal-estar que então se configuravam, bem
como os temores e compromissos que marcaram sua pertença nessa mesma cena
social. Sua escrita também foi tecida a partir do discurso do analisante, trazendo
questões de um sujeito singular que reconstituía os fragmentos íntimos da história. A
obra freudiana percorre os mais diferentes conhecimentos na tentativa de aproximar-
se de uma determinada condição humana. Constitui-se como um saber que parte de
diferentes registros: o inconsciente de seu preceptor, a clínica e a cultura. (MEZAN,
1985).
Assim, imerso em reflexões sobre a crítica da moralidade, absorto com os
efeitos da repressão na gênese das neuroses, Freud inicia suas considerações
sobre a civilização, traduzindo a profunda intimidade que mantém com os fatos de
cultura. Seu discurso acerca da cultura é uma lição sobre o conflito imanente à
condição humana. O mal-estar na civilização (FREUD, 1930[1929-30]) é a obra que
sustenta a originalidade da posição subjetiva descrita pela psicanálise. No decorrer
das oito seções que compõem o texto, é desenvolvida uma argumentação que
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uma regra, uma lei, que serve como obrigação. Contudo, na medida em que não há
um fundamento externo que a justifique, a lei retira força dela própria para exercer
sua autoridade. Neste sentido, é por exclusão de toda possibilidade física ou
coercitiva que a lei se constitui. A autoridade é dada por um valor simbólico,
autorreferente, que tal objeto eleito ocupa. O pai simbólico é o pai morto, aquele que
ocupa o lugar de exceção, o lugar de estrangeiro. É ele, o pai morto, que institui o
vazio em torno do qual gira o sistema democrático.
Lacan levou em conta a perda da potência paterna, mas isso não significa,
em nenhuma hipótese, que tenha minimizado a função paterna na ordenação do
psiquismo humano. Na teoria lacaniana, a noção de função paterna se inscreve no
conceito freudiano do complexo de Édipo. Embora, ao que tudo indica, seu conceito
do Nome-do-Pai tenha tido suas raízes na ideia de um declínio social da imago
paterna, foi, principalmente, a releitura do texto de Freud à luz da Antropologia
Estrutural de Claude-Lévi-Strauss que o levou a depositar no conceito de Nome-do-
Pai o aspecto simbólico da função paterna.
De Freud a Lacan, o pai ocupa uma função capital no discurso psicanalítico,
função que permanece viva atualmente apesar da presença maciça de um processo
de “desinstitucionalização”, do qual decorre a dissolução progressiva de seu papel
tradicional de autoridade. Mesmo assim, a função paterna continua sendo
imprescindível na organização mental dos homens e da cultura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: