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INTRODUÇÃO

Numa sociedade que se encontra em posição de questionamento frente a


todas as hierarquias, que vive sob um imperativo onde todos são iguais, tornando
difícil aceitar as diferenças, é possível observar a vivência de um aniquilamento
progressivo dos papéis tradicionais da autoridade e, ao mesmo tempo, a vivência de
um saudosismo em busca dessa mesma autoridade que foi aniquilada. Hoje os
papéis de autoridade são vivenciados de maneira frágil, constantemente burlados e
questionados.
Alguns episódios vivenciados em nossa sociedade apontam para a formação
de processos de não reconhecimento outro, atravessados pelo ódio e violência.
Como exemplo citamos a questão dos refugiados, cujo clímax foi registrado na foto
em que um menino sírio aparece morto numa praia da Turquia. Símbolo do horror de
uma tragédia que assola o presente da humanidade. Desde à Segunda Guerra
Mundial, essa é a pior crise de refugiados enfrentada no mundo e que nos coloca
diante da crueldade humana.
A prática da violência se exacerbou em todos os setores da vida cotidiana.
Uma sociedade dividida, cujo cotidiano violento é motivado por diferentes fatores:
diferenças ideológicas, sociais, religiosas, étnicas, pessoais, que podem acarretar
sequelas imensuráveis. A violência assassina não se encerra na ação do agressor
ou na morte da vítima. Suas sequelas são sentidas pelas testemunhas do ato, por
familiares e amigos que perdem o ente querido e por toda sociedade que se comove
e/ou vibra a cada notícia. Mortes que se tornam corriqueiras e apontam para uma
banalização da crueldade e suas consequências.
A história não cessa de nos apontar a presença desse tipo de ocorrências
desde a mais remota época, principalmente a partir da Primeira Guerra Mundial e
um pouco mais tarde com a invenção do extermínio durante a Segunda Guerra. Em
nosso tempo os assassinatos e matança generalizada são divulgados e propagados
rapidamente na web gerando as mais diversas respostas emocionais. Basta abrir um
site de busca e nos deparamos com as mais diversas situações que envolvem
violência e intolerância: filhos que matam os pais por diversas motivações, pais que
matam seus filhos ou que são cúmplices do cônjuge para encobrir abuso sexual e
homicídios, o aumento da divulgação de casos de violência sexual, os diferentes
casos de homicídio e feminicídio, briga entre vizinhos, morte de policiais, de pessoas
inocentes, a xenofobia direcionada aos negros, índios, refugiados e população
LGBTI+.
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Diante de uma crise humanitária onde milhares de pessoas foram obrigadas a


deixar seus lares em busca de refúgios em nome do direito à vida, nos deparamos
com uma multiplicidade de possíveis reações. Assim, associar os refugiados como
possíveis vítimas de violência motivadas pela disputa por terras, nos faz ir além e
refletir sobre segregação - ato de separar, isolar, desunir, afastar – e xenofobia –
desconfiança, temor ou antipatia por pessoas estranhas ao meio.
Toda violência presente nos atuais processos de deslocamento é pautada
em modelos políticos e culturais inspirados no racismo que supõe como natural e
hereditária a diferença e a desigualdade entre pessoas devido à existência de
uma raça superior às demais. Modelo reproduzido no caso dos imigrantes e
refugiados, que corrobora a existência do estereótipo de suspeito padrão nas
narrativas cotidianas e se concretiza como violência na passagem ao ato nos
casos de homicídios, extermínios contemporâneos reforçando a lógica do inimigo
interno e externo, que traduzem a existência de problemas sociais que não são
transformados. Dessa forma, os imigrantes e refugiados assim como outros
grupos condenados à invisibilidade social, como os negros, são o sujeito da nova
barbárie.
Empreendemos uma reflexão sobre violência, crueldade e destrutividade
humana à luz da psicanálise e disciplinas afins. Buscamos, sobretudo, investigar e
pensar alguns movimentos e atos de intolerância ao outro que acusam “o universal
do horror a diferença que habita a alma humana” (FUKS, 2014a, p.32) de forma a
circunscrever a presença da barbárie em nosso tempo e sua relação com o registro
da razão, competência técnica e desenvolvimento científico contemporâneos.

DISCUSSÃO
Para circunscrever a presença da barbárie na atualidade é preciso
reconhecer, em primeiro lugar, que ela faz parte de um longo processo histórico
animado pelas forças de Tanatos. No início da Primeira Guerra, Freud já acusava
uma aliança indissolúvel entre progresso e barbárie, e não poupou tinta ao escrever
sobre sua decepção para com os intelectuais de língua alemã em seu escrito
Reflexões para os tempos de guerra e morte (FREUD, 1915a). Acreditamos que a
barbárie de nosso tempo, aponta para a repetição de desastres iguais ou
semelhantes ao que o mundo viveu no século passado, a experiência da
segregação e dos campos de extermínio, que tiveram como condição a
racionalidade técnica e científica.
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A história do século passado pode ser tida como cristalizada na barbárie e no


trauma. O resto de violência que não se dissolve jamais esteve presente na
invenção do extermínio e suas máquinas de transformar cadáver em sabão.
Inaugurava-se, assim, o que alguns teóricos da cultura designam como “cultura do
extermínio” (PATURET, 2016), o cultivo científico, programado e sistemático, da
destruição do outro. Nessa designação – “cultura de extermínio” - encontram-se
juntos os registros de cultura e barbárie.
Nesse contexto é preciso apreender devidamente que ferramentas a
psicanálise possui para empreender uma crítica à cultura do século XXI e o que os
psicanalistas podem fazer para torná-la amplamente acessível a população mais
atingida pela barbárie. Propomos pensar a díade Cultura e Barbárie articulando-a ao
conceito metapsicológico do Pai, conceito que tem um caminho bastante peculiar de
formulação, por estar intricadamente ligado à violência estruturante que funda e
sustenta a civilização. Acreditamos que por esse víeis será impossível pensar a
barbárie como um acidente “regressivo” e o conceito de Pai torna-se, nesse
contexto, um viés específico que favorece a leitura dos textos que consignam a
concepção freudiana de Cultura e de Barbárie.
O tema da Cultura se faz presente desde o início da aventura psicanalítica até
os últimos textos das Obras Completas. A figura da cultura, fonte inesgotável de
sentidos diversos sobre a vida e a morte, e suas múltiplas vozes serviram de matéria
prima à elaboração da teoria freudiana, durante um período em que quase todos os
aspectos da vida social e das ideias sofriam grandes transformações no Ocidente.
Na esteira destas mudanças, Freud abandona a clássica concepção de uma divisão
entre psicologia individual e psicologia coletiva, colocando-as no mesmo espaço de
esclarecimento. De acordo com sua experiência clínica, passou a considerar como
fenômeno social toda e qualquer atitude do indivíduo em relação ao outro: a
experiência subjetiva, objeto privilegiado do trabalho analítico, implica,
necessariamente, na referência do sujeito ao outro (pais, irmãos, pessoa amada,
analista etc...) e à linguagem (Outro) que o determina simbolicamente. No plano do
coletivo, a vida social apenas apresenta unidades cada vez mais amplas, sempre
obedientes às mesmas leis que marcam o indivíduo. (FREUD, 1921).
Ao designar a cultura como “a soma total de realizações e disposições pelas
quais nossa vida se afasta da de nossos antepassados animais, sendo que tais
realizações e disposições servem a dois fins: a proteção do homem contra a
natureza e a regulamentação das relações dos homens entre si” (FREUD,
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1930[1929], p.88), Freud nos coloca diante das relações dos seres humanos entre si
como causa do mal-estar na vida em comunidade, que diz respeito aos laços
sociais, ao ser humano na condição de vizinho, de ajudante, de objeto sexual de
outro, de membro de uma família, de um Estado. Um terreno no qual será difícil se
manter à margem de certas concepções ideais e chegar a estabelecer o que se
qualifica, estritamente, como cultural. É necessário aceitar que o traço cultural
esteve implícito já na primeira tentativa de regular as relações humanas. Um ponto
particularmente difícil, pois invoca o ser humano a se despir de algumas exigências
ideais em prol de apreender aquilo que é propriamente cultural. É possível afirmar
que o traço cultural esteja dado a partir da primeira tentativa de regulamentar essas
relações sociais, caso contrário ainda viveríamos sob o imperativo da força física. “A
convivência humana só se torna possível quando se reúne uma maioria que é mais
forte que cada indivíduo e que permanece unida contra cada um deles” (FREUD,
1930[1929], p.98). Ao adquirir o estatuto de direito, o poder da sociedade se opõe ao
poder do indivíduo, e esse é o passo cultural decisivo, como ocorre em Totem e tabu
com a união dos irmãos. A ideia é que com a civilização as leis não deixem ninguém
a mercê de uma força bruta. Assim, a civilização impõe suas restrições e a lei exige
que ninguém fuja delas. A primeira exigência cultural é a justiça, a garantia de que a
lei criada não será violada a favor de um único indivíduo. Num momento posterior do
desenvolvimento cultural, a lei deixa de expressar a vontade de uma pequena
comunidade - casta, camada de uma população, grupo étnico – que se comporta em
relação a outras massas, talvez mais amplas, de modo semelhante a um indivíduo
violento. A finalidade é originar um estatuto legal para o qual todos os capacitados a
conviver em comunidade tenham contribuído com o sacrifício de seus impulsos, de
modo a não permitir que ninguém seja submetido a força bruta.
Freud nos coloca diante de um paradoxo: ao mesmo tempo que o
desenvolvimento cultural é alicerçado na renúncia das pulsões, o que pressupõe um
quantum de insatisfação, de recalque, para a boa convivência em comunidade,
ainda há um resto de liberdade individual que tende a se satisfazer em detrimento da
massa. É o que causa a hostilidade contra a qual devemos lutar, que se faz cada dia
mais presente na contemporaneidade através do resgate dessa força bruta,
retratada aqui como barbárie.
Como visto, uma das peculiaridades da civilização é manter a ordem social.
Para isso faz uso de leis e normas morais e éticas com o intuito de regular a terceira
fonte de mal-estar: a relação entre os homens. É nesse contexto que deve ser
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analisado o destino das pulsões no atual processo civilizatório marcado por um


panorama contemporâneo de ódio e violência dirigidos ao outro, ao próximo, ao
semelhante, aquele que com quem convivemos em comunidade e ao mesmo tempo
nos causa estranheza. Culmina com um alto índice de mortes decorrentes das mais
diversas motivações: amor, gênero, dinheiro, ciúmes, religião, racismo, política etc.
Um estado de caos e desordem que dá uma aparência de inexistirem instrumentos
que regulem o convívio entre os seres humanos.
A isto acrescentamos a globalização e as novas tecnologias que permitem o
acesso e convivência com uma pluralidade de culturas, destacando que uma atitude
considerada não civilizada em uma delas, pode ser perfeitamente aceitável em
outra. Também podemos recorrer a outras atitudes não-civilizadas, cruéis e
degradantes, como o triste episódio de Auschwitz, o terrorismo islâmico, as
ditaduras latino-americanas da década de 70, a exploração de mulheres e crianças,
a escravidão etc.
Homo homini lúpus1 se realiza em ações permeadas pelo ódio, crueldade
assassina e violência sem limite, nos colocam diante da barbárie.
Elementos constitutivos da modernidade, o par civilização e barbárie se faz
presente desde a Antiguidade, quando bárbaro se identificava com o estrangeiro,
aquele que vivia para além das fronteiras do mundo civilizado. Defendemos a tese
de que civilização e barbárie se fazem complementares. Ousamos afirmar,
inicialmente, que um não existe sem o outro. Na Modernidade “a barbárie se
inscreve na própria civilização, [...] o mundo regulado pela razão [...] produziria a
própria barbárie. [...] esta não seria mais o outro daquela” (BIRMAN, 2003, p.14). A
barbárie deixa de ser vista como uma “monstruosidade ilusória da razão sonolenta”
(idem, ibidem, loc.cit) e passa a ser considerada como sua legítima produção.
Do bárbaro considerado pelos romanos como o que ultrapassa os limites
políticos, jurídicos e morais, incluindo o uso de línguas e a prática de hábitos
diferentes dos que eram aprovados pelo império, ao bárbaro utilizado para identificar
ações e reações que se opunham aos princípios que regem a convivência pacífica
entre os povos, apontando para a crueldade das relações humanas. Mattéi (2002)
nos diz que “A disposição diametralmente oposta entre estes dois conceitos se
constitui num duplo somente explicável individualmente por oposição ao outro”
(MATTÉI, 2002, p.158). O autor defende a ideia de que a barbárie é uma fase
paradoxal à civilização, que não é algo externo que se afronta ao civilizado, mas sim
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O homem é o lobo do homem.
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algo que vem à tona no momento em ela se torna arrogante de si. Sua proposta é
oferecer uma resposta a destruição, saques e mortes, resultantes de um processo
civilizador que queria opor a barbárie ao modernismo. Deste modo, admite que
civilização e barbárie são duas máscaras “adversárias e cúmplices de uma mesma e
única humanidade” (MATTÉI, 2002, p. 158).
Assim, civilização e barbárie são conceitos que estabelecem uma relação
dual na qual a primeira produz a segunda. Em Freud, a civilização produz a barbárie
a partir excessiva supressão da agressividade. O autor postula em seus escritos a
respeito da tendência primitiva do homem a crueldade. O bárbaro que nos habita
busca destruir o mundo desconhecido que o provoca e fascina ao mesmo tempo.
Em seus escritos sobre a guerra, Freud afirma que a violência humana é
intrínseca à condição biológica do homem, “o horror à guerra é a expulsão das
sementes de barbárie de dentro de si mesmo” (FUKS, 2012, p.53) que se manifesta
nos conflitos de relação desde o mais remoto processo de civilização.
A invenção psicanalítica rompeu fronteiras com sua formulação teórico-
clínica, muitas vezes inspirada na diversidade da produção cultural – da obra de arte
à filosofia, da produção literária erudita aos periódicos populares –, e contribuiu com
as diversas áreas do conhecimento humano, transformando-se em objeto
privilegiado de análise e crítica desde a modernidade. Freud foi astuto ao apreender
teórica e tecnicamente as figurações do mal-estar que então se configuravam, bem
como os temores e compromissos que marcaram sua pertença nessa mesma cena
social. Sua escrita também foi tecida a partir do discurso do analisante, trazendo
questões de um sujeito singular que reconstituía os fragmentos íntimos da história. A
obra freudiana percorre os mais diferentes conhecimentos na tentativa de aproximar-
se de uma determinada condição humana. Constitui-se como um saber que parte de
diferentes registros: o inconsciente de seu preceptor, a clínica e a cultura. (MEZAN,
1985).
Assim, imerso em reflexões sobre a crítica da moralidade, absorto com os
efeitos da repressão na gênese das neuroses, Freud inicia suas considerações
sobre a civilização, traduzindo a profunda intimidade que mantém com os fatos de
cultura. Seu discurso acerca da cultura é uma lição sobre o conflito imanente à
condição humana. O mal-estar na civilização (FREUD, 1930[1929-30]) é a obra que
sustenta a originalidade da posição subjetiva descrita pela psicanálise. No decorrer
das oito seções que compõem o texto, é desenvolvida uma argumentação que
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culmina com a reafirmação da existência de uma destrutividade autônoma no


homem.
Já nas primeiras páginas do ensaio, Freud discute o esforço humano contra o
sofrimento: se nos vemos ameaçados por um corpo que perece, pela natureza que
assusta com seu poder de destruição, por relacionamentos que causam dores tão
penosas, como insistir na busca de uma felicidade absoluta? Com essa indagação
introduz a crítica a um dos discursos mais influentes desde a modernidade: o poder
de sedução da ciência, da série de invenções que fez aproximar o homem de um
Deus de próteses. A ciência e a tecnologia potencializam o débil organismo,
prolongando-o artificialmente, rompendo os limites dos corpos ao conceder-lhes
novos olhos, ouvidos e memória. Se Freud reconhece que o progresso técnico tem
valor sobre a economia da felicidade, afirma, ainda mais, que uma cota do
desconforto do sujeito moderno é devida às mesmas conquistas que radicalizaram
sua condição de ser de artifícios. Nem mesmo a ciência pode realizar a utopia de
uma vida
O mal estar na civilização é ilustrativo de uma diversidade de métodos dos
quais o sujeito lança mão para desfrutar de uma felicidade e evitar o sofrimento: a
narcose que provoca sensações prazerosas ao alterar a química do corpo; a
sublimação que desvia a energia pulsional para fontes de trabalho psíquico e
intelectual; o encontro amoroso que é a própria revelação de Eros; a contemplação e
o exercício artístico, formas de fruição através da fantasia.
O leitor que se expõe ao texto freudiano, especialmente à produção que se
segue à formulação do conceito de pulsão de morte, depara-se, portanto, com o
paradoxo da condição humana descrita pela psicanálise. Aprende que o sujeito se
constitui no embate com a cultura, mas padece por estar indissoluvelmente ligado ao
tecido social. É desse encontro que o sujeito marca a sua diferença simbólica e pode
compor um território para a sua fruição e é também esse o evento tradutor da
impossibilidade de alcançar a satisfação absoluta e duradoura.
Ao coroar suas reflexões com o conceito de pulsão de morte, Freud aponta
para a existência de um mal-estar inerente à própria constituição do sujeito, premido
entre a indiferenciação imposta pela cultura e a transgressão que conforma sua
singularidade, denunciando o conflito irremediável que atravessa as relações
humanas, a luta íntima entre uma potência conservadora que mantém os
grupamentos sociais e a vontade de destruição contrária às unificações da vida
civilizada. O sujeito freudiano mostra seu deslocamento em relação à natureza
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quando a morte deixa de ser um além de si mesmo e integra a vida. A psicanálise


proclama que no íntimo das subjetividades há uma força que conduz à destruição,
um princípio que resiste a toda indiferenciação, pondo em causa a conservação e a
homogeneização próprias à ordem da cultura. A proposição da pulsão de morte é
marca derradeira da finitude humana.
Assim, o conceito de cultura em Freud se define de modo bastante peculiar: a
barbárie habita no interior da civilização. Ele procura legitimar sua percepção ao
conceber o mito de Totem e tabu e, através dele, escrever um texto metapsicológico
em que o pai se torna o centro da origem da cultura e da discussão sobre barbárie, o
resto pulsional que escapa à simbolização. O recurso ao mito foi a tentativa
freudiana de construir metaforicamente o momento de fundação da cultura e da
origem do sujeito. O parricídio é o cerne da narrativa mítica: com o fim da horda
primitiva, a organização vitoriosa da aliança entre os irmãos marca o advento do pai
da horda, cuja morte não deixa sucessor. O pai da horda é uma construção dos
membros do grupo que tem necessidade de supor a existência, mesmo que mítica,
do gozo pleno.
O ato institui o pai originário – Urvater – cujo lugar que ocupava permanecerá
sempre vazio após a sua morte, instaurando-se assim, a Lei fundadora e
inconsciente da limitação do gozo. A morte do Pai não liberou o acesso à satisfação
pulsional, ao contrário, intensificou sua interdição e deixou traços que
permaneceram no decorrer do processo civilizatório. Assim, com a marca da fúria
assassina, o conceito de pai em psicanálise opera como articulador para pensar a
díade civilização e barbárie.
Nos escritos freudianos sobre a guerra encontramos que a crueldade está
instalada no cerne mesmo da civilização e que quanto mais sofisticada, mais
desenvolvida técnica e cientificamente, mais chance de barbárie. A ambivalência de
sentimentos (amor/ódio) e a mitologia das pulsões atravessam a história do sujeito e
da civilização assinalando a destruição e a violência assassina como realidades do
psiquismo. Guerra e destruição são elementos que fazem parte da história da
civilização, anunciando que o sujeito contemporâneo pode ser tão bárbaro e cruel
quanto o homem primitivo, desconstruindo a ideia de que o homem civilizado seria
superior. Essa vertente do conceito de civilização, enquanto marca da diferença,
aponta para um período da modernidade que culminou com a Segunda Guerra
Mundial que, através dos extermínios em massa, se tornou um dos maiores traumas
da humanidade.
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Essa tendência humana a satisfazer a agressão no outro causava questão em


Freud já nos anos 1930. Humilhação, racismo, crueldade, abuso sexual, segregação
fizeram parte da história e, aliados a crítica freudiana ao avanço tecno-científico, o
colocaram numa posição de visionário ante aos acontecimentos de Auschwitz e
Hiroshima. Isto porque, anos mais tarde, com a eclosão da Segunda Guerra, a
tecnociência introduziu o extermínio na cultura como forma de apagamento das
diferenças. Freud não vivenciou o Holocausto, mas Lacan, contemporâneo dessa
tragédia traumática, apontou o extermínio como a tentativa de construir uma
sociedade sem outro. Um modelo político-cultural inspirado no racismo, baseado na
existência de uma raça superior, supondo a diferença e a desigualdade entre
pessoas como algo natural. O que vem sendo retomado na contemporaneidade e
justifica as reações de violência ante o diferente, o estrangeiro. Na sociedade
brasileira isso vem se intensificando de tal modo que a escravidão e a ditadura veem
sofrendo uma tentativa de apagamento da história. Ponto que nos coloca perante a
questão motivadora dessa pesquisa: investigar e pensar alguns movimentos e atos
de intolerância ao outro que acusam “o universal do horror a diferença que habita a
alma humana” (FUKS, 2014a, p.32) de forma a circunscrever a presença da barbárie
em nosso tempo e sua relação com o registro da razão, competência técnica e
desenvolvimento científico contemporâneos.
As contribuições da psicanálise para refletir sobre a violência, crueldade e
destrutividade humana na contemporaneidade, estabelecem uma relação com a
pulsão de morte, que opera silenciosamente em direção a destruição, ao estado
inanimado. É em seu estado puro, quando não trabalha em conjunto com a pulsão
de vida, que adquire a força assassina que se direciona ao aniquilamento do outro.
Os escritos culturais de Freud, Psicologia das massas e análise do eu, O mal-
estar na cultura e Moisés e o monoteísmo, atuaram como bálsamo em nossa
inquietação com a política do ódio. A constituição da massa cuja coesão depende
dos afetos (amor/ódio) reitera o amor entre os idênticos e o ódio ao outro. Um
fenômeno que aponta para a lógica do narcisismo das pequenas diferenças, e chega
na segregação do estrangeiro, alvo do ódio que circula entre os idênticos. Esse
apagamento do outro, o horror ao que não é familiar e à sua história, figura nos
regimes totalitaristas que se recusam a enxergar a diversidade cultural e tentam
apagar qualquer diferença. Numa tentativa de ocupar o lugar vazio deixado pela
morte do pai, caminham em direção ao extermínio, a aniquilação do outro.
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O temor de Adorno ante a uma repetição do episódio de Auschwitz se


concretizou. Os campos de extermínio deixaram de ser um fato passado e
retornaram na contemporaneidade. O assassinato coletivo e certeiro executado nas
câmaras de gás dos campos de extermínio, hoje ocorre aos poucos, de forma lenta
e agoniante nos campos de refugiados. Construídos em áreas próximas a zonas de
conflito e instabilidade para abrigar os que, por fome, guerra ou doenças, tiveram
que escapar de seu país de origem, torturam, paulatinamente, com suas estruturas
precárias, com mínimas condições sanitárias, superlotados, aqueles que fugiram em
busca de esperança. A luta entre Eros e Tanatos, pulsão de vida e pulsão de morte,
é travada por aqueles cuja dignidade foi usurpada em nome da segregação, da
vontade coletiva de desumanizar o outro. Impossibilitados de recorrer à Lei,
envolvidos em uma guerra política, se deparam com uma vida descartável, que pode
ser eliminada a qualquer tempo, separada e excluída de si mesmo. Revelando que a
barbárie do nosso tempo, aponta para a repetição de desastres iguais ou
semelhantes ao que o mundo viveu no século passado. Assim, nos deparamos com
a banalização da morte que marca a trivialidade e o desrespeito com o tema da
morte, e o transforma em números estatísticos.
Em nossa pesquisa constatamos que apagar as diferenças, veicular a
proliferação de um discurso de igualdade é algo da ordem do impossível. Negar o
mal-estar e a angústia que movem o sujeito é cercear sua vida e colocá-lo em um
estado de apagamento gerador de sintomas solucionados pelo avanço tecno-
científico. A Psicanálise caminha em direção contrária: aponta para um compromisso
com a vida, convocando a responsabilidade do sujeito pelo outro, reconhecendo que
a guerra é uma realidade ininterrupta na história humana.
O estudo sobre o pai em psicanálise, aponta para a metapsicologia freudiana
na qual o conceito de pai é uma ferramenta. Como pudemos acompanhar em nosso
estudo, é no crime contra o pai que residem as principais estruturas da sociedade. O
incesto é a base de todas as proibições, é a origem da lei. Por isso é possível
deduzir que o pai só existe morto, numa função que incita o amor e a reverência,
que ao ser legitimada ganha uma existência simbólica que só emerge com a sua
ausência.
Lacan, em seu retorno a Freud, aportou à teoria psicanalítica diferentes
modificações à noção de Pai, cujo lugar, organizado simbolicamente e destituído de
quaisquer atributos naturais, passa a ser referenciado a uma autoridade simbólica
que, por sua vez, cumpre a função de inscrever um valor simbólico que inaugura
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uma regra, uma lei, que serve como obrigação. Contudo, na medida em que não há
um fundamento externo que a justifique, a lei retira força dela própria para exercer
sua autoridade. Neste sentido, é por exclusão de toda possibilidade física ou
coercitiva que a lei se constitui. A autoridade é dada por um valor simbólico,
autorreferente, que tal objeto eleito ocupa. O pai simbólico é o pai morto, aquele que
ocupa o lugar de exceção, o lugar de estrangeiro. É ele, o pai morto, que institui o
vazio em torno do qual gira o sistema democrático.
Lacan levou em conta a perda da potência paterna, mas isso não significa,
em nenhuma hipótese, que tenha minimizado a função paterna na ordenação do
psiquismo humano. Na teoria lacaniana, a noção de função paterna se inscreve no
conceito freudiano do complexo de Édipo. Embora, ao que tudo indica, seu conceito
do Nome-do-Pai tenha tido suas raízes na ideia de um declínio social da imago
paterna, foi, principalmente, a releitura do texto de Freud à luz da Antropologia
Estrutural de Claude-Lévi-Strauss que o levou a depositar no conceito de Nome-do-
Pai o aspecto simbólico da função paterna.
De Freud a Lacan, o pai ocupa uma função capital no discurso psicanalítico,
função que permanece viva atualmente apesar da presença maciça de um processo
de “desinstitucionalização”, do qual decorre a dissolução progressiva de seu papel
tradicional de autoridade. Mesmo assim, a função paterna continua sendo
imprescindível na organização mental dos homens e da cultura.

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