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Orson Bean

Depois de 25.000 dólares gastos em


psicanálise durante 10 anos. Orson
Bean observou que nada mudou em sua
vida. Quando deu por si. já estava divor­
ciado e num estado de terrível depres­
são. totalmente insatisfeito com a vida.
Um dia, porém, descobriu uma coisa
chamada orgonoterapia. Uma psicote-
rapia desenvolvida por Wilhelm Reich,
que consiste em alcançar uma nova ale­
gria de viver através da completa satisfa­
ção sexual.
O Milagre da Orgonoterapia, mais um
lançamento da Artenova. é o relato com­
pleto de um homem que se modificou
por meio de um novo tratamento tera­
pêutico. Nas palavras do próprio Orson.
você ficará conhecendo este método,
considerado imoral por algumas pes­
soas. E sentirá todas as suas reações,
desde o momento em que hesitou um
pouco em iniciar a orgonoterapia até o
dia em que passou a obter o orgasmo
total no ato sexual e notar que estava
ocorrendo um verdadeiro milagre na
sua vida. Muitas mudanças estranhas
ocorreram — sentiu-se livre, mais sau­
dável e muito mais ativo, apesar de ter
ficado por algum tempo com marcas
pretas e azuis por todo o corpo, resulta­
do dos socos e massagens aplicados em
seus músculos, para livrá-lo da couraça
que os enrijecera, formada pela sua pró­
pria mente. Ao final das sessões de orgo­
noterapia. Orson havia aprendido nova­
mente como chorar ou rir espontanea­
mente, e ainda o mais importante de
tudo: amar.
O MILAGRE DA
ORGONOTERAPIA
Do original norte-americano MY AND ORGONE
ORSON BEAN
Copyright 1973 da edição em português Editora Artenova S.A.

Primeira edição brasileira em maio de 1973.

O
Traduzido por
M. P. Moreira Filho
Milagre
da
Capa
Studio Artenova

Orgonoterapia
Reservados todos os direitos desta tradução. Proibida a reprodução,
parcial, sem expressa autorização da Editora Artenova S.A. Traduçáo de
Edição brasileira para venda apenas no Brasil M. P. MOREIRA FILHO

editora artenova ia.


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fua pretato olímpio do moío, 1774 tolo. P*>» MS-7124 7?$-7l25 òoporUmonfo pornaltako
Ofld. fotográfico ARTNOVA doportomonto gráfico
Composto e impresso no Brasil — Printed in Brazil t*o crltióvfto rio gb rioportomonio odílortál
PREFÁCIO

Este livro trata da experiência de Orson Bean com a terapia


criada por Wilhelm Reich e da criação de sua escola da Rua
15, em Nova Iorque. É desta que vou falar em primeiro lugar.
Quando a visitei, apesar de cansado depois da travessia do Atlân­
tico e pouco disposto a subir escadas, vi alguns de seus alunos.
Para mim, o caráter de uma escola está estampado nos olhos
das crianças. Condeno todas as instituições oficiais que tratam
o problema das crianças com métodos que as transformam em
outros tantos problemas — medo, disciplina, castigos.
Aterroriza-me o olhar das crianças educadas por esse método.
O olhar dos alunos da escola da Rua 15 mostrava — para usar
da expressão que me parece a mais adequada — a alegria de
viver.
É excitante a descrição que faz Orson da “Orgonoterapia"
que praticou com Elsworth Baker. Não posso imaginar como
será encarada pelos que nunca ouviram falar de Wilhelm Reich;
a mim, pessoalmente, fez-me lembrar de quando me encontrava
deitado num sofá, completamente nu, a contorcer-me todo en-

*
quanto o velho Reich massageava meus músculos entorpecidos. Este livro deve ser recebido com desdém e ódio pelos nume­
Felizmente ninguém se lembra da dor; e duvido que alguém
rosos inimigos de Wilhelm Reich que procuram subestimá-lo
possa lembrar-se do prazer. As descrições de Orson valem, so­
como louco. Não posso julgar. Estava perfeitamente são quando
bretudo, por uma razão — até aqui, todos os livros publicados o encontrei pela última vez, em 1948. Entretando, não me surpre-
sobre esse novo tratamento foram escritos pelos que o aplicaram,
enderia se, depois disso, chegou a perder a razão. Afirmou muitas
nunca pelos pacientes, como por exemplo, “O Homem e a Arma­ vezes que nossos hospícios estão cheios daqueles que não são
dilha", de Elsworth Baker.
bastante loucos para viver no seio da civilização doentia. E
A experiência de Orson foi idêntica à minha. Depois de que importa se ficou realmente louco? Muitos grandes homens
seis semanas no sofá de Reich experimentei uma reação emocio­ acabaram por perder a razão: Nietzsche, Svvift, Ruskin, Schu-
nal mais profunda do que a sentida após muitos anos de psicanáli­ mann... De minha parte, sei que não sou um gênio porque ainda
se. Compreendí então as críticas de Reich à psicanálise, que não fiquei louco; mas, se por fim acabar aos 90 anos como
trata com palavras, enquanto que o mal é causado à criança um louco furioso senil, isso em nada poderá alterar o fato de
antes que possa falar. Crítica profunda, que não pode ser aplicada ter sido eu o fundador de Summerhill. Seja como for, o mundo
à libertação da tensão muscular, outro problema que surge antes é uma coisa estranha se Reich ficou louco e continuam mental­
da fala.
mente sãos os políticos, os homens do Pentágono e os racistas.
E embaraçoso escrever sobre amigos. Orson e Carolyn Wilhelm Reich foi um grande homem; muitas vezes agra­
deixaram-me encantado quando os conheci em Nova Iorque. decí a sorte que tive de conhecê-lo, amá-lo e ser por ele amado.
Esperava encontrar nele uma típica personalidade da TV...ensi- Orson jamais o conheceu mas, em compensação, compreendeu
mesmada, superficial, petulante. Por isso, foi uma surpresa agra- perfeitamente o significado da mensagem de Reich à humanida­
dabilíssima verificar que Orson era apenas um bom sujeito, um de.
sujeito humano. São muitos os atores que adotam uma personali­
dade artificial, na qual se escudam (como acontece, aliás, com A.S. Neil
todos nós, devido à nossa educação e condicionamento) sobretu­
do devido ao medo de trair a verdadeira personalidade diante Summerhil
das câmaras. Orson fugiu a tudo isso. Seu livro não procura
criar-lhe uma imagem popular. Desnuda a própria alma, mostra-
nos um homem que não pretende fingir. Hesito em afirmar que
o tratamento a que se submeteu com Baker tenha sido o responsá­
vel por isso, porque sem nenhum tratamento outros têm sido
sinceros em vida: Einstein, Gandhi, Lincoln e, naturalmente,
Jesus. No entanto, é óbvio que o tratamento a que se submeteu
prestou-lhe considerável auxílio. Pessoalmente, acredito que a
psicanálise fez-me perceber os pontos de vista dos demais e,
por isso, julgo difícil condenar alguém. É possível que todos
os tratamentos tornem o homem mais tolerante. O de Reich,
porém, fá-Io com absoluta certeza, embora ele próprio não tenha
sido muito tolerante... como é possível verificar pelo que disse
Ilse Reich à revista Life. Sua intolerância, porém, manifesta-se
contra o que chamou de praga emocional, uma realidade muitas
vezes aplicada erroneamente. Um dia, ao criticá-lo, um dos médi­
cos que me ensinou apontou o dedo em riste.
"Praga emocional, NeilI" — observou, com absoluta con­
vicção.

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1

Naquela época eu morava em Nova Iorque num aparta­


mento com vista para o East Rivcr. Depois dc seis anos, meu
casamento fracassara e minha ex-mulher mudou-se para a Áfri­
ca, onde arranjou um marido francês e iniciou vida nova. Quan­
to a mim, tinha uma filhinha de ano e meio, Michele, e uma
linda babá irlandesa de dezessete anos para cuidá-la. Chamava-
se Bridie, fora contratada por minha mulher e mantive-a a
meu serviço para cuidar da garotinha depois do divórcio. Era
uma beleza de faces rosadas e uma plástica capaz de envergo­
nhar a própria Raquel Welch. A situação era bastante estranha:
um solteirão miserável e calejado, uma garotinha de ano e meio
e aquela maravilha de irlandesa morando num luxuoso aparta­
mento do East Side, no Manhattan.
Bridie era uma pequena encantadora e nós dois costumava­
mos levar Michele a passeio pelo Carl Schurz Park até Gracic
Mansion, que ficava perto do nosso apartamento. Passava-lhe
o braço pela cintura ou pelos ombros quando caminhávamos
juntos, ou cada um de nós segurava a mão de Michele, que

II

I
ficava pendurada entre os dois. As sisudas mulheres dos direto­ era dez anos mais velho e vinte e cinco mil dólares mais pobre.
res que viviam sentadas nos bancos do parque apreciando os E sentia-ine desnorteado. No decorrer de meus dez anos de
filhos que brincavam por perto não deixavam de olhar-nos tratamento pela psicanálise tive amigos que não sabiam o que
à nossa passagem, e pelo canto dos olhos percebia seus comentá­ fazer: começavam o tratamento para abandoná-lo pouco depois,
rios. Meus amigos da Madison Avenue diziam que tinham ouvi­ mudavam de médicos, desperdiçavam o tempo entregando-se
do falar dos nossos passeios pela East End Avenue. Isso para ao psicanalista e, em geral, sem nunca chegar a compreender
mim foi uma novidade — nunca toquei sequer em Bridie. Não o mundo. De minha parte, encontrei um bom especialista com
que não o desejasse, confesso, mas porque procurava controlar- o qual me tratei durante dez longos anos, perseguindo encarni-
me lembrando a clássica advertência de Goethe: “Não suje uma çadamente a conquista do autoconhecimento e do progresso
coisa boa.** que, entretanto, não consegui. Por ocasião de nossa última ses­
Vivi profundamente abatido durante um ano, lamentando são, o bom doutor e eu apertamos as mãos. Afirmou que tinha
a minha sorte. Todos os dias pela manhã tomava o desjejum sido um prazer trabalhar comigo; agradecí, e ele garantiu que
ao lado da grande janela que dava para o rio, contemplando eu podería voltar a procurá-lo a qualquer momento que tivesse
as coisas que boiavam ao sabor da correnteza. Era realmente um problema a discutir. Quando deixei o consultório vinha
agradável deixar-me ficar olhando o rolar das águas, e de fato pensando: “E agira? Quando deixarei de sentir-me analisado?
foi esse o motivo que me fez procurar um apartamento com Quando deixarei de sentir-mc ansioso e apreensivo?” Imaginei
vista para o rio após o fracasso de meu casamento. Até que que depois de algum tempo tudo entraria nos eixos e, então,
saí daquele meu ano sombrio e comecei a frequentar o bar poderia dedicar-me aos meus afazeres porque a mágica trans­
de Dick Edward na Rua 61, onde ia todas as noites à procura formação ocorrería gradativamente. Não ocorreu.
de amor. Consegui um papel na peça "Nunca é Tarde Demais”, Naquela noite, sentado à minha janela, fiquei pensando
que fez um grande sucesso, e certa noite recebi a visita de nas palavras do meu amigo... “uma nova forma de psiquiatria
um amigo em cuja companhia fui tomar uns drinques após que afirma que quando se consegue um orgasmo completo
o espetáculo. “Sabe” — disse-me ele — “que existe uma nova todas as neuroses desaparecem." Meu Deus, que idéia tão sim­
forma de psiquiatria que afirma que quando se atinge a um ples e tão verdadeira. Relembrando o passado, compreendí
orgasmo completo todas as neuroses desaparecem?" Esse meu que em todas as minhas inúmeras c corriqueiras atividades se­
amigo não costuma desperdiçar palavras. xuais a maioria dos meus orgasmos, para falar francamente,
Disse-lhe que nada sabia sobre o assunto que, entretanto, foram desagrádáveis. A meia-dúzia de vezes (que me perdoem
parecia interessante. E perguntei-lhe se já existia alguma obra a expressão) em que experimentei um orgasmo verdadeiramen­
publicada sobre isso. te bom deixou-me maravilhado durante alguns dias. Ou melhor,
“Vou trazer-lhe uma” — prometeu. não exatamente maravilhado, mas, livre... livre de idéias sobre
Naquela noite voltei para o apartamento e sentei-me à jane­ sexo, porque o fato fez-mc compreender que o motivo de minha
la, olhando o rio e refletindo. constante preocupação sexual tinha sido, provavelmente, meu
Onze anos antes submetera-me à psicanálise. Não que ali­ contínuo desapontamento com o sexo. Pareceu-me, ao lembrar
mentasse idéias suicidas aos vinte e quatro anos, ou que me os raros e espaçados orgasmos, que nos dias subsequentes expe­
sentisse infeliz. Nada disso; apenas sentia um vazio em meu rimentara uma energia inacreditável e uma nova alegria de
plexo solar que parecia sussurrar continuamente: “Deve existir viver; na verdade, tive a impressão de ter sido feliz. Naquela
uma vida melhor a ser vivida." Encontrei um excelente psicana­ noite, senti-me como Saul na estrada de Damasco. Percebi uma
lista da escola freudiana e tratei-me com ele durante dez anos. luz ofuscante e a felicidade ao alcance da mão.
Aprendi muitas coisas a meu respeito, gastei vinte e cinco mil Depois, meu amigo levou-me o livro que me prometera:
dólares, casei-me, divorciei-me, e depois de dez anos o vazio — “A Função do Orgasmo”, de YVilhel Reich. “Ora” — pensei
de meu plexo solar continuava a sussurrar a mesma coisa. Não — “isto não é nenhuma novidade." Possuía umas vagas Informa­
pretendo dizer que não aproveitei a experiência; não era infeliz ções sobre Reich, e ouvira durante anos elogios e críticas ã
como o fora dez anos antes. Mas, ainda era infeliz. Além disso, sua pessoa. Foi um grande psiquiatra contemporâneo de Freud,

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outras áreas da ciência. Depois de muitos anos de trabalho
em Viena. Seu livro “Análise do Caráter” é considerado uma
chegou ao que chamou de teoria do orgasmo. Foi essa teoria
obra clássica e muito lido pelos jovens psiquiatras. No entanto,
do orgasmo que provocou o ódio da psiquiatria organizada
depois de ter publicado esse livro disseram que tinha perdido
e fê-lo cair em desgraça perante o mundo da medicina social­
a razão. Tinha o sexo no pensamento e o recipiente de sua
mente aceita. E foi a mesma teoria do orgasmo que me deixou
orgone era algo que continha muita gente nua. Não era movido
por nenhuma força, mas supunha ter armazenado raios de absolutamente encantado.
certa natureza que tanto podiam fazer com que alguém se tor­
nasse sexy como também curavam o câncer ou qualquer outra
coisa. Transferiu-se para os Estados Unidos, cujas autoridades
mandaram prendê-lo como charlatão, e acabou morrendo na
prisão. Afirmaram que costumava masturbar seus clientes ou
submetê-los a orgias de natureza supostamente terapêuticas.
Era um comunista de tipo especial, e ainda existem algumas
pessoas que insistem em afirmar que não era louco mas, ao
contrário, um grande homem.
Senti-me amargamente desapontado. Mas, como o ülulo
era curioso, comecei a ler o livro. Foi como se tentasse interpre­
tar a “Torah”. Fui obrigado a voltar atrás e reler cada parágrafo
mas, à medida que procurava, acabei por descobrir, assombra­
do, que o que me pareceu inicialmente uma tolice começava
a fazer sentido. Passei vários dias estudando o livro, que levava
para o teatro, à noite. Uma das minhas companheiras na peça
que representávamos era Maureen 0‘Sullivan; e todas as noites
sentava-me em seu camarim para ler-lhe trechos do livro. Fiquei
inteiramente absorvido por Wilhelm Reich e suas idéias, e tratei
imediatamente de procurar outras obras de sua autoria ou que
tratassem de sua pessoa. Reich nasceu em 1897, na Áustria,
e estudou medicina e psicanálise com o próprio Freud. Tornou-
se membro do círculo privado de Freud, mas nunca pôde aceitar
a idéia de que o melhor tratamento dos problemas emocionais
consistia de colocar o paciente deitado num sofá para falar
à vontade. E tornou-se cada vez mais convencido de que no
fundo de todos os distúrbios estava a frustração sexual. Freud
e seus discípulos acreditavam que os problemas sexuais eram
muito mais comuns entre as mulheres do que entre os homens.
Reich discordava desse ponto de vista, sustentando que homens
e mulheres experimentavam os mesmos problemas que, na sua
opinião, eram quase universais. Além disso, discordava igual­
mente do conceito freudiano sobre a “renúncia voluntária.” A
razão dizia-lhe que se a repressão dos impulsos sexuais provoca­
va os díMúibios emocionais, então de pouco serviría a renúncia
voluntária. O que chamava “a tênue linha vermelha da lógica”
arrastou-o para fora do campo da psiquiatria e levou-o para

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2

Todas as noites, no teatro, e todos os dias no meu aparta­


mento que dá para o East River, punha-me a ler “A Função
do Orgasmo”, de Reich.
Até mesmo sob o ponto de vista intelectual levei muito
tempo para compreender essa teoria, o que acabei por conse­
I guir, e passo a resumir de forma consideravelmente simplifica­
da, porém, fiel, o que significa: Os seres humanos, da mesma
forma que todas as coisas vivas, a partir da ameba, possuem
uma energia interna até hoje não revelada. Reich, porém, a
descobriu e deu-lhe o nome de energia orgônica (aproveitando
o radical da palavra organismo). Essa energia é, de fato, a força
vital, não num sentido místico, mas fisicamente falando. Energia
produzida pela ingestão de alimentos, fluidos e ar e diretamente
absorvida pela epiderme.
A energia orgônica flui em ritmo constante através de todo
o corpo, do alto da cabeça à planta dos pés, num movimento
de ida e volta e, nas pessoas naturais e de perfeita saúde, pode
ser sentida como uma agradável e quente sensação de saúde

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e bem estar. Sua eliminação se processa pela atividade, excreção, inferior, são apertados, e contraídos os músculos que cercam
expressão emocional, pelo processo do pensamento e ao ser os olhos. Cessa o choro e a criança é premiada com a afirmação
transformada em calor corporal que é irradiado para o meio de que já é "um homenzinho" ou “uma boa menina”, e a aprova­
ambiente. Além disso, atua sobre o crescimento. Em casos nor­ ção social encerra o assunto. Com ocorrer do tempo, essa blinda­
mais, essa energia é produzida em proporção superior à que gem torna-se crônica e a criança não pode mais soluçar.
é eliminada. Esse excesso de energia é armazenado para atender Da mesma forma, a raiva não é aceita em sociedade.
a situações de emergência como, por exemplo, a luta ou o traba­ Observe-se uma criança num acesso de cólera. Essa é a expressão
lho excessivo. Mas, quando não se registra qualquer emergência, física natural do homem encolerizado: pontapés, berros a plenos
a energia continua aumentando para que o organismo se desen­ pulmões, socos a esmo. Muitos músculos participam dessa livre
volva continuamente ou venha a perecer eventualmente, a me­ expressàodecólera. Quando uma criança éconstantemente frus­
nos que exista um mecanismo qualquer que se encarregue de trada e fica cncolerizada, mas impedida de manifestar livremen­
libertar o excesso da energia acumulado que tenha atingido te a sua fúria, não tem outro remédio senão sufocá-la. A princí­
a determinado nível. Nos indivíduos saudáveis, esse nível se pio, issoé feito não no nível intelectual, mas sim pelo relaxamen­
manifesta pela excitação sexual. A produção de energia cria to dos músculos que intervém no ato de dar pontapés,, bater,
um estado de tensão, e o método criado pela natureza para gritar, morder ou em quaisquer outros que a criança sinta a
aliviá-la e regular a sua produção é o orgasmo sexual. A profun­ necessidade de praticar.
da sensação de calma que se segue ao clímax sexual realmente A sociedade encara como perigosas as sensações agradáveis
satisfatório é a prova da eliminação dessa tensão. Entretanto, que a criança possa sentir na área genital. Até mesmo nos lares
a tensão é liberada e a energia regulada somente quando o “esclarecidos" a criança aprende essa lição todas as vezes em
indivíduo é capaz de conseguir uma satisfação sexual completa, que, distraidamente, põe as mãos perto da zona perigosa. Sufo­
saudável e amorosa. É inútil a experiência sexual obrigatória car a sensação experimentada em toda essa área é mais seguro
ou incompleta. O orgasmo deve ser absolutamente agradável do que continuar sentindo as naturais sensações agradáveis e
e espontaneamente acompanhado pelo relaxamento total da ser tentado a intensificá-las pela manipulação.
energia orgônica não eliminada. Essa falta de eliminação faz-se Sufocamos a sensação pelo retesamento dos músculos. Com
sentir sob a forma de tensão ou desassossego. Num indivíduo ocorrer do tempo, retesamento e sufocação tornam-se crônicos
saudável, a necessidade de satisfação sexual e eliminação estão até que a musculatura de cada um transforma-se numa verda­
inteiramente baseada nesse fluxo da energia orgnica. deira blindagem contra as sensações inaceitáveis. Reich desco­
Há muitos séculos, o homem, único entre todos os animais briu que os músculos que podem ficar assim blindados são
a assim proceder, vem interferindo no processamento de suas aqueles que estão dispostos em sentido transversal por todo
funções naturais ao evitar o fluxo, a produção e a liberação o corpo, atavés dos olhos, boca, peito, plexo solar, pélvis etc.
de sua energia orgônica. E o fez ao tornar-se incapaz de conse­ E depois de cronicamente enrijecidos interferem com o agradá­
guir satisfação sexual completa, natural e saudável, através de vel fluxo da energia orgônica que corre de cima para baixo,
um processo que Reich chama de blindagem. E aqui vai a descri­ da calça aos pés.
ção do que é blindagem: existem certos músculos que ajudam (E interessante observar que em todas as culturas o "sim”
a controlar as emoções. Assim, por exemplo, quando uma crian­ se expressa com o balançar da cabeça de cima para baixo, en­
ça põe-se a soluçar, todo seu corpo estremece descontrolada­ quanto o “não” se exprime pelo movimento transversal da cabe­
mente. Seu lábio inferior treme, o peito expande e contrai-se, ça de um lado para outro). Quando a energia orgônica não
o plexo solar começa a arfar e seus canais lacrimais produzem pode percorrer esse caminho de ida e volta a fim de ser produzi­
lágrimas. Durante a infância, as crianças aprendem que em da em sua forma natural, a auto-regularização sexual deixa
maior ou menor proporção o soluço é socialmente inacei­ de funcionar.
tável. Uma criança que recebe a ordem “Pare com esse cho­ Numa pessoa sadia, sem blindagem e auto-regularizada,
ro” não tem outro remédio senão obedecer, e o faz con­ todo o processo sexual é inteiramente diferente da forma pela
traindo os músculos controladores; o plexo solar e o, lábio qual se manifesta numa pessoa blindada. Na pessoa sadia, a

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inclinação sexual não está separada do amor,já que, ao contrário, ou comprimidos, provocavam gritos de cólera. E tratou de enco­
é a sua contrapartida física. A pessoa verdadeiraniente auto- rajar seus pacientes a se entregar a essas funções naturais. Inici­
regularizadajamaisusao sexo para seu próprio engrandecí men­ almente, os pacientes sentiram-se embaraçados por terem que
to, para dominar, controlar ou subjugar os demais. Feio contrá­ demonstrar cólera ou por soluçar, mas dentro de pouco tempo
rio, encara-o como uma necessidade imperiosa de unir-se a outro, experimentaram enqrme alívio ao se sentirem capazes de mani­
de tornar-se uno com o objeto de seu amor. Sente-se tomada festar livremente os próprios sentimentos. Reich descobriu que
de ternura, cuidado e interesse pelo companheiro no auge do uma vez que os pacientes podiam nova mente chorar e
ato sexual. O mundo pode vir abaixo e ambos, naquele instante, encolerizar-se, os antigos sentimentos surgidos na época em
são uma só pessoa porque, durante o orgasmo, o verdadeiro que foram originariamente blindados vinham à superfície e
orgasmo, os campos de energia de ambos se lundem e se mistu­ podiam ser analisados. Aparentemente, pelo menos, a blinda­
ram, uma vez que o excesso de energia é liberado pelos órgãos gem não era um sintoma de neurose e sim, de fato, a verdadeira
genitais. Toda e qualquer idéia que signifique usar, humilhar, contrapartida da neurose. E, à proporção que ia sendo
degradar ou explorar o companheiro é estranha e inconcebível destruída, ocorriam sonhos bastante nítidos, que muitas vezes
e, após o ato, manifesta-se um sentimento de ternura, de amor o próprio paciente podia analisar espontaneamente. Além disso,
e de profunda gratidão. verificou que nos pacientes ainda blindados a respiração era
Nas pessoas neuróticas e blindadas, os anseios sexuais bastante ligeira, e, assim, esforçou-se para fazer com que respi­
fazem-se sentir através dos músculos enfraquecidos c enrijeci­ rassem mais livremente e, sobretudo, mais profundamente. A
dos. A excitação suave, quente e terna que experimenta a pessoa retenção da caixa torácica e a diminuição da função respiratória
auto-regularizada não se manifesta, e em seu lugar surge uma representavam, observou, um mecanismo de defesa contra as
sensação desesperada de querer “acabar” com o próprio corpo. sensações dessa área. Derrubada essa defesa, vinham à tona
Para a pessoa blindada, o ato sexual parece repleto de perigos. todos os tipos das mais profundas sensações que, se tratadas
Ressurgem, com a excitação, as velhas ansiedades infantis: os pela psiquiatria clássica, levariam anos para se manifestar desde
sentimentos confusos, a culpa, o medo da castração. C) “sucesso” que fosse possível atingi-las.
torna-se o objetivo supremo do ato, com “a ereção”, ou “a posse" Reich descobriu ainda que, para o médico, era da máxima
ou “o fazê-lo gozar.” Recorre-se a fantasias para vencer as angús­ importância conhecer a ordem que devia ser seguida para des­
tias que tornam impossível a consumação do ato. Mas, essas truir a blindagem de cima para baixo (em primeiro lugar, os
fantasias tiram a realidade do ato e desti oem todo o sentimento olhos e a boca, depois o tórax etc.). Compreendeu, também,
de ternura e, por fim, terminada a desesperada tentativa, surge que aquilo que o paciente mais desejava, isto é. a libertação
o inevitável desapontamento, a sensação de nojo de si mesmo da escravidão interna, era justamejite o que mais o amedrontava.
e a mesma pergunta: “Afinal, para que serve isto?" A proporção que era derrubada mais uma área da blinda­
“Que bom seria se não tivéssemos esse desagradável desejo gem, o paciente sentia-se a princípio exultante e em seguida
sexual que nos toma tanto tempo e energia, e acaba por deixar- completamente aterrorizado. Parecia que a blindagem tinha-se
nos desiludidos” — afirmam os que são blindados, em cuja tornado parte integrante da personalidade e, tal como se mani­
fantasia e em cujo paraíso literário não existe lugar para o festava, percebeu que estava progredindo. Os pacientes diziam
sexo. que se sentiam condenados à morte, que gozavam separadamen­
O tratamento de Reich consistia, cm última análise, em te e que nada mais tinham para se garantir. Reich nada pôde
destruir essa blindagem e, consequentemente, restaurar o natu­ fazer senão aconselhá-los a dominar o medo e a se convencer
ral processo auto-regularizador. Graças aos seus conhecimentos de que não morreríam. Os que puderam resistir experimenta­
médicos da musculatura, descobriu exatamente quais os múscu­ ram uma profunda modificação.
los que controlam as funções. Verificou que massageando, com­ Depois que a blindagem dos olhos, da boca, do tórax etc.
primindo ou espetando determinados músculos que impedem foi dissolvida, a última área de blindagem que Reich tentaria
o choro podia obrigar o paciente a soluçar espontaneamente, romper era a região pélvica, que controlava a área genito-anal.
da mesma forma que outros músculos, quando massageados Somente depois que um paciente conseguiu soluçar descontrola-

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I*

(lamente, ciando a impressão de que o coração ia saltar-lhe


do peito, de gritar furiosamente e atirar patadas e socos no
sofá até desabafar toda a cólera que trazia armazenada; somente
depois de ser capaz de sentir os profundos c doloridos anseios
que sentira como criança que necessitava a proteção da mãe,
foi que Reich pôde aproximar-se da mais quente de todas as
áreas. O terror, a cólera e a raiva liberados como sensações
que retornavam à pélvis amortecida eram espantosos, e seu
tratamento exigiu toda a sua habilidade. Entretanto, a pélvis
também continha os mais profundos desejos do homem. Aque­
les com os quais o tratamento ofereceu resultados plenamente
satisfatórios conseguiram o que Reich denominou “potência
orgástica”. Até então, ensinava-se que existiam duas espécies
de potência sexual: a eretiva e a ejaculaliva. Reich, porém, desco­
briu que ambas eram apenas simples passos no caminho para
atingir a capacidade sexual total, ou “potência orgástica”. Isso
acontece, verificou, quando o indivíduo, já livre da blindagem,
pode entregar-se totalmente, de corpo c alma, sem fantasias
ou objeçòes, ao companheiro e à experiência sexual. Quando
isso acontece, envolve todo o organismo irrestritamente. É a 3
mais transcendente experiência que se pode realizar durante
uma vida. No momento culminante do ato, quando a união
se torna completa e os dois campos separados de energia
fundem-se num só, os parceiros experimentam uma sensação
de unidade com todo o Universo. Para quem for capaz de
atingir a esse estado, mesmo por uma única vez, a pergunta Os arquitetos responsáveis pelas plantas dos teatros devem
sobre a finalidade da vida jamais será novamente formulada. odiar os atores, pois os camarins são sempre uns minúsculos
Porque esse é o objetivo específico que a orgonoterapia de Wi- e desconfortáveis quartinhos. Os melhores são sempre disputa­
Ihelm Reich pretende alcançar. dos para um pouco mais de conforto e bem-estar. Quando
a peça “Nunca é Tarde Demais” foi estreada no Playhouse
Theater da Rua 48, em Nova Iorque (posteriormente demolido
para dar lugar ao Rockefeller Center), resolvi abrir mão da
disputa por um camarim melhor e descobri um pequeno aparta­
mento no quarto andar da área dos bastidores, que até então
ninguém queria usar devido às escadas que era preciso subir
para chegar até lá. Mandei pintá-lo e colocar cortinas nas janelas,
levei para lá um aparelho de televisão e alguns móveis. A filha
de Maureen CVSullivan, Mia Farrow, viera de Londres para
Nova Iorque a fim de ficar em companhia da mãe enquanto
a peça estivesse em cartaz. Mia passava as noites perambulando
pelas vizinhanças do teatro, já que não tinha amigos na cidade,
y mas desde logo fez amizade com o pessoal do elenco. Meu
quarto, com bastante espaço para algumas cadeiras e com o

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em Nova Iorque. Entrei no edifício do Dr. Baker, um moderno
aparelho de televisão, transformou-se numa espécie de centro
e grande prédio de apartamentos, e perguntei ao recepcionista
social para os atores mais jovens e, assim. Mia sempre estava
onde ficava seu consultório. Quando respondeu, ou foi uma
entre os que o frequentavam todas as noites, para ouvir minhas
ilusão de minha parte ou o homem ficou realmente a olhar-me
preleções sobre orgonomia. Certa noite, observou: “Você sabe
de modo estranho. Caminhei por um longo corredor até a
que a Úrsula conhece tudo sobre Reich?” Úrsula era uma jovem
porta. O corredor estava impregnado por um cheiro esquisito,
que trabalhava como camareira da companhia para auxiliar
que aumentava à proporção que me aproximava da porta do
as atrizes nas rápidas trocas de toalete. Desci imediatamente
Dr. Baker, um aroma refrescante, mas intenso, semelhante ao
até encontrá-la e fui perguntando: “O que é que você sabe ozone, que não consegui identificar. A porta estava apenas en­
sobre Wilhelm Reich?” costada; assim, entrei num aposento espaçoso que devia ter
“Bem, não sei muita coisa” — respondeu — “mas, tenho sido um living-room se se tratasse de um apartamento. Havia
um amigo chamado Paul Matthews que é íntimo de um médico ali apenas um sofá e uma mesinha de café com diversos números
da escola de Reich. Gostaria de conhecê-lo?” da revista Life. Depois, percebi uma pequena cozinha e um
“Claro que sim” — retorqui. banheiro, com uma porta de permeio que, obviamente, devia
Úrsula telefonou e na noite seguinte Matthews e eu fomos ser a do dormitório. Através da porta, pude ouvir o som abafado
tomar uns drinques no bar de Dick Edward. Falamos um pouco de uma garota que chorava. Faltavam cinco minutos para as
sobre Fidel Castro e logo depois começamos a discutir o método duas. Esperei uns 10 minutos folheando uma revista. Abriu-se
de Reich. Quis saber o motivo do meu interesse e por que a porta do quarto, e antes que eu pudesse levantar os olhos
queria conhecer um médico especialista. Enquanto respondia, ouvi fechar-se a porta do banheiro. Aparentemente, a garota
ficou sentado à minha frente, encarando-me fixamente e ano­ tinha corrido para lá. Minutos depois, o Dr. Baker entrou no
tando todas as minhas palavras. Tive a impressão de estar fazen­ living. Era um homem esbelto, de olhar brilhante e profundo.
do uma preleção. Falei-lhe de como encontrei por acaso as "Como tem passado? Quer entrar?” — foi logo dizendo.
obras de Reich e da excitação cada vez maior que suas idéias Acompanhei-o até o quarto. Havia ali uma pequena maca
me provocavam. Confessei-lhe a minha desilusão com os psica­ recoberta por um lençol recém-lavado, uma mesa e uma cadeira
nalistas e falei de como tudo que lera indicava que os métodos de cada lado, e outra cadeira encostada à parede. A janela
de tratamento de Reich pareciam preencher as lacunas da psica­ tinha veneziana e um quadro estava pendurado a uma das
nálise de Freud. Quando acabei de falar, Paul Matthews conti­ paredes, obra de amador, calculei, provavelmente um cliente,
nuou sentado à minha frente e em silêncio, como se estivesse
fodo o apartamento estava pintado de um castanho-claro, e
refletindo; depois, apanhou uma folha de papel e escreveu
o assoalho coberto de fora a fora por um tapete da mesma
o nome: Dr. Elsworth Baker, com o endereço e o número do cor, porém mais claro.
telefone. Por acaso, o endereço ficava a dois quarteirões do
O Dr. Baker sentou-se à mesa, e indicou-me a cadeira do
meu apartamento de East End Avenue e depois do parque
outro lado. Ainda podia ouvir, embora fracamente, a garota
onde Bride e eu constumávamos passear com Michele.
que continuava chorando no banheiro situado atrás de mim.
Agradeci-lhe a informação, e voltei para a casa excitadíssimo. Ó médico tirou da gaveta um caderno de notas e uma caneta
No dia seguinte, à tarde, telefonei para o Dr. Baker. Paul Mat­ e anotou meu nome completo, idade, endereço etc. Depois,
thews já havia telefonado pela manhã para falar a meu respeito,
reclinou-se na cadeira e perguntou: “Por que está interessado
e Baker marcou-me uma entrevista para a próxima terça-feira,
em tratar-se comigo?” Disse-lhe que havia terminado um trata­
às 2h da tarde. mento pela psicanálise durante 10 anos, supostamente bem su­
Nesse dia, saí de casa bastante cedo e fui dar uma volta
cedido, no qual empreguei-me a fundo e, na minha opinião,
preguiçosa pelo Caris Schurz Park, ao longo do rio. O dia estava
conseguira chegar tão longe quanto o médico pôde levar-me
fresco, e aqui e ali surgia uma nuvenzinha de vapor do local
mas que, apesar disso, sentia-me basicamente insatisfeito com
por onde passara um cão dágua que um porteiro puxava pela
os resultados desse tratamento e com minha própria vida.
coleira. Escolhi cuidadosamente o caminho a seguir pelo parque,
Confessei-lhe o sucesso conquistado na minha carreira artística,
agradecendo a Deus pelo fato de as pessoas não terem elefantes

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disse que tinha uma filhinha que adorava e uma vida sexual Continuei a aspirar e expirar com força durante algum
bastante ativa, embora não me interessasse por mulher alguma tempo, até que Baker encontrou minhas costelas e começou
a apalpá-las e a comprimi-las.
depois de separado de minha esposa. Declarei que não me
sentia deprimido ou especificamente infeliz, mas que nunca Lembrei-me de Franchot Tone na cena em que foi tortura­
mais me sentiria feliz enquanto não me julgasse realizado e, do no filme “Lanceiros de Bengala”. Tentei dar uns gritos de
ousei dizê-lo, verdadeiramente feliz. Revelei o modo como che- dor na esperança de despertar a piedade de Baker. Começou,
guei a ler “A Função do Orgasmo”, de Reich, e comocompreen- então, a esmurrar-me o estômago, experimentando aqui e ali
di que estava certo a partir do instante em que ouvi falar do a fim de descobrir um pequeno músculo possivelmente retesa­
assunto. Ouvi, atrás de mim, o ruído da descarga da privada, do. Não estava mais preocupado com a hipótese de sentir uma
o barulho da porta do banheiro ao ser aberta e o da porta ereção, mas a possibilidade de acabar dando uma descarga intes­
tinal em sua cama parecia cada vez maior. Felizmente, suas
de entrada que se fechava.
mãos desceram mais para baixo de minha calça de jóquei,
“Está bem” — disse o Dr. Baker, que me encarou da mesma e não sei o que esperava que lizesse, mediu o tamanho de
forma que Paul Matthews, naquela noite no bar. “Agora, dispa- meu pênis ou de algo mais, e pôs-se a beliscar e cutucar os
se e deixe-me examiná-lo.” Senti os olhos vidrados quando me músculos da parte interna das minhas coxas. A essa altura,
levantei e comecei a me despir. “Pode ficar de cueca e com verifiquei que os ombros, as costelas e o estômago não tinham
as meias” — observou, para melhor alívio meu. Atirei as roupas doído tanto. A dor que senti foi espantosa, sobretudo porque
sobre a cadeira encostada à parede, esperando que tudo corresse tratava-se de uma área que supunha incapaz de doer. Apesar
bem. “Deite-se” — ordenou. “Procure respirar naiuralmente” disso, minhas fracas expressões vocais foram de natureza capaz
— e puxou uma cadeira para perto da maca, sentando-se a de envergonhar Freddie Bartholomew.
meu lado. Fixei os olhos na mancha de uma goteira existente "Vire-se” — ordenou Baker. Obedeci; então, começou pelo
perto do canto esquerdo da janela, ao alto, e comecei a respirar pescoço abaixo, trabalhando com um instinto infalível para en­
normalmente. Pensei com os meus botões: “E se tiver uma ere­ contrar todos os músculos retesados e doloridos. Apertava, mas­
ção, evacuar nesta cama ou vomitar?” O médico experimentava sageava c socava; se eu fosse Franchot Tone teria delatado
meus músculos em torno do queixo e do pescoço. Descobriu todo o regime de Lanceiros. “Volte-se novamente” — ordenou
um tendão retesado no pescoço, que começou a apertar cada o Dr. Baker, e tive que obedecer. “Muito bem" — observou.
vez mais fortemente. Senti uma dor fortíssima. “Está doendo?” “Agora, quero que aspire e expire o mais profundamente que
— perguntou. puder e, ao mesmo tempo, faça um movimento circular com
“Um pouco" — respondí, para evitar complicações. os olhos mas sem mover a cabeça. Procure olhar para as quatro
“Só um pouco?” — insistiu. paredes, uma de cada vez, e vire o globo ocular o mais que
“Bem, dói bastante; está doendo muito” — confessei. puder de um lado a outro.” Comecei a fazer o que mandou,
“Então por que não chorou?” o que me pareceu uma tolice, mas contente porque já não me
“Porque não sou mais criança.” massacrava o corpo. Meus olhos viravam de um lado pera outro.
Começou, então, a apertar os músculos da parte mole dos “Continue a respirar” — disse Baker. Comecei a experimentar
meus ombros. Tive vontade de dar-lhe um soco na cara sádica, uma estranha e gostosa sensação nos olhos, que pouco a pouco
vestir-me e fugir dali. Em vez disso, fiz um “Ui!” e disse: “Como foi-se espalhando pelo meu rosto e descendo pelo corpo inteiro.
dói.” “Muito bem" — disse Baker. “Agora, quero que continue respi­
“Se está doendo assim, não parece” — observou. rando e pedalando sobre a cama com as pernas." Comecei a
"Mas, dói mesmo” — respondí, murmurando “Ui! Ui!” levantar e abaixar ritmadamente as pernas, batendo com as
“Agora, respire forte” — ordenou, colocando a palma da pantorrilhas na cama. Minhas coxas começaram a doer, e fiquei
mão sobre meu peito e calcando-a fortemente com a outra. calculando quando ele iria dizer que já fizera o bastante, mas
A dor que senti era bastante forte. “E se a cama quebrar?” não disse. Até que deixei as pernas caírem sobre a cama, exte­
— pensei. “Se me partir a espinha, ou se ficar sufocado?” nuado pelo exercício. Então, pouco a pouco, a dor foi desapare­

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cendo e a mesma gostosa sensação de prazer começou a se mente diferente de tudo que eu sentira até então, e compreendi
espalhar por todo o meu corpo, dessa vez mais forte. Tive que havia tocado na mais poderosa força do mundo. Sentei-me
a impressão de que o ritmo substituía o exercício, que nada à minha janela voltada para o rio, observando as coisas que
linha a ver com qualquer esforço de minha parte. Senti-me a correnteza arrastava. Pus-me a pensar na vida, nas pessoas,
transportado e nas garras de algo maior que eu. Respirava nas crianças, no sexo, na minha ex-esposa, na psicanálise e
mais profundamente que em qualquer outra ocasião, e senti em como seres humanos chegaram a ser o que são até que,
a passagem de cada respiração através dos pulmões e até a finalmente, às cinco e meia da manhã, caí no sono.
pélvis. Pouco a pouco, senti-me suspenso fora do quarto cor
de chocolate de Baker e levado aos céus. Respirava cm ritmo
astral. Finalmente, compreendi que era tempo de parar. Não
sei quanto tempo fiquei assim; lembro-me apenas de ouvi-lo
dizer — “Como se sente?”
“Maravilhosamente" — respondi. “Isso acontece sempre?”
“Mais ou menos” — respondeu. “Posso recebê-lo às terças-
feiras, às duas da tarde. O ideal seria recebê-lo duas vezes por
semana, mas não tenho muito tempo disponível, e uma vez
por semana é mais que suficiente.”
Levantei-me um pouco tonto e comecei a vestir-me. “Estou
meio atordoado” — confessei.
“O senhor ficará bom" — observou. “Basta ter paciência.
De fato, está em ótimas condições. Ficará bom muito depressa."
Combinamos o preço por hora; acabei de me vestir,
cumprimentei-o e saí do quarto para a sala de espera. Um
homem calvo estava sentado lendo a revista Life. Nem sequer
ergueu os olhos para mim. Fiquei calculando por quanto tempo
ele estava ali sentado e se ouvira os ruídos que fiz no quarto.
Saí pelo hall. Parecia que meus pés mal locavam o chão atapeta-
do. Alcancei a rua e atravessei-a até o parque. Olhei o céu
que se estendia sobre o East River. Tinha o azul mais profundo
que eu vira em toda a vida, e parecia semeado de pequeninos
e tremeluzentes pontos luminosos. Olhei as árvores. Pareciam
mais verdejantesque nunca. Era como se todos os meus sentidos
estivessem mais desenvolvidos. Percebia todas as coisas com
mais clareza. Fui para casa sentindo-me mais animado e cheio
de energia. Aquela noite, como sempre, fui para o teatro para
fazer o papel que me cabia na peça. Ignoro se o fiz bem ou *
mal. Voltei para casa um pouco depois da meia-noite, certo
de que não havia a mais remota possibilidade de poder dormir.
Longe de diminuir, a energia que circulava através do meu
organismo tinha aumentado com o passar das horas, movendo-
se ritmadamente para cima e para baixo, da cabeça aos pés.
Não tive a menor dúvida de que se tratava da energia orgônica,
ou qualquer outro nome que lhe queiram dar. Era algo inteira­

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*

Vinte e quatro anos antes daquela terça-feira que saí do


consultório do Dr. Baker, Wilhelm Reich estava sentado no
quarto que havia alugado em Oslo, Noruega, pensando em
transferir-se para Nova Iorque. Fora afastado de seu querido
amigo Freud e de Viena por uma campanha de difamação
lançada por um de seus colegas psicanalistas, que insinuou ser
ele um fanático do sexo. Mudou-se para a Alemanha, onde
trabalhou por algum tempo, até surgirem novos rumores: era
um comunista, um fascista ou um pervertido, ou todas essas
coisas. Transferiu-se para a Noruega e ali prosseguiu na sua
obra, mas, por essa ocasião, estava próxima a eclosão da II
Guerra Mundial. Resolveu mudar-se para Nova Iorque, passan­
do a viver e trabalhar numa casa do bairro de Queens durante
um ano; como era bastante acanhado o espaço de que dispunha,
comprou um terreno no Maine onde podia respirar mais à
vontade, e onde havia uma velha casa. Foi ali que prosseguiu
nas suas experiências e treinou um punhado de jovens psicana­
listas no trabalho daquilo que chamou a ciência da orgonomia.

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(Um desses jovens psicanalistas era Elsworth Baker). Chegou federal, e todos os seus acumuladores e outros aparelhos deve-
à conclusão de que a energia orgônica não existia somente no riam ser destruídos e seus livros queimados. No verão de 1956,
organismo e sim, também, na atmosfera que nos circunda e, os agentes da Administração invadiram a propriedade de Reich,
além disso, que podia ser vista com facilidade. Descobriu que no Maine, e destruíram todos os equipanw mos. Apreenderam
certos materiais, como a madeira ou a lã isolante, podem armaze­ os livros que ali encontraram e os que se achavam em poder
nar essa energia, uma vez que a mesma passa através do metal. dos editores, em Nova Iorque, e todos foram queimados no
Calculou que essa mesma energia podia possuir poderes natu­ incinerador municipal. Isso aconteceu 20 anos depois da grande
rais de cura desde que pudesse acumular uma quantidade sufici­ queima de livros ordenada pelos nazistas, na Alemanha.
ente no interior de determinada área; por isso, construiu uma Depois de várias apelações inúteis, Reich foi preso primeira-
estrutura bastante simples do tamanho de uma mesa telefônica, mente em Danbury, Connecticut, e depois em Lewisburg, Pen-
feita de camadas de metal e celotex superpostas. Esse acumula­ silvânia. Não chegou a cumprir oito meses da sentença a que
dor atraía a energia orgônica assim retida, de forma que qual­ fora condenado e, cada vez mais doente, morreu a 3 de novem­
quer pessoa podia sentar-se sobre ele e experimentar uma agra­ bro de 1957. Foi um dos maiores homens em toda a história
dável sensação vibratória e, possivelmente, receber certas vibra­ da raça humana. Dentro de alguns séculos a humanidade ficará
ções saudáveis fornecidas pela própria energia da natureza. espantada ao verificar de que maneira o mundo tratou esse
O acumulador nunca desempenhou um papel importante no homem em vida. A maioria das pessoas o desconhece (como,
trabalho de Reich, mas seus inimigos passaram a chamá-lo de por exemplo, o mundo científico). Quanto aos demais, ou o
caixa da orgone, acrescentando que as pessoas sentavam-sc nele odeiam e procuram vilipendiá-lo, ou o adoram. Não sei qual
para se masturbar. Riram-se da coisa, inventaram mentiras so­ dessas atitudes é a pior. Teve pouquíssimos amigos que nada
bre ele, que usaram para lançar o descrédito sobre Reich. Afir­ fizeram, um dos quais foi A.S. Neill, de Summerhill, que queria
maram que Reich acreditava possuir uma espécie de caixa mági- muito bem a Reich e compreendeu perfeitamente a sua teoria.
na capaz de substituir a psicoterapia e que se podia usar à Hoje, 14 anos após sua morte, seus companheiros nascem
vontade. por toda parte como cogumelos. Esalen, Encounter e todos
Ao tratar de seus pacientes, Reich pedia que se despissem os grupos de experimentadores são descendentes diretos de
a fim de poder observar-lhes a respiração c a rigidez muscular. Reich, embora raramente o proclamem. Talvez seja melhor
Então, seus inimigos espalharam o boato de que ele se entregava assim. Um fim de semana em Esalen, banhando-se nu em com­
a orgias. Apodaram-no de pervertido, charlatão c lunático. Por panhia de 30 ou 40 pessoas, massageado, socado ou gritando
quê? Porque tratava do mais profundo da natureza humana, a plenos pulmões, provavelmente c muito agradável mas, como
que inevitavelmente açula os assassinos de mau caráter que tratamento, tem o mesmo efeito duradouro de uma tarde no
sempre parecem cercar os grandes homens. São os mesmos jardim ouvindo Billy Graham. Na verdade, talvez prejudique
que perseguiram Jesus, D.H. Lawrence e Lenny Bruce. Alguém as pessoas por ludibriar suas esperanças de liberdade. A falsa
procurou alguém da Administração de Alimentos e Drogas e esperança produz a frustração e a ira. O punhado de médicos
declarou falsamente que Reich afirmava que seu acumulador orgonomistas que atualmente prosseguem com a obra de Reich
curava o câncer. A Administração realizou algumas experiências compreende muito bem a paciência exigida e os riscos inerentes
inábeis com o acumulador, condenou-o como imprestável e ao trabalho. Seus sucessos e até mesmo seu modo de pensar
conseguiu uma ordem para impedir que Reich pudesse enviá-lo são passíveis de incompreensão pela enorme maioria dos ho­
para orgonomistas de outros Estados. Entretanto, um de seus mens, pelo fato .de ter ele desenvolvido um sistema de pensa­
assistentes adiantou-se a esse mandato e despachou um deles, mento “funcional”, em contraposição com os tradicionais siste­
o que levou o governo a ordenar a sua prisão. Em vez de contra­ mas “mecânicos”. Foi isso que permitiu a Reich (ou que o forçou)
tar um bom advogado e lutar em bases legais, Reich ingenua­ encarar o todo, e não as partes. Durante séculos, os médicos
mente acreditou que se falasse sobre a importância de seu traba­ estudaram o ser humano dissecando cadáveres. Reich, porém,
lho a justiça deveria prevalecer nos Estados Unidos. No entanto, estudou os seres vivos. Tentou descobrir o que a vida tem de
foi condenado a dois anos de prisão numa penitenciária comum com todas as outras vidas. A ciência clássica pode desin­

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tegrar os átomos e reorganizar os cromossomos. Pode mesmo tentar destruí-las da mesma forma que a antimatéria destrói
chegar a criar a vida num tubo de ensaio; mas recusa-se a a matéria. A simples existência de um homem como Reich criou
se preocupar com o problema de saber o que é a vida, preferindo uma ameaça mortal contra a “praga emocional”, que tentou
relegá-lo ao plano espiritual. levá-lo à loucura — o que só não conseguiu por um verdadeiro
Reich recusou-se a se submeter a regras. Não aceitou a
milagre. Mas, finalmente, matou-o.
tradicional separação entre corpo e alma, instinto e intelecto, Essa mesma praga continuará tentanto torcer e deturpar
psique e soma. Trabalhou com seus pacientes e realizou experi­ as suas idéias, da mesma forma que torceu e deturpou as idéias
ências no seu laboratório; e quanto mais experimentava, mais de todos os grandes homens. Sua crença na decência básica
convencido Ficava de que a sua “tênue linha vermelha da lógica” dos órgãos genitais provavelmente acabará pervertida numa
iria levá-lo ao âmago das áreas superiores superpostas da ciên­ “Sociedade da Foda Livre Wilhelm Reich” no dia em que a
cia... da psicológica à física, e vice-versa. Gradualmente, come­ multidão da praga pornográfica conseguir acabar com todos
çou a compreender que a idéia da existência de uma brecha os sentimentos de responsabilidade e ternura. A verdade é como
na natureza humana surgiu cm consequência da blindagem. o TNT. Deve ser “tratado com cuidado" e sob a “responsabilida­
Porque contraímos os músculos contra as correntes de nossas de de cada um”. Entretanto, não existe nenhum outro objetivo
energias internas que circulam da cabeça aos pés de modo agra­ mais valioso a ser perseguido; uma vez que Reich preparou
dável e nos fazem sentir unidos, não somente no nosso íntimo,
o roteiro, decidi-me a segui-lo.
mas com todo o Universo vibráiil, sentimo-nos desligados e
excluídos como se fôssemos estrangeiros no nosso próprio mun­
do.
Percebemos a natureza (Deus, o Espírito Universal) de for­
ma longínqua, através do lado oposto de um telescópio, e toda
a idéia da universalidade fica imbuída de misticismo.
Transforma-se em “nós contra eles": o homem contra os ele­
mentos e a ordem natural das coisas. Pensar em nós mesmos
como parte do esquema supremo faz-nos sentir como uma sim­
ples partícula no cosmo, porque destruímos nossa capacidade
de sentir prazer em sermos parte do todo. Se alguém for encer­
rado numa masmorra escura durante anos, seus olhos jamais
poderão tolerar a luz, e o indivíduo acabará por odiar o sol.
Porque Reich procurou fazer com que víssemos a verdade sobre
nós mesmos, não pudemos suportar a sua presença. É muito
desagradável viver ao desabrigo pela maneira miserável por que
o fazemos sem ter alguém que nos console, sobretudo quando
esse alguém nos diz o que devemos fazer para modificar a
nossa situação, e isso nos atemoriza. Reich apoderou-se da ver­
dade e colocou-a ao longo da mais penosa estrada que alguém
jamais percorreu. A cada passo do caminho foi perseguido pelo
que chamou de “praga emocional”, que consiste de determina­
dos indivíduos altamente enérgicos, cheios de raiva e frustração
criadas por seus pélvis blindados, possuidores de uma necessida­
de irracional que os faz procurar e atacar a vida sadia, amável
e ativa. Os que sofrem dessa “praga emocional” não se limitam
a ignorar as pessoas decentes e ativas, mas são obrigados a

34 35
*

Na manhã de quarta-feira seguinte à minha primeira visita


ao Dr. Baker levantei-me, depois de cinco horas de sono, satisfei­
tíssimo- O café pareceu-me melhor que nunca, e até mesmo
o lixo que boiava nas águas do East River deu-me a impressão
de possuir certo brilho e simetria. Essa sensação agradável
prolongou-se pelo resto do dia. Era uma sensação de bem-estar
e de absoluta paz com o mundo. Meu corpo parecia mais leve,
e um ligeiro arrepio de prazer subia e descia pelos meus braços,
pernas e torso. Quando respirava, essa sensação de movimento
continuava até à base do torso e era bastante agradável. Sentia-
me possuído de certa ternura e, ao pensar em mulheres, tinha
a impressão de estar impregnado de amor. Fui para o teatro
naquela noite e representei de forma que me agradou. Estava
perfeitamente integradocom os demais atores que participavam
da peça e, assim, não tive a menor dificuldade em representar
meu papel. Narrei a Maureen e Mia e aos outros a experiência
da véspera. Não sei o que pensaram sobre o caso, mas a verdade
é que todos puderam verificar o bem-estar que eu sentia. Depois
I
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do espetáculo, fui ao bar de Dick Edward, onde permanecí os olhos da revista que estava lendo a tempo de ver uma linda
jovem de faces pálidas que entrou aprcssadamente no banheiro.
pouco tempo e voltei em seguida para casa.
Comecei a sentir que estava por assim dizer, Baker apareceu imediatamente e convidou-me a entrar.
desembaraçando-me de alguma coisa. Os arrepios agradáveis Ordenou-me que me despisse e deitasse novamente na maca.
estavam diminuindo, e senti-me tomado pouco a pouco por Tirei as minhas horríveis calças de jóquei, as meias pretas e
deitei-me na maca.
uma sensação de ansiedade. Marcas escuras, que no dia seguinte
tornar-se-iam pretas e azuis, apareceram-me pelo corpo nos “Como passou a semana?” — perguntou Baker. Enquanto
lugares que Baker havia beliscado e socado. Sentei-me à janela respondia, ouvi a garota dar a descarga no vaso do toalete
com um drinque à mão, e pus-mc a contemplar o rio. A lua e sair.
brilhava esplendidamente, e distingui numa caixa de madeira
que boiava as palavras “Del Monte”... Que significariam aquelas "A reação de queda que experimentou depois de um perío­
palavras? Talvez uma marca de peras. do de sensações agradáveis foi perfeitamente natural e devia
Meti-me na cama, senti frio e procurei apanhar um cobertor per esperada”—observou. “O senhor nem sempre experimenta­
extra nos pés da cama. Então, compreendí que o frio que sentia rá novamente esses sentimentos agradáveis mas o que importa
era medo. Tentei examinar meus sentimentos da forma como é lembrar-se de como foram a fim de que possa trabalhar para
aprendera na psicanálise. Era um medo diferente de tudo que senti-los de novo. Eu o ajudarei a suportar o medo que sente
experimentara anteriormente. Lembrei-me de um espetáculo quando a sua blindagem se desfaz." Depois, mandou-me relaxar
de marionetes a que assistira, onde havia um garoto cercado completamente os músculos e respirar o mais profundamente
por esqueletos fantoches que dançavam ao som da “Dança Maca­ possível. Enquanto obedecia, observou-me por alguns instantes
bra” e em seguida começavam a se desfazer, com pernas, braços e acrescentou: "Da mesma forma que a maioria das pessoas,
e a caveira separando-se das costelas e da pélvis, que ficavam o senhor aspira com muita facilidade mas não expira por com­
separados. Tive a impressão de que também eu começava a pleto" — e com isso, colocou nova mente a palma de uma das
desfazer-me. A ansiedade que sentira era horrorosa, e percebi mãos sobre meu peito e calcou-a fortemente com a outra. Para
que retesava involuntariamente os músculos para manter-me um homem magro, tinha a força de King-Kong. Procurei ouvir
unido. Aquela sensação maravilhosamente agradável estava de­ o ruído dascostelas que se quebravam. Respirava profundamen-
saparecendo para dar lugar a outra sensação: a de agarrar-me te, e Baker obrigava-me a expirar lodo o ar absorvido, calcando
à vida. Minha blindagem, se era isso, parecia um amigo velho. as mãos sobre meu peito c até que eu começava a produzir
Há quem diga, “Prefiro morrer na cadeira elétrica a passar ruídos esquisitos como se estivesse sufocado. Entretanto, quan­
o resto da vida na prisão"; no entanto, os presos nunca dizem do deixou de apertar-me o peito, verifiquei que podia continuar
tal coisa. Viver na cadeia é muito melhor do que não viver, respirando mais ou menos profundamente e pude sentir o movi­
exceto teoricamente. mento de expansão e contração do tórax descer até à região
Compreendí que precisava lançar mão de toda a coragem pélvica. Era uma sensação agradável. “Agora” — disse Baker
possível para desembaraçar-me da minha blindagem. Sabia que — “continue a respirar e comece a fazer novamente o exercício
teria de contrariar todo o trabalho do Dr. Baker mas lembrei-me de pedalar na cama.” Comecei o exercício, deitado de costas,
igualmente de como me sentira durante aquelas 36 horas que levantando as pernas e batendo com as panturrilhas 11a cama,
se seguiram ao meu primeiro tratamento, que desejava recon­ uma de cada vez. Baker continuou mandando que eu respirasse
quistar mais que qualquer coisa. Assim passei aquela noite e fundo enquanto executava o exercício e gradualmente aquela
o resto da semana e, mais uma vez, dirigi meus passos pelo agradável sensação de arrepio provocada pela energia em movi­
Carl Schurz Park, passei pela Prefeitura e entrei no edifício mento reapareceu dentro de meu organismo. Fiquei muito tem­
onde Baker tem seu consultório. po pedalando e respirando. Senti os lábios intumescidos e sen­
Senti o cheiro de ozone no hall, entrei na sala de espera suais, enquanto os dedos pareciam cheios de energia, dando-me
e fíquei atento para ver se ouvia novamente a garota chorando. a impressão de que podia apontá-los para alguém e, tal como
os heróis dos filmes de “Marvel”, descarregar raios pelas pontas
Logo depois, abriu-se a porta do quarto e ergui rapidamente

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dos dedos. Chegamos ao Fim da sessão, e mais uma vez saí
do consultório de Baker caminhando sobre nuvens. contém ansiedade e raiva). Tais segmentos são sempre tratados
nessa ordem.
Durante semanas, às duas horas das terças-feiras, respirava Para começar a libertação da blindagem dos meus olhos,
e pedalava. (Desde então compreendí que meu peito e minha o Dr. Baker tomou de um lápis que segurou à minha frente
respiração estavam sendo tratados em primeiro lugar a fim para que eu o olhasse fixamente. Depois, começou a fazê-lo
de mobilizar energia em meu organismo, o que auxiliaria o girar rapidamente e à vontade, obrigando-me a observá-lo es­
processo de destruir a blindagem. A energia é produzida com pontaneamente. Isso continuou pelo espaço aproximado de uns
a aspiração do ar.) Atualmente, Baker obriga-me a dar socos 15 ou 20 minutos, e o resultado deixou-me maravilhado. Meus
na cama enquanto estou pedalando. Permaneço esmurrando, olhos pareciam inteiramente livres na minha cabeça, e pude
pedalando e respirando; o ritmo do exercício toma-me por sentir a ligação direta existente entre eles e o cérebro. Em segui­
completo e acabo tendo a sensação de estar fora dc mim. da, obrigou-me a girar os olhos de um lado para outro sem
Então, numa terça-feira, aconteceu uma coisa aterrorizan- mover a cabeça, forçando-os a fixar cada uma das quatro pare­
te: comecei a sentir-me paralisado. Estava fazendo o exercício des do quarto. Durante todo o tempo em que realizava mais
de rotina de pedalar e respirar quando percebi uma sensação esse exercício tive que continuar mantendo a mesma respiração
esquisita na face e nos lábios, ao mesmo tempo em que meus profunda e ritmada.
dedos ficavam tortos. A sensação era quase de dor. Depois, Baker mandou-me fazer caretas de toda sorte. (Tive a
não podia mover o rosto e os braços; então, Baker suspendeu impressão de ser um idiota. Obrigou-me a fazer olhar de des­
imediatamente o exercício e começou a esfregar-me as mãos confiança, ou a tentar exprimir ansiedade. Gradadvamente,
com força até que, pouco a pouco, voltei ao normal. “Que diabo todas essas coisas fizeram com que meus olhos se sentissem
é isso?“ — perguntei. como se fossem usados pela primeira vez em muitos e muitos
“O senhor produziu energia em quantidade superior à que anos, e a sensação foi maravilhosa.
podia suportar neste momento” — explicou — “por isso, seu Um dia, quando procurava manifestar ansiedade, lembrei-
organismo contraiu-se contra esse excesso de energia.” me repentinamente de um velho cão que tive. Chamava-se Ho-
“Talvez tenha aspirado oxigênio demais com toda essa res­ mer, e apanhei-o quando tinha nove ou 10 anos na Liga de
piração profunda” — observei. Salvamento de Animais, em Boston. Levei-o para casa e desde
“Não” — disse Baker — “essa seria a explicação dada pela logo nos tornamos amigos inseparáveis. Era um cão pastor gran­
medicina clássica mas, verá... mais tarde, no decorrer do trata­ de e desajeitado. Livrei-o do cativeiro e da morte, e o animal
mento, o senhor será capaz de respirar tanto quanto quiser parecia compreender perfeitamente o que fiz por ele; tanto
sem sentir essa contração.” assim que em todo o mundo não existiam outras duas pessoas
tão intimamente ligadas. Vivíamos juntos todas as horas, e eu
Passaram-se muitas semanas até que Baker verificou que
me sentia sempre loucamente feliz quando o encontrava à minha
eu já havia armazenado energia suficiente no peito e, então,
espera, após a escola. Costumava amar>*>.r-lhe uma corda ao
deu início à tarefa de libertar os músculos cronicamente enrijeci­
pescoço e levá-lo a longos passeios em minha companhia; depois,
dos que controlavam os meus olhos. Esse é o primeiro segmento
regressávamos à casa e ficávamos horas inteiras a olhar nos
da blindagem que deve ser libertada em todos os pacientes.
olhos um do outro. Mas, Homer era um cão nervoso e meus
Tais segmentos são sete, ao todo: o ocular (é da máxima impor­
pais viviam constantemente amedrontados ante a possibilidade
tância libertar os olhos), o oral (boca, queixo, garganta etc.),
de ele poder morder as crianças vizinhas. Certo dia, mordeu
o cervical (os músculos mais profundos do pescoço, que impe­
minha mãe; meu pai chamou a Liga, que mandou um carro
dem o choro), o torácico (peito, que contém as emoções de
levá-lo. Corri para o quarto, atirei-me na cama e chorei durante
angústia, dos soluços, da raiva e da ansiedade), o diafragmático uma hora. Depois, jurei que ninguém me faria chorar novamen­
(a raiva assassina localiza-se no diafragma), e o abdominal e te e, realmente, nunca mais chorei, nem mesmo por ocasião
pélvico (os distúrbios do pélvis podem levar à impotência da da morte de minha mãe, quando eu cursava o ginásio, até aquele
ereção, à ejaculação prematura'e à prisão de ventre; o pélvis primeiro dia no consultório do Dr. Baker. Depois de 25 anos.

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“O quê?” — perguntei.
as lágrimas rolaram pela primeira vez por minhas faces. Fiquei
"Vomite.”
deitado na cama a chorar, e ao terminar a sessão, caminhando
“Mas, vou sujar a cama inteira.”
pelo Carl Schurz Park e pensando em Homer, ainda chorei
"Se quiser, pode fazê-lo. E continue a respirar enquanto
mais um pouco.
vomita” — disse ele.
Na terça-feira seguinte, em lugar do lápis, o Dr. Baker Continuei deitado, a respirar profundamente; meti o dedo
usou uma lanterna elétrica pequena do formato de uma caneta- na garganta e vomitei. Depois, repeti a operação.
tinteiro. Acendeu a luz, apontou-a para os meus olhos e começou “Continue a respirar” — disse Baker. Meu lábio inferior
a girá-la de um lado para outro. O efeito era psicodélico. Come­ começou a tremer como o de uma criança, as lágrimas desciam-
cei a acompanhar as voltas da luz pelo quarto às escuras, e me pelas faces e pus-me a gritar. Solucei durante cinco minutos
o efeito foi surpreendente. Pude, realmente, experimentar como se sentisse o coração despedaçado. Por fim, extinguiu-se
a esquisita sensação do cérebro que se movia no interior do o choro.
meu crânio. Baker Ficou volteando a luz à minha frente por "Aconteceu-Ihe alguma coisa?” — perguntou Baker.
uns quinze minutos; depois, apagou-a, examinou o fundo dos "Pensei em minha mãe, em como a queria e como me
meus olhos e observou: "Estão aparecendo lindamente.” Tudo sentia por saber que jamais poderia encontrá-la; por isso, senti-
sobre o tratamento a que mc submeteu e a opinião que deu me desesperançado e profundamente desgostoso” — respondí.
sobre as minhas reações nada tinham de mecânico mas, ao "Foi como se tivesse sentido profundamente todas essas coisas
contrário, eram o resultado da habilidade de um ser humano pela primeira vez desde criança; é um grande alívio ser capaz
ao entrar em contato com os sentimentos e as cargas de energia de chorar, e não uma grande bobagem, como disse quando
de outro. tive medo.”
"Olhe-me de frente” — disse Baker, e voltei-me para "Sim” — observou. "É uma coisa terrificante. O senhor tem
encará-lo com um ar estúpido. “Agora, procure acentuar essa enorme reserva de cólera de que deve livrar-se, uma enorme
expressão” — acrescentou. Transformei o rosto numa careta carga de raiva e ira e, depois, muitos anseios e muito amor.
verdadeiramente horrível. “O que sente com essa careta?" — Okay” — disse. "Vê-lo-ei na próxima terça-feira.”
perguntou. Levantei-me, vesti-me e saí.
“Não sei” — respondí, mentindo.
"Mas, isso deve fazê-lo sentir alguma coisa.”
"Bem, desconfio... sinto-me desprezível.”
"Desconfia?”
"Sim.”
“Mas, não sabe?"
"Está bem, desprezível."
"Sente-se assim por minha causa?”
"Bem, suponho.”
“Supõe?”
“Está bem, que diabo! Sinto mesmo."
“Sente o quê?”
"Desprezível! Jesus!”
“O que é?”
“Já disse o que senti."
"Mas, eu não sinto o mesmo a seu respeito.”
"Está bem, que diabo! É muita bobagem...ficar aqui reviran­
do os olhos de um lado para outro.”
"Enfie o dedo na garganta” — ordenou Baker.

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6

“Se todo mundo é blindado (inclusive eu)’* — pensei —


“e basicamente incapaz de realizar a satisfação sexual, isso se
dá porque todos nós estamos enrijecidos. Se assim é, de que
maneira chegamos a essa situação?”
Um dia, lendo um dos livros de Reich, descobri sua opinião
sobre o caso. Trata-se de simples conjetura; mas, Reich calculou
que milhares de anos passados, na idade das cavernas, quando
o homem primitivo começou a compreender que podia compre­
ender, verificou que a natureza era aterradora. Sentiu-se só
e desamparado em face do vento, das tempestades, das erupções
e dos animais predadores. Percebeu, igualmente, a natureza
que trazia dentro de si mesmo sob a forma de movimentos
rítmicos delicados e agradáveis. Tratava-se das pulsações de
sua energia orgônica. Eram agradáveis e faziam-no sentir-se
uno com a natureza, mas a natureza, quando nela pensava
(porque podia pensar), parecia-lhe uma coisa horrível. Assim,
começou a lutar contra a natureza externa (e até hoje procura
submetê-la à sua vontade) e a desprezar a natureza interna

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com o enrijecimenio dos músculos contra aqueles suaves movi­
mentos, da mesma forma que o indivíduo amedrontado torna-se O homem tornou-se cada vez mais "civilizado”, construindo
tenso ao suspender a respiração, e, dentro em pouco, esse estado edifícios fortificados e cidades que o afastaram ainda mais da
tornou-se habitual. Por isso, o primeiro homem que se tornou natureza, além de blindar também os filhos à sua imagem. Perce­
blindado deve ter procedido por essa forma e, assim, apartou-se beu, de certa forma, que as desajeitadas tentativas infantis para
da natureza para sempre. Porque o homem sadio, liberto da alcançar as partes genitais tinham algo a ver com os anseios da
blindagem e cônscio das ritmadas e agradáveis pulsações que natureza interna, e por isso tratou de proibi-las. Com a circun­
sente no interior do corpo sente-se também uno com a mais cisão, que o transforma num homem simbolicamente fechado,
distante estrela e com o inseto mais próximo, porque a estrela, pôde confinar sua própria natureza interna para tornar-se
o inseto e ele próprio pulsain no mesmo ritmo. O indivíduo numa marca registrada da "civilização”, enquanto o “cão não
blindado, porém, tendo perdido a capacidade de perceber os circuncidado” de qualquer inimigo passa a ser odiado como
próprios fluxos, nada mais pode fazer senão formular hipóteses sujo, desumano e animalesco. É claro que nunca pôde expulsar
intelectuais sobre a unidade da natureza e sua ligação com ela. realmente a natureza interna, mas sempre fez o que pôde para
negá-la. Como homem, tratou de blindar o próprio filho, que
Naturalmente, o homem blindado pagou um alto preço cresceu frustrado, umas vezes submisso, outras rebelde, irri­
por isso. Sua brandura natural transformou-se em dureza. tado, temendo o pai e ao mesmo tempo ansiando pelo seu
Sentindo-se alheio à natureza, passou a detestá-la c a temè-la amor,e vagarosa, mas seguramente, desenvolveu-se a grande tra­
cada vez mais. Tendo perdido a capacidade de regular a própria
dição autoritária e puritana sobre a qual foi construído o
sexualidade tal como fazem os elefantes, as girafas e até os
mundo ocidental. Deus, que está tão próximo do homem livre da
ratos, adquiriu características sexuais secundárias. Onde, no
blindagem, tão perceptível na doçura interna de cada um e no
passado, possuía a companheira com delicadeza e ternura movi­
suave contato com os olhos e o corpo do objeto amado, con­
do por uma profunda e elementar necessidade de sentir-se tinua um tanto inatingível, desejado, mas nunca alcançado.
unido a ela, atualmente a frustração causada pela incapacidade
Em dias que já lá se vão, quando o Velho Testamento
de agir daquela forma provoca raiva e as marteladas na porta, eslava sendo complicado, um filósofo pobre, maltrapilho e blin­
ao invés de transpô-la delicadamente. Para o homem blindado, dado decidiu que o homem deveria morrer, deveria abandonar
o desejo sexual assumiu aparência de um beco sem saída, uma o proprio corpo para encontrar Deus. E, de fato, o filósofo
obrigação compulsória mas terrivelmente importante, além de
estava certo. Se pudéssemos romper essa blindagem que se
insatisfatória, decepcionante e desagradável. Sua natureza se­ tornou parte integrante de nós mesmos, ccrtamente Deus esta­
xual tornou-se cruel e pervertida. Por isso,sentiu-se perturbado
ria à mão. Assim, a esperança de poder um dia libertar-se do
nos seus momentos de reflexão e procurou cobrir sua camada
invólucro mortal para chegar a Deus (que é unidade, natureza,
secundária de sexualidade desgraciosa com outra camada supe­
contato, fusão, união e amor) tornou-se o meio de suportar
rior de uma falsa "bondade” ou "decência social.” (É essa camada
uma existência enclausurada. Entretanto, tempos depois, o ho­
superior que está sendo agora destruída. A segunda camada
mem compreendeu que era uno com Deus, que Deus vivia
não pode ser atingida com a mesma rapidez.)
nele...tão próximo e, contudo, tão distante. A proximidade ina­
E o tempo foi passando. O homem prosseguiu em seus tingível tornou-se insuportável e, por isso, o homem afastou
esforços para controlar e dominar a natureza externa e interna, o Deus que procurava com o misticismo que criou para envolvê-
afastando-se cada vez mais de si mesmo. Sua blindagem passou lo. Construiu maciças catedrais, organizou cruzadas, conquistou
a significar segurança a seus olhos e ele aprendeu a apreciá-la, terras santas aos infiéis e excomungou populações inteiras; tudo
tal como o prisioneiro aprecia os grilhões. Nos momentos de isso para apagar o fato de que Deus vivia nele. E, à proporção
luxúria ou embriaguez, sua camada externa de "moralidade” que o encantador, terno e natural desejo sexual ia-se atrofi­
desaparece para deixar à mostra a segunda camada de odiosida- ando no organismo, os anseios secundários começaram a se
de selvagem que o leva ao estupro e ao assassinato. Foi essa fazer sentir. O desejo de “romper” a armadura transformou-se
a camada que Freud descobriu e chamou de subconsciência. num desejo de atacar e romper. O estupro, ou as fantasias
de estupro, tranSformaram-se em hábitos da vida sexual. O

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homem ligou o sexo ao dinheiro e ao poder. Sentiu-se só e sem se apegar demasiadamente ao sonho, a fim de que a vida
miserável e com medo de Deus, que passou a encarar como na prisão não se torne insuportável. No cárcere a sobrevivência
um pai irritado e vingativo (porque, quando criança, pegou emocional exige um equilíbrio cuidadoso entre a esperança e
naquela coisinha proibida quando estava só, no escuro, e Deus, a resignação. As vezes, certos detentos doentes e empedernidos
que tudo sabe, devia estar pensando no castigo). Tentou negar pôem-se a incitar os outros, alegando as más condições da prisão.
a própria mortalidade animal inventando um nome de família Começam a pregar a rebelião e a vingança contra o estabeleci­
e uma fortuna que deviam durar para sempre. Isso significou mento (isto é, contra guardas e contra o diretor). Os detentos
a conquista de terras que excediam as suas necessidades (algo mais velhos e mais inteligentes, conhecendo as consequências,
que nem mesmo um rinoceronte jamais faria), a construção procuram desencorajar essa idéia de rebelião; mas a chispa da
de uma casa inexpugnável, fria e protegida por uma torre de liberdade, uma vez atiçada, é difícil de ser extinta. Planos insen­
pedra para sua moradia (coisa que nem um urso seria capaz satos são organizados rapidamente, um guarda é assaltado, rou­
de fazer), a colocação de um cinto de castidade na esposa para badas as chaves, atacado o gabinete do diretor; irrompe a rebe­
garantir que a própria raça continuaria através do filho, e ame­ lião, outros guardas são mantidos como reféns, os colchões são
drontar esse mesmo filho para obrigá-lo a “respeitar” o pai estripados e queimados, o equipamento destruído, uma lista
e, finalmente, a cimentar todas essas coisas com um poderoso de exigências que não podem ser atendidas é apresentada
código de “moralidade” reforçado pelo medoe pela força. Além ao diretor, alguns homens são assassinados, a rebelião prossegue
disso, à noite, perambulando pelos corredores de seu castelo e, evcntualmente, a situação volta ao normal. Os presos voltam
(ou pelo chão enlameado de sua choupana), tudo parecia vazio às celas, os chefes da rebelião são metidos na solitária e é suspen­
e sem sentido, tal como atualmente. Pôde construir um castelo so o privilégio anterior de frequentar a biblioteca e assistir aos
ou uma catedral, e estudar os filósofos que procuraram tornar shows da televisão. Fora, os liberais que se sentem ultrajados
a vida mais suportável com a criação de uma razão para a põem-se a debater as reformas penais, mas no interior da prisão
existência, mas tudo foi em vão e o hoinem, do fundo da noite, a vida continua como dantes, com exceção dos privilégios perdi­
bem o compreendeu. O sentimento de desamparo nasce da dos.Alguns prisioneiros tornam-se mais irritados que nunca,
frustração do profundo anseio cósmico de fusão, de união e muitos parecem indiferentes, e somente poucos agacham-se
unidade, que só pode ser obtido por meio da capacidade liberta nas celas às escuras relembrando a rebelião e rindo consigo
e sadia de fundir-se com o ente amado num orgasmo completo, mesmo. Talvez a coisa mais triste de tudo ocorra num ponto
que o homem blindado perdeu para sempre. qualquer de penitenciária: uin prisioneiro que planejara cuida­
Certa vez, fizeram a Reich a velha pergunta: “O que é dosamente a fuga, que fabricara uma chave ou mantinha um
a verdade?” — e ele respondeu: ”É procurar o caminho que revólver contrabandeado, ou combinara com um amigo para
leva àquilo que se sente quando se ama com ternura, ou quando ter um carro à sua espera em determinado ponto, ou que subor­
se cria, ou dá à luz um filho, constrói o próprio lar, ou quando, nara um guarda, ou cavara um túnel que já alcançava dois
à noite, se admiram as estrelas.” São essas as coisas que sentimos terços da muralha, está agora completamente frustrado devido
em comum com todos os seres humanos que têm a capacidade à insensata rebelião de um grupo desesperançado de homens
de sentir. São os sentimentos mais profundos, mais ternos e enraivecidos que nunca tiveram a menor chance, mas foram
mais estimulantes, e a capacidade de senti-los é a capacidade incitados pelos prisioneiros empedernidos que, agachados no
de ser livre. fundo de suas celas, riam consigo mesmo.
O homem, porém, que modelou para si mesmo um corpo A prisão que o homem construiu para si próprio é mais
que mais parece uma jaula, aprisionou-se em cidades-prisóes forte que qualquer outra erguida pelos governos. É a prisão
e em civilizações do mesmo tipo. Os prisioneiros sonham com da estrutura de seu caráter, que ele cria novamente para os
a liberdade. Combinam e planejam a fuga e, vez por outra, filhos. Não haverá nenhuma fuga em massa dessa prisão por
alguém consegue realmente fugir. No entanto, para a maioria meios políticos ou sociais. Pelo contrário, as tentativas dessas
dos presos, a fuga não passa de um sonho. Para sobreviver fugas em massa resultaram em miséria maior para os-prisionei-
entre as grades da prisão, o prisioneiro precisa sonhar, mas ros. Os homens decentes, como os velhos e inteligentes detentos.

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passam a vida procurando tornar a prisão mais suportável para
os companheiros, batendo-se pela reforma do sistema penal.
Os artistas incitadores da revolta no nosso mundo-prisão preci­
sam constantemente de se fazerem cercar por uma roda-vi va
de atividade pseudo-revolucionária, exaiamenie para sentir que
estão vivos, Essa é sua única motivação — bombear alguns arre­
pios de sentimento nos ossos mortos. A verdadeira revolução
só é possível se começar de dentro para fora. Reich foi um
dos raros revolucionários autênticos que jamais viveram — e
eu resolvi aderir à revolução.

“Grite” —ordenou Baker, um dia em que eu estava deitado


em sei leito de dor.
“O quê?” — perguntei.
“Isso mesmo, grite” — confirmou, eu deixei escapar um
gritinho seguido por uma risadinha. “Não pode gritar mais
que isso?” — perguntou.
"Puxa!” — respondi, pondo-me novamente a rir. Então,
meteu uma das mãos sob a minha cabeça e com a outra enterrou-
me o queixo no pescoço com toda a força. Tive a impressão
de que estava sendo enforcado.
“Caramba!” — exclamei depois que me soltou.
“Agora, vamos ouvir um grito” — disse Baker. O grito
que dei foi tão forte que cheguei a pensar que outra pessoa
havia gritado em meu lugar.
“Outra vez” — ordenou, e mais uma vez o ventríloquo
funcionou e soltei outro grito medonho.
“Volte-se de barriga para baixo” — ordenou, começando
a cutucar minhas costas em torno das omoplatas. Encontrou

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um ponto que lhe pareceu melhor e pôs-se a apertá-lo. Apertou- aos sentimentos mais delicados — amor, anseios e tristeza. Seu
o com toda a força e não pude reprimir um gemido. Começou choro é um choro furioso.”
a comprimi-lo e a beliscá-lo com a mesma força, o que me Semana após semana, Baker continuou com as suas cutuca­
fez gritar de dor. Tive a impressão de que antes daquele momen­ das. Descobriu músculos onde nunca supus que eles existissem,
to eu nunca havia gritado de fato, exceto, talvez, quando criança; e todos estavam rijos, tensos e retesados. Ele sabia exatamente
aliás, não sei se as crianças de Nova Inglaterra gritam assim. quais os que precisava tratar, quais as emoções que eles im­
Gritar dessa maneira é algo que as atrizes fazem nos filmes. pediam e como fazer para libertá-los. O tratamento causava-me
Mas, os músculos que Baker descobriu obrigaram-me a isso. dores terríveis, e desde logo acostumei-me a ficar com o corpo
Não que a dor fosse demasiadamente forte, mas sim porque coberto de manchas negras e azuis. Tenho a certeza de que
ele encontrou o botão de “partida" e eu não podia escolher. meus companheiros, no teatro, quando me viam trocar de rou­
Pelo menos, foi o que me pareceu. Os músculos que ele estava pa, pensavam que eu havia caído nas garras de algum sádico
afrouxando eram exatamente os que eu deixara enrijecer por feiticeiro. Eu não parava de uivar de dor enquanto Baker conti­
muitos anos, quando contribuíram para satisfazer meu desejo nuava a socar, beliscar e comprimir meus músculos. Chorava,
de nunca mais chorar. Mantive-os assim enrijecidos por tanto berrava e mordia deitado na cama. Revirava os olhos, batia
tempo que o enrijecimento tornou-se crônico, até que naquele com a cabeça e procedia como um louco. Dc todas as vezes,
instante Baker procurava libertá-los para que eu pudesse chorar essas sessões terminavam com uma respiração profunda, sorvida
de novo. Finalmente, resolveu suspender o exercício. em haustos cada vez maiores que me desciam pelo corpo até
“Agora, feche os punhos e esmurre a cama" — ordenou que podia senti-los nos pés.
Baker. Fechei as mãos e comecei a bater fracamente. Deixava o consultório com a energia circulando por todo
“Bata com mais força” —observou. Senti-me como se fosse o organismo. O homem calvo que ficava na sala de espera lendo
um idiota. Inesperadamente, pôs-se a cutucar mais uma vez a revista Life já erguia os olhos e saudava-me com um alô;
o mesmo músculo dolorido e retesado sem parar e, então, come­ eu atravessava todo o corredor e passava pelo porteiro, que
cei a esmurrar de fato a cama. Continuei a bater cada vez com me olhava de forma esquisita até alcançar a rua e o ar fresco.
mais força, deitado sobre o estômago, gritando, chorando e O edifício onde Baker tinha o consultório ficava exatamente
mordendo, tomado de verdadeira fúria. Tentei abrir caminho à beira do rio. num local encantador para quem vive em Nova
através da cama para livrar-me de suas mãos. Soluçava dcscon- Iorque. Foi por isso que o velho Gracie ali mandou construir
troladamente. Gritava mais fortemente que nunca. Então, Baker sua mansão nos idos de 1799, e é também por isso que o Prefeito
deixou-me só, estirado na cama e soluçando profundamente. ali reside. Ao sair do prédio, costumava olhar para o céu para
A cada vez que respirava parecia que o ar descia até a base ver se podia localizar os pequeninos pontos luminosos que,
da espinha, e eu começava a chorar novamente —e meus soluços segundo Reich, eram as bolhas da energia orgônica. O modo
eram convulsivos e desesperadores. Continuei a chorar por uns em que se moviam de um lado para outro e em torno de cada
cinco minutos, e depois continuei deitado por outros cinco, um era um divertimento para mim, que me levava a sorrir
o rosto mergulhado no lençol, respirando involuntariamente a quando podia vê-los. Nas noites de terça-feira sempre podia
grandes haustos. Finalmente, acalmei-me e voltei-me de costas. contá-los até a madrugada, porque a energia que sentia por
“Como se sente?" — perguntou Baker. todo o corpo valia por cem xícaras de café.
“Sinto um alívio fantástico” — respondi. “É uma maravilha Ao levantar-se, na manhã seguinte, punha-se a vomitar
poder chorar de novo depois de tantos anos, mas parece que no banheiro, abrindo as torneiras e a descarga da privada para
está faltando alguma coisa. A sensação é incompleta. Além disso, abafar o ruído, a fim de que a linda Bridie não pensasse que
notei que as lágrimas são poucas quando choro." o patrão estava descarregando os intestinos de forma desagradá­
“As emoções mais fortes devem ser expelidas em primeiro vel. Baker tinha-me dito que “provocando o reflexo do vômito”
(isto é, metendo o dedo na garganta) consegue-se libertar a
lugar, como a raiva, a fúria e o ódio” — observou. “Somente
ansiedade, e isso era uma coisa que eu podia fazer com os
depois de terem sido libertadas é que o senhor poderá chegar
melhores resultados, todas as manhãs, e por toda a vida. O

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exercício faz realmente bem, por mais esquisito que seja o ruído
(enquanto a pessoa continua a respirar), embora pareça um aquelas antigas sensações de um fluxo delirante e enlouquece-
tanto idiota se houver alguém por perto. Aconselhou-me, tam­ dor. Era como uma suave brisa primaveril que me atravessava,
bém, a olhar-me diretamente nos olhos, diante do espelho, dando-me uma sensação de sentir meu corpo em três dimensões.
quando estivesse fazendo a barba, a fim de observar a expressão Essas sensações pareciam circunscritas à parte superior do cor­
do olhar. É interessante verificar como isso nos deixa nervosos po, mas eram maravilhosas. O Dr. Baker vinha experimentando
mas, quando se pode observar-se a si próprio por alguns instan­ diversos métodos para libertar-me da cólera. Um dia, entregou-
tes, a ansiedade tende a diminuir. Minha vida ficou circunscrita me um lençol dobrado e enrolado como um bastão de beisebol
a uma rotina: “Nunca é Tarde Demais”, o Dr. Baker e o bar e perguntou-me se eu gostaria de bater com ele na cama. Sentei-
de Dick Edward. me sobre os calcanhares e passei a usar o lençol enrolado como
Foi então que encontrei Carolyn. Há muito tempo esperava um batedor de tapetes, socando violentamente a cama. Foi agra-
por ela, sem nunca saber quem poderia ser, enquanto ia aceitan­ dabilíssimo. Disse-me para fazer barulho enquanto balia. Pus-
do todas as pequenas que frequentavam aquele bar. Ê claro mc a resmungar com ferocidade, dei grunhidos de sádico e
que nenhuma delas era Carolyn, embora não o soubesse até provoquei toda a sorte de ruídos que me pareciam vagamente
então, e por isso sempre fiz o que devia fazer. Bridie compreen­ sexuais. Continuei a bater na cama com o bastão de pano até
dia perfeitamente a verdadeira procissão de ninfas que entra­ sentir-me completamente exausto e incapaz de prosseguir. De­
vam e saíam de minha vida e do meu apartamento. Uma noite, pois, obrigou-me a executar o antigo exercício de pedalar e
Michael McCourt, meu amigo e garçom do bar de Dick Edward, bater na cama com as panturrilhas, deitado de costas, dando
cuja folga era no dia seguinte, sexta-feira, ofereceu-se para socos a torto e a direito como uma criança esperneando no
fazer-me conhecer as alegrias de outro bar da parte alta da berço. A respiração e as pancadas ritmadas transportavam-me
cidade, o Spark’s Pub. Assim, na noite seguinte, foi-me buscar para fora de mim mesmo, e eu voltava a ser criança e a expulsar
no teatro e seguimos de táxi até a esquina da Rua Oito com de meu sistema os antigos acessos de cólera. À medida que
York, onde entramos num subsolo escuro cheio de posters pelas a libertação de minha blindagem prosseguia sistematicamente
paredes e fomos dar a um salão ainda mais escuro. Quando de cima para baixo na direção da pélvis, comecei a ter sonhos
meus olhos acostumaram-se àquela escuridão, vi a mais encanta­ profundamente significantes que descrevia ao Dr. Baker e que,
dora pequena do mundo ocidental, sentada a uma mesa próxi­ como pude verificar, quase sempre era capaz de analisar espon­
ma, em companhia de outra linda garota e de um rapaz. Engoli taneamente. Há muito, já não sentia mais o medo de ficar parali­
duas ou três doses de uísques do bar e dirigi-me à vitrola automá­ sado, uma vez que o meu sistema já podia tolerar a elevação
tica que ficava perto da mesa ocupada pelos três. Ela usava do próprio nível de energia sem a menor dificuldade.
um felpudo suéter amarelo e era de uma beleza quase aristocrá­ Profundos sentimentos de angústia e desolação, dos quais
tica, uma beleza que dava vontade de arrastá-la para casa, jamais consegui libertar-me nos meus dez anos de psicanálise,
arrancar-lhe as roupas e violentá-la. começaram a desaparecer. Baker mandava-me abrir os braços
“Como vai?” —arrisquei a dizer-lhe, já com o olhar embacia- como se esperasse ardentemente por alguma coisa, e esse sim­
do, sem poder notar se ela sorriu ou zombou de mim. Depois ples gesto bastava para reviver um punhado de lembranças
de meter a moeda na vitrola, voltei ao bar. Michel McCourt profundas e ternas de minha mãe, e das frustrações que sofri
conhecia Don Spark, o genial patrão da cripta, que por sua quando criança.
vez conhecia Carolyn. Levou-me à sua mesa e fez as apresenta­ Então, meu choro começou a mudar. Já tendo tratado da
ções. Minha energia orgônica circulava como se eu estivesse raiva, da fúria e do ódio que trazia dentro de mim até ao ponto
sendo socado por uma dúzia de Bakers e, antes do amanhecer, em que podia expressar completamente tais sentimentos e
minha sorte estava selada. expulsá-los de meu sistema nervoso, emergiu a camada mais
profunda dos sentimentos mais delicados. Desapareceu a mágoa
Não sei se foi porque apaixonei-me por Carolyn ou porque
das afrontas sofridas em criança (verdadeiras ou não) às mãos
o Dr. Baker já tinha começado a tratar dos músculos do meu
diafragma, mas o fato é que comecei a sentir instantaneamente de meus pais. Meus sentimentos de ódio contra minha mãe,
motivados pelo fato de ter-me sentido rejeitado, desvaneceram-

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se completamente, e agora sinto por ela um amor terno e saudo­
so. Todavia, como já nào existe e como não sou mais uma
criança, esse amor transformou-se em angústia. Um dia, deiiado
na cama de Baker, fiquei pensando na morte de minha mãe
e chorei desconsoladamente. Procurei a mão do médico, que
me deixou segurá-la; depois, apertou-me o braço e procurou
confortar-me. Quando acabei de chorar, vesti-me, saí do consul­
tório, atravessei a rua até o rio, e deixei-me ficar ali por muito
tempo, contemplando a corrente, e compreendí que, finalmente,
vinte anos decorridos sobre a sua morte, pude dizer adeus à
minha mãe.

"Meu Deus!" — pensei certa vez — "será que existem no


mundo pessoas livres da blindagem?" — e ocorreu-me a idéia
de que, aqui e ali, e sem nenhuma razão aparente, existem
pessoas que apesar de pútrida educação à qual quase todos
estamos sujeitos nascem relativamente livres e naturalmente
sadias. Através da cultura, quase todas as civilizações forçam
seus filhos a se tornarem blindados. Uma das poucas exceções
a essa regra geral parece ser a da ilha Trobiand, no Pacífico
Sul. Em 1929, um amigo de Wilhelm Reich, o famoso antropolo-
gista Bronislaw Malinowski, publicou sua obra clássica, “A Vida
Sexual entre os Selvagens", escrita nos quase dois anos de per­
manência naquelas ilhas. Ninguém sabe ao certo como seria
a raça humana se ela fosse tão fiel à própria natureza como
o são os tigres, elefantes e baratas, nem que tipo de civilização
teria desenvolvido. Aparentemente, porém, os naturais das
ilhas Trobriand conseguiram aproximar-se da naturalidade
muito mais que qualquer outro povo em todo o mundo.

57
Existem duas coisas que, aparentemente, representam as
ção inconcebível intrometer-se com a intimidade de outro casal,
necessidades básicas dos seres humanos: trabalho c amor. Um
povo natural, em contato com suas necessidades instintivas, observando-o ou ouvindo seus aroubos amorosos. Mesmo por­
que o fato não tem para ele o menor interesse. Desde criança
construiría uma civilização capaz dc facilitar a satisfação dessas
pôde testemunhar o comportamento sexual humano sob todas
necessidades. Os indígenas das ilhas Trobriand parecem ter
as formas naturais. Fez parte integrante das próprias experiên­
realizado exatamente isso. Ali existe absoluta liberdade sexual
cias e da educação que recebeu, motivo pelo qual o assunto
para todas as idades, a partir da infância. As crianças entregam-
se inteiramente livrçs dc qualquer sentimento de vergonha a não exerce sobre ele o menor fascínio.
brincadeiras sexuais felizes, saudáveis e normais adequadas à Para se ter uma idéia de como a nossa atitude para com
sua idade. Essas brincadeiras não somente são toleradas pela o sexo parecería estranha a um indígena de Trobriand, basta
comunidade como encaradas como expressão de um comporta­ pensar numa sociedade imaginária na qual a alimentação fosse
mento inteiramente normal. tabu. Numa tal sociedade, como é natural, todos seriam obriga­
Tal como entre nós, ali também existe uma agradável auto- dos a se alimentar, mas teriam de fazê-lo em segredo. Privada
da oportunidade de observar os outros quando estes se alimen­
segregaçào entre os sexos. Grupos de meninos, de oito ou nove
anos, embrenham-se em expedições pelas florestas nas suas tassem de forma natural e à vontade, a criança nascida nessa
habituais atividades infantis. As vezes, passam dias e dias acam­ sociedade experimentaria sentimentos terrivelmente confusos
pados nas selvas, nadando, apanhando conchas. Ninguém se sobre a necessidade de alimentar-se. Com certeza, apanharia
mostra preocupado com eles: nunca se atiram a essas expedições um pedaço de pau e fugiria com ele para um lugar oculto
enquanto não se sentem capazes e quando tal acontece quer para mordê-lo à vontade, supondo que alguém estaria comendo
dizer que estão preparados. Enquanto isso, também em grupos, em sua companhia. Mas, ao mesmo tempo, sentir-se-ia culpado
as meninas se entregam a folguedos femininos. De repente, por essa fantasia de sua imaginação, e isso não lhe permitiría
os garotos atiram-se a elas. Para atacá-las? Não. Apenas porque saborear devidamente o alimento. Sofreria de problemas diges­
colheram muitas flores silvestres, conchas e pedras magníficas tivos. Tarde da noite, quando já devia estar dormindo, a sala
e voltaram para oferecê-las às meninas. A união sexual não de jantar de sua casa estaria iluminada e ele veria o papai e
se processa de forma violenta ou ruidosa. Não é preciso fingir a mamãe... comendo. O garotinho ficaria de ouvidos atentos
de médico nem apelar para qualquer outra desculpa para reali­ para perceber todos os detalhes da cena e, em seguida, dormiría
zar o contato sexual, que surge de forma absolutamente natural. mal. Talvez os garotos mais velhos lhe contassem histórias de
Meninos e meninas, aos pares, estiram-se na grama ou na areia grandes jantares que reuniam cinco casais! Ouviría descrições
da praia, acariciando-se meigamente, transbordantes de amor. de alimentos raros e esquisitos e das pessoas que gostavam de
Depois, terminados os folguedos amorosos, os meninos par­ comê-los. Existiríam histórias e piadas sobre alimentos e come-
tem para novas aventuras, deixando as meninas entregues às dorias, e nos momentos de raiva as pessoas insultar-se-iam com
suas diversões. frases como "Vá comer um bife:" ou “Você toma sopa em públi­
Quando chegam à mocidade, o amor passa a ter importân­ co!" Um menino que crescesse em tal sociedade possivelmente
cia primacial em suas vidas. Os casais se unem, separam-se ouviria falar de países como os Estados Unidos onde existiam
e tornam a se unir novamente na medida em que cada qual “a liberdade de comer” e uma atitude absolutamente normal
procura o companheiro. A tribo fornece uma choupana onde sobre o apetite. No entanto, seria incapaz de fazer idéia da
os moços podem se instalar e viver. E embora se trate de uma indiferença com que um americano vai jantar num restaurante,
choupana de grandes proporções, mas sem divisões, quinze da mesma forma que nós também somos incapazes de fazer
ou vinte casais chegam a se reunir no seu interior para fazer uma idéia perfeita sobre a atmosfera reinante na choupana
amor, em determinada noite, e mesmo assim na mais completa comum dos jovens das ilhas Trobriand.
intimidade. Coisa que nós dificilmente seríamos capazes de com­ Nas noites de lua, grupos de jovens casais deixam a choupa­
preender devido à nossa natureza sexual pervertida; no entanto, na comum. Os mais velhos sorriem ao vê-los passar em direção
à praia. Ali, fazem uma fogueira e preparam o jantar. Nadam,
para um jovem indígena de Trobriand seria uma falta de educa­
dançam, riem e colhem flores, contam histórias e depois, cada

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par por sua vez, vão fazer amor sob o luar. Entre eles não constituía uma prova de inexistência de qualquer ligação entre
existem fantasias, nem ansiedades ou sentimento de culpa, mas o sexo e as crianças. Incapaz de refutar uma lógica dessa nature­
somente ternura e sensualismo. E, à medida que o tempo vai za, Malinowski nada mais pôde fazer senão raciocinar sobre
passando, determinado casal verifica que se sente melhor junto o óbvio da pergunta: Se os indígenas não acreditam na relação
do que na companhia de quaisquer outros. Estão chegando entre o sexo e nascimento, obviamente não vêem nenhuma
à idade na qual o casamento proporciona uma posição definida, necessidade de tomar qualquer precaução contra a gravidez,
além da aprovação da tribo. Anunciam, então, sua intenção. que, no entanto, nunca registrou fora do casamento. Um velho
Toda a comunidade sente-se feliz com o fato, e começam os nativo confessou que se lembrava de um caso desses registrado
preparativos para as cerimônias matrimoniais. Estas incluem há muitos anos, quando uma jovem solteira teve um filho. Todos
festas e danças, além da escolha de um local onde toda a popula­ acreditaram que, por um motivo qualquer, os deuses estavam
ção auxilia a construção de uma casa para o feliz casal, uma furiosos com a jovem e, assim, ela e o filho caíram em desgraça
tarefa expressiva que todos aceitam com prazer. Por ocasião na tribo. Malinowski, então, convenceu-se de que ou acontecia
do casamento, ninguém faz votos de fidelidade eterna, pois algo de mágico ou os indígenas estavam mentindo porque de­
pelo olhar apaixonado dos noivos, sabem que ambos jamais viam possuir um método infalível para controlar a natalidade.
hão de tocar ou de sequer sentir o menor desejo por quem Entretanto, durante os dois anos que passou com eles, acabou
quer que seja. Na língua dos nativos de Trobriand não existe convencido de que os nativos não mentiam e de que, de alguma
nenhuma palavra que signifique promiscuidade; esse conceito forma, as jovens da tribo, quando se entregam de corpo e alma
não existe entre eles. O par casa-se e passa a fazer parte da a seus escolhidos, pura e simplesmente não desejavam ter filhos
comunidade de vida adulta. Em seguida, têm um filho. Seria por saberem que isso era condenado pela sociedade, mas inteira­
vergonhoso se não o tivessem. Como seria igualmente vergonho­ mente aceito depois do casamento, quando, então, desejavam
so para qualquer jovem ter um filho sem ser casada. No entanto, a gravidez. É, realmente, tão difícil acreditar numa coisa dessas?
esses tabus tribais, por mais estranhos que nos pareçam, não Hoje em dia, sabemos cada vez mais sobre a relação existente
dizem respeito às atitudes sobre o sexo, porque os nativos acredi­ entre a psique e o soma, e sobre o controle emocional inconscien­
tam que o sexo nada tem a ver com os filhos. Acreditam, isso te sobre as funções orgânicas. Todo mundo já ouviu histórias
sim, que o sexo é um presente de Deus a homens e mulheres sobre casais que durante anos e anos tentaram inutilmente ter
exclusivamente destinado a lhes proporcionar prazer e felicida­ filhos até que, desesperançados, adotam uma criança e logo
des. A par disso, acreditam que os deuses enviam os filhos em seguida a esposa torna-se grávida. Assim, é possível que
para uma mulher, depois de casada, a fim de que a tribo possa as jovens das ilhas Trobriand que, contrariamente ao que acon­
aumentar, prosperar e sobreviver. A criança chega numa gran­ tece conosco, não estragaram o dedicado equilíbrio de seus
de folha transportada pela maré nas noites de lua e penetra no sistemas fisiológicos, estejam tão profundamente auto-
corpo da mulher através de uma pequena abertura situada no integradas que seu estado estimulante é afetado por seu estado
alto da cabeça. Uma vez dentro do ventre materno, o be­ de fertilidade. Ou, talvez, por outro motivo qualquer.
bê vai crescendo e nove meses depois nasce para constituir um Um dos motivos que gera a promiscuidade, a troca de
motivo de alegria para todo o mundo. O mando nada tem a ver esposas e as aventuras extraconjugais em nossa civilização é
com isso. E quando Malinowski tentou explicar aos indígenas a li­ o conceito da monogamia obrigatória por toda a vida. Os nativos
gação existente entre e função sexual e os filhos, puseram-se a de Trobriand, que desde o princípio não se deixaram permane­
rir em grandes e sonoras gargalhadas. E para provar o absurdo cer blindados, nunca abandonaram sua verdadeira e terna se­
dessa pretensão citaram o exemplo de um chefe da aldeia que xualidade original. E uma vez que jamais renegaram essa pri­
durante quase dois anos esteve ausente numa demorada viagem meira camada de procedimento sexual, ela não se transformou
por outra ilha. De regresso ao lar, ficou contentíssimo quando na dura e cruel camada secundária e, conseqüentemente, não
a esposa o presenteou com um filhinho de seis meses. Ora, precisam da terceira, da camada superior do “Tu não deves”
como era óbvio que o homem não poderia ter tido relações para se manterem na linha. Não precisam nem existe entre
sexuais com a esposa durante sua prolongada ausência, isso eles a monogamia obrigatória por toda a vida. Nem as aventuras

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com facilidade, porque o dever precípuo de cada um diz respeito
extraconjugais, produto da monogamia compulsória. Ligações à própria vida; assim, a sociedade indígena, organizada pelos
amorosas e casamentos duram tanto quanto o amor, o que que compreendem esse princípio, protege a continuidade do
pode acontecer por muitos e muitos anos. Mas, o importante amor, da felicidade e da liberdade, ao invés de restringi-las.
é que enquanto duram são verdadeiras fontes de felicidade. Uma palavra final sobre a sociedade de Trobriand. Quando
Jamais degeneraram num “dever" obrigatório e odiento. Um uma jovem tem um filho, o desejo de amar, sorrir e cantar
casamento desagradável e sem amor, que acaba por destruir ao luar não desaparece. É então que os velhos da tribo entram
a vida de cada um, jamais sobrevive “em benefício dos filhos”. em cena. Para eles, que função mais natural podería existir
Que acontece aos filhos quando se dá o fracasso de um casamen­ senão a de babás? Como são queridos e respeitados por se
to? A sociedade das ilhas Trobriand é um matriarcado, em reunirem para olhar pelas crianças enquanto os pais vào-se
contraposição com a nossa cultura ocidental, que e um patriarca- divertir para longe! Como são necessários, e como se julgam
do. Isso significa que os bens da família (terras etc.) obedecem tal! Os avós reúnem-se à noite, sorrindo à passagem dos jovens.
ao princípio sucessório através da mãe, e não do pai. O que Um casal detém-se alguns momentos para admirar as crianças
destrói a herança econômica como exigência para a indissolubili- que eles guardam, depois dão as boas noites e parlem à procura
dade matrimonial, lndependcntemente do número de maridos de que para eles c a felicidade. Os velhos permanecem sentados
que uma esposa possa ter lido, a herança dos filhos, qualquer defronte de suas cabanas gozando o crepúsculo de suas vidas
que seja, só lhes é entregue pela morte da mãe. perfeitas c ricas, observando os jovens com a mesma ternura
Os problemas emocionais do filho provocados pelo fracasso com que um dia também foram observados.
do casamento dos pais são consideravelmente suavizados entre A naturalidade calma e amorosa dos indígenas de Trobri-
os indígenas das ilhas Trobriand. Em primeiro lugar, porque and é alguma coisa que somente podemos encarar maravilha­
toda a tribo (a da própria mãe) constitui a sua família. Desde dos. Jamais seremos como eles; e se por acaso tentássemos fazer
o nascimento, os deveres “paternos” de orientação (moral, finan­ o mesmo, apenas conseguiriamos tranformar-nos em imitações
ceira, educacional etc.) competem ao tio materno. Este, como grosseiras. Nada mais podemos aspirar senão a sermos os melho­
é natural, permanece sempre o mesmo, independente do núme­ res entre os da nossa espécie. Mas, paraconsegui-lo, precisamos
ro de maridos que a mãe possa ter durante toda a vida. Antes compreender exatamente o que somos — justamente e que
de lamentar a sorte do marido, julgando-o completamente isola­ eu vinha procurando descobrir às terças-feiras com o Dr. Baker.
do de tudo e de todos, deve-se lembrar que ele também é um
tio que tem por obrigação querer bem e instruir os filhos de
sua irmã. Lembrando-se igualmente de que os indígenas das
ilhas Trobriand não acreditam que o ato sexual, tratando-se
de um homem, pode ter qualquer ligação com a procriação.
Um marido pode adorar o filho de sua esposa — e provavelmen­
te o faz. Pode divertir-se em sua companhia, cantar para ele
e, na medida em que for crescendo, tornar-se seu grande amigo.
No entanto, o tio materno continua a ser a “figura paterna”
da criança, embora esse tio nada tenha a ver com as ligações
sentimentais da mãe, sua irmã. O marido é um amigo amado
e, mesmo após a anulação de um casamento, a amizade existente
entre a criança e o pai desconhecido continua inalterável, inde­
pendentemente do término do contrato matrimonial.
Contudo, não se deve supor que diante de tudo isso os
nativos de Trobriand não levam a sério o casamento. As ligações
assim formadas são profundas e duradouras e nunca desfeitas

63
62
i f

.A
*
9

O Dr. Baker e eu continuávamos trabalhando no sentido


de derrubar os diversos segmentos da minha blindagem. Um
dia, ordenou: “Vire-se, e bata na cama com a pélvis.”
“O quê?” — perguntei.
“Isso mesmo, faça o que eu disse” — retrucou; virei-me
sobre o estômago, comecei a curvar as costas e pus-me a bater
com a virilha contra a cama. Toda a minha área pélvica parecia
endurecida e rígida.
“Experimente mover a pélvis independentemente do resto
do corpo" — observou o Dr. Baker, ao mesmo tempo em que
apoiava fortemente a mão forçando a parte inferior das minhas
costas para baixo, de modo a manter imóvel a minha espinha.
"Agora, bata somente com a pélvis” — ordenou. Experi­
mentei novamente fazer o que mandava, e embora com grande
esforço percebí que minha pélvis movia-se mais à vontade. En­
quanto subia e descia naquele exercício, senti-me pouco a pouco
tomado por certa irritação. Não sabia contra quem me sentia
irritado, mas tive a certeza de que começava a ficar furioso.

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-

Depois, urinei. Barker encontrou um local em uma das minhas serem removidas pelos serviços sanitários. Os membros dessa
nádegas (Gluteus maximus) a umas duas polegadas à direita organização não se incomodam de conseguir uma boa féria
da espinha, apertou-o com toda a força, o que me fez ir às com a venda de tudo que se pretende jogar fora para as secretá­
nuvens. Comecei a bater na cama com a pélvis, a socar e a rias pobres e para os que se encontram nas mesmas condições
gritar como se fosse um escorpião encurralado. Continuou aper­ e, assim, Carolyn e Sheila conseguiram mobiliar o acanhado
tando cada vez mais aquele ponto, e seu dedo parecia um ponção ninho em que viviam.
quente. Eu chiava, praguejava e grilava a plenos pulmões, ao Tomei o elevador de serviço para o décimo primeiro andar
mesmo tempo em que pensava se ainda teria voz para desempe­ e bati à porta de Carolyn. Quando ela veio abri-la, atirei-me
nhar meu papel no teatro, à noite. Finalmente, soltou-me e à sua cadeira de braços. Carolyn era costureira. Tinha sua pró­
deixei-me ficar caído sobre a cama, o rosto enterrado no lençol, pria clientela e trabalhava para fora. Ficou ali pregada à tábua
chorando. Quando pude levantar-me e vestir-me para sair, toda de engomar, metida numa calça azul, uma simples blusa, linda
a parte inferior de minhas costas parecia ter sido cosida por como sempre. Tentei explicar-lhe coisas sobre Reich e Baker
um fio de aço. Os músculos estavam doloridos, feridos, e fiquei e dizer por que motivo estava coberto de manchas negras e
amedrontado. azuis, por que fazia ruídos estranhos no banheiro e por que não
“Estou sentindo um medo horrível” — afirmei, enquanto conseguia dormir às terças-feiras. Ela sempre se mostrara amá­
abotoava a camisa e dava o nó na gravata. vel e compreensiva, mas eu sabia que, no fundo, desconfiava
“É isso mesmo” — respondeu Baker. “Quando ainda blin­ que eu podia fugir nesses dias para Staten Island a fim de
dada, a pélvis armazena os mais profundos sentimentos de raiva participar de uma missa negra ou coisa parecida.
e medo. Essa ansiedade que está sentindo é um bom sinal. Certa vez, falei em levá-la ao Dr. Baker. Este tratou-a duran­
Ansiedade significa movimento, e movimento significa vida. te certo tempo e depois afirmou: “Não posso fazer muita coisa
Trate de resistir ao que está sentindo." por você. Você é uma criatura sadia". Ela é uma dessas raras
Telefonei para Carolyn e dirigi-me para seu apartamento. pessoas que nascem, de certo modo, relativamente livres da
Ela e a companheira, Sheila, a bonita garota que estava em blindagem. Possivelmente, trazia a saúde nos próprios genes.
sua companhia naquela noite em que a conheci no Spark's Pub, Sentia constantemente a necessidade de amar, e chegou a con­
residiam num belo edifício da Park Avenue com a Rua 86. fessar que certa vez disse a seu namorado que aquilo que apren­
Quem quer que seja que tenha sido o autor da planta do edifício, diam na igreja devia estar errado porque não podia acreditar
deixou apenas um espaço absurdamente pequeno entre os dois que Deus fosse contrário ao prazer.
elevadores de serviço em cada andar. O edifício era de tal forma Naquele dia, fosse como fosse, fiquei a olhar sua face encan­
que, como é natural, ninguém se dispôs a adquirir um aparta­ tadora e seu lindo corpo, notando sua maravilhosa desinibição,
mento que tem um livingde 15 melros quadrados, um quarto sentindo que a amava profundamente e, ao mesmo tempo,
de domir tão estreito que, por assim dizer, as pessoas tinham experimentando a mesma sensação de medo e irritação a
que dormir em pé, expostas a duas aberturas, cada qual dando martelar-me a pélvis, o pênis, os testículos, a espinha e as entra­
para um poço de ventilação. Essa coisa era chamada, por eufe­ nhas. Depois, a irritação transformou-se em decisão; levantei-
mismo, de apartamento, e alugada a preços módicos. Carolyn me, avancei para ela, abracei-a fortemente e senti sua energia
e Sheila, pobres como só elas, ouviram falar do local, assinaram misturar-se à minha. Medo e irritação desapareceram, senti
um contrato de arrendamento, mudaram-se e transformaram- como que um despertar na minha velha pélvis enrijecida que
se nas mascotes do edifício. Os outros apartamentos eram ocupa­ já não me pareceu tão velha nem tão enrijecida. Isso aconteceu
dos por senhoras ricas de cabelos azuis, e quando as duas peque­ pouco mais de dois anos depois de minha primeira visita ao
nas surgiam no hall e iam até o fundo para apanhar o elevador Dr. Baker, e eu me sentia profundamente modificado. Não
de serviço, os porteiros não podiam conter um sorriso de alegria. apenas mais compreensivo, mas profundamente diferente. Sa­
Em Nova Iorque, as quintas-feiras são dias destinados à bia que com o tratamento estava no bom caminho. Sabia-o pela
coleta das coisas velhas e imprestáveis, ou quase. Coisas como maneira com que me sentia, sabia-o porque tinha a certeza
cadeiras já em desuso, e outras, são postas nas calçadas para de que Baker ^ão teria procurado tratar de minha pélvis en­

66 67

I
quanto os demais segmentos da blindagem não tivessem sido mas o fato de encontrar-se assim em contato com seus órgãos
libertados. Pela primeira vez na vida senti-me capaz de amar internos, e sentir-lhes os movimentos, é saudável. Tive clientes
verdadeiramente. Compreendi que, na absoluta maioria dos que chegaram até a sentir o movimento do próprio cérebro.”
casos, o que acontece com o amor é apenas medo, ansiedade Às terças-feiras, meus exercícios limitaram-se a respirar,
ou necessidade de controle. Senti-me ligado à vida, à terra e a notar meus sentimentos e a aprender a tolerar a ansiedade;
ao Universo de forma inteiramente calma que rne fez ver muitas e, ansioso como eslava, sentia-me muito melhor do que em
coisas com maior clareza. E naquele momento fiquei excitado.
qualquer outra época de minha vida.
Felizmente, Sheila estava no trabalho. Carolyn e eu dávamos grandes passeios no parque durante
os fins de semana, observávamos o céu para descobrir as peque­
Durante semanas, Baker martelava-me a pélvis e eu marte­ ninas unidades de orgone que se revolviam e volteavam pela
lava com ela a cama. Cutucava os músculos da parte interna atmosfera. Tinha-lhe dito que, se conseguisse relaxar a visão,
de minhas coxas (a coisa que eu mais odiava cm todo o tratamen­ poderia vê-las, e isso aconteceu imediatamente. Todas as crian­
to) e eu esperneava e suspirava. A respiração profunda, que ças as vèem, mas, quando perguntam o que são, dizem-lhes
se prolongou durante todo o tratamento, destinava-se a criar que não estão vendo nada — é apenas uma ilusão de seus
a energia portadora de saúde. É essa aspiração da energia, olhos.
combinada com o desmantelamento da blindagem, que acaba Parecia-me possuir uma energia inesgotável e um otimismo
produzindo a saúde. Atualmente, comecei a sentir novamente ilimitado. Sabia que estava palmilhando o caminho certo para
aqueles maravilhosos e agradáveis fluxos. Agora, circulam da a saúde e, tarde da noite, quando minha mente megalomaníaca
cabeça aos pés e fazem-me agradecido por estar vivo. Além chegava ao máximo, sonhava com a conquista do resto do mun­
disso, às vezes fico mais amedrontado que em qualquer outra do. fendo aprendido tudo quanto aprendí, sentia a imperiosa
ocasião. necessidade que o religioso converso ou o alcoólatra reconquis­
Minha pélvis começou a sentir-se viva e somente quando tado experimenta de propagar a própria fé. Deduzi, como certa
isso ocorreu pude verificar como estava anteriormente morto. vez sucedera a Wilhelm Reich, que a única esperança que ainda
E quando essa derradeira área da blindagem começou a ser resta para a humanidade repousa em seus filhos. Quase todos
libertada foi que percebi o que Reich entendia pela unidade nós estamos demasiadamente apegados aos nossos hábitos e
do corpo. Finalmente, quando Baker terminou de socar, cutu­ muito além da salvação.
car, apertar, observar e sentir e tratar, e quando a minha blinda­ Passei a olhar as crianças da rua com uma estranha luz
gem já estava desmantelada e desaparecida, a batalha ainda em meus olhos. Mais de uma vez percebi uma mãe alarmada
não estava terminada. Então, quando já estava teoricamente observar o espanto com que eu olhava seu filho com um fervor
capaz de atender aos reflexos do orgasmo, sentia-me apenas messiânico... mais um louco nas ruas de Nova Iorque, devia
receoso. Tal como um prisioneiro que tivesse sido posto em pensar. Uma idéia impetuosa começou a germinar no âmago
liberdade após trinta anos de penitenciária, só consegui, pálido, de minha mente e, um dia, aflorou à superfície.
cego pelo sol, encolhido dentro da minha roupagem nova, cami­
nhar cuidadosamente pelo mundo. Reich chama a isso de “ansie­
dade do orgasmo”, coisa que está realmente localizada na base
dos problemas de todo mundo. O único meio de cura para
isso consiste em aprender a tolerar essa ansiedade e esperar
que diminua.
Um dia, corri, desvairado, ao consultório de Baker para
dizer-lhe que podia sentir o coração bater e mover-se dentro
do peito.
“Muito bem” — afirmou — “isso é um sinal de saúde.
Naturalmente, quando o coração bate trata-se de ansiedade.

68 69
Foi num claro domingo de inverno, pela manhã, e Carolyn
estava no meu apartamento preparando o desjejum. Eu estava
sentado, lendo o panfleto que me fora enviado pela Luta Femini­
na pró-Paz. Era uma exposição muito bem feita que dizia que
se não acabarmos com as guerras seremos todos destruídos.
“É preciso olhar pelas crianças” — murmurei.
“O quê?” — perguntou Carolyn do fundo da cozinha.
‘‘Eu disse que se algum dia houver uma mudança da nature­
za humana, de forma que não tenhamos mais guerras, é preciso
recorrer às crianças” — afirmei. “Acho que devo abrir uma
escola.”
Carolyn saiu da cozinha com uma panqueca de ovos.
“O que é que você sabe sobre a administração de uma
escola?” — perguntou.
“Nada” — respondi. “Mas posso aprender. Já ouviu falar
do livro Summerhill?”
r “É sobre aquela escola que existe na Inglaterra, não?”

71
"É. Bem, há alguns anos, alguém pediu-me para dar um pode fazer o que quiser, desde que proceda com responsabilida­
espetáculo de benefício. Era uma garota chamada Margot Mo- de. Deve desfrutar a própria liberdade, mostrando-se capaz
ser, que tinha um papel na peça My Fair Lady. O benefício de usá-la de modo a respeitar os direitos alheios."
era para uma coisa chamada Summerhill Society, que precisava “Mas, Summherhill não é uma escola destinada às crianças
levantar dinheiro para construir uma escola, ou coisa parecida. retardadas?” — perguntou Carolyn, enquanto punha sobre a
Fosse como fosse, realizei o espetáculo e ela prcsenteou-me mesa o prato de presunto com ovos. Levantei-me e sentei-me
com uma cópia de Summerhill. Fala de sua escola, na Inglaterra, a seu lado. Era o dia de folga de Bridie, e Michele estava fora,
onde as crianças não precisam frequentar as aulas nem fazer pois tinha ido visitar a avó, em Connecticut.
qualquer outra coisa. Li o livro e, de início, discordei inteiramen­ “Não, nãoé" — respondi. “Chegou quase a ser assim porque
te do que dizia, mas, depois de algum tempo, rendi-mc ao ninguém queria mandar os filhos para a escola de Neill, exceto
assunto. Alistei-me na sociedade, que fora organizada por Ha- os que se achavam em desespero de causa porque os filhinhos
rold Hart, o homem que publicou o livro. A sociedade deveria queridos tinham sido expulsos de tres escolas consecutivamente.
instalar aqui uma escola nos moldes da de Neill... que é o velho Ademais, Neill é um gênio e um psicólogo natural que sabe
que dirige a escola, na Inglaterra, e que escreveu sobre cia... como auxiliar as crianças. Ele estudou com Reich, você sabe."
A. S. Neill. Mas tudo quanto fizemos na sociedade resuiniu-sc “Não, não sabia" — observou Carolyn.
em reuniões e conversas e ainda outro dia compreendí que “Bem, o editor norte-americano de Summerhill suprime
eles nunca chegarão a inaugurar uma escola. Talvez seja melhor do livro as referências de Neill a Reich, por uma razão qualquer.
assim. Você sabe qual é a definição de um camelo?" Seja como for, as crianças confiadas a Neill levavam uma carga
"Não; qual é?" — perguntou Carolyn. tremenda sobre os ombros contra a escola, os professores, os
"Um cavalo reunido por uma comissão" — retruquei. Ela pais e o resto do mundo; assim, Neill teve necessidade de des­
riu da piada. Aquela coisinha doce sempre ria das minhas pia­ truir tudo isso antes de começar a educá-las de maneira positiva.
das. Por isso, realizava reuniões semanais durante as quais professo­
"Assim, acho que vou abrir uma escola. Tenho todo o di­ res e alunos podiam revelar suas queixas, e os regulamentos
nheiro que economizei com os lucros do meu show, e poderia eram aprovados pela maioria de votos.” Naquele momento eu
comprar um prédio com ele." já tinha começado a resmungar, falando com a boca cheia;
"Está bem, já que assim deseja" — disse Carolyn. Eu sabia no entanto, notei que Carolyn estava começando a compreender
que ela queria casar-se comigo e, no entanto, concordava em meu entusiasmo.
que eu desperdiçasse meu dinheiro numa coisa maluca como “Ouça" — continuei. “Neill educa crianças que passaram
uma escola, se era isso que eu queria. muitos anos sem frequentar a escola e que, quando foram
"E sobre a Escola Summerhill?" — perguntou. procurá-lo, acostumaram-se com as outras em menos de um
"Bem" — respondi. "Neill é atualmente um velho de mais ano. Tudo é uma questão de motivação. Faça um garoto sentar-
de oitenta anos. Inaugurou a escola em 1927. É um internato se o dia inteiro numa carteira e estará semeando as sementes
que ele dirige de acorao com um princípio que chama de "liber­ da revolta. Mas, dô-Ihe o direito de escolhas razoáveis e racionais
dade sem licenciosidade”. Isso quer dizer: “Faça o que quiser, e, mais tarde ou mais cedo, ele terá vontade de aprender, prova­
mas não se intrometa com a vida de ninguém." velmente mais cedo. Veja os bebês — engatinham quando po­
"Mas, esse tipo de educação permissível não concorre para diam ficar sentados, andam quando podiam engatinhar, e
criar pirralhos mal-educados?" ensinam-se a falar. Você compreende o que isso significa como
"A educação não é permissível” — objetei. "Veja só. Em realização incrivelmente complexa? Ninguém os ensina; eles
uma situação autoritária, o mau comportamento por parte das próprios aprendem pela observação. Toda essa tremenda ener­
crianças é condenado... e o culpado é enviado para uma conversa gia é parte integrante do desejo infantil de aprender e, então,
com o diretor. Numa situação permissível, o professor ou os a sociedade faz todo o possível para transformar a criança num
pais sustentam que o mau comportamento não tem importância. ser estúpido. Obriga a criança a passar o dia inteiro sentada
Sob o princípio de liberdade sem licenciosidade a criança numa carteira, a erguer o braço para pedir para “ir lá fora",

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diz-lhe que só pode interessar-se por determinadas coisas e excitação do momento; ela começou a rir; sentamo-nos e come­
em determinadas ocasiões, e que deve interessar-se por essas çamos a examinar a seção de anúncios de propriedades à venda
coisas sob pena de não poder aprender nada mais.” A essa do The New York Times, à procura de um prédio capaz de
altura eu estava engolindo os ovos com presunto. “Meu Deus” atender às nossas necessidades.
prossegui —“sempre odiei todos os momentos em que passei No dia seguinte liguei para a Summerhill Society, que
na escola, desde os dias de jardim-de-infância. Passei a vida me enviou uma lista com os nomes e endereços de quinhentas
inteira procurando infernizar a vida dos professores mais do pessoas da área de Nova Iorque que haviam escrito manifestan­
que sentia que infernizavam a minha. Toda c qualquer criança do interesse pelo assunto, às quais enviamos cartas anunci­
decente deve tentar subverter um sistema desse tipo; essa é ando a reunião. Umamigo falou-me de uma corretora de imó­
a única maneira de preservar a própria integridade. O garoto veis chamada Sugar Cane. Telefonei-lhe para tratar do caso
que se submete a isso transforma-se num escravo ou num mari­ e ela me disse que entre os prédios que sabia estarem à venda
cás. Passei a metade de minha infância no gabinete do diretor, havia um situado na Rua 15. O preço pedido pelo prédio era
e tenho orgulho disso. Por que motivo não pode existir uma de 87 500 dólares, mas ela acreditava que aceitariam 35 000
escola que deixe a criança aprender aquilo que quer, quando à vista. Carolyn, eu e Sugar Cane fomos ver o prédio. Era
quer e, ao mesmo tempo, procure ensiná-la a respeitar os direi­ ótimo. Tratava-se de uma pequena ala esquerda sem nenhuma
tos das outras? Esta lacuna é que induz as pessoas a não ligação com o edifício principal da organização trabalhista, da
respeitarem os direitos alheios, uma vez que, quando crianças, qual era propriedade, e chamava-se União dos Professores. Ser­
jamais tiveram respeitados os seus próprios direitos. As crianças vira aos objetivos desejados, e tinha sido bastante ativa anterior­
representam a minoria mais brutalizada em lodo o mundo.” mente, forçando a poderosa A.F.L. (Federação Americana do
A essa altura eu me levantara e caminhava nervosamente Trabalho) a assumir posições mais firmes. As três ou quatro
de um lado a outro da sala. "Os pais mentem aos filhos cem pessoas encarregadas da conservação do prédio eram velhos
vezes por dia” — afirmei — “e depois ficam admirados quando de cabelos grisalhos já cansados da luta, e a União estava sendo
os filhos fazem o mesmo com eles. Se você diz a uma criança dissolvida. Havia panfletos por toda parte com os habituais
que o uísque lhe faz mal e ela depois ve que você está bebendo slogans esquerdistas proclamando a solidariedade dos trabalha­
o mesmo uísque, que confiança pode ter nessa criança quando dores e condenando o sistema capitalista. O prédio dispunha
ela estiver sozinha no banheiro com um vidro de iodo na mão? de várias salas de aula onde, indiscutivelmente, Karl Marx e
Nenhuma! Por isso, as crianças nunca despertam confiança e John Dewey tinham sido estudados, além de um grande salão
nunca aprendem a merecê-la.” de reuniões que serviria perfeitamente de ginásio para nós.
“Então, o que pretende fazer?” — perguntou Carolyn. Carolyn e eu visitamos todo o edifício acompanhados por Sugar
“Olhe" — respondi. “Nem todos podem frequentar o con­ Cane. Era um prédio incrivelmente escuro, cujas paredes esta­
sultório do Dr. Baker. Eu, porém, pude fazê-lo e sinto realmente vam pintadas de verde-escuro. Aparentemente, a União devia
que lhe devo alguma coisa. É como encontrar um poço no ter uma mania absoluta pela segurança, pois havia cadeados
deserto, matar a sede e encher o cantil para continuar a viagem. e chaves por toda parte, além de grades, portas de ferro
Tanto quanto posso perceber, uma escola como a de Summerhill e sinais elétricos.
é uma medicina preventiva e, talvez, se uma criança puder Carolyn e eu nos entreolhamos e concordamos com um
frequentá-la não vai precisar de Baker quando crescer. Tenho movimento de cabeça.
trinta e cinco mil dólares de economias. Essa é a quantia que ‘‘Ficarei com ele” — afirmei a Sugar Cane.
a sociedade estava tentando levantar para comprar um edifício. “Mas, não quer examinar outros prédios?” — perguntou.
Vou usar o dinheiro de minhas economias para comprar um, “Não. Este é ótimo” — retruquei.
apanhar a lista de endereços da Summerhill Society e comunicar
a todo o mundo que pretendo inaugurar uma escola; e do Meu advogado combinou um encontro, os documentos fo­
próximo domingo a uma semana faremos uma reunião das ram preparados, assinei-os, e o edifício passou a ser de nossa
pessoas interessadas aqui mesmo.” Abracei e beijei Carolyn na propriedade.

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e derrubamos paredes. Demos à nossa iniciativa o nome ae
Umas trinta pessoas compareceram ao meu apartamento
Escola da Rua 15, colocamos uma tabuleta, pintamos a porta
para a reunião inicial daquele domingo. Pedi o comparecimento de entrada de amarclo-claro e ficamos à espera da chegada
de Carolyn, Bridie serviu café, enquanto Michacl brincava com
as outras duas ou três crianças trazidas pelos pais. Revelei aos de setembro.
presentes minha intenção de comprar o edifício da Rua 15,
bem como os diversos telefonemas que recebera de pessoas
que se ofereceram como professores. Como havia um aparente
sentimento de interesse pelo assunto, concordamos em realizar
uma segunda reunião, que esperávamos fosse mais concorrida,
no próprio auditório do edifício da nova escola. No decorrer
dos dias seguintes foram inúmeras as chamadas telefônicas.
Entrevistei-me com grande número de professores, todos inte­
ressados em trabalhar segundo os métodos de Summerhill. com
salários modestos. Decidi-me por um casal jovem, Rachel e Wil-
bur Rippy, e por uma jovem que ficaria encarregada de dirigir
o jardim-de-infância, Renée Davis.

Poucas semanas mais tarde realizamos uma grande reunião


no auditório do edifício da nova escola, a antiga sede da União
trabalhista. Dessa vez, compareceram umas cem pessoas. Atra­
vessaram as salas poeirentas do prédio de quatro andares e
ouviram as explicações que eu e os professores lhes demos
sobre o tipo de escola que pretendíamos inaugurar. Dissemo-
Ihes que a escola seria idêntica à de Summerhill e que funciona­
ria das 9 da manhã às 3 da tarde, mas que não seria um internato.
Explicamos que o comparecimento às aulas seria absolutamente
voluntário e que as crianças poderíam andar à vontade por
todo o edifício, desde que respeitassem os direitos alheios, não
se pusessem a subir e descer as escadas em correrías, ou que
fizessem qualquer coisa capaz de pôr em risco sua própria saúde
e segurança.

A essa altura tive, realmente, idéias verdadeiramente gran­


diosas sobre a possibilidade de salvar o mundo com a criação
de uma safra de superbebês ou crianças do futuro capazes
de dirigir a humanidade libertando-a de seus hábitos destruido­
res. Desconfio que meu entusiasmo causou certo efeito porque
vinte casais matricularam imediatamente os filhos na nova esco­
la, que deveria ser inaugurada em setembro daquele ano. Redigi
o necessário requerimento e recebi uma autorização provisória
do Departamento de Educação do Estado de Nova Iorque (três
anos depois recebemos a autorização permanente). Os professo­
res encomendaram o material necessário; varremos, pintamos

76
*

I
I

11

Uma noite, quando nos braços um do outro, sem fantasiar


ou pretender coisa alguma, sem pensar em nada e em ninguém,
sem pensar até em nós mesmos, a coisa aconteceu. Não o planeja­
mos; para falar a verdade, era uma noite em que nos sentíamos
cansados e distraídos sem pensar em outra coisa senão em dor­
mir. Mas, inesperadamente, nossos olhares se encontraram e
sentimos que alguma coisa de nós mesmos se desfazia.
Aconchegamo-nos mais e com o contato de nossos corpos foi
como se caíssem as camadas de cada um. Aconchegamo-nos
ainda mais e foi como se dois campos de energia separados
se tivessem fundido entre si. Foi uma sensação maravilhosa,
a sensação de nos sentirmos reciprocamente diferentes como
nunca até então, diferentes Fisicamente, uma diferença verda­
deira que sentimos na pele. Nossos olhares pareciam diferentes
e o contato de nossos lábios provocou uma onda de excitação
e prazer que nos atravessava o corpo inteiro, de cima para
baixo, em torno e através de nós. O contato da mão com o
corpo do outro era quase mais do que seria possível suportar,

79
pois cada lugar que tocávamos despertava outro. E durante olhos estavam fora de foco, todas as coisas pareciam confusas
todo o tempo perdurou a mesma sensação de diferença, a sensa­ e as mais insignificantes punham-me fora de mim.
ção de que éramos também diferentes dos outros. Mas, havia Como tinha consulta marcada com Baker, apressei-me a
também uma sensação de igualdade, uma sensação de posse, contar-lhe o que acontecera na noite anterior. “Muito bem"
de estar experimentando o mesmo que alguém que estivesse — observou. “Se puder relaxar-se um pouco mais, a experiência
numa pradaria da Ásia ou numa colina da Califórnia poderia será ainda mais profunda. A tendência natural é a de suspender
experimentar, e de entrar em contato com todo o mundo no a respiração, e isso impede o fluxo da energia. Suspender a
mesmo instante em que nos sentíamos unos c separados. Goza­ respiração dá uma impressão de segurança, e todos nós somos
mos juntos de maneira total, com o Universo longe de nós inclinados a fazê-lo. Olhe, você está indo muito bem agora”.
e, entretanto, sentimo-nos parte integrante dele como nunca Perccbi que estava de fato e, assim, deixei-me ficar estirado
havíamos sentido anteriormente. na cama csforçando-me para conseguir relakar e respirar facil­
A maravilha pura daquele momento deixou-nos admira­ mente, quando comecei a chorar. “Amo-a profundamente” —
dos, a maravilha do prazer — compreendemos que antes disso disse — “mas, tenho medo da foda”. Antes daquele dia, nunca
jamais soubemos o que fosse o prazer — e o terror dos sentimen­ julguei correto usar esse terino diante de Baker. No mesmo
tos que havíamos sentido, sua profundeza, a ternura e a dureza, instante pensei no estranho complexo da alma humana que
tudo isso surgiu ao mesmo tempo. Ser capaz de sentir um.amor me permitia ficar deitado à sua frente, metido nas minhas horrí­
profundo e terno a par de uma rigidez quase insuportável, tu­ veis calças de jóquei e falar dos meus mais profundos sentimen­
do ao mesmo tempo, foi como sentir tudo aquilo que sempre tos; gritar, chorar e martelar a cama, se o quisesse, mas, mesmo
desejamos no mais recôndito de nossas mentes. Finalmente, go­ assim, senti que devia controlar a linguagem.
zar juntos, unir as duas metades separadas e não sentir nenhu­ Gostava de Baker, decidi comigo mesmo; vamos esquecer
ma sensação de culpa por ser uma coisa justa que sentimos em a transferência analítica, a minha gratidão por ter-me ajudado
todas as nossas Fibras e nas parles mais secretas de cada um. ou qualquer outro motivo. Gostei dele, realmente, mesmo quan­
Fundimo-nos um no outro cada vez mais profundamente, e do se mostrava tão seco e quase inabordávcl que dava a impres­
como imaginar um peito, um planeta, um universo e toda a são de que se estava deslocando para dizer um palavrão depois
vida que nele vibra, tudo ao mesmo tempo, em meio a sorrisos de terminada a sessão. Encontrei-o certa vez numa reunião
e lágrimas porque jamais, jamais se soube o que era o amor, social em companhia de outros pacientes, ex-pacientes e sócios,
do qual só fazíamos uma idéia? organizada por ocasião do lançamento de seu livro, e percebi
que eu era o único a chamá-lo de Elsworth. Para todo mundo,
Ficamos abraçados por muito tempo, fortemente unidos, ele era o Dr. Baker. Parece que ele próprio insistia por esse
com as lágrimas rolando pelas faces, os olhos nos olhos do tratamento, mesmo entre colegas, o que de certa forma pareceu-
outro até que um de nós, não me lembro qual, observou: “Então, me uma vergonha. Era como eu imaginava que fora Reich
é assim”. E, repentinamente, pareceu-nos tão simples o significa­ com seus colaboradores, uma figura respeitável e maravilhosa
do da vida. Às piadas idiotas — “A vida é como um poço”
mas solitária, e pessoalmente real.
— e todas as guerras, o imperativo territorial, o Terceiro Reich Levei muito tempo para chegar a chamá-lo pelo nome pró­
e os “Cadillacs”, a Inquisição Espanhola, e Jesus de Nazaré, prio. Mas, pensei, se a gente chega quase a evacuar na cama
e Nietzsche e Kant e Marx e todas as outras loucuras apareceram de um sujeito, tem o direito de chamá-lo Elsworth. Fosse como
em perspectiva. E dormimos abraçados. fosse, a verdade é que gostei dele. Suponho que deve ser um
Ao acordar na manhã seguinte sentia-me irritado, tenso, tipo de gênio e desconfio que os gênios vivem sempre a sós.
como um porteiro observando com suspeitas a bagagem dos “Sim” — observou — “Você ficará amedrontado, pesadão,
hóspedes. Entre nós dois erguia-se uma barreira, um sentimento desconfiado e irritado. Dará um passo à frente e outro atrás.
de “Não pense que pode levar alguma vantagem”. Experimei Mas, fique firme, porque está progredindo.”
tava uma certa rigidez no pélvis, como se um tecido metálico Deixei o consultório e dirigi-me ao apartamento de Caroly n.
tivesse subido uma polegada mais e ali novamente serzido. Meus Ela estava fazendo um vestido para a filha de uma senhora

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tal como a garota queria, embora fosse a mãe que pagava e Ri e respondí: “Claro que sim”. Caímos nos braços um
que, com toda a certeza, nunca mais lhe daria qualquer enco­ do outro, ela ligou para Sheila e eu segurei-lhe a mão enquanto
menda. Servi-me de uma xícara de café na sua minicozinha ela falava, e senti novamente aquelas sensações suaves e agradá­
e plantei-me à sua frente. veis que percorriam meu pélvis. Lembrei-me de algo que havia
“Muito bem, o que é que há? — perguntou. lido num dos livros de Reich e que depois discutira com Baker,
“O que é que há, o quê?” — disse eu. isto é, que o amor, a sensação do amor, pode ser sentida nos
“Você sabe” — observou. órgãos genitais. Não necessariamente o amor sexual mas a
“Bem... desconfio que estou profundamente aterrorizado. afeição, o interesse e a ternura podem ser sentidos como uma
Nunca me senti tão intimamente ligado a alguém em toda a excitação daqueles órgãos. Lembro-me de ter experimentado
minha vida. Nunca senti nada de tão maravilhoso; não estou essa excitação certa vez em que me achava sentado no camarim
acostumado a isso, que mc apavora”. de um teatro em companhia de um amigo, um ator que eu
“Bem, isso também, me apavora, você sabe” — disse ela, admirava, quando supus que estava esgotado pelo trabalho.
abrindo-me os braços; avancei para ela mas parei a meio cami­ As mulheres que acalentam os filhos sentem às vezes a mesma
nho; ela sorriu, chegou-se a mim e lançou-se cm meus braços; coisa, e ficam preocupadas com a idéia de que experimentam
começamos a chorar e a rir ao mesmo tempo e senti-me nova­ desejos incestuosos e, assim, recalcam o amor que sentem pelo
mente tomado por uma onda de ternura para com ela. Eu filho. Quantascamadas de incompreensãoe quantas pequeninas
sabia que desejava casar com ela, sabia que linha que fazê-lo, tragédias são provocadas pela ignorância da nossa natureza se­
mas esperei para fazer o pedido, nervoso como um idiota. Em xual e do nosso medo quase patológico de compreendê-la.
lugar disso, sentei-me a resmungar sobre certos documentos Sheila veio para casa depois do trabalho com uma garrafa
que precisava e que deixara por engano no meu cottagc de de champanha da Califórnia, que bebemos à nossa saúde; de­
praia, em Westhampton, a duas horas de viagem. Naquela oca­ pois, escolhemos uma data, em outubro, que lhe desse tempo
sião fazia um show todas as noites e tinha ainda outros compro­ de fazer um vestido, e a mim o tempo suficiente para acalmar
missos, sentia-me exausto e trabalhava demais. Carolyn pediu: o coração que batia e parecia querer saltar pela garganta. Em
“Deixe que eu vá buscá-los para você.” seguida, fomos os três ao Spark’s Pub, onde nos conhecemos,
“Não” — repliquei, tenso, sentindo-me culpado por ter e dali seguimos para o bar do Edward para dar a boa-nova
esquecido os tais documentos, julgando-me incapaz de uma a Michael McCourt, o garçom, que ficou tão feliz quanto nós
coisa dessas, com a pretensão de ser perfeito. dois.
“Mas, por quê?” — perguntou.
“Eu os deixei lá, eu devo ir buscá-los” — respondí, como
se fosse Alan Ladd no filme Os Canhões do Passo de Khyber.
“Você nunca me deixa fazer alguma coisa para você” —
disse ela. Sentou-se, pequenina, com os olhos marejados de
lágrimas, até que, Finalmente, a idiotice do meu falso orgulho
da Nova Inglaterra descaneceu-se e compreendí que ela deseja­
va realmcnte fazê-lo por mim.
“O.K.” — disse eu.
“Obrigada” — respondeu.
“Você tem que se casar comigo” — afirmei — “porque
preciso imensamente de você”.
Arregalou os olhos, espantada. “Isso é verdade?”
Confirmei com a cabeça.
“Pensei que nunca me pediria. Posso contar a Sheila?” As­
sim a coisa parecería verdadeira.

82 83
T

12

Uma vez que as dificuldades do tráfego entre o meu aparta­


mento situado na parte alta da zona oeste de Manhattan e
a Escola da Rua 15 localizada na parte baixa da zona leste
valiain por uma viagem de Scarsdale, decidi que também podia
viver na parte baixa da cidade, em Greenwich Village. Encontrei
dois andares para alugar numa velha casa da histórica e antiga
MacDougal Alley. O quarto de cama do casal era imenso...
mais parecia um salão. Os outros dois quartos, um para Michele,
outro para Bridie, eram de proporções lilliputianas. Bridie re­
clamou mais que nunca, não pelo tamanho do seu quarto mas
porque acreditou que a mudança para Greenwich Village signi­
ficava o fim de sua vida social. A sociedade dos americanos
de ascendência irlandesa está centralizada em torno da Rua
86 Leste, em Yorkville, perto de onde moramos durante três
anos. As quintas-feiras, os dancings da Rua 86 ficam repletos
de criadas, babás e cabineiros de elevador, todos de raça irlande­
sa.

85

i «
O grande quarto de dormir de minha nova casa era absolu­ “Não sei” — respondeu Carolyn.
tamente extraordinário. Tinha uma lareira e uma parede arre­ “Bem, a árvore da maçã é descrita como a árvore do conhe­
dondada na qual se abria uma janela enorme que dava para cimento... mas, em toda a extensão da Bíblia a palavra conheci­
o arvoredo, e quando Carolyn e eu nos casamos decidimos mento é empregada no sentido de conhecimento carnal, certo?”
que a cerimônia seria realizada nesse imenso quarto-salâo. Con­ “Certo” — respondeu Carolyn. “Sem conheceu a Hephzi-
vidamos cinquenta pessoas entreos amigos mais queridos. Joga­ bah e ela pariu Hosephat, ou um outro.”
mos fora pela janela a cama que ali encontramos, e compramos
“Correto:” — observei. "Assim, a maçã, o fruto proibido,
outra para ser entregue no dia seguinte ao casamento. Distribuí­
representa as relações sexuais. Depois, a serpente que tentou
mos cadeiras dobradiças por toda a parte e pusemos toneladas Eva a comer a maçã é descrita na Bíblia como o animal mais
de flores na grande janela. Fomos casados por Al Carmines, astuto entre os que viviam no Jardim do Éden. Era um animal
pastor-assistente da Judson Memorial Church, a quem pedimos lindo. A serpente é uma cobra e a cobra é o símbolo freudiano
para acrescentar à cerimônia uma passagem de um voto de clássico do falo. Assim, Eva foi tentada pelo símbolo do pênis
casamento hindu de que gostávamos.o que fez. A certa altura masculino, ou desejo sexual, a partilhar do fruto da árvore
da cerimônia, tomei a mão de Carolyn e falei: “Tomo tua mão do conhecimento, o conhecimento carnal, e a induzir Adão
na minha, ansiando por felicidade; peço-te que vivas comigo a fazer o mesmo."
como teu marido, até que ambos fiquemos velhos”. F.ntão, ela “O pecado original” — observou Carolyn.
respondeu: “Unamo-nos e tenhamos filhos, amando-nos um “Certo” — retruquei. "Por isso, a queda do homem do
o outro com o cérebro e o coração, durante cem outonos”. estado de graça, o que quer dizer da condição de não-blindado
Pusemos uma canção de amor de Petula Clark na vitrola, naturalidade, felicidade, ligação com o Universo c com Deus
como se fosse a nossa marcha nupcial. Carolyn fez um vestido — surgiu de um ato sexual. E a serpente disse a Eva...” corri
de noiva que usou na ocasião, uma toalete de dama de honra o dedo pelo alto da página à procura da expressão até encontrá-
para Sheila e um vestidinho cheio de flores para Michcle. Bridie la: "Porque Deus sabe que a partir do dia cm que comer do
também estava linda. O Dr. Baker e senhora compareceram fruto proibido seus olhos abrir-se-ão e ele será igual aos deuses”
ao casamento, e depois da cerimônia foram servidos pratos — compreendeu?”
chineses. Foi o melhor de todos os casamentos a que assisti. “Não” — disse ela.
Nossa lua-de-mel durou apenas um dia, porque eu precisa­ "Olhe, então. Através do ato sexual natural, não-blindado,
va dar início aos ensaios de uma nova peça exatamente no como teria sido por força do seu conhecimento carnal inocente,
dia seguinte ao casamento. Fomos para o Regency Hotel, na eles atingiríam o orgasmo total e sentir-se-iam unos com o Uni­
Park Avenue, onde passamos a noite; na manhã seguinte eu verso, e unos com Deus.”
já estava de pé, andando de um lado para outro à espera do "Então, por que se cobriram com as folhas de parreira?”
garçom que devia trazer o breakfast e folheando a Bíblia de “Porque não puderam resistir à plena convulsão orgástica
Gideon. Desde muitos anos, para matar o tempo entre um e às suas correntes orgonóticas. Não conseguiram permanecer
show e outro nos hotéis baratos da estrada, eu sabia a posição iguais a Deus. Essa é a história completa de como o homem
das passagens mais severas do Velho Testamento, mas minha blindou-se a si mesmo, e do Paraíso que perdeu na ocasião.”
favorita era a poesia do Gênesis. O breakfast chegou e Carolyn "Compreendo” — disse Carolyn.
serviu café para dois. "Então, Deus, o que constitui outra maneira de falar sobre
“Você, alguma vez, lembrou-se de pensar sobre Adão e a verdadeira natureza de ambos, voltou-se para os dois e fez
Eva?” — perguntei. Ela respondeu que não com a cabeça. “Reich com que ficassem envergonhados da própria ‘carne’, que é o
tem uma teoria fascinante sobre a expulsão do Paraíso" — obser­ organismo blindado: rígido, tenso e incapaz de sentir os fluxos
vei. prosseguindo: “De fato, anteriormente nunca consegui maravilhosos e de render-se à convulsão orgástica. Cobriram
coi ipreender essa teoria, mas acho que agora a compreendo. a própria nudez para esconder a vergonha, da mesma forma
Por que, diabo, Adão e Eva foram expulsos do Paraíso somente que a camada superior da falsa ‘moralidade’ social esconde os
por terem comido uma- maçã?” desejos sexuais humanos secundários e sadomasoquistas.

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' Deus condenou Adão a conquisLar o pão ‘com o suor do cie?’ Praticamente, o homem tudo fará para não ter que enfren­
teu rosto’ — a trabalhar obrigatoriamente em contraposição tar o problema crucial de nossas vidas, a miséria sexual humana
ao trabalho natural, inteligente e compensador. E disse a Eva
que subsiste na raiz de todas as nossas dificuldades — sociais,
que seu marido ‘terá poder sobre ti’ em todas as coisas, o que
políticas e econômicas. E a miséria sexual persistirá enquanto
significa o início das relações patriarcais e postiças entre os
o homem criar a blindagem para seus filhos, e enquanto a
sexos, oriundas do ponto de vista distorcido das pessoas blinda­
sociedade permanecer sujeita a qualquer uma das formas que
das sobre o papel sexual que lhes cabe; e Ele disse a Eva que
tomou até hoje na história do chamado mundo civilizado.”
ela haveria de parir "na dor”. O pélvis enrijecido e blindado
Continuamos sentados naquele quarto de hotel por mais
provoca dores insuportáveis durante o parto.”
algum tempo, e então Carolyn falou: "Talvez a escola possa
"Você se lembra do gato de Farnsworth?” — perguntou
ser um início.”
Carolyn. Tínhamos presenciado a gatinha de uns amigos dar
"Talvez” — concordei. “Será apenas uma gota de água no
à luz e observamos como sua face parecia traduzir felicidade
balde mas pelo menos estaremos fazendo alguma coisa. Quando
naquele momento. Fiz sinal afirmativo com a cabeça e prossegui as crianças que frequentarem a nossa escola atingirem a idade
com a minha narrativa.
adulta serão muito mais diferentes de si mesmas do que pode­
“A serpente, que tinha sido a mais ‘astuta’ e a mais bela ríam ser de outra forma.”
de todas as coisas existentes no Jardim do Éden, foi condenada
"É excitante, não?” — observou Carolyn.
a arrastar-se sobre a terra por toda a eternidade”. Nessa altura Levantamo-nos, vestimo-nos e deixamos o hotel.
consultei a passagem da Bíblia: “ ‘Arrastar-ie-ás sobre o ventre
e comerás a poeira por todos os dias de tua vida’. A serpente
ainda guarda traços de beleza. Repare em seus movimentos
ritmados, reminiscência dos fluxos orgonóticos. Repare nas co­
res brilhantes de determinadas espécies. O sexo, como a serpen­
te, está condenado a arrastar-se na poeira através da blindagem
mas também ele guarda traços da antiga beleza.”
"Assim, a história do Jardim do Eden, se encarada em
termos de simbolismo, é, de fato, a história da queda do homem
do estado de graça. Se sabemos como perdemos o Paraíso, o
fato nos ensina o caminho de volta, e quando se aceita a interpre­
tação das Escrituras feita por Reich, esse caminho de volta ao
Paraíso pode ser conseguido através da conquista da potência
orgástica, tanto pelo indivíduo como pela espécie.”
“Bem, é fascinante” — observou Carolyn — “mas, não posso
acreditar que os homens que escreveram o Velho Testamento
tivessem alguma coisa disso em mente.”
"Não, é claro que não” — retruquei — "mas, alguma coisa
que guardavam em seu subconsciente, uma recordação social
profunda impeliu-os a fornecer essa explicação particular para
a eterna miséria humana. Explicação que permaneceu durante
séculos encadeada nas fábulas e, coisa extraordinária, não so­
mente ninguém jamais a decifrou até então, como também nin­
guém jamais fez a pergunta. Ninguém, até o dia em que Reich
afirmou: "O que Adão e Eva fizeram foi uma coisa tão terrível
que pode causar milhares de anos de agonia para toda a espé­

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13

I Setembro chegou e a Escola da Rua 15 começou a funcio­


nar. Carolyn e eu ficamos embaixo, ao pé da porta de entrada,
recebendo os pais que acompanhavam os filhos, aos quais ensi-
návamos onde deviam ficar. Nesse primeiro dia, quase todos
os adultos permaneceram algum tempo na sala dos professores,
onde tomaram café. Carolyn fazia as vezes de secretária-encarre-
gada do escritório. As crianças de quatro anos, oito ao todo,
ficavam conosco durante as primeiras três horas da manhã,
e as de cinco, que eram nove, vinham à tarde para outras três
horas. O primeiro grau incluía onze garotos que permaneciam
na escola das 9 da manhã às 3 da tarde. Assim era a nossa
escola.
A maior parte do edifício de quatro andares continuava
desocupada; por isso, planejamos acrescentar mais um grau
ao curso, todos os anos, de forma que, na medida em que os
garotos mais velhos fossem crescendo e passando de ano, pode­
riamos ocupar todo o prédio. Dessa maneira, quando outras
crianças menores fossem matriculadas, os mais velhos poderiam

91
# *

ensiná-las sobre o nosso método de trabalho. Além disso, acei­ no chão jogavam cartas. Outros dois, deitados debaixo da mesa,
tando apenas crianças que ainda não tinham frequentado a liam historietas cômicas. Outros desenhavam ou pintavam. Ar-
escola, acreditavamos começar sem os problemas que Neill en­ nold, que era o gênio da turma, sentava-se à mesa lendo a
frentou com crianças que odiavam a escola. Enciclopédia Mundial. Harry, o gordalhufo, terminava de lan­
Tentamos, também, evitar a matrículas de garotos obvia­ char. Wilbur anunciava: “Auia de leitura:” Os garotos riam
mente amalucados e anti-sociais. Não contávamos com nenhum e abandonavam a sala. Somente Arnold, o gênio, deixava-se
A. S. Neill, e não queríamos transformar a escola numa institui­ ficar. “Aula de leitura", insistia Wilbur. “Obrigado" — dizia
ção terapêutica. Carolyn e eu pensamos muito sobre o caso, Arnold; “Eu já sei ler." Ao deixarem a sala de Wilbur, alguns
pois o que realmente desejávamos era oferecer um lugar para subiam para as salas vazias do quarto andar. Outros, escondiam-
as poucas pessoas que tentavam educar os filhos da melhor se debaixo das escadas, e o resto descia para o “ginásio.” O
forma possível onde estes pudessem ser educados sem ter que "ginásio” era um grande salão existente no andar térreo, que
abandonar tudo que faziam no próprio lar. a União costumava usar como auditório. Estava quase vazio,
Nesse primeiro dia, enquantoos pais permaneciam sentados e ali só havia uma grande estrutura de madeira na qual alguém
na sala dos professores, tomando café e conversando, as crianças podia se esconder, e outras coisas atiradas pelos cantos; no
começaram a explorar a escola. Os menores ficaram a maior entanto, o “ginásio” passou a ser o lugar mais popular da escola
parte do tempo sob a asa protetora de Renée, sua professora, porque estava quase sempre livre da presença de adultos.
porém os mais crescidos, quando ouviram falar que tinham Uin dia, dois meses depois de aberta a escola, Wilbur anun­
plena liberdade, espalharam-se em grupos pelo edifício, explo­ ciou que já era tempo de começar a aula de leitura e, para
rando todos os cantos e recantos desde o teto até o subsolo. sua satisfação, algumas crianças permaneceram na sala. No dia
E as horas foram passando. O barulho era incrível, e era quase seguinte, outras acompanharam os primeiros e pouco tempo
possível sentir a energia que estava sendo produzida. Os profes­ depois quase todos os garotos assistiam regularmente às aulas.
sores passaram o dia inteiro correndo atrás das crianças, com E por volta do Natal a classe já era bastante numerosa.
receio de que pudesse acontccer-lhes alguma coisa. Quando Depois de um ano. um certo padrão de comportamento
bateram as três da tarde e com a saída do último aluno, Carolyn começou a surgir entre as crianças do primeiro grau. Chegavam
e eu sentamo-nos no escritório olhando um para o outro e à escola entre 8h30m e 9 horas, quase todos vindos de vários
calculando que diabo de coisa tínhamos iniciado. Os professores pontos de Manhattan no ônibus escolar (de uma empresa parti­
foram também chegando, um por um, exaustos; sentaram-se cular). Dirigiam-se imediatamente às respectivas salas, guarda­
e ficaram a nos olhar de frente. Carolyn abriu a gaveta e tirou vam o lanche que traziam e corriam para o ginásio. Por volta
um pequeno frasco de conhaque Hennessy que teve a boa idéia das 9hl5m, Wilbur e Rachel anunciavam o começo da aula de
de comprar; todos misturamos a bebida no café e bebemos. leitura e o grupo dividia-se em grupos menores, com exceção
“Que tal?” — perguntou Wilbur. de Arnold, que, aos seis anos, já sabia ler melhor que Wilbur,
“Não sei” — respondi, olhos pregados no meu café. Eu e de outros dois garotos, Anthony e Danny, que não sabiam
unha contratado um ator desempregado de nome Ralph para ler e não se importavam com a aula. Esta durava cerca de
ser o nosso zelador. Ele entrou no escritório à procura de uma uma hora, e o nível de aplicação dos alunos era extraordinaria­
vassoura e começou a falar de Tchecov, o que fez com que mente elevado. A regra adotada era a de que se alguém não
todo mundo abandonasse a sala; assim, todos fomos para quisesse participar da aula podia permanecer na sala se ficasse
casa e para a cama. absolutamente calado (Arnold) ou sair para outro lugar se qui­
O segundo dia da escola começou onde o primeiro havia sesse fazer barulho (Anthony e Danny). Essa regra foi imposta
terminado. Foi uma balbúrdia total. Os professores passaram sem dificuldade. Uma coisa é insistir para que a criança fique
o dia preocupados com as crianças e, à tarde, apareceram no sentada e preste atenção durante a aula de leitura (como se
escritório, exaustos. E os dias foram passando. A cada manhã faz na maioria das escolas), e outra insistir para que escolha
tentavamos organizar uma aula de leitura. Às dez horas, Wilbur entre ficar na aula e prestar atenção à leitura ou sair para
entrava na sala e observava o ambiente. Quatro garotos sentados fazer o quiser. Quando as crianças têm direito a essa escolha,

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os professores podem exigir, dos que ficam, uma atitude de a pouco comecei a compreender até que ponto nós, os adultos,
atenção respeitosa durante a aula. A aula de leitura terminava lemos preconceitos contra os interesses e os desejos das crianças.
às 10hl5m ou 10h30m e então as crianças podiam dedicar-se A literatura infantil, por exemplo, é sempre encarada como
a outras coisas, como pintar e armar os brinquedos, orientadas instrutiva. As mesmas pessoas que lêem Jacqueline Susann por­
por Rachel, ou correr para o ginásio ou para o terraço do que apreciam seu estilo nem sequer chegam a sonhar em dar
edifício (cercado por uma tela e com alguns brinquedos), ou um livro aos filhos cujo conteúdo não seja edificante, instrutivo
pedir a ajuda de Wilbur para fazer experiências científicas (os e nào-violento. No entanto, os filhos estão tão interessados no
meninos), ou esconder-se debaixo das escadas com um livro prazer como os pais. O caso da literatura infantil é um pouco
de histórias de quadrinhos ou, ainda, andar pelos corredores parecido com o negócio de alimentos para os gatos. Comprador
à vontade (Anthony e Danny). O lanche era servido às 11 h30m, e consumidor não são os mesmos. A comida de gato precisa
exceto no caso de Harry, o gordalhufo, que sempre lanchava ter um sabor de peixe capaz de provocar o apetite do animal
às 10 horas. A refeição era feita por toda parte, em grupos mas, por outro lado, não deve cheirar tanto a peixe a ponto
de dois, três ou quatro. Wilbur sempre se queixou da hora de fazer com que a dona do gato, que é quem tem o dinheiro
do lanche — os garotos deixavam os restos do que comiam para comprá-lo, seja obrigada a sair correndo da cozinha.
no ginásio, que ele era obrigado a limpar todas as tardes. Fez Na Escola da Rua 15 verificamos que as crianças aprendem
inúmeras reclamações contra isso, mas nada se pode fazer. Final­ por meio daquilo que nos parecem brincadeiras inexpressivas,
mente, exigiu que as crianças não mais fizessem o lanche no o que quer dizer que essas brincadeiras não são de todo destitu­
ginásio, regra que passou a ser observada de tempos a tempos. ídas de significado. Mas, nunca tentamos enganar uma criança
Após o lanche, seguia-se a aula de Aritmética. Poucas crianças c levá-la a aprender aquilo que queremos que aprenda sob
preferiam a Aritmética à leitura, mas de qualquer forma a aula o disfarce de uma bricadeira. Qualquer criança normal odeia
era ministrada para os que queriam assistir a ela. A última essas revistas que anunciam o "aprender brincando”, encontra­
hora do dia era dedicada a terminar os deveres, limpar as salas, das aos montes nos consultórios dos pediatras. A criança esco­
brincar no ginásio ou vaguear pelos corredores, à vontade. De lherá sempre as histórias cômicas em quadrinhos.
vez em quando, durante a semana, as atividades eram outras: Ao terminar o primeiro ano escolar, todos os garotos do
passeios pelo Zoo, museus, parques, bairro chinês, centro de primeiro grau, com exceção de Arnold, Anthony e Danny, fre­
diversões de Staten Island. feiras, ao Empire State Building, quentavam regularmente as aulas de Leitura, Caligrafia e Arit­
e a outros pontos interessantes de Nova Iorque escolhidos pelos mética. Em fevereiro e março daquele ano, aceitamos um novo
professores. Wilbur acreditava, e concordo com ele, que uma grupo de crianças de quatro anos que cursariam o jardim-
grande parte do que a criança pode aprender na infância aconte­ de-infância a partir de setembro vindouro, além de algumas
ce depois da escola e longe do lar. As brincadeiras infantis, outras que tínhamos matriculado no jardim-de-infância e no
organizadas pelas próprias crianças com a utilização de todas primeiro grau. Nessa ocasião, os alunos do primeiro grau passa­
as coisas que encontram à mão (bonecas de plástico, garrafas riam para o segundo, os pequenos do jardim-de-infância para
de Coca-Cola etc.), envolvem problemas de contar, raciocinar, o primeiro grau, e assim por diante. Quando reabrimos a escola,
calcular e levam ao desenvolvimento interpessoal. É muito mais naquele setembro, verificamos, encantados, que todos os alunos
compensador, significativo e importante do que noventa e cinco que estavam habituados a assistir às aulas com regularidade
por cento do que acontece nas salas de aula. Resolvemos tentar recomeçaram os estudos exatamerue no ponto em que os deixa­
introduzir o máximo possível dessas brincadeiras na nossa esco­ ram para as férias de junho — e verificamos também que a
la. Insistimos junto às crianças para que trouxessem seus horrí­ nossa escola estava progredindo.
veis brinquedos para a escola (horríveis para nós). Não somente
passamos a tolerar o que a nossos olhos pareciam brincadeiras
inúteis, como dissemos às crianças que tinham todo o direito
de brincar como quisessem, tentando descobrir nessas brinca­
deiras a mesma importância que assumiam a seus olhos. Pouco

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n

14

Um ano e dez dias depois do nosso casamento, Max Bean


nasceu no Hospital Beth Israel, em Nova Iorque. Deveria ter
nascido na casa de MacDougal Alley e no mesmo quarto onde
seus pais se casaram e onde foi concebido. Carolyn jamais acei­
i tou a idéia de que uma criança deve nascer no hospital e, assim,
i convenceu o obstetra que a atendia, um excelente europeu,
que confessou já ter assistido ao nascimento, em casa, de cente­
nas de bebês. O único motivo que o levou a hesitar antes de
concordar com o pedido foi o fato de saber que se seus colegas
soubessem dissojulgá-lo-iam um louco. Finalmente, acabou con­
cordando, desde que pudéssemos encontrar uma parteira para
auxiliá-lo. Conseguimos descobrir uma, criatura encantadora
e competente que anteriormente trabalhara como enfermeira-
chefe do Hospital New York. Ela morava em Nova Jérsei e,
assim, podia chegar a MacDougal Alley em menos de uma hora,
quando Carolyn começasse a sentir as primeiras contrações pre-
nunciadoras do parto. Chamava-se Betty Hosford e também
teve todos os filhos em casa. Carolyn e eu tínhamos frequentado

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I
os cursos pré-natais de Mrs. Bing destinados aos casais à espera os punhos cerrados e a carinha contraída numa careta. Nada
de filhos. Todos nós, os maridos, aprendemos cuidadosamente demais depois de tudo por que passou.
os exercícios respiratórios a serem observados para o caso de
lembrar as parturientes durante o parto. Chegou o dia, começa­ Fui para o bar de Dick Edward e pedi um uísque, que
ram as contrações, Mrs. Hosford veio de Nova Jérsei c o medico não pude beber. Dali segui para casa e caí no sono naquele
recomendou-nos que o informássemos por telefone sobre o grande leito revolto onde deviam estar minha mulher e meu
estado da paciente. Carolyn permanecia sentada no nosso gran­ filho. Tudo saiu bem, mas foi uma pena que Carolyn, após
de leito vestida com seu mais lindo peignoir, c parecia absoluta- despender tanto tempo e cuidado em preparar a romântica
mente radiante. Michele, debruçada ao canto da cama, observa­ chegada de seu filho, tivesse tido provavelmente complicações
va fascinada quando começamos com os exercícios respiratórios que impediram tudo isso.
logo às primeiras contrações. Eu tinha preparado um drinque No dia seguinte, logo cedo e todo contente, fui para o
especial para a futura mamãe (o médico disse que não havia hospital. Carolyn parecia mais linda que nunca. Estava sem
nenhuma contra-indicação para um pouco de álcool, que con­ pintura, os cabelos atirados para trás, e Max mamava em seus
corre para que as pessoas se relaxem), Michele foi assistir à braços. Eu estava vestido com um avental branco e usava uma
televisão, a parteira chegou logo, as contrações aumentaram máscara cirúrgica no rosto. Sentei-me na ponta da cama e ela
de intensidade, chamei o medico, que chegou imediatamenie, entregou-me o garoto. Max olhou-me de frente (Wilhelm Rcich
e Max Bean preparou-se para entrar cm sua casa. observou que os olhos dos bebês focalizam as pessoas logo após
o nascimento, contrariamente à crença popular, desde que não
Entretanto, não apareceu. As contrações deviam surgir pri­ tenham sido tratados com colírio, o que não aconteceu a Max,
meiramente a intervalos de três minutos, e em seguida a cada de acordo com o médico). Tinha ainda grandes sulcos no rosto
minuto. As horas foram passando, e elas se manifestaram, a e os olhos pareciam ansiosos. Devolvi-o à mãe c ele agarrou-se
princípio, de cinco em cinco minutos, depois a cada dez minutos. itnediaiamente ao seio. Suas pequeninas mãos enterraram-se
Nosso médico chamou um especialista seu amigo, que chegou na pele de Caolyn e ele começou a sugar-lhe o seio com um
logo depois, examinou Carolyn e afirmou que ela não consegui­ apetite voraz. Vi quando ele a olhou. Ela voltou os olhos para
da dar à luz. E acrescentou: “Leve-a para o hospital e pratique o filho que trazia ao seio com tanto amor e ternura que quando
jma cesariana”. Nosso médico ficou atônito: Carolyn devia dar os olhares de ambos se cruzaram pareciam mergulhados um
à luz naturalmente. Quando isso aconteceu, Carolyn já vinha no outro. Senti os olhos marejados, transbordantes de amor
sofrendo as dores do parto por trinta e seis horas! O nascimento pelos dois.
idílico de meu filho, em nossa casa, transformou-se num pesade­ Max precisava voltar para o berçário. Acompanhei-o en­
lo. Transportei Carolyn para o carro e levei-a imediatamente quanto a enfermeira o conduzia no carrinho. Desapareceu por
para o Hospital Beth Israel, onde tinha feito uma reserva para uma porta e depois apareceu por trás de uma enorme janela
o caso de uma emergência. Foram maravilhosos conosco. Uma de vidro juntamente com outros bebês. Fiquei a olhá-lo, quando
equipe de médicos cercou Carolyn. O bebê estava atravessado um velho vovô judeu veio pôr-se a meu lado, de chapéu na
e em posição contrária. Tratando-se de um garoto, recomenda­ cabeça.
ram a cesariana. Nosso médico europeu foi magnífico. Carolyn
“Aquele é o meu neto” — falou orgulhosamente, apontando
estava muito fraca, exausta, e eu cm pânico. Pedi-lhe que concor­ para um bebê de rosto pálido deitado no berço, o terceiro depois
dasse com a opinião da maioria. Respondeu que se Carolyn de Max.
não desse à luz dentro de duas horas concordaria com a opera­ “É um bebê lindo” — observei. “Aquele ali é o meu filho”
ção. Ela recebeu uma medicação destinada a facilitar o parlo — e apontei para o berço de Max.
e dentro de dez minutos apareceu a cabeça do bebê. Foi retirado
‘Um menino lindo” — disse o velho. “E como se chama?”
a fórceps e Carolyn, inteiramente lúcida e esforçando-sc ao “Max" — respondí.
máximo, caiu num sono profundo. Max passou por mim, já
“Max!” exclamou, sacudindo os braços, excitado. “Max!
no berço e a caminho da enfermaria, e pude olhá-lo. Tinha
Max! Que beleza de nome antigo” — continuou o vovô judeu.

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“Por que não dão mais às crianças os grandes nomes de antiga­ aterrorizante para o bebê; descobrem os resultados da operação
mente? Veja o meu caso. Estou cercado por Geoffries!” no subconsciente dos pacientes. A lenda sobre o nào-
desenvolvimento do sistema nervoso do recém-nascido que, por
Carolyn, que teve um parto extremamente difícil, já estava
isso, evita a dor, é um daqueles erros em que, de tempos a
pedindo para ir para casa. O médico disse que, se estivesse
bem ao terceiro dia, podería deixar o hospital. Os médicos, tempos, o homem julgou conveniente acreditar como, por
que compreendiam a exiguidade do tempo de que dispunham, exemplo: “As crianças não têm sensações sexuais”, ou "Os ne­
tentavam convencer os pais a deixar o hospital logo que possível. gros não têm alma” e "A Terra é o centro do Universo”.
Um a um, médicos e enfermeiras daquele moderno e excelente Na tarde do segundo dia que Carolyn passou no hospital,
hospital visitaram Carolyn em seu quarto, sorriram-lhe, pergun­ uma enfermeira apareceu em seu quarto para mostrar como
taram pelo seu estado e, em seguida, queriam saber por que enrolar o bebê nas fraldas. "Aperte fortemente” — observou.
motivo o garoto ainda não fora circuncidado. Ela explicou que “Isso dá uma sensação de segurança à criança. A princípio é
o pai de seu Filho também não fora circuncidado, que conhecia provável que chore, mas depois ficará acostumado. De fato,
perfeitamente as razões que aconselhavam a operação, como o bebê prefere ser agasalhado dessa forma, menos nos dias de
muitos acreditavam, mas apenas preferia evitá-la. mais calor”. Max Bean, de dois dias de idade, estava muito
"Mas, não sabem que há uma incidência muito mais elevada à vontade nos braços da mãe, naturalmente ouvindo tudo isso
de câncer no pênis entre os homens que não foram circuncida- e mexendo desordenadamente pés e mãos. A idéia dos cueiros
dos?” — era a observação que ouvia do pessoal do hospital. parece originária das mesmas sensações contrárias ao prazer,
“As estatísticas são discutíveis” — respondia — “mas, se contrárias à vida e à liberdade de movimentos, como a da circun­
forem corretas, é provável que isso se dê pela falta de limpeza, cisão.
e em casa não teremos esse problema.” No terceiro dia, fui buscar Carolyn e Max para levá-los
“Bem” — observou uma enfermeira, depois de olhar em
volta para certificar-se de que ninguém ouvia — “resta o proble- para casa. Enchioquartode flores, Michele ajudou-me a arruma
na da potência sexual. Sabe-se que os homens circuncidados a cama e o quarto. Fiquei à espera da minha vez defronte d
guichê do caixa para pagar a conta, que me pareceu notável
êm mais potência que aqueles que não 6 são”. E sorriu compre-
insivamente para Carolyn, que teve vontade de perguntar-lhe mente modesta, tendo em vista a atenção, realmente extraordi­
nária, com que Carolyn foi tratada. O caixa conferiu a conta
claramente se falava com conhecimento de causa. “Meu marido
e observou: "Parece que não debitaram o preço da circuncisão.”
não é circuncidado, e não tenho motivos de queixa.”
“Bem, a senhora não sabe o que está perdendo” — disse “Não foi feita" — respondí.
a enfermeira. Quando o pessoal do hospital compreendeu que “O quê?" — perguntou o caixa, que parecia não acreditar
Carolyn não se deixava convencer da necessidade da operação, no que ouvira.
todos se mostraram cada vez mais insistentes e quase hostis, “Isso mesmo; não houve circuncisão” — confirmei, o
afirmando que acabaríamos lamentando o fato. A inegável pro­ mais calmamente possível.
fundeza dessa crença deixou-me estarrecido. O objetivo da Na­ “Não houve circuncisão!” A voz do caixa reboou por todo
tureza ao criar o prepúcio foi o de proteger a sensibilidade o grande hall. Ouvi claramente os murmúrios indignados dos
da glande, a cabeça do pênis, de forma a fazer com que desse que se achavam na fila, atrás de mim. Antes que a turma pudesse
o maior prazer possível ao homem. Removido o prepúcio, a assumir uma atitude mais violenta, paguei rapidamente a conta,
sensível glande, exposta durante os anos de vida às calças de apanhei a bagagem e bati em retirada para a MacDougal Alley.
jóquei e às calças de veludo, tornar-se-ia cada vez mais rija
e menos sensível. Numa cultura orientada para “o completo Dia após dia as rugas da face de Max foram desaparecendo,
sucesso” do ato sexual, isso pode parecer uma vantagem. Basica­ e quando tinha duas semanas de vida sumiram de vez. Tinha
mente, porém, significa uma atitude contrária ao prazer, apesar sempre as mãozinhas abertas, e, quando sugava gulosamente
de todos os espúrios argumentos higiênicos usados em seu favor. o leite de Carolyn, aparentemente inesgotável (e delicioso, devo
Os orgonomistas sabem que o ato de circuncisão é um trauma acrescentar), mãe e filho olhavam-se nos olhos, inebriados, e

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o pai derretia-se de felicidade. O parto traumático já fora esqueci­
do, e Max Bean começava a explorar seu próprio mundo que
era, na ocasião, uma minúscula alcova situada ao lado do quar­
to de dormir onde seus pais se casaram, na MacDougal Alley.

15

A última vez que procurei o Dr. Baker, como paciente,


ocorreu pouco depois do nascimento de Max. O tratamento
prolongou-se aproximadamente por três anos e meio, uma
vez por semana durante os três primeiros anos, e mais espaçada-
mente daí por diante. O tratamento psicanalítico a que eu me
submetera anteriormente durou dez anos, três vezes por sema­
na. Certa vez, perguntei a Baker se julgava que o fato de ter-me
submetido à psicanálise auxiliara ou prejudicara mA tratamen­
to pela orgonomia; respondeu-me dizendo que não supunha
que isso pudesse ler tido qualquer importância, de uma forma
ou de outra. Na psicanálise, eu tinha a impressão de falar ininter­
ruptamente sobre meus sentimentos, mas quase nunca os senti.
Se tinha vontade de chorar, confessava francamente, mas a
verdade é que nunca chorei. Se me sentia irritado, dizia ao
médico que estava irritado, mas a manifestação de raiva que
sentia resumia-se a falar de vez em quando num tom de voz
mais alto. Ficar deitado num sofá com as costas voltadas para
o médico, no clássico estilo freudiano, é uma atitude suposta-

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f

mente capaz de evitar a intromissão do médico nos pensamentos É uma estupidez e uma irresponsabilidade oferecer a um ho­
do paciente, o que é certo. Na orgonomia, o paciente entra mem que esteja morrendo de fome um lauto banquete; esse
realmente em contato com o médico que, entretanto, mantém homem precisa começar com um pouco de sopa. A raça humana
o controle profissional sobre a relação estabelecida entre ambos. terá que se libertar do abismo sexual lenta e cuidadosamente,
Durante dez anos senti-me frustrado quando tentava entrar como o mergulhador que procura evitar a asfixia.
em contato com o psicanalista, da mesma forma que me sentira Há séculos passados, os grandes homens, como Moisés,
frustrado quando, em criança, tentava entrar em contato com surgiram com planos elaborados para remediar a natureza hu­
meus pais. mana scxualmente errada. Os Dez Mandamentos faziam-se ne­
Quando se pergunta a um psicanalista em que consiste cessários porque Moisés sabia que os hebreus não eram capazes
a saúde mental, e o que pensa conseguir ao tratar de seus de gozar a liberdade de modo correto. Se alguém lhes oferecesse
pacientes, ele responderá, se for honesto, que não existem pa­ uma mesa farta eles não sabiam comer apenas o necessário
drões absolutos de saúde mental e que julga que o tratamento e deixar o resto para outros; preferiam empaturrar-se para
foi bem sucedido quando o cliente termina sentindo-se mais depois vomitar o que tinham comido em excesso. Quando sen­
feliz do que a princípio, e mais capaz de ajustar-se à sociedade tiam o aguilhão do amor, em vez de procurar o companheiro
e à própria vida. O orgonomista, porém, tem objetivos específi­ do prazer, organizavam orgias e entregavam-se à promiscui­
cos ao receber um paciente. Tais objetivos são atingidos segundo dade, sexualmente áridos, até sentirem-se enjoados de si mes­
sua habilidade em auxiliar paciente; sabe, então, que foi bem mos. O Povo Escolhido estava caindo rapidamente na deprava-
sucedido. Sabe que a verdadeira saúde só pode existir quando ção, até que Moisés verificou que os hebreus precisavam exata­
a potência orgástica for estabelecida e possa ser mantida. Sabe mente do mesmoque se aplica às crianças indisciplinadas, israeli­
que, praticamente, tudo, na sociedade, trabalha contra esses tas ou não: uma legislação externa. Lançou mão de todas as
objetivos e que a orgonomia não é uma panacéia capaz de curar armas de que dispunha para levá-los ao bom caminho, apelando
todos os males, que nem todos os pacientes podem ser auxiliados para a superstição, o medo, a culpa e a ansiedade do povo.
e muito menos levados a conquistar a potência orgástica. Estavam de tal forma disassociados dos próprios instintos que
Foram profundas as modificações que experimentei duran­ já não podiam notar a diferença entre o bem e o mal; por
te meus três anos e meio de orgonomia. À proporção que isso, elaborou arbitrariamente uma lista de “tu não deves”, e
me sentia cada vez mais “natural” comecei a ver as coisas que com isso conseguiu salvá-los. Desse dia em diante passaram
me rodeavam de maneira absolutamente diversa. O significado a adorá-lo.
do sexo e do amor pareceu-me mais claro, e cheguei a compreen­ Milhares de anos depois, verificamos que os “tu não deves”
der que as pessoas que afirmam que sexo e amor representam de Moisés são arbitrários e começamos a rejeitá-los. Mas, a verda­
dois impulsos diferentes são levadas a encarar as coisas dessa de é que, hoje, nós também somos incapazes de proceder corre­
forma pelas respectivas blindagens. tamente, como o foram os israelitas de então. A tão elogiada
Sexualmente, senti-me capaz de tolerar o prazer cada vez nova liberdade sexual serviu para produzir coisas como o Screw
mais, sem mergulhar na ansiedade, verifiquei que o prazer Magazine (Revista da Foda), o Spankers Monthly e a troca
sexual interligava-se em proporções cada vez maiores com os de mulheres.
meus sentimentos mais ternos e delicados. Sexualmente, senti- Não nasci nas ilhas Trobriand, nem estou criticando as
me infinitamente mais livre que até então, embora isso nada coisas sujas. Digo. apenas que, se dermos ouvidos aos “mascates
tenha a ver com a chamada revolução sexual responsável pelo da liberdade”, que não se importam absolutamente conosco,
fenômeno que Reich chamou de “mascates da liberdade.” e se avançarmos com demasiada rapidez para um ideal, por
Esses “mascates da liberdade” andam por toda < parte ator­ mais desejável que, teoricamente, possa ser, estaremos cami­
mentando e lisonjeando os outros com visões dulçorosas de nhando para a asfixia. E então ficaremos como os filhos de
um mundo novo que afirmam estar próximo de nós. Defendem Israel. Ficaremos a olhar em torno à procura de um salvador;
a liberdade sexual imediata sem levar em conta o fato de que e sempre haverá mais de um pseudo-Moisés pretendendo ditar
a humanidade há muitos séculos morre à míngua de amor. regras.

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Certa vez, o Dr. Baker me disse, e posteriormente verifiquei de forma menos louca”, esses liberais não compreendem absolu-
a veracidade de suas palavras, que quando o paciente termina tamente o problema e merecem o desprezo dos revolucionários.
o tratamento pela orgonoterapia a capacidade de transforma­ Os jovens encaram os liberais como a parte mais perigosa da
ção adquirida faz-se sentir continuamente c ele acaba verifican­ ordem estabelecida, porque as reformas pelas quais sc batem
do que ficou muito mais diferente um ano após terminado inclinam-se a perpetuar aquilo que a revolução encara como
o tratamento do que se sentia ao receber alta. Eu, por exemplo, sendo o mito da democracia.
modifiquei-me em certo sentido: tornei-me incapaz de tolerar Quando eclodir a revolução, não haverá chance de vitória;
a sujeira e a degradação da vida cm Nova Iorque, sentindo e ela sabe disso. Entretanto, terá alcançado seú verdadeiro obje­
a opressão quase física que se irradia dos esquálidos arredores tivo de desalojar os fascistas de suas posições e dar ao povo
da cidade e do próprio povo faminto e frustrado. o direito da escolha. Quando o país for governado por uma
Minha compreensão política também mudou. Costumava junta e as tropas de choque irromperem pela noite adentro
ouvir os membros da nova extrema-esquerda nacional: Hippies, para prender os suspeitos, o povo decente e criterioso não terá
Craziers e Westhermen. Eles acreditam que os Estados Unidos outra escolha senão refugiar-se debaixo da terra. Uma revolução
são um país disfarçadamente fascista e que enquanto perdurar popular romântica eclodirá com as “melhores” pessoas interes­
o nosso sistema de vida e o Governo continuar adotando a sadas. Os atos de sabotagem por parte do movimento subterrâ­
forma atual, ou outra idêntica, não existirá esperança de felici­ neo serão respondidos com atos de represália por parte da
dade para o povo. Não se interessam por reformas. Pelo contrá­ ordem constituída. Para os norte-americanos, a vida se transfor­
rio, sabem que a reforma é inimiga da revolução c que qualquer mará numa questão de escolher um lado ou outro, e o verniz
coisa capaz de tornar nosso sistema mais aceitável para o povo social da democracia será uma coisa do passado. A liberdade
contribuirá para perpetuar e adiar a eventual revolução. consistirá em aliar-se à revolução. Ninguém sabe qual será o
É verdade que nosso sistema é autoritário, embora benévo­ futuro eventual, mas os jovens decidiram que tal futuro vale
lo. Baseia-se na família patriarcal, como unidade, na superiori­ a pena ser tentado, porque imaginam que qualquer coisa será
dade do homem sobre a mulher, 11a supressão da sexualidade melhor do que a continuidade de um padrão secular de guerra
infanto-juvenil, num sistema escolar basicamente repressivo e e miséria, e a eterna monogamia compulsória de vidas dedicadas
de tipo vitoriano que procura subjugar o espírito infantil e à aquisição de bens materiais.
numa economia compulsória orientada para o consumidor, que A tragédia dos jovens revolucionários consiste em que eles
exige uma produção contínua e extravagante de mercadorias anseiam pela liberdade, mas ignoram que qualquer tentativa
que se tornam imediatamente obsoletas. Os jovens revolucioná­ destinada a criar a liberdade genuína para os milhões de seres
rios têm uma visão dos Estados Unidos muito mais clara que humanos blindados será combatida com unhas e dentes por
a de qualquer outra pessoa. esses milhões de criaturas. A marca registrada da pessoa blinda­
Na opinião desses jovens revolucionários a diferença entre da não lhe permite tolerar nenhum movimento de expansão
a nossa sociedade e a de Hitler reside na nossa suposta veneração ou de liberdade autêntica, exceto em proporções extremamente
por uma pseudoliberdade que esconde com um brilho cínico limitadas. Nunca foi nem quis ser seu próprio senhor, preferin­
o que somos de fato. Por isso, pretendem destruir esse verniz do, em vez disso, uma troca periódica de patrões. O camponês
pela comparação. Pintando o rosto, deixando crescer o cabelo, que vive numa comuna chinesa não desfruta de maior ou menor
usando roupas socialmente inaceitáveis e procedendo delibera- liberdade individual diferente da que teria sob a dinastia Ming.
damente de maneira insolente, como se fossem criaturas espolia­ Pode ter mais alimentos e agasalhos mais quentes, e pode-se
das, esperam, com isso, irritar de tal forma a ordem estabelecida sustentar que isso é liberdade; mas, será essa a liberdade de
que esta acabará deixando cair a máscara de benevolência para que falam os jovens deste país? Obviamente, nesta terra de
mostrar-se violenta e ditatorial como é. Quando os liberais sim­ riquezas, não.
patizantes se queixam de que poderíam apoiar basicamente O que desejam é uma sociedade que afirme a liberdade
as transformações que os jovens querem realizar “se, pelo me­ de espírito, uma sociedade que facilite o amor, a ternura e
nos, eles abandonassem a aparência desagradável e agissem a comunicação com a Natureza, uma sociedade que, como acon­

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tece nas ilhas Trobriand, permita, realmente, que cada um revolucionário incrivelmente lúcido que, aparentemente, nos
faça o que quiser. Aquilo que, no seu desespero, os jovens não vêem como realmente somos.
podem encarar, é o fato de que as sociedades auto-afirmativas
Sinto-me aterrorizado pe.o que vem acontecendo com essa
produzem gerações de criaturas auto-afirmativas. Um sistema
revolução fictícia. É uma fuga da prisão mal planejada e conde­
de vida agradável não pode ser imposto revolucionariamente
nada ao fracasso, que avança aceleradamente para o descontro­
a um povo que vive uma vida basicamente negativa. Se isso
le. Minha experiência pessoal com a orgonomia capacitou-me
fosse feito, o modo de vida regressaria sempre ao negativismo,
a encará-la de modo diferente daquele usado pela maioria
geralmente de forma muito mais violenta que aquela da qual das pessoas — com mais clareza, suponho. O que não me fez
a revolução procurou fugir (de Marx a Stalin etc.). apreciá-la.
Os jovens revolucionários encaram este país com grande
clareza... mas com os olhos blindados. A verdade é que, enquan­
to os Estados Unidos, da mesma forma que o mundo Ocidental,
são um país basicamente autoritário, estão longe de ser totali­
tários. Os revolucionários norte-americanos jamais viveram sob
uma ditadura — do proletariado ou de outra natureza — e
não fazem a mais remota idéia do que é ditadura. Esquecem-se
de observar que a primeira coisa que faz a sociedade que se
torna socialista é adotar a repressão sexual. Isso aconteceu na
Rússia, na China, na Albânia, no Vietname do Norte e em
Cuba, que, atualmente, são os países mais puritanos do mundo.
A maior parte daquilo que os jovens sustentam sobre o
país é verdade; no entanto, existe uma verdade mais ampla,
que é aquela que a raça humana representada nos Estados
Unidos está longe de poder tolerar, uma liberdade maior do
que a que atualmente desfruta. Na verdade, parece mesmo
difícil tolerar a que já existe. Infelizmente, o ligeiro verniz de
liberdade que existe nos Estados Unidos representa tudo quanto
a absoluta maioria dos seres humanos pode desfrutar. Uma
liberdade maior que essa, que exigiría de nós maior senso de
responsabilidade pelo nosso próprio destino, acabaria por
reduzir-nos a verdadeiras ruínas nervosas e nós a rejeitaríamos.
O erro trágico que os jovens cometem por não compreenderem
o fato, naturalmente porque não podem fazê-lo, é o de procurar
conduzir-nos à perda da liberdade que temos.
A marcha vagarosa para a liberdade que precisou de milha­
res de anos para atingir o nível atual nos Estados Unidos está
prestes a ser ironicamente invertida pelos pensadores mais .lúci­
dos, produto da mais livre de todas as sociedades que a História
jamais registrou. Não se deve pensar claramente sobre o fato
de ser ou não blindado — porque esse pensamento permanecerá
dentro de nós. Os conservadores idiotas, que pensam com o
coração e amam este país, estão mais perto da verdade autêntica
sobre os Estados Unidos e a condição humana do que o jovem

108 109
16

Bridie conseguiu sobreviver à caminhada que precisava


dar da Rua 86 à Washington Square. Bastou-lhe apenas um
dia para acostumar-se ao cheiro característico do ambiente e
aos casais de todas as raças que ali se reuniam, e depois disso
nunca mais olhou para outro cabinciro de elevador. Entretanto,
depois que Carolyn e eu nos casamos, começou a sentir-se um
pouco deslocada e um dia anunciou que ia regressar à Irlanda.
Voltou à cidade natal, Dingle, onde se casou com um jovem,
montou casa e teve um filho. Max e Michele ganharam uma
irmàzinha chamada Susannah; compramos uma casa, um casa­
rão antigo que reformamos, no mesmo quarteirão da escola.
A escola cresceu e chegou a abrigar cem alunos, e o curso
atingiu o sexto grau. Somente seis dos nossos primeiros alunos
nos deixaram. Os pais de Harry, o gordalhufo, mudaram-se
para o subúrbio e levaram-no em sua companhia. Arnold,
o gênio, depois de ficar conosco um ano, matriculou-se numa
escola de gênios. Os pais de Danny, depois de quatro anos,
resolveram matriculá-lo numa escola pública. Anthony continua

111


na nossa escola. Depois de vaguear pelos corredores por mais
controle) exige o máximo de responsabilidade pessoal. E as
de ano e meio tornou-se sizudo, passou a frequentar a aula
poucas crianças que, com o passar dos anos, preferiram não
de leitura e acabou entrando nos eixos.
freqüentar as aulas compreendiam o fato tão bem como a gran­
Procuramos acompanhar a vida das crianças que permane­ de maioria que assistia às aulas com regularidade. Nunca houve
ceram conosco por um, dois ou três anos, e depois deixaram
o menor senso de leviandade ou de promiscuidade em nossa
a nossa escola para freqüentar estabelecimentos de ensino mais escola, apesar das constantes gargalhadas. Nenhuma das crian­
tradicionais. Desejávamos saber se suportaram bem a mudança. ças matriculadas na aula de leitura pensou em freqüentá-la
Quase todas as suas famílias deixaram Nova Iorque por ocasião
às segundas e terças-feiras, faltar na quarta para voltar no dia
do grande êxodo da classe média, mas os casais com os quais
seguinte. Ou freqüeniava a aula ou não a freqüentava. Qual­
conseguimos entrar em contato revelaram que seus filhos, apa­
quer outra atitude era encarada como falta de respeito para
rentemente, não tiveram nenhuma dificuldade nas escolas que
com o professor e para com os demais colegas de classe.
passaram a freqüentar. Duas irmãs, Tracy e Lisa Ticknor,
Inicialmente, começamos por submeter os alunos ao Teste
mudaram-se com os pais para outro Esiado e matricularam-se de Aproveitamento Stanford no final de cada ano e constata­
na escola pública local. Tracy, a princípio, chorou amargamente, mos, para nossa maior alegria, que a grande maioria conseguia
mas Lisa descobriu que ela queria apenas passar o dia inteiro atingir os noventa pontos, o que chega a ser surpreendente
sentada numa carteira. “Assim é que deve ser a escola” — dizia. para uma pequena escola particular, mas um resultado notável
De qualquer forma, ambas saíram-se muito bem. Aparentemen­ levando-se em conta o fato de ser voluntário o comparecimento
te, nenhuma das crianças que deixaram nossa escola por outra às aulas. A escola cresceu, prosperou e tornou-se até economica­
experimentou qualquer dificuldade particular com a mudança. mente independente, auxiliada por alguns casais, como Charles
Liz Kamell, que ficou conosco durante os primeiros cinco anos e Jane Prussack, que não somente matricularam conosco seus
antes que os pais fossem obrigados a deixar a cidade em consc- quatro filhos como contribuíram também com um generoso
qüência da alta dos aluguéis, da falta de espaço para viver e auxílio financeiro. Cortando as despesas administrativas, conse­
dos vinte e cinco dólares que deviam pagar pelo estacionamento guimos baixar o custo do ensino e até pagar aos nossos professo­
do carro, sentiu uma grande saudade da Escola da Rua 15. res salários mais altos que os que vigoravam ern outras escolas
Mas, Liz era uma pequena razoável devido ao modo com que particulares de Nova Iorque.
foi criada e educada. Por isso, aceitou a nova escola com um Recebemos, inclusive, a visita de A. S. Neill. E tudo se
currículo mais extenso porque não tinha outra coisa a fazer, passou inesperadamente. Eu fora convidado para ser o hóspede
e parece estar-se dando otimamente. de honra do show da NBC, Show desta Noite. Carolyn, então,
Contratamos um diretor de tempo integral, Patty Grcene, teve a idéia: “Por que você não propõe à NBC que convide
que já era um dos nossos professores. Aprendemos com os A. S. Neill para uma visita? Ele faria um enorme sucesso no
erros cometidos, e reunimos uma equipe maior e melhor. Refor­ show.”
mamos o edifício da escola na medida em que precisávamos “Ele jamais aceitaria o convite. Há vinte anos que não vem
de mais espaço e acabamos, graças aos nossos métodos de ensino, aos Estados Unidos” — retorqui.
sendo a melhor escola das redondezas. Os alunos desenvolveram “Bem, você não teria nada a perder com isso, não?” —
um senso de moralidade, decência e lealdade verdadeiramente observou ela.
notável e tocante. Todas as vezes que entrava na escola ficava Fiz o pedido à NBC, que concordou imediatamente. Pedi
surpreso ao constatar como os nossos alunos eram diferentes uma ligação transatlândca para Summerhill. Foi Ena, esposa
dos que frequentavam outras escolas. Quando me acontecia de Neill, quem atendeu. “E uma grande idéia” — afirmou,
ter que acompanhar os visitantes para mostrar-lhes as nossas ao saber do assunto. “E fará muito bem ao velho. Neste mo­
instalações, sempre podia observar pelos seus olhares que eles mento está na tabacaria, em Leiston. Mas, quando voltar farei
também percebiam a mesma coisa, o que me fazia orgulhoso com que aceite o convite.”
de nossos alunos. Todos aprenderam, sem ter sido ensinados, Para surpresa e contentamento gerais, três dias depois A.
que a máxima liberdade pessoal (que significa o mínimo de S. Neill chegava a Nova Iorque para uma estada de uma semana.

112 113

i
Ficou hospedado em nossa casa, visitou seu antigo editor e daquilo que Reich chamou “a praga emocionar. A única quali­
alguns velhos amigos que esperava nunca mais tornar a ver, dade especial dessa “praga emocional” em comparação com
e íoi o melhor hóspede de honra que jamais teve o Show des­ as demais formas de comportamento destrutivo consiste em
ta Noite. Viajou para o Connecticut a fim de visitar a viúva que as pessoas que caem sob a sua influência preterem atacar
de Reich, Ilse. Conversou com os nossos alunos (“Gostei de aquele que, aparentemente, não representa nenhuma ameaça.
suas fisionomias”, afirmou), e falou a um grupo de umas cem Os indivíduos atacados por essa “praga” são, em geral, criaturas
pessoas reunidas no ginásio de nossa escola, cada uina das quais enérgicas, atraentes, inteligentes e ativas. Possuem uma grande
contribuiu com dez dólares para o Fundo do Edifício Summer- dose de energia, mas são incapazes de se libertar dessa energia
hill. através de relações sexuais agradáveis. Quando entram em con­
Mas, para nós, o melhor de tudo foram as noites que passou tato com a vida saudável e amorosa, talvez sob a forma de
em nossa companhia, confortavelmente sentado no grande sofá crianças exuberantes e felizes ou de um jovem casal ardendo
do nosso living. Abri uma garrafa de Chivas Regai, velho de de amor, ou até de um cientista que esteja empenhado de corpo
vinte e cinco anos, presente de Natal que recebi de uma agencia e alma em seu trabalho, a pura força vital gerada por essas
de publicidade, que saboreamos enquanto conversávamos. criaturas saudáveis e ativas excita a carga da alta energia da
Interroguei-o sobre Reich. “praga" individual, da mesma forma que uma força magnética
“Meu Deus! Como era cabeçudo" — revelou. “Quando al­ excita outra. Mas a energia, uma vez excitada, não pode ser
gum jornalista ou qualquer outra pessoa o atacava, sentava-se liberada devido ao preconceito sexual. Isso provoca uma frustra­
e escrevia cartas intermináveis ao jornal para se defender. Nes­ ção inacreditável c um ódio assassino, que se voltam sobre o
sas ocasiões, eu o aconselhava: ‘Não dê importância a isso. Reich, objeto que provocou a excitação. Quando a turba blindada exi­
e vamos tomar um drinque.’ Mas, nunca me atendeu. Gostava giu que a vida de Barrabás fosse poupada e Jesus condenado,
realmente de mim, e eu dele. Acho que ficou um tanto abalado o fato nada mais foi senão um exemplo dessa “praga emocional”
das idéias antes de morrer, vendo discos voadores e espiões em ação.
no Governo. Mas, era um grande gênio, embora eu nunca pu­ Na Escola da Rua 15 tivemos alguns exemplos dessa “pra­
desse compreender tudo que ensinava sobre a energia orgônica ga”. A linda mamãe de uma criança encantadora que ficou
cósmica. Tive um acumulador em meu quarto que ali ficou por conosco durante três anos e, obviamente, viveu todos os minutos
muitos anos, mas, de fato, nunca consegui saber se serviu para desse período aprendendo, rindo e gostando de tudo, procurou-
alguma coisa. Reich, porém, estava absolutamente certo com me certa vez para clizer, da maneira mais amável possível, que
suas teorias sobre as pessoas e suas vidas sexuais. Pobre Reich. alguns pais de alunos tinham, aparentemente, certas queixas e
Lembro-me muito bem dele, sentado à minha frente, de cachim­ sugestões, mas não sabiam como fazer para transmiti-las. Não
bo na boca, conversando comigo. Às vezes, chego a pensar que seria uma boa idéia, supunha, criar uma espécie de comissão
eu era a única pessoa com quem podia falar à vontade, pois dos pais através da qual poderíam ser apresentadas essas suges­
os outros apenas o adoravam.” tões e essas críticas? Aquilo me pareceu uma boa idéia e, assim,
Somente poucos minutos de convívio com A. S. Neill basta­ perguntei-lhe se estaria disposta a auxiliar na organização da
vam para mostrar que se estava na presença do homem mais comissão. “Bem, já que me pede, concordo" — afirmou. A
generoso e mais sábio do mundo. Posteriormente, quando estive comissão foi organizada dentro de uma semana e imediatamente
na Inglaterra participando de um filme, Carolyn e eu fornos surgiram diversas acusações malévolas e hostis contra alguns
visitá-lo, e a Ena, em Summerhill. Ena é tão encantadora quanto professores. Ao serem examinadas, verificou-se que tinham sido
o marido. feitas por três ou quatro pessoas que se valeram, para poderem
De vez em quando, ouço dizer que Neill linha morrido apresentá-las, das sugestões da comissão de pais devidamente
e a escola de Summerhill fora fechada. O mesmo boato lenho aprovada. O caso, imediatamente reduzido às suas verdadeiras
ouvido sobre a nossa escola; dizem que foi o Estado que a proporções, provocou grandes preocupações e alguma irritação.
fechou ou que tinha sido modificada e já não mais ensinava Uma semana depois dessa intriga venenosa, a jovem mamãe
a "liberdade sem licenciosidade”. Tais rumores parecem obra declarou que estava demasiadamente ocupada com outros as-

114 115
süntos para poder continuar participando da comissão dos pais
e, além disso, essas coisas aborreciam-na profundamente. Sema­
nas mais tarde fomos informados de que seu filho fora matricu­
lado, para o ano seguinte, em outra escola. Foi só pouco a
pouco que a coisa se tornou clara a meus olhos. Que diabo,
perguntei a mim mesmo, por que motivo essa mulher, que
sempre fora uma das nossas mais entusiastas defensoras, deu-se
ao trabalho de mexer nesse ninho de vespas c depois fugir?
A única resposta que encontrei para essa pergunta foi a de
que a imagem do próprio filho, que desabrochava, crescia e
tornava-se cada vez mais exuberante, tornou-se demasiadamen­
te pesada para ela. No entanto, é possível que tenha sido exata-
mente isso que sempre desejou para o filho no terreno intelec­
tual (muitas vezes declarou que quando criança odiava a escola
e, por isso, invejava a experiência que o filho vinha lendo),
e, aparentemente, o fato terminou por provocar-lhe uma excita­
ção que, por fim, tornou-se insustentável.
O pouco mal que essa mulher ajudou a causar constitui,
naturalmente, um pequeno exemplo da ação da “praga emocio­
nal”, mas um exemplo bastante frisante. (Incidentalniente, a
17
par das idéias destrutivas, a comissão de pais proporcionou-nos
também algumas sugestões valiosas.) Essa "praga" acabou ma­
tando Reich pela calúnia, pelas injúrias e pelas mentiras,
escorraçando-o de um país para outro e contribuindo para tor­
nar seu trabalho praticamente impossível e, finalinente, por
lançá-lo à prisão, onde morreu. Numa tarde de domingo ensolarado Carolyn e eu passáva­
Esperamos que a Escola da Rua 15 possa sobreviver às mos pela Washington Square. Jovens estavam sentados em torno
vicissitudes da “praga emocional” e de outros inales, naturais da fonte, tocando violão e cantando canções de protestos. O
ou não. As crianças que abriga estão progredindo, o edifício cheiro adocicado da maconha alastrava-se tão fortemente por
está de pé e a porta de entrada continua pintada de amarelo- toda ■ parte que a gente chegava a pensar que os policiais de
vivo. ronda de um lado para outro poderiam ficar dopados se o
aspirassem profundamente. Passeávamos em silêncio, de mãos
dadas, ambos pensando naqueles jovens em torno da fonte
e no mundo em que viviam e que, obviamente, não podem
transformar.
Esses jovens acreditam realmente que são mais saudáveis
que a geração que os gerou e, por isso, mais saudáveis que
qualquer outra geração. De fato, parecem convencidos de per­
tencer a uma espécie diferente e de ser capazes de adotar
um novo modo de vida e, de algum modo, criar uma sociedade
mais feliz e mais afetuosa.
Para qualquer um que queira gastar algum tempo na com­
panhia desses jovens é óbvio que a base desse sentimento de

116 117
“diferenciação” para eles não é política, mas sexual. Acreditam so. Suas razões jamais serão compreendidas pelas velhas gera­
que são a primeira geração sexualmente livre de toda a Histó­ ções, porque sabem que essas gerações não são como eles.
ria. Sentem-se sexualmente livres, pelo menos relativamente; O problema, naturalmente, consiste na impossibilidade de
julgam-se capazes de amar e de sustentar uma sociedade baseada se manter continuamente nas alturas e, ao descer, sentir nova­
no amor. mente o peso da blindagem de volta com a lembrança de ser
filho dos próprios pais; então, começa-se a odiá-los, a odiar-se,
“Eles, de fato, sentem-se diferentes” — disse a Carolyn a odiar a sociedade e a querer destruí-la. O sujeito fará tudo
quando passamos pela fonte, naquela tarde. “E, na minha opi­ para voltar ao estado anterior em que se achava porque, de
nião, sabe por quê? Maconha.” fato, a sensação é muito melhor. Mas, tudo tem seu preço,
“Talvez” — observou; e continuamos andando e pensando inclusive as drogas, embora ainda não saibamos ao certo qual
no caso. Não se pode negar que essa é uma geração diferente. seja esse preço. O LSD também tem o próprio preço, e então
Fumam maconha em quantidades incríveis, e a maconha é um vemos o horror dos jovens que procuram a heroína. Não pode­
afrodisíaco. O LSD também, e é outra droga que eles apreciam. mos conquistar a liberdade através das drogas porque existe
A sensação que se experimenta quando se fuma a maconha uma lei que prescreve seu uso em quantidades cada vez menores,
é notavelmente igual à produzida pelos influxos orgonólicos. e porque a sociedade não pode ser arrancada da própria estrutu­
O ato sexual, praticado sob a influência de uma droga de boa ra, apesar de tudo que os jovens possam dizer. Aqueles que,
qualidade, é uma maravilha indescritível, uma experiência ines­ neste país, odeiam o prazer estão apenas contando tempo para
quecível. Apesar dos milhões de palavras usadas para descrever uma aparição inesperada e, diante da inevitável inutilidade das
a maconha e o LSD, relativamenie muito pouco se disse sobre drogas, de certa forma, mas uma forma terrível, estão com
o enorme prazer que proporcionam. F. é exatamente isso que a razão. Quando se der o ataque da multidão contrária ao prazer,
leva os jovens a usá-los, e esse o problema a enfrentar, l enho não existirão mais a maconha ou o LSD, as relações sexuais
a impressão de que essas drogas anulam temporariamente a serão menos numerosas e nós regressaremos para onde perten­
blindagem e permitem que a energia orgônica percorra todo cem as pessoas blindadas — para essa miserável armadilha que
o organismo. Um cigarro de uma droga realmente boa provoca criamos para nós mesmos, afastados do medo do amor e da
ondas de prazer que, surgindo da ponta dos pés. percorrem Natureza.
o corpo até o alto da cabeça num movimento contínuo. E uma Essa armadilha é a estrutura do caráter do homem blindado,
experiência que dá um prazer tão puro que é difícil descrever. e da qual só temos um meio de nos libertar. Não se trata de
(A maior parte dessas drogas produz exatamente isso, e um drogas, de religião ou de política. Trata-se de voltar para a
dos problemas que torna seu uso ilegal é a falta de controle velha árvore da maçã e procurar agir melhor do que Adão
da qualidade.) Fazer amor com uma companheira adequada e Eva. Ê tentando ensinar nossos filhos a ser mais amorosos
sob a influência de uma dessas drogas dá a impressão de estar (a maior parte dos que tentam não sabe como fazê-lo e, por
explodindo de amor, o que leva a querer transformar o mundo isso, produz apenas crianças frustradas), tentando aprender
a fim de que o mundo possa participar desse amor. Nunca a tolerar todos os vislumbres de amor que descobrimos no proce­
ousei experimentar o LSD, mas estou informado de que a expe­ dimento humano e transformando-os em esperança para que
riência pode ser cada vez melhor. Por isso, fico pensando se possam florir e espalhar-se. Não nos devemos iludir pensando
esses jovens não se livram temporariamente da blindagem por que qualquer espécie de revolução pode ser bem sucedida, nem
meios mecânicos e se, quando o fazem, observam a sociedade perder a esperança diante da morosidade do progresso. Ele
blindada e sentem que não a podem suportar. É possível que é suficientemente rápido porque possui a rapidez que podemos
a chamada viagem desagradável provocada pelo LSD aconteça suportar e, se tentarmos progredir mais depressa, acabaremos
porque aquele que usou a droga não pode suportar a anulação andando três passos para trás.
da blindagem e a sinta como que arrancada de suas próprias Carolyn e eu afastamo-nos da fonte, dos violões e dos jovens
juntas. Mas, os jovens estão dispostos a correr todos os riscos e dirigimo-nos para a Rua 15. Num momento em que tanto
para se sentir vivos c livres, como se fossem parte do Univer­ o nosso país como quase todo o resto do mundo parecem mergu-

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lhar numa confusão praticamente psicopática, nós nos sentimos
lúcidos. Sabemos o que queremos e sabemos quais são as nossas
limitações. Chegaremos até onde pudermos e faremos o que
pudermos para criar uma vida que seja a nossa vida. Subimos
até a Greenwich Avenue e passamos pelos hippies de Fim-
de-semana que dentro em pouco voltariam para o Queens,
enquanto eu pensava em Wilhelm Reich, que jamais conhecí,
em A. S. Neill, que é meu amigo e em Elsworth Baker. Pensava
nas crianças que entraram e saíram da Escola da Rua 15, e
em tudo que aprendi com elas e com seus pais. Passamos pela
fachada escura da Casa de Detenção de Mulheres. Olhei-a, de­
pois olhei o céu e lá estavam eles — os pequeninos orgones, Este livro inclui também as experiên­
revoluteando uns sobre os outros, brincando de pular carniça, cias pessoais que Orson teve com a Es­
saltando e dançando de alegria. cola da Rua 15. criada por ele. baseada
“Por Cristo, meu amor” — disse — "olhe para eles lá em nos mesmos principios da Escola Sum-
cima, os orgones! Eles não se preocupam com coisa alguma, merhill da Inglaterra, onde permitem
não?!” Carolyn ergueu os olhos para o céu e para eles, sor­ que as crianças aprendam naturalmente
riu, apertou minha mão e fomos para casa. as coisas, e nunca pelo emprego da coa­
ção Em O Milagre da Orgonoterapia
existem momentos engraçados, como,
por exemplo, quando Orson não permite
que façam a circuncisão de seu filho,
logo após o nascimento da criança. Um
livro interessante em todos os seus capí­
tulos, narrando o encontro de Orson
Bean com a orgonoterapia num dos ins­
tantes mais depressivos de sua vida e
como ele descobriu um mundo novo.
um novo caminho que lhe trouxe uma
imensa satisfação de viver.

Orson Bean é mágico, comediante de


casas noturnas, ator de teatro e cinema,
além de uma figura muito conhecida na
Este livro foi composto em equipamento
televisão. E também o fundador de uma
eletrônico de fotocompositora VIP e Im­
presso em offset nas oficinas da EDITORA Escola experimental nos moldes da Es­
ARTENOVA S.A. — Rua Prefeito Olímpio cola Summerhill da Inglaterra Até há
de Melo. 1774 — Rio de Janeiro — GB — pouco, morou com sua mulher e filhos
1973 numa casa em Greenwich Village, mas,
como começou a fazer viagens frequen­
tes à Austrália, resolveu transportar sua
família para uma casa perto de Sydney.
J20 Apenas para uma pequena observação,
Bean é primo de Calvin Coolidgaem se­
gundo grau.
milagre da
ÔRfi^
%(R‘

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