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Erica Jong - Medo de voar

CÍRCULO DO LIVRO S.A. Caixa postal 7413 São Paulo, Brasil


Edição integral
Título do original: Fear of flying
Copyright © 1973 by Erica Mann Jong
Tradução: Affonso Blacheyre
Layout da capa: Yae Takeda
Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Editora Artenova Ltda.
Venda permitida apenas aos sócios do Círculo
Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado em oficinas próprias

Agradeço a meus intrépidos editores, Aaron Asher e Jennifer Josephy. E agradeço também ao
National Endowment for the Arts pela verba que forneceu. E agradeço a Betty Anne Clark, Anita
Gross, Ruth Sullivan, Mimi Bailin e Linda Bogin. Muito obrigada, de modo especial, à musa
hospedeira que me cedeu um quarto, desde o começo.

A Grace Darling Griffin e meu avô, Samuel Mirsky


Ai, o amor das mulheres! Renomado
Como coisa encantadora e tão temida Pois tudo de si se lança nesse dado
E, se perdem, nada mais possui a vida, Para elas, senão zombaria do passado,
E sua vingança é do tigre a investida, Rápida, mortal, esmagadora; mas, com vertigem,
Sua é a tortura, pois sentem o que infligem.
”Certas, pois o homem, com o homem tão injusto, Sempre o é para com mulheres; e a servidão
As aguarda — traição é todo seu fado, e a custo
Aprendem a esconder, transbordante, o coração
Por seu ídolo, até que anseio vetusto
As compre em matrimônio — e o que há além, então?
Um marido que não agradece, o amante infiel,
Depois curar, tratar, orar — e tudo findo, o fel.
”Algumas tomam amante, outras sonhos, orações, criados;
Algumas cuidam da casa, outras da vida aventurosa, Algumas fogem, e trocam de cuidados,
Perdendo a vantagem da vida virtuosa; Pouco pode transformar seus destinos traçados
Pois sua situação não é natural, nem gloriosa.

Do palácio sem graça, ao trabalho com a sovela, Umas fazem o diabo, depois escrevem uma novela.”
Lorde Byron, Dom Juan

Apresento agradecimentos por ter usado o seguinte:


Três linhas de Daddy, de Sylvia Plath, de Ariel, copyright ©
1963 by Ted Hughes. Reproduzido com permissão de Faber and Faber Ltd.
Duas linhas de Housewife, de Anne Sexton, de Ali my pretty ones, copyright © 1961 by Anne Sexton.
Reproduzido com permissão de Houghton Mifflin Co.
Duas linhas de Voices, de Antônio Porchia, traduzido por W. S. Merwin, copyright © 1969 by William S.
Merwin. Reproduzido com permissão de Follett Publishing Co.
Três linhas de Under which lyre, de W. H. Auden, de Collected sborter poems, 1927-57. Copyright ©
1946 by W. H. Auden. Reproduzido com permissão de Faber and Faber Ltd.
Seis linhas de At long last live, de Cole Porter, copyright © 1937 by Cole Porter. Copyright renovado e
distribuído a Chappell & Co., Inc. Usado com permissão de Chappell & Co. Ltd.
Uma linha de Chattanooga choo-choo, letra de Mack Gordon, música de Harry Warren, copyright ©
1941, renovado em
1969 pela Twentieth Century Music Corp. (Direitos em todo o mundo sob o controle de Leo Feist Inc.)
Usado com permissão.
Duas linhas de Begin the beguine, de Cole Porter, copyright ©
1935, Harms, Inc. Copyright renovado. Usado com permissão de Warner Bros Music.
Quatro linhas de The sbeik of Araby, letra de Harry B. Smith
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e Francis Wheeler, música de Ted Snyder. Copyright ©


1921 by Mills Music, Inc. Copyright renovado em 1948 por Mills Music, Inc. e Jerry Vogel Music Co., Inc.
Usado com permissão de Mills Music Co., e B. Felman & Co. Ltd.,
138-140 Charing Road, Londres MC2H OLD.
Uma linha de Me and Bobby McGee, de Kris Kristofferson e Fred Foster. Copyright © Combine Music
Corp. 1969 BMI. Usado com permissão de Combine Music Corp.
Quatro linhas de These fooltsh things remind me oi you, de Jack Starchey, Harry Link e Holt Marvell.
Copyright © 1935 by Boosey & Co., Ltd., Londres, Inglaterra. Usado com permissão de Boosey & Hawkes
Music Publishers Ltd.
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1.

A caminho do congresso de sonhos ou a foda sem zíper


”A bigamia é ter um marido demais. A monogamia é o mesmo.”
Anônimo (uma mulher)

Havia cento e dezessete psicanalistas no vôo da Pan Am destinado a Viena, e eu tinha sido tratada
por seis deles, pelo menos. E havia casado com um sétimo. Só Deus sabe que havia uma
proclamação, quer da incapacidade dos médicos de birutas, ou de minha própria inanalisabilidade, no
fato de que eu, entre outras coisas, sentia-me agora com muito mais medo de voar do que quando
havia iniciado minhas aventuras no terreno da psicanálise, uns treze anos lá para o passado.
Meu marido segurou terapeuticamente minha mão, no momento da decolagem.
— Credo. . . parece gelo — proclamou. Ele devia conhecer os sintomas a essa altura, pois segurou
minha mão em muitos vôos. Meus dedos (das mãos e dos pés) transformam-se em gelo, o estômago
dá pulos para cima, dentro da gaiola formada pelas costelas, a temperatura na ponta do nariz cai ao
mesmo nível da temperatura dos meus dedos, os mamilos ficam em pé, cumprimentando a parte
interna do sutiã (ou, nesse caso, vestido, já que não estou usando sutiã), e por um minuto dilacerante
tanto meu coração quanto os motores do avião entram em correspondência, ao tentarmos provar mais
uma vez que as leis da aerodinâmica não são as superstições pífias que, no íntimo do meu íntimo, sei
que são. Deixando para lá as explicações diabólicas
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do folheto que se recebe na publicação poliglótica da Pan Am, INFORMAÇÕES AOS PASSAGEIROS,
sucede que estou convicta de que é a minha atenção (e a de minha mãe, que sempre parece esperar
que os filhos morram em desastre de avião) o que mantém essa aeronave no ar. Congratulo-me
comigo mesma, a cada decolagem que não resulta em desastre, mas não o faço com entusiasmo
exagerado porque isso também constitui parte de minha religião pessoal, a de que, no minuto em que
a criatura se torna confiante em demasia, e descansa com relação ao vôo, o avião, no mesmo
instante, cai com estrondo. Vigilância constante é o meu lema. Um estado de espírito de otimismo
cauteloso deve existir, mas na verdade meu estado de espírito fica mais bem descrito como o de
pessimismo cauteloso. Ok, digo a mim própria, parecemos ter saído do chão, entramos nas nuvens,
mas o perigo não acabou. É aí que temos, na verdade, a parte mais perigosa do ar. É aqui mesmo,
bem em cima da baía de Jamaica, onde o avião faz uma volta, e o sinal ”Não fume” se acende. Pode
ser muito bem aqui que vamos desaparecer, aos gritos, transformando-nos em milhares de fragmentos
incendiados. Por isso continuo firme, a atenção muitíssimo concentrada, ajudando assim o piloto (tem
uma voz reconfortante, do meio-oeste americano, e chama-se Donnelly) a pilotar este diabão de
duzentos e cinqüenta passageiros. Graças a Deus, é o que digo, em favor de seu cabelo cortado à
escovinha e dicção médio-americana. Nova-yorkina que sou, jamais confiaria em piloto com sotaque
de Nova York.
Assim que o sinal relativo ao cinto de segurança se apaga e as pessoas começam a se movimentar
na cabine, lanço um olhar em volta, nervosa, para ver quem se acha a bordo. Há uma analista do tipo
maternal, seios grandes, chamada Rose Schwamm-Lipkin, com quem tive uma consulta recente, para
saber se devia ou não deixar meu analista de agora (que, graças a Deus, não se acha à vista). Aí está
o Doutor Thomas Frommer, o especialista asperamente teutônico em anorexia nervosa, que foi o
primeiro analista de meu marido. Lá está o bondoso e rotundo Doutor Arthur Feet,
Junior, que foi o terceiro
(e último) analista de minha amiga Pia. Lá está o compulsivo e pequenino Doutor Raymond Schrift, que
chama uma aeromoça loura (”Nanei”) como se ela fosse um táxi. (Freqüentei o Doutor Schrift por todo
um ano memorável, quando eu estava com catorze anos de idade e vinha voluntariamente me
matando de fome por ter-me fodido
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com o dedo no sofá da sala, na casa de meus pais. Ele não parara de insistir em que o cavalo com que
eu sonhava era meu pai e que minhas regras voltariam se eu, ao menos, ”aceitasse ser uma mulher”.)
Lá está o sorridente e calvo Doutor Harvey Smucker, com quem me consultei quando meu primeiro
marido resolveu que era Jesus Cristo e começou a ameaçar que ia caminhar sobre a água no lago do
Central Park. Lá está o afrescalhado e manicurado Doutor Ernest Klumpner, o suposto ”brilhante
teórico”, cujo livro mais recente é um exame psicanalítico de John Knox. Lá está o barba-preta Doutor
Stanton Rappoport-Rosen, que recentemente ganhou fama nos círculos analíticos de Nova York, ao
mudar para Denver e meter-se em um negócio chamado ”Grupo de Esqui-Terapia de Âmbito
Nacional”. E também o Doutor Arnold Aaronso, fingindo jogar xadrez em tabuleiro magnético com a
esposa mais recente (que foi paciente sua até o ano passado), a cantora Judy Rose. Ambos lançam
olhares sub-reptícios ao redor, para ver se alguém olha para eles e, por um momento, meus olhos e os
de Rose se cruzam. Judy Rose tornou-se famosa nos anos 50 por ter gravado uma série de baladas
satíricas sobre a vida pseudo-intelectual em Nova York. Em voz lamuriosa, deliberadamente
destituída de musicalidade e parecendo um relincho, entoou a saga de uma moça judia que faz cursos
na New School, lê a Bíblia procurando seu estilo de prosa, debate Martin Buber na cama e se
apaixona pelo psicanalista. Assim, Rose identificou-se com o papel por ela criado.
Além dos psicanalistas, esposas, tripulação e uns poucos e pobres leigos em absoluta inferioridade
numérica, havia alguns filhos de psicanalistas, que tinham vindo porque aquilo era um passeio para
eles. Os filhos, homens em sua maioria, eram adolescentes de semblante ’taciturno, calças bocãode-
sino, e cabelo até os ombros, que encaravam os pais com cinismo e desdém quase palpáveis.
Lembrei-me de mim mesma, viajando com meus pais, adolescente ainda e sempre fingindo que eles
não se achavam em minha companhia. Tentei perdê-los no Louvre! Evitá-los nos Uffizi! Êmbebedar-me
com Coca-Cola num café em Paris e fingir que tais criaturas espalhafatosas, na mesa ao lado,
não eram — embora estivesse claro que fossem — meus pais. (Eu fingia, como percebem, ser uma
exilada da Geração Perdida, com os pais sentados a menos de um metro de distância.) E assim
regressava a meu passado, ou a um pesadelo, ou um filme ruim: O analista e O filho do analista.
Todo um avião cheio de médicos de birutas
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e minha adolescência a me rodear. Encalhada em pleno ar, sobre o oceano Atlântico, com
cento e dezessete psicanalistas, muitos dos quais tinham ouvido meu relato comprido e triste, e
nenhum dos quais se lembrava mais dele. Um começo ideal para o pesadelo em que a viagem ia se
transformar.
Rumávamos para Viena e o momento era histórico. Séculos atrás, guerras atrás, em 1938, Freud
fugiu de sua famosa sala de consultas na Berggasse quando os nazistas ameaçaram sua família.
Durante os anos em que o Terceiro Reich se agüentou, qualquer menção a seu nome era proibida na
Alemanha e os psicanalistas se viram expulsos (quando tinham sorte) ou mandados para as câmaras
de gás (quando não tinham). Agora, com grandes cerimônias, Viena acolhia de volta os psicanalistas.
Estavam até inaugurando um museu destinado a Freud, em sua antiga sala de consultas. O prefeito
de Viena viria recebê-los e haveria uma recepção oficial na pseudogótica Rathaus de Viena. As iscas
incluíam comida grátis, Schnaps de graça, passeios pelo rio Danúbio, excursões aos vinhedos,
cantoria, dança, besteiras em geral, monografias eruditas e discursos, e uma viagem à Europa que
poderia ser deduzida do imposto de renda. Acima de tudo, ia haver muitíssimo da boa e antiga
Gemütlichkeit austríaca. O povo que inventara o Schmalz (e os fornos crematórios) ia mostrar aos
psicanalistas o quanto eram bemvindos.
Bem-vindos! Bem-vindos! Pelo menos, aqueles de vocês que sobreviveram a Auschwitz, Belsen,
à blitz de Londres e às **16coqptaçãos dos Estados Unidos. Willkommen! Os austríacos são criaturas pelo
menos encantadoras.
A realização do congresso em Viena fora questão calorosamente debatida por muitos anos, e
numerosos psicanalistas tinham vindo com relutância. O anti-semitismo era parte do problema, mas
havia também a possibilidade de que estudantes extremados da Universidade de Viena resolvessem
sair-se com demonstrações de protesto. A psicanálise se achava desacreditada, junto a membros da
Nova Esquerda, por ser ”demasiadamente individualista”. Nada fazia, ao que afirmavam eles, para
fomentar ”a luta mundial em favor do comunismo”.
Uma revista havia me pedido para observar as brincadeiras e lances engraçados do congresso, de
perto, e escrever um artigo satírico. Dei início ao trabalho abordando o Doutor Smucker perto da cozinha
do avião, onde ele tomava café,
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servido por uma das aeromoças. Ele me fitou, sem qualquer vislumbre de que me reconhecia.
— Como se sente com a psicanálise voltando a Viena?
— perguntei, em minha voz mais animada de entrevistadora.
O Doutor Smucker pareceu estupefato pela intimidade chocante de minha pergunta, lançou-me um
olhar prolongado e perscrutadojL
— Estou escrevendo um artigo para uma revista nova, chamada Voyeur — expliquei, achando que
ele, pelo menos, teria de sorrir, diante do nome da publicação.
— Bem, nesse caso — disse ele, sem se perturbar —, como é que você se sente a esse respeito?
E partiu bamboleando rumo à esposa, mulher baixota e de cabelos louros tingidos, em vestido de
malha azul, com minúsculo jacaré verde acima do seio direito (azul).
Eu devia ter adivinhado. Por que os psicanalistas sempre respondem a uma pergunta com outra? E
por que haveria de ser diferente, aquela noite, ou outra noite qualquer
— a despeito do fato de que estávamos voando em um 747, e ingerindo alimento não preparado
segundo os preceitos judaicos?
”A ciência judaica”, é como os anti-semitas a chamam. Revirar todas as perguntas de cabeça para
baixo, enfiá-las pelo cu de quem perguntou. Os analistas parecem judeus
talmudistas desligados do
seminário no primeiro ano. Eu lembrei uma das piadas favoritas de meu avô:
P: ”Por que o judeu sempre responde a uma pergunta com outra pergunta?”
R: ”E por que o judeu não deve responder a uma pergunta com outra pergunta?”
Foi a falta de imaginação da maioria dos analistas, entretanto, o que acabou por me desencantar.
OK, eu tinha sido muito ajudada pelo primeiro — o alemão que ia apresentar uma monografia em
Viena —, mas ele era ave rara: espirituoso, zombava de si próprio, despretensioso. Não possuía
vestígio algum daquela mentalidade intransigente que faz até mesmo os psicanalistas mais brilhantes
parecerem tão pomposos. Mas os outros com os quais me consultara tinham revelado mentes tão
espantosamente estreitas! O cavalo com que está sonhando é seu pai. O fogão de cozinha com que
anda sonhando é sua mãe. Os montes de bosta com que anda sonhando são, na verdade, o seu médico
psicanalista. A isso se chama transferência, não?
Você sonha que quebrou a perna, esquiando no gelo.
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Na verdade, quebrou a perna no esqui, está deitada no sofá, a perna envolta em um molde de gesso que
pesa oito quilos, o que a prendeu em casa por semanas seguidas, mas também lhe conferiu bela e
nova admiração pelos dedos do pé e pelos direitos civis dos paraplégicos. Mas a perna quebrada, no
sonho, representa o próprio ”órgão genital mutilado”. Você sempre quis ter um pênis, e agora sente-
se culpada por ter deliberadamente quebrado a perna, de modo que possa sentir o prazer do molde de
gesso, não? Não!
Muito bem, vamos deixar de lado a questão do ”órgão genital mutilado”. De qualquer forma, é um
assunto encerrado. E vamos esquecer essa história de forno que é mãe, e do monte de bosta que é o
seu médico. O que nos resta, a não ser o cheiro? Não estou falando dos primeiros anos de análise,
quando você trabalhou com afinco descobrindo sua própria loucura, de modo que pudesse fazer um
pouco do trabalho de casa, em vez de dedicar toda a vida à neurose. Estou falando da época na qual
tanto você quanto seu marido estiveram na psicanálise por todo o tempo de que conseguem lembrar-
se, e chegaram ao ponto em que nenhuma decisão, por menor que fosse, podia ser tomada sem que
ambos os analistas travassem um debate imaginário, numa nuvem lá em cima no céu, fora de seu
alcance. Dá para se sentir bastante semelhante aos guerreiros troianos na Ilíada, com Zeus e Hera
lutando acima deles. Estou falando da ocasião em que seu casamento se tornou um ménage à quatre.
Você, ele, seu analista, o analista dele. Quatro numa cama. Um filme assim é censurado para
menores, sem a menor dúvida.
Havíamos estado nessa situação por todo o ano anterior, ao menos. Toda decisão era passada ao
médico de birutas, ou ao processo psicanalítico. Devíamos mudar para apartamento maior? ”É
melhor ver antes o que se passa.” (O eufemismo usado por Bennett para dizer: ”De volta ao sofá”.)
Devíamos ter um filho? ”É melhor acertar as coisas antes.” Devíamos ingressar em um novo clube de
ténis? ”É melhor ver o que se passa, antes.” Devíamos divorciarnos? ”É melhor examinar, antes, o
significado inconsciente do divórcio.”
Isso porque tínhamos chegado àquele momento crucial do casamento (cinco anos, e os lençóis, que
havíamos recebido como presente de casamento, já praticamente gastos), em que chega a hora de
decidir se devemos ou não comprar lençóis novos, talvez ter um filho, e viver com a maluquice
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do outro para sempre — ou, por outro lado, desistir do fantasma do casamento (jogar fora os
lençóis) e começar a pular de cama em cama outra vez.
A decisão, naturalmente, vinha a ser mais complicada pela análise — a suposição básica da
análise sendo (e deixemos para lá todas as indicações em contrário) que se está melhorando o tempo
todo. O refrão às vezes é dito da seguinte maneira:
”Oh-eu-era-autodestrutiva - quando - casei - com - você-meubem-mas-estou-muito-feliz-agora-
ora-ora-ora”.
(Dando a entender que era possível procurar alguém melhor, mais carinhoso, mais bonito, mais
inteligente, e talvez com mais sorte, na Bolsa de Valores.)
Ao que ele poderia responder:
’’ Oh - eu - odiava - todas-as-mulheres-quando-me-apaixoneipor-você-meu-bem-mas-estou - mui
to-melhor-agora-ora-oraora”.
(Dando a entender que ele podia encontrar alguém mais doce, mais bonita, mais inteligente, que
soubesse cozinhar melhor, e talvez prestes a herdar um montão de dinheiro do pai.)
”Acorde, Bennett, meu velho”, diria eu (sempre que desconfiava estar ele alimentando tais
pensamentos), ”você ia, com certeza, casar-se com uma mulher ainda mais fálica, castradora e
narcisista do que eu.” (O primeiro mandamento para quem casou com um médico de birutas é saber
como jogar todo aquele jargão de volta sobre eles, em momentos escolhidos com muito cuidado.)
Mas eu própria estava alimentando esses pensamentos, e se Bennett sabia, não deixou que eu
percebesse. Algo parecia estar muito errado em nosso casamento. Nossas vidas seguiam paralelas,
como trilhos de estrada de ferro. Bennett passava o dia no consultório, no hospital, no psicanalista, e
depois, à noite, outra vez no consultório, em geral até nove ou dez horas. Eu lecionava dois dias na
semana, escrevia nos demais. Meu horário de ensino era camarada, escrever mostrava-se esgotante,
mas quando Bennett chegava eu estava pronta para sair e botar pra quebrar horas intermináveis
sozinha com a máquina de escrever e minhas fantasias. E parecia capaz de conhecer homens por toda
parte. O mundo parecia atulhado de homens disponíveis e interessantes, de um modo que nunca havia
ocorrido, antes de me casar.
O que se passava, afinal, com o casamento?
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Mesmo quando se ama o marido, chega aquele ano inevitável em que trepar com ele parece coisa tão sem
graça quanto queijoprato: satisfaz, dá até para engordar, mas sem qualquer sensação maior nas
papilas gustativas, nenhum vestígio agridoce, perigo algum. E anseia-se por um camembert, passado,
um queijo de cabra raro: delicioso, cremoso, diabólico.
Eu não era contra o casamento. Na verdade, acreditava nessa instituição. É necessário ter um
amigo melhor do que os outros, neste mundo hostil, uma pessoa a quem somos fiéis, faça chuva ou
faça sol, alguém que sempre seja fiel a nós. Mas que dizer de todos aqueles outros anseios que,
depois de algum tempo, o casamento nada fazia para satisfazer? A inquietação, a fome, a vibração
nas tripas, a vibração na pomba, o anseio por ser preenchida, fodida por todos os furos.,a sede de
champanha seco e beijos úmidos, o cheiro de **20peôniãs] no apartamento de terraço, em noite de junho,
a luz na extremidade do cais em Gatsby. . . Não essas coisas, na verdade — porque você sabia que
os ricos eram mais burros do que você ou eu —, mas o que essas coisas evocavam. O vocabulário
sardónico e agridoce de Cole Porter em suas canções de amor, as letras sentimentais e tristes de
Rodgers e Hart, todas aquelas tolices românticas pelas quais ansiávamos, com parte do coração,
zombando amargamente delas, com a outra metade.
Crescer mulher nos Estados Unidos. Que perigo! Crescia-se com os ouvidos cheios de anúncios de
cosméticos, canções de amor, conselhos de beleza nos jornais e revista, mexericos de Hollywood,
dilemas morais ao nível das novelas da TV. Que litanias os anunciantes da boa vida entoavam! Que
catecismos curiosos!
”Seja cuidadosa com seu traseiro.” ”Enrubesça, como se quisesse.” ”Ame os seus cabelos.” ”Quer
um corpo melhor? Nós daremos um jeito no seu.” ”Esse brilho em seu rosto deve vir dele, e não de
sua pele.” ”Você gozou muito, meu bem.” ”Como traçar todos os homens do zodíaco.” ”As estrelas e
você, a sensual.” ”Bom para o homem é Cutty Sark.” ”Um diamante é para sempre.” ”Se está
preocupada com as duchas. . .” ”Vida longa e calma andam juntas.” ”Como resolvi meu problema de
odor íntimo.” ”Moça, ande fresca.” ”Toda mulher viva ama Chanel N.° 5.” ”O que torna íntima a
moça tímida?” ”Femme, temos esse nome por sua causa.” O que todos os anúncios e todos os
slogans pareciam dar a entender era que, se você, ao menos, fosse narcisista o bastante, se, ao
menos, tomasse as providências adequadas
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com relação a seus cheiros, cabelos, peitos, pálpebras, axilas, virilha, xoxota, cicatrizes e sua
marca preferida de uísque nos bares — haveria de travar conhecimento com um homem belo,
poderoso, potente e rico, que satisfaria a todos os anseios, preencheria todos os buracos, faria seu
coração ter uma parada cardíaca (ou parar de uma vez), iria levá-la às nuvens, levá-la à lua (de
preferência em asas diá fanas), onde viveria inteiramente satisfeita, para todo o sempre.
E a parte maluca em tudo isso era que, mesmo se a criatura fosse esperta, mesmo se passasse toda
a adolescência lendo John Donne e Shaw, mesmo se estudasse história, zoologia, física e contasse
levar a vida seguindo alguma carreira difícil e provocante — ainda assim estava com a mente cheia
de todos os anseios babosos em que todas as ginasianas refocilavam. Não importava, evidentemente,
ter um QI de
170 ou de 70; ainda assim você levaria essa lavagem cerebral. Apenas os complementos superficiais
diferiam. Apenas a conversa se mostrava mais avançada. Por baixo de tudo aquilo, ansiava-se por
ser aniquilada pelo amor, por ser arrebatada no ar, preenchida por um cacete gigantesco derramando
esperma, espuma de sabão, sedas e cetins e, está mais do que claro, dinheiro. Ninguém se dava ao
trabalho de dizer-lhe o que realmente era o casamento. Não se era nem mesmo dotada, como acontece
às moças européias, de uma filosofia de descrença e espírito prático. Não se contava desejar
quaisquer outros homens, após casar-se. E se esperava que o marido não desejasse quaisquer outras
mulheres. Depois o desejo chega, e a criatura é jogada em verdadeiro pânico, odiando a si própria.
Que mulher má você foi! Como pode continuar com essa paixonite por homens desconhecidos? Que
desplante o seu, examinar-lhes as protuberâncias cobertas pelas calças desse modo! Como pôde ficar
sentada naquela reunião, imaginando como cada um dos homens presentes sabia trepar? Como pôde
sentar-se naquele trem, fodendo homens inteiramente desconhecidos com os olhos? Como pôde fazer
**21mo a seu marido? Alguém já lhe disse que talvez isso nada tivesse, em absoluto, a ver com seu
marido?
E que dizer de todos aqueles outros anseios que o casamento sufocava? Aqueles anseios de pôr o
pé na estrada, de vez em quando, e descobrir se ainda consegue viver sozinha, dentro de sua própria
cabeça, verificar se consegue sobreviver em uma cabana no mato, sem enlouquecer;
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descobrir, em suma, se ainda se achava inteira, depois de tantos anos sendo metade de
alguma coisa (como as duas pernas traseiras de um cavalinho de pano sustentado por duas pessoas
num teatro de variedades). Cinco anos de casamento haviam-me feito comichar, desejando todas
essas coisas: comichava por homens, comichava pela solidão. Coçava-me, desejando sexo,
coçava-me,
desejando a vida de uma reclusa. Sabia que tais urticárias eram contraditórias — e isso piorava
as coisas ainda mais. Sabia que minhas urticárias eram não-americanas — e isso fazia as coisas
piorarem mais ainda. Nos Estados Unidos constitui heresia adotar qualquer modo de vida, a não ser
como metade de um casal. A solidão é não-americana. Pode ser aceita em um homem — ainda mais
se ele for um ”solteirão glamouroso”, que ”sai com starlets”, por um período curto entre casamentos.
No caso da mulher, entretanto, supõe-se sempre que esteja sozinha como resultado de abandono, e
não de escolha. E é tratada desse modo, como se fosse um pária.! Não existe, simplesmente não
existe, um modo digno pelo qual a mulher possa viver sozinha. Oh, ela pode progredir
financeiramente, talvez (embora nem de perto tão bem quanto o homem), mas emocionalmente nunca
a deixam em paz. Seus amigos, sua família, suas colegas de trabalho jamais lhe permitem esquecer
que sua falta de marido, sua falta de filhos — seu egoísmo, em suma — é uma mancha para o modo
de vida americano.
E o que vem ainda mais a calhar: a mulher (por mais infelizes que saiba serem as amigas casadas)
nunca pode deixar-se a si mesma em paz. Ela vive como se estivesse constantemente à beira de
alguma grande realização. Como se estivesse aguardando o Príncipe Encantado, para levá-la dali,
”tirá-la de tudo aquilo”. Tudo o quê? A solidão de viver diante de sua própria alma? A certeza de ser
ela própria, em vez de metade de outra coisa?
Minha resposta a tudo isso não era (ainda não) ter um caso, e não era (ainda não) botar o pé na
estrada, mas evoluir minha fantasia da foda sem zíper. A foda sem zíper era mais do que uma foda.
Era um ideal platônico. Sem zíper, porque quando se juntavam os dois, os zíperes caíam como
pétalas de rosa, a roupa de baixo sumia a um sopro, como felpas de dente-de-leão. As línguas se
entrelaçavam, tornavam-se líquidas. Toda a alma escoava-se, pela língua, para a boca do amante.
Para a verdadeira e suprema foda sem zíper, de primeira classe, era preciso que nunca se chegasse
a conhecer
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muito bem o homem. Eu observara, por exemplo, como todas as minhas paixonites se
desmanchavam, assim que me tornava realmente amiga de um homem, solidária com seus problemas,
ouvindo-o queixar-se da mulher, ou das ex-mulheres, da mãe, dos filhos. Depois disso passava a
gostar deles, talvez até a amá-los — mas sem paixão. E era a paixão que eu queria. Também
aprendera que o meio certo de exorcizar uma paixonite consistia em escrever acerca de alguém,
observar-lhe os tiques e cacoetes, anatomizar sua personalidade em letras de forma. Depois disso ele
passava a ser um inseto espetado num alfinete, um recorte de jornal em plástico laminado. Podia
desfrutar sua companhia, até mesmo admirálo em certos momentos, mas ele já não tinha o poder de
me fazer acordar tremendo, no meio da noite. Eu já não sonhava com ele. Ele passara a ter um rosto.
Desse modo, outra condição para a foda sem zíper era a brevidade. E o anonimato melhorava
ainda mais o esquema.
Durante o período em que residi em Heidelberg tomava o trem suburbano para Frankfurt quatro
vezes por semana, a fim de encontrar-me com meu analista. A viagem levava uma hora para lá, outra
para cá, e os trens tornaram-se uma parte importante em minha fantasia. Eu não parava de encontrar
homens bonitos no trem, homens que mal falavam inglês, homens cujas expressões surradas e
banalidades ficavam ocultas por minha ignorância do francês, italiano ou mesmo alemão. Por mais
que deteste reconhecê-lo, existem alguns homens bonitos na Alemanha.
Um roteiro da foda sem zíper foi, ao que me parece, inspirado por um filme italiano a que assisti,
anos atrás. Com o passar do tempo eu o embelezei a fim de ajustar-se à minha imaginação.
Costumava passá-lo repetidas vezes, enquanto seguia de um lado para outro, no trem de Heidelberg
para Frankfurt, de Frankfurt para Heidelberg:
”Um encardido compartimento de trem europeu (segunda classe). Os bancos são imitação de
couro, duros. Há uma porta corrediça que dá para o corredor lá fora. As oliveiras passam, em
desfile, pela janela. Duas camponesas sicilianas sentam-se juntas a um lado, tendo uma criança entre
elas. Parecem ser a mãe, a avó e a neta. Ambas as mulheres disputam, uma com a outra, a honra de
atulhar a boca da menina com comida. Do outro lado da passagem (no banco
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da janela) acha-se uma bela e jovem viúva, de véu negro cerrado e vestido de luto, que põe à mostra
sua figura voluptuosa. Ela sua bastante e os olhos estão empapuçados. O banco do meio acha-se
vazio. O banco do corredor, ocupado por uma mulher imensamente gorda, com bigode. Seus quadris
imensos fazem com que ela ocupe quase metade do assento central vazio. Está lendo um romance em
que as personagens são modelos fotografados e o diálogo aparece em pequenas baforadas de fumaça,
acima das cabeças.
”Esse conjunto de cinco vai sacolejando por algum tempo, a viúva e a mulher gorda em silêncio, a
mãe e a avó conversando com a criança e uma com a outra, comentando a comida. E, nisso, o trem
range, estaca em uma cidade chamada (talvez) Corleone. Um soldado alto e de aspecto lânguido,
barba por fazer, bela madeixa de cabelos, queixo fendido, olhos preguiçosos e um tanto diabólicos,
entra no compartimento, relanceia o olhar insolente por ali, vê a metade do lugar entre a mulher
gorda e a viúva e, com muitas desculpas namoradeiras, senta-se. Está suado e desalinhado, mas é, de
modo essencial, um pedação de homem, apenas um pouco rançoso por causa do calor. O trem sai da
estação, rangendo.
”É aqui que nos apercebemos, apenas, do sacolejo do trem e do modo rítmico com que as coxas do
soldado se esfregam nas coxas da viúva. Está claro que ele também está se esfregando nos quadris da
mulher gorda — e ela procura afastar-se — , o que é de todo desnecessário, porque ele não toma o
menor conhecimento de seus quadris. Está observando a grande cruz dourada entre os seios da viúva,
balançando de um lado para outro, em seu vale profundo. Bate. Pausa. Bate. Bate em um dos seios
úmidos, depois no outro. Parece hesitar no entremeio, como paralisada entre dois ímãs que a repelem.
O poço e o pêndulo. Ele parece hipnotizado. Olha pela janela, vendo cada oliveira como se jamais
houvesse visto oliveiras antes, em toda a sua vida. Levanta-se desajeitadamente, faz meia mesura
para as damas e esforça-se para abrir a janela. Quando volta a sentar-se, seu braço passa
acidentalmente pela barriga da viúva. Ela parece não notar. Ele deixa sua mão esquerda descansar
sobre o banco, entre a sua coxa e a dela, e começa a estender os dedos de borracha, passando-os por
baixo e em volta da carne macia da coxa dela. Ela continua olhando cada oliveira em desfile como se
fosse Deus, que houvesse acabado de criá-las e estivesse imaginando que nome dar-lhes.
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”Entrementes a mulher imensamente gorda está guardando sua revista de fotonovelas numa bolsa
feita de miçangas de plástico verde-iridescentes, cheia de queijos cheirosos e bananas enegrecidas. E
a vovó está enrolando fatias de salame em jornal engordurado. A mãe faz a menina vestir o suéter e
limpa-lhe o rosto com o lenço, amorosamente umedecido com cuspe materno. O trem range e pára
numa cidade chamada (talvez) Prizzi e a mulher gorda, a mãe e a avó, e mais a menininha, deixam o
compartimento. Nisso o trem retoma sua marcha. A cruz dourada começa a bater, pausa, bater entre
os seios úmidos da viúva, os dedos começam a curvar-se sob as coxas dela, a viúva continua olhando
as oliveiras. Depois os dedos escorregam entre suas coxas e as afastam, e estão seguindo para cima,
para a lacuna carnuda entre as meias negras e grossas e as ligas, e escorregam por baixo das ligas
para o lugar úmido e sem calças, entre as pernas.
”O trem penetra em uma galleria, ou túnel, e na semiescuridão o simbolismo é consumado.
”Lá vai a bota do soldado, erguendo-se no ar, e as paredes escuras do túnel, e o balanço hipnótico
do trem, e o apito prolongado, quando o trem finalmente aparece à luz.
”Sem palavra, ela desembarca numa cidade chamada, talvez, Bivona. Atravessa os trilhos, pisando
com cuidado por cima deles, os sapatos pretos e apertados, meias pretas e grossas. Ele a fita, como
se fosse Adão, imaginando que nome dar-lhe. Depois salta e sai correndo do trem, em seu encalço.
Nesse exato instante um comprido trem de carga passa pela via paralela, encobrindo-lhe a visão e
impedindo-lhe a passagem. Vinte e cinco carros de carga depois, ela desaparece para sempre.”
Este é um roteiro da foda sem zíper.
Sem zíper, é bom entender, não porque os europeus usam braguilhas de botão, em vez de
braguilhas com zíper, e não porque os participantes sejam tão devastadoramente atraentes, mas
porque o incidente tem toda a compressão rápida de um sonho e parece livre de qualquer remorso e
culpa; porque não existe conversa sobre o finado marido, ou sobre a noiva dele; porque não existe
racionalização; porque não existe conversa nenhuma. A foda sem zíper é absolutamente pura. Acha-
se livre de motivos posteriores. Não há disputa de forças. O homem não está ”tomando”
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e a mulher não está ”dando”. Ninguém está querendo cornear um marido ou humilhar uma esposa.
Ninguém está tentando provar coisa nenhuma, ou tirar nada de ninguém. A foda sem zíper é a coisa
mais pura que existe. E se mostra mais rara do que o unicórnio. Eu nunca tive uma. Sempre que
pareceu que estava perto dela, descobri que se tratava de um cavalo com chifres de papelão, ou dois
palhaços, enchendo uma roupa de unicórnio. Alessandro, meu amigo florentino, andou perto. Mas,
afinal de contas, ele era um palhaço em roupa de unicórnio.
Examinai esta tapeçaria que é minha vida.
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Toda mulher adora um fascista
”Toda mulher adora um fascista
A bota na cara, o bruto,
Bruto coração de um bruto como você.”
Sylvia Plath
Às seis horas da manhã pousamos no Flugbafen de Frankfurt e desembarcamos para um salão com
piso de borracha que, a despeito de todo o seu aspecto de coisa nova e luzidia, me fez pensar em
campos de morte e deportações. Esperamos uma hora ali, enquanto o 747 era reabastecido de
combustível. Todos os psicanalistas sentaram-se rigidamente em cadeiras de fiberglass, modeladas e
arrumadas em fileiras inflexíveis: cinzentas, amarelas, cinzentas, amarelas, cinzentas, amarelas... A
falta de alegria nesse conjunto de cores só era comparável à falta de alegria nos semblantes de quem
ali se achava sentado.
A maioria trazia máquinas fotográficas caras e, a despeito de seus cabelos compridos, tentativas
de barbas, óculos de armação de aço (e esposas vestidas com uma aceitável lufada de boémia classe-
média: sandálias de couro de vaca, xales mexicanos, jóias de prata do Village), exsudavam
respeitabilidade. A essência taciturna da quadradice. Era isso, quando pensei no assunto, o que eu
tinha contra a maioria dos psicanalistas. Aceitavam a ordem social sem fazer uma só pergunta. Suas
opiniões políticas levemente esquerdistas, o fato de assinarem petições de paz e ornamentarem os
consultórios com reproduções de Guernica não passava de camuflagem. Quando se tratava das
questões cruciais: a família, a posição das mulheres, o fluxo do dinheiro do paciente para
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o médico, mostravam-se reacionários. Tão rigidamente servidores de si mesmos quanto os


darwinistas sociais da era vitoriana.
— Mas as mulheres são sempre a força atrás do trono — dissera meu último analista, quando eu
tentara explicar como me sentia insincera por utilizar sempre a sedução para obter o que queria dos
homens. Fora poucas semanas antes da viagem a Viena que havíamos tido nosso rompimento final.
De qualquer modo, nunca havia confiado inteiramente em Kolner, mas continuava a vê-lo, na
suposição de que isso era problema meu.
— Mas você não entende — berrei do sofá — que o problema é exatamente esse? As mulheres
utilizando o sexo para manobrarem os homens, suprimirem a raiva delas, nunca sendo abertas e
sinceras. . .
Mas o Doutor Kolner só conseguia enxergar qualquer coisa que mesmo de longe se parecesse a
Women’s Lib como problema neurótico. Qualquer protesto contra qualquer comportamento feminino
comum tinha de ser ”fálico” e ”agressivo”. Havíamos debatido essa questão por muito tempo, mas a
conversa dele, essa da ”força por trás do trono”, foi o que finalmente me mostrou que eu tinha sido
tapeada.
— Eu não acredito no que você acredita — berrei —, e não respeito suas crenças, não respeito
você por ter crenças assim. Se você pode fazer sinceramente uma afirmação como essa, a da força
por trás do trono, como lhe é possível compreender qualquer coisa a meu respeito ou sobre as coisas
com que estou lidando? Eu não quero viver para as coisas para as quais você vive. Eu não quero
esse tipo de vida e não vejo motivo pelo qual deva ser julgada pelos padrões desse tipo de vida.
Também não acho que você entenda coisa alguma de mulheres.
— Talvez você não compreenda o que significa ser mulher — rebateu ele.
— Oh, Deus. Agora está usando o macete supremo. Você não vê que os homens sempre definiram
a feminilidade como um meio de manter a mulher em linha? Por que haveria eu de lhe dar ouvidos
sobre o que significa ser mulher? Você é mulher? Por que não devia eu ouvir a mim mesma, uma vez
que fosse? E as outras mulheres? Eu converso com elas, elas me falam sobre si mesmas. . . e há um
bom número delas que se sente exatamente como eu... mesmo se isso não merece o Selo de
Aprovação da Sociedade Psicanalítica Americana.
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Fomos assim, aos trancos e barrancos, por algum tempo, os dois gritando. Eu já me odiava por
estar tão parecida a algum tipo de caso intratável e por ser obrigada a tomar posições extremas,
próprias de paspalhos. Sabia que estava deixando de lado as sutilezas, sabia que havia outros
psicanalistas — o meu psicanalista alemão, por exemplo — que não se saíam com aquela rotina de
misoginia. Mas também odiava Kolner por sua estreiteza de espírito, e por desperdiçar meu tempo e
dinheiro, aparecendo-me com refrões requentados sobre qual era o lugar da mulher. Quem precisava
disso? Podia-se perfeitamente ficar sabendo de coisas assim, bastava comprar um biscoitinho desses
que trazem a buena dicha. E não custava quarenta dólares por cinqüenta minutos, era bom notar.
— Se você pensa realmente assim a meu respeito, não sei por que não me deixa agora mesmo —
cuspia Kolner. — Por que vem aqui ouvir essa minha merda?
Era exatamente Kolner; ao sentir que tinha sido atacado, todavia, tornava-se atrevido e saía-se
com palavrões, a fim de mostrar-me como era avançado.
— Complexo típico de homem pequeno — murmurei.
— O que foi que disse?
— Oh, nada.
— Vamos, eu quero saber. Eu agüento. — Grande e bravo psicanalista.
— Eu só estava pensando, Doutor Kolner, que você tem o que se chama na literatura psiquiátrica de
”complexo de homem pequeno”. Fica enfezado e começa a dizer palavrões, quando alguém faz ver
que você não é o Deus Todo-Poderoso. Sei que deve ser duro ter apenas um metro e sessenta de
estatura. . . mas você deve ter sido psicanalisado, e isso deve tornar a coisa mais fácil de agüentar.
— Paus e pedras eu não agüento, mas nomes feios vão com o vento — e Kolner estava rosnando,
regredira em idade, voltara à segunda série primária. E achava que estava sendo muito espertinho.
— Olhe. . . você pode jogar refrões surrados na minha cara... e eu tenho de ficar agradecida por
sua visão superior, e até lhe pagar por isso. . . mas se eu fizer o mesmo com você. . . o que, com
certeza, é meu direito, tendo em conta a gaita que já mandei para o seu bolso. . . nesse caso você fica
furioso e começa a falar como um garotinho birrento de sete anos de idade?
— Eu só disse que você deve parar, se pensa assim a meu respeito.
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Vá embora. Saia daqui. Bata a porta. Mande-me pró inferno.


— E reconheço que os dois últimos anos, e os milhares de dólares que circularam entre nós dois,
foram um prejuízo total? Quer dizer, talvez você possa apagar a coisa desse modo. .. mas eu tenho
mais interesse em me iludir, pensando que alguma coisa positiva aconteceu aqui, entre nós.
— Você pode examinar toda a questão com o seu próximo psicanalista — proclamou Kolner. —
Pode calcular o que desandou, de seu ponto de vista. . .
— O meu ponto de vista! Você não enxerga como tantas pessoas estão ficando de saco cheio com
a psicanálise? Tudo isso é culpa de vocês, psicanalistas estúpidos. Vocês fazem a coisa se parecer a
uma espécie de sinfonia inacabada. O paciente vem, vem, vem, e continua gastando dinheiro, e
sempre que vocês são burros demais para descobrir o que se passa, ou quando descobrem que não
podem ajudar o paciente, limitam-se a aumentar o número de anos em que eles precisam continuar
vindo, ou dizem a eles para irem a outro psicanalista, para calcular o que desandou com o primeiro
psicanalista. O absurdo dessa coisa toda não chega a atingi-lo?
— O absurdo de estar sentado aqui e ouvir essa besteirada é coisa que chega a me atingir, com
certeza. Assim sendo, só posso reiterar o que disse antes. Se você não gosta, por que não vai dando o
fora?
Como em sonho (eu jamais teria acreditado que fosse capaz disso), levantei-me do sofá (por
quantos anos estivera deitada ali?), apanhei o talão de cheques e caminhei (não, não cheguei a
”saltitar” embora desejasse tê-lo feito), saindo pela porta. Fechei-a com suavidade. Nada de bater a
porta com violência, para reduzir o efeito da coisa. Adeus Kolner. Por momentos, no elevador, quase
chorei.
Depois de percorrer a pé dois quarteirões da Madison Avenue, entretanto, estava jubilante. Não
haveria mais sessões às oito horas! Não mais pensaria se aquilo estava adiantando, enquanto
preenchia o cheque gigantesco, todos os meses! Nada mais de discutir com Kolner, como se fosse
uma chefe de movimento! Estava livre! E bastava pensar em todo o dinheiro que não teria de gastar!
Enfiei-me em uma loja de sapatos e gastei imediatamente quarenta dólares, um par de sandálias
brancas com correntes douradas. Faziam-me sentir tão bem quanto cinqüenta minutos com Kolner,
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em qualquer época. Tudo bem, eu não estava realmente libertada (ainda tinha de me
consolar comprando coisas), mas, pelo menos, estava livre de Kolner. Era um novo começo, afinal.
Eu usava as sandálias no vôo para Viena, e as fitei, ao seguirmos de volta ao avião. Era embarcar
com o pé direito ou com o pé esquerdo o que impedia que a aeronave despencasse dos céus? Como
podia impedir que o avião desabasse, se nem mesmo conseguia lembrar-me? ”Mamãe”, murmurei.
Sempre murmuro ”mamãe”, quando estou com medo. O engraçado é que nem mesmo chamo minha
mãe de ”mamãe”, e nunca chamei. Ela me deu o nome de Isadora Zelda, mas eu procuro nunca usar
esse Zelda. (Fui informada de que ela também pensou em Olympia, por causa da Grécia, e Justine,
por causa de Sade.) Em retribuição a isso, eu a chamo de Jude. Seu nome verdadeiro é Judith.
Ninguém, a não ser minha irmã mais nova, a chama de ”mamãe”.
Viena. O próprio nome tem som de valsa. Mas jamais consegui tolerar o lugar. Parecia-me morto,
embalsamado.
Chegamos às nove horas da manhã — exatamente quando o aeroporto se abria.
”WILLKOMMEN IN WIEN”, dizia o cartaz. Passamos pela alfândega, arrastando as malas e
cansados por havermos perdido uma noite de sono.
O aeroporto parecia ter sido bem esfregado e limpo, reluzia. Pensei no nível de desordem, sujeira e
caos a que os nova-yorkinos se acostumam. O regresso à Europa sempre parecia um choque. As ruas
pareciam incrivelmente limpas, os parques incrivelmente cheios de bancos, chafarizes e roseiras que
não tinham sido expostas à obra dos vândalos. Os canteiros de flores, nas ruas, apresentavam-se
incrivelmente arrumados. Até os telefones públicos funcionavam.
Os funcionários alfandegários examinaram nossas malas, e em menos de vinte minutos
embarcávamos em ônibus que tinham sido fretados para nós pela Academia de Psiquiatria de Viena.
Embarcamos com a esperança ingênua de chegarmos ao hotel em questão de minutos, e passarmos a
dormir. Não sabíamos que o ônibus serpentearia pelas ruas de Viena e pararia em sete hotéis, antes
de chegar ao nosso, quase três horas mais tarde.
Chegar ao hotel foi como um desses sonhos onde se tem de chegar a algum lugar, antes que
aconteça algo terrível, mas, por inexplicável que seja, o carro sofre um acidente
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depois do outro, ou anda para trás. De qualquer modo, eu estava aturdida e com raiva, e tudo
parecia irritar-me, aquela manhã.
Era, em parte, o pânico que sempre senti por estar de volta à Alemanha. Eu vivera em Heidelberg
mais tempo do que em qualquer outra cidade, com exceção de Nova York, de modo que a Alemanha
(e a Áustria, também) tornava-se uma espécie de segundo lar para mim. Falava a língua com
facilidade — com mais facilidade do que qualquer uma das línguas que havia estudado na escola — e
conhecia os alimentos, os vinhos, a hora de fechar das lojas, as roupas, a música popular, as
expressões de gíria, os maneirismos... Tudo como se houvesse passado a infância na Alemanha,
como se meus pais fossem alemães. Mas eu nasci em 1942 e, se meus pais tivessem sido judeus-
alemães — e não americanos —, eu teria nascido (e provavelmente morrido) em um campo de
concentração — a despeito de meus cabelos louros, olhos azuis e nariz de camponês polaco. Nunca
pude esquecer isso, também. A Alemanha era como uma madrasta: inteiramente conhecida,
inteiramente desprezada. Mais desprezada, na verdade, por ser tão conhecida.
Olhei pela janela do ônibus para as velhas de faces coradas, em seus sapatos bege ”sensatos” e
volumosos chapéus tiroleses. Olhei para suas pernas volumosas e rabos volumosos. Eu as odiava.
Olhei para um cartaz de propaganda, onde se dizia:
”SEI GUT ZU DEINEM MAGEN”
(Seja bom para seu estômago), e odiei os alemães por sempre estarem pensando nos malditos
estômagos, sua Gesundheit — como se houvessem inventado a saúde, a higiene e a hipocondria.
Odiava sua obsessão fanática pela ilusão de limpeza. Ilusão, digo e repito, porque os alemães não são
realmente limpos. As cortinas brancas e rendadas, os acolchoados pendurados nas janelas para se
arejarem, as donasde-casa que esfregam as calçadas diante das casas, os lojistas que esfregam as
vitrinas, todos eles fazem parte de uma fachada cuidadosamente combinada para intimidar os
estrangeiros com a salubridade agressiva da Alemanha. Mas basta entrar em um toalete alemão para
encontrar dispositivo diferente de qualquer outro em todo o mundo. Há uma pequena plataforma de
porcelana, muito engraçadinha, para que a merda caia em cima, de modo que se possa examiná-la
antes que ela rodopie, caindo no abismo aquoso, e não existe, na verdade, água nenhuma nesse
toalete, até que seja puxada. Como resultado, os toaletes alemães ostentam o maior cheiro de merda
que se sente em qualquer toalete, em qualquer lugar. (Digo isso na qualidade de viajante
experimentada, que conhece o mundo.) Depois vem o trapo imundo que é a toalha pública, pendurada
sobre minúscula bacia de mãos, que só tem torneira de água fria (para pingar água gelada na mão
direita — ou na mão que se utilizou).
Pensei muito sobre toaletes, quando residi na Europa. (A Alemanha me enlouquecia a esse ponto.)
Certa vez tentei, mesmo, classificar os povos com base nos toaletes.
”A história do mundo pelos toaletes” (escrevi, cheia de cinismo, em cima de uma página em
branco no meu caderninho).”Um poema épico???”
Inglês:
Papel higiénico inglês. Um modo de vida. Engomado. Recusa-se a absorver, amolecer ou dobrar
(muita altivez). Muitas vezes é propriedade do governo. No estado de bemestar social supremo,
talvez até o p. h. tenha propaganda impressa.
O toalete inglês como último refúgio do colonialismo. A água correndo por cima, como as
cataratas Victoria, e você um explorador. Os borrifos em sua cara. Por um momento rápido (quando
se puxa a água), Britannia volta a ser a soberana dos mares.
A corrente para puxar a água é elegante, uma corda de sino em lar imponente (aberto ao público,
por moedas, aos domingos).
Alemão:
Os toaletes alemães conservam as distinções de classe. Nos vagões de terceira: papel bruto e
marrom. Na primeira classe: papel branco. Chamado spezial Krepp (não precisa de tradução). Mas o
toalete alemão é ímpar, por seu pequenino palco (todo o mundo é um) sobre o qual cai a merda. Isso
capacita a criatura a olhar bem, escolher entre os candidatos políticos, e pensar em coisas para contar
ao analista. Também serve para mineiros de diamante que buscam contrabandear as pedras, usando
as tripas. Os toaletes alemães são, na verdade, a explicação para todos os horrores do Terceiro
Reich. Gente que sabe fazer toaletes assim é capaz de tudo.
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Italiano:
Às vezes dá para ler pedaços do Corriere delia Será antes de limpar o rabo com as notícias. De
modo geral, entretanto, a água escoa com rapidez, e a merda desaparece muito antes que se possa dar
um pulo e fazer a volta, para admirá-la. Daí a arte italiana. Os alemães têm sua própria merda para
admirarem. Faltando-lhes isso, os italianos se saem com esculturas e pinturas.
Francês:
Os hotéis antigos em Paris, com duas pegadas de ferro ridículas, nos dois lados de um buraco
fedorento. Laranjeiras plantadas em Versalhes, a fim de encobrir o cheiro da sentina. II est defendu
de faire pipi dans Ia chambre du Rói. As luzes, nos toaletes de Paris, que só se acendem quando se
vira o trinco.
Seja lá como for, não consigo ver o sentido na filosofia e literatura francesas, em confronto com a
atitude dos franceses para com a merde. Os franceses são pensadores muito abstratos — mas
também sabem produzir poetas de minúcias como Ponge, que escreve um poema épico sobre o sabão.
Como se liga isso aos toaletes franceses?
Japonês:
Acocorar-se constitui fato elementar e básico da vida no Oriente. A bacia do toalete aninhada no
chão. Um vaso com flores por trás. Isso tem algo a ver com o zen **34(Cf. Suzuki).
Passava do meio-dia quando finalmente chegamos ao hotel e descobrimos que nos tinha sido
destinado um quarto minúsculo e no último andar. Eu queria protestar, mas Bennett se interessava
mais por descansar. Por isso fechamos as cortinas contra o sol do meio-dia, despimo-nos e caímos na
cama, sem mesmo abrir as malas. A despeito do estranho caráter do lugar, Bennett passou a dormir
imediatamente. Eu me sacudi e remexi, lutando com a coberta da cama, até que adormeci
pesadamente, com sonhos de nazistas e desastres de avião. Acordei várias vezes, o coração
disparando e os dentes batendo. Era o pânico costumeiro, que sempre me assalta no primeiro dia
passado fora de casa, e piorava por estarmos de volta à Alemanha. Já começava a desejar que não
houvéssemos regressado.
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Por volta das três e meia levantamo-nos e, muito lânguidos, amamo-nos em uma das camas de
solteiro. Eu ainda julgava estar sonhando e não parei de fingir que Bennett era outro. Mas, quem?
Não deu para visualizá-lo com clareza. Jamais o consegui. Mas quem era esse homem-fantasma que
perseguia minha vida? Meu pai? Meu analista alemão? A foda sem zíper? Por que o rosto dele
sempre se recusava a tornar-se nítido?
Às quatro horas encontrávamo-nos no Strassenbahn, destinados à Universidade de Viena, a fim de
nos registrarmos para o congresso. O dia se revelava claro, o céu azul e com nuvens brancas
absurdamente fofas. E eu seguia pesadamente pelas ruas em minhas sandálias de salto alto, odiando
os alemães, odiando Bennett por não ser um desconhecido no trem, por não sorrir, por ser tão bom na
cama mas nunca me beijar, por marcar consultas com médicos de birutas mas nunca me comprar
flores. E sem falar comigo. E nunca mais agarrando meu traseiro. E nunca mais descendo sobre mim,
nunca. O que se espera, depois de cinco anos de casamento, afinal de contas? Risadinhas no escuro?
Passar a mão na bunda? Lamber a pomba? Bem, pelo menos de vez em quando. O que querem vocês,
mulheres? Freud enfrentou o enigma e nunca se saiu com grande resposta. Como é que vocês, damas,
gostam de trepar? O homem por cima de vocês, quando estão com as regras? Um homem que beije
vocês, antes de escovarem os dentes de manhã, e sorria em sua companhia, quando as luzes se
apagam? Um cacete duro, foi o que disse Freud, na suposição de que as mulheres o desejavam
porque os homens também queriam.
E bem grande, afirmou Freud, supondo que a obsessão deles era a nossa obsessão.
Falocêntricoj alguém comentou, certa feita, referindo-se a Freud. Achava que o Sol girava em
torno do pênis. E a filha, também.
E quem podia protestar? Até que as mulheres começassem a escrever livros, só foi apresentado um
dos lados do caso. Por toda a história, os livros foram escritos com esperma, e não com sangue
menstrual. Até completar vinte e um anos de idade, eu comparava meus orgasmos com os de Lady
Chatterley, e ficava imaginando o que estava errado comigo. Jamais me ocorria que Lady Chatterley,
na verdade, era um homem? Que, na realidade, ela era D. H. Lawrence?
Falocêntrico. Esse o problema com os homens,
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e tambem o problema com as mulheres. Uma amiga minha descobriu o seguinte, em um biscoito da sorte,
faz pouco tempo:
”O PROBLEMA COM OS HOMENS SÃO OS HOMENS, O PROBLEMA COM AS MULHERES, OS HOMENS”.
Certa feita, só para impressionar Bennett eu lhe contei acerca da cerimônia de iniciação dos Helps
Angels. Aquela parte na qual o iniciado tem de chupar sua companheira, quando ela está menstruada,
e o tempo todo os outros ficam olhando.
Bennett não fez comentário algum.
— Bem, não acha interessante? — cutuquei-o. — Não é uma beleza?
Mesmo assim, nada. Continuei na campanha.
— Por que você não compra um cachorro — disse ele, finalmente — e treina o bichinho?
— Eu devia dar parte de você ao Hospital Psicanalítico de Nova York — retorqui.
O edifício médico da Universidade de Viena tem colunas, é frio, cavernoso. Fomos escalando a
duras penas o lance enorme de escadas. Subindo, dezenas de médicos de birutas se reuniam em volta
da mesa de registro.
Uma jovem austríaca intrometida, com óculos de arlequim e Dirndl1 vermelho, causava
dificuldades a todos, por causa das credenciais necessárias ao registro. Falava um inglês
precaríssimo, de nível ginasial. Tenho certeza de que devia ser a esposa de um dos formandos
austríacos. Não podia ter mais de vinte e cinco anos de idade, mas sorria com todo o delambimento
de uma Frau Doktor.
Mostrei-lhe minha carta da revista Voyeur, mas ela não permitiu que me registrasse.
— Por quê?
— Porque não estamos autorizados a receber a imprensa — zombou ela. — Sinto muitíssimo.
— Aposto que sente, mesmo.
Dava para sentir a raiva começando em minha cabeça,
1 Vestuário feminino inspirado nos trajes campestres dos Alpes. (N. do E)
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como vapor em panela de pressão. Essa cadela nazista, pensei, essa Kraut1 maldita.
Bennett lançou-me um olhar no qual dizia: acalme-se. Ele detesta me ver com raiva de pessoas em
público. Mas sua tentativa de me reter serviu apenas para enfurecer-me mais.
— Olhe. . . se você não me deixar em paz, vou escrever sobre isso, também.
Sabia que depois de iniciadas as reuniões, eu poderia entrar sem qualquer distintivo ou braçadeira
— de modo que a questão não tinha importância, na verdade. Ademais, eu não me importava
coisíssima alguma quanto a escrever o artigo. Era uma espiã do mundo exterior. Uma espiã na casa
da psicanálise.
— Tenho certeza que você não quer que eu escreva sobre como os médicos estão assustados por
receberem jornalistas nas reuniões, não é?
— Eu sinto muito — a cadela austríaca não parava de repetir. — Mas eu não tenho realmente
autoridade para deixar. . .
— Está obedecendo a ordens, ao que presumo.
— Tenho instruções a obedecer — disse ela.
— Você e Eichmann.
— Como? — ela não me ouvia.
Outra pessoa ouvira. Voltei-me e vi um inglês louro, de cabelo hirsuto] cachimbo pendurado no
rosto.
— Se você parar de ser paranóica por um minuto, e usar o encanto, em vez da força bruta, tenho
certeza de que ninguém lhe resiste — asseverou. Sorria para mim do modo como o homem sorri,
quando está em cima da mulher, depois de uma trepada espetacular.
— Você tem de ser analista — contrapus. — Ninguém mais seria capaz de usar a palavra
”paranóica” com tanta liberdade.
Ele sorriu.
Usava um kurtah indiano de algodão branco muito fino, e dava para ver seus pêlos louro-
avermelhados no peito, cacheados, por baixo do pano.
— Pombinha atrevida —- disse ele, e agarrou um bom punhado de meu traseiro, apertou-o por
bastante tempo, brincalhão.
' Palavra alemã que designa ”repolho” e é usada depreciativamente em relação aos alemães. (N. do E.)
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— Você tem um rabo lindo — comentou. — Venha, vou providenciar para que entre na conferência.
Está claro que se revelou criatura sem qualquer espécie de autoridade naquela questão, mas eu não
soube disso senão mais tarde. Movimentava-se por ali de modo tão oficioso que seria de pensar que
era o chefe de todo o congresso. Era presidente de uma das conferências prévias — mas nada tinha a
ver ou dizer com relação à imprensa. Quem se importava com a imprensa, aliás? Tudo quanto eu
queria era que ele apertasse meu traseiro outra vez. Tê-lo-ia acompanhado a qualquer lugar. Dachau,
Auschwitz, qualquer lugar. Olhei para o outro lado da mesa de registro e vi Bennett conversando
seriamente com outro analista de Nova York.
O inglês abrira caminho por meio da multidão e apertava a moça encarregada dos registros, a meu
favor. Depois voltou a ter comigo.
— Olhe... ela diz que você precisa esperar e falar com Rodney Lehmann. É amigo meu, de
Londres, e deve estar aqui a qualquer instante; assim sendo, por que não vamos até aquele café e
tomamos uma cerveja- enquanto o esperamos?
— Deixe-me falar com meu marido — propus, em frase que ia tornar-se algo parecido a refrão,
nos dias seguintes.
Ele pareceu satisfeito em saber que eu tinha marido. Pelo menos, não ficou contristado.)
Perguntei a Bennett se ele iria ao outro lado da rua, ao café, para juntar-se a nós (contando,
naturalmente, que não fosse cedo demais) e ele, com um aceno, mandou-me andar. Estava ocupado,
conversando sobre a contratransferência psicológica.
Segui a fumaça que saía do cachimbo do inglês, descendo os degraus e atravessando a rua. Ele
baforava como se fosse uma locomotiva, o cachimbo parecia impeli-lo. E eu muito contente por ser
seu carro-bagageiro.
Instalamo-nos no café, com um quarto de litro de vinho branco para mim e cerveja para ele. Ele
calçava sandálias indianas e tinha as unhas dos pés sujas. Não se parecia a um médico de birutas, em
absoluto.
— De onde você vem?
— Nova York.
— Quero dizer, os seus ancestrais.
— Por que você quer saber?
— Por que se esquiva à minha pergunta?
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— Não tenho de responder à sua pergunta.
— Eu sei — disse ele, puxando uma baforada do cachimbo e pondo-se a olhar a distância. Os
cantos de seus olhos enrugavam-se em centenas de linhas minúsculas e sua boca parecia exibir uma
espécie de sorriso, mesmo quando não sorria. Eu já sabia que diria ”sim” a qualquer coisa que ele
pedisse. Minha’única preocupação estava em saber se ele ia pedir logo.
— Judeus poloneses por um lado, russos pelo outro...
— Foi o que pensei. Você parece judia.
— E você parece um anti-semita inglês.
— Oh, vamos... eu gosto dos judeus. . .
— Alguns de seus melhores amigos. . .
— É só que pequenas judias são uma tetéia, na cama. Não pude pensar em uma só coisa
espirituosa. Meu
doce Jesus, pensei, aqui está ele. Uma verdadeira F. S. Z. A foda sem zíper par excellence. O que,
pelo amor de Deus, estávamos esperando? Certamente não era por Rodney Lehmann.
— Eu também gosto dos chineses — disse ele —, e você tem um marido bem-apessoado.
— Talvez eu devesse arrumar as coisas para você com ele. Afinal de contas, os dois são analistas.
Devem ter muita coisa em comum. Podiam chupar um ao outro, debaixo de um retrato de Freud.
— Pombinha atrevida — disse ele. — Na verdade, gosto mais das pequenas chinesas. . . mas as
pequenas judias de Nova York, que gostam de uma boa briga, também me parecem muito sexy.
Qualquer mulher que sabe criar os problemas que você criou, lá na recepção, parece muito
promissora.
— Obrigada — pelo menos, sei reconhecer um cumprimento, quando me dirigem algum. Minhas
calcinhas já estavam molhadas o bastante para poder, com elas, limpar todas as ruas de Viena.
— Você é a única pessoa que conheci que me achou parecida com judia — contrapus, tentando
levar a conversa de volta a território mais neutro. (Chega de sexo. Voltemos ao preconceito.) Sua
idéia de que eu parecia judia, na verdade, me causava animação, só Deus sabe qual o motivo.
— Olhe. . . eu não sou anti-semita, mas você é. Por que você acha que não parece judia?
— Porque as pessoas sempre acham que sou alemã. . .
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e passei metade da vida ouvindo histórias anti-semitas, contadas por gente que supunha que eu não
era. . .
— É o que eu detesto nos judeus — proclamou ele.
— São os únicos que têm licença de contar piadas anti-semitas. Isso é uma injustiça infernal. Por
que eu tenho de me privar do prazer do humor judaico masoquista, só porque sou um goy?
Ele parecia tão goy, dizendo goy
— Você não pronuncia certo.
— O quê? Goy?
— Oh, isso está certo, mas ”masoquista” — (ele pronunciara a primeira sílaba exatamente como
um inglês). — Você precisa de cautela com sua pronúncia das palavras iídiches, como ”masoquista”
— ensinei. — Nós, judeus, somos muito sensíveis.
Ele ordenou nova rodada de bebidas e fingiu dar uma olhada, à procura de Rodney Lehmann, e eu
me saí com um discurso de aspecto muito profissional acerca do artigo que ia escrever. Quase
cheguei a me convencer outra vez. É esse um de meus maiores problemas; quando começo a
convencer outros, nem sempre consigo, mas invariavelmente convenço a mim mesma. Sou um
desastre completo como criminosa.
— Você tem, mesmo, sotaque americano — observou ele, com seu sorriso de quem acabou de
trepar.
— Eu não tenho sotaque. . . você é que tem.
— So-taque — disse ele, zombando de mim.
— Foda-se.
— Não é idéia das piores.
— Como é que você disse que se chama, mesmo? — (O que, como o leitor haverá de lembrar-se, é
a frase-clímax de Srta. }úlia, de Strindberg.)
— Adrian Goodlove — explicou e, dito isso, voltou-se de repente, e derramou o copo de cerveja
em cima de mim.
— Sinto muitíssimo — não parava de dizer, limpando a mesa com o lenço sujo, a mão e,
finalmente, com a camisa indiana — que despiu, enrolou e acabou me dando, para limpar com ela
meu vestido. Que cavalheirismo! Mas eu me limitava a ficar sentada ali, olhando os cabelos
cacheados e louros em seu peito, e sentindo a cerveja a escorrer entre minhas pernas.
— Pode acreditar que não me importo, em absoluto
— proclamei. Não era verdade que não estava ligando. Estava adorando.
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Goodlove, Goodall, Goodbar, Goodbody, Goodchild, Goodeve, Goodfellow, Goodford,
Goodfleisch, Goodfnend, Goodgame, Gooàhart, Goodhue, Gooding, Goodlet, Goodson,
Goodridge, Goodspeed, Goodtree, Goodwine.
Você não pode receber o nome de Isadora White Wing (nêe Weiss — meu pai o branqueara para
”White” pouco após eu nascer) sem passar boa parte da vida pensando em nomes.
Adrian Goodlove. A mãe dele lhe dera o nome de Hadrian, e depois o pai a obrigara a mudá-lo
para Adrian, sem H, porque isso parecia ”mais inglês”. O pai era feroz, nessas coisas de parecer
inglês.
— Gente típica da classe média inglesa, de eu fechado — disse Adrian, falando de sua mãe e pai.
— Você os odiaria. Passam a vida toda tentando manter as tripas limpas, em nome da rainha. E é
uma batalha perdida. Eles têm os eus permanentemente entupidos.
E peidou bem alto, para dar ênfase ao que dizia. Sorriu, em seguida. Eu o fitava, tomada pelo
maior espanto.
— Você é um primitivo de verdade — zombei —, um homem natural.
Mas Adrian continuou sorrindo. Nós dois sabíamos que, finalmente, eu encontrara a verdadeira
foda sem zíper.
Está bem. Admito, portanto, que meu gosto, em questão de homens, é sujeito a dúvidas. Logo
teremos indicações muito mais numerosas. Mas quem pode debater essa questão de gosto, afinal? E
quem pode transmitir uma paixonite? É como tentar descrever o gosto de mousse de chocolate, ou o
aspecto do pôr-do-sol, o motivo pelo qual dá para sentar por horas seguidas e fazer caretas para o
bebê. . . Quem existe e que corresponde a tudo isso, no papel? Aceitamos Romeu pelo que dizem, e
Julien Sorel e o Conde Vronski, e até mesmo Mellors, o guarda-caça. O sorriso, o cabelo hirsuto, o
cheiro de fumo de cachimbo e suor, a língua clínica, derramar a cerveja, os peitos exuberantes em
público. . . Meu marido tem uma bela cabeça de cabelos negros e dedos longos e finos. A primeira
noite em que o vi, também agarrou em minha bunda (enquanto falava sobre novas tendências na
psiquiatria). De modo geral, pareço gostar de homens que sabem fazer essa transição rápida
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do espírito para a matéria. Para que perder tempo, se a atração se acha presente? Mas se um homem
de quem eu não gostasse me quisesse agarrar, ficaria provavelmente afrontada e talvez enojada. E
quem pode explicar o motivo pelo qual o mesmo ato vem nos enojar, em um caso, e emocionar, em
outro? E quem pode explicar, com base na seleção? Os doidos por astrologia tentam fazê-lo. O
mesmo fazem os analistas, mas suas explicações parecem estar sempre com falta de alguma coisa.
Como se o cerne fosse deixado de fora.
Após ter passado a paixonite, a gente racionaliza. Adorei, certa vez, um regente que nunca tomava
banho, tinha cabelo emaranhado, e era um fracasso completo, na hora de limpar a bunda. Sempre
deixava manchas de merda em seus lençóis. Eu, normalmente, não sou a favor disso — mas, nele,
estava bem, ainda não sei qual o motivo. Apaixonei-me por Bennett, em parte, porque ele tinha os
ovos mais limpos que já provei. Não têm pêlo, e ele praticamente não sua. Dava (para quem
quisesse) para comer no cu dele (como no chão da cozinha de minha avó). Por isso sou versátil com
relação a meus fetiches. De certo modo, tornam as minhas paixonites ainda menos explicáveis.
Bennett, entretanto, via configurações em tudo.
— Aquele inglês com quem você estava conversando — disse, quando nos achávamos de volta ao
quarto de hotel —, estava realmente doido por você. . .
— O que faz você pensar assim? Ele me lançou um olhar cínico.
— Ele estava babando em cima de você.
— Pois achei que é o filho da puta mais hostil que já conheci — e era verdade, em parte.
— Isso mesmo. . . mas você sempre se deixa atrair pelos homens hostis.
— Como você, é o que quer dizer?
Ele me puxava a si, começava a despir-me. Dava para ver que estava com desejo, por causa do
modo pelo qual Adrian me perseguira. O mesmo acontecia comigo. Nós nos amamos, ali, em
homenagem ao espírito de Adrian. Adrian, homem de sorte. Podido de frente por mim, de trás por
Bennett.
A história do mundo através da foda. A cópula. A dança antiga. Serviria para fazer crônica ainda
melhor do que uma história do mundo pelos toaletes. Abrangeria tudo. O que não acaba em foda, ao
fim?
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Bennett e eu nem sempre havíamos feito amor a um fantasma. Houve ocasiões em que fazíamos
amor um ao outro.
Eu tinha vinte e três anos de idade quando o conheci, e já estava divorciada. Ele trinta e um, nunca
se casara. O homem mais calado que eu conhecera. E o mais bondoso. Pelo menos, julguei que fosse
bondoso. O que sei sobre as pessoas caladas, afinal? Venho de família onde o número de decibéis à
mesa das refeições podia danificar permanentemente a audição de alguém. E talvez tivesse
danificado.
Bennett e eu nos conhecemos em uma festa do Village, onde nenhum dos dois conhecia a anfitrioa.
Tínhamos, os dois, sido convidados por outras pessoas. Coisa muito chique, nos meados dos anos 60.
A anfitrioa era preta (ainda se dizia ”negro”, nessa época) e estava em alguma profissão de
vendagem bem na moda, como a publicidade. Apresentava-se com roupas de figurinista e sombra
dourada nos olhos. O lugar estava cheio de médicos de birutas, publicitários, sociólogos e
professores da Universidade de Nova York, que se pareciam a médicos de birutas. 1965: préhippie e
pré-étnico. Os analistas, publicitários e professores ainda usavam cabelos curtos e óculos com
armação de tartaruga. Ainda faziam a barba. Os pretos simbólicos ainda alisavam os cabelos (Oh,
recordação das coisas idas!).
Eu comparecera por meio de um amigo, o mesmo acontecera a Bennett. Como o meu primeiro
marido tinha sido psicótico, parecia de todo natural que eu desejasse casar-me com um psiquiatra, na
segunda vez. Como antídoto, é o que quero dizer. Não ia deixar a mesma coisa acontecer comigo.
Dessa feita, ia encontrar alguém que tinha a chave do inconsciente. Por isso, apegava-me aos
médicos de birutas. Eles me deixavam fascinada, porque eu supunha que soubessem tudo que valia a
pena saber. Eu os fascinava, por meu turno, porque eles supunham que fosse uma ”pessoa criativa”
(o que se tornara evidente pelo fato de eu ter aparecido no canal 13 lendo meus poemas — que
evidência maior de criatividade poderia querer um médico de birutas?).
Quando olho em retrospecto minha vida, que não tem trinta anos de duração, vejo todos os meus
amantes sentados de modo alternado, de costas,um para o outro, como se estivessem na brincadeira
das cadeiras. Cada qual um antídoto para o outro que existiu antes. Cada qual uma reação, uma
meia-volta, um rebote,
Brian Stollerman (meu primeiro amante e primeiro marido)
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era baixote, inclinado a criar pança, peludo e moreno. Era também uma bala de canhão
humana, falador incessante. Achava-se sempre em movimento, sempre pronunciando palavras de
cinco sílabas. Era um medievalista, e antes que alguém pudesse dizer ”cruzada albigense”, já lhe
tinha contado a história de sua vida — com detalhes extravagantemente exagerados. Brian dava a
impressão de que jamais se calava. Isso não era verdade, todavia, porquanto ele se calava, sim,
quando dormia. Finalmente virou os biscoitos (como dizemos educadamente, em minha família), ou
demonstrou sintomas de esquizofrenia (como afirmou um de seus numerosos psiquiatras), ou
despertou para o sentido verdadeiro de sua vida (como declarou seu orientador na tese de
doutoramento em filosofia), ou esgotou-se-como-resultado-deestar-casado-com-aquela-princesa-
judia-de-Nova-York (como seus pais o afirmaram) e depois nunca parou de falar, mesmo dormindo.
Parou de dormir, na verdade, e costumava manter-me acordada a noite toda, falando-me da Segunda
Vinda de Cristo e como, dessa vez, Jesus poderia voltar como medievalista judeu, residindo no
Riverside Drive, em Nova York.
É claro que morávamos no Riverside Drive, e Brian era um falador fascinante, mas ainda assim eu
me achava tão envolta em suas fantasias, era componente tão prazerosa de uma folie à deux, que
precisei de toda uma semana, acordada todas as noites, a ouvi-lo, até compreender que o próprio
Brian pretendia ser a Segunda Vinda. Tampouco ele se agradou muito quando lhe fiz ver que talvez
isso fosse uma ilusão; quase me estrangulou, por minha contribuição a nosso debate. Depois que
recuperei a respiração (faço a coisa parecer simples, desse modo, para poder continuar com o relato),
ele tentou diversas coisas, como sair voando pelas janelas, caminhar sobre a água no lago do Central
Park, e finalmente teve de ser levado à força para a enfermaria de psicopatas, e ali controlado com
Thorazine, Compazine, Stelazine, ou qualquer outra coisa de que alguém pudesse lembrar-se.”E a
essa altura eu tive um colapso de esgotamento, fiz terapia de descanso no apartamento de meus pais
(que se haviam tornado extremamente lúcidos, diante da doideira flagrante de Brian), e chorei por
cerca de um mês. Até que um dia acordei com alívio, na tranqüilidade de nosso apartamento
abandonado no Riverside Drive, e compreendi que não pudera ouvir meus próprios pensamentos por
quatro anos.
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Percebi, então, que jamais voltaria a viver com Brian — quer parasse de pensar que era
Jesus Cristo, quer não.
Sai o marido numero uno. Entra uma procissão singular de números outros. Mas eu sabia, pelo
menos, que estava procurando o numero due: uma boa e firme figura paterna, um psiquiatra, como
antídoto para o psicótico, uma boa trepada secular como antídoto ao fervor religioso de Brian, que
parecia excluir a foda, o homem calado como antídoto para o ruidoso, um gentio lúcido como
antídoto para o judeu doido.
Bennett Wing apareceu como se fosse um sonho. Com a maior naturalidade, podia afirmar. Alto,
de bom aspecto, inescrutavelmente oriental. Dedos compridos e finos, testículos glabros, balanço
encantador nos quadris quando trepava — ocupação na qual parecia ser inteiramente infatigável.
Mas era também mudo e, nessa ocasião, o seu silêncio constituía verdadeira música para meus
ouvidos. Como podia saber que, anos depois, ia sentir-me como se estivesse trepando com uma
surda-muda Helen Keller?
Wing (asa). Eu adorava o nome de Bennett. E ele era mercurial, não tinha asas nos calcanhares,
mas no pau. Erguia-se e deslizava, quando trepava. Fazia movimentos de mergulho e de saca-rolha
que eram maravilhosos. Permanecia duro sempre, o único homem que conheci que nunca foi
impotente —- nem mesmo quando estava abatido ou com raiva. Mas por que nunca beijava? E por
que não falava? Eu gozava, gozava, gozava, e cada orgasmo parecia ser feito de gelo.
Foi diferente no início? Acho que sim. Eu ficava estonteada por seu silêncio nessa ocasião, como
ficara antes avassalada pela torrente de palavras vindas de Brian. Logo antes de Bennett, tinha
havido aquele regente, que adorava sua batuta (mas nunca limpava o traseiro), um pilantra florentino
(Alessandro, o Grosso), um cunhado árabe incestuoso (mais tarde, mais tarde), um professor de
filosofia (Universidade da Califórnia), e uma série de deitadas heterogêneas à noite. Eu seguira o
regente por toda a Europa, assistindo enquanto dirigia as orquestras, carregando suas partituras, e
finalmente ele partiu e me deixou por uma antiga namorada em Paris. Com isso eu fora ferida pela
música, loucura e heterogeneidade. E o silêncio de Bennett vinha curar-me. Era médico de minha
cabeça e psicanalista para minha pomba. Trepava e trepava em silêncio que estourava os tímpanos.
Ele ouvia, era bom analista, conhecia todos os sintomas
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de Brian antes que os contasse. Sabia pelo que eu passara. E, o mais espantoso de tudo, ainda queria
casar-se comigo depois de eu ter falado a meu respeito.
— É melhor achar uma boa pequena chinesa — propus. Não era racismo de minha parte, só que
andava chateada com relação ao casamento. Seu caráter permanente me apavorava. Até na primeira
vez, com Brian, isso me apavorava, e eu casara com ele um tanto arrastada.
— Eu não quero uma boa pequena chinesa — retrucou Bennett. — Quero você.
(Fui descobrir, mais tarde, que Bennett nunca saíra com uma chinesa, em toda a sua vida — muito
menos trepara com alguma. Era parado nas judias. Homens assim parecem ser o meu destino.)
— Que bom você me querer — disse eu. Reconhecida, sentia realmente gratidão.
Em que altura eu começara a fingir que Bennett era outro camarada? Lá pelo fim de nosso terceiro
ano de casamento. E por quê? Ninguém pôde ainda explicar-me.
P: ”Caro Doutor Reuben: por que foder acaba sempre parecendo queijo beneficiado?”
R: ”Você parece ter um fetiche alimentar, ou o que é conhecido em linguagem psicanalítica como
fixação oral. Já pensou em procurar ajuda profissional?”
Eu fechava os olhos, com força, e fingia que Bennett era Adrian. Transformei B em A. Gozamos
— eu primeiro, depois Bennett — e ficamos ali, suados, deitados naquela horrível cama de hotel.
Bennett sorriu. Eu me sentia miseravelmente mal. Que tapeadora! O adultério verdadeiro não podia
ser pior do que aquelas tapeações noturnas. Foder com um homem e pensar em outro, e manter essa
tapeação em segredo — isso era muito, muito pior do que foder com outro homem à vista do próprio
marido. Era tão ruim quanto qualquer traição que conseguia imaginar.
”Somente uma fantasia” deveria ser o comentário de Bennett. ”Uma fantasia é apenas uma
fantasia, e todos têm fantasias. Só os psicopatas chegam a encenar e representar todas as fantasias
que têm; as pessoas normais não fazem isso.”
Eu, todavia, respeito mais a fantasia. Nós somos o que sonhamos. Somos o que sonhamos, mesmo
acordados. Os gráficos, números, luzes que acendem e apagam; e perus de plástico de Masters e
Johnson contam-nos tudo acerca do sexo, e nada, ao mesmo tempo. Porque o sexo está todo na
cabeça.
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As pulsações e secreções nada têm a ver com ele. Aí está porque todos os manuais de sexo
mais vendidos não passam de tapeação. Ensinam às pessoas como foderem com a pélvis, mas não
com a cabeça.
O que importava se eu, pelo aspecto técnico, era ”fiel” a Bennett? O que importava se eu não
havia trepado com outro camarada desde que o conhecera? Era infiel a ele pelo menos dez vezes por
semana, em meus pensamentos — ou, ao menos, em cinco dessas vezes fui infiel a ele, enquanto
estávamos, os dois, trepando.
Talvez Bennett fingisse que eu, também, era outra. Mas e daí? Isso era problema dele. E, sem
dúvida, noventa e nove por cento das pessoas do mundo estavam fedendo fantasmas. Provavelmente
estavam. Isso não me trazia qualquer consolo. Sentia desprezo por mim, por ser tão enganadora; já
era adúltera, e estava apenas retardando a consumação real, por covardia. Isso me tornava adúltera e
covarde, ainda por cima. Se eu, pelo menos, trepasse com Adrian, seria apenas adúltera (adulta?).
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Bate, bate
”O sexo, como afirmei, pode se resumir em três pês: procriação, prazer e presunção. Numa perspectiva a longo
prazo, que sempre devemos levar em conta, a procriação é, sem dúvida, o mais importante, já que sem ela não
haveria a
continuação da raça...
”Por isso, o orgasmo feminino é apenas um clímax nervoso das relações de sexo. . . e, como tal, relativamente um
luxo, do ponto de vista da natureza. Pode ser considerado como uma espécie de prêmio prazeroso, como aquele
prêmio
que vem dentro de uma caixa de flocos de aveia, por exemplo. É muito bom se o prêmio estiver ali, mas a aveia,
nem
poi isso, deixa de ser valiosa e nutritiva, caso não esteja.”
Madeline Gray, A mulher normal (sic), 1967.
Em meus sonhos, Adrian e Bennett estavam subindo e descendo em uma gangorra, no recreio de
crianças do Central Park, aonde costumava ir quando menina.
”Talvez ela deva ser analisada na Inglaterra”, dizia Bennett, seu lado da gangorra erguendo-se no
ar. ”Vou entregar a você o passaporte e o atestado de vacina dela.”
Adrian estava com os pés no chão, começou a sacudir a gangorra como um desses garotos maiores
costumam fazer, quando se mete no brinquedo de crianças menores.
”Pare com isso!”, gritei. ”Está machucando Bennett!”
Adrian, entretanto, continuou a sorrir e a sacudir a gangorra.
”Você não vê que está machucando? Pare com isso!”, eu quis gritar, mas, como acontece nos
sonhos, minhas palavras se embaralharam. Fiquei apavorada com a idéia de que Adrian ia largar
Bennett, fazendo-o cair ao chão e quebrando-lhe a espinha.
— Por favor, por favor, pare! — supliquei.
— O que há? — resmungou Bennett. Eu o despertara. Sempre falava no sono, e ele sempre
respondia.
— O que aconteceu?
— Você estava numa gangorra com alguém. Fiquei com medo.
— Oh — e ele rolou para o outro lado.
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Em condições normais Bennett me abraçaria, mas estávamos em camas estreitas, em lados
distantes do quarto e, em vez disso, voltou a dormir.
Eu me achava plenamente desperta, agora, e ouvia os passarinhos que faziam estardalhaço no
jardim por trás do hotel. De início, esse ruído me reconfortou. Depois lembreime de que eram
pássaros alemães e fiquei abatida. No íntimo, em sigilo, odeio viajar. Fico inquieta em casa, mas no
instante em que me afasto sinto a ameaça do destino pairando sobre meus atos mais corriqueiros. Por
que eu voltara à Europa, afinal de contas? Toda minha vida achava-se despedaçada. Por dois anos eu
dormira com Bennett e pensara em outros homens. Por dois anos, ficara debatendo comigo mesma se
engravidava ou dava o fora por conta própria, para ver um pouco mais do mundo, antes de me
instalar em qualquer coisa tão permanente como um casamento. Como é que as pessoas resolvem
engravidar, era o que cogitava. Tratava-se de decisão tão prenhe de responsabilidade! De certo modo,
era uma decisão arrogante. Assumir a responsabilidade por uma vida nova, quando não se tinha
meio de saber como ia ser essa vida. Eu supunha que a maioria das mulheres engravidava sem pensar
no assunto, porque se o fizesse, por um só instante levasse em conta o que aquilo significava, com
certeza ver-se-ia avassalada pelas dúvidas. Eu não disponho dessa fé cega na sorte que as outras
mulheres parecem possuir. Sempre quis estar no controle de meu destino. A gravidez se me afigurava
uma abdicação tremenda a esse controle. Algo que cresce dentro da gente, que com o tempo vem
usurpar nossa vida. Eu estivera usando diafragma, de modo compulsivo, por tanto tempo, que a
gravidez jamais podia ser acidental, em meu caso. Mesmo durante os dois anos em que tomei pílula,
não falhei um só dia. Desleixada que era com tudo o mais, nunca falhei,’nesse particular. Era
virtualmente a única de minhas amigas que nunca fizera um aborto. O que estava errado em mim? Eu
era fora do normal? Simplesmente não tinha a compulsão feminina normal de embarrigar. Tudo em
que conseguia pensar era em mim mesma com minha inquietação, meus anseios por foda sem zíper e
desconhecidos no trem — e presa ao lugar, para ter um filho. Como podia desejar isso para uma
criança?
”Se não fosse por vocês, eu teria sido uma artista famosa”, costumava dizer minha mãe, ruiva e
furiosa. Ela estudara arte em Paris, aprendera anatomia e moldes de gesso,
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aquarela e artes gráficas, e até a preparar seus próprios pigmentos. Conhecera artistas famosos,
escritores famosos, músicos famosos e discípulos famosos (dizia). Dançara no Bois de Boulogne
(dizia), sentara no Lês Deux Magots em capa de veludo negro (dizia), seguira de carro nas ruas de
Paris, no pára-lama de Bugattis (dizia), fora às ilhas gregas três décadas e meia antes de Jacqueline
Kennedy Onassis (dizia) e depois viera para casa, casara-se com um comediante das montanhas
Catskill que estava a ponto de ganhar muito dinheiro num negócio de tzatzka, e tivera quatro filhas,
todas recebendo os nomes mais poéticos: Gundra Miranda, Isadora Zelda, Lalah Justine e Chloe
Camille.
E eu tinha culpa de tudo isso?
Mas passara metade da vida pensando que sim. E talvez fosse responsável, de um certo modo.
Pais e filhos achamse umbilicalmente ligados, e não apenas no útero. Forças misteriosas os ligam. Se
minha geração vai passar o tempo denunciando nossos pais, nesse caso talvez devêssemos deixar que
nossos pais o fizessem por igual período de tempo.
”Eu teria sido uma artista famosa, não fosse por vocês, crianças”, dizia minha mãe. E eu acreditei
nisso, por muito tempo.
Sempre existiu, está claro, o problema do pai dela: artista também, e fanaticamente invejoso do
talento da filha. Ela fora para Paris a fim de escapar-lhe; se era assim, por que voltara a Nova York,
fora morar com ele e vivera com ele, até os quarenta anos de idade? Os dois tinham um estúdio, e de
quando em vez ele pintava as telas dela (só, naturalmente, quando não tinha telas limpas). Ela se
tornara cubista em Paris e estava a caminho de aperfeiçoar um estilo próprio, em alguma tendência
contemporânea, mas o pai dela, para quem a pintura começou e acabou com Rembrandt, zombou até
que ela desistiu e limitou-se a continuar engravidando.
”Esses malditos borrões modernos”, dizia o pai dela. ”Pura impostura.”
E por que ela não se mudara? Digo isso com toda a força da ambivalência, sabendo que, nesse
caso, eu talvez nunca nascesse.
Crescemos num apartamento enorme, de catorze aposentos, no Central Park West. O telhado tinha
goteiras (morávamos no último andar), os fusíveis explodiam quando se empurrava a torrada pela
torradeira abaixo, as banheiras tinham pés de garras e encanamento sempre enferrujado, o
fogão na cozinha parecia coisa tirada de um anúncio da TV que falasse dos tempos da vovó ou de
reservas dos índios, e os caixilhos das janelas eram tão antigos e ruins que o vento os atravessava,
sem qualquer dificuldade. Mas era um ”edifício Stanford White”, e havia ”dois estúdios de face sul”,
e a biblioteca tinha ”paredes de lambris” e ”janelas chumbadas” e o teto de ”doze metros de altura”
na sala de visitas era de ”folha de ouro verdadeira”. Eu me lembrava dessas expressões imobiliárias
que soaram por toda a minha infância. Folha de ouro. Imaginava uma folha de bordo que fosse feita
de ouro. Mas como prendiam as folhas no teto? E por que não se pareciam a folhas? Talvez as
moessem e transformassem em tinta? Onde, ficava pensando, dava para apanhar uma ”folha de ouro
verdadeira”? Elas cresciam em árvores de ouro verdadeiras? Ou em ramos de ouro verdadeiros? (Eu
era o tipo de garota que conhecia palavras como ”ramos”.)
Na verdade, existiu um livro grosso e de tipo escuro, na biblioteca de meus pais, intitulado O ramo
dourado. Eu costumava folheá-lo, então, à procura da ”folha de ouro verdadeira”. Mas havia muita
coisa sexy lá dentro (foi na mesma época em que costumava esconder Amor sem medo na gaveta de
minha penteadeira — por baixo das camisetas).
Assim é que ficamos, com mamãe e papai, por causa da ”face sul” e da ”folha de ouro verdadeira”
ou, pelo menos, foi o que minha mãe disse. E enquanto isso meu pai viajava pelo mundo todo, em seu
negócio de tzatzka, e minha mãe ficava em casa, tinha bebês e berrava com a mãe e o pai dela. Meu
pai desenhava baldes de gelo que pareciam canecas de barro para cerveja e canecas de barro para
cerveja que se pareciam a baldes de gelo. Desenhava famílias de animais de cerâmica, ligados entre si
por minúsculas correntes de ouro. Ele ganhava uma fortuna nisso — o que era surpreendente.
Podíamos com facilidade mudar dali, mas era claro que minha mãe não queria, ou não podia. Uma
correntinha de ouro prendia minha mãe à mãe dela, e eu à minha mãe. Toda nossa infelicidade se
estendia ao longo da mesma correntinha de ouro (que rapidamente perdia o brilho).
É claro que minha mãe tinha uma explicação para tudo aquilo — uma racionalização patriarcal, a
racionalização antiquíssima das mulheres que fervilham de talento e ambição e continuam a
engravidar.
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”Não é possível as mulheres fazerem as duas coisas”, dizia. ”É preciso escolher. Ou se é artista, ou
se tem filhos.” Com um nome igual ao meu, Isadora Zelda, tornava-se claro o que eu devia escolher:
tudo quanto havia sido oferecido à minha mãe e fora deixado de lado.
Como era possível eu tirar meu diafragma e engravidar? O que outras mulheres fazem sem pensar
muito era, para mim, um ato importante, momentoso, a negação de meu nome, meu destino, minha
mãe.
Minhas irmãs eram diferentes. Gundra Miranda autodenominou-se ”Randy” e casou-se aos dezoito
anos. Casou-se com um médico libanês em Berkeley, teve quatro filhos homens na Califórnia, e
depois a família se mudou para Beirute, onde ela teve mais cinco filhas. A despeito da rebelião
aparente do fato de uma boa jovem judia do Central Park West casar-se com um Árabe, levou a
vida familiar mais comum que se pode imaginar, em Beirute. Era quase religiosamente a favor de
Kinder, Küche e Kirche — principalmente a igreja católica que freqüentava, a fim de impressionar
o» árabes com seu não-judaísmo. Não que eles gostassem do catolicismo tanto assim, é claro, mas
era melhor do que a outra alternativa. Tanto ela quanto Pierre, meu cunhado, acreditavam em Robert
Ardrey, Konrad Lorenz e Lionel Tiger, como se os mesmos fossem Jesus, Buda e Maomé. ”Instinto!”
resmungavam, ”puro instinto animal!” Passaram a odiar os beatniks de Berkeley, de seus dias de
faculdade, e a pregar a territorialidade, a imoralidade dos anticoncepcionais e aborto, a
universalidade da guerra. Às vezes pareciam sinceramente acreditar na Grande Corrente do Ser e no
Direito Divino dos Reis. Entrementes, continuavam procriando.
(”Por que pessoas com genes superiores haveriam de utilizar anticoncepcionais, quando todos os
indesejáveis estão procriando de tal maneira que o mundo vai se extinguir?” — era o velho refrão,
sempre que Randy anunciava nova gravidez.)
Lalah (a outra filha do meio, depois de mim) era quatro anos mais jovem e se casara com um
negro. Como no caso de Randy, porém, a falta de convencionalismo de sua escolha era enganadora.
Lalah freqüentara a escola de Oberlin, onde conheceu Robert Goddard, que era indiscutivelmente o
negro branco mais branco em todo o histórico dessa expressão. Meu cunhado Bob, na verdade, tem
cor de chocolate, porém a mente tão branca quanto o membro de um membro da
Ku-Klux-Klan.
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Não sei como é o membro dele. O fato de ter freqüentado uma escola como
Oberlin me deixa perplexa, como talvez os tenha deixado, também. Após a faculdade, freqüentou a
escola médica em Harvard e resolveu logo partir para onde estava o pão: a cirurgia ortopédica. Hoje
passa quatro dias por semana consertando pernas e espetando quadris (e cobrando consultas enormes
às companhias de seguro). Os outros três dias são passados em equitação e num clube fechado, no
subúrbio elegante de Boston, mas racialmente integrado, onde ele e Lalah residem.
E como vivem! Cercados pela coleção mais completa de engenhocas elétricas que se possa
imaginar: trituradores eletrônicos de gelo, refrigeradores de vinho, máquinas de cabeceira da cama
que fazem ruídos sintéticos do mar, decapitadores automáticos de ovos, umidificadores,
desumidificadores, misturadores automáticos de coquetel, aparadores de cerca programados para
fazerem desenhos topiários, rodopiadores que fazem rodopiar a água do banho, bidês que fazem girar
a água, espelhos de barbear iluminados que saem da parede, receptores de TV em cores escondidos
atrás de reproduções emolduradas das obras gráficas modernas mais banais, e um bar que sai da
parede no foyer quando alguém toca a campainha da porta. Essa campainha, por falar nisso, toca os
primeiros acordes de When the satnts come marching in — a única concessão que Bob fez à
negritude.
Com todas essas engenhocas, cavalos e três automóveis (um para cada um deles, o outro para a
arrumadeira branca e sul-americana), todos nós supomos que eles não tiveram tempo de pensar em
ter crianças — para o alívio de meus pais, ao que acredito. Netos árabes são uma coisa, pelo menos
têm cabelos lisos.
Mesmo assim, éramos fortes. Lalah, na verdade, estava tomando pílulas de fertilidade já fazia dois
anos (como nos informou ultimamente, bem como a todos os jornais) e no ano passado deu à luz
quíntuplos. O resto (como vivem) constitui história. Talvez o leitor tenha visto o artigo na revista
Time sobre os ”quíntuplos Goddard”, no qual foram descritos como ”engraçadinhos, cor de café e
perfazendo uma braçada completa”.
”Puxa vida!”, foi a reação verbal de Mamãe Lalah Justine Goddard (née White), com vinte e
quatro anos de idade, ao saber que trouxera gêmeos quíntuplos ao mundo.
E, agora, Lalah e Bob estão com as mãos cheias de ossos partidos, engenhocas, cavalos, ascensão
social e os quíntuplos
53

(que, por falar nisso, receberam os nomes mais comuns que eles puderam encontrar:
Timmy, Susie, Annie, Jennis e Johnnie). E o Doutor Bob está ganhando mais dinheiro do que nunca, pois
parece que ter quíntuplos mulatos é o meio mais eficiente de formar uma grande clientela médica,
desde que descobriram as injeções de vitamina B. Quanto a Lalah, escreve-me uma vez por ano, a
fim de perguntar por que não paro de ”peidar essa poesia” e passo a ”fazer algo significativo”, como
ter quíntuplos.
Depois do árabe de Randy e do negro de Lalah e da convicção de meu primeiro marido de que ele
era o próprio Jesus Cristo,, meus pais ficaram realmente muito aliviados, quando me casei com
Bennett. Nada tinham, em absoluto, contra a raça dele, mas causava-lhes grande rancor a sua
religião: psicanálise. Sofriam, imaginando que Bennett sabia ler-lhes os pensamentos. Na verdade,
quando olhava do modo mais penetrante, pressago e inescrutável, estava geralmente pensando em
mudar o óleo no automóvel, tomar sopa de galinha no almoço, ou ir ao reservado cagar. Mas nunca
pude convencê-los disso. Insistiam em pensar que ele examinava em profundidade suas almas e via
todos os segredos pavorosos que eles próprios queriam esquecer.
Isso só nos deixa Chloe Camille, nascida em 1948 e seis anos mais nova que eu. A caçula da
família. Chloe, com seu espírito aguçado, língua ferina, e o maior relaxamento no que toca a tomar
providências a esse respeito. Gorducha, bonita, cabelos castanhos, olhos azuis e pele perfeita. E
dotada do único par verdadeiramente formidável de peitos, em família de busto bastante achatado.
Chloe, naturalmente, casou-se com um judeu. Não um judeu doméstico, mas importado. (Ninguém na
família se rebaixaria a casar com o vizinho do lado.) O marido de Chloe, Abel, é israelense de
ascendência alemã-judaica. (Os membros de sua família já foram donos do cassino de Baden-Baden.)
E Abel, mais do que claro, entrou no negócio de tzatzka de meu pai. Ao negócio antes dominado
pelo ex-comediante das montanhas Catskill, ele levou lições que aprendera na Wharton School. De
início meus pais se rebelaram, e depois virtualmente o adotaram, à medida que todos enriqueciam.
Abel e Chloe têm um filho, Adam, que é louro, de olhos azuis e, do modo mais declarado, o neto
favorito. Nas reuniões natalinas, quando toda a família se agrupava no apartamento de meus pais,
Adam parecia ser o único ariano,
54
em um jardim de infância composto de crianças do Terceiro Mundo.
Eu era, portanto, a única irmã ohne Kinder, e nunca me permitiram esquecer o fato. Quando
Pierre e Randy visitaram Nova York pela última vez, trazendo sua ninhada, foi exatamente durante a
época em que meu primeiro livro era publicado. Em meio a uma de nossas brigas costumeiras e
ruidosas (sobre qualquer coisa imemoravelmente idiota), Randy chamou minha poesia de
”masturbatória e exibicionista” e me repreendeu por minha ”esterilidade”.
— Você age como se escrever fosse a coisa mais importante do mundo! — berrou-me.
Eu procurei ser sensata e calma com relação à minha família durante aquela semana, de modo que
retive penosamente a explosão que sentia prestes a eclodir.
— Randy — supliquei —, eu tenho de pensar que escrever é a coisa mais importante do mundo,
para continuar a fazê-lo, mas nada obriga você a compartilhar minha obsessão; assim sendo, por que
teria eu de compartilhar a sua?
— Bem, não vou admitir que você ponha a mim, meu marido e meus filhos em seus escritos
imundos. . . está ouvindo? Eu a mato, se você me mencionar de qualquer modo, nessa porcaria. E se
eu não matar, eu mesma, Pierre mata por mim. Compreendeu?
Seguiu-se uma discussão prolongada e estrondosa sobre autobiografia versus ficção, na qual
mencionei Hemingway, Fitzgerald, Boswell, Proust e James Joyce — tudo isso sem o menor
resultado.
— Você podia muitíssimo bem publicar seus livros imundos postumamente — uivava Randy —,
se eles têm uma só palavra sobre qualquer personagem que mesmo de longe se pareça comigo!
— E eu suponho que você vai me matar, de modo a não atrasar a publicação.
— Quero dizer depois de nós morrermos, e não depois de você morrer.
— Isso é convite a uma decapitação?
— Enfie suas alusões literárias no cu. Você se julga muito inteligente, não é? Só porque era um
pé-de-boi e se saiu bem na escola. Só porque tem ambição e anda trepando com tudo quanto é
intelectual impostor. Eu tinha tanto talento para escrever quanto você, como sabe muito bem, só que
eu não ia me rebaixar a me revelar em público,
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como você faz. Eu não admito que as pessoas conheçam minhas fantasias secretas. Não sou uma
exibicionista fedorenta como você, só isso. . . Agora, fora daqui! Vá dando o fora! Está ouvindo?
— Acontece que esta casa é de Jude e do papai... e não sua.
— Dê o fora! Você já me deu uma dor de cabeça desgraçada! — De mãos nas têmporas, Randy
correu para o banheiro.
Era a velha íuga psicossomática. Todos, em minha família, dançam assim, em qualquer
oportunidade. Você me deu uma dor de cabeça desgraçada! Você me fez ficar com indigestão! Você
me deu eczema na virilha! Você me dá alucinações auditivas! Você me faz ter um ataque do coração!
Você me fez pegar câncer!
Randy saiu do banheiro com expressão de dor no semblante. Soubera controlar-se e, agora,
procurava mostrar-se tolerante.
— Não quero brigar com você — declarou.
— Ah!
— Não quero, mesmo. É só que você ainda é minha irmãzinha, e acho mesmo que você está no
caminho errado! Quer dizer, você devia parar de escrever, ter um filho. Ia se realizar muito mais do
que escrevendo. . .
— Talvez seja disso que eu tenho medo.
— O que quer dizer?
— Olhe, Randy, pode parecer absurdo a alguém que tem nove filhos, mas eu realmente não sinto
falta de filhos. Quero dizer, eu amo os seus filhos, os de Chloe, os de Lalah, mas estou mesmo feliz
com meu trabalho por enquanto e não quero mais realização, por enquanto. Levei anos para
aprender a ficar sentada mais de dois minutos de uma vez, escrevendo, a agüentar a solidão e o pavor
do fracasso, o silêncio pavoroso, o papel em branco. E agora que agüento isso. . . agora que
finalmente posso escrever. .. estou querendo muito escrever. Não quero que coisa alguma venha
atrapalhar. Jesus Cristo! Levei tanto tempo para chegar a esse ponto.
— É assim que espera estragar o resto de sua vida? Sentada numa sala escrevendo versos?
— Bem, por que não? Por que você acha pior do que ter nove filhos?
Ela fitou-me, repleta de desdém.
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— Você não sabe nada sobre ter filhos.
— E você não sabe nada sobre escrever — retorqui, verdadeiramente enojada comigo mesma por
parecer tão infantil. Randy sempre me faz sentir como se tivesse cinco anos de idade.
— Mas você adoraria ter filhos — persistiu ela —, pode crer que sim.
— Pelo amor de Deus, você deve estar com a razão! Mas você já é uma Ethel Kennedy suficiente
para nossa família... por que cargas d’água precisamos de outra? E por que deveria ser eu, que tenho
tantas dúvidas a esse respeito? Por que haveria de me obrigar? Pelo bem de quem? O seu? O meu?
Dos filhos que não existem? A raça humana não vai se extinguir se nós não tivermos filhos!
— Mas você não tem nem mesmo a curiosidade de passar por essa experiência?
— Eu acho.. . mas a curiosidade não está me matando, por assim dizer. Além disso, tenho tempo. .

— Você está com quase trinta anos de idade. Não tem tanto tempo quanto pensa.
— Oh, meu Deus — disse eu —, você não suporta ninguém xjue faça outra coisa senão o que
você fez. Por que eu tenho de copiar sua vida e seus erros? Será que não posso nem ao menos
cometer os meus próprios malditos erros?
— Que erros?
— Como levar seus filhos a pensar que são católicos, como mentir a respeito de sua religião, como
negar que você é. . .
— Eu,a mato! — berrou Randy, vindo em minha direção, os braços erguidos. Refugiei-me no
armário da entrada, como fizera tantas vezes, quando criança. Havia dias nos quais Randy
costumava surrar-me de modo regular. (Pelo menos, se eu tiver filhos, nunca cometerei o erro de ter
mais do que um. Ser filho único é tido na conta de vicissitude psicológica, mas foi tudo o que eu
desejei ser, quando criança.)
— PIERRE! — ouvi que Randy berrava, lá fora. Tranquei a porta e puxei o cordão da lâmpada.
Depois encosteime no casaco de zibelina de minha mãe (que cheirava a antigo Joy e Diorissímo
estagnado) e sentei-me atrás dele, as pernas cruzadas, entre as botas. Acima de mim havia duas
outras prateleiras de capotes, que se erguiam até o teto. Antigos casacos de pele, capotes infantis
ingleses,
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com perneiras de couro, parkas1, capas de chuva, capotes de chuva, capas autografadas de nossos dias de
acampamento, capas escolares com os nomes dos donos nas golas e chaves de patins esquecidas nos
bolsos, capotes noturnos de veludo, capotes de brocado, capotes de pólo, capas de arminho. . . trinta
e cinco anos de comprar, gastar e criar filhos, e gritar. . . e o que tinha minha mãe para mostrar,
como saldo daquilo? Sua zibelina, seu arminho e seu ressentimento?
— Isadora! — era Pierre quem chamava, agora, batendo à porta do armário.
Sentei-me no chão e balancei os joelhos. Não tinha a menor intenção de levantar-me. Era um
cheiro tão lindo de naf talina e de Joy. ..
— Isadora!
Francamente, pensava eu, às vezes gostaria de ter um filho. Uma meninazinha inteligente e
espirituosa, que crescesse para tornar-se a mulher que eu jamais conseguiria ser. Uma meninazinha
muito independente, sem cicatrizes no cérebro ou na psique. Sem servilismo, nem aquela sedução
destinada a cativar o próximo. Uma meninazinha que dissesse o que pensava, e pensasse o que
dissesse. Uma meninazinha que não fosse de palavras melosas, nem ferinas, porque não odiava a
mãe, nem a si própria.
— Isadora!
O que eu realmente queria era dar à luz a mim mesma — a meninazinha que eu teria sido em
família diferente, mundo diferente. Abracei os joelhos. Sentia-me estranhamente segura, ali, sob o
casaco de peles de minha mãe.
— Isadora!
Por que eles tinham de continuar a me torturar, querendo enfiar-me nos mesmos moldes que os
haviam tornado tão infelizes? Eu teria um filho quando estivesse pronta para isso. E se nunca
chegasse a ficar pronta, não o teria. Um filho constituía garantia contra a solidão ou a dor? Alguma
coisa servia para isso? Se estavam tão satisfeitos e felizes com a vida que levavam, por que
precisavam ficar catequizando os outros o tempo todo? Por que insistiam em que todos fizessem
como eles? Por que se haviam transformado em malditos missionários?
— Isadora!
Por que minhas irmãs e minha mãe parecem, todas elas, estar em conspiração para zombarem de
minhas realizações
' Abrigo forrado de pele usado pelos esquimós. (N. do E.)
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e fazer-me sentir que são vazias? Eu tinha publicado um livro que eu mesma conseguia ler.
Seis anos de escrever e descartar, escrever e descartar, tentar aprofundar-me mais e mais em mim
mesma. E os leitores haviam-me enviado cartas, telefonavam no meio da noite para me dizer que o
livro era bom, corajoso e sincero, que eu era corajosa e sincera. Corajosa. Ali estava, dentro do
armário, abraçando os joelhos! Mas aos olhos de minha família eu era um fracasso, porque não tinha
filhos. Absurdo. Sabia que era absurdo. Mas alguma coisa, em mim, repetia aquele catecismo.
Alguma coisa, em mim, pedia desculpas a todas as pessoas que cumprimentavam meus poemas:
alguma coisa, em mim, dizia: ”Oh, mas lembrem-se, não tenho filhos”.
— Isadora!
Quase trinta. Quem não me conhece me dá, às vezes, vinte e cinco anos de idade, mas dá para ver
o início implacável da idade, início da morte, a preparação gradual para a inexistência. Já existem
rugas em minha testa. Posso desfazê-las com os dedos, mas voltam imediatamente. Sob meus olhos,
toda uma rede de rugas está começando: canais minúsculos, as marcas de uma lua em miniatura. Nos
cantos de meus olhos estão uma, duas, três linhas finas como se fossem feitas por uma caneta
Rapidograph, usando tinta invisível. E a boca está mais firme do que costumava ser. O sorriso leva
mais tempo para se desmanchar. Como se o envelhecimento, acima de tudo, fosse a rigidez. A
formação do rosto em padrões arrumados anteriormente; um prenúncio débil da rigidez que vem após
a morte. Oh, o queixo continua bastante firme.. . mas não é uma corrente fina, quase invisível, em
volta do ponto central do pescoço? E os seios ainda estão altos, mas por quanto tempo? E a pomba?
Vai ser a última a cair. Continuará forte, quando ninguém mais quiser o resto do corpo, em absoluto.
É engraçado como, apesar de minha relutância em engravidar, pareço viver dentro de minha
própria pomba. Talvez esteja envolvida em todas as transformações de meu corpo. Elas nunca
passam despercebidas. Creio que sei com exatidão quando óvulo. Na segunda semana do ciclo, sinto
um minúsculo ping e depois uma espécie de dor formigando na parte inferior da barriga. Alguns dias
depois, é freqüente encontrar uma mancha minúscula de sangue no yarmulke1
' Solidéu usado pelos judeus ortodoxos e conservadores na sinagoga. (N. do E.)
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de borracha do diafragma. Uma mancha vermelho-viva, único traço visível do óvulo que podia ter-se
tornado uma criança. Sinto uma onda de tristeza, então, coisa quase indescritível. Tristeza e alívio. É
realmente melhor nunca nascer?
O diafragma tornou-se uma espécie de fetiche para mim. Um objeto sagrado, barreira entre meu
útero e os homens. De algum modo, a idéia de que o filho é dele me enraivece. Que ele tenha seu
próprio filho! Se eu tiver um filho, será todo meu. Uma menina como eu, porém melhor. Uma menina
que também poderá ter seus próprios filhos. Não é ter filho o que parece injusto, mas tê-los para os
homens. Bebês que recebem os nomes deles. Bebês que prendem a gente por meio do amor a um
homem a quem é preciso agradar e servir, sob pena de abandono. E o amor, afinal de contas, é o
grilhão mais forte. O que aperta mais, e dura mais tempo. E depois estaria presa para sempre. Toda a
coleção de meus próprios sentimentos e o meu próprio filho.
— Isadora!
Mas talvez eu já seja uma prisioneira. A prisioneira de minhas fantasias. A prisioneira de meus
medos. A prisioneira de minhas definições falsas. O que fiz para ser mulher, afinal de contas? Se isso
significava ser o que Randy era, ou o que minha mãe tinha sido, nesse caso não o desejava. Se
significava ressentimento fervilhante e fazer preleções sobre as alegrias de ter filhos, não o queria.
Era muito melhor ser uma freira intelectual do que isso.
Mas a freira intelectual também não tinha graça nenhuma. Faltava-lhe suco, extrato, essência. E
quais eram as alternativas? Por que ninguém me mostrava algumas alternativas? Ergui o olhar e
raspei o queixo na bainha do casaco de zibelina de minha mãe.
— Isadora!
— Está bem. Já vou.
Saí do armário, defrontando-me com Pierre.
— Peça desculpas a Randy! — exigiu ele.
— Por quê?
— Por todas as coisas nojentas e grosseiras que você disse a meu respeito! — berrou Randy. —
Peça desculpas!
— Eu só disse que você nega quem é, e que não quero ser como você. Por que isso precisa de
desculpas?
— Peça desculpas! — gritou ela.
— Por quê?
— Desde quando você dá tanta puta importância a ser judia? Desde quando é tão santa assim?
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— Eu não sou tão santa — contrapus.
— Nesse caso, por que está criando tanto caso? — e Pierre usava agora seu sotaque francês mais
suave.
— Jamais comecei essa cruzada santa de multiplicar os verdadeiros crentes. . . vocês é que
fizeram. Não estou tentando converter vocês a coisa alguma. Procuro, apenas, levar minha própria
puta vida, se conseguir achá-la, em meio a toda essa confusão.
— Mas, Isadora — e Pierre queria me engabelar —, é exatamente isso. . . estamos tentando
ajudar você.
61

Perto da Floresta Negra

”As crianças de idade tenra eram invariavelmente exterminadas porque, devido à sua idade, não podiam
trabalhar...
Com muita freqüência as mulheres escondiam os filhos por baixo das roupas, mas está claro que, quando as
encontrávamos, mandávamos as crianças para o extermínio. Tínhamos de executar esses extermínios em segredo,
mas é
claro que o fedor nauseabundo e horrível da queima constante de corpos permeava toda a região, e todos os que
moravam nas comunidades vizinhas sabiam que os extermínios continuavam em Auschwitz.”
Declarações do SS Oberstürmführer Rudolph Hess,
5 de abril, 1946, Nuremberg.
O 8:29 para Frankfurt

A Europa é luxo empoeirado,


carros de primeira classe
com poeira de primeira classe.
E o chefe do trem
parece-se a um rosado
porco de marzipã.
E vai em passo de ganso
pelo corredor afora.
FRAULEIN!
Diz com quatro umlauts.
E sua correia vermelha
de couro zumbe no ar
com o elástico estourado.
O quepe sobe, e sobe mais,
uma coroa papal,
erguendo-se ao céu para afirmar
uma autoridade absoluta,
o direito divino
dos chefes de trem da Bundesbahn.
FRAULEIN!
É pericoloso sporgersi.
Nicht hinauslehnen.
II est dangereux. . .
as rodas repetem.
Mas não sou tão burra.
Sei onde os trilhos acabam
e o trem continua a viagem
para o silêncio.
Sei que a estação
não estará assinalada.
Meu cabelo é tão ariano
quanto qualquer coisa.
Meu nome é pagão.
Meu passaporte, meus olhos
mais azuis que os céus bávaros.
Mas ele pode ver
a estrela-de-davi
em seu umbigo.
Sacoleja. Range.
E a uso pela
última vez que me dispo.
FRAULEIN!
Alguém me cutuca e desperta.
Minha mão acovardada
quase se ergue a saudar
esse pequeno uniforme
eriçado do homem.
Schõnes Wetter heute,
é o que ele diz
com aceno afável
mostrando fazendas ao longe,
pela janela do trem.
Com precisão, perfura
meu bilhete, e então
seu rosto exibe um sorriso
à luz do sol que,
de súbito, é benévola
como sopa de galinha.
62
63

Antes de morar em Heidelberg eu não me sentia muito cônscia de ser judia. É claro que tenho
algumas recordações: minha avó lavando minhas mãos entre as dela e dizendo que estava lavando e
tirando ”os germanos” (seu sinônimo-trocadilho para germes). Minha irmã Randy começando um
jogo chamado ”fugir dos alemães”, em que púnhamos nossas roupas mais grossas, arrumávamos
nossa irmãzinha Chloe no carrinho de boneca, fazíamos sanduíches com molho de maçã e ficávamos
sentadas, comendo-os, nas funduras fragrantes do armário de roupa de cama, contando que os
abastecimentos durassem até que a guerra terminasse e os Aliados chegassem. Também tenho a
recordação vaga de minha melhor amiga episcopal, Gillian Battcock (de cinco anos de idade),
dizendo que não podia tomar banho comigo porque eu era judia e os judeus ”sempre fazem xixi na
água do banho”. De modo geral, entretanto, tive infância bastante ecuménica. Os amigos de meus
pais eram de todas as cores, religiões e raças, bem como os meus. Devo ter aprendido a expressão
”família do homem” antes que minhas fraldas secassem. Embora o iídiche fosse falado às vezes em
casa, parecia ser usado apenas como uma espécie de linguagem cifrada, para que a empregada não
entendesse. Às vezes era falado para enganar as crianças, mas nós, com nosso excelente radar
infantil, sempre percebíamos o teor, ainda que não entendêssemos as
palavras.
64
O resultado foi que quase não aprendemos iídiche algum. Tive de ler Goodbye,
Columbus, para aprender a palavra shtarke, e The magic barrei, para saber de um jornal chamado
lhe Forward. Estava com catorze anos de idade quando fui a um bar mitzvah (de um primo em
primeiro grau em Spring Valley, Nova York), e minha mãe ficou em casa, com dor de cabeça. Meu
avô, ex-marxista que acreditava ser a religião o ópio da massa, proibiu à minha avó qualquer
”besteira religiosa”, depois me acusou (em seus oitenta anos sentimentais de sionismo) de ser ”uma
maldita anti-semita”. Está claro que eu não era uma anti-semita. Simplesmente não me sentia
especialmente judia, e não compreendia por que ele, logo ele, havia de repente começado a parecer-se
com Chaim Weizmann. Minha adolescência (no Campo de Trabalho Quebra-Pescoço, a Academia de
Música e Arte, e como conselheira de treinamento no Fundo de Ar Fresco no Herald Tribune) tinha
sido passada nos áureos dias em que um negro era invariavelmente eleito presidente da turma
veterana, e constituía sinal fulgurante de posição social ter amigos em plano inter-racial e sair com
eles. Não que eu compreendesse a hipocrisia dessa discriminação invertida, então — mas ainda assim
recebi meu quinhão de integração sincera. Considerava-me internacionalista, socialista fabiana,
amiga de toda a humanidade (ninguém falava nas campanhas feministas, nesses dias), humanista.
Encolhia-me quando ouvia chauvinistas judeus ignorantes falando sobre como Marx e Freud e
Einstein eram judeus, todos eles, como os judeus possuíam genes superiores, cérebros também. Era
claro, a meus olhos, que julgar a si próprio superior constituía sinal certo de inferioridade e que
julgar a si próprio extraordinário constituía indicação segura de ser ordinário.
Todo Natal, desde quando eu tinha dois anos de idade, armávamos árvores de Natal. Só que não
estávamos comemorando o nascimento de Cristo; estávamos comemorando (explicava minha mãe),
”o solstício do inverno”. Gillian, que tinha uma creche1 sob a árvore de Natal dela, e uma estrela de
Belém por cima, discutia isso comigo, acaloradamente. Eu fazia eco das palavras de minha mãe: ”O
solstício de inverno existia antes de Jesus Cristo”. A pobre palerma que era a mãe de Gillian insistia
em um Jesus bebê e em um nascimento virginal.
Na Páscoa, procurávamos os ovos pintados,
' Presépio. Em francês no original. (N. do E.)
65

mas não estávamos comemorando a ressurreição de Cristo; celebrávamos ”o equinócio vernal”, o


Renascimento da Vida, os Ritos da Primavera. Bastava ouvir minha mãe para acreditar que fôssemos
druidas.
— O que acontece às pessoas quando elas morrem? — perguntei a ela.
— Elas não morrem de verdade — explicou-me. — Voltam para a terra, e depois de algum tempo
nascem outra vez, como grama, ou como tomates.
Isso era singularmente inquietante. Talvez fosse reconfortante ouvi-la dizer: ”elas não morrem de
verdade”, mas quem queria ser um tomate? Seria o meu destino? Transformar-me em tomate, com
todas aquelas sementes grudentas?
Gostasse ou não, essa era a única religião que eu tinha. Não éramos realmente judeus; éramos
pagãos e panteístas. Acreditávamos na reencarnação, nas almas dos tomates, até mesmo (lá nos idos
de 1940) na ecologia. Com tudo isso, comecei a sentir-me intensamente judia e intensamente
paranóica (ou serão a mesma coisa) no momento em que pus os pés na Alemanha.
De repente, as pessoas nos ônibus estavam indo para casa, casas onde guardavam com o máximo
zelo pequenas coleções de dentes dourados e alianças... os abajures no Hotel Europa eram de
granulação suspeitosamente fina... o sabão na sala de repouso do Silberner Hirsch tinha cheiro
esquisito... Os trens imaculados eram, na verdade, vagões de gado claustrofóbicos e de cheiro
horrível... O chefe do trem, com seu rosto porcino, marzipã rosado, não ia deixar-me desembarcar. . .
O chefe da estação, com seu quepe nazista tão alto, ia examinar meus documentos sob algum
pretexto e me entregar a um daqueles policiais de capote verde, botas de couro negro, chicote na
mão... O guarda alfandegário na travessia da fronteira ia, com certeza, fazer-me parar, descobrir meu
pequeno contrabando de Lomotil, elixir paregórico, tabletes de enxofre, V-Cillin e Librium, tirados
da farmácia do Exército — o suprimento costumeiro de coisas a serem levadas para a Itália — e me
arrastaria para uma caverna secreta, na encosta dos Alpes, onde eu seria torturada de modos
cruelmente engenhosos, até confessar que, por baixo de meu paganismo, panteísmo e conhecimento
pedante da poesia inglesa, era de ponta a ponta tão judia quanto Anne Frank.
Em perspectiva histórica, torna-se claro que Bennett e eu devemos nossa presença em Heidelberg
(e, na verdade,
66
nosso casamento) à tapeação do povo americano por seu governo, que mais tarde foi revelada nos
Documentos do Pentágono. Em outras palavras, nós nos casamos como resultado direto de Bennett
ter sido convocado — e foi convocado como resultado direto do crescimento da ajuda militar
prestada ao Vietnam em 1965-66, que foi o resultado direto da tapeação do povo americano por seu
governo. Mas quem sabia disso, na época? Desconfiávamos, mas não tínhamos provas. Éramos
brindados com manchetes irônicas a prometerem que tal aumento de tropas no Vietnam era para ”dar
fim à guerra e proporcionar uma paz duradoura”. Davam-nos belezas tais como: ”É necessário
destruir a aldeia a fim de salvá-la. . .” Tínhamos ativistas tão bem-falantes quanto quaisquer outros
que surgissem mais tarde. Mas não contávamos com prova, em preto e branco, impressa na primeira
página do The Times.
Assim é que Bennett, uma criança-psiquiatra, tendo feito metade de seu adestramento analítico, foi
recrutado à idade de trinta e um anos. Havíamo-nos conhecido três meses antes. Tínhamos chegado
um ao outro, saindo de casos amorosos mal-sucedidos — e, de minha parte, um primeiro casamento
desastroso. Estávamos enjoados de nos acharmos sozinhos, apavorados por estarmos sozinhos,
sentíamo-nos felizes juntos na cama, assustávamo-nos com o futuro, e casamo-nos um dia antes de
Bennett ter de partir para Fort Sam Houston.
Desde o início o casamento foi estranho. Ambos contávamos com salvamento, e estávamos, os
dois, agarrando-nos mutuamente, de qualquer jeito, afogando-nos juntos. As coisas se tornaram
hostis em questão de poucos dias. Logo passamos dos ataques verbais ao silêncio total, pontilhado
por cópulas que continuavam, por espantoso que fosse, a serem boas. Nenhum dos dois sabia direito
em que se metera, ou por qual motivo.
Antes de virmos para Heidelberg, o cenário para os dois primeiros meses de nosso casamento foi
tão estranho quanto o motivo pelo qual nos havíamos casado. Lá estávamos, dois habitantes de
Manhattan, apavorados e transplantados, enfiados em San António, Texas. Cortaram os cabelos de
Bennett, enfiaram-no no verde do Exército, obrigaram-no a ficar sentado horas e horas, submetido à
propaganda do Exército sobre como ser médico militar — algo que ele detestava de todo o coração.
Eu ficava ”em casa” num motel estéril, perto de San António, vendo televisão, mexendo em meus
poemas,
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sentindo-me enraivecida e sem poder fazer coisa alguma. Como a maioria das jovens nascidas em Nova York,
nunca aprendera a dirigir automóvel. Tinha vinte e quatro anos de idade e me achava encalhada em
um motel do Texas, de frente para uma faixa de estrada cheia de sol entre San Antônio e Austin.
Dormia até as dez e meia, acordava e via televisão, enquanto preparava cuidadosamente o rosto (para
quem?), mudava de roupa e me deliciava em um ”desjalmoço” (combinação de desjejum com almoço)
feito de panquecas, salsichas e grãos de areia, vestia a roupa de banho (que estava cada vez mais
apertada) e ficava cozinhando ao sol por duas horas, mais ou menos. Depois nadava na piscina por
cinco minutos e voltava a subir para examinar meu ”trabalho”. Mas achava quase impossível
trabalhar. A solidão ao escrever me apavorava. Buscava todas as desculpas que me permitissem
fugir. Não tinha noção de mim mesma como escritora, fé nenhuma em minha capacidade de escrever.
Não dava para ver, nessa ocasião, que estivera escrevendo por toda a vida. Começara a compor e
ilustrar pequenas histórias aos oito anos de idade. Fizera um diário desde a idade de dez anos. Era
ávida e irônica autora de cartas, a partir dos treze anos, e imitei conscientemente as cartas de Keats e
G. B. Shaw por toda a adolescência. Aos dezessete, quando fui ao Japão com meus pais e irmãos,
levei comigo minha máquina Olivetti portátil e passei todas as noites recapitulando as observações do
dia em um caderno de folhas soltas. Comecei a publicar poemas em pequenas revistas literárias
durante meu ano de veterana na faculdade (onde ganhei a maioria dos prêmios de poesia e editei a
revista literária). E assim, a despeito do fato evidente de que estava obcecada por escrever, a despeito
das publicações e das cartas dos agentes literários, perguntando se eu estava ”trabalhando em um
romance”, não acreditava verdadeiramente na seriedade de meu compromisso, em absoluto.
Em vez disso, deixara-me levar para a faculdade. A faculdade devia ser algo seguro. Esperava-se
que fosse um lugar onde se pudesse adquirir experiência antes de se passar a escrever de verdade.
Que tapeação evidente isso parece, agora! Mas na ocasião parecia prudente, aconselhável, uma
providência cheia de noção de responsabilidade. Eu era boa menina, tão compulsiva que meus
professores já acenavam com bolsas para mim. Ansiava por rejeitá-las, mas não tinha coragem de
fazê-lo — de modo que gastei dois anos e meio em um bacharelado em artes e partes de um curso de
filosofia,
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até me ocorrer o pensamento de que a faculdade atrapalhava seriamente minha educação.
Casar com Bennett serviu para arrancar-me dessa escola. Tirei licença para acompanhá-lo, em sua
vida no Exército. O que mais podia fazer? Não que eu quisesse desistir de minha bolsa — era a
história a me dar um pontapé no traseiro. Casar com Bennett também me afastou de Nova York, de
minha mãe, do Departamento de Inglês em Columbia e de meu ex-marido, de meus ex-namorados —
que se haviam, todos eles, tornado idênticos a meus olhos. Eu queria sair daquilo, queria escapar. E
Bennett foi o veículo. Nosso casamento começou sob esse encargo pesado. Que tenha sobrevivido,
constitui milagre.
Em Heidelberg, instalamos residência em vasto campo de concentração americano, na parte pós-
guerra da cidade (muito diferente da parte antiga e bela, perto do Schloss, que os turistas visitam).
Nossos vizinhos, em sua maior parte, eram capitães do Exército e seus ”dependentes”. Com algumas
exceções notáveis, eram a gente mais cheia de consideração com que vivi, em qualquer época. As
esposas nos acolhiam com café, quando se fazia a mudança para lá. As crianças eram
enlouquecedoramente afáveis e educadas. Os maridos acorriam calorosamente para ajudar a tirar o
automóvel de um buraco na neve ou carregar caixas pesadas até o pavimento de cima. Por isso
mesmo a coisa foi mais espantosa quando anunciaram que a vida era barata na Ásia, que os Estados
Unidos deviam acabar com os vietcongues a bombas e, afinal, que os soldados só estavam lá para
executar uma tarefa e não para alimentar opiniões políticas. Encaravam Bennett e a mim como
criaturas vindas de outro mundo, e era assim, ou bem perto disso, que nós próprios nos sentíamos.
Do outro lado da rua estavam nossos outros vizinhos, os alemães. Em 1945, quando todos eles
ainda eram militaristas, tinham odiado os americanos por vencerem a guerra. Agora, em 1966, os
alemães eram pacifistas (pelo menos no que dizia respeito às outras nações) e odiavam os americanos
por estarem no Vietnam. As ironias se multiplicavam com tanta rapidez que era difícil apreendê-las.
Se San Antônio havia sido estranho, Heidelberg se mostrava mil vezes mais. Vivíamos entre dois
conjuntos de inimigos e estávamos, os dois, tão insatisfeitos e infelizes, que éramos também inimigos
um para o outro.
Ainda consigo fechar os olhos e lembrar-me da hora de
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’jantar, na Mark Twain Village, em Heidelberg. O cheiro dos TV dinners1 nos corredores. A rede
radiofônica das Forças Armadas berrando os resultados de futebol e o número (inflacionado) de
vietcongues mortos, no outro lado do mundo. Crianças berrando. Matronas sardentas e de vinte e
cinco anos de idade, vindas do Kansas, andando por ali em roupas domésticas e de bóbis, sempre
esperando aquela noite de Cinderela em que valeria a pena pentear os cachos. Ela nunca chega. Em
vez disso vem o vendedor, que espreita os corredores, toca as campainhas das portas, vende tudo,
desde fundos mútuos até enciclopédias ilustradas (em vocabulário simplificado) e tapetes orientais.
Ao lado dos desgarrados americanos e desistentes ingleses e estudantes paquistaneses vendendo
”como bico”, há um verdadeiro Bundeswehr de alemães semelhantes a gnomos vendendo tudo, desde
pinturas ”a mão” de cenas alpinas açucaradas, sob pores-do-sol melosos, a canecas de cerveja que
tocam God bless America e relógios de cuco da floresta Negra cujos carrilhões não param. E a gente
do Exército compra, compra, compra mais. As esposas compram para encher suas vidas vazias, para
criar uma ilusão de lar nos alojamentos sem graça, espalhar a graça do dinheiro americano por ali.
As crianças compram capacetes e brinquedos de guerra, e roupas militares de tamanho infantil, de
modo que possam empenhar-se em seu brinquedo favorito, vietcongues contra boinas-verdes,
preparando-se para o futuro. Os maridos compram máquinas-ferramentas, a fim de
contrabalançarem sua própria sensação de impotência. Todos eles compram relógios, como para
simbolizar o modo pelo qual o Exército lhes está gastando as vidas, em seu tique-taque.
Alguém dera início a um rumor, na Mark Twain Village, de que os relógios alemães podiam ser
vendidos por verdadeiras fortunas na ”zona livre”, de modo que todo capitão, sargento ou primeiro-
tenente providenciava para levar ao menos trinta deles para casa. E ficavam em suas paredes por dois
anos, os carrilhões tocando, os cucos cantando em intervalos desiguais, pondo a mulher e filhos tão
doidos quanto o Exército os punha. E como as paredes, nesses edifícios, eram finíssimas, até os
residentes sem relógios de cuco (como nós) ouviam o tiroteio de cantoria dessas aves mecânicas
durante o dia todo. Quando não eram os cucos no vizinho,
' Refeição comprada pronta; própria para se comer vendo televisão. (N. do E.)
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era o infante sem talento musical que executava o inexecutável Star spangled banner no
órgão de marca Hammond (pago em suaves prestações mensais — ouvir aquilo é que se mostrava
duro) ou algum subtenente berrando naquele quadrilátero a seus garotos (gêmeos chamados Wayne e
Dwayne —, e que, em outras ocasiões, eram chamados de seus ”bacorins”). Quando a cantoria de
cucos, por si só, não me enfurecia, o simbolismo dos relógios me divertia. Todos, no Exército,
estavam sempre contando os dias e os minutos: oito meses mais, até que seja feito o rodízio, três
meses até que o marido volte ao Vietnam, dois anos até que esteja pronto para a promoção, três
meses até poder mandar buscar a esposa e filho... Os cucos registravam cada minuto de cada hora,
naquela massa prolongada rumo ao esquecimento.
A não ser pelo fato de que não tínhamos relógios, nosso apartamento não era muito diferente do
alojamento típico do oficial jovem, naquele conjunto. Os móveis eram da variedade alemã medonha e
superestofada fabricada logo após a guerra e dada aos americanos como parte das reparações. Não
alimento a menor dúvida de que os fizessem ainda mais feios do que de costume, por vingança. Para
começar, eram de um bege doentio; agora, depois de vinte anos de muito uso, ele se abrandara,
manchara, chegara a um amarelo-urina salpicado que trazia as marcas de muitos animaizinhos
domésticos e crianças, e cervejas tomadas de manhã. Havíamos feito o possível para encobrir esses
sofás, enormes como hipopótamos, e as cadeiras elefantinas, com xales coloridos, travesseiros e
tapeçarias. Havíamos coberto as paredes com cartazes e o peitoril das janelas com plantas.
Enchemos as prateleiras com a maior parte de nossos próprios livros (despachados a alto preço pelo
governo). Ainda assim, o lugar era deprimente. A própria Heidelberg causava desalento. Uma bela
cidade, onde chove dez meses por ano. O sol se esforça por surgir, dias seguidos, aparece por uma
hora, mais ou menos, e depois bate outra vez em retirada. E vivíamos em uma espécie de prisão, um
gueto espiritual e intelectual, do qual simplesmente não podíamos sair sem sermos encarcerados.
Bennett se perdia no Exército e em seu próprio abatimento. Não podia ajudar-me, em absoluto. Eu
não podia ajudá-lo, também. Costumava caminhar pelas ruas, sozinha na cidade antiga, debaixo de
chuva. Passava horas indo de uma loja a outra, manuseando mercadoria que nunca haveria
de comprar,
71

sonhando em meio a multidões, ouvindo conversas compridas que, de início, só


compreendia em parte, ouvindo os vendedores a proclamarem as virtudes das perucas, unhas falsas,
facas de trinchar, moedores de carne, coisas assim. . . ”Meine Damen una Herren. . .”, começam a
dizer, e cada frase prolongada é entremeada e reforçada com essa expressão. Ela ressoa em nossos
ouvidos por algum tempo. Todas aquelas mulheres com forma de batata se punham ao meu redor,
formavam uma parede cinzenta de roupa cheia. A Alemanha é patrulhada por exércitos de mulheres
de capotes cinzentos, chapéus tiroleses, sapatos comportados e mandíbulas carmesins, onde
explodem pêlos. Vistas de perto, as faces parecem ornamentadas por pirotécnica minúscula,
apanhada, como em fotografia, no momento de explodir. Essas viúvas rijas se acham por toda parte:
carregando sacolas de barbante onde aparecem bananas, apoiando os largos traseiros em selins
estreitos de bicicleta, tomando os trens manchados de chuva de Munique a Hamburgo, de Nuremberg
a Freiburg. É um mundo feito de viúvas. A solução final prometida pelo sonho nazista: um mundo
sem judeus e sem homens. Às vezes, vagando por ali sem destino certo, tomando o Strassenbahn,
parando para tomar cerveja e comer alguma coisa em um café, ou Kaffee una Kuchen em um
Konditoret, acorria-me a fantasia de que eu era o fantasma de uma judia, assassinada em campo de
concentração no dia em que nascera. Quem ia dizer-me que não era assim? Inventava dramas
complicados que fingia serem apenas relatos surrealistas que planejava escrever. Mas eram mais do
que relatos, e eu não estava escrevendo. Às vezes julgava que enlouquecia.
Pela primeira vez na vida, interessei-me profundamente pela história dos judeus e a história do
Terceiro Reich. Fui à usis, ou Biblioteca dos Serviços Especiais, e comecei a examinar livros onde se
minuciavam os horrores das deportações e campos de morte. Li sobre o Einsatzgruppen e imaginava
estar cavando minha própria sepultura, na orla de um grande poço, agarrada ao meu filhinho,
enquanto os oficiais nazistas preparavam as metralhadoras. Imaginei os gritos de pavor e os sons dos
corpos caindo. Imaginei ser ferida e rolar, caindo naquele poço, com os corpos a se contorcerem, a
terra jogada sobre mim, às pazadas. Como podia protestar e dizer que não era judia, mas uma
panteísta? Como podia pedir deferência porque adorava o solstício de inverno e os ritos da
primavera? Para os objetivos dos nazistas eu era tão judia quanto outra qualquer. Eu me
transformaria em terra e viria a ser uma flor ou fruta?
72
Era isso o que acontecia às almas de todos os judeus assassinados no dia em
que nasci?
Nos poucos dias de sol, costumava freqüentar os mercados. Os mercados de frutas da Alemanha
me encantavam, com sua beleza diabólica. Havia um mercado aos sábados, por trás da Igreja do
Espírito Santo, na praça setecentista. Ali rugiam toldos listrados de branco e vermelho, e montes de
frutas, sangrando como se fosse sangue humano. Framboesas, morangos, ameixas purpúreas,
mirtilos. Massas e mais massas de rosas e peônias. Tudo na cor do sangue, e tudo sangrando em
caixotes e nos balcões de madeira das barracas. Era para ali que tinham ido as almas dos bebês
judeus mortos na guerra? Era esse o motivo pelo qual a paixão alemã pela jardinagem me causava
tanta perturbação? Toda essa avaliação errônea do caráter sagrado da vida? Tanto amor canalizado
para alimentar as frutas, flores e animais? Mas nada sabíamos sobre o que estava acontecendo aos
judeus, diziam-me repetidas vezes. Não era noticiado nos jornais. Foram apenas doze anos. E eu
acreditava neles, de um certo modo. Compreendia-os, de um certo modo. Eu queria ver, enquanto
todos eles morriam devagar, de modo horrível. Era a beleza sangrenta dos mercados — as velhas
mirradas e antigas que pesavam toda aquela fruta sangrenta, as Frãuleins louras e rijas que
contavam as rosas — e que nunca deixavam de agitar, em mim, meus sentimentos mais violentos
acerca da Alemanha.
Posteriormente, pude escrever sobre essas coisas e, em parte, exorcizar os demônios. Mais tarde,
pude fazer amigos alemães, e até descobrir algumas coisas para amar, em sua língua e em sua
poesia. Mas naquele primeiro ano solitário não pude escrever, tinha poucos amigos. Vivia como uma
solitária, lendo, passeando, imaginando que minha alma saía de meu corpo e que eu estava possuída
pela alma de alguém que morrera em meu lugar.
Explorei Heidelberg como espião, descobrindo todos os pontos interessantes do Terceiro Reich
que, deliberadamente, não se viam mencionados nos guias turísticos. Descobri o lugar onde existira a
sinagoga, antes de ser incendiada. Depois de aprender a dirigir, pude até adentrar-me mais, e
descobrir um desvio ferroviário abandonado, e um velho vagão de carga, com ”REICHSBAHN”
escrito ao lado. (Todos os trens novos e reluzentes eram rotulados ”BUNDESBAHN”). Sentia-me
como um desses israelitas fanáticos que perseguem os nazistas na Argentina. Só que eu perseguia
meu próprio passado,
73

minha própria judaidade, na qual nunca pudera acreditar antes.


O que mais me enfurecia, creio, era o modo pelo qual os alemães haviam me mostrado sua
coloração protetora, o modo pelo qual falavam de paz e humanitarismo, o modo pelo qual
afirmavam, todos eles, terem lutado na frente russa. Era sua hipocrisia que me causava abominação.
Se, pelo menos, falassem abertamente e dissessem: ”Nós amamos Hitler”, eu poderia sopesar sua
humanidade com sua sinceridade e, talvez, perdoá-los. Nos três anos em que vivi na Alemanha, só
encontrei um homem que reconheceu isso. Era um ex-nazista, e tornou-se meu amigo.
Horst Hummel dirigia uma gráfica num escritório minúsculo na cidade antiga. Sua mesa estava
cheia de livros, jornais, documentos e toda espécie de bagunça, e ele estava sempre ao telefone,
sempre berrando ordens para os três Assistenten amedrontados que trabalhavam para ele. Baixote,
muito barrigudo, usava óculos grossos e escuros que acentuavam as rugas sob os olhos. Depois de
encontrá-lo pela primeira vez, Bennett sempre se referia a ele como ”o gnomo”. Na maior parte do
tempo Herr Hummel (como o chamei no início) falava bem o inglês, mas saía-se de vez em quando
com batatadas, que comprometiam toda a fluência anterior. Certo dia, quando lhe disse que tinha de
ir para casa e preparar o jantar para Bennett, ele disse:
— Se o seu Mann está com fome, então precisa ir para casa e cozinhá-lo.
Hummel imprimia tudo, desde cardápios a volantes de publicidade para o The Heidelberg
Officers’ Wives’ Club Newsletter — um tablóide luzidio e de quatro páginas crivado de erros
tipográficos, besteiras sobre a vida difícil da esposa do militar e fotografias de matronas do Exército,
enfeitadas com chapéus de flores, corpetes de orquídea e óculos arlequim com brilho de diamantes
falsos. Estavam sempre recebendo prémios, uma da outra, por diversos serviços públicos.
Para se divertir, Hummel imprimia também um panfleto semanal chamado Heidelberg Alt una
Neu. Consistia principalmente em publicidade dos restaurantes e hotéis, horários de trens, programas
de cinema e coisas assim. De vez em quando, todavia, Hummel (que já fora correspondente de guerra
na Batalha de Anzio) escrevia um artigo de fundo sobre alguma questão comunitária e, de quando em
vez,
74
entrevistava alguma personalidade da cidade, ou visitante, para divertir-se.
Após um ano caçando nazistas em Heidelberg (e trabalhando em uma série singular de empregos
diferentes, que serviram todos apenas para aumentar meu abatimento), encontrei Hummel, que me
pediu para ser seu ”editor americano” e ajudá-lo a arranjar mais leitores de fala inglesa para o
Heidelberg Alt una Neu. A intenção era atraí-los com uma coluna sobre alguma atração turística e,
depois, venderlhes os produtos dos anunciantes: porcelana Rosenthal, figurinos Hummel (não era
parente dele), engenhocas domésticas, vinhos e cervejas da cidade. Eu devia escrever uma coluna
semanal, pela qual receberia vinte e cinco deutsche Marks (ou sete dólares) e Hummel contribuiria
com fotografias, e traduzindo o texto para o alemão em página oposta. Eu poderia escrever sobre
qualquer coisa que me interessasse. Qualquer coisa. É claro que aceitei o trabalho.
De início escrevi sobre questões ”seguras”: castelos em ruínas, festivais de vinhos, restaurantes
históricos, uma ou outra coisa da história de Heidelberg, ou informações apócrifas. Utilizava a
coluna para ensinar muita coisa. Utilizava-a como meio de xeretar em lugares onde, de outra forma,
não poderia ir. Algumas vezes escrevi satiricamente, zombando de acontecimentos como a Semana de
Amizade Germano-Americana, o Baile Fasching da cidade. Em outras escrevi resenhas de
apresentações artísticas e óperas, debates sobre arquitetura e música, relatos de visitantes históricos
de Heidelberg, como Goethe e Mark Twain. Aprendi todos os tipos de coisas interessantes sobre a
cidade, adquiri desembaraço no alemão coloquial, tornei-me celebridade de menor monta na cidade e
no posto do Exército, fui prodigamente tratada a vinhos e jantares nos restaurantes de Heidelberg,
desejosos de se verem comentados por mim. Mas havia disparidade gritante entre minhas colunas
quebradiças e espirituosas sobre os prazeres de Heidelberg e o modo como realmente me sentia, no
tocante à Alemanha. Pouco a pouco tornei-me mais corajosa e consegui colocar meus sentimentos e o
que escrevia em uma espécie de alinhamento incerto. O que aprendi, nessas colunas, foi uma
antevisão do que mais tarde aprenderia em meu trabalho ”verdadeiro” de escrever. Comecei sendo
inteligente, superficial e insincera. Gradualmente, a coragem aumentou. Gradualmente, parei de
tentar me disfarçar. Uma a uma, retirei todas as máscaras: a máscara irônica,
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a máscara da sabidona, a máscara da pseudo-sofisticação, a máscara da indiferença.


Em espionagem pela cidade, à cata de fantasmas, tinha descoberto o fantasma mais sólido de
todos: um anfiteatro nazista aninhado nas montanhas acima de Heidelberg. Ir lá tornou-se obsessão
para mim. Ninguém em Heidelberg parecia admitir a existência do lugar e tal negativa conferia ao
anfiteatro uma atração a mais. Talvez ele apenas existisse em minha imaginação. Fui lá repetidas
vezes.
Tinha sido construído em 1934 ou 35 pelo Corpo de Trabalho da Juventude (dava para imaginá-
los, louros, sem camisa, cantando Deutschland über Alies, erguendo as rochas de arenito roxo do
vale Neckar, enquanto robustas virgens do Reno traziam jarros de cerveja, escura como mijo), e se
achava aninhado na virilha do Heiligenberg, ou montanha Santa, onde um santuário a Odin,
afirmavam, já existira. Chegava ao anfiteatro de carro, cruzando o rio e vinda da cidade antiga,
passando por uma rua larga que dava para os subúrbios, depois subia a montanha Santa,
acompanhando os letreiros até as ruínas da Basílica de Saint Michael. Não havia letreiros indicando o
anfiteatro, o que, por si só, já era bastante sinistro. A estrada serpenteava e subia em meio à mata, a
luz do sol vinha em meio aos pinheiros verde-negros e eu era **76Gretei em um Volkswagen que bufava e
resfolegava, mas ninguém estava jogando migalhas de pão atrás de mim.
Ao subir o morro, pensando em todos aqueles contos infantis, alemães e cruéis, que apresentavam
menininhas assustadas e florestas escuras, o automóvel parava, quando o punha em terceira. Com
medo de rodar para trás, morro abaixo, engatava a segunda e ele parava de novo. Finalmente, tinha
de subir em primeira.
No alto do Heiligenberg havia uma torre pequenina, feita de arenito vermelho, com degraus gastos
e musgosos, serpenteando até um mirante no cume. Eu galgava os degraus escorregadios para ver a
cidade — e lá estava ela: o rio rebrilhando, as matas sarapintadas, o corpo arroxeado do castelo. Por
que os cronistas do Terceiro Reich viam tudo na Alemanha, menos que era bela? Seria isso
moralmente ambíguo demais? A beleza do campo e a fealdade do povo. Dava para enfrentar tal
ironia?
Descendo da torre, eu entrava nas matas, passando por um pequeno restaurante chamado
Waldschenke (ou Taverna da Floresta), onde se viam habitantes do local, de traseiro gordo, tomando
cerveja lá fora, no verão, ingerindo vinho
lá dentro, no inverno. Ali tinha de abandonar o automóvel e continuar pela floresta (as folhas
gemendo sob os pés, pinheiros inclinados por cima, o sol encoberto pela folhagem). Como as fileiras
de assentos estavam cortadas na encosta do morro, a entrada para o anfiteatro era feita por cima. De
repente o teatro se abria por baixo — fileira após fileira de bancos encobertos por vegetação, cheios
de vidros de garrafas, camísas-de-vênus, envoltórios de doce. Na base havia um palco-proscênio
flanqueado por mastros de bandeira para a suástica ou a águia alemã. E, de ambos os lados, entradas
para que os oradores se apresentassem, cercados de guardacostas de camisa marrom.
A parte mais espantosa, no entanto, era o cenário: uma gigantesca tigela orlada por pinheiros,
aninhada na tranqüilidade extraterrena daqueles bosques de histórias da Carochinha. Aquele solo era
sagrado. Odin fora adorado, depois Cristo, depois Hitler. Eu vinha correndo, descendo o morro,
sobre as fileiras de assentos, e me punha em pé no centro exato do palco, recitando minha própria
poesia para uma platéia de ecos.
Certo dia declarei a Horst que queria escrever sobre o anfiteatro.
— Por quê? — perguntou.
— Porque todo mundo finge que ele não existe.
— Você acha que é motivo suficiente?
— Sim.
Fui à biblioteca central de Heidelberg e comecei a procurar os guias da cidade. A maioria tratava
de assuntos rotineiros, apresentando fotografias do Schloss e gravuras antigas dos eleitores do
Palatinado, gente de cara pastosa. Finalmente encontrei um exemplar encadernado pela biblioteca,
em inglês e alemão, mas em páginas opostas, com fotografias baratas, papel amarelado, em preto e
branco, e tipos góticos antigos. A data de publicação era 1937 e a cada dez páginas, mais ou menos,
havia um parágrafo, ou uma fotografia, ou pequeno grupo de palavras, encobertos por um quadrado
de lâmina de carvalho. Esses quadradinhos estavam muito bem colados, de modo que não se podia
levantá-los pelos cantos, mas no instante em que os vi soube que não descansaria enquanto não os
descolasse e descobrisse o que estava por baixo.
Tirei o livro (juntamente com outros quatro, de modo que o bibliotecário não desconfiasse) e voei
para casa,
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77

onde apliquei cuidadosamente vapor nas páginas que me ofendiam, com o bico da chaleira.
Era interessante ver o que o censor resolvera censurar:
Uma fotografia do anfiteatro em toda a sua glória: bandeiras drapejando ao vento, as mãos para
cima em saudação nazista, centenas de pontinhos de luz — representando cabeças arianas — ou,
talvez, cérebros arianos.
Uma passagem descrevendo o anfiteatro como ”Uma das edificações monumentais do Terceiro
Reich, um teatro a céu aberto, que visa unir milhares de compatriotas alemães para as horas festivas
e solenes em uma vivência comum de fidelidade à pátria e inspirações da natureza”.
Um parágrafo descrevendo a Autobahn (agora esburacada e abandonada) entre Heidelberg e
Frankfurt como a ”Criação Gigantesca e Monumental da Nova Era que é tão Promissora”.
Um parágrafo descrevendo a Alemanha como ”Esta nação favorecida pelos deuses e colocada nas
primeiras fileiras das nações grandes e poderosas...”
Fotografia do salão principal de reunião na universidade, com suásticas penduradas de todas as
arcadas góticas. . .
Fotografias da mensa, com suásticas penduradas de todas as arcadas romanas.. .
E assim por diante, por todo o livro.
Fiquei tomada por um frenesi de afronta e indignação moral. Sentei-me à mesa e garatujei uma
coluna furiosa sobre sinceridade, insinceridade e a todo-poderosa história. Pedia que a verdade fosse
posta acima da beleza, a história acima da beleza e a sinceridade acima de tudo. Eu fumegava,
gaguejava, soltava faísca. Indicava aquelas lâminas quadradinhas de carvalho, no guia da cidade,
como exemplo de tudo quanto era odioso na vida e na arte. Eram como folhas de parreira vitorianas,
em esculturas gregas, como roupas do século XIX pintadas sobre os afrescos eróticos do
quattrocento. Aludi ao modo pelo qual Ruskin queimara as pinturas de Turner, feitas nos bordéis de
Veneza, como os tetranetos de Boswell haviam tentado apagar as partes obscenas de seu diário, e
comparei isso ao modo pelo qual os alemães procuravam negar sua própria história. Que pecados de
omissão! E era tudo tão inútil! Nada que fosse humano valia a pena negar. Mesmo se fosse
indizivelmente feio, podíamos aprender com aquilo, não era? Ou não podíamos? Eu nunca
questionei isso,
78
em absoluto. A verdade — tinha a certeza — viria libertar-nos.
Na manhã seguinte datilografei aquilo, em uma fúria, com dois dedos, e corri à cidade para
entregá-lo a Horst. Deixei-o ali, retirei-me. Três horas depois, ele me telefonava.
— Você quer, mesmo, que eu traduza isso? — perguntou.
— Sim — e comecei com uma explosão de afronta, falando de como ele prometera não me
censurar.
— Mantenho minha palavra — prometeu ele —, mas você é jovem e não entende realmente os
alemães.
— Que quer dizer?
— Os alemães amavam Hitler — disse ele, calmamente. — Se fossem sinceros, você não gostaria
do que iria ouvir. Mas eles não são sinceros. Faz vinte e cinco anos que não têm sido sinceros. Nunca
choraram pelos que perderam na guerra e nunca choraram por Hitler. Varreram tudo, puseram
debaixo do tapete. Nem eles sabem quais são seus sentimentos reais. Se fossem sinceros, você os
odiaria mais que à hipocrisia deles.
Começou, então, a contar-me como tinha sido, como correspondente de imprensa, no tempo de
Hitler. Fora cargo semimilitar e todas as notícias eram censuradas pelos superiores. Os elementos da
imprensa sabiam de muitas coisas que eram escondidas ao público em geral e, de modo deliberado,
ocultavam-nas. Tinham conhecimento dos campos de concentração e de morte, das deportações.
Sabiam, e ainda assim produziam propaganda.
— Mas como é que você podia fazer uma coisa dessas? — gritei-lhe.
— E como é que eu não podia?
— Você poderia sair da Alemanha, poderia ter-se juntado à Resistência, poderia ter feito alguma
coisa!
— Mas eu não era um herói, e não queria ser um refugiado. O jornalismo era minha profissão.
— E daí?
— Tudo o que estou dizendo é que a maioria das pessoas não é feita de heróis, e a maioria das
pessoas não é sincera. Não estou dizendo que sou bom ou admirável. Tudo quanto digo é que sou
como a maioria das pessoas.
— Mas por quê? — perguntei, a voz em lamúria.
— Porque sou — respondeu ele. — Não existe motivo. A mim não ocorreu resposta a isso, e
Horst o percebeu.
Comecei a imaginar se também eu era como a maioria das pessoas.
79

Teria sido mais heróica do que elas? Pensei em quanto tempo levara para parar de escrever
colunas inteligentes sobre castelos arruinados, sonetinhos bem-arrumados sobre o pôr-do-sol,
pássaros e nascentes. Mesmo sem o fascismo, eu era insincera. Mesmo sem o fascismo, eu me
censurava. Recusava-me a escrever sobre o que realmente me comovia: meus sentimentos violentos
com relação à Alemanha, a infelicidade em meu casamento, minhas fantasias sexuais, minha
infância, meus sentimentos negativos com relação aos pais. Mesmo sem o fascismo, a sinceridade era
muitíssimo difícil de aparecer. Mesmo sem o fascismo, eu colara lâminas de carvalho imaginárias
sobre certas faixas de minha vida e me recusava terminantemente a fitá-las. Naquele momento resolvi
que não ia fazer-me de criatura coberta de razões com Horst, até aprender a ser sincera comigo
mesma. Talvez nossos pecados de omissão não sejam iguais, mas o impulso, em ambos os casos, foi
o mesmo. A menos que eu pudesse apresentar alguma prova de minha própria sinceridade, ao
escrever, que direito tinha de esbravejar contra a insinceridade dele?
O artigo foi publicado como o escrevi. Horst traduziu com fidelidade. Achei que a cidade de
Heidelberg ia desaparecer em fumaça, mas os autores exageram muito a importância de seu trabalho.
Nada aconteceu. Alguns de meus conhecidos fizeram observações irónicas sobre a minha tendência a
me envolver com as coisas. Foi tudo. Fiquei pensando se alguém chegara a ler o Heidelberg Alt una
Neu. Provavelmente não. Minhas colunas eram como cartas enviadas durante uma greve dos
correios, ou um diário secreto. Eu achara que estava escancarando a porta da história, mas ninguém
chegou, sequer, a piscar os olhos. Toda aquela Sturm una Drang reduziu-se a silêncio. Era, quase,
como publicar versos.
Um relatório do congresso de sonhos
”Eu sou Isadora. Faça-me voar.”
National Airlines
O Doutor Goodlove preside a reunião. Na adega úmida da universidade, anfiteatro de porão e sem
janelas, com estrepitosos bancos de madeira, Adrian adotou seus modos ingleses oficiais (e. sua
mesma camisa velha e esburacada) e está enunciando sílabas (em inglês) para os convidados
(poliglotas) espalhados nas fileiras de bancos.
Ele parece Cristo na Ultima Ceia. À direita e à esquerda encontram-se psicanalistas de roupa
sombria, gravata e paletó. Ele se inclina para a frente, ansioso, na direção do microfone, fumando
cachimbo e resumindo a primeira parte da reunião — que perdemos. Um dos pés, descalço, balança
de um lado para outro, na direção da platéia, enquanto a sandália esfrangalhada descansa embaixo da
mesa.
Faço ver a Bennett que quero sentar-me na fileira de trás, perto da porta — e o mais distante
possível do calor gerado por Adrian. Bennett lança-me olhar azedo, dando a entender que isso não lhe
serve, e marcha para a frente do aposento, onde se afunda ao lado de algum candidato de cabelos
empomadados, vindo da Argentina.
Sento-me na última fileira, olhando para Adrian. Ele olha para mim. Chupa o cachimbo como se
estivesse,a me sugar. Seu cabelo cai sobre os olhos. Ele o arreda dali. Meu cabelo cai sobre meus
olhos, eu o empurro também.
80
81

Ele puxa a fumaça, eu puxo seu cacete fantasma. Pequenos raios parecem ligar nossos olhos — como de
um modo cômico e cósmico. Pequenas ondas de calor parecem ligar nossas bacias, como numa
história em quadrinhos pornográfica. Ou, quem sabe, ele não está olhando para mim, em
absoluto?
— ... é claro que existe, ainda, o problema da dependência total do formando quanto a seu analista
— está dizendo o analista à esquerda de Adrian.
Adrian ri para mim.
— ... dependência total temperada, apenas, pelo senso de realidade do formando, que, levando em
conta a atmosfera kafkiana de sua escola, pode realmente ser muito fraco. .
Kafkiana? Sempre pensei que fosse kafkaesca.
Eu devo ser o primeiro caso de menopausa, aos vinte e nove anos de idade, a ser registrado. Estou
com um calor doido, o rosto dá a impressão de ter ficado rubro, o coração disparou como o motor de
um carro esporte, as faces parecem perfuradas por agulhas minúsculas, em operação de acupuntura.
Toda a metade inferior de meu corpo se liqüefez e está escorrendo devagar para o chão. Já não é caso
de molhar as calças — estou me desmanchando.

Apanho o caderninho e começo a garatujar. ”Meu nome é Isadora Zelda White Stollermen Wing”,
escrevo, ”e oxalá fosse Goodlove.” Risco isso. Depois escrevo:
”Adrian Goodlove Doutor Adrian Goodlove Mrs. Adrian Goodlove Isadore Wing-Goodlove Isadore
White-Goodlove Isadora Goodlove A. Goodlove Mrs. A. Goodlove Madame Isadora Goodlove
Isadora Wing-Goodlove, M.B.E.”
”Sir Adrian Goodlove ”{
Isadora e Adrian Goodlove desejam-lhe um
extasiante
Chanuká
Solstício de inverno”
”Isadora White Wing e Adrian Goodlove estão inteiramente alucinados ao anunciar o nascimento
de sua filha do amor Sigmunda Keats White-Wing-Goodlove”
”Isadora e Adrian
convidam-no para
uma festa quente e familiar
em sua nova toca
35 Flask Walk
Hampstead
Londres NW 3
tragam seus próprios alucinógenos”
Apresso-me a riscar tudo aquilo e virar a página. Desde os meus quinze anos de idade, adolescente
babosa, não me dedico a esse tipo de besteiras.
Após a reunião eu contava conversar com Adrian, mas Bennett me tirou dali antes que Adrian
conseguisse se livrar da multidão em volta do palco. Nós três já estávamos envolvidos em um trio dos
mais barrocos. Bennett percebia meus sentimentos explosivos e fez tudo para me arredar da
universidade o mais cedo possível. Adrian percebia meus sentimentos explosivos e não parava de
olhar Bennett, para ver o que ele sabia. E eu já me sentia como se estivesse sendo dilacerada pelos
dois. Não era culpa deles, é claro. Representavam a luta travada em meu íntimo. A firmeza
cuidadosa, compulsória e entediante de Bennett era meu próprio pânico no que toca às mudanças,
meu medo de ficar sozinha, minha necessidade de segurança. Os modos movimentados de Adrian, seu
jeito de me agarrar o rabo, isso fazia parte de **83mim aquela parte que queria a exuberância, acima de
tudo. Eu jamais conseguira fazer a paz entre as duas metades de mim mesma, e tudo quanto
conseguira fora suprimir uma das metades (por algum tempo) às custas da outra.
82
83

Jamais estivera satisfeita com as virtudes burguesas do casamento, estabilidade e trabalho acima do prazer.
Era curiosa e aventureira demais para me aquietar sob tais restrições, mas também sofria de pavores
noturnos, ataques de pânico por me encontrar sozinha. Por isso sempre terminava vivendo em
companhia de alguém, ou casando-me.
Acreditava, ademais, em ter relação profunda e prolongada com uma pessoa. Deu logo para ver a
inutilidade de pular de uma cama para outra e manter casos rasteiros e rasos com muitas criaturas
rasas. Atravessara a vivência indizivelmente desalentadora de despertar na cama em companhia de
um homem com quem não conseguia falar — e isso também não constituía libertação, era óbvio.
Ainda assim, não parecia existir algum modo de obter o melhor, tanto da exuberância quanto da
estabilidade, na vida. O fato de que mentes maiores do que a minha haviam sopesado essas questões
e não tinham conseguido chegar a respostas muito claras deixava de me trazer qualquer reconforto.
Só me fazia sentir que minhas preocupações eram banais e batidas. Se eu fosse realmente uma
criatura excepcional, estava pensando, não passaria horas preocupando-me à beça com o casamento
e o adultério. Limitar-me-ia a sair, agarrando a vida com ambas as mãos, sem sentir remorso ou
culpa por coisa alguma. Minha culpa vinha, apenas, demonstrar como eu era inteiramente burguesa e
desprezível, todas as minhas preocupações com essa questão serviam apenas para demonstrar como
eu era convencional.
Aquela noite, as festividades se iniciaram com uma festa dos formandos num café de Grinzing. Foi
uma ocasião muitíssimo deselegante. Grandes Knockwursts’ fálicos e Sauerkraut2 foram o principal
prato freudiano. A fim de se entreterem, os formandos vienenses, que davam a festa, entoaram coros
de Quando os analistas entram marchando. . . (ao som de When the saints. ..). A letra era em
inglês, é de presumir-se — ou, pelo menos, em alguma língua que o formando vienense pudesse
considerar inglês.
Todos riram e aplaudiram calorosamente, enquanto eu me limitava a sentar-me ali, como Gulliver
entre os yahoos. Franzia a testa e pensava no fim do mundo,
1 Lingüiças.
2 Chucrute (N. do E )
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íamos todos despencar para um inferno nuclear, enquanto aqueles palhaços ficavam ali sentados, cantando
músicas sobre seus analistas. Tristeza. Não via Adrian em parte alguma.
Bennett debatia o treinamento com outro formando do Instituto de Londres e, com o tempo, travou
conversa com o camarada à minha frente, um analista chileno que estudava em Londres. Tudo em
que pude pensar, quando ele disse que era do Chile, foi em Neruda. Por isso, falamos sobre Neruda.
E eu me entusiasmei tanto, numa de minhas papagaiadas, que lhe disse ter muita sorte, por ser sul-
americano numa época na qual os maiores autores vivos eram sul-americanos. Ao dizê-lo, pensava
em que impostora total eu era, mas ele ficou satisfeito. Era como se o houvesse realmente
cumprimentado a ele. A conversa prosseguiu nessa veia literário-chauvinista absurda. Falávamos
sobre o surrealismo e sua relação com a política sul-americana — da qual não sei patavina. Mas sei
sobre o surrealismo. Surrealismo, poderiam afirmar, é a minha vida.
Adrian bateu-me no ombro, exatamente quando eu falava alguma coisa sobre Borges e seus
labirintos. Conversa sobre o minotauro. Ele estava bem atrás de mim — e chifrudo como o Diabo.
Meu coração deu um pulo, veio parar no meu nariz.
Se eu queria dançar? Claro que queria dançar, e não era só isso.
— Andei procurando você toda a tarde — disse ele. — Onde esteve?
— Com meu marido.
— Ele parece um pouco chateado, não acha? Com que você o fez sofrer assim?
— Com você, acho.
— É melhor ter cuidado — advertiu. — Não deixe que o ciúme levante a cabeça horrenda.
— Já levantou.
Falávamos como se já fôssemos amantes e, de certo modo, éramos mesmo. Se a intenção é tudo,
estávamos tão condenados como Paolo e Francesca. Mas não tínhamos para onde ir, nenhum modo
de escapulir-nos dali, afastando-nos das pessoas que nos vigiavam, de modo que dançamos.
— Eu não sei dançar muito bem — disse ele.
E era verdade, não sabia. Mas compensava isso, sorrindo como se fosse o próprio deus Pan.
Arrastava os casquinhos’fendidos. Eu ria tendendo para o histérico.
— Dançar é como foder — asseverei.
85

Não importa a aparência da coisa. . . é só concentrar a atenção em como se sente.


Não era eu a audaciosa? Que atitude essa, de mulher do mundo, afinal? Achava-me quase morta
de medo.
Fechei os olhos e rodopiei dentro da música. Esbarrei, pisei, ondulei. Em algum lugar, lá nos dias
antigos do tuíste, ocorrera-me de repente que ninguém sabia como dançar aquilo — assim sendo, por
que encabular? Na dança social, como na vida social, chutzpah’ é tudo. A partir de então tornei-me
uma ”boa dançarina”, ou, pelo menos, gostava daquilo. Era mesmo como foder — tudo questão de
ritmo e suor.
Adrian e eu dançamos os cinco ou seis números seguintes — até que ficamos esgotados,
encharcados e prontos a irmos juntos para casa. Foi quando dancei com um dos formandos
austríacos, para salvar as aparências — que se tornavam cada vez mais difíceis de salvar. Depois
dancei com Bennett, que sabe dançar maravilhosamente.
Estava saboreando o fato de que Adrian me observava dançar com meu marido. Bennett dançava
muito melhor do que Adrian, afinal, e tinha exatamente o tipo de graça que faltava a ele. Adrian ia
como que sacudindo, como um cavalo puxando carroça, Bennett todo suavidade e deslizamento, um
verdadeiro Jaguar XKE. E era tão miseravelmente agradável. Desde que Adrian surgira em cena
Bennett se tornara tão galante e solícito. . . estava me cantando outra vez, de ponta a ponta. Isso
tornava as coisas muito mais difíceis. Se, ao menos, ele se mostrasse um bom filho da puta! Se, ao
menos, ele fosse como aqueles maridos de romance: detestáveis, tirânicos, merecendo serem
corneados. Em vez disso, mostrava-se uma doçura. E o inferno da coisa é que a doçura dele não
diminuía minha fome por Adrian, nem um pouquinho.
Essa fome provavelmente não tinha relação alguma com Bennett. Por que tinha de ser isto ou
aquilo? Eu simplesmente queria os dois. Era na escolha que ficava a impossibilidade.
Adrian levou-nos de carro, de volta ao hotel. Quando descíamos o morro tortuoso, vindos de
Grinzing, falou sobre os filhos, poeticamente intitulados Anais e Nikolai, que moravam em sua
companhia. Tinham dez e doze anos de idade. Os outros dois, gêmeos, não disse como se chamavam,
viviam com a mãe, em Liverpool.
— É duro, para meus filhos, não ter uma mãe — comentou
' Em iídiche significa audácia. (N. do E.)
86
—, mas eu sou uma mamãe bem boa para eles, pessoalmente. Gosto até de cozinhar. Sei
fazer um curry bom paca.
Seu orgulho por ser boa dona-de-casa veio, ao mesmo tempo, encantar-me e divertir-me. Eu estava
sentada no banco da frente do Triumph, ao lado de Adrian. Bennett se achava sentado no banquinho
de trás. Se, ao menos, ele pudesse desaparecer — sair flutuando pelo carro aberto, sumir em meio da
mata. E, é mais do que claro, comecei a me odiar por desejar isso. Por que o negócio era tão
complicado? Por que não podíamos ser bons amigos e abrir o jogo? ”Com licença, querido, enquanto
eu vou dar uma trepada com este belo desconhecido.” Por que não podia ser simples, sincero, sem
seriedade? Por que era preciso arriscar toda a vida por uma mísera foda sem zíper?
Seguimos até o hotel e ali nos despedimos. Que coisa hipócrita, subir com um homem com quem
não se quer foder, deixar aquele a quem se quer, e depois, em estado de grande animação, foder
aquele que não se quer foder, ao mesmo tempo em que se finge que é aquele que se deseja. A isso se
chama fidelidade. A isso se chama monogamia. A isso se chama ”o mal-estar na civilização”.
Na noite seguinte tivemos a abertura oficial do congresso, iniciada por um coquetel ao crepúsculo,
no quintal do Hofburg — um dos palácios setecentistas de Viena. O interior do edifício fora
reformado de modo que os aposentos públicos trescalavam, todos eles, o encanto institucional das
salas de jantar dos motéis americanos, mas o pátio ainda continuava envolto no nevoeiro do século
XVIII.
Chegamos àquela hora rubra — oito horas, em noite de julho. Mesas compridas lá estavam,
enquadrando as orlas do pátio. Garçons seguiam em meio à multidão, suspendendo as bandejas com
taças de champanha (a doce Sekt alemã, como se verificou em seguida, pobres de nós). Até os
analistas brilhavam, àquele crepúsculo cor de malva. Rose Schwamann-Lipkin usava suéter de
miçangas de Hong Kong, cor-de-rosa, saia de cetim vermelho, e suas sandálias ortopédicas mais
elegantes. Judy Rose deslizava por ali em um vestido sem sutiã, feito de lamê prateado. Até o Doutor
Schrift usava um paletó de veludo cor de ameixa, e gravata borboleta de cetim, grande, cor-de-rosa e
de azaléia. E o Doutor Frommer estava de fraque e cartola.
87

Bennett e eu seguimos em meio àquela gente, procurando alguém que conhecêssemos. Assim
vagamos ao léu, até que um garçom distribuindo champanha baixasse gentilmente a bandeja para
nós, dando-nos algo a fazer. Eu bebi depressa, contando embriagar-me de imediato — o que não é
truque, em meu caso. Em cerca de dez minutos, seguia em meio àquele nevoeiro acima mais
purpúreo, vendo borbulhas de champanha nos cantos dos olhos. Devia estar procurando o toalete de
senhoras (mas, na verdade, é claro, procurava Adrian). E encontrei milhares deles, estendendo-se até
a infinidade, em um corredor barroco de espelhos compridos, diante do toalete das mulheres.
Ele tremelicava, nos espelhos. Um número infinito de Adrians em calças de veludilho bege e
camisas olímpicas cor de ameixa, jaquetas de couro castanho. Um número infinito de unhas dos pés
sujas, em número infinito de sandálias indianas. Um número infinito de cachimbos de espuma-do-mar
entre os belos lábios encurvados. Minha foda sem zíper? Meu homem debaixo da cama! Multiplicado
como os amantes em O ano passado em Marienbad. Multiplicado como os retratos que Andy
Warhol fez de si próprio. Multiplicado como os mil e um Budas no templo em Quioto. (Cada Buda
tem seis braços, cada braço tem um olho a mais. . . quantos paus tinham esses milhões de Adrians? E
cada cacete simbolizava a sabedoria infinita e a compaixão infinita de Deus?)
— Olá, patinha — diz ele, voltando-se para mim.
— Tenho uma coisa para você — digo, estendendo-lhe o livro antigrafado que esteve comigo o dia
todo. As orlas das páginas estão começando a desgastar-se, por causa de minhas mãos suadas.
— Meu benzinho! — e ele aceitava o livro. Damos os braços e começamos a descer o corredor
cheio de espelhos. ”Galeotto fu il libro e chi Io scrisse”, como diria o meu velho amigo Dante. Os
poemas pediam amor, sua autora também. O livro de meu corpo estava aberto, e o segundo círculo
do inferno não se achava longe.
— Você sabe — disse eu —, é provável que nunca mais voltemos a nos ver.
— Talvez seja o motivo pelo qual estamos fazendo isso — contrapôs ele.
Seguimos, saindo do palácio, indo para outro pátio que é agora usado como local de
estacionamento. Entre os fantasmas de Opels e Volkswagens e Peugeots, abraçamo-nos. Boca a boca
e barriga com barriga. Adrian deve ter o beijo mais
úmido de toda a história. A língua dele está por toda a parte, como o oceano. Nós navegamos,
afastando-nos. Seu pênis (enorme, dentro das calças de veludilho) é a chaminé vermelha e alta de um
transatlântico. E eu estou gemendo em volta dele, como o vento do oceano. Estou dizendo todas as
coisas tolas que a gente diz, quando está agarrando alguém num estacionamento, procurando de
algum modo exprimir um anseio que é inexprimível — talvez só na poesia. E tudo sai tão desastrado.
Amo tua boca. Amo teu cabelo. Amo tuas orelhas. Eu te quero. Te quero. Te quero. Tudo para evitar
dizer: Eu te amo. Por que isso é quase bom demais para ser amor. Delicioso e gostoso demais para
ser algo tão sério e sóbrio quanto o amor. Toda a sua boca se liqüefez. A língua dele tem sabor
melhor do que o de um mamilo para o recém-nascido. (E não me venha com qualquer interpretação
psicanalítica, Bennett, porque eu a jogo de volta, bem em cima de você. Infantil. Regredido.
Basicamente incestuoso. Não há dúvida. Mas eu daria a vida, só para continuar a beijá-lo assim, e
como é que você vai analisar isso?) Entrementes, ele segurou minha bunda e a agarrou com ambas as
mãos. Colocou meu livro sobre o pára-lama de um Volkswagen e agarrou minha bunda, em vez do
livro. Não é para isso que eu faço versos? Para ser amada? Já não sei mais. Nem mesmo sei meu
nome.
— Nunca vi bunda igual à sua — afirma ele, e essa observação me faz sentir melhor do que se
houvesse acabado de ganhar o prêmio Nacional do Livro. O prêmio Nacional da Bunda — é o que eu
quero. O prêmio Transatlântico da Bunda de 1971.
— Eu me sinto como Mrs. América, no Congresso dos Sonhos — afirmo.
— Você é Mrs. América no Congresso dos Sonhos — proclama ele —, eu quero amá-la o mais
possível, e depois deixá-la.
Homem prevenido vale por dois, afirmam. Mas quem está dando ouvidos? Só consigo ouvir as
batidas de meu próprio coração.
O resto da noite foi um sonho de reflexos, taças de champanha, jargão psiquiátrico embriagado.
Esgueiramo-nos de volta, passando pelo corredor de espelhos. Estávamos tão agitados que mal nos
demos ao trabalho de fazer qualquer plano sobre quando voltaríamos a nos encontrar.
Bennett sorria, com o estudante de cabeça vermelha, da Argentina, pelo braço. Tomei outra taça
de champanha e dei a volta com Adrian.
89

Ele me apresentava a todos os analistas londrinos e tagarelava sobre meu artigo,


que ainda não fora escrito. Eles consentiriam em serem entrevistados? Poderia interessá-los em meu
esforço jornalístico? Por todo o tempo estava com o braço passado por minha cintura e às vezes a
mão em minha bunda. Se não estávamos sendo indiscretos, não estávamos sendo nada. Todo mundo
percebia. O analista dele, meus ex-analistas, o analista de seu filho, o analista de sua filha. O ex-
analista de meu marido. Meu marido.
— É Mrs. Goodlove? — perguntou um dos analistas londrinos mais idosos.
— Não — respondeu Adrian —, mas eu bem queria que fosse. Se eu tiver muita, mas muita sorte,
mesmo, pode ser.
Eu flutuava. A cabeça estava cheia de champanha e conversas matrimoniais. Minha cabeça estava
cheia, pensando em deixar a velha e desengraçada Nova York em troca da atraente e avançada
Londres. Eu perdera a cabeça.
”Ela simplesmente deu o fora com algum inglês”, dava para ouvir o comentário de minhas amigas
em Nova York, comentários esses não destituídos de inveja. Estavam todas elas amarradas, com
filhos, babás, cursos de graduação, lecionando, analistas e pacientes. E ali estava eu, voando nos
céus purpúreos de Viena, em minha vassoura emprestada. Eu era aquela com quem contavam para
escrever histórias engraçadas sobre seus ex-amantes e namorados. Eu era aquela a quem invejavam
em público e de quem riam, em particular. Dava para imaginar o relato desses acontecimentos em
Class News:
”Isadora White Wing e seu novo marido, o Doutor Adrian Goodlove, estão vivendo em Londres,
perto de Hampstead Heath — não confundir com Heathcliff —, para a informação de todos os que se
formaram em matemática. Isadora adoraria receber notícias de suas colegas, no exterior. Está muito
empenhada em escrever um romance e um novo livro de poemas, e no tempo de folga comparece ao
Congresso Psicanalítico Internacional. . .”
Todas as minhas fantasias incluíam o casamento. Assim que me imaginava fugindo de um homem,
antevia minha ligação com outro. Era como um barco que sempre tinha um
90
porto onde tocar. Simplesmente não conseguia imaginar-me sem um homem. Sem homem, sentia-
me tão perdida quanto um cachorro sem dono; desarraigada, sem rosto, indefinida.
Mas o que era tão bom assim, no casamento? Eu estivera casada uma vez e outra. O casamento
apresentava pontos positivos, mas também tinha os negativos. As virtudes do casamento, em sua
maior parte, eram negativas. Estar solteira em um mundo de homens era coisa tão complicada que
qualquer outra coisa tinha de ser melhor. O casamento era melhor. Mas não muito. Esperteza
miserável, pensava eu, o modo como os homens haviam tornado a vida tão intolerável para as
mulheres solteiras que a maioria delas chegava até a aceitar os casamentos ruins. Quase tudo é
melhor do que lutar pela própria manutenção em emprego de salário baixo, repelindo homens
destituídos de atrativos no tempo de folga, enquanto se procura desesperadamente apanhar os
atraentes. Embora eu não alimente dúvidas de que ser solteiro representa a mesma solidão para o
homem, isso não apresenta o peso extra de ser claramente perigoso, e não implica automaticamente
pobreza e a posição indubitável de pária social.
A maioria das mulheres se casaria, se soubesse o que o casamento significa? Penso nas jovens que
seguem os maridos, onde quer que eles vão, acompanhando seus empregos. Penso nelas descobrindo-
se repentinamente a muita distância dos amigos e da família. Penso nelas vivendo em lugares onde
não podem trabalhar, onde não sabem falar o idioma. Penso nelas fazendo criancinhas, por causa de
sua solidão, tédio, e sem terem noção do motivo. Penso em seus homens sempre atarantados e
esgotados por lutarem para se fazer. Penso neles vendo-se menos, após o casamento, do que antes.
Penso neles caindo na cama cansados demais para trepar. Penso neles ainda mais distanciados no
primeiro ano de casamento do que puderam imaginar que duas pessoas podiam distanciar-se, quando
se cortejavam. E depois penso nas fantasias que começam. Ele está de olho nas pós-ninfetas de
catorze anos de idade, que vestem biquinis. Ela cobiça o técnico de TV. O bebé enjoa e ela vai traçar
o pediatra. Ele está fodendo com sua secretariazinha masoquista, que lê o .Cosmopolitan e se
considera quente. Não se trata de saber quando começou o erro, mas de saber quando esteve certo.
Um quadro contristador. Nem todos os casamentos são assim. Como exemplo, o matrimónio com
que eu sonhava, em minha adolescência idealista (quando achava que
Beatrice
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e Sidney Webb, Virgínia e Leonard Woolf tinham casamentos perfeitos). O que sabia eu? Queria
”mutualismo total”, ”companheirismo”, ”igualdade”. Eu sabia como os homens ficam sentados,
colados ao jornal, enquanto a mulher tira a mesa? Como fingem ser desastrados, quando se pede a
eles para preparar o suco de laranja gelado? Como trazem amigos para casa e contam com que você
os sirva, mas se sentem com direito a fazerem birra e irem para outro aposento, se você trouxer
amigas para casa? Que pequena adolescente idealista poderia imaginar tudo isso, sentada lendo
Shaw, Virginia Woolf e os Webbs?
Conheço alguns casamentos bons. Na maior parte, são segundos casamentos, casamentos nos
quais ambos ultrapassaram essa bosta de eu-Tarzan, você-Jane e estão apenas tentando atravessar os
dias, ajudando-se mutuamente, sendo bons um com o outro, fazendo o trabalho que apareça e não se
preocupando muito por saber quem faz o quê. Alguns homens alcançam esse estado de coisas
deliciosamente repousante por volta da idade de quarenta, ou depois de dois divórcios. Talvez os
casamentos sejam melhores quando se está na meia-idade, quando toda besteira desaparece e a gente
compreende que é preciso amar um ao outro, porque os dois vão morrer, de qualquer modo.
Estávamos no maior porre (eu, porém, mais que todos), quando nos amontoamos no Triumph
verde de Adrian e partimos para uma discoteca. Éramos cinco, feito sardinhas naquele carro
minúsculo: Bennett, Marie Winkleman (uma colega minha de faculdade, busto grande, que Bennett
como que apanhara, na festa — ela era psicóloga), Adrian (que dirigia, por assim dizer), eu (cabeça
para trás como a primeira Isadora, após o estrangulamento), e Robin PhippsSmith (o formando
inglês de cabelo encaracolado e armação de óculos alemã, que falava todo o tempo, dizendo como
detestava ”Ronnie” Laing — algo que o consagrou, aos olhos de Bennett). Adrian, por outro lado,
era seguidor de Laing, estudara com ele, e sabia fazer imitações excelentes de seu sotaque escocês.
Pelo menos eu achei que eram excelentes — se bem que não soubesse como Laing falava.
Seguimos em ziguezagues pelas ruas de Viena, calçadas de paralelepípedos, passando sobre trilhos
de bonde, cruzando o Danúbio enlameado e marrom.
Não sei qual o nome da discoteca, nem a rua, ou coisa alguma.
92
Entro às vezes em situações nas quais não reparo em nada, na paisagem, a não ser nos
seus habitantes masculinos e quais órgãos meus (coração, estômago, mamilos, pomba) eles fazem
palpitar. A discoteca era prateada. Papel cromado nas paredes. Luzes brancas ofuscantes. Espelhos
por toda parte. As mesas de vidro estavam sobre plataformas cromadas. Os assentos eram de couro
branco. Rock de estourar os ouvidos. Vamos dar ao lugar o nome que bem nos agradar: Sala de
Espelhos, Sétimo Círculo, Mina de Prata, Balão de Vidro. Sei, pelo menos, que o nome era inglês.
Muito atual e muito fácil de esquecer.
Bennett, Marie e Robin disseram que iam sentar-se para beber. Adrian e eu começamos a dançar,
e nossos rodopios embriagados se repetiam nos espelhos sem fim. Finalmente procuramos um
cantinho entre dois espelhos onde pudéssemos beijar-nos, observados apenas pelos números infinitos
de nós mesmos, refletidos nos espelhos. Tive a sensação distinta de beijar minha própria boca —
como quando estava com nove anos e costumava umedecer um pedaço do travesseiro com saliva, e
depois beijá-lo, procurando imaginar como era o ”beijo de alma”.
Quando começamos a procurar a mesa onde se achavam Bennett e os demais, encontramo-nos
repentinamente perdidos em uma série de caixas e compartimentos com espelhos, que davam uns
para os outros. Continuamos andando, rumo a nós mesmos. Como em sonho, nenhum dos semblantes
às mesas pertencia a gente que conhecêssemos. Olhamos bem, e o pânico crescia. Senti que tinha sido
transportada para algum mundo de espinhos onde, como a Rainha Vermelha, podia correr sem parar,
e terminava indo para trás. Bennett não se encontrava em parte alguma.
Num relance, percebi que ele tinha saído com Marie e a levara para casa, para a cama. Fiquei
apavorada. Finalmente o induzira àquilo. Era o meu fim. Eu passaria o resto da vida solitária, sem
marido, sem filhos e deixada de lado.
— Vamos embora — propôs Adrian. — Eles não estão aqui. Foram embora.
— Talvez não tenham arranjado uma mesa e estejam esperando lá fora.
— Podemos olhar — disse ele.
Mas eu sabia qual era a verdade. Fora abandonada. Bennett me deixara de uma vez por todas.
Naquele exato instante,
93
estava segurando o rabo enorme e caído de Marie. Estava fodendo-lhe a mente freudiana.
Em minha primeira viagem a Washington, com dez anos de idade, eu me separara da família
enquanto fazíamos uma visita ao edifício do FBI. Eu me perdera no edifício do FBI, logo ali.
Departamento de Pessoas Desaparecidas. Enviem alarme.
Isso aconteceu no ápice da era McCarthy, e um agente do FBI, lábios apertados, explicava
diversas coisas a respeito de pegar comunistas. Eu me detinha diante de uma vitrina, sonhando ao ver
os espécimes de impressões digitais, quando o grupo em visita fez uma volta e desapareceu. Fiquei
por ali vagando, olhando meu reflexo nas vitrinas de exposição e tentando dominar o pavor. Jamais
seria encontrada. Era mais difícil de achar do que as impressões digitais de um criminoso com luvas.
Seria diabolicamente interrogada por agentes do FBI, cabelos à escovinha, até confessar que meus
pais eram comunistas (tinham sido comunistas, anteriormente, na verdade) e todos nós íamos
encerrar os dias como os Rosenbergs, cantando Goa bless America em nossas celas úmidas e
imaginando como seria a eletrocussão.
A essa altura, comecei a gritar. Gritei até que todo o grupo em visita voltasse atrás e me
encontrasse, bem ali — num aposento cheio de pistas.
Mas não podia gritar, agora. Ademais, o rock era tão alto que ninguém teria ouvido. De repente,
eu queria Bennett, tanto quanto quisera Adrian, alguns minutos antes. E Bennett dera o fora. Saímos
da discoteca e fomos para o automóvel de Adrian.
Aconteceu uma coisa engraçada, quando estávamos a caminho da pensão dele, ou melhor, dez
coisas engraçadas sucederam. Nós nos perdemos dez vezes. E em cada uma dessas vezes, foi um
acontecimento absolutamente ímpar — não os mesmos enganos que se repetissem. Agora que
estávamos presos um ao outro, por toda a eternidade, dar uma trepada imediatamente não parecia tão
importante quanto antes.
— Eu não vou lhe falar de todos os outros homens com quem já fodi — disse eu, sendo corajosa.
— Ótimo — respondeu ele, acariciando-me o joelho. Em vez disso, portanto, passou a me falar
das outras mulheres que ele fodera. Belo negócio.
Para começar, havia May Pei, a chinesa que Bennett o fizera lembrar.
94
— Ela pode dar, e pode ser que não dê — comentei eu.
— Não pense que eu não cogitei nisso.
— Tenho certeza de que sim. Mas a questão é a seguinte. . . ela deu?
— Bem, eu dei. Ela me fodeu por muitos anos, depois disso.
— Quer dizer que depois de parar de vê-lo, ela continuou te fodendo. Um bom truque. A foda
fantasma. Você podia patentear isso, sabe? É um jeito de fazer com que as pessoas sejam fodidas por
personalidades famosas no passado. Napoleão, Carlos II, Luís XIV. . . uma espécie de Doutor Fausto,
fodendo Helena de Tróia. . . — eu adorava falar besteiras com ele.
— Cale a boca, pombinha. . . e deixe-me acabar de falar sobre May. . . — e logo, voltando-se
para mim, enquanto os freios rangiam: — Meu Deus. . . você é bonita...
— Fique com esses olhos de fodedor na estrada — disse eu, deliciando-me.
Minhas conversas com Adrian sempre pareciam citações de Através do espelho, como a seguinte:
Eu: ”Parece que estamos andando em círculos”.
Adrian: ”Então vamos circular por aí”.
Ou:
Eu: ”Estou com dor de barriga. Você tem um remédio?”
Adrian: ”Tenho, mas só dou enquanto a barriga não crescer”.
Ou:
Eu: ”Divorciei-me de meu primeiro marido principalmente porque ele era doido”.
Adrian (franzindo as sobrancelhas lainguianas): ”A mim isso parece um bom motivo para casar
com alguém, e não para pedir divórcio”.
Eu: ”Mas ele assistia à televisão todas as noites”.
Adrian: ”Ah, entendo, então, por que você se divorciou dele”.
Por que May Pei fodeu a vida de Adrian?
— Ela me deixou na mão e voltou para Cingapura. Tinha um filho lá, vivendo com o pai, e a
criança sofreu um acidente de automóvel. Ela teve de voltar, mas podia ter
escrito,
95
ao menos. Por meses seguidos andei de um lado para outro, achando que o mundo era feito
de pessoas mecânicas. Nunca fiquei tão abatido. A cadela finalmente casou-se com o pediatra que
tratou do menino. . . um sujeito americano.
— Sendo assim, por que você não foi buscá-la, se se importava tanto?
Ele me olhou como se eu houvesse endoidado, como se coisa assim jamais lhe houvesse passado
pela cabeça.
— Ir atrás dela? Por quê? (E queimou a borracha dos pneus, fazendo a volta, mais uma volta
errada.)
— Porque você a amava.
— Eu nunca usei essa palavra.
— Mas se você se sentia assim, por que não foi?
— Meu trabalho é como o de criar galinhas — explicou. — Outra pessoa tem de estar lá para
retirar a bosta e dar milho a elas.
— Bosta de vaca — retorqui. — Os médicos sempre usam seu trabalho como desculpa para não
serem humanos. Conheço essa rotina.
— Não é bosta de vaca, patinha, é bosta de galinha.
— Não é muito engraçado — disse eu, rindo. Depois de May Pei, houve toda uma assembleia da
ONU,
pequenas da Tailândia, Indonésia, Nepal. Houve também uma africana de Botswana e duas
psicanalistas francesas, e uma atriz francesa que ”passara tempo em uma lata”.
— Uma o quê?
— Uma lata. . . você sabe, uma casa de doidos. O hospício, é o que quero dizer.
Adrian idealizava a loucura de modo tipicamente lainguiano. Os esquizofrênicos eram uns
verdadeiros poetas. Todo lunático assanhado era Rilke. Ele queria que eu escrevesse livros com ele.
Sobre os esquizofrênicos.
— Eu sabia que você queria alguma coisa de mim — observei.
— Certo. É o seu dedo indicador que quero usar, bem como seu polegar, tão contrário a ele.
— No teu.
Nós nos xingávamos mutuamente e sempre, como se tivéssemos dez anos de idade. Era nosso
único meio de exprimir afeição.
O retrospecto histórico de mulheres, na vida de Adrian, vinha praticamente capacitá-lo a participar
de minha família. Nunca foder uma mulher da família parecia ser o seu lema. Sua namorada atual
(que agora tomava conta dos garotos,
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ao que fiquei sabendo) era o que mais se aproximava de uma conquista inglesa que fizera: uma moça
judia, de Dublin.
— Molly Bloom? — indaguei.
— Quem?
— Você não sabe quem é Molly Bloom??? — e eu não podia acreditar. Aquela pronúncia inglesa
tão educada, e ele nem mesmo lera Joyce. (Eu também pulei partes compridas do Ulysses, mas digo a
todas as pessoas que é meu livro favorito. O mesmo acontece com Tristram Shandy.)
— Sou anarfa — explicou ele, muito satisfeito consigo. Mais um médico burro, pensei eu. Como a
maioria dos americanos, eu supunha ingenuamente que o sotaque inglês significasse boa educação.
Ah, bem, os literatos muitas vezes se revelam, com tanta freqüência, filhos da puta tão grandes!
Ou, então, impostores. Mas eu estava desapontada. Como ocorrera quando meu analista dissera
nunca ter ouvido falar em Sylvia Pia th. Lá estivera eu, falando dias seguidos sobre o suicídio dela, e
como queria escrever grande poesia, e enfiar a cabeça no forno. Por todo o tempo ele devia estar
pensando em bolo de café congelado.
Acreditem ou não, a namorada de Adrian era Esther Bloom — e não Molly Bloom. Era morena e
tinha busto, e sofria, ao que ele afirmou, ”de todas as preocupações judaicas. Muito sensual e
neurótica”. Uma espécie de princesa judaica de Dublin.
— E sua esposa. . . como era ela? — (Estávamos tão completamente perdidos, a essa altura, que
ele se aproximou da calçada e parou o carro.)
— Católica — explicou —, uma papista de Liverpool.
— O que ela fazia?
— Parteira.
Era informação bastante estranha. Eu não sabia como reagir a tanto.
”Tinha sido casado com uma parteira católica de Liverpool”, imaginava-me escrevendo. (No
romance, trocaria o nome de Adrian por algo mais exótico, e o faria muito mais alto.)
— Por que se casou com ela?
— Porque fazia com que eu me sentisse culpado.
— Grande motivo.
— Bem, foi, mesmo. Eu era um filho da puta cheio de culpa, na escola de medicina. Um autêntico
achado para a ética protestante. Quer dizer, lembro-me de certas
pequenas
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que faziam que me sentisse bem. . . mas sentir-me bem me assustava. Havia uma pequena. . . ela
alugava um sótão enorme e convidava todo mundo para vir foder com todo mundo. Fazia que me
sentisse bem. . . de modo que eu, naturalmente, não tinha confiança nela. E minha esposa fazia que
me sentisse culpado. . . de modo que, é natural, casei-me com ela. Eu não confiava no prazer, nem
nos meus impulsos. Ficava assustadíssimo, quando estava feliz. E quando me assustei. . . casei-me.
Exatamente como você, meu amor.
— O que leva você a pensar que me casei por medo? — e eu me indignava, porque ele tinha razão.
— Oh, você provavelmente descobriu-se fodendo com camaradas demais, sem saber dizer não, e
até gostando às vezes, e depois sentiu-se culpada por se divertir. Nós estamos programados para o
sofrimento, e não para a alegria. O masoquismo é embutido em nós, em idade bastante tenra. Você
deve trabalhar e sofrer. . . e o problema é que você acredita. Bem, tudo isso é besteira. Levei trinta e
seis anos para compreender que besteirada tudo isso é, e se existe uma coisa que quero fazer por você
é ensinar-lhe o mesmo.
•— Você tem todo tipo de planos para mim, não acha? Quer me ensinar acerca da liberdade, a
respeito do prazer, quer escrever livros comigo, converter-me. . . Por que os homens sempre querem
me converter? Devo ter cara de criatura a ser convertida.
— Você tem a cara de quem quer ser salva, patinha. Você praticamente pede. Você revira esses
olhos grandes e míopes para mim, como se eu fosse o Grande Papai Psicanalista. Você atravessa a
vida procurando um professor, e quando encontra fica tão dependente dele que cresce e passa a odiá-
lo. E então, espera que ele demonstre suas fraquezas, e é ocasião para desprezá-lo, por ser humano.
Você fica sentada aí, todo o tempo, anotando as coisas, imaginando as pessoas, como livros ou
antecedentes históricos. . . conheço esse brinquedo. Você diz a si própria que está coletando material.
Diz a si própria que está estudando a natureza humana. A arte acima da vida, em qualquer ocasião.
Outra versão da besteirada puritana. Só que você tem uma bossa nova. Você acha que é hedonista,
porque sai e circula comigo. Mas é a maldita velha ética do trabalho, a mesma de sempre, porque só
está pensando no que vai escrever a meu respeito. Por isso, trata-se realmente de trabalho,
**98n’est-ce
pás? Você pode foder-me e chamar isso de poesia. Muito inteligente. Você se engana
magnificamente, desse modo.
98
— Você é, mesmo, uma autoridade em descarregar análises de meia pataca, não é? Um verdadeiro
médico de birutas, como aparece na televisão.
Adrian riu.
— Olhe, patinha, eu sei a seu respeito a partir de mim mesmo. Os analistas jogam do mesmo jeito.
Eles são exatamente como escritores. Tudo está a seu alcance, tudo é um caso a estudar. Da mesma
forma, a morte nos apavora. .. exatamente como aos poetas. Os médicos odeiam a morte. .. é o
motivo pelo qual entraram na medicina. E precisam estar ajudando nas coisas todo o tempo, manter-
se ocupados, só para provarem a si próprios que não estão mortos. Eu conheço seu joguinho, porque
também o pratico. Não é tão misterioso quanto você julga. Na verdade, você é inteiramente
transparente.
Enfurecia-me o fato de que me visse com mais cinismo do que eu via a mim mesma. Sempre acho
que estou me protegendo contra as opiniões alheias a meu respeito, adotando o ponto de vista mais
deformado possível a meu próprio respeito. Depois compreendo, de repente, que mesmo essa opinião
deformada é autolisonjeira. Quando me ferem, entro em francês de ginásio:
— Vous vous moquez de mói,
— Está certíssima que sim. Olhe. . . você está sentada comigo, aqui, agora, porque sua vida é
insincera e seu casamento já morreu, ou está morrendo, todo perfurado de tantas mentiras. As
mentiras de sua própria invenção. Você tem de salvar-se, de qualquer jeito. É a sua vida que você
está fodendo, não a minha.
— Pensei que você tivesse dito que eu queria que você me salvasse.
— E quer, mas eu não vou ser pego desse jeito. Vou faltar-lhe de algum modo principal, e você
começa a me odiar ainda mais do que odeia a seu marido. . .
— Eu não odeio meu marido.
— Certo. Mas ele a entedia. . . o que é pior, não acha? Não respondi. Estava, agora, realmente
deprimida. O
champanha perdia o efeito.
— Por que você tem de começar a me converter, antes mesmo de me foder?
— Porque é isso que você quer, na realidade.
— Tolice, Adrian. O que eu quero, mesmo, é trepar. E deixe em paz a minha maldita mente —
mas eu sabia que mentia.
99

— Madame, se você quer uma trepada, vai tê-la — e ele ligou o motor do carro. — Gosto muito de
chamá-la de madame, sabia?
Mas eu não estava com o diafragma, e ele não teve a ereção, e quando, finalmente, chegamos à
pensão, estávamos mais do que desanimados, por termos errado o caminho tantas vezes.
Deitamo-nos na cama dele, segurando-nos mutuamente. Examinamos a nudez um do outro, com
ternura e divertimento. A melhor coisa em ir para a cama com um novo homem, depois de todos
esses anos de casamento, era a redescoberta do corpo dele. O corpo do marido era praticamente como
o nosso. Tudo conhecido. Todos os cheiros e sabores, as rugas, os cabelos, os sinais de nascença.
Mas Adrian se apresentava como se fosse um país novo. Minha língua fez uma tournée sem
orientação, por todo ele. Comecei em sua boca e fui descendo. O pescoço largo, que era bronzeado de
sol. O peito, coberto de pêlos vermelhos encaracolados. A barriga, um pouco avolumada — e
diferente da magreza morena de Bennett. Seu pênis rosado e corado, que tinha leve gosto de urina e
se recusava a ficar em pé, em minha boca. Seus ovos muito rosados e peludos, que pus na boca, um
de cada vez. As coxas musculosas, os joelhos bronzeados. Os pés. (Que não beijei.) Suas unhas sujas
nos dedos dos pés. (O mesmo.) Depois recomecei tudo aquilo. Recomecei por sua linda boca úmida.
— Onde foi que você arranjou esses dentinhos pontiagudos?
— É que minha mãe era um arminho.
— O quê?
— Um arminho.
— Oh — eu não sabia o que isso significava, nem me importava. Estávamos saboreando um ao
outro. Achávamonos em posições invertidas, de cabeça para baixo, a língua dele tocava música em
minha pomba.
— Você tem uma pomba linda — comentou — e a maior bunda que vi até hoje. Uma pena que
não tenha tetas.
— Obrigada.
Continuei chupando, mas assim que ele endurecia, amolecia de novo.
— Eu não estou querendo, na realidade, foder com você.
— Por quê?
— Não sei. . . não sinto vontade.
100
Adrian queria ser amado por si mesmo, e não por seus cabelos amarelos. (Ou cacete róseo.) Na
verdade, era muito comovente. Ele não queria ser uma máquina fedorenta.
— Eu sei foder muito bem, quando tenho vontade — afirmou, em tom de desafio.
— Claro que sabe.
— Agora, você está com essa maldita voz de assistente social — observou.
Eu tinha sido assistente social duas vezes antes, na cama. Uma delas com Brian, quando foi solto
da ala de birutas, e estava cheio demais de Thorazine (e esquizóide demais) para trepar. Por um mês
havíamos ficado na cama, de mãos dadas. ”Como Hansel e Gretei”, dissera ele. Foi uma doçura, na
verdade. Aquilo que se imagina que Dodgson faria com Alice, em um barco no rio Tâmisa. Também
fora algo próximo ao alívio, após a fase maníaca de Brian, quando estivera bem perto de me
estrangular. E mesmo antes de explodir, as preferências sexuais de Brian eram um tanto singulares.
Gostava apenas de chupar, e não de foder. Na ocasião, eu não tinha experiência suficiente para
compreender que nem todos os homens eram assim. Achava-me com vinte e um anos e Brian com
vinte e cinco, e lembrando que ouvira falar que os homens chegam ao ápice sexual aos dezesseis, as
mulheres aos trinta, calculara que a idade de Brian era a culpada. Ele se achava em declínio. Estava
em decadência, pensei. Mesmo assim, aprendi a chupar muito bem.
Fiz, também, a assistente social para Charlie Fielding, o regente cuja batuta não parava de
murchar. Ele se mostrava estonteantemente reconhecido. ”Você é uma descoberta e tanto”, não parou
de dizer aquela primeira noite (querendo dizer que contava ser jogado por mim lá fora, no tempo frio,
e eu não o fiz). Mais tarde compensou, eram só as noites de estréia que o murchavam.
Mas e Adrian? O sexy Adrian. Devia ser ele a minha foda sem zíper. O que aconteceu? O
engraçado foi que não me importei, na verdade. Ele era tão bonito, deitado ali, e seu corpo cheirava
tão bem! Pensei em todos aqueles séculos nos quais os homens adoraram as mulheres por seus
corpos, ao mesmo tempo em que lhes desprezavam as mentes. Nos meus dias de adoração dos
Woolfs e Webbs, parecera-me inconcebível, mas agora compreendia. Porque era assim que eu me
sentia com relação aos homens, muitas vezes. As mentes deles estavam inapelavelmente
embaralhadas, mas seus corpos eram tão bonitos.
101
As idéias que alimentavam eram intoleráveis, mas os pênis muito sedosos. Eu fora feminista por toda a vida (e a
data
de minha ”radicalização” era a de uma noite em 1955, no subway do IRT, quando um rapaz imbecil
chamado Horace Mann, com quem me encontrava, perguntou-me se pretendia ser secretária), mas o
grande problema era como fazer com que o feminismo se harmonizasse com a fome insaciável de
corpos masculinos. Não era fácil. Ademais, com o passar do tempo, mais claro se tornava que os
homens, no fundo, tinham pavor às mulheres. Alguns em segredo, outros abertamente. O que podia
ser mais lancinante do que uma mulher liberada, de olho em um cacete murcho? As maiores questões
da história empalidecem, em comparação com esses dois objetos quintessenciais: a mulher eterna e o
cacete murcho eterno.
— Eu o assusto? — perguntei a Adrian.
— Você?
— Bem, alguns homens afirmam ter medo de mim. Adrian riu.
— Você é uma belezoca — disse —, uma gatinha... como vocês, americanos, costumam dizer.
Mas a questão não é essa.
— Você geralmente tem esse problema?
— Nein, Frau Doktor, e não quero de jeito nenhum ser interrogado. Isso é absurdo. Eu não tenho
problema de potência. . . é só que estou espantado por sua bunda estupenda e não sinto vontade de
foder.
A humilhação sexista suprema: o cacete que se deita. A arma suprema, na guerra entre os sexos: o
cacete mole. A bandeira do acampamento inimigo: o cacete a meio-pau. O símbolo do apocalipse: o
cacete de ogiva atômica que destrói a si mesmo. Era essa a desigualdade básica que nunca poderia
ser consertada: não que o homem fosse dono de uma atração maravilhosa a mais, chamada pênis,
mas que a mulher era dotada de uma pomba maravilhosa, enfrentando qualquer tempo. Nem
tempestade, nem granizo, nem escuridão da noite conseguiam intimidá-la. Estava sempre ali, sempre
pronta. Coisa das mais apavorantes, quando se pensa bem. Não admira que os homens odiassem as
mulheres. Não admira que tenham inventado o mito da insuficiência feminina.
— Eu me recuso a ser espetado num alfinete — disse Adrian, sem perceber o pensamento que isso
provocava imediatamente. — Recuso-me a ser enquadrado. Quando você,
finalmente, sentar-se para escrever a meu respeito, não vai saber se sou um herói ou anti-herói, um
filho da puta ou um santo. Você não poderá enquadrar-me.
E nesse momento apaixonei-me loucamente por ele Seu pau mole penetrara onde um pau duro
jamais teria alcançado.
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103

Paroxismo de paixão
ou O homem debaixo da cama

”Entre todas as formas de coragem absurda, a coragem das moças se torna ímpar. De outra forma haveria menos
casamentos e, ainda menos, as aventuras loucas que passam por cima de tudo, até do casamento.. .”
Colette
Não que apaixonar-me loucamente fosse coisa invulgar, no meu caso. Todos os anos eu me
apaixonara por alguém. Apaixonei-me por um poeta inglês que criava porcos numa fazenda em lowa.
Apaixonei-me por um escritor de um metro e noventa de altura, que parecia um cowboy e só escrevia
alegorias sobre os efeitos da radiação. Apaixonei-me por um crítico de livros, de olhos azuis, que se
empolgara por meu primeiro livro de poemas. Apaixonei-me por um pintor grosseirão (cujas três
esposas haviam, todas elas, se suicidado). Apaixonei-me por um professor muito cortês, de filosofia
da Renascença italiana, que cheirava a cola e fodia alunas do primeiro ano. Apaixonei-me por um
intérprete da ONU’ (hebraico, árabe, grego) que tinha cinco filhos, a mãe enferma e sete romances
inéditos, num apartamento enorme em Morningside Drive. Apaixonei-me por um pálido americano
bestalhão, bioquímico, que me levou para almoçar no Harvard Club e estivera casado com duas
outras escritoras — ambas de inclinação ninfomaníaca.
Mas tudo isso deu em nada. Oh, havia agarramentos nos bancos de trás de automóveis, e
prolongados beijos embriagados em cozinhas nova-yorkinas cheias de baratas, sobre copos de
martínis já quentes. E houve flerte em almoços pagos por contas de despesas, que engordavam a
gente. E beliscões entre os livros da Biblioteca Butler. E abraços depois de ler
poesias.
104
E apertos de mão em vernissages de galerias. E prolongadas conversas telefónicas cheias
de sentido, cartas lotadas de sentido duplo. Tinha havido até algumas propostas francas e claras
(geralmente feitas por homens que não me atraíam, em absoluto). Mas tudo deu em nada. Eu ia para
casa e escrevia poemas dedicados ao homem a quem realmente amava (quem quer que ele fosse).
Afinal de contas, eu trepara com número suficiente de sujeitos para saber que um cacete não era tão
diferente do outro. Assim sendo, o que procurava? E por que me achava tão inquieta? Talvez
resistisse à consumação de qualquer desses flertes, porque sabia que o homem realmente desejado
continuaria a me escapar, e eu acabaria desapontada. Mas quem era o homem que eu queria, mesmo?
Tudo quanto sabia era que estivera procurando desesperadamente por ele, a partir da idade de
dezesseis anos.
Quando eu tinha dezesseis anos, e me considerava uma socialista fabiana, quando tinha dezesseis
anos e me recusava a bolinar rapazes que gostavam de Ike, quando eu tinha dezesseis anos e chorava
ao ler o Rubaiyat, quando eu tinha dezesseis anos e chorava com os sonetos de Edna
Saint Vincent
Millay — costumava sonhar com um homem perfeito, cuja mente e corpo eram igualmente trepáveis.
Ele tinha o rosto como o de Paul Newman e voz como a de Dylan Thomas. Seu corpo era como o do
Davi de Michelangelo (”com aqueles músculos de mármore parecendo ondinhas”, como costumava
contar à minha melhor amiga Pia Wittkin, cuja estátua masculina favorita era O discóbolo; éramos
ambas estudantes ávidas de história da arte). O homem teria a mente de um George Bernard Shaw
(ou, pelo menos, o que minha mente de dezesseis anos de idade concebia que fosse a mente de
George Bernard Shaw). Ele amava o Concerto para piano n.” 3 de Rachmaninoff, e In lhe wee
small hours of the morning, de Frank Sinatra, acima de qualquer outra música dos mortais.
Partilhava minha paixão pelas tapeçarias com unicórnios, Beat the devil, os Cloisters, O segundo
sexo, de Simone de Beauvoir, feitiçaria e mousse de chocolate. Partilhava também meu desdém pelo
Senador Joe McCarthy, Elvis Presley e meus pais incultos. Jamais encontrei esse homem. Aos
dezesseis anos, o fato de não encontrá-lo parecia insuportável. Mais tarde aprendi a ficar com o
dinheiro e deixar para lá o crédito, não dar atenção aos ribombos dos tambores longínquos. O
contraste entre minhas fantasias (Paul Newman, Laurence Olivier, Humphrey Bogart, o Davi
de Michelangelo)
105
e os adolescentes de rosto espinhento que eu conhecia fazia rir. Só que eu chorava.
E o mesmo acontecia com Pia. Nós nos enchíamos de comiseração, no sombrio apartamento dos pais
dela, no Riverside Drive.
— Eu o imagino como sendo muito. . . você sabe. . . uma espécie de cruza entre Laurence Olivier
em Hamlet e Humphrey Bogart em Beat the devil. . . com dentes brancos muito ferozes, um corpo
fantástico. . . assim como O discóbolo — e ela apontava para sua própria barriga, muito bem
fornida.
— E o que você está vestindo? — perguntava eu.
— Vejo como uma espécie de. . . você sabe. . . casamento medieval. Estou com esse chapéu
branco e pontudo, um véu de chiffon caindo dele... e um vestido de veludo vermelho... talvez cor de
vinho... e sapatos pontudos.
Ela desenhava os sapatos, para que eu os visse, com a caneta Rapidograph de tinta preta, depois
desenhava o conjunto todo — uma camisola de cintura império, decote muito baixo, mangas
compridas e apertadas. Era modelada por criatura fabulosa, cuja fenda nos seios subia pela camisola
voluptuosamente. (Na ocasião, a própria Pia tinha excesso de peso, mas falta de peito.)
— Vejo o casamento sendo celebrado nos Cloisters — prosseguia. — Tenho certeza de que
poderia alugar os Cloisters, se conhecesse as pessoas indicadas.
— E onde ia morar?
— Bem, vejo uma casa antiga e fantástica em Vermont. . . um mosteiro abandonado, uma abadia,
coisa assim... — (Nenhuma de nós se perguntava se haveria de fato mosteiros e abadias abandonadas
em Vermont.) —
Com tábuas de soalho extremamente rústicas, uma clarabóia no teto. Seria uma espécie de salão
bem grande, que ia servir de estúdio e dormitório, com uma cama grande redonda, por baixo da
clarabóia. . . e lençóis de cetim preto. Eu teria muitos gatos siameses. .. com nomes tais como John
Donne, Maud Conne e Dylan. . . você sabe.
Eu sabia, ou pelo menos achava que sabia.
— De qualquer modo... — ela prosseguia — ... eu me vejo como uma espécie de cruza de Gina
Lollobrigida e Sophia Loren.. . — (Pia tinha cabelos escuros.) — . . .o que você acha? — e
amontoava os cabelos castanhos e gordurosos na cabeça, mantinha-os ali, enquanto encovava as
faces e arregalava os olhos grandes e azuis para mim.
— Eu acho que você é mais do tipo Anna Magnani
106
— dizia eu —, terrena e essencial, mas muitíssimo sensual. — Talvez... — e ela imergia em
pensamentos, fazia poses diante do espelho. — Oh, é nojento — dizia, depois de algum tempo. —
Nunca conhecemos alguém que seja um pouquinho digno de nós — fazia uma careta medonha.
Durante nosso ano como veteranas em música e arte, Pia e eu abrimos nossa minoria hostil de
duas, a fim de incluirmos alguns outros desajustados escolhidos. Foi o mais perto que já estivemos de
participar de um grupo. Esse incluía uma jovem de busto grande, chamada Nina Noff, cujas marcas
de distinção eram sua paixão necrófila pelo fantasma de Dylan Thomas, seu suposto conhecimento
das obscenidades chinesas e japonesas e seu ”contato” com um verdadeiro Yalie (visões de fins de
semana com futebol para todos nós — mas, por infortúnio, o ”contato” revelou-se o amigo de um
amigo de um conhecido do irmão dela). A mãe de Nina também possuía uma coleção enorme de
”livros de sexo”, entre os quais incluímos Ascensão à maturidade em Samoa e Sexo e
temperamento; qualquer livro que tivesse a palavra ”puberdade” servia para nós. E havia,
finalmente, a classe total conferida pelo fato de que o pai de Nina criara o Blue Wasp Series para o
rádio, nos anos 40. Jill Siegel, por outro lado, fazia parte do grupo não tanto por causa de classe,
como por caridade nossa. Tinha pouco a contribuir em matéria de avanço, mas compensava isso por
meio de sua fidelidade cega a nós, e o modo lisonjeiro pelo qual imitava nossas afetações mais
exageradas. Quem entrava e saía do grupo era Grace Baratto — formada em música, e cujo intelecto
não respeitávamos, mas que se saía com relatos fantásticos de suas façanhas sexuais. Embora ela o
negasse, dizíamos entre nós, secretamente, que ela devia ter ”feito tudo”. ”Pelo menos, ela é uma
demi-vierge”, Pia comentava e eu assentia, cheia de percepção.
Somente dois rapazes deixamos entrar no grupo, e os tratávamos com o maior desdém possível,
para entenderem que só participavam dele devido à nossa magnanimidade. Como eram colegas de
turma e não ”homens de faculdade”, queríamos tornar bem claro que só os reconheceríamos como
amizades ”platônicas”. John Stock era filho de velhos amigos de meus pais. Gorducho, louro,
escrevia contos. Sua expressão favorita era ”paroxismos de paixão”. Isso aparecia pelo menos uma
vez em cada conto por ele escrito.
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Ron Cognetta (a quem, naturalmente, chamávamos Punheta) apaixonara-se por mim. Alto, escanifrado,
enorme nariz de gancho e uma variedade realmente inacreditável de espinhas e sardas (que eu ansiava
por espremer), era anglófilo. Assinava o Punch e a edição aérea do Manchester Guardian, carregava
um guarda-chuva muito bem enrolado (com qualquer espécie de tempo), pronunciava ”banal” (uma
de suas palavras preferidas) com a tônica na penúltima sílaba, e salpicava sua fala com expressões
tais como ”maldito decadente” e ”desembestar por aí”.
Após o sofrimento das bancas examinadoras e de aguardar as cartas de aceitação, nós seis
desembestávamos por aí, principalmente no apartamento de meus pais, enquanto decorria o longo
período ocioso da primavera, aguardando com impaciência a formatura. Sentados no chão da sala,
consumíamos toneladas de frutas, queijos, sanduíches de pasta de amendoim e biscoitos, ouvíamos
álbuns de Frank Sinatra, escrevíamos épicos comunais que procurávamos tornar tão pornográficos
quanto nossa vivência limitada o permitia. Compúnhamos em minha Olivetti portátil, que passava de
um colo para outro e sempre que John se achava presente os paroxismos de paixão entravam na
agenda dos trabalhos.
Não foram muitas as criações de nossa vida comunal que sobreviveram, mas recentemente
descobri um fragmento que dá mais ou menos uma idéia do espírito de todas as outras obras-primas
assim perdidas. Costumávamos entrar em ação com o mínimo de dados preliminares, de modo que a
tessitura do relato ficava, sempre, um tanto retalhada. Uma das regras era que cada autor tinha três
minutos, até passar a máquina de escrever ao seguinte, e isso vinha aumentar o caráter espasmódico
da prosódia. Como Pia geralmente começava, cabia-lhe o privilégio de esboçar os traços gerais das
personagens, que todos teríamos de tolerar:
”Dorian Fairchester Faddington IV era um poetastro promíscuo, de quem os próprios amigos
diziam que ’ia da cama para a lama’. Embora sexualmente onívoro, e às vezes preferisse camelas,
como nove em cada dez médicos, em geral seu gosto se dirigia às mulheres. Hermione Fingerforth era
uma mulher — ou costumava supor que fosse — e sempre que encontrava Dorian não tardava para
que seus lábios se unissem, em uma série de poses interessantes.
— A pele é o maior órgão do corpo — disse ela uma vez, descuidadamente, enquanto os dois
tomavam banho de sol,
108
nus e juntos, no terraço de seu apartamento em Flatbush.
— Fale por si — disse ele, saltando em cima dela, em repentino paroxismo de paixão.
— Saia, saia de meu maldito pêlo! — gritou ela, afastando-o de si e encobrindo sua mui decantada
virgindade com refletor solar de papel prateado.
— Você deve estar querendo que eu reflita sobre o que faço — zombou ele.
— Ai, Deus meu — disse ela, muito contrariada —, os homens só se interessam pelas mulheres
aos jatos.”
Na época todos nós achamos que era a mais engraçada peça de prosa já escrita. Havia, também,
uma continuação desse diálogo — algo sobre um helicóptero de observação do tráfego, com dois
locutores aparecendo no terraço e toda a cena se transformando em verdadeira bacanal — mas ela
não sobreviveu. Tal fragmento, todavia, dá a temperatura do estado de espírito em que nos
achávamos na época. Por baixo do cinismo metido e sabido e do pseudo-avanço, reinava o
romantismo mais ababacado desde que Edward Fitzgerald personificou Ornar Khayyam. Pia e eu
queríamos, as duas, alguém com quem pudéssemos cantar em terra agreste, e sabíamos que John
Stock e Ron Cognetta não eram exatamente o que nos servia.
Éramos, as duas, leitoras ávidas, e quando a vida nos desapontava, voltávamo-nos para a
literatura — ou, pelo menos, para a versão cinematográfica. Víamo-nos como heroínas e não
conseguíamos compreender aquele desaparecimento de todos os heróis. Eles estavam nos livros, no
cinema, mas, de modo notável, ausentes de nossas vidas.
História e literatura subjetivamente examinadas aos dezesseis anos.
Dorian Gray tinha madeixas douradas.
Rhett Butler era audacioso, bonito, de idéias avançadas. . .
Julien Sorel sabia tudo a respeito de paixão.
O Conde Vronski era encantador, à sua maneira russa.
Por muitos homens eu me arrastaria.
E todos estão — ocupados em romances, quem diria.
109

II.

Antes dos dezesseis Julieta reconciliou dois mundos.


E Naná anda nos bares de Paris, com bêbados e vagabundos.
A beleza de Helena pôs muitos navios a navegar.
Salomé só precisava os sete véus soltar.
A beleza de Ester salvou o povo dela.
O feito de Maria é louvado em toda capela.
A esposa pastora de Luís levantou a nação com um brado.
Mas aqui estou eu, com dezesseis, e o mundo parado.”
A métrica dava pulos, mas o recado era muito claro. Nós nos teríamos arrastado se, ao menos,
encontrássemos homens pelos quais valesse a pena nos arrastarmos.
Os rapazes que conhecemos na faculdade mostravam-se, de certo modo, piores. Pelo menos John e
Ron eram dois nojentos bem-intencionados, que nos adoravam. Não tinham a mente de G. B. S. e o
corpo do Davi de Michelangelo, mas eram devotados a nós, encarando-nos como criaturas de espírito
refulgente e muito avançadas. Na faculdade, entretanto, a guerra entre os sexos começou logo, e
nossas mentes e corpos se distanciavam cada vez mais.
Encontrei meu primeiro marido durante meu ano de caloura e casei com ele após a formatura,
quatro anos depois, com viagens de vez em quando, e experiências de entremeio. À altura em que
tinha vinte e dois anos, era veterana de um casamento que se desmanchara, diante das circunstâncias
mais penosas. Pia encontrou uma série de filhos da puta que trepavam com ela e a desapontavam. Na
faculdade, escrevia longos épicos epistolares em sua caligrafia minúscula e barroca, e descrevia cada
um desses filhos da puta com detalhes, mas de maneira nenhuma eu consegui distinguir um do outro.
Todos pareciam ter faces encovadas e cabelos louros lisos. Ela estava amarrada no shagetz do
meiooeste, do mesmo rriodo como alguns camaradas judeus se amarram em shikses. Era como se
fossem todos o mesmo sujeito. Huck Finn sem jangada. Cabelos louros, calças azuis de brim, botas
de cowboy. E eles sempre acabavam passando-a para trás.
Gradualmente nós duas fomos nos tornando cada vez mais desiludidas. Isso era inevitável, é claro,
em vista das fantasias absurdas com que havíamos começado,
110
mas não acredito que fôssemos muito diferentes das outras adolescentes (embora nos inclinássemos mais à
literatura e, com certeza, fôssemos mais pretensiosas). Tudo quanto queríamos eram homens com
quem pudéssemos partilhar tudo. Por que isso era pedir muito? Por acaso, homens e mulheres eram
basicamente incompatíveis? Ou ainda não havíamos encontrado os homens certos?
No verão de 65, quando estávamos, ambas, com vinte e três anos de idade e percorremos a Europa
juntas, nosso desapontamento foi de tal natureza que dormíamos com homens principalmente para
nos jactarmos, uma com a outra, do número de escalpes que trazíamos no cinturão.
Em Florença, Pia parafraseou Robert Browning:
”Abra minha pomba e terá achado O nome ’Itália’ nela gravado”.
Dormíamos com camaradas que vendiam carteiras para dinheiro, em frente aos Uffizi, dois
músicos negros que moravam em uma pensione do outro lado da piazza, vendedores de passagens da
Alitalia e funcionários do correio do American Express. Eu tive um caso de fim de semana com
aquele italiano casado, chamado Alessandro, que me pedia para cochichar ”merda foda pomba” ao
seu ouvido, enquanto trepávamos. Isso, de modo geral, me punha tão histérica de gargalhadas que eu
perdia o interesse pela trepada. Depois, outro caso de fim de semana com um professor americano, de
meia-idade, que lecionava história da arte e que se chamava Michael Karlinsky e assinava suas cartas
de amor ”Michelangelo”. Tinha uma esposa americana, alcoólatra, em Fiesole, uma calva luzidia,
cavanhaque e verdadeira paixão por granità di caffè. Queria comer gomos de laranja em minha
pomba, porque lera isso em O jardim perfumado. E houve também o estudante de canto italiano
(tenor) que, em nosso segundo encontro, explicou que seu livro favorito era Justine, de Sade, e
perguntou se queria representar algumas cenas dele. Experiência pelo valor da própria experiência,
Pia e eu acreditávamos nisso — mas nunca mais voltei a vê-lo.
A melhor parte dessas aventuras parecia ser o modo pelo qual nos debulhávamos em gargalhadas,
descrevendo-os uma à outra. Fora isso, éramos quase inteiramente destituídas de alegria. Éramos
atraídas pelos homens, mas quando chegava a questão de compreensão e boa conversa,
111
precisávamos uma da outra. Gradualmente, os homens foram reduzidos a objetos sexuais.
Há alguma coisa muito triste a esse respeito. Mais tarde passamos a aceitar as mentiras, a
representação teatral e as transigências de modo tão completo que elas se tornavam invisíveis — até
para nós mesmas. Começamos automaticamente a esconder coisas a nossos homens. Jamais
podíamos deixar que soubesse, por exemplo, que falávamos sobre ele, quando estávamos juntas, que
examinávamos o modo pelo qual trepava, que imitávamos sua maneira de caminhar e falar.
Os homens sempre detestaram os mexericos femininos, porque desconfiam da verdade: suas
medidas estão sendo tomadas e comparadas por elas. Nas sociedades mais paranóicas (árabe, judia
ortodoxa) as mulheres são mantidas inteiramente envoltas em panos (ou sob perucas) e separadas do
mundo o mais possível. Mesmo assim mexericam: é a forma inicial de criar a consciência. Os homens
podem zombar, mas não impedir. O mexerico é o ópio dos oprimidos.
Mas quem era oprimido? Pia e eu éramos ”mulheres livres” (expressão que nada significa, quando
não está entre aspas). Pia era pintora, eu escritora. Tínhamos mais, em nossas vidas, do que apenas
os homens; tínhamos o trabalho, viagens, amizades. Nesse caso, por que nossas vidas pareciam
reduzir-se a uma longa coleção de canções tristes acerca dos homens? Por que nossas vidas pareciam
reduzirse a caçar homens? Onde estavam as mulheres que eram realmente livres, que não passavam
as vidas pulando de um homem para outro, e que se sentiam completas, com ou sem homens?
Olhávamos para nossas incertas heroínas, procurando ajuda, e eis, contemplai — Simone de
Beauvoir nunca faz um só movimento sem pensar, antes, o que Sartre vai pensar? E Lillian Hellman
quer ser tão homem quanto Dashiell Hammett, de modo que ele a ame como ama a si próprio. E
Anna Wulf, de Doris Lessing, não consegue gozar, se não estiver apaixonada, o que é raro. E quanto
ao resto — as escritoras, as pintoras —, a maioria era tímida, biruta, esquizóide. Tímidas em suas
vidas e corajosas apenas em sua arte. Emily Dickinson, as Brontê, Virgínia Woolf, Carson
McCullers. . . Flannery O’Connor criando pavões e vivendo com a mãe. Sylvia Plath enfiando a
cabeça em um forno de mito. Geórgia O’Keefe sozinha no deserto, sobrevivendo, ao que parece. Que
grupo! Severo, suicida, singular. Onde se viu uma Chaucer mulher? Uma dama suculenta,
112
que fosse dotada de ânimo e alegria, amor e talento também? Para onde podíamos voltar-nos, buscando
orientação? Colette, com seu afro-gaulês? Safo, sobre quem quase nada se sabe? ”Tenho fome e
peno”, diz ela, em minha tradução. E o mesmo acontecia conosco! Quase todas as mulheres que
admirávamos eram solteironas ou suicidas. Era a isso que tudo levava?
Assim era que a procura do homem invisível prosseguia.
Pia nunca se casou. Casei-me duas vezes — mas ainda assim a procura prosseguia. Qualquer um
de meus muitos analistas podia afirmar que eu procurava meu pai. E não acontecia isso a todas? A
explicação não me contentava, em absoluto. Não que parecesse errado; parecia, apenas, simples
demais. Talvez a busca fosse, na verdade, uma espécie de ritual em que o processo era mais
importante do que o fim. Talvez fosse uma espécie de indagação. Talvez não existisse homem algum,
apenas uma miragem conjurada por nosso anseio e vazio. Quando se vai dormir com fome, sonha-se
em comer. Quando se vai dormir com a bexiga cheia, sonha-se em levantar para fazer xixi. Quando se
vai dormir com tesão, sonha-se em dar uma trepada. Talvez o homem impossível nada mais fosse do
que um espectro saído de nossos próprios anseios. Talvez ele fosse como o intruso intemerato, o
estuprador fantasma que as mulheres contam descobrir sob as camas, ou nos banheiros. Ou talvez
fosse, na verdade, a morte, o último amante. Em um poema, imaginei-o como o homem debaixo da
cama.
”O homem debaixo da cama
O homem que esteve ali anos seguidos esperando
O homem que espera o meu flutuante pé descalço
O homem silencioso, como poeira na escuridão
O homem cujo hálito é o alento de pequenas borboletas
[brancas
O homem cujo respirar escuto, quando apanho o telefone O homem ao espelho, cujo hálito
enegrece a prata O esqueleto nos armários, que estraleja as bolas de naftalina O homem ao fim do
extremo da linha
**113Cont-eci-o esta noite. Sempre o encontro Ele se apresenta no ar âmbar de um bar Quando o
camarão se dobra como dedos a chamar E atravessa o ar em seu espeto de madeira Quando o gelo
estala e estou quase caindo
113
ele arruma o rosto em volta das concavidades,
abre os olhos, sem pupila, para mim
Por anos esperou para me arrastar
e agora me diz
que apenas esperou para me levar para casa
Valsamos pela rua como a morte e a virgem
Flutuamos passando pela parede da parede de meu quarto
Se ele é meu sonho vai dobrar-se e entrar em meu corpo Seu hálito escreve letras de neblina no
vidro de minhas faces Eu me enrolo em volta dele como a escuridão Respiro em sua boca E o torno
verdadeiro
114
Tosse nervosa
Àquilo que lembramos falta o traço duro do fato. Para nos ajudarmos criamos pequenas ficções, cenários
altamente
sutis e individuais que possam esclarecer e modelar nossa vivência. O acontecimento recordado torna-se ficção,
uma
estrutura feita para acomodar certos sentimentos. A mim, isso se torna evidente. Não fora por essas estruturas, a
arte
seria pessoal demais para que o artista a criasse, mais ainda para que a platéia a compreendesse. Até o cinema, a
mais
literal de todas as artes, é editado.”
Jerzy Kosinski
Bennett dormindo. O rosto para cima, os braços estendidos. Marie Winkleman não está com ele.
Esgueiro-me para meu leito, sob a luz azulada que vem pela janela. Estou feliz demais para poder
dormir. Mas o que vou dizer a Bennett, de manhã? Fico na cama, pensando em Adrian (que acabou
de ir embora, de automóvel, e deve estar agora perdido outra vez, naquelas ruas). Eu o adoro. Quanto
mais ele se perde, tanto mais perfeito se apresenta a meus olhos.
Acordo às sete horas e continuo na cama por duas outras, esperando que Bennett desperte. Ele
geme, peida e se levanta. Começa a vestir-se em silêncio, dando patadas no chão. Eu estou cantando,
andando do banheiro para o quarto e vice-versa.
— Onde você se enfiou ontem? — pergunto, cheia de jovialidade. — Procuramos por toda parte.
— Onde eu me enfiei?
— Naquela discoteca. . . vocês saíram de repente. Adrian Goodlove e eu procuramos vocês por
toda parte...
— Vocês procuraram por mim? — ele estava muito azedo e sarcástico. — Você e suas Liaisons
dangereuses — prosseguiu, pronunciando erradamente essas palavras francesas. Fiquei cheia de
pena dele. — Vai ter de arranjar uma explicação melhor que essa.
A melhor defesa é um bom ataque, pensei.
115
O conselho da esposa perfeita às esposas devassas: sempre acuse o marido, antes que ele o faça.
— E em que diabo de lugar você se enfiou com Marie Winkleman?
Ele me dedicou um olhar tenebroso.
— Estávamos bem ali, na sala ao lado, vendo enquanto vocês praticamente fodiam na pista de
dança. Depois vocês saíram. . .
— Vocês estavam bem ali?
— Bem por trás da divisão, sentados à mesa.
— Eu nem vi divisão.
— Você não estava vendo nada — asseverou ele.
— Pensei que vocês tinham ido embora. Nós rodamos de carro por horas seguidas, procurando
vocês. Depois, voltamos. A gente só fazia se perder.
— Aposto que sim — e ele pigarreou, a seu modo nervoso. Era um tipo de som parecido ao
estralejar da morte. Mudo, todavia. Eu odiava aquilo, mais do que qualquer outra coisa em nosso
casamento. Era a canção-tema de todos os nossos piores momentos juntos.
Fizemos o desjejum sem falar. Esperei, um tanto encolhida, que os golpes fossem desferidos, mas
Bennett não me acusou mais. Seu ovo cozido estralejava na taça. A colher tilintava no café. No
silêncio mortal entre nós, todos os sons e todos os movimentos pareciam exagerados, como em close-
up cinematográfico. O modo pelo qual ele retirou a tampa do crânio de seu ovo podia equiparar-se a
um épico de Andy Warhol. Ovo, seria o título. Seis horas durante as quais a mão de um homem
amputava a parte superior da cabeça de um ovo. Em câmara lenta.
O silêncio dele parecia nesse momento tão estranho, pensei, porque tinha havido momentos em que
ele me fulminara, por causa de pequenas faltas: minha falta em preparar o café a tempo de manhã,
minha falta em executar algum serviço pequeno, minha falta em apontar um letreiro de estrada,
quando estávamos perdidos em cidade estrangeira. Mas, agora, nada.
Ele continuou a pigarrear nervosamente, olhando a cabeça aberta de seu ovo. A tosse era seu único
protesto.
Essa tosse me levou, na recordação, a um dos piores momentos em nossos difíceis momentos
matrimoniais. O primeiro Natal em que estávamos casados. Achávamo-nos em Paris. Bennett sentia-
se pavorosamente deprimido e assim estivera, quase desde a primeira semana de nosso casamento.
116
Odiava o Exército. Odiava a Alemanha. Odiava Paris. Odiava-me, a mim, ao que parecia, como se
fosse responsável por essas coisas e outras. Eram geleiras de queixas que se estendiam muito além da
superfície do mar.
Por toda a viagem prolongada, de Heidelberg a Paris, Bennett quase não abriu a boca. O silêncio é
o mais cortante dos instrumentos cortantes. Parece martelar a gente contra o chão. Leva-nos cada vez
mais ao fundo de nossa própria culpa. Faz com que as vozes internas, na cabeça, nos acusem com
mais perversidade do que qualquer voz externa o conseguiria.
Revejo na recordação todo o episódio, como se fosse um filme em preto e branco, de fotografia
muito viva. Dirigido por Bergman, talvez. Fazíamos o papel de nós mesmos, na versão
cinematográfica. Se ao menos pudéssemos escapar a isso de estarmos sempre fazendo o papel de nós
mesmos!
Véspera de Natal em Paris. O dia foi branco e cinzento. Eles entraram em Versalhes, de manhã,
com pena das estátuas despidas. As estátuas eram de uma brancura ofuscante, suas sombras
cinzentas de ardósia. As sebes aparadas, tão planas quanto as sombras. O vento mordente e frio. Eles
tinham os pés entorpecidos e suas passadas faziam um som tão oco quanto seus corações. São
casados, mas não são amigos.
Chegou a noite. Perto do Odéon. Perto de Saint-Sulpice. Sobem os degraus do metrô. Ouvem-se os
sons em ecos de pés gelados.
São ambos americanos. Ele, alto e esguio, cabeça pequena. É oriental, de cabelos pretos hirsutos.
Ela, loura, pequenina e infeliz. Tropeça com freqüência. Ele nunca tropeça. Ele a odeia por tropeçar.
Agora, contamos tudo, menos o enredo.
Estamos olhando lá em cima de uma escadaria em espiral em um hotel na Rive Gaúche, quando
eles sobem para o quinto andar. Ela o acompanha por toda parte. Vemos o alto de suas cabeças
balançando, subindo. Depois vemos-lhes os semblantes. A expressão dela, petulante e triste. A
mandíbula dele demonstra obstinação. Ele continua pigarreando, nervosamente.
Chegam ao quinto andar e acham o quarto. Ele abre a porta sem qualquer esforço. O quarto é um
desses quartos de hotel em Paris, conhecidos e em mau estado. Tudo por ali é mofado. A colcha da
cama, de tecido estampado, desbotada.
117
O tapete, desfiado em diversos lugares. Por trás de uma divisão de papelão acham-se a pia e o
bidê. As janelas devem dar para telhados, mas estão bem cobertas por cortina de veludilho marrom.
Começou a chover outra vez, a chuva vai batendo seu código Morse fracamente, no terraço em frente
às janelas.
Ela está observando, em silêncio, como todos os hotéis de vinte francos em Paris têm o mesmo
decorador imaginário. Não pode comentar isso com ele, que a considerará mimada. Mas diz a si
própria. Odeia a cama estreita de casal, com a parte central afundada. Odeia o almofadão que
puseram, em vez de travesseiro. Odeia a poeira que entra pelo nariz quando levanta a colcha. Odeia
Paris.
Ele está se despindo, tremendo de frio. Dá para observar como o corpo é belo, inteiramente glabro,
as costas retas, como os panturrilhos são magros, com músculos compridos e morenos, os dedos
finos. Mas o corpo dele não é para ela. Ele veste o pijama, com expressão de recriminação. Ela
continua em pé, descalça e de meias.
— Por que você sempre tem de fazer isso comigo? Você me faz sentir-me tão sozinha.
— Isso vem de você própria.
— Que quer dizer, que vem de mim? Esta noite eu queria ser feliz. É véspera de Natal. Por que
você se volta contra mim? O que fiz?
Silêncio.
— O que foi que eu fiz?
Ele a fita como se o fato de ela não saber fosse mais um insulto.
— Olhe, vamos dormir agora. Esqueça isso.
— Esquecer o quê? Ele não fala.
— Esquecer o fato de que você se voltou contra mim? Esquecer o fato de que está me castigando
por nada? Esquecer o fato de que estou sozinha, faz frio, é véspera de Natal e mais uma vez você a
estragou para mim? É isso que devo esquecer?
— Não vou discutir o assunto.
— Discutir o quê? O que não quer discutir?
— Cale a boca! Não admito que berre no hotel.
— A mim não importa porra nenhuma o que você não admite. Gostaria de ser tratada gentilmente.
Gostaria que você, pelo menos, fizesse a cortesia de dizer por que está com essa cara. E não olhe
para mim desse jeito. ..
118
— Que jeito?
— Como se o fato de eu não poder ler seus pensamentos fosse o meu maior pecado. Eu não posso
ler seus pensamentos. Não sei por que você está com tanta raiva. Não posso intuir todos os seus
desejos. Se é isso o que deseja de uma esposa, não conte comigo.
— E não conto, mesmo.
— O que é, então? Por favor, diga.
— Não devia ser preciso.
— Meu bom Deus! Você quer dizer que eu devo aprender a ler pensamentos? É esse o tipo de
maternalismo que você deseja?
— Se você tivesse alguma empatia por mim. . .
— Mas eu tenho. Meu Deus, o problema é que você não me dá oportunidade alguma.
— Você se desvia. Você não escuta.
— Foi alguma coisa no filme, não foi?
— O quê, no filme?
— Outra vez as perguntas. Você tem de me interrogar, como uma espécie de criminosa. Você
precisa me interrogar? ... foi a cena do funeral... o garotinho olhando para a mãe morta. Alguma
coisa pegou você, ali. Foi quando ficou deprimido.
Silêncio.
— Bem, não foi.
— Oh, vamos, Bennett, você está me pondo furiosa. Por favor, conte. Por favor.
(Ele pronuncia as palavras isoladamente, como se fossem pequenos presentes. Como se fossem
pequenos cagalhões.)
— O que foi naquela cena que me pegou?
— Não me pergunte. Diga-me. — (Ela passa os braços por ele, que se afasta. Ela cai ao chão,
segurando-lhe a perna do pijama. Parece menos um abraço do que uma cena de salvamento, ela
afundando, ele com relutância deixando que lhe segure a perna, para não naufragar.)
— Levante-se!
(Chorando.) — Só se você me contar. (Ele livra a perna com um repelão.) — Vou deitar. (Ela põe
o rosto no chão frio.) — Bennett, por favor, não faça isso, por favor fale comigo.
— Estou com raiva demais.
— Por favor.
— Não posso.
119
— Por favor.
— Quanto mais pede, mais esfrio.
— Por favor.
Estão deitados na cama, pensando. O almofadão ao lado dela já se molhou. Ela treme de frio e
soluça. Ele parece não ouvir. Sempre que rolam para a depressão no centro da cama, ele é o primeiro
a sair dali. Isso acontece repetidas vezes. A cama já parece oca como uma canoa escavada em tronco.
Ela gosta do calor e dureza das costas dele. Gostaria de envolvê-lo com os braços. Gostaria de
esquecer-se de toda a cena, fingir que nunca havia acontecido. Quando copulam, estão juntos por
algum tempo. Mas ele não quer. Arranca a mão dela de sua braguilha no pijama. Arreda-a de si. Ela
vai para a beira da cama.
— Isso não resolve — declara.
Ouçam a chuva caindo. Lá fora, na rua, surgem gritos ocasionais de estudantes que voltam
embriagados para casa. Paralelepípedos molhados. Paris sabe ser tão úmida! Depois do filme dessa
noite, foram à Notre-Dame. Viram-se comprimidos entre capotes de lã molhados e casacos de peles,
molhados também. Missa do galo. Pontas de guarda-chuvas gotejando em seus sapatos. Não dava
para avançarem, nem para recuarem. Um magote de gente enfiado ali, entupindo os corredores. Paix
dans lê monde, disse uma voz alta, com amplificação eletrônica. Não existe coisa pior do que o
cheiro de peles molhadas.
Ele está em casa, em Washington Heights. O pai morreu, ele não sente coisa alguma. É engraçado
que ele não sinta coisa alguma. Quando as pessoas morrem, não se deve deixar de sentir alguma
coisa.
Eu disse a você que não senti nada, por que continua perguntando? Porque preciso conhecê-lo.
Você nunca perdeu ninguém. Você nunca viu uma pessoa morrer. É por isso que me odeia?
Estávamos recebendo pensão de desemprego. Você morava no Central Park West, enquanto nós
vivíamos com pensão de desemprego. E eu tenho culpa? Você conhece aquela casa funerária chinesa
na Pell Street? Quando as pessoas morrem, voltam para os seus. Racistas na morte. Ele nunca
acreditou em Deus. Ele nunca foi à igreja. Rezavam em chinês. E eu pensei: meu Deus, não
compreendo uma só palavra. O caixão estava aberto. Isso é importante. De outro modo, você não
quer acreditar na morte. Psicologicamente certo. Parece tétrico, entretanto.
120
Depois os parentes chegaram e levaram o resto de dinheiro que tínhamos. O negócio dará mais,
disseram eles, mas o negócio fechou. Eu era calouro no ginásio. Podia trabalhar quando me
formasse, disse ao funcionário da assistência social. Mas eu pensei: nessa altura, acabo como
garçom. E nem posso ser garçom em restaurante chinês, porque não falo chinês. Vou ser uma
ferramenta, pensei, um pobre porcalhão. Preciso entrar na faculdade. Enquanto isso, você morava no
Central Park West. E ia a Cambridge nos fins de semana. Na escola de medicina eu dava de comer
aos animais de laboratório. Noite de Natal. Todo mundo saía. Eu ficava no laboratório, dando de
comer àqueles malditos ratos.
Ela está deitada ao lado, sem fazer movimento algum. Toca em si própria, para ver se não morreu.
Pensa nas duas primeiras semanas em que quebrou a perna. Costumava masturbar-se
constantemente, nessa ocasião, para se convencer de que podia sentir outra coisa, além da dor. A dor
era uma religião, nessa época. Um compromisso total.
Desce a mão pela barriga. O indicador direito toca o clitóris, enquanto o esquerdo entra, fazendo
de conta que é um pênis. Como se sente um pênis, cercado por aquelas cavernas macias e fechadas de
carnes? O dedo é pequeno demais. Ela enfia dois e os separa. Mas as unhas são compridas demais,
arranham.
E se ele acordar?
Talvez ela queira que ele acorde e veja como está sozinha.
Sozinha, sozinha, sozinha. Movimenta os dedos nesse ritmo, sentindo que os dois lá dentro se
põem cremosos, o clitóris endurece, fica vermelho. Dá para sentir as cores com as pontas dos dedos?
É essa a sensação proporcionada pelo vermelho. A caverna, lá dentro, dá a sensação de purpúreo.
Púrpura real. Como se o sangue lá embaixo fosse azul.
— Em quem você pensa, quando se masturba? — perguntou-lhe o analista alemão. ”Em quem
você pensa?” Eu penso, portanto existo. Na verdade, não pensa em ninguém, pensa em todos. Em
seu analista e em seu pai. Não, o pai, não. Ela não pode pensar no pai. Em um homem a bordo do
trem. Um homem debaixo da cama. Um homem sem semblante. O rosto dele não tem traços. Seu
pênis tem um olho. Ele chora.
Ela sente as convulsões do orgasmo que sugam com violência em volta dos dedos. A mão caí para
a ilharga, depois afunda em sono pesado.
121
Sonha que está de volta ao apartamento onde cresceu, mas dessa feita o apartamento foi planejado
por um arquiteto de sonhos.
As salas que dão para os dormitórios de três paredes são sinuosas como os antigos leitos de rios, e
a despensa da cozinha é um túnel de vento, com armários altos demais, fora do alcance. Os canos
estrebucham, como velhos gargarejando; tábuas do chão arquejam. Em seu quarto, o vidro
enregelado da porta está cheio de rostos que gritam sua angústia para a lua, com bocas em formato
de O. Uma sílaba prolongada de luar desliza à frente, prateando o chão, depois se estraçalha com o
som de vidro a estilhaçar-se. Os rostos nas portas são lupinos. O sangue endurece no canto de suas
bocas.
O banheiro da empregada tem uma banheira com pés de garra de animal, onde uma criança pode
imaginar-se afogando. Quatro lanternas de latão acham-se penduradas no teto da sala de estar. Esta
tem altura inconcebível, está coberta por folha de ouro manchado. Acima da sala de estar acha-se
uma sacada, com postes de corrimão revirados, largura apenas suficiente para que uma criança
deslize por ali e comece a flutuar pelo ar afora. Mais um vôo para cima e ela se encontra no estúdio,
que tem cheiro de terebintina. O teto aponta para cima, como chapéu de feiticeira. O candelabro de
ferro pontiagudo paira bem no centro, pendente da corrente negra. Ele oscila de leve, ao vento, que
sibila entre a janela setentrional trapezoidal e a janela meridional trapezoidal.
A máscara mortuária de Beethoven acha-se pendurada na parede. Seus lábios abobalhados estão
cerrados. Ela sobe numa cadeira e passa os dedos naqueles lábios. A fuligem negra mancha o gesso.
Agora ela deixou as impressões nos olhos de Beethoven. Alguma coisa pavorosa vai acontecer, com
certeza.
Sobre a mesa acha-se um crânio. Dentro dele, uma vela, é uma natureza-morta que seu avô
preparou. Essas coisas existem, naturezas-mortas?
No cavalete encontra-se uma pintura incompleta do crânio e da vela. Qual está mais morto? O
crânio? Ou a natureza-morta do crânio? Que natureza-morta vai durar mais tempo?
Ao canto do aposento há um armário. Lá está a túnica verde do marido, dependurada e vazia. As
mangas balançam ao vento. Ele morreu? Ela sente pavor.
122
Corre pela porta do estúdio e desce os degraus. De repente cai, sabendo que vai morrer quando chegar ao fundo.
Esforça-se para lutar e, nesse esforço, desperta. Tem a surpresa de descobrir que está em Paris, em
vez de em casa dos pais. Ele continua deitado ao seu lado, como se houvesse morrido. Ela lhe
examina o semblante adormecido, a boca comprida, de cantos retorcidos para cima, as sobrancelhas
ralas como caligrafia chinesa, e acha que no ano seguinte, em tal ocasião natalina, não estarão juntos,
ou então terão um filho, que não sairá com a cara dela.
— Feliz Natal — diz ele, abrindo os olhos. Copulam, então, esperançosamente.
A temperatura é enregelante e a chuva da noite anterior fez com que as ruas se tornassem
vidradas, na superfície. Eles se vestem e saem para passear. Ele a segura bem junto a si, mas de
qualquer modo ela continua escorregando. Ele a adverte para ”dar passos curtos”.
— É como se meus pés estivessem presos — explica ela. Ele não ri.
Seguem pela lie Saint-Louis e admiram a arquitetura. Apontam esculturas de pedra singulares nos
segundos andares das casas. Caminham para observar três velhos que estão apanhando peixinhos a
se contorcerem, no Sena cinzento e cheio. Comem duas dúzias de ostras num restaurante alsaciano e
depois torta de cebola; embebedam-se com vinho. Voltam a caminhar pelas ruas vidradas,
segurando-se um ao outro, com medo desgraçado de caírem. Ela fica pensando para onde iria, se ele
a abandonasse. O lar com que sonhara na noite anterior volta-lhe, aos fragmentos. Ela sabe que não
pode ir para lá. Não tem para onde ir. Lugar nenhum. Apega-se bem a ele.
— Eu te amo — afirma.
Quando escurece mais, param para uma bâche de Noêl e café, num pequeno restaurante diante da
Notre-Dame, na Rive Gaúche. Ele está pensando em abandoná-la? Ela nunca sabe em que ele pensa.
Fingem que se trata de um dia feliz e despreocupado. Ele nunca deixa de segurá-la com firmeza pela
cintura, ao atravessarem, juntos, as ruas enregeladas.
— Dê passos curtos — não pára de mandar. — Você vai quebrar o canastro e me arrastar na
queda.
— O que eu haveria de fazer, se não tivesse você? — diz ela.
Ele pigarreia nervosamente, mas não diz coisa alguma.
123

O filme acabaria ali, com a tosse dele, talvez. Mas eu me lembro dos acontecimentos seguintes: o carro
pifou, e tivemos de tomar o trem de volta a Heidelberg. Os quatro soldados franceses que partilharam nossa
couchette, compartimento de segunda classe, arrotaram e peidaram até chegarmos à Alemanha, quase como
se estivessem acionando o trem. A difícil descida da couchette mais alta (onde eu ficava) até o chão. Um
acesso repentino de diarréia que me fez enfrentar esse problema nada menos que seis vezes aquela noite
(numa das vezes, pisei bem na virilha do soldado francês, na couchette de baixo, e ele se portou de modo
extremamente gracioso, levando-se tudo em conta).
Depois o regresso a Heidelberg, o Natal terminado e o medo de enfrentar outra vez o fato de estarmos no
Exército. (Nas férias, tentávamos fingir que não passávamos de um casal americano que vivia na Europa só
para se divertir.) E depois, na véspera do Ano-Novo, chegou o telegrama — embaralhado como tais
telegramas costumam ser, aparecendo naquela tarde cinzenta e desanimadora de sábado, quando toda a
população masculina de Klein Amerika estava ocupada em dar polimento ao automóvel da família e toda a
população feminina seguia por ali, os cabelos enrolados com papelotes, e os alemães do outro lado da
Goethestrasse já estavam abrindo a primeira garrafa de Schnapps, em preparativo para o Ano-Novo. . .
”VOVÔ FALECEU SEIS QUINZE TERÇA-FEIRA. REVIVIDO POR MASSAGEM. ATAQUE CARDÍACO. HEMORRAGIA
RETAL. NADA PODIA SER FEITO. FUNERAL 4 JANEIRO. AMOR MAMÃE.”
Li o telegrama, depois o entreguei a Bennett. Estava com aquela sensação horrorosa que sempre me
acomete, quando sei que algo horrível vai ser atribuído à minha responsabilidade. Sabia que Bennett, de
algum modo, encontraria o jeito de me incriminar pela morte de seu avô. Os pais de minha mãe
continuavam vivos.
Estendi os braços para ele, que recuou. Lembro-me de ter pensado que eu não estava tão triste com o
falecimento do seu avô, mas que eu ia ter de morrer um pouquinho mais, por isso, como penitência. Bennett
sentou-se no sofá da sala de visitas, o telegrama nas mãos. Sentei-me ao seu lado e voltei a lê-lo, sobre seu
ombro. ”O dedo em movimento escreve e esbodega o soletrar das palavras”,
pensava.
124
Quase não conhecera o avô de Bennett (um ancião chinês que tinha noventa ou cem anos de idade,
parecia-se a uma estátua de marfim amarelada, e quase não falava inglês algum). Fingi que meu próprio avô
havia falecido e comecei a chorar. Estava, na realidade, chorando por mim mesma, morrendo devagar, com
a idade de vinte e cinco
anos.
Bennett estava marcado pela morte, enfiado até o gas-
nete nela. Transportava sua tristeza nos ombros, como se fosse uma mochila invisível. Se se voltasse para
mim, se me deixasse reconfortá-lo, talvez eu o agüentasse. Mas ele me incriminou por aquilo e sua culpa
afastou-me. Eu, entretanto, tinha medo de ir embora. Permaneci, tornei-me mais sigilosa. Voltei-me cada
vez mais para minhas fantasias e meus escritos, e foi assim que comecei a me descobrir. Ele se retirou em
sua tristeza, barricou-se atrás dela, e eu retirei-me para meu quarto, a fim de escrever. Por todo aquele
inverno prolongado ele lamentou o avô, o pai, a irmã que morrera com dezesseis anos, o irmão que nascera
retardado e falecera aos dezoito, seu amigo que morrera de poliomielite aos catorze anos, sua pobreza, seu
silêncio. Lamentou o Exército, a vida que deixara em Nova York. Lamentou os mortos e sua própria
preocupação com a morte. Lamentou os seus lamentos. A expressão rígida que estampava no semblante era
uma espécie de máscara mortuária. Tantas pessoas a quem amara (mas também odiara) haviam morrido, e
ele usava aquela máscara, como penitência. Por que devia estar vivo, quando eles se achavam mortos? Assim
é que fez sua vida parecer-se à morte, e a morte dele era a minha, também. Aprendi a me manter viva,
escrevendo.
Foi esse o inverno em que comecei a escrever a sério. Comecei a escrever como se fosse minha única
esperança de sobrevivência, procurando escapar. Eu sempre escrevera, de certo modo, sempre adorara os
escritores. Costumava beijarlhes as fotografias nas contracapas dos livros, terminada a leitura. Encarava tudo
impresso como relíquia santa e os escritores como criaturas de conhecimentos e espírito sobrehumanos. Pearl
Buck, Tolstói ou Carolyn Keene, a autora de Nancy Drew. Eu não fazia qualquer das divisões ensebadas que,
mais tarde, se aprende a fazer. Sabia deixar Através do espelho e passar a uma história em quadrinhos de
horror, de Great expectations a Jardim secreto, passando à revista
Mad.
Crescendo em minha domesticidade caótica,
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logo aprendi que um livro cuidadosamente colocado diante do rosto era escudo à prova de bala, uma muralha de
asbestos, uma capa de invisibilidade. Aprendi a refugiar-me por trás dos livros e tornar-me, como
minha mãe e meu pai me chamavam, ”a professora distraída”. Berravam comigo, mas eu não ouvia.
Estava lendo. Estava escrevendo. Estava a salvo.
O avô de Bennett — aquele velho corajoso que viera da China com a idade de vinte anos, que fora
convertido ao cristianismo por um missionário que lhe prometera ensinar inglês (e nunca ensinara),
que pregara o evangelho aos trabalhadores chineses no campo de mineração do noroeste dos Estados
Unidos, que finalmente terminou seus dias com uma loja de presentes na Pell Street — e nunca, em
todos os seus noventa e nove ou cem anos, aprendera a falar mais do que algumas palavras de inglês
inteligível, muito menos escrever — iniciou-me em minha carreira como escritora, ao morrer. Às
vezes a morte é o começo das coisas.
Enquanto Bennett carpia em silêncio, por todo o inverno prolongado, escrevi. Joguei fora todos os
meus poemas de faculdade, até aqueles que haviam sido publicados. Joguei fora todas as minhas
partidas falsas, em contos e romances. Queria renovar-me, queria uma vida -nova para mim mesma,
escrevendo.
Imergi na obra de outros autores. Costumava encomendar livros da Foyle’s, de Londres, ou pedir a
amigos e pais que nos mandassem, de Nova York. Estudava um poeta contemporâneo, ou
romancista, um de cada vez, lendo e voltando a ler seus livros, estudando como haviam mudado de
um para outro, imitando o estilo de um autor diferente, por alguns meses. Por todo o tempo eu me
achava apavorada, encarava-me como um verdadeiro e real fracasso. Certa vez, quando tinha mais
ou menos dezoito anos de idade e achava que eram velhas as pessoas de trinta anos, prometera
matarme, se não houvesse publicado meu primeiro livro aos vinte e cinco. Eu já estava com vinte e
cinco! E apenas começava. Mandar meu trabalho às revistas era coisa inteiramente fora de cogitação.
Embora eu fosse a poetisa da turma na faculdade, e houvesse ganho os prêmios costumeiros,
achavame agora convencida de que nada que escrevia tinha valor suficiente para ser mandado a lugar
algum. Encarava os redatores dos quinzenários como criaturas semelhantes a deuses, que nem mesmo
se dignariam a ler qualquer coisa senão obras-primas. Eu acreditava nisso, a despeito do fato de que
assinava os quinzenários, e os lia religiosamente,
126
examinando o trabalho neles apresentado. O trabalho muitas vezes
não era bom, via-me forçada a reconhecer, mas ainda assim tinha a certeza de que o meu devia ser
muito, muitíssimo pior.
Vivia em um mundo povoado por fantasmas. Travava casos amorosos imaginários com poetas
cujas obras lia regularmente nos quinzenários. Certos nomes criaram quase vida, a meus olhos. Eu
lia os esboços biográficos dos escritores e achava que os conhecia. É singular como se pode ter uma
relação íntima com alguém que nunca conhecemos pessoalmente — e como nossas impressões podem
mostrar-se erradas. Mais tarde, quando voltei a Nova York e comecei a publicar poemas, conheci
alguns desses nomes mágicos. Em geral eram inteiramente diferentes do que eu imaginara. Grandes
cérebros, quando escreviam, revelavam-se imbecis, pessoalmente. Autores de poemas sombrios sobre
a morte mostravam-se calorosos e engraçados. Autores encantadores sabiam transformar-se em
criaturas inteiramente sem graça. Escritores generosos, de coração aberto e altruístas, talvez se
mostrassem mesquinhos, afobados, exigentes e invejosos. . . Não que houvesse qualquer regra
absoluta a reger tal assunto, mas em geral surgiam algumas surpresas. Tratava-se de questão das
mais perigosas, a de avaliar o caráter do escritor pelo que ele escrevia. Mas toda essa realidade
surgiu posteriormente. Em meus dias de Heidelberg, imergi em um mundo literário imaginário que se
achava agradavelmente fora de contato com a realidade imunda. Um aspecto disso era minha relação
curiosa com The New Yorker.
Na ocasião sobre a qual escrevo, The New Yorker (e toda a correspondência de terceira categoria)
costumava ser mandada por navio, atravessando o Atlântico. Talvez fosse esse o motivo pelo qual
três ou quatro New Yorkers (nenhuma delas com menos de três semanas de idade) sempre chegavam
juntas, em um montão. Eu costumava desembrulhar os envoltórios como se estivesse em transe.
Tinha um ritual para enfrentar essa revista ritualista. Ela não possuía índice, nessa época — apenas
o esnobismo invertido, aqueles pequeninos rodapés antecedidos por traços indecisos — e mergulhava
neles de trás para a frente, examinando, antes, os nomes por baixo dos artigos compridos,
vasculhando as colunas de crédito dos contos e, sem fôlego, examinando os poemas.
Fazia tudo isso em meio a suor frio, ao acompanhamento estrondeante de meu coração.
Apavorava-me a possibilidade
127
de descobrir um poema, conto ou artigo de alguém que eu conhecia. Alguém que fora um idiota
na faculdade, ou conhecido tirador de meleca do nariz, ou que (em combinação com uma ou ambas
dessas coisas) fosse mais novo do que eu. Nem que fosse por um ou dois meses.
Não que eu apenas lesse The New Yorker; eu a vivia, de um modo particular. Criara para mim
mesma um mundo New Yorker (localizado em algum ponto a leste de Westport e a oeste dos
Cotswolds) onde Peter de Vries (com trocadilhos suaves) estava sempre erguendo um brinde de
Piesporter, onde Niccolo Tucci (em dinner jacket de veludo cor de ameixa) flertava em italiano com
Muriel Spark, onde Nabokov bebericava vinho do Porto em uma taça prismática e onde John Updike
desculpava-se de modo encantador (repetindo durante todo o tempo que Nabokov era o melhor
escritor em língua inglesa com cidadania americana, na época). Entrementes, os autores indianos se
amontoavam a um canto, derramando-se em sotaque do Punjab (e tresandando a curry), e os
memorialistas irlandeses (em suéteres de pescadores e hálito de uísque) se ocupavam em esnobar os
bemvestidos e formais memorialistas ingleses.
Oh, eu mitificara outras revistas e quinzenários literários também, mas The New Yorker fora meu
santuário desde a infância. (O Commentary, por exemplo, efetuara reuniões bastante sujas, nas quais
alguns semitas de ar bilioso todos eles chamados Irving — se preocupavam mutuamente com a
Judaidade, a Negritude e a Consciência, enquanto cavoucavam em terrinas de fígado picado e
travessas de Nova Scotia). Essas soirées me divertiam, mas era para The New Yorker que reservava
o meu espantado respeito. Jamais teria a coragem de enviar meus próprios esforços literários
ridículos para lá, de modo que me afrontava e espantava descobrir alguém que eu conhecera a
freqüentar-lhe as páginas.
De qualquer modo eu tinha uma noção entusiasmada do que significava ser um autor. Imaginava-
os como uma fraternidade misteriosa de seres mortais que caminhavam por aí com passos mais leves
do que as outras pessoas — como se de algum modo tivessem asas invisíveis nos ombros. Sorriam
azedamente, reconhecendo-se entre si por meio de um certo quê — algo como o radar que, como se
afirma, os morcegos possuem. Certamente não seria coisa tão grosseira como um aperto de mão
secreto.
Bennett se achava indiretamente envolvido em meus escritos,
128
também, embora raramente lesse uma só palavra do que eu escrevia. Na verdade, não
precisava de pessoa alguma para ler meu trabalho a essa altura (porque o trabalho era, em sua maior
parte, um preparativo para o trabalho que viria), mas precisava muitíssimo de alguém que aprovasse
o ato de escrever. Ele o fazia. Às vezes não parecia claro se aprovava minha escrita só para que eu
não o importunasse em seu abatimento, ou se gostava de bancar o Henry Higgins para a minha Eliza
Doolittle. Mas o fato é que ele acreditou em mim, muito antes que eu acreditasse em mim mesma.
Era como se, durante aqueles prolongados momentos ruins em nosso casamento, nos houvéssemos
alcançado mutuamente e de modo indireto, por meio de minha escrita. Embora não a lêssemos juntos,
éramos unidos por ela, em nossa retirada do mundo.
Estávamos ambos aprendendo como pescar no inconsciente. Bennett se sentava quase imóvel na
sala de visitas, pensando no falecimento do avô, em todos os falecimentos que haviam sido
amontoados em seus ombros, quando ele mal tinha idade suficiente para entender sua própria vida.
Eu me achava no estúdio, escrevendo. Aprendia como descer em mim mesma e recolher pedaços e
fragmentos do passado. Aprendia como esgueirar-me até o inconsciente, como pegar meus
pensamentos e fantasias aparentemente aleatórios. Fechando-me para fora do mundo dele, Bennett
abrira todas as espécies de mundos dentro de minha cabeça. Aos poucos comecei a compreender que
nenhum dos temas sobre os quais eu escrevia poemas comprometia sentimentos mais profundos, que
havia um enorme abismo entre aquilo com que eu me preocupava e aquilo sobre o que escrevia. Por
quê? De que tinha medo? De mim mesma, acima de tudo, ao que parecia.
Iniciei dois romances em Heidelberg. Ambos eram narrados por homens. Eu supunha,
naturalmente, que ninguém se interessaria pelo ponto de vista de uma mulher. Além disso, não queria
me arriscar a ser chamada de todas as coisas de que as autoras (mesmo as boas) são chamadas:
”inteligente, espirituosa, brilhante, tocante, mas sem alcance”. Queria escrever sobre todo o mundo.
Queria escrever Guerra e paz — ou nada feito. Nada de temas de ”mulher escritora” para mim, ia
travar batalhas e touradas, empreender safáris pela selva. Só que não sabia coisa alguma sobre
batalhas, touradas e safáris da selva (e a maioria dos homens também não sabe). Eu enlanguescia na
mais total frustração,
129

achando que os temas que conhecia eram ”triviais” e ”femininos” — enquanto os temas sobre os
quais nada sabia eram ”profundos” e ”masculinos”. Não importava o que fizesse, achava que ia
fracassar. Fracassaria escrevendo, ou fracassaria por deixar de escrever. Achava-me paralisada.
Graças à minha sorte, minha tristeza, minha estranha relação com meu marido, minha decisão
obstinada (na qual não acreditava, em absoluto, na ocasião), consegui escrever três livros de poemas,
nos três anos seguintes. Joguei dois fora, o terceiro foi publicado. Depois iniciou-se todo um conjunto
de problemas novos, eu tinha de aprender a enfrentar o meu próprio medo do êxito, entre outras
coisas, e isso era quase mais difícil do que viver com o medo de fracassar.
Se havia aprendido a escrever, não seria possível aprender, também, a viver? Adrian, ao que
parecia, queria ensinar-me como viver. Bennett, ao que parecia, queria ensinarme como morrer. E eu
nem mesmo sabia o que queria. Ou talvez o houvesse entendido mal. Talvez Bennett fosse a vida, e
Adrian a morte. Talvez a vida fosse transigência e tristeza, enquanto o êxtase terminava
inevitavelmente na morte. Maniqueísta como era, nem mesmo sabia distinguir os atores, sem que
estivessem identificados. Se podia distinguir o bem do mal, talvez pudesse escolher, mas estava mais
perplexa, a essa altura, do que estivera em qualquer outra época.
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Contos dos bosques de Viena
Os elos do matrimónio pesam tanto que são precisos dois para carregá-los —• às vezes três.”
Alexandre Dumas

A partir daí, começou a bagunça. Eu ia às reuniões com Bennett, contando firmente ficar com ele,
jurando a mim mesma que nunca mais voltaria a ver Adrian, que aquilo acabara, que eu tinha dado
minha escapada e só —, via Adrian e desmanchava-me por completo. Percebi que estava vivendo o
vocabulário das canções de amor populares, os refrões surrados dos piores filmes de Hollywood.
Meu coração parava. Ficava com olhos nublados, quando ele se aproximava. Ele era, para mim, a
luz do sol. Nossos corações davam as mãos. Se estivesse no mesmo aposento que eu, punha-me em
tal estado de agitação que quase não conseguia sentar e ficar quieta. Era um tipo de loucura, uma
absorção total. Esqueci o artigo que devia escrever, esqueci tudo, menos ele.
Nenhuma das manobras que utilizara no passado parecia dar certo, agora. Procurei manter-me
longe dele, utilizando palavras convincentes como ”fidelidade”, ”adultério”, dizendo a mim mesma
que ele atrapalharia meu trabalho, que se eu o conquistasse ficaria feliz demais para escrever.
Procurei dizer a mim mesma que estava ferindo Bennett, ferindo a mim própria, fazendo papel
ridículo. E estava, mesmo. Mas de nada valeu. Estava possuída, e no instante em que ele entrava no
aposento e sorria para mim, eu me perdia.
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Após o almoço, naquele primeiro dia do congresso, eu disse a Bennett que ia sair para nadar, e saí
com Adrian. Seguimos de carro até meu hotel, onde apanhei a roupa de banho, coloquei o diafragma,
passei a mão em outros objetos, e depois saí com Adrian, rumo à pensão dele.
Chegados ao quarto, despi-me em um minuto, nada mais que isso, e deitei-me na cama.
— Está bem desesperadinha, não é? — perguntou ele.
— Sim.
— Pelo amor de Deus, por quê? Temos muito tempo.
— Quanto tempo?
— Tanto quanto você quiser — disse ele, de modo ambíguo. Se me deixasse, em suma, seria
minha culpa. Os psicanalistas são assim. Nunca trepem com um psicanalista, eis o conselho que dou
a todas vocês, mocinhas.
De qualquer modo, não adiantou. Ou não adiantou muito. Ele só estava a meio-pau, e se sacudiu
dentro de mim como um maluco, contando que eu não notasse. Terminei com minúscula ondulação
orgásmica e a pomba muito dolorida. De algum modo, entretanto, fiquei satisfeita. Ia conseguir
livrar-me dele, agora, pensava; ele não é bom na cama. Poderei esquecê-lo.
— Em que está pensando? — perguntou-me.
— Que fui bem e completamente fodida — e lembrava-me de ter usado a mesma frase com
Bennett, certa feita, quando a mesma correspondera muito mais à realidade.
— Você é mentirosa e hipócrita. Para que quer mentir? Eu sei que não a fodi corretamente. Sei
fazer muito melhor do que isso.
Fui enrodilhada e presa por sua franqueza.
— Pois bem — confessei, sombria —, você não me fodeu corretamente. Reconheço.
— Assim está melhor. Por que você está sempre procurando ser uma maldita assistente social?
Para salvar o meu ego? — Falou pronunciando ”ego” à moda britânica.
Pensei, por algum tempo. O que estava fazendo? Eu me limitava a supor que devia agir assim com
os homens. Se não o fizesse, eles se desmanchavam em pedaços, enlouqueciam. Eu não queria levar
outro homem à loucura.
— Acho que sempre supus que o ego masculino é tão fraco que se torna preciso mimá-lo. . .
— Bem, o meu não é tão frágil assim. Agüento saber que não a fodi corretamente. . . ainda mais
quando é a verdade.
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— Acho que nunca conheci alguém como você. Ele sorriu, deliciado.
— Não, não conheceu mesmo, patinha, e atrevo-me a dizer que nunca conhecerá. Já lhe disse que
sou um antiherói. Não estou aqui para salvá-la. . . e levá-la depois, em cima de um cavalo branco.
Para que estava ali, então, fiquei pensando? Não era para foder, com certeza.
Fomos nadar em imensa Schwimmbad pública, nos arrabaldes de Viena. Nunca, em minha vida,
eu tinha visto tanta gordura bronzeada. Em Heidelberg, procurara deliberadamente evitar as piscinas
públicas e as saunas; e quando viajávamos, tínhamos sempre evitado os balneários freqüentados
pelos alemães. Fazíamos questão de passar longe de Ravena e dos demais acampamentos teutônicos.
Em vez disso, costumava olhar invejosamente os umbigos belamente côncavos da Riviera francesa,
os quadris endinheirados e exercitados de Capri. Mas ali estávamos cercados por montanhas de
Schlag e Sacher Torte metamorfoseado em gordura.
— É como O Juízo Final de Michelangelo — disse eu a Adrian. — Aquele na extremidade na
Capela Sistina.
Ele botou a língua para fora, para mim, e fez careta.
— Aqui estão todas essas pessoas, divertindo-se, nadando, e você volta o seu olhar satírico contra
elas, vendo depravação e corrupção ao redor. Madame Savonarola, é como devia chamar-se.
— Tem razão — disse eu, muito humilde. Será que não conseguia parar de olhar, dissecar e
derrubar tudo? Não podia, mesmo. — Mas eles se parecem a O Juízo Final — insisti. — A vingança
de Deus contra os alemães, por serem tão porcos, e torná-los parecidos a porcos.
E, por Deus, era verdade: não apenas gordura, não apenas barrigas enormes e braços flácidos,
papadas nos queixos, coxas tremelicantes — mas tudo isso em cor rósea brilhante. Estralejante,
queimada, mais vermelha do que carne de porco feita à moda chinesa. Pareciam-se a leitões
amamentados. Ou ao porco fetal que eu tivera de dissecar na aula de zoologia — que fora quase o
Waterloo de minha carreira universitária.
Nadamos e nos beijamos na água, entre todas aquelas outras almas condenadas. Eu usava roupa
de banho negra, com decote em V que ia até o umbigo, e todos estavam de olhos cravados em mim:
as mulheres, com ar de desaprovação, os homens, de devassidão. Dava para sentir o sêmen
133

de Adrian escorregadio entre minhas pernas, e vazando para a piscina clorada. Uma americana doando
sêmen inglês aos alemães. Uma espécie de Plano Marshall estapafúrdio. Que o sêmen dele
abençoasse a água deles e os batizasse. Que os limpasse dos pecados. Adrian, o Batista. E eu como
Maria Madalena. Mas fiquei também pensando se nadar logo depois de trepar haveria de me
engravidar. Talvez a água empurrasse o sêmen através do diafragma. Fiquei, de repente, apavorada
com a idéia de engravidar. De repente, queria engravidar. Imaginava a belíssima criança que
haveríamos de fazer. Eu estava, mesmo, querendo.
Sentamo-nos no gramado, à sombra de uma árvore, tomando cerveja. Debatemos nosso futuro —
qualquer que fosse ele. Adrian parecia pensar que eu devia deixar meu marido e instalar-me em Paris
(para onde ele podia ir de avião e visitar-me, periodicamente). Eu podia alugar uma água-furtada e
escrever livros. Podia ir a Londres e escrever livros com ele. Podíamos ser como Simone de Beauvoir
e Sartre: juntos, mas separados. Aprenderíamos a acabar com coisas tolas, como ciúme. Treparíamos
um com o outro e com todos os nossos amigos. Viveríamos sem preocupação quanto a posses ou
vontade de possuir. Com o tempo, um dia, criaríamos uma comuna para esquizofrênicos, poetas e
analistas extremados. Viveríamos como verdadeiros existencialistas, em vez de só falar a esse
respeito. Viveríamos todos juntos em um domo geodésico.
— Coisa parecida a um submarino amarelo — disse eu.
— Bem, por que não?
— Você é um romântico incurável, Adrian. . .
— Olhe. . . eu não vejo o que há de tão bacana nesse tipo de hipocrisia em que você vive. Fingindo
toda essa merda de fidelidade e monogamia, vivendo em um milhão de contradições, mantida por seu
marido como uma espécie de garota talentosa e mimada, nunca por conta própria. Nós, ao menos,
seríamos sinceros. Viveríamos junto e treparíamos com todo mundo, às claras. Ninguém exploraria
ninguém, e ninguém teria de sentir-se culpado por ser dependente. ..
— Poetas, esquizofrênicos e psicanalistas?
— Bem, não existe grande diferença, você não acha?
— Nenhuma, em absoluto.
Adrian aprendera existencialismo durante uma semana em Paris, com Martine, a atriz francesa
que estivera em uma lata.
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— Foi rápido — comentei. — O existencialismo em lições simples. Como o curso Berlitz,
condensado. Como é que ela conseguiu?
Ele descreveu como fora a Paris vê-la, e Martine o surpreendera, indo a seu encontro em Orly
,com dois amigos: Louise e Pierre. Deviam passar toda a semana juntos, sem se separarem um só
instante, contarem aos outros tudo, fodendo-se uns aos outros de todos os modos possíveis, e nunca
se saírem com alguma ”desculpa moral tola”.
— Sempre que eu falava de meus pacientes, meus filhos ou minha namorada em casa, ela dizia:
”não interessa”.
”Sempre que eu protestava, dizendo que precisava trabalhar, precisava ganhar a vida, precisava
dormir, precisava escapar ao fervor daquela vivência, ela dizia: ’não interessa’. Nenhuma das
desculpas comuns serviu de nada. Na verdade, foi apavorante, de início.”
— Parece fascista. E tudo em nome da liberdade.
— Bem, entendo o que você quer dizer, mas não foi fascista, porque acontece que a intenção dela
era fazer você ampliar os limites do suportável. Você tinha de mergulhar ao fundo de sua vivência,
mesmo se nesse fundo encontrasse o pavor. Martine estivera louca. Fora hospitalizada e passara por
tudo aquilo, com todos os tipos de novas iluminações. Voltou a se refazer e estava muito mais forte
do que antes. E foi isso o que ganhei, naquela semana. Tive de enfrentar a sensação apavorante de
estar sem planos, sem saber para onde íamos em seguida, sem qualquer retiro pessoal, dependendo de
três outras pessoas para tudo, por todo o tempo. Isso fez reviver todos os tipos de problemas infantis,
no meu caso. E o sexo. . . o sexo foi assustador, de começo. Foder em grupo é muito mais difícil do
que você imagina. Precisa enfrentar sua própria homossexualidade. Foi esclarecedor, ao que creio.
— E foi divertido? Não parece que tenha sido. — Ainda assim, eu estava intrigada.
— Depois dos primeiros dias de trauma, foi esplêndido, íamos a toda parte, de braços dados,
cantávamos nas ruas. Dividíamos a comida, o dinheiro, tudo. Ninguém se preocupava com o trabalho
ou com as responsabilidades.
— E que me diz de seus filhos?
— Estavam com Esther em Londres.
— Então, ela se preocupou com as responsabilidades, enquanto você brincava de existencialista,
como Maria Antonieta brincava de pastora.
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— Não. . . na verdade, não foi assim, em absoluto, porque sempre funcionou em ambas as direções.
Esther resolveu sair com outros caras, de vez em quando, e me deixar tomando conta dos garotos.
Não é coisa unilateral.
— Bem, eles são seus filhos, não?
— Possessão, possessão, possessão — disse ele, achando ruim a minha linha de indagações. —
Vocês, princesas judias, são todas parecidas.
— Eu ensino a você a expressão ”princesas judias” e a primeira coisa que você faz é usá-la contra
mim. Minha mãe me preveniu a respeito de homens como você.
Ele pôs a cabeça em meu regaço e focinhou minha pomba. Dois alemães gordos, debaixo de outra
árvore, emitiram ruídos de zombaria. A mim não importava.
— Visgoso — disse ele.
— O visgo é seu — eu repliquei.
— Nosso visgo — corrigiu-me. E então, de repente, proclamou:
— Eu quero dar-lhe uma vivência como a que Martine me deu. Quero ensinar-lhe a não ter medo
do que está dentro de você. — Dito isso, afundou os dentes em minha coxa. Deixou marcas.
Quando voltei ao hotel, às cinco e meia, Bennett estava à minha espera. Não me perguntou onde
andara, mas passou os braços à minha volta e começou a me despir. E começou a me amar, no visgo
de Adrian, a amar nosso triângulo em todos os sentidos da palavra. Ele nunca se mostrara tão
apaixonado e terno, e raramente eu ficara tão animada. Que era amante muito melhor do que Adrian,
tornava-se claro. Também se tornava claro que Adrian causara uma diferença em nosso modo de
amar, fizera-nos apreciar de modo diverso um ao outro. Tocávamo-nos, mutuamente, por completo.
De repente, eu era tão valiosa para Bennett como se ele se houvesse apaixonado por mim pela
primeira vez.
Tomamos banho juntos e jogamos água um no outro. Ensaboamos as costas um do outro. Eu
estava um pouco apavorada diante de minha promiscuidade, sendo capaz de ir de um homem para
outro e sentir-me tão bem, tão inebriada. Sabia que iria pagar por aquilo mais tarde, com culpa e
sofrimento que só eu sei como me proporcionar em medida tão boa. Mas, naqueles momentos, sentia-
me feliz. Sentia-me corretamente apreciada, pela primeira vez.
136
Será que dois homens podem chegar a compor uma pessoa completa?
Um dos momentos mais memoráveis do congresso foi a recepção no Rathaus de Viena.
Memorável, porque proporcionou oportunidade sem paralelo de assistir a dois mil ou mais
psicanalistas se entupindo de comida, como se tivessem passado fome em Biafra por todo um ano.
Memorável, porque criou a oportunidade sem paralelo de observar diversos psicanalistas velhos e
calmos dançando o frug — ou o que eles julgavam ser o frug. Memorável, porque valsei por toda
aquela vivência em uma camisola de paisley vermelho, coberto de lantejoulas, e não parei de deixar
um rastro delas no chão, ao ir de uma sala de baile para outra, ora dançando com Bennett e ora com
Adrian, e ainda incapaz de me decidir. Deixava um rastro de provas, onde quer que ia.
A senhora baixota, atarracada e desalinhada que era prefeita de Viena outorgou herzliche Grüsse
a Anna Freud e aos demais analistas, e vomitou besteiras em alemão, sem parar, sobre a satisfação
da cidade de Viena em tê-los presentes. Nenhuma referência foi feita ao modo como os analistas
haviam saído em 1938, é claro. Nenhuma orquestra de cinqüenta instrumentos tocara o Danúbio
azul para eles, na ocasião, nem os brindara com herzlichen Grüssen e Schnaps gratuitos.
Quando a comida foi servida, manadas de psicanalistas em roupa formal mugiram e grunhiram,
rumando para as mesas.
— Depressa. . . eles estão entrando na frente da fila! — balia certa matrona em sotaque
trescalando a Flatbush, entremeado com Scarsdale e a New School.
— Eles já receberam bolo na outra sala — disse outra, uma beleza de cento e dez quilos, em
calças de cetim amarelo-canário, cintilando com diamantes falsos.
— Não empurre! •— disse um psicanalista mais idoso e de aspecto distinto (ou talvez extinto) e
envergando um smoking antiquado e um cummerbund’ xadrez. Estava sendo esmagado entre uma
mulher que se atirava ao prato de peru e o homem que se atirava na direção do qntipasto. Por toda a
extensão das mesas não dava para ver outra coisa
' Faixa usada na cintura pelos hindus. (N do E)
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senão braços compridos que agarravam comida, utilizando garfos de prata.
Durante todo esse espantoso espetáculo, os violinos melosos continuavam a tocar, lá no poleiro da
sacada, acima do salão de baile principal. As arcadas pseudogóticas dos tetos altos achavam-se
iluminadas por milhares de pseudovelas, e uns poucos fanáticos continuavam rodopiando na pista de
dança, em valsa vienense intermitente. Ah, viagens, aventuras, romance! Eu transbordava de saúde e
bem-estar, como a mulher transborda, tendo sido fodida quatro vezes no mesmo dia, por dois homens
diferentes, mas a mente era um caldeirão de contradições. Não conseguia compreender todas as
contradições que sentia.
Às vezes, punha-me desafiante e achava que tinha todos os direitos de me valer de qualquer prazer
que me fosse oferecido na curta duração de minha vida na terra. Por que não devia ser feliz e
hedonista? O que havia de mau nisso? Eu sabia que as mulheres que extraem o máximo da vida (e o
máximo dos homens) eram aquelas que exigiam o máximo; que se agíssemos como se fôssemos
valiosas e desejáveis, os homens nos achariam valiosas e desejáveis; se nos recusássemos a ser um
capacho, ninguém pisaria em nós. Sabia que as mulheres servis são pisadas e as mulheres que agem
como rainhas são tratadas como rainhas. Mas assim que tal estado de espírito desafiador passava,
era tomada por minha desolação e desalento, sentia-me apavorada, com medo de perder os dois, ser
deixada sozinha, sentia pena de Bennett, amaldiçoava-me por minha infidelidade, desprezava-me
inteiramente por tudo. Depois queria correr para Bennett e suplicar perdão, jogar-me a seus pés,
dizer-lhe que poderia dar-lhe doze filhos imediatamente (mais ainda, para consolidar minha servidão),
prometer servi-lo como boa escrava, em troca de qualquer negócio, desde que o mesmo incluísse a
segurança. Tornar-me-ia servil, saturada, sacarinamente doce: todo aquele amontoado de mentiras
que, no mundo, passa por ser feminilidade.
O fato era que nenhuma dessas atitudes tinha sentido, e eu sabia. Nem dominar, nem ser
dominada. Nem cadelice, nem servilismo. Ambos eram armadilhas. Ambos não levavam a parte
alguma, a não ser à solidão que, os dois, desejávamos evitar. Mas o que podia fazer? Quanto mais
me odiava, tanto mais me odiava por odiar-me. Era uma luta sem esperanças.
Continuava examinando os semblantes daquela multidão,
138
procurando Adrian. Nenhum semblante, somente o dele, me contentaria. Todos os outros
pareciam grosseiros e feios, a meus olhos. Bennett sabia o que se passava e mostrava-se
enlouquecedoramente compreensivo.
— Você é como uma coisa que saiu do Ano passado em Marienbad — afirmou. — Aconteceu ou
não? Só o analista dela tem certeza.
Estava convencido de que Adrian ”somente” representava meu pai e que, nesse caso, tudo ia bem.
Somente! Eu estava simplesmente, em suma, ”representando” uma situação edipiana, bem como uma
”transferência irresoluta” para com meu analista alemão, o Doutor Happe, para não falar no Doutor Kolner,
a quem acabara de deixar. Bennett compreendia isso. Enquanto fosse Édipo, e não amor. Enquanto
fosse transferência, e não amor.
Adrian era pior, de certo modo.
Encontramo-nos sob a escada lateral, por baixo de uma arcada gótica. Ele também estava cheio de
interpretações.
— Você não pára de correr de um lado para outro, de um para outro de nós dois — comentou. —
Qual será, de nós, a mamãe, e qual será o papai?
Vi-me tomada pelo impulso repentino e louco de fazer as malas e abandonar os dois. Talvez não
fosse uma questão de escolher entre eles, mas de escapar de ambos, por completo. Solta, sob minha
própria custódia. Parar com aquela besteira de correr de um homem para o outro. Ficar sobre meus
próprios pés, uma vez, pelo menos. Por que isso era tão apavorante? As outras escolhas mostravam-
se piores, não? Toda uma vida de interpretações freudianas ou toda uma vida de interpretações
lainguianas! Que escolha! Era melhor eu me juntar a um fanático religioso, um excêntrico da
cientologia, ou um marxista doutrinário. Qualquer sistema era uma camisa-de-força para quem
insistisse em aderir a ele de modo tão total e sem bom humor. Eu não acreditava em sistemas. Tudo
quanto era humano mostrava-se imperfeito e vinha a revelar-se absurdo. Em que, afinal, eu
acreditava? No bom humor. Em rir dos sistemas, das pessoas, de mim mesma. Em rir, até, de nossa
necessidade de rir todo o tempo. Em ver a vida como algo contraditório, multilateral, variado,
engraçado, trágico e com momentos de beleza afrontosa. Em ver a vida como um bolo de frutas, no
qual há ameixas deliciosas e amendoins estragados, mas que devemos devorar, porque não podemos
regalar-nos
139
com as ameixas sem, às vezes, sermos envenenados pelos amendoins. (Contei parte disso a Adrian.)
— A vida como um bolo de frutas! Você é mesmo muitíssimo oral, não acha? — perguntou ele, o
que era mais uma declaração do que uma pergunta.
— E o que mais é novidade? . . . Você quer aproveitar? E ele me deu um beijo úmido, relaxado,
sua língua era
uma das ameixas do bolo de frutas.
— Por quanto tempo você vai continuar a me magoar desse modo? — Bennett perguntou, quando
voltamos ao hotel. — Não pretendo continuar aceitando isso sempre.
— Sinto muito — disse eu, e pareceram palavras muito fracas.
— Acho que devemos dar o fora daqui, tomar o próximo avião de volta a Nova York. Não
podemos continuar com essa loucura. Você está transtornada, enfeitiçada, fora do juízo. Quero levar
você para casa.
Comecei a chorar. Eu queria ir para casa e jamais queria ir para casa.
— Por favor, Bennett, por favor; por favor, por favor.
— Por favor o quê? — retorquiu ele.
— Não sei.
— Nem mesmo tem a coragem de ficar com ele. Se está apaixonada por esse camarada. . . por que
não se compromete com a questão e vai ter com os garotos dele, e segue para Londres? Mas nem isso
você consegue fazer. Não sabe o que quer.
Fez uma pausa, insistiu:
— Devíamos ir para casa, agora mesmo.
— De que adianta? Você nunca mais confiará em mim. Eu arruinei sua confiança. É um caso
perdido. — E acho que realmente acreditava no que dizia.
— Talvez, se voltarmos para casa e você regressar imediatamente à análise, se compreender o
motivo pelo qual fez isso, se examinar a questão, talvez possamos salvar nosso casamento.
— Se eu voltar para a análise! É essa a condição?
— Não pelo meu bem. . . mas pelo seu. Para que não continue a fazer esse tipo de coisa.
— E eu já fiz antes? ]â fiz? Mesmo quando você foi horroroso comigo, mesmo naquela vez em
Paris, quando não quis falar comigo, mesmo naqueles anos na Alemanha,
140
quando andei tão infeliz, quando precisava de alguém com quem falar, quando me sentia tão sozinha e
abandonada por você e seu abatimento constante. . . nunca me envolvi com outro. Nunca. Você me
provocou, naquela ocasião, com certeza. Costumava dizer que não sabia se queria estar casado
comigo. Costumava dizer que não sabia se queria estar casado com uma escritora. Costumava dizer
que não tinha empatia alguma por meus problemas. Nunca me disse que me amava. E quando eu
chorava e me sentia pessimamente, porque tudo quanto queria era carinho e afeição, você me
mandava a um psicanalista. Todas as vezes em que eu quis algo de você, mandou-me a um
psicanalista. Você usa o psicanalista como substituto para tudo. Sempre que algum tipo de
aproximação se anunciava, você me mandava a um maldito analista.
— E onde você estaria agora, com seiscentos infernos, sem o analista? Você ainda estaria
reescrevendo um poema, sem parar. Ainda seria incapaz de mandar trabalho a qualquer lugar.
Continuaria com pavor de tudo. Quando a conheci, você corria de um lado para outro feito lunática,
nunca trabalhando com firmeza em coisa alguma, cheia de um milhão de planos que jamais
terminava. Eu lhe dei um lugar para trabalhar, incentivei você quando odiava a si própria, acreditei
em você quando você não acreditava em si mesma, paguei o seu maldito analista para que você
pudesse crescer e tornar-se um ser humano, em vez de zanzar por aí como todos os doidos da sua
família. Vá em frente e me incrimine por todos os seus problemas. Eu fui o único que já lhe dei apoio
e incentivo, e isso é tudo o que você faz em troca . . . sai atrás de algum inglês de merda, e vem
relinchar comigo, dizendo que não sabe o que quer. Vá para o inferno! Vá com ele para onde bem
entender, eu volto para Nova York.
— Mas eu quero você — disse eu, chorando. Eu queria querê-lo. Queria mais do que qualquer
outra coisa. Pensei em todos os momentos que havíamos passado juntos, os momentos miseráveis que
havíamos atravessado juntos, os momentos em que tínhamos sido capazes de nos reconfortar
mutuamente e incentivar um ao outro, o modo pelo qual ele se punha a favor de meu trabalho e me
dava confiança, quando eu dava a impressão de que estava pronta a me jogar de cima de algum
penhasco. O modo pelo qual eu agüentara o Exército, com ele. Os anos gastos assim. Pensei em tudo
o que sabíamos, um sobre o outro, o modo pelo qual havíamos conseguido ficar juntos, a decisão
obstinada que nos mantivera juntos, quando tudo o mais falhara.
141
Até o sofrimento que havíamos partilhado afigurava-se elo mais forte do que tudo que eu tivera com Adrian. Adrian
era um sonho. Bennett, minha realidade. Ele estava sombrio? Bem, nesse caso a realidade era
sombria. Se eu o perdesse, não conseguiria, sequer, lembrar meu próprio nome.
Nós nos abraçamos e começamos a nos acariciar, chorando.
— Eu queria dar-lhe um filho, agora — disse ele, enfiando-se cada vez mais fundo em mim.
Na tarde seguinte eu estava de volta a Adrian, deitada em um cobertor nos bosques de Viena,
vendo o sol em meio às folhas das árvores.
— Você realmente gosta de Bennett, ou se limita a enumerar as virtudes de que é possuidor? —
perguntou Adrian.
Apanhei um talo de grama comprido e verde, pus-me a mastigá-lo.
— Por que faz perguntas tão incisivas?
— Não sou incisivo, em absoluto. Você é plenamente transparente.
— Ótimo — retorqui.
— Falo sério. Você não acha que o divertimento tem lugar na vida? Ou a vida é só essa porcaria
doentia de ”minha análise... a análise dele...”, ”ama a mim, ama a minha doença”. Você e Bennett
parecem choramingar um bocado. E pedem desculpas um bocado. Estão sempre cheios de
obrigações e deveres, e o que ele fez por você. Por que não haveria ele de fazê-lo? Você é algum tipo
de monstro?
— Às vezes penso assim.
— Pelo amor de Deus, por quê? Você não é feia, nem estúpida, tem uma pomba linda, uma beleza
de barriguinha, muito cabelo louro e a maior bunda que existe, de Viena até Nova York. . . puro
toucinho. . . — e deu um tapa nela, para corroborar as palavras. — Com que você tem de se
preocupar?
— Tudo. Sou muito dependente. Costumo entrar em panes freqüentes. Entro em depressões
horrorosas e quase me falta o ar. Além disso, homem nenhum quer estar preso a uma escritora. As
escritoras são um risco. Elas sonham acordadas, quando deviam estar cozinhando. Preocupam-se
com livros, em vez de se preocuparem com bebês. Esquecem-se de limpar a casa. . .
— Meu Deus! Você é uma feminista e tanto!
— Oh, eu sei falar direitinho, e até acho que acredito nisso,
142
mas em segredo eu sou como a menina na História de O. Quero sujeitar-me a algum
brutamontes. ”Toda mulher adora um fascista”, como diz Sylvia Plath. Eu me sinto culpada por
escrever poemas, quando devia estar cozinhando. Sinto-me culpada por tudo. Você não precisa bater
na mulher, se sabe fazer com que ela se sinta culpada. É o primeiro princípio de Isadora Wing, na
guerra entre os sexos. As mulheres são as maiores inimigas delas próprias. E a culpa constitui a arma
principal na autotortura. Você sabe o que Teddy Roosevelt disse?
— Não.
— Mostre-me uma mulher que não se sente culpada e estaremos na presença de um homem.
— Teddy Roosevelt nunca disse isso.
— Não, mas eu disse.
— Você está só com medo dele. . . não é mais do que isso.
— De quem? De Teddy Roosevelt?
— Não, sua idiota, de Bennett. E não quer reconhecê-lo. Você está com medo de que ele a
abandone e que você se desintegre. Não sabe que pode arranjar-se sem ele e tem medo de descobrir,
porque nesse caso toda a sua teoria biruta cairia por terra. Teria de parar de pensar em si como
criatura fraca e dependente, e isso lhe causa horror.
— Você nunca me viu, quando estou perto de me desintegrar.
— Besteiras.
— Você devia ver. Sairia correndo, na mesma hora.
— Por quê? Você é tão intolerável assim?
— Bennett diz que sou.
— Nesse caso, por que ele não saiu correndo? Na verdade, isso não passa de besteira para manter
você sob controle. Olhe. . . eu estava com Martine, uma vez, quando ela endoidou, tenho a certeza
que você não seria pior. É preciso aturar muita merda das pessoas, para poder saborear os bons
pedaços, também.
— Ei, essa é boa. . . posso gravar?
— Que tal vídeo-teipe? — e nós trocamos um beijo longo e apaixonado. Quando paramos, Adrian
comentou: — Sabe de uma coisa? Para uma mulher inteligente, você é idiota.
— Aí está uma das coisas mais lindas que alguém já disse.
— O que quero dizer é que você pode ter tudo quanto deseja. . .
143
só que não sabe. Podia ter qualquer um, bastaria agarrá-lo pelos colhões. Devia vir comigo
e descobrir o pouco que Bennett lhe fará falta. Faremos uma odisséia. Descobrirei a Europa. . . você
descobrirá a si própria.
— Só isso? Quando é que começamos?
— Amanhã ou depois de amanhã, ou no sábado. Quando o congresso acabar.
— E para onde vamos?
— É exatamente essa a questão. Nada de planos. Limitamo-nos a partir. É como As vinhas da
lira. Seremos migrantes.
— As vinhas da ira.
— Lira.
— Ira, como na ira de Deus.
— Lira.
— Você está errado, meu benzinho. Você é analfabeto, e não o esconde. Steinbeck é escritor
americano. . . As vinhas da ira.
—’ Lira.
— OK, está errado, mas deixe pra lá.
— Eu já deixei, meu amor.
— Quer dizer que vamos partir sem fazer plano algum?
— O plano é você descobrir como é forte. O plano é você começar a acreditar que se agüenta
sozinha. . . isso devia ser planejamento suficiente para qualquer pessoa.
— E o que me diz de Bennett?
— Se ele for esperto, dará o fora com outra mulher.
— Você acha?
— É o que eu faria, afinal. Olhe. . . é claro que você e ele vão ter de fazer uma reforma de base.
Não podem continuar a se lamuriar um para o outro, por toda a vida. Eu sei que há pessoas
morrendo em Belfast e Bangladesh, mas esse é mais um motivo pelo qual você deve aprender a
divertir-se... a vida deve ser vivida, pelo menos, por parte do tempo. Você e Bennett parecem dois
fanáticos: ”Abandonai todas as esperanças, o fim está próximo”. Vocês não fazem outra coisa, além
de preocupar-se? É um desperdício infernal.
— Ele chamou você do pior nome possível — contrapus, rindo.
— Chamou?
— Ele o chamou de ”objeto parcial”.
— Chamou, mesmo? Bem, ele também é um maldito ”objeto parcial”. Esse filho da puta metido a
psicanalista.
144
— Você também se mete a analista, meu benzinho. Às vezes acho que deveria largar os dois. ”MULHER
SUFOCADA EM JARGÃO. AMANTE E MARIDO PRESOS PARA AVERIGUAÇÕES.”
Adrian riu e acariciou minha bunda. Nenhum jargão, nesse particular. Tratava-se de objeto
completo. Uma bunda e meia, na verdade. Eu jamais me sentira tão satisfeita com minha bunda
gorda do que quando me achava com Adrian. Se, ao menos, os homens soubessem! Todas as
mulheres acham que são feias, até as bonitas. O homem que compreendesse isso podia foder mais
mulheres do que Dom Juan. Todas acham que suas pombas são feias. Todas encontram defeitos no
próprio corpo. Todas acham suas bundas grandes demais, os seios pequeninos, as coxas gordas, os
tornozelos grossos; até os modelos e atrizes, até as mulheres que são consideradas belíssimas, não
tendo motivo para preocupação alguma a esse respeito, preocupam-se assim mesmo.
— Eu amo a sua bunda gorda — disse Adrian. — Toda a comida que você teve de engolir para
ficar assim. Nham! — e afundou os dentes nela. O canibal.
— O problema com seu casamento — disse ele, falando com minha bunda — é que é feito apenas
de trabalho. Vocês não se divertem juntos?
— Claro que sim. . . ei. . . está machucando.
— Divertem-se quando? — e ele se sentava. — Conte-me quando foi que se divertiram.
Eu vasculhei os miolos. A briga em Paris. O desastre de carro na Sicília. A briga em Paestum. A
briga para escolher apartamento. A briga porque eu havia parado com a análise. A briga por causa
do esqui. A briga por causa das brigas.
— Nós nos divertimos muitíssimo. Você não precisa ficar me espremendo.
— Mentirosa! Toda a sua análise não passa de desperdício, se continuar mentindo a si própria o
tempo todo.
— Nós nos divertimos na cama.
— Só porque eu não a fodi corretamente, aposto.
— Adrian, acho que você quer estragar o meu casamento. É o seu joguinho, não? Assim se
diverte, é isso o que pretende, foi isso o que o fisgou. Eu posso ter sido fisgada na cuca. Bennett pode
ter sido fisgado pelo jargão. Mas você foi fisgado por um triângulo. Essa a sua especialidade. Com
quem Martine estava vivendo, que a tornou tão atraente a seus olhos? Com quem Esther estava
fodendo?
145
Você é um vampiro de casamentos, nada mais que isso. É um abutre.
— Sim, quando encontro carniça, gosto de limpá-la. Foi você quem disse, eu não. A metáfora do
abutre é sua, patinha. A carne morta também é sua. E de Bennett.
— Eu acho que você gosta mais de Bennett do que reconhece. Acho que você se amarra nele.
— Ainda não resolvi se sou bicha ou não — disse ele, sorrindo.
— Aposto que é.
— Pense o que quiser, patinha. Qualquer coisa para deixar de desfrutar a vida de verdade.
Qualquer coisa para continuar sofrendo. Conheço seu tipo. Masoquista judia dos infernos. Na
verdade, eu gosto bastante de Bennett, só que ele é um maldito masoquista chinês. Faria muito bem a
ele se você desaparecesse. Talvez mostrasse a ele que não pode continuar vivendo desse modo,
sofrendo por todo o tempo e chamando Freud por testemunha.
— Se eu der o fora, vou perdê-lo.
— Só se não valer a pena continuar com ele.
— Por que você diz isso?
— É tão evidente. Se ele partir, nesse caso não é para você. E se ele a receber de volta, será em
base nova. Nada de rastejar. Nada de usarem um a culpa do outro. Você não pode perder nada. E,
enquanto isso, vamos nos divertir às pampas.
Fingi não sentir a tentação, mas na verdade achava-me tentada. E muitíssimo. Quando pensava na
proposta tinha mesmo a impressão de que Bennett sabia tudo sobre a vida, a não ser que divertir-se
devia fazer parte dela. A vida era uma doença prolongada, a ser curada pela psicanálise. Podia-se
não curá-la, mas, com o tempo, morria-se de qualquer modo. A base do divã haveria de erguer-se em
volta da gente e tornar-se um caixão, e seis analistas de roupa negra nos carregariam para a sepultura
(e jogariam jargão sobre a cova aberta).
Bennett tinha conhecimento de objetos parciais e objetos totais, Édipo e Electra, escolafobia e
claustrofobia, impotência e frieza, parricídio e matricídio, inveja do pênis e inveja do útero,
elaboração e associação livre, mágoa e melancolia, conflito intrapsíquico e conflito extrapsíquico,
nosologia e etiologia, demência senil e demência precoce, projeção e introjeção, auto-análise e terapia
de grupo, formação de sintoma e exacerbação de sintoma, estados amnésicos e estados de fuga, choro
patológico e gargalhadas nos sonhos,
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insônia e sono excessivo, neurose e psicose, até que aquilo começava a transbordar pelas orelhas
de quem ouvisse, mas não parecia saber coisa alguma sobre rir e brincar, fazer piadas e trocadilhos,
abraçar e beijar, cantar e dançar — todas as coisas, em suma, que davam valor à vida. Como se
fosse possível desejar que a vida fosse feliz por meio da psicanálise. Como se fosse possível
continuar sem risadas, desde que se tivesse a psicanálise. Adrian gargalhava, ria, e por isso eu estava
pronta a vender minha alma.
O sorriso. Quem foi que disse que o sorriso é o segredo da vida? Adrian tinha um sorriso caricato.
Eu também ria o tempo todo. Quando estávamos juntos, achávamos que podíamos vencer qualquer
coisa, bastando rir.
— Você vai ter de afastar-se dele — disse Bennett — e voltar para a análise. Ele não serve para
você.
— Tem razão — concordei. O que eu acabara de dizer? Você tem razão, você tem razão, você
tem razão. Bennett tinha razão e Adrian também tinha razão. Os homens sempre gostaram de mim
porque concordo com eles. E não é concordância apenas da boca para fora. No momento em que o
digo, estou mesmo concordando.
— Vamos voltar a Nova York logo depois de o congresso acabar.
— OK — disse eu, falando sério.
Olhei para Bennett e pensei em como o conhecia bem. Ele se mostrava sério e sóbrio quase até o
ponto da loucura, às vezes, mas era isso, também, o que eu amava nele. Sua fidedignidade total. Sua
crença em que a vida era um enigma que poderia finalmente ser decifrado por meio de trabalho rijo e
decisão. Eu partilhava isso com ele tanto quanto partilhava a risada com Adrian. Amava Bennett e
sabia que o amava. Sabia que minha vida era com ele, não com Adrian. Nesse caso, o que me impelia
tanto a deixá-lo e partir com Adrian? Por que os arrazoados de Adrian falavam ao próprio tutano de
meus ossos?
— Você podia ter um caso sem que eu soubesse — disse ele. — Eu lhe dou muita liberdade.
— Eu sei — e baixei a cabeça.
— Você, na verdade, fez isso por minha causa, não foi? Devia estar com muita raiva de mim.
— Ele é impotente na maior parte do tempo, aliás — declarei. Agora, havia-os traído, a ambos.
Tinha contado a Adrian os segredos de Bennett e a Bennett os de Adrian. Levando informações de
um para o outro. E eu era a mais traída de todas.
147
Exposta, à vista, traidora que era. Não tinha fidelidade alguma? Queria morrer. A
morte era o único castigo adequado para os traidores.
— Era de se imaginar que fosse impotente, ou então homossexual. De qualquer forma, está claro
que ele odeia as mulheres.
— Como sabe?
— Por você.
— Bennett, sabe que eu o amo?
— Sim, e isso só serve para piorar as coisas. Lá estávamos, entreolhando-nos.
— Às vezes eu fico muito cansada de estar séria todo o tempo. Queria rir, queria divertir-me.
— Acho que minha natureza sombria expulsa a todos, no fim — disse ele, cheio de tristeza, e
depois enumerou todas as pequenas que haviam sido expulsas. Eu as conhecia todas pelo nome.
Enlacei-o.
— Eu podia ter casos, sem que você soubesse. E conheço muitas mulheres que fazem isso... —
(Na verdade, só conhecia três que tinham esse hábito constante ) — Mas seria ainda pior, de um
certo modo. Levar uma vida secreta e ir para casa, para você, como se nada acontecesse. Seria ainda
mais difícil de agüentar. Pelo menos, eu não agüentaria.
— Talvez eu devesse ter compreendido como você se sente sozinha — disse ele. — Talvez tenha
sido minha culpa.
E nos entregamos ao amor. Não fingi que Bennett era qualquer outro, senão ele próprio. Não era
preciso. Era Bennett que eu queria.
Ele estava errado, pensei depois. O casamento era fracasso meu. Se o amasse o bastante, teria
curado sua tristeza, em vez de ter-me deixado engolir por ela e ansiar por
fugir-lhe.
— Não existe coisa mais difícil do que o casamento
— afirmei.
— Eu acho que realmente levei você a isso — disse ele. Adormecemos.
— O fato de ele ser tão malditamente compreensivo só faz com que eu me sinta pior. Meu Deus,
eu me sinto culpada!
— Qual é a novidade, então? — perguntou Adrian. Havíamos descoberto uma piscina nova em
Grinzing,
pequena e encantadora, com número relativamente pequeno
148
de alemães gordos. Estávamos sentados à beira da piscina, tomando cerveja.
— Eu sou chata? Eu me repito? — Perguntas retóricas.
— Sim — disse Adrian —, mas eu gosto de ser chateado por você. É mais divertido do que ser
divertido por outra.
— Eu gosto da fluência da conversa, quando estamos juntos. Nunca me preocupo em impressionar
você. Digo o que penso.
— Isso é mentira. Ainda ontem você me veio com uma besteirada, dizendo que eu era bom na
cama, quando não fui.
— Tem razão — essa veio logo.
— Mas sei o que você quer dizer. Nós conversamos bem. Sem solavancos e balanços. Esther entra
em silêncios sombrios e prolongados, e nunca sei em que está pensando. Você é aberta. Contradiz-se
por todo o tempo, mas gosto muito disso. É humano.
— Bennett também tem silêncios prolongados. Eu quase preferiria que ele se contradissesse, mas
ele é perfeito demais. Não se compromete com qualquer afirmação, até saber que é algo definitivo.
Não se pode viver desse jeito. . . tentando ser definitivo toda a vida ... a morte é que é definitiva.
— Vamos nadar outra vez — propôs Adrian.
— Por que você estava com tanta raiva de mim? — perguntou Bennett, mais tarde, aquela noite.
— Porque eu achava que você me tratava como um artigo de sua propriedade. Porque você disse
que não tinha empatia por mim. Porque você nunca disse que me ama. Porque você nunca me
chupou. Porque me culpava por toda a sua infelicidade. Porque você entrava nesses silêncios
compridos e nunca me deixava reconfortá-lo. Porque você insultou os meus amigos. Porque você se
fechou, isolou-se de qualquer espécie de contato humano. Porque você me fez sentir-me como se
estivesse morrendo de estrangulamento.
— Foi sua mãe quem estrangulou você, eu não. Eu lhe dei toda a liberdade que você queria.
— Isso é uma contradição em termos. Uma pessoa não é livre, se sua liberdade lhe foi ”dada”.
Quem é você para me ”dar” liberdade?
149

— Mostre-me uma só pessoa que seja inteiramente livre. Quem? Alguém é livre? Seus pais
sufocaram você. . . eu, não! Você está sempre me incriminando por aquilo que sua mãe lhe fez.
— Sempre que eu o critico, de qualquer jeito, você me joga outra interpretação psicanalítica na
cara. É sempre minha mãe ou meu pai. .. e não algo entre nós. Não podemos manter a coisa entre
nós?
— Eu bem queria que fosse assim. Mas não é. Você está sempre revivendo sua infância, quer o
reconheça ou não. . . que diabo pensa que está fazendo com Adrian Goodlove? Ele se parece
exatamente com seu pai. . . ou talvez você não tenha notado.
— Eu não tinha notado. Ele não se parece em nada com meu pai.
Bennett grunhiu.
— Essa é boa.
— Olhe. . . não vou discutir com você se ele se parece ou não com meu pai, mas essa é a primeira
puta vez em que você demonstra algum interesse por mim ou age como se me amasse. Eu sou
obrigada a foder com alguém, diante de seus olhos, ou então você não me dedica um só peido. Muito
engraçado, não acha? E a sua teoria psicanalítica diz alguma coisa a esse respeito? Talvez seja o seu
problema de Édipo, agora. Talvez eu seja sua mãe e Adrian se pareça a seu pai. Por que é que nós
não nos juntamos todos, e fazemos uma sondagem de grupo a esse respeito? Na verdade, acho que
Adrian está apaixonado por você. Eu sou apenas a intermediária. É você quem ele quer de verdade.
— Para mim, não seria surpresa, em absoluto. Eu já lhe disse que,acho que ele é bicha.
— Por que não dormimos todos juntos, para descobrir?
— Não, obrigado. Mas não quero impedi-la, se é o que deseja.
— Eu não vou.
— Pode ir — berrava Bennett, com mais paixão na voz do que jamais ouvira antes. — Vá com
ele! Você nunca mais poderá fazer qualquer trabalho sério. Eu sou a única pessoa em sua vida que a
manteve fora do hospício até aqui. .. mas vá em frente, e saia! Você vai se foder tão completamente
que nunca mais poderá fazer algo de algum valor.
150
— Como é que você vai ter alguma coisa interessante para escrever, se está com tanto medo das
vivências novas? — perguntou Adrian. Eu acabara de lhe dizer que não iria com ele, resolvera voltar
para casa com Bennett. Estávamos sentados no Triumph de Adrian, estacionado numa travessa perto
da universidade. (Bennett se achava numa reunião cujo tema era ”Agressão em grupos numerosos”.)
— Eu me atiro a experiências novas o tempo todo. É aí que reside o problema, exatamente.
— Besteira. Você é uma princesinha assustada. Eu lhe ofereço uma experiência que poderia
transformá-la de verdade, uma experiência sobre a qual você poderia escrever, e você foge. Volta a
Bennett e a Nova York. Volta a seu cantinho conjugal seguro. Meu Deus. .. que bom eu não estar
mais casado, se a coisa vai dar nisso. Pensei que você tinha mais coragem. Depois de ler todos os
seus poemas ”sensuais e eróticos”. . . entre aspas. . . pensei que você era melhor do que mo — e
lançou-me um olhar de nojo.
— Se eu passasse todo o meu tempo sendo sensual e erótica, ficaria cansada demais para poder
escrever — tentei explicar.
— Você é uma impostora — declarou —, uma impostora total. Você nunca vai ter algo de valor
para escrever, se não crescer. A coragem é o primeiro princípio. Você está apenas assustada.
— Não me provoque.
— Quem está provocando? Estou apenas falando sério com você. Nunca vai saber porra nenhuma
sobre escrever, se não aprender a ter coragem.
— E que diabo você sabe a esse respeito?
— Eu sei que li um pouco de seu trabalho e que você dá uns pedacinhos de si, nesse trabalho. Se
não tomar cuidado, vai tornar-se um fetiche para todos os tipos de criaturas frustradas. Todos os
birutas do mundo vão cair em sua rede.
— Isso já aconteceu, em certa medida. Meus poemas são um terreno ditoso para as mentes que
perderam o equilíbrio — eu estava plagiando e copiando Joyce, mas Adrian não saberia, em seu
analfabetismo. Nos meses decorridos desde o aparecimento de meu primeiro livro, recebera muitos
telefonemas bizarros e cartas de homens, na suposição de que eu fazia tudo o que escrevia, e fazia
com qualquer um, em qualquer lugar. De repente, eu me tornara propriedade pública, por assim
dizer. Era uma sensação singular.
151
Em certo sentido, escrevemos para seduzir o mundo, mas quando a coisa acontece, começamos a nos
sentir como prostitutas. A disparidade entre nossa vida e nosso trabalho vem a ser tão grande quanto
antes. E as pessoas seduzidas por nosso trabalho estão, em geral, seduzidas pelos motivos errados.
Ou são eles os motivos certos? Será que todos os doidos do mundo estão com o meu número de
telefone? E não é o número só do telefone, convém notar.
— Eu pensei que tínhamos uma coisa boa, nós dois — disse Adrian —, mas acabou, agora,
porque você está se cagando de pavor. Francamente, estou desapontado. . . bem, acho que não será a
primeira vez que uma mulher me desaponta. Naquele primeiro dia, quando vi você discutindo na
mesa de registro, pensei: aí temos uma mulher realmente esplêndida. . . uma verdadeira lutadora. Ela
não leva desaforos para casa. Mas estava equivocado. Você não tem espírito de aventura. Você é
uma princesa. Perdoe-me por tentar perturbar o seu casamentinho — e, ato contínuo, virou a chave
de ignição e acionou o motor do carro, em corroboração ao que dizia.
— Foda-se, Adrian — retorqui eu, e em voz fraca, mas era tudo o que me ocorria.
— Não me foda, a mim... vá para casa e foda-se, a si própria. Volte a ser uma prenda doméstica
burguesa e bem a salvo, que escreve quando tem tempo.
Essa foi a piada menos bondosa de todas.
— E o que você acha que você é. . . um doutorzinho burguês que faz o existencialista no tempo de
folga? — eu estava quase gritando.
— Vá em frente, pode gritar, patinha, não me aborrece, em absoluto. Não tenho que explicar a
você minha vida. Sei o que estou fazendo. Você é que se mostra tão indecisa. Você é quem não
consegue decidir se vai ser Isadora Duncan, Zelda Fitzgerald, ou Marjorie Morningstar — e
acelerava o motor, de modo muito teatral.
— Leve-me para casa — ordenei.
— Com prazer, basta me dizer onde fica isso.
Permanecemos sentados algum tempo, sem nos falarmos. Adrian fazia o motor acelerar, mas não
tomou providência alguma para nos retirarmos dali, e permaneci sentada, calada, dilacerada por
meus dois demônios gêmeos. Ia ser apenas uma prenda doméstica que escrevia, quando tinha tempo?
Seria esse o meu destino? Ia deixar passar as aventuras que se me ofereciam? Ia continuar vivendo
minha vida como uma mentira?
152
Ou ia fazer com que minhas fantasias e vida se juntassem, pelo menos uma vez?
— E se eu mudar de idéia? — perguntei.
— Tarde demais. Você já arruinou tudo. Nunca voltará a ser o mesmo. Eu não sei, agora, se eu
quero ficar com você, sinceramente.
— Você é mesmo injusto, não acha? Um simples instante de indecisão e você desiste de mim. Quer
que eu desista de tudo. . . minha vida, meu marido, meu trabalho. . . sem hesitação de um só instante,
e o acompanhe pela Europa, de acordo com alguma idéia lainguiana ainda crua, de vivência e
aventura. Se, pelo menos, você me amasse. . .
— Não me venha estragar tudo com essa de amor. Essa é uma empulhação das maiores. O que
tem o amor a ver com a coisa?
— Tudo.
— Besteira. Você diz amor. . . mas quer dizer segurança. Bem, não existe coisa tal como
segurança. Mesmo se você voltar para casa, para o seu maridinho seguro. . . fica sem saber se ele vai
cair morto, amanhã, de um ataque de coração, ou dar o fora com outra mulher, ou simplesmente
parar de amá-la. Você pode ler o futuro? Sabe predizer o destino? O que leva você a pensar que a
segurança é tão segura, assim? Tudo quanto é certo é que, se você desprezar esta experiência, nunca
mais terá outra oportunidade. A morte é definitiva, como você disse ontem.
— Não pensei que você estava escutando.
— Isso mostra o quanto você sabe — e ele fitava o volante.
— Adrian, você tem razão com relação a tudo, menos o amor. O amor importa, sim. Importa que
Bennett me ame e você não.
— E a quem você ama? Já conseguiu pensar a esse respeito? Ou é tudo uma questão de quem você
pode explorar e manipular? Será uma questão de saber quem lhe dá mais? Será uma questão, afinal,
de dinheiro?
— Isso é besteira.
— É, mesmo? Mas eu estive pensando, você sabe que sou pobre, que quero escrever livros e não
me importo porra nenhuma com fazer medicina. . . bem diferente daquilo que são os seus ricos
médicos americanos.
— Ao contrário, sua pobreza atrai meu esnobismo invertido. Eu gosto da sua pobreza. Além do
mais,
153
se você se sair tão bem quanto o velho Ronnie Laing, não será pobre. Você vai longe, rapaz. Os psicopatas
sempre vão.
— Agora você dá a impressão de estar citando palavras de Bennett.
— Nós concordamos em que você é um psicopata.
— Nós, nós, nós. . . esse ”nós” tão cômodo. Puxa vida. . . deve ser muito cômodo estar casada, de
saco cheio, e usar esse ”nós”. Mas isso conduz à arte? Esse aconchego doméstico não é
estultificante? Não chegou o momento de você transformar sua vida?
— lago... eis o que você é. Ou a serpente no Jardim do Paraíso.
— Se o que você tem é o Paraíso. . . graças a Deus nunca passei por tanto.
— Preciso voltar.
— Voltar para onde?
— Ao Paraíso, ao meu tédio conjugal confortável, a esse ”nós” coletivo, à minha estultificação.
Preciso disso, preciso muito.
— Assim como precisa de mim, e precisa muito, quando está de saco cheio de Bennett.
— Olhe... você disse. . . está acabado.
— Pois é.
— Bem, leve-me para o hotel. Bennett logo estará de volta. Eu não quero chegar atrasada mais
uma vez. Ele acabou de ouvir uma monografia sobre ”Agressão em grupos numerosos”. Talvez fique
com alguma idéia.
— Nós somos um grupo pequeno.
— Verdade, mas nunca se sabe ao certo.
— Você gostaria mesmo que ele lhe desse uma boa coça, não é? Poderia, então, sentir-se
adequadamente martirizada.
— Talvez — e eu imitava a calma dele, o que o enfurecia.
— Olhe. . . podíamos fazer uma coisa comunal. . . você, eu e Bennett. Podíamos atravessar a
Europa à trois.
— Para mim, está ótimo, mas vai ser preciso convencê-lo. E não será fácil. Ele não passa de um
médico burguês, casado com uma prenda doméstica que escreve quando tem tempo. Ele não é
esclarecido.. . como você. Agora faça o favor de me levar para casa.
Ele ligou o carro a sério, dessa vez, e saímos dali. Iniciamos o familiar caminho tortuoso através
das ruas de Viena, perdendo-nos a cada volta.
154
Depois de uns dez minutos disso, estávamos rindo animadíssimos outra vez. Nossa mútua
incapacidade nunca deixava de nos deliciar um com o outro. Não podia durar, está claro, mas era
inebriante, naquele momento. Adrian parou o carro e inclinou-se para me beijar.
— Não vamos voltar. . . vamos passar a noite juntos — propôs.
Eu me perguntava: o que era eu, uma prenda doméstica assustada?
— OK — disse (e arrependi-me no mesmo instante). Mas, afinal de contas, que diferença uma
noite poderia causar? Eu voltaria a Nova York com Bennett.
A noite seguinte foi uma dessas coisas de sonho, apagada, não guardo os detalhes precisos.
Começamos a beber em um café de trabalhadores na Ringstrasse, beijando-nos sem parar entre os
goles de cerveja, passando cerveja de uma boca para outra, ouvindo com avidez uma gordona idosa a
criticar as despesas com o programa espacial americano, e como eles deviam gastar aquele dinheiro
na Terra (para construir fornos crematórios?) em vez de gastá-lo na Lua, e depois comemos
(beijando-nos por todo o jantar) num restaurante ao ar livre, pondo, um na boca do outro,
Leberknõdel e Bauernschnitzel em mordidas apaixonadas, e muito embriagados voltamos à pensão
de Adrian, onde copulamos adequadamente pela primeira vez,
— Acho que a amaria — disse ele, enquanto me fodia —, se acreditasse no amor.
À meia-noite, lembrei-me de repente de que Bennett já devia estar esperando havia umas seis horas
no hotel, levantei-me da cama, desci até o telefone público, apanhei dois xelins com o porteiro
sonolento e telefonei. Bennett saíra. Tinha deixado um recado cruel, dizendo: ”Vejo-a amanhã cedo”.
Dei então à telefonista o meu número de telefone e endereço. Em seguida voltei para a cama, onde
Adrian roncava como um porco.
Por cerca de uma hora fiquei deitada, cheia de aflição, ouvindo os roncos de Adrian, odiando-me
por minha infidelidade e incapaz de me acalmar o bastante para dormir. À uma hora de madrugada a
porta se abriu e Bennett irrompeu ali. Olhei bem para ele, percebi que ele ia despachar-nos, aos dois.
Intimamente, estava satisfeita — merecia ser morta. Adrian também.
155

Bennett, em vez disso, tirou a roupa e me fodeu com violência bem ali, na cama ao lado daquela em
que estava Adrian. Em meio a esse desempenho singular, Adrian despertou e ficou olhando, os olhos
brilhando como os de um torcedor de boxe em luta singularmente sádica. Quando Bennett havia
gozado e estava deitado em cima de mim, sem fôlego, Adrian se inclinou e começou a afagar-lhe as
costas. Bennett não emitiu o menor protesto. Entrelaçados e suando, nós três finalmente
adormecemos.
Contei tais acontecimentos do modo mais simples possível, porque nada que pudesse dizer, a fim
de embelezá-los, conseguiria torná-los mais chocantes. Todo o episódio foi mudo, sem palavras —
como se nós três estivéssemos juntos em uma pantomima e cada um dos três houvesse ensaiado o
papel por tantos anos que o desempenhava, agora, como por hábito. Estávamos apenas limitando-nos
a fazer os movimentos de algo que tínhamos feito no terreno da fantasia, muitas vezes. Todo o
episódio — desde eu deixar o endereço com a telefonista, até Adrian afagando as costas morenas e
belas de Bennett — foi tão inevitável quanto uma tragédia grega — ou um espetáculo de chanchada.
Lembro-me de alguns detalhes: os roncos resfolegantes de Adrian, a expressão furiosa no semblante
de Bennett quando entrou no quarto (e, em sucessão rápida, entrou em mim), o modo pelo qual
sorrimos, os três, uns nos braços dos outros, o mosquitão que se nutriu de nosso sangue misturado e
não parou de me acordar com suas picadas. Na penumbra azulada do amanhecer despertei para
descobrir que rolara para o lado e o esmagara, ao mosquito, durante a noite. Aquilo deixou uma
mancha sangrenta de Rorschach no lençol, como a mancha menstrual de uma mulher minúscula.
De manhã, desconhecemo-nos, renegamo-nos. Nada acontecera. Fora um sonho. Descemos os
degraus barrocos da pensão como se fôssemos, os três, pensionistas separados que se encontravam
pela primeira vez, naquela escada.
Cinco dos estudantes ingleses e franceses faziam o desjejum no salão do térreo. Voltaram as
cabeças, todos juntos, fitando-nos. Eu os cumprimentei de modo caloroso em demasia —
principalmente Reuben Finkel, um estudante inglês de cabelos vermelhos e bigode, e forte sotaque
cockney. Zombeteiro como quê, ele me surpreendera numerosas vezes,
156
a mim e Adrian, em piscinas e cafés. Muitas vezes pensei que nos vigiava com binóculo.
— Olá, Reuben — disse eu. Adrian juntou-se aos cumprimentos, mas Bennett não disse coisa
alguma. Seguiu andando à frente, como se estivesse em transe. Adrian o acompanhou e, por
momentos, ocorreu-me o pensamento de que talvez algo mais houvesse acontecido entre os dois
homens, durante a noite, mas arredei imediatamente o pensamento. Por quê?
Adrian ofereceu levar-nos de volta a nosso hotel. Bennett recusou-se, hirto. Mas quando
descobrimos que era impossível arranjar um táxi, Bennett finalmente cedeu — sem, ao menos, a
cortesia de uma palavra ou aceno na direção de Adrian. Este deu de ombros e tomou o volante. Eu
tratei de me comprimir no minúsculo banco traseiro do veículo. Dessa feita Bennett indicou o
caminho e nós não nos perdemos. Mas por toda aquela viagem reinou um silêncio terrível entre nós, a
não ser pelas indicações que Bennett oferecia a Adrian. Eu queria falar. Tínhamos passado por algo
importante, nós três juntos, e de nada adiantava fingir que não sucedera nada. Aquilo podia ser o
começo de alguma compreensão entre nós, mas em vez disso Bennett estava fanaticamente decidido a
negá-lo. Também Adrian não ajudava em nada. Toda a conversa deles sobre psicanálise e auto-
análise não passava de besteira. Diante de um incidente real, em suas próprias vidas, não conseguiam
sequer examiná-lo. Era ótimo ser um voyeur psicanalítico e dissecar os anseios homossexuais de
outro, o triângulo edípico de outrem, o adultério desta ou daquela criatura, mas diante de seus
próprios problemas perdiam a fala. Ambos olhavam fixamente à frente, como gêmeos siameses
ligados por um ponto crucial, mas invisível, ao lado do pescoço. Irmãos de sangue. E eu era a irmã
que os levara à cagada. A mulher que lhes ocasionara a queda. Pandora e sua caixa cheia de
maldades.
157

A caixa de Pandora ou minhas duas mães


”A mulher é sua mãe. Nisso temos o principal.”
Anne Sexton
É claro que tudo começou com minha mãe. Minha mãe: Judith Stoloff White, também conhecida
como Jude. Não que seja criatura obscura, mas difícil de registrar no papel. Meu amor e meu ódio
por ela acham-se tão confusamente entremeados que mal a consigo enxergar. Nunca sei quem é uma,
quem é outra. Ela sou eu, eu sou ela, e nós somos todas juntas. O cordão umbilical que nos liga
jamais foi cortado, de modo que fraquejou e apodreceu, enegreceu-se, a própria intensidade da nossa
necessidade nos levou a denunciarmo-nos mutuamente. Queremos comer-nos, uma à outra, queremos
estrangular-nos, uma à outra, com amor. Queremos sair correndo e gritando, uma da outra, tomadas
de pânico, antes que qualquer dessas coisas aconteça.
Quando penso em minha mãe, sinto inveja de Alexander Portnoy. Se, ao menos, eu tivesse uma
verdadeira mãe judia — facilmente guardadinha e posta de lado — disporia de uma verdadeira
propriedade literária. (Estou sempre invejando os escritores e seus parentes: Nabokov e Lowell e
Tucci, com seus armários cheios de esqueletos aristocráticos elegantes, Roth e Bellow e Friedman
com seus pais populares, pegajosos como vinho da Páscoa dos judeus, gordurosos como sopa de
bolas de matzoh1.)
1 Pão sem fermento usado na Páscoa, pão ázimo (N do E)
158
Minha mãe recendia a Joy ou Diorissimo, e não sabia cozinhar bem. Quando tento reduzir à
essência o que me ensinou sobre a vida, não me resta mais do que o seguinte:
1. Acima de tudo, nunca seja vulgar.
2. O mundo é um lugar predatório: coma mais depressa!
”Vulgar” era o pior insulto que ela sabia dedicar a qualquer coisa. Lembro-me de que me levava
às compras e de sua expressão de desdém, com a qual enregelava as vendedoras no Saks, ao
sugerirem que comprasse algum vestido ou par de sapatos porque ”era muito popular . .. vendemos
cinqüenta esta semana”. — Era tudo o que ela precisava ouvir.
— Não — respondia —, não estamos interessadas nisso. Vocês não têm algo um pouco mais
incomum? — e logo a vendedora trazia todas as cores estapafúrdias que ninguém mais comprava —
coisas que seriam postas em liquidação, a não ser por minha mãe. E mais tarde ela e eu travávamos
uma luta tremenda, porque eu ansiava por ser vulgar, assim como minha mãe ansiava ferozmente por
ser incomum.
— Eu não agüento esse penteado — ela dizia, quando eu ia ao cabeleireiro com Pia e voltava com
um estilo tirado diretamente da revista Seventeen. — É horrivelmente vulgar.
Não que fosse feio, nem deselegante, mas vulgar. A vulgaridade era uma praga que se tinha de
evitar por todos os modos possíveis. Podia-se evitá-la fazendo redecorações freqüentes. Na verdade
minha mãe achava que todos os decoradores de interiores (bem como todos os desenhistas de roupas
e desenhistas de acessórios) nos Estados Unidos achavam-se organizados em uma rede de
espionagem, querendo tomar conhecimento de suas idéias mais recentes sobre decoração e vestidos, e
tornando-as repentinamente populares. E era verdade que ela possuía uma noção invulgar das modas
que viriam (ou seria apenas fruto de minha imaginação, tapeada pelo carisma dela?). Ornamentou a
casa em ouro velho, pouco antes que o ouro velho se tornasse a cor mais popular para cortinados,
tapetes e estofamento. Depois berrou que todos haviam ”roubado” suas idéias. Instalou azulejos
espanhóis no foyer antes que isso fosse feito por todas as yentas1 de Central Park West” — de cuja
companhia
' Fofoqueiras. (N. do E.)
159
ela se excluía com o maior cuidado. Comprou tapetes de pele branca da Grécia, antes que os mesmos
fossem importados por todas as lojas. Descobriu candelabros floridos de ferro trabalhado para o
banheiro, antes de todos os ”bichas decoradores” — como os chamava desdenhosamente.
Tinha a cabeceira de cama em latão antigo, persianas de janelas que combinavam com o papel de
parede, e toalhas roxas e vermelhas nos banheiros, quando o roxo e o vermelho ainda eram
considerados uma combinação de avant-garde. O medo que sentia da vulgaridade transparecia
principalmente nas roupas que vestia. Enquanto nós quatro crescíamos, ela e meu pai viajaram
muito, cuidando de negócios, e ela recolheu acessórios singulares por toda parte. Usava pijamas de
seda chinesa para ir ao teatro, anéis balineses para os dedos dos pés, calçados de sandálias, e Budas
minúsculos de jade montados como brincos nos ouvidos. Carregava um pára-sol de papel de arroz
oleado na chuva, e tinha calças de toureiro, feitas de tapeçarias japonesas tecidas com a unha. Em
certo ponto, em minha adolescência, compreendi que ela preferia parecer estapafúrdia e feia a comum
e bonita. E o conseguia, com freqüência. Era uma mulher alta, magra, de malares altos e cabelos
ruivos compridos, e sua estranha maneira de vestir-se junto com a maquilagem exagerada às vezes
lhe conferiam uma expressão de Charles Addamsy. Eu, naturalmente, ansiava por uma mãe loura,
clara, alva como leite e que jogasse bridge, ou pelo menos uma morena rechonchuda, com óculos
comuns e sapatos da Cruz Vermelha.
— Você não podia, por favor, usar outra coisa? — eu suplicava, quando se vestia para o Dia dos
Pais, envergando calças de toureiro e suéter de seda roxa à Ia Pucci, e um serape1 mexicano. (Minha
memória deve estar exagerando — mas assim dá para pegar o jeitão geral.) Eu me achava no sétimo
ano escolar, e no ápice de minha paixão pelas coisas comuns.
— O que há de mais no que estou usando?
O que não estava errado no que ela usava! Eu me encolhi, lá dentro de seu armário embutido na
parede, procurando algo comum. (Um avental! Um vestido doméstico! Um conjunto de suéteres de lã
angora! Algo apropriado para uma mãe em anúncio de Betty Crocker, uma Mãe com M maiúsculo.)
O armário tresandava a Joy e naftalina.
' Tipo de poncho em lã colorida com desenhos geométricos usado pelos mexicanos. (N. do E)
160
Havia capas de veludo, regalos de peles e penas, calças compridas de camurça, cafetãs de algodão
asteca, quimonos de seda japonesa, calções femininos irlandeses e escoceses, mas absolutamente
nada como um suéter de lã angorá.
— É só que eu queria que você usasse alguma coisa mais comum — disse eu, encabulada —,
coisas que não chamem a atenção das pessoas.
Ela dardejou-me um olhar, empertigou-se em toda a sua altura.
— Está com vergonha de sua própria mãe? Porque se está, Isadora, sinto pena de você. Sinto
pena, mesmo. Nada existe de bom em ser vulgar. As pessoas não nos respeitam por isso. Em última
análise, as pessoas correm atrás das pessoas que são diferentes, que têm confiança em seu próprio
gosto, que não vão seguindo com a manada. Você haverá de descobrir. Nada existe a ganhar em
ceder às pressões de vulgaridade de grupos. . . — e partimos para a escola num táxi do qual
emanavam lufadas de Joy, e com borlas mexicanas estremecendo tipicamente ao vento.
Quando penso em toda a energia, toda a agressão artística mal dirigida que minha mãe canalizou
em sua paixão por roupas singulares e novos planos de decoração, sinto o desejo de que ela houvesse
sido, em vez disso, uma artista bemsucedida. Três gerações de artistas frustrados: meu avô trepando
com modelos e amaldiçoando Picasso e pintando obstinadamente no estilo de Rembrandt, minha mãe
desistindo da poesia e pintura por roupas artísticas e reestofamentos compulsórios, minha irmã
Randy adotando a gravidez como se fosse uma nova forma de arte que ela inventara (e Lalah e Chloe
seguindo-a como se fossem discípulos).
Nada existe de mais feroz do que um artista fracassado. A energia permanece nele, mas, sem ter
saída, implode em um grande peido negro de raiva que enfumaça todas as janelas internas da alma.
Por horrível que sejam os artistas vitoriosos, com freqüência, nada existe de mais cruel ou vão do que
um artista fracassado. Meu avô, como afirmei, costumava pintar sobre as telas de minha mãe, em vez
de sair para comprar telas novas. Ela passou por algum tempo para a poesia, a fim de escapar a ele,
mas depois conheceu meu pai, que era compositor de canções e roubava as imagens dela, a fim de
usá-las em suas letras. Os artistas são pessoas horríveis. ”Nunca, nunca se meta com um homem que
quer ser artista”, costumava dizer minha mãe, que sabia do que estava falando.
161

Outro aspecto interessante é que tanto minha mãe quanto meu avô são dotados de talento especial
para cancelar os esforços de qualquer um que pareça estar se divertindo, trabalhando em algo ou
obtendo algum êxito nisso. Cito como exemplo disso um romancista de regular para bom (cujo nome
não vou mencionar) que é amigo de meus pais. Escreveu quatro romances, nenhum deles
distinguindo-se em estilo, nenhum deles entrando na lista de best sellers, e nenhum deles carreando-
lhe prémio algum, mas ainda assim parece muito satisfeito consigo mesmo, e parece estar saboreando
a posição de sábio-residente nas festas e coquetéis, e escritor-residente em alguma faculdade menor
de Nova York, cujo nome me escapa. Talvez ele goste mesmo de escrever. Algumas pessoas
singulares gostam, eu sei.
— Não sei como ele continua produzindo aquilo — minha mãe dirá —, é um escritor tão vulgar.
Não é estúpido, não é enganado por ninguém. . . — (minha mãe nunca chama as pessoas de
”inteligentes”; ”não é estúpido”, eis o máximo que concede) — ... Mas os livros dele são tão
vulgares. . . em nenhum deles conseguiu ganhar dinheiro, ainda. . .
E aí está a coisa! Porque embora minha mãe afirme respeitar a originalidade acima de tudo, o que
ela realmente respeita é o dinheiro, são os prémios. Ademais, existe a implicação, em todas as suas
observações sobre outros artistas, de que quase de nada lhes adianta perseverar só pelas recompensas
pífias que obtêm. Já se o amigo romancista houvesse ganho um prémio Pulitzer ou um NBA — ou
vendido um livro para o cinema — isso seria algo. Está claro que ela também haveria de diminuí-lo,
mas o respeito transpareceria em todo o seu rosto. Por outro lado, a humilde execução da coisa nada
significa para ela; tampouco importam as descobertas internas, o prazer do trabalho. Nada. Dotada
dessa atitude, não admira que se tenha dedicado ao estofamento.
Senão, vejamos um aspecto: seu interesse pela destruição. Começou, ao que creio, com sua fase
comunista da Liga de Estudantes de Arte de Provincetown, de seus dias, mas gradualmente, à medida
que o dinheiro e a arteriosclerose se apoderaram dela (ao mesmo tempo, como acontece tantas vezes),
converteu-se a seu próprio tipo de religião, composta de duas partes de Robert Ardrey e uma parte de
Konrad Lorenz.
Não creio que Ardrey ou Lorenz pretendessem produzir
162
o que ela extraiu de seus nomes: uma espécie de neohobbesianismo, no qual fica provado que a
vida é uma porcaria, uma coisa mesquinha, bruta e insatisfatória; o desejo de posição, dinheiro e
poder é universal; a territorialidade é instintiva; e o egoísmo, portanto, a lei principal da vida. (”Não
torça o que estou dizendo, Isadora; até o que as pessoas chamam de altruísmo é egoísmo com outro
nome.”)
Como isso veio entupir todas as avenidas de expressão criativa e rebelde em mim está bem claro:
1. Eu não podia ser uma hippie, porque minha mãe já se vestia como uma hippie (enquanto
acreditava em territorialidade e na universalidade da guerra).
2. Eu não podia rebelar-me contra o judaísmo, porque não dispunha de judaísmo algum contra o
qual me rebelar.
3. Eu não podia esbravejar com minha mãe judia, porque o problema era mais profundo do que o
judaísmo ou as mães.
4. Eu não podia ser uma artista, sob pena de que me pintassem com tinta.
5. Eu não podia ser poeta, sob pena de me apagarem do quadro-negro.
6. Eu não podia ser qualquer outra coisa, porque isso seria vulgar.
7. Eu não podia ser comunista, porque minha mãe já fora.
8. Eu não podia ser considerada rebelde (ou, pelo menos, pária) casando-me com Bennett, porque
minha mãe acharia que ”pelo menos, isso não é vulgar”.
Que possibilidades me restavam? Em que canto congestionado eu podia agir, representar o que tão
presunçosamente chamava de minha vida? Sentia-me como aqueles filhos de pais fumadores de
maconha, que se tornam quadrados dos mais repelentes. Talvez pudesse partir pela Europa com
Adrian Goodlove, e nunca mais voltar a Nova York.
Entretanto... tenho, também, outra mãe. Ela é alta e magra, mas tem as faces mais macias do que
ponta de salgueiro, e quando enfio a cara em seu casaco de peles, de volta para casa, sinto que
nenhum mal pode me acontecer. Ela me ensina o nome das flores, beija-me e abraça-me depois de
algum fanfarrão no jardim de infância
163

(filho de algum psiquiatra) agarrar meu novo velocípede inglês e sair rodando com ele, morro abaixo, batendo
na cerca. Fica sentada por toda a noite, em minha companhia, ouvindo as composições que escrevi
para a escola, e julga que eu sou a maior escritora da história, embora esteja, apenas, com oito anos
de idade. Ri de minhas piadas, como se eu fosse Milton Berle, Groucho Marx e Irwin Corey ao
mesmo tempo. Leva-me, bem como a Randy, Lalah e Chloe, a patinar no gelo no lago do Central
Park, com dez de nossos amigos, e, enquanto todas as outras mães ficam sentadas em casa, jogando
bridge, mandando as empregadas buscarem os filhos, ela amarra todos os nossos patins (com os
dedos congelados) e depois calça seus próprios patins e desliza no lago conosco, apontando os
lugares perigosos (gelo fino), ensinando-nos a deslizar em figuras, rindo, conversando, ficando roxa
com a friagem. Sinto tanto orgulho dela!
Randy e eu nos jactamos com nossas amigas, dizendo que nossa mãe (com seus cabelos compridos
e soltos, olhos castanhos enormes), é tão jovem que nunca precisa maquilar-se. Ela não é uma jovem
resmungona como as outras mães, usa camisas olímpicas e calças de esqui exatamente como nós. E
usa os cabelos compridos amarrados com fita de veludo, como se fosse uma de nós. E nem mesmo a
chamamos de mamãe, porque é tão divertida! E não se parece a qualquer outra pessoa.
Em meu aniversário (26 de março, Áries, os ritos da primavera), desperto e descubro que meu
quarto foi transformado em caramanchão. Em volta de minha cama estão jarros de narcisos do prado,
íris, anémonas. No chão encontro montes de presentes, envoltos nos papéis mais coloridos e
enfeitados com flores de papel. Há ovos de Páscoa, pintados a mão por minha mãe, a fim de se
parecerem a ovos Eabergé. Há caixas de chocolates e ovos de geléia (”para um ano doce”, diz ela, ao
me abraçar), e há sempre um imenso cartão de aniversário, pintado em aquarela e a me mostrar com
todas as minhas cores mais fulgurantes: é a meninazinha mais bonita do mundo, cabelos louros
compridos, olhos azuis e maços de flores nos braços. Minha mãe me lisonjeia, faz de mim um ideal
— ou é mesmo assim que me vê? Fico satisfeita, intrigada. Sou, na verdade, a menina mais bonita do
mundo para ela, não sou? Ou não sou? E que dizer de minhas irmãs? E que dizer do modo como ela
berra comigo, alto o bastante para que o telhado nos caia por cima?
Minha outra mãe nunca grita, e devo tudo o que sou a ela.
164
Aos treze anos de idade, eu a acompanho por todos os museus de arte da Europa, e por seus
olhos vejo as tempestades de Turner, os céus de Tiepolo, os montes de feno de Monet, o monumento
de Rodin a Balzac e a Primavera de Botticelli, e a Virgem das Rochas de Da Vinci. Aos catorze,
ganho a Coleção de poemas de Edna Saint Vincent Millay no aniversário, aos quinze ganho e. e.
cummings, aos dezesseis William Butler Yeats, aos dezessete Emily Dickinson, e aos dezoito minha
mãe e eu já não estamos mais falando uma com a outra. Ela me apresenta a Shaw, Colette, Orwell,
Simone de Beauvoir. Debate furiosamente marxismo comigo, à mesa de jantar. Dá-me lições de bale,
de piano, e entradas semanais para a Filarmónica de Nova York (onde me entedio e passo boa parte
do tempo no banheiro das mulheres, aplicando o batom lustroso da Revlon em meus lábios de treze
anos de idade).
Vou à Liga de Estudantes de Arte todos os sábados e minha mãe critica exaustivamente meus
desenhos. Pastoreia minha carreira como se fosse sua: tenho de aprender a desenhar com carvão,
antes, depois naturezas-mortas em pastel, e afinal virá a pintura a óleo. Quando me apresento para a
Escola de Música e Arte, minha mãe se preocupa comigo por causa das matérias, leva-me aos
exames e me reconforta, enquanto eu recapitulo preocupada tudo o que sei, para que me ouça.
Quando resolvo que quero ser médica, tanto quanto artista, ela começa a me comprar livros de
biologia. Quando começo a fazer versos, ela escuta cada poema e o elogia como se eu fosse Yeats. A
seus olhos, todos os meus modos adolescentes são belíssimos. Todos os meus desenhos, cartões de
cumprimentos, cartazes, pinturas a óleo, pressagiam grandeza futura. Está claro que nenhuma outra
filha tem mãe mais devotada, mãe mais interessada em que se torne uma pessoa completa, em que se
torne, se o desejar, uma artista. Nesse caso, por que estou tão furiosa com ela? E por que me faz
sentir que nada sou, senão uma apagada cópia em carbono dela? Que nunca tive um só pensamento
próprio? Que não tenho liberdade, nem independência, nem identidade alguma?
Talvez o sexo explicasse minha fúria. Talvez o sexo fosse a verdadeira caixa de Pandora. Minha
mãe acreditava no amor livre, em dançar pelada no Bois de Boulogne, em dançar nas ilhas gregas,
em executar os ritos da primavera. Está claro, entretanto, que ela não o fez. Senão, por que dizia que
os rapazes não me respeitariam, a menos que eu me fizesse de ”difícil”? Que os rapazes não me
perseguiriam,
165

se eu ”me divertisse muito”, que os rapazes não me telefonariam, se eu fosse ”muito fácil”?
Sexo. Eu ficava apavorada, cagava-me, diante da força tremenda que ele exercia em mim. A
energia, a agitação, o poder de me fazer sentir-me inteiramente louca! Que dizer disso? Como
conciliar isso com ”fazer-se de difícil”?
Nunca tive a coragem de perguntar diretamente a minha mãe. Pressentia, a despeito da conversa
boêmia com que ela se saía, que desaprovava o sexo, que aquilo era um assunto essencialmente
incrível. Por isso voltei-me para D. H. Lawrence e Amor sem medo e Ascensão à maturidade em
Samoa. Margaret Mead não adiantou grande coisa. O que tinha eu em comum com todos aqueles
selvagens? (Muito, é claro, mas na ocasião não o percebi.) Eustace Chesser, médico, era bom em
todos os detalhes fascinantes (”Como executar o ato sexual”, penetração, carícias preliminares,
satisfação depois), mas não parecia ter muitas coisas a dizer sobre os meus dilemas morais: até
”onde” ir? dentro do sutiã ou fora? dentro das calcinhas ou fora? dentro da boca ou fora? E quando
engolir, se era para fazê-lo. Aquilo parecia tão complicado! E parecia ainda mais complicado para as
mulheres. No fundo, ao que creio, eu estava furiosa com minha mãe por não me ter ensinado como
ser mulher, por não me ter ensinado como fazer a paz entre a fome insaciável de minha pomba e a
fome em minha cabeça.
Assim é que aprendi, com os homens, a respeito das mulheres. Eu as via através dos olhos dos
escritores, claro que não os considerava escritores homens. Pensava neles como autores, autoridades,
deuses que sabiam e em quem se devia confiar cegamente.
Confiava, é natural, em tudo o que diziam, mesmo quando isso implicava minha própria
inferioridade. Aprendi o que era um orgasmo com D. H. Lawrence, disfarçado de Lady Chatterley.
Aprendi com ele que todas as mulheres adoram ”o phallos”, como o escrevia, a seu modo singular.
Aprendi com Shaw que as mulheres jamais podem ser artistas, aprendi com Dostoiévski que elas não
têm sentimento religioso algum; aprendi com Swift e Pope que elas têm demasiado sentimento
religioso (e, portanto, jamais podem ser inteiramente racionais); aprendi com Faulkner que elas são
mães da terra uníssonas à lua, marés e colheitas; aprendi com Freud que elas têm superegos
deficientes e são sempre ”incompletas” por lhes faltar aquilo que, no mundo, mais vale a pena
possuir: um pênis.
166
Mas o que tinha tudo isso a ver comigo — que freqüentava a escola e tinha notas melhores do que
os garotos, pintava, escrevia, e passava os sábados pintando naturezasmortas na Liga dos Estudantes
de Artes e as tardes dos dias comuns redigindo o jornal do ginásio (redatora de reportagens; o
redator-chefe jamais fora uma menina — embora também jamais nos ocorresse, na ocasião, indagar
o motivo disso)? O que tinham a lua, as marés, a maternidade terrestre e a adoração do phallos
lawrenciano a ver comigo ou com minha vida?
Conheci meu primeiro phallos aos treze anos e dez meses de idade, no sofá sedoso e verde-abacate
de meus pais, na sala, à sombra de um abacateiro cor de abacate, plantado por minha mãe. O phallos
pertencia a Steve Applebaum, primeiranista de artes quando eu era caloura, e tinha um desenho
abstrato dos mais memoráveis, de veias azuis na parte inferior, purpúrea à Ia Kandinski. Em
retrospecto, tratava-se de espécime notável: circuncidado, é claro, e enorme (o que é ”enorme”,
quando não se tem com que comparar?) e com impressionante vida própria. Assim que ele começava
a impor sua presença volumosa sob o zíper fechado das calças de Steve (estávamos agarrados e
”bolinando abaixo da cintura”, como se dizia na época), este abria devagar o zíper (para não se
prender?) e com uma das mãos (a outra estava sob minha saia e em minha pomba) tirava aquela
coisa purpúrea enorme, desentranhando-a dos panos de sua cueca, da fralda da camisa azul e dos
trilhos frios e luzidios de metal do zíper. Então eu enfiava uma das mãos nos vasos de rosas que
minha mãe-ama-flores sempre tinha sobre a mesinha e, com a mão direita umedecida por água e limo
daqueles caules, fazia movimentos rítmicos, tocando punheta em Steve. Como é que a coisa era feita?
Três dedos? Ou toda a palma da mão? Acho que devo ter agido com brutalidade, de início (embora
mais tarde me tornasse perita). Ele erguia a cabeça em êxtase (mas era êxtase controlado, já que meu
pai assistia à televisão na sala de jantar) e gozava na fralda de sua camisa, ou num lenço rapidamente
requisitado para isso. Esqueci a técnica, mas a sensação continua. Era, em parte, uma questão de
reciprocidade, mas também de força. Eu sabia que aquilo me dava uma espécie singular de força
sobre ele — que pintar ou escrever não podiam igualar. E logo eu gozava também — talvez não
como Lady Chatterley, mas já era alguma coisa.
Lá para o fim de nosso idílio, Steve (ele tinha dezessete anos, eu catorze) quis que eu ”o” pusesse
na boca.
167

— As pessoas fazem isso, mesmo?


— É claro — respondeu, com tanta naturalidade quanto lhe foi possível reunir. Foi à estante de
meus pais, procurando Van de Velde (cuidadosamente escondido por trás de Tesouros de arte da
Renascença). Mas era demais, para mim. Nem mesmo conseguia pronunciá-lo. E ia engravidarme?
Ou talvez minha recusa tivesse algo a ver com a educação social contínua que minha mãe instilava
em mim, juntamente com história da arte. Steve morava no Bronx. Eu morava num apartamento
dúplex em Central Park West. Se eu ia adorar um phallos, não seria um phallos do Bronx. Talvez
outro, de Sutton Place?
Acabei despedindo-me de Steve, e adotando a masturbação, o jejum e a poesia. Não parava de me
dizer que a masturbação pelo menos me mantinha pura.
Steve continuou a me cantar com frascos de Chanel Número 5, discos de Frank Sinatra e citações em
caligrafia belíssima, tiradas dos poemas de Yeats. Telefonava para mim sempre que se embebedava,
e em todos os meus aniversários, nos cinco anos seguintes. (Teriam sido as punhetas que eu lhe
tocara o que inspirava tanta fidelidade?)
Entrementes, porém, eu me arrependia por minha fraqueza, e arrependia-me passando por uma
espécie de conversão religiosa que incluía passar fome (eu negava até mesmo água a mim própria),
estudar Siddhartha e perder doze quilos de peso (e, com os mesmos, minhas regras). Também
arranjei uma praga de furúnculos e fui mandada a meu primeiro dermatologista — uma refugiada
alemã que disse, em palavras memoráveis: ”O pele ser o espelho do alma”, e que me mandou ao
primeiro dos meus numerosos analistas, um médico baixote que se chamava Schrift.
O Doutor Schrift (o mesmo Doutor Schrift que fora a Viena de avião, conosco) era seguidor de Wilhelm
Stekel e enfiava os cordões dos sapatos sob a gáspea dos mesmos. (Não tenho certeza se isso fazia,
ou não, parte do método stekeliano.) O edifício onde ficava seu consultório, na Madison Avenue,
tinha corredores muito escuros e estreitos, as paredes cobertas de papel dourado, cheio de conchinhas
do mar, como os que se encontram no banheiro de uma casa antiga em Larchmont. Esperando o
elevador, eu costumava olhar aquele papel e ficar pensando que o senhorio havia arrematado tudo
aquilo numa liquidação. Que outro motivo poderia
168
explicar a portaria com conchas douradas e minúsculos peixes cor-de-rosa?
O Doutor Schrift tinha duas reproduções de Utrillo e uma de Braque. (Era meu primeiro médico de
birutas, de modo que eu não compreendia que se tratava de reproduções padronizadas, aprovadas
pela APA. Tinha, também, uma escrivaninha dinamarquesa moderna (também aprovada pela APA) e
um divã marrom de espuma de borracha, com coberta pequena de plástico ao pé, e travesseiro duro,
em forma de cunha, coberto por guardanapo de papel, para a cabeça.
Insistiu em que o cavalo com o qual sonhava era meu pai. Tinha catorze anos de idade e me
matava de fome, como penitência por ter-me fodido com o dedo no sofá sedoso e cor de abacate de
meus pais. Ele insistia em que o caixão com que eu sonhava era minha mãe. Qual podia ser o motivo
pelo qual minhas regras haviam parado? Mistério.
”Porque eu não quero ser mulher. Porque isso é confuso demais. Porque Shaw diz que não se pode
ser mulher e artista. Ter filhos desgasta a criatura, foi o que ele disse. Eu quero ser artista. É tudo o
que sempre desejei.”
Por quê, eu não teria sabido dizer nessa ocasião, mas o dedo de Steve em minha pomba fora
gostoso. Ao mesmo tempo, eu sabia que essa sensação macia e aconchegante era o inimigo. Se me
entregasse a tal sensação, seria o adeus a todas as outras coisas que eu desejava. ”Você tem de
escolher”, dizia a mim mesma, com severidade, aos catorze anos. ”Entre para um convento.” E
assim, como todas as boas freiras, eu me masturbava. ”Estou me mantendo livre do poder dos
homens”, pensava, enfiando os dois dedos bem lá dentro, todas as noites.
O Doutor Schrift não compreendia. ”Foce ter de aceitar que ser uma mulher”, sibilava, atrás do sofá.
Aos catorze anos, todavia, tudo o que eu podia enxergar eram as desvantagens de ser mulher.
Ansiava por orgasmos iguais aos de Lady Chatterley. Por que a lua não empalidecia, ondas
fantásticas não varriam a superfície da terra? Onde estava o meu guarda-caça? Tudo o que percebia
era a tapeação de ser uma mulher.
Eu percorria o Museu Metropolitano de Arte, procurando uma mulher artista que me mostrasse a
direção. Mary Cassatt? Berthe Morisot? Por que motivo tantas mulheres artistas que haviam
renunciado aos filhos podiam pintar apenas mães e filhos? Não se divisava esperança alguma. Quem
fosse mulher e talentosa descobria que a vida era uma arapuca,
169
qualquer que fosse a direção tomada. Era uma questão de afogar-se na domesticidade (e
alimentar fantasias de fuga) ou ansiar pela domesticidade em toda a arte que se fizesse. Não se podia
escapar ao destino de fêmea. O conflito se achava desencadeado até mesmo no sangue.
Nem minha mãe boa, nem minha mãe ruim, puderam ajudar-me nesse dilema. Minha mãe ruim
dizia que teria sido artista famosa, não fosse por mim, e minha mãe boa me adorava, e não me
trocaria pelo mundo inteiro. O que aprendi dela, aprendi pelo exemplo, não pela exortação. E a lição
era clara: ser mulher significava ser esbulhada e perseguida, frustrada, contrariada, estar sempre com
raiva. Significava dividir-se em duas metades irreconciliáveis.
— Talvez você consiga resultado melhor do que eu — dizia minha mãe boa. — Talvez você possa
ser as duas coisas, querida. Quanto a mim, porém, não o consegui.
170

A casa de Freud

”É realmente pensamento natimorto mandar as mulheres à luta pela existência, exatamente como se fossem
homens.
Se, por exemplo, eu imaginasse minha gentil e doce filha como competidor, terminaria por dizer-lhe, como fiz há
dezessete meses, que gosto dela e que lhe imploro que se retire da luta, vindo para a atividade calma e sem
competição
de minha casa.”
Sigmund Freud
Adrian deixou-nos no hotel sem dizer uma palavra, e partiu com o motor do Triumph à toda,
desaparecendo. Subimos, para lavar os pecados da noite anterior. Como não havia reuniões às quais
Bennett devesse comparecer aquela tarde, resolvemos dar um passeio na direção da casa de Freud.
Antes que Adrian aparecesse no cenário, tínhamos planejado essa excursão, mas o projeto se perdera,
no rebuliço.
Viena estava linda, aquela manhã. Ainda não fazia calor, mas havia o sol no belo céu azul e uma
multidão de pessoas de aspecto oficial, seguindo às pressas para o trabalho, carregando as pastas (em
que provavelmente não tinham nada mais oficial do que o jornal e o almoço). Seguimos a pé pelo
Volksgarten, admirando as roseiras bem arrumadas, os canteiros de flores manicuradas. Fizemos
comentários sobre o vandalismo inevitável nesses canteiros, se estivessem em Nova York. Emitimos
comentários deplorativos sobre o vandalismo de Nova York, em confronto com as virtudes
obedientes das cidades germânicas. Travamos nossa conversa habitual sobre a civilização e a
repressão versus o impulso e a representação. Por algum tempo reinou essa solidariedade cômoda
entre nós, à qual Adrian chamava ”nosso tédio conjugal”. Errara, a esse respeito. Por ser homem
solitário, não compreendia o acasalamento e só entendia o casamento como
tédio.
171
O que deixava de enxergar era aquele instinto conjugativo especial que leva duas pessoas
a se juntarem, preencherem as faltas da alma uma da outra, sentindo-se mais fortes por isso. A
conjugação nem sempre tem a ver com o sexo; encontra-se entre amigos que moram juntos, ou
antigos amantes homossexuais que raramente trepam um com o outro, ou se encontra em alguns
casamentos. Duas pessoas que se seguram e mantêm, como apoios em uma ponte. Duas pessoas que
dependem uma da outra e se tratam e defendem mutuamente contra o mundo exterior. Às vezes valia
a pena enfrentar todas as desvantagens do casamento, só para contar com isso: um amigo, no mundo
cheio de indiferença.
Bennett e eu demos os braços e caminhamos até a casa de Freud. Havíamos concordado, sem
falar, que não mencionaríamos a noite da véspera. A noite podia muito bem ter sido um sonho, e
agora que estávamos juntos, de novo, à luz do sol, o sonho se desfazia como o nevoeiro matutino.
Subimos as escadas da sala de consultas de Freud como dois pacientes que iam fazer terapia
conjugal.
Eu sempre me dediquei aos santuários culturais: a casa onde Keats faleceu em Roma, a casa onde
viveu em Hampstead, o local onde Mozart nasceu em Salzburgo, a gruta de Alexander Pope, a casa
de Rembrandt no gueto de Amsterdam, a villa de Wagner no lago Lucerna, o minúsculo apartamento
de Beethoven em Viena. . . qualquer lugar onde algum gênio vivera, nascera, trabalhara e comera,
peidara, derramara sua semente, amara ou falecera — era sagrado para mim. Tão sagrado quanto
Delfos ou o Parthenon. Mais sagrado, na verdade, porque a maravilha da vida a cada dia me fascina
ainda mais do que a maravilha dos grandes santuários e templos. Que Beethoven pudesse compor tal
música, morando em dois aposentos ignóbeis assim, em Viena — verdadeiro milagre. Eu examinara
com espanto todos os seus artefatos mundanos — e quanto mais mundano, melhor: o saleiro
encardido, o relógio barato, o surrado livro de registro de contas. A própria vulgaridade das
necessidades dele me reconfortava, fazia-me sentir-me esperançosa. Eu farejava as casas dos grandes
como se fosse um perdigueiro, tentando sentir o odor do gênio. Em algum ponto entre o banheiro e o
dormitório, em algum lugar entre comer um ovo e fazer cocô, a musa desperta. Ela não costuma
aparecer onde as idéias hollywoodianas banais nos levaram a contar que estivesse: em um pôr-do-sol
magnífico sobre Ischia,
172
ou na rebentação imensa de Big Sur, em um cimo de montanha em Delfos (bem entre o umbigo da terra e
o lugar onde Édipo matou o papaizinho dele) — mas vem adejando, enquanto se está descascando
cebolas ou comendo berinjela ou forrando a lata de lixo com a seção literária do The New York
Times. Os autores modernos mais interessantes sabem disso. Leopold Bloom frita rins, faz cocô e
pensa no universo. Ponge vê a alma do homem em uma ostra (como Blake a via em uma flor
silvestre). Plath corta o dedinho dela e vivencia a revelação. Mas Hollywood insiste em imaginar o
artista como ídolo cinematográfico, de olhar sonhador e gravata borboleta solta ao vento, música de
Dmítri Tiômkin ao fundo, e um pôr-do-sol violento e alaranjado sobre a cabeça — e, em certa
medida, todos nós (até os que deviam ter mais juízo) procuramos corresponder a essa imagem. Em
suma, eu continuava tentada a partir com Adrian. E Bennett, percebendo-o, levou-me à casa de
Freud, no número 19 da Berggasse, a fim de tentar (mais uma vez) fazer com que eu voltasse à
lucidez.
Concordei com Bennett em que Freud era um gênio intuitivo, mas não concordei com a doutrina
psicanalítica de Sua Infalibilidade: os gênios são sempre falíveis, de outra forma passariam a ser
deuses. E quem quer a perfeição, por falar nisso? Ou a coerência? Quando se deixa para trás a
adolescência, Herman Hesse, Kahlil Gibran, e a crença na malignidade transcendental de nossos pais
— não se quer nem ouvir falar em coerência. Mas, ai, acontece com tantos de nós! E achamo-nos
prontos a desgraçar nossas vidas, apenas porque ela falta. Como eu.
Assim é que seguimos pela casa de Freud, procurando a revelação. Acho que estávamos contando
ver Montgomery Clift vestido e barbudo como Freud e explorando as cavernas de seu próprio
inconsciente penumbroso. O que realmente vimos mostrou-se desapontador. A maior parte dos
móveis tinha ido para Hampstead, com Freud, e agora pertencia à filha. O Museu Freud de Viena
tinha de se arrumar com fotografias e aposentos praticamente vazios. Freud vivera ali por meio
século, mas não restava o cheiro dele — apenas fotografias e uma sala de espera reconstituída com
móveis acolchoados demais, dessa época.
Havia uma fotografia da famosa sala de consultas com seu sofá analítico coberto por tapete
oriental, as figurinhas egípcias e chinesas e fragmentos de escultura antiga, mas a sala de consultas
propriamente dita desaparecera,
173
juntamente com toda uma era, em 1938. Que estranho, fingir que Freud jamais fora expulso dali, ou que o
auxílio de algumas fotografias amarelecidas podia servir para recriar um mundo. Recordava-me a
viagem a Dachau: os fornos crematórios demolidos e crianças alemãs de cabeça loura brincando,
rindo e fazendo piquenique na grama recém-plantada. ”Não dá para avaliar um país com base em
apenas doze anos”, costumavam dizer-me em Heidelberg.
Por isso espiamos os quartos curiosamente estéreis, o que restara dos instrumentos da vida de
Freud: seu diploma médico, o certificado militar, seu pedido de professorado auxiliar, contrato com
um dos editores, sua lista de publicações acompanhando um pedido de promoção. E depois
examinamos as fotografias: Freud, charuto na mão, com o primeiro círculo psicanalítico, Freud com
um neto, Freud com Anna Freud, Freud antes da morte, inclinado no braço da esposa em Londres, o
jovem Ernest Jones exibindo seu perfil de bonitão, Sandor Ferenczi olhando o mundo com semblante
imperioso, por volta de 1913, o boas-maneiras Karl Abraham parecendo um homem de boas
maneiras, Hans Sachs parecendo-se com Robert Morley, una só weiter. Os artigos e artefatos ali
estavam presentes, mas o espírito do empreendimento brilhava pela ausência. Seguíamos
obedientemente de uma vitrina para outra, pensando em nossa própria história visgosa e pegajosa,
ainda por escrever.
Almoçamos juntos, sossegadamente, voltamos a tentar consertar os estragos da noite anterior.
Prometi a mim própria que nunca mais voltaria a ver Adrian. Bennett e eu nos tratamos com a maior
consideração de todos os tempos. Tivemos o cuidado de não falar sobre coisa alguma de maior
conseqüência. Em vez disso, comentamos Freud. De acordo com Ernest Jones, ele fora um mau
avaliador de caráter, um pobre Menschenkenner. Muitas vezes esse traço — certa ingenuidade com
relação às pessoas — se apresenta juntamente com o gênio. Freud conseguia penetrar no segredo dos
sonhos, mas sabia também deixar-se empulhar por qualquer embusteiro. Pudera inventar a
psicanálise, mas de modo inevitável depositara fé em pessoas que o traíam. Além disso, era também
muito indiscreto. Com freqüência revelava confidências que lhe tinham sido feitas, e feitas com base
na condição única de que ficasse de boca fechada.
De repente, compreendemos que estávamos novamente falando sobre nós mesmos. Não havia
tópico de conversa neutro o bastante, aquela tarde. Tudo voltava a nós.
174
Após o almoço fomos mais uma vez ao Hofburg, a fim de assistirmos à apresentação de uma
monografia sobre a psicologia dos artistas. Essa monografia analisava postumamente Leonardo,
Beethoven, Coleridge, Wordsworth, Shakespeare, Donne, Virginia Woolf e uma artista desconhecida
e sem nome que fora psicanalisada. Todas essas provas indicavam de modo esmagador que os
artistas, como grupo, eram criaturas fracas, dependentes, infantis, ingênuas, masoquistas, narcisistas,
más avaliadoras de caráter e perdidamente imersas em conflitos edípicos. Devido à sua sensibilidade
extrema como crianças, e sua necessidade acima do normal de cuidados maternais, sempre se sentiam
despojadas e destituídas, por mais cuidados maternos que houvessem realmente recebido. Na vida
adulta, estavam condenadas a procurar mães por toda parte, e não as encontrando (nunca, nunca)
procuravam inventar suas próprias mães ideais, graças a artifícios de seu trabalho. Buscavam refazer
suas próprias histórias numa imagem idealizada — mesmo quando tal idealização acabasse por
parecer mais uma brutalização do que uma idealização. Nenhuma família, em suma, era tão
transcendentalmente má quanto o romancista autobiográfico moderno (ou poeta) imaginava que a sua
havia sido. Desancar a família era, afinal de contas, o mesmo que idealizar. Mostrava como o artista
se encontrava, ainda, agrilhoado ao passado.
Também por meio da fama o artista buscava compensar-se por sua sensação de destituição quando
criança. Mas nunca dava certo. Ser amado pelo mundo não substitui ter sido amado por uma pessoa
quando se é pequeno e, ademais, o mundo é uma droga, em matéria de amor. Desse modo também a
fama vinha constituir uma decepção. Muitos artistas, levados pelo desespero, voltavam-se para o
ópio, álcool, devassidão homossexual, devassidão heterossexual, fervor religioso, campanhas
políticas, suicídios e outros paliativos. Mas esses também nunca davam certo. Só o suicídio — que
sempre funcionava, de certo modo. A essa altura lembrei-me de um epigrama de Antônio Porchia que
o psicanalista não tivera espírito suficiente para transcrever:
”Acredito que a alma consista de seu sofrimento, pois a alma que cura seu sofrimento morre”.
O mesmo acontecia aos artistas, só que em grau ainda maior.
175

Por toda a descrição da fraqueza do artista, sua dependência, ingenuidade etc., Bennett apertou
minha mão e lançou-me olhares entendidos. Volte pró papaizinho. Tudo está compreendido. Como eu
ansiava pelo papaizinho! Mas também ansiava por ser livre!
”A liberdade é uma ilusão”, Bennett teria dito (concordando, ao menos uma vez, com B. F.
Skinner) e, de um certo modo, eu também haveria concordado. Lucidez, moderação, trabalho
constante, estabilidade.. . também acreditava nessas coisas. Mas o que era essa outra voz dentro de
mim, que não parava de me incitar a fodas sem zíper, carros em alta velocidade, beijos úmidos
infinitos e entranhas cheias de perigo? Que voz era essa, que continuava a me chamar de covarde! e
me incitava a quebrar o pau, engolir o veneno de um só gole, em vez de fazê-lo gota a gota,
mergulhar até o fundo de meu medo e ver se conseguiria subir, depois?
Era uma voz? Ou uma palpitação? Algo ainda mais primitivo do que a fala. Uma espécie de
trepidação em minhas tripas, a que eu dera o apelido de minha ”palpitação de fome”. Era como se
meu estômago pensasse em si próprio como coração. E por mais que eu o enchesse — com homens,
livros, comidas, biscoitos de gengibre modelados como homens e poemas modelados como homens, e
homens modelados como poemas — recusava-se a sossegar. Impreenchível — era assim. Ninfomania
do cérebro. Inanição do coração.
Que coisa era essa que palpitava dentro de mim? Um tambor? Ou toda uma bateria de percussão?
Seria tudo arte, dentro de uma pele esticada? Seria alucinação auditiva? Seriam sapos, talvez? Não
estaria ele palpitando por causa de um príncipe? Não estava pensando que ele era um príncipe?
Achava-me eu condenada a sentir fome por toda a vida?
Ao final da monografia sobre artistas, aplaudimos em nossas cadeiras estralejantes, de respaldos
dourados, e nos levantamos educadamente, bocejando.
— Preciso de uma cópia desse trabalho — disse eu a Bennett.
— Você não precisa — contrapôs ele. — É a história de sua vida.
Posso ter negligenciado a apresentação de outro aspecto dessa monografia sobre artistas (cujo
autor, ao que me lembro, era um certo Doutor Koenigsberger). Falava da vida amorosa do artista, de
modo especial sua tendência a se prender (com ferocidade considerável) a ”objetos de amor”
176
de todo inservíveis e idealizá-los tresloucadamente, como os pais idealizados que julgava nunca ter
tido. Esse ”objeto de amor” inadequado era, quase na totalidade, uma projeção por parte do artista-
amante. Na verdade, o objeto da paixão era muitas vezes totalmente ordinário, aos olhos alheios.
Mas para o artista-amante o amado tornava-se mãe, pai, musa, epítome da perfeição. Às vezes o
epítome da perfeição maligna ou a perfeição reclamativa, mas sempre uma divindade de certo modo
sempre onipotente.
Qual seria o objetivo criativo dessas paixonites, era o que o Doutor Koenigsberger gostaria de saber.
Nós nos concentramos, em prelibação ansiosa. Recriando a qualidade da paixonite edípica, o artista
podia recriar seu ”romance familiar” e, desse modo, recriar seu mundo infantil idealizado. As
paixonites numerosas e muitas vezes rapidamente mutáveis dos artistas destinavam-se a manter viva
essa ilusão. Uma paixonite nova, sexual e forte, era a maior aproximação que se tinha, na vida
adulta, à paixão da criancinha pelo pai do sexo oposto.
Bennett se manteve sorrindo por toda essa parte da monografia. Eu embirrava.
Dante e Beatriz. Scott e Zelda. Humbert e Lolita. Simone de Beauvoir e Sartre. King Kong e Faye
Wray. Yeats e Maud Gonne. Shakespeare e a Dama Morena. Shakespeare e o Sr. W. H. Allan
Ginsberg e Peter Orlovsky. Sylvia Plath e o Ceifador Sombrio. Keats e Fanny Brawne. Byron e
Augusta. Dodgson e Alice. D. H. Lawrence e Frieda. Aschenbach e Tadzio, Robert Graves e a Deusa
Branca. Schumann e Clara. Chopin e George Sand. Auden e Kallmann. Hopkins e o Espírito Santo.
Borges e a mãe dele. Eu e Adrian?
Às quatro horas da tarde, meu objeto idealizado reapareceu, a fim de presidir uma reunião em
outra das salas de reuniões barrocas. Seria a reunião final, antes do encerramento do congresso. Na
manhã seguinte Anna Freud e seu bando renomado subiriam mais uma vez ao pódio, a fim de
resumir tudo aquilo para a imprensa, participantes, os fracos, os paralíticos e os cegos. Depois o
congresso estaria acabado e nós iríamos embora. Mas quem iria com quem? Bennett comigo? Adrian
comigo? Ou nós três juntos? Leiraleira-beira — três psicanalisandos em uma banheira?
A reunião presidida por Adrian cuidava das propostas para o congresso seguinte e era, quase de
ponta a ponta, uma caceteação. Mas eu nem mesmo tentava ouvir. Olhava para
177

Bennett, olhava para Adrian, procurava escolher. Achava-me em tal estado de agitação que depois de
dez minutos tive de me levantar e sair, caminhando pelos corredores, sozinha. Destino dos destinos,
encontrei meu analista alemão, Doutor Happe, que abraçava Erik Erikson, após o que parecia ter sido
um bate-papo amigo. Ele me cumprimentou e perguntou se queria conversar um pouquinho.
Eu queria.
O Professor Gunther Happe, doutor em medicina, é um homem alto, magro, de nariz adunco e
muito cabelo branco ondulado. É uma espécie de celebridade na Alemanha, onde se apresenta com
freqüência na televisão, escreve artigos para revistas populares, sendo conhecido como inimigo feroz
do neonazismo. É um desses alemães extremados e cheios de culpa, que passaram o período nazista
exilados em Londres, de onde regressaram posteriormente, a fim de tentarem salvar a Alemanha do
bestialismo total. É o tipo de alemão do qual nunca se ouviu falar: bem-humorado, modesto, sabendo
criticar a Alemanha. Lê The New Yorker e manda dinheiro para os vietcongues. Pronuncia você
”foce” e dia como ”tia”, mas ainda assim não é um alemão gaiato.
Quando comecei a freqüentar seu consultório de teto alto e muito mal aquecido em Heidelberg,
deitando-me no divã quatro vezes por semana, tinha vinte e quatro anos de idade e me achava em
pânico total. Tinha medo de andar em bondes, medo de escrever cartas, medo de pôr as palavras no
papel. Quase não acreditava ter publicado alguns poemas e obtido um bacharelado em artes, com
todos os tipos de louvores. Embora meus amigos me invejassem, porque sempre parecia estar
animada e confiante, em segredo encontrava-me apavorada com relação a quase tudo. Costumava
examinar todos os armários antes de ficar sozinha em casa, à noite. Mesmo assim, não conseguia
dormir. Ficava acordada pelas noites adentro, imaginando se também estava fazendo meu segundo
marido enlouquecer — ou se apenas parecia que a coisa tomava esse rumo.
Uma de minhas autotorturas mais engenhosas era o modo pelo qual escrevia as cartas. Ou melhor,
deixava de escrevê-las, de modo especial aquelas que diziam respeito a meu trabalho. Se (como
aconteceu uma ou duas vezes) algum editor ou agente literário me escrevesse, pedindo para examinar
alguns de meus poemas, minha reação era de desalento total. O que ia dizer? Como podia responder a
pedido tão difícil? Como redigir a carta?
178
Um desses pedidos ficou na gaveta por dois anos, enquanto eu procurava tomar uma decisão a
respeito. Tentei diversos rascunhos. ”Cara Mrs. Jones”, começava a escrever. Mas isso não seria
presunçoso demais? Talvez devesse dizer: ”Mrs. Jones”; o ”cara” podia ser interpretado como
puxasaquismo. Que tal não utilizar introdução alguma? Entrar diretamente na carta? Não. Era severo
demais.
Se me via assaltada por tantas dificuldades já de início, é fácil imaginar meus sofrimentos, ao
cuidar do texto.
”Obrigada por sua bondosa carta onde me pediu para apresentar material. No entanto...”
Tudo errado! Era bajuladora além da conta. A carta dela não era ”bondosa” e por que motivo
haveria eu de adulá-la, agradecendo? Era melhor demonstrar autoconfiança e afirmatividade:
”Eu acabei de receber sua carta, que me pede para apresentar poemas para exame...”
Egoísta demais! (Amarrotei outra folha de papel.) Nunca vi, em lugar algum, principiar uma carta
com o pronome pessoal. Ademais, como podia dizer que havia ”acabado de receber” a carta dela,
quando ela já estava comigo fazia um ano? Nova tentativa.
”Sua carta de 12 de novembro de 1967 esteve em meus pensamentos por muito tempo. Lamento
ser correspondente tão ruim, mas...”
Demasiadamente pessoal. Ela está, por acaso, querendo que eu chore em seu ombro, por causa de
meus problemas neuróticos na feitura de cartas? Ela se importa?
Finalmente, dois anos depois, após muitas outras tentativas, redigi uma carta nojentamente
submissa, humilde e escusatória à criatura em questão, rasguei-a dez vezes antes de pôr no correio,
redatilografei-a onze vezes, redatilografei meus poemas quinze vezes (tinham de ser perfeitos, até a
última letra, bastava um erro e eu jogava fora a página — jamais aprendera datilografia) e enviei o
maldito envelope a Nova York. Na volta do correio, recebi carta realmente calorosa (que até a minha
paranóia não conseguia interpretar erradamente), aviso de aceitação e um cheque em
pagamento.
179
Quanto tempo teria sido necessário para eu enviar a carta seguinte, se recebesse um bilhete de
recusa?
Foi essa criatura estonteantemente cheia de confiança em si própria que iniciou o tratamento com o
Doutor Happe, em Heidelberg. Aprendi gradualmente a ficar sentada à minha escrivaninha o bastante
para trabalhar. Gradualmente, também, aprendi como enviar originais e escrever cartas. Sentia-me
como uma vítima de hemiplegia que aprende novamente a escrever, com o Doutor Happe servindo de
guia. Era moderado, paciente e engraçado. Ensinou-me a parar de me odiar. Era psicanalista tão raro
quanto alemão igualmente raro. Era eu quem continuava dizendo coisas estúpidas, como: ”Oh, bem,
é melhor eu desistir dessa besteira de escrever, e ter um filho”. E foi ele quem sempre apontou a
falsidade dessa ”solução”.
Eu não o via há dois anos e meio, mas lhe enviara o primeiro livro de poemas e ele me escrevera a
respeito.
— Então — disse, como o alemão gaiato que não era —, estou fendo que foce não tem problemas
para escrever suas cartas. . .
— Não mas estou com muitas outras dificuldades, com certeza... — e derramei toda a minha
história confusa do que acontecera, desde que havíamos chegado a Viena. Ele não ia interpretá-la
para mim, declarou. Ia apenas fazer-me lembrar do que me dissera muitas vezes antes:
— Foce não é uma secretária, é uma poetisa. O que a faz pensar que a fida fai ser coisa sem
complicações? O que a faz pensar que foce pode efitar todos os conflitos? O que pode fazer para
efitar a dor? Afinal, existe alguma coisa poa na paixão. Foce nunca se dar descanso, nunca se
perdoa?
— Parece que não. A questão é que eu sou realmente uma puritana, no íntimo. Todos os
pornógrafos são puritanos.
— Foce não é pornógrafa, com certeza — contrapôs ele.
— Não, mas a aliteração parecia boa. Eu gostei desses dois pp. A aliteração.
O Doutor Happe sorriu. Fiquei imaginando se ele conhecia a palavra ”aliteração”. Lembro-me de
como costumava perguntar-lhe se compreendia o meu inglês. Talvez, em dois anos e meio, não
houvesse entendido patavina.
— Foce é uma puritana — confirmou —, e do tipo pior que existe. Foce faz o que gosta, mas se
sente tão culpada que não desfruta. De que adianta, na ferdade?
180
Durante seu exílio em Londres, Happe incorporara alguns inglesismos. Lembro-me de que ele adorava a
palavra ”realmente”.
— É o que quero saber — declarei.
— Mas o pior é como foce sempre insiste em normalizar sua fida. Mesmo quando é analisada, sua
fida pode não ser simples. Por que foce espera que ela seja? Talfez esse homem faça parte dela. Mas
por que foce tem de jogar tudo fora antes de conseguir decidir? Não pode esperar e fer o que acontece
depois?
— Eu podia esperar, se fosse cautelosa. . . mas receio que sempre tenha tido problemas por ser
cautelosa.
— Menos em escrefer cartas — observou ele. — Aí, foce sempre foi muito cautelosa.
As reuniões estavam terminando e nós nos levantamos, apertamo-nos as mãos e nos despedimos.
Fiquei para resolver sozinha o meu dilema. Não havia um paizinho bom para me salvar, dessa vez.
Bennett e eu passamos uma longa noite de recriminações mútuas, imaginando se devíamos tentar
uma separação experimental ou suicídio duplo, declaramos nosso amor um pelo outro, nosso ódio
mútuo, nossa ambivalência. Copulamos, berramos, choramos, voltamos a copular. De nada adianta
esmiuçar tudo isso. Em certo momento, eu posso ter aspirado a um casamento tão espirituoso quanto
uma farsa de Oscar Wilde, com adultérios efêmeros e inteligentemente concatenados, mas tinha de
reconhecer que nossas lutas estavam mais no teor de Entre quatro paredes, de Sartre — ou, pior
ainda, Ao girar do mundo.
De manhã seguimos os dois, macilentos, para o congresso, e ouvimos as declarações de
encerramento sobre agressão, feitas por Anna Freud e os demais dignitários (entre os quais fora
incluído Adrian, lendo uma monografia que eu escrevera para ele, dias antes).
Após a reunião, enquanto Bennett conversava com alguns amigos de Nova York, entrei em
conferência com Adrian.
— Venha comigo — disse ele —, vamos nos divertir muitíssimo. . . vai ser uma odisséia.
— Estou tentada, mas não posso.
— Por que não?
— Não vamos começar com isso outra vez. . . por favor.
— Estarei por aqui depois do almoço, patinha,
181
se mudar de opinião. Tenho de falar com algumas pessoas, agora, e depois voltar à pensão e arrumar as
malas. Procuro você depois do almoço, por volta das duas horas. Se não estiver lá, espero uma hora,
mais ou menos. Dê um jeito de decidir-se, amor. Não fique com medo. Bennett também pode vir, se
quiser, é claro — e exibiu seu sorriso caricato, soprando-me um beijo. — Até, amor — e bateu em
retirada apressada. A idéia de nunca mais voltar a vê-lo deixou-me pernibamba.
Agora a coisa estava em minhas mãos. Ele ia esperar. Eu tinha três horas e meia para resolver
meu destino. E o dele. E o de Bennett.
Gostaria de poder dizer que fiz isso de um modo encantador, despreocupado ou mesmo à maneira
de uma cadela. A cadelice pura e descarada pode ser um estilo, pode ter élan, mas sou um fracasso,
até como cadela. Fungava, arrastava-me, decidia, analisava. Era uma chata até para mim mesma.
Sofri horrores durante o almoço no Volksgarten, em companhia de Bennett. Sofri horrores por
causa desses horrores. Sofri no escritório do American Express onde, às duas horas da tarde, ficamos
tentando resolver se comprávamos dois bilhetes para Nova York ou dois bilhetes para Londres, ou
um só, ou nenhum deles.
Tudo aquilo era tão desalentador! Depois pensei no sorriso de Adrian e na possibilidade de nunca
mais revê-lo, e as tardes ensolaradas que havíamos passado nadando, as piadas, os passeios de
automóvel sonhadores e embriagados por Viena, e saí do American Express correndo como uma
louca (deixando Bennett lá) pelas ruas afora. Fazia estrépito nos paralelepípedos, com as sandálias
de salto alto, torcendo o tornozelo duas vezes, soluçando alto, o rosto contorcido e todo manchado de
maquilagem. Tudo o que queria era revê-lo. Pensei em como ele troçara de mim, por estar sempre
querendo viver em segurança. Pensei no que ele dissera sobre a coragem, sobre ir ao fundo de mim
mesma e ver o que descobria. Pensei em todas as regras da mocinha cautelosa pelas quais vivera — a
boa estudante, a filha obediente, a esposa fiel e culposa que cometia adultério só mentalmente — e
resolvi que, de uma vez por todas, ia ter coragem e seguir meus sentimentos, quaisquer que fossem as
conseqüências. Pensei no Doutor Happe dizendo: ”Foce não é uma secretária, é uma poetisa. . . por que
espera que sua fida não tenha complicações?” Pensei em D. H. Lawrence, que fugia com a esposa do
tutor, em Romeu e Julieta morrendo de amor,
182
em Aschenbach perseguindo Tadzio na Veneza pestilencial, em todas as pessoas verdadeiras e
imaginárias que haviam largado tudo e rumado para o desconhecido. Eu era uma delas! Eu não era
uma prenda doméstica assustada. Eu estava voando.
Meu receio era que Adrian já houvesse partido, sem me levar. Corri mais, perdendo-me naquelas
ruas, andando aos círculos, evitando o tráfego. Estivera tão aturdida durante todo o tempo em Viena
que quase não conseguia distinguir uma coisa de outra, embora houvesse andado de um lado para
outro naquelas ruas dezenas de vezes. Em meu pânico, não lia os letreiros das ruas, mas seguia em
frente à procura de edifícios que reconhecia. Todos aqueles malditos palácios rococó pareciam
iguais! Finalmente encontrei uma estátua eqüestre que parecia conhecida. Depois vinha um pátio e
uma passagem (eu arquejava), depois outro pátio e outra passagem (o suor gotejava), até que
finalmente cheguei a um pátio cheio de automóveis e entrevi Adrian tranqüilamente encostado em seu
Triumph, folheando uma revista.
— Aqui estou — disse eu, ofegante. — Fiquei com medo de que você partisse sem mim.
— E como faria uma coisa dessas, amor? (Faria, sim! Faria, sim!)
— Nós vamos nos divertir muito — prometeu. Seguimos de carro diretamente para o hotel, sem
nos
perdermos, ao menos dessa vez. Lá em cima, joguei roupas em minha mala (o vestido de
lantejoulas do baile, as roupas de banho molhadas, calções, camisolas de dormir, capa de chuva,
vestidos de jérsei para viajar — tudo amarrotado, revirado e amontoado). Depois sentei-me para
escrever um bilhete para Bennett. O que podia dizer? O suor escorria juntamente com lágrimas. Mas
se parecia muitíssimo a uma carta de amor. Eu disse que o amava (amava mesmo). Disse que não
sabia por que tinha de ir embora (não sabia), mas que sentia desesperadamente que era preciso
(sentia). Contava que ele me perdoasse. Contava que pudéssemos pensar em nossa vida e tentar de
novo. Deixava-lhe o endereço do hotel em Londres onde havíamos de início planejado hospedar-nos
juntos. Não sabia para onde ia, mas provavelmente acabaria em Londres. Deixei-lhe dezenas de
números de telefone de pessoas que pretendia visitar em Londres. Eu o amava. Contava que me
perdoasse. (A carta, a essa altura, tinha mais de duas páginas.) Talvez eu continuasse escrevendo, de
modo a não ter de ir embora. Escrevi que não sabia
183
o que estava fazendo (não sabia, mesmo). Escrevi que me sentia pessimamente (verdade). E quando
escrevia ”eu te amo” pela décima vez, Bennett entrou.
— Eu vou embora — disse eu, chorando. — Estava mesmo escrevendo uma carta a você, mas
agora não preciso mais — comecei a rasgá-la.
— Não! — disse ele, arrebatando-a de mim. — É tudo que me resta de você.
Depois comecei a chorar de verdade, soluços horríveis e prolongados.
— Por favor, por favor me perdoe — suplicava. (O carrasco pede o perdão do condenado, antes
de mandar-lhe o machado.)
— Você não precisa do meu perdão — retorquiu com aspereza e começou a jogar seus pertences
em uma mala que tínhamos recebido como presente de casamento do amigo que nos apresentara um
ao outro. Um casamento prolongado e feliz. Muitas viagens pela estrada da vida.
Teria eu programado toda aquela cena, só para sentirlhe o ardor? Nunca o amara tanto. Jamais
havia ansiado, tanto quanto agora, por ficar com ele. Era esse o motivo pelo qual tinha de ir embora?
Por que ele não dizia: ”fique, fique. . . eu amo você”? Ele não o fez.
— Não posso ficar neste quarto com você nem mais um minuto — disse ele, jogando guias
turísticos e toda espécie de porcaria dentro da mala. Descemos juntos, arrastando as malas. Na
recepção, nós nos plantamos, pagando a conta. Adrian esperava lá fora. Se, ao menos, ele fosse
embora! Mas esperava. Bennett queria saber se eu tinha cheques de viagem e meu cartão do
American Express. Ele queria saber se eu estava bem e estava dizendo: ”Fique, eu amo você”. Era
seu modo de dizê-lo, mas eu me achava tão enfeitiçada que interpretei como sendo: ”Vá embora!”
— Tenho de me afastar por algum tempo — voltei a dizer, oscilante.
— Você não vai estar sozinha. . . eu, sim. — E era verdade. Uma mulher verdadeiramente
independente iria para as montanhas sozinha, e lá se poria a meditar, e não partiria com Adrian
Goodlove em um Triumph acalhambecado.
Desolada, fui ficando, ficando.
— Que diabo você está esperando? Por que não vai embora?
— Onde você vai? Onde posso encontrá-lo?
— Eu vou para o aeroporto. Vou para casa. Talvez vá
a Londres ver se dá para receber o bilhete de volta, ou talvez vá diretamente para casa. A mim não
importa. E isso importa a você?
— Importa, importa.
— Não me diga.
Com essa, apanhei a mala e saí do hotel. O que mais podia fazer? Eu me encurralara a um canto.
Tinha, com minhas próprias mãos, assinado meu nome no elenco daquela trama vulgar. Aquilo,
entretanto, transformava-se agora em aposta, desafio, jogo de roleta russa, uma prova de
feminilidade. Não havia como recuar. Bennett continuava muito calmo, não se dando por achado.
Usava um suéter de gola olímpica de um vermelho vivo. Por que ele não saía correndo e esmurrava
Adrian no queixo? Por que não lutava pelo que era seu? Eles podiam travar um duelo nos bosques de
Viena, utilizando compêndios de Freud e compêndios de Laing como escudos. Podiam duelar com
palavras, pelo menos. Uma palavra de Bennett, e eu teria ficado. Mas nada disso aconteceu. Bennett
achava que era meu direito, o de partir. E eu tinha de fazer valer esse direito, embora, a essa altura,
estivesse enojada dele.
— Você esteve lá uma hora, patinha — disse Adrian, pondo minha mala no automóvel, ao qual
chamava ”a bota”. E demos o fora de Viena como se fôssemos dois exilados fugindo aos nazistas. Na
estrada que passava pelo aeroporto tive vontade de dizer: ”Pare! Deixe-me aqui! Não quero ir!”, e
pensei em Bennett, sozinho lá, no suéter de gola olímpica, esperando este ou aquele avião, para ir a
este ou aquele lugar. Mas era tarde demais. Eu estava naquela aventura para o que desse e viesse, e
não fazia a menor idéia de onde ia acabar.
184
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11

O existencialismo posto à prova


”. . os existencialistas declaram que estão em completo desespero, mas continuam escrevendo.”
W. H. Auden

Quando juntei os trapos com Adrian Goodlove, ingressei em um mundo no qual as regras pelas
quais vivíamos eram as regras dele — embora, naturalmente, ele fingisse que não havia regras. Era
proibido, por exemplo, indagar o que faríamos no dia seguinte. Os existencialistas não devem
mencionar a palavra ”amanhã”. Essa tinha de ser banida de nosso vocabulário. Não podíamos falar
sobre o futuro ou agir como se ele existisse. O futuro não existia. Somente nossa viagem de carro
existia, nossos acampamentos e hotéis. Só existiam nossas conversas e a visão à frente do párabrisa
(que Adrian chamava de ”tela de vento”). Para trás de nós ficava o passado — que evocávamos cada
vez mais, a fim de passar o tempo e nos divertirmos (assim como os pais que inventam brinquedos de
geografia, ou de identificar o título da canção, para os filhos entediados, durante prolongadas viagens
de automóvel). Contamos histórias prolongadas sobre nossos passados, embelezando, bordando e
enfeitando, teatralizando como costumam fazer os romancistas. É claro que fingíamos estar dizendo a
verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade, mas ninguém (como diz Henry Miller) pode
contar a verdade absoluta; e até mesmo nossas relações autobiográficas mais condignas eram, em
parte, invenção — literatura, em suma. Comprávamos o futuro, falando sobre o passado. Às vezes eu
me sentia como Cherazade,
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divertindo meu rei com histórias menores, para impedir que a trama maior tivesse
encerramento abrupto. Ambos podíamos (teoricamente) lançar a toalha ao tablado, em qualquer
instante, mas eu receava que Adrian se inclinasse mais a fazê-lo do que eu, e meu problema consistia
em mantê-lo entretido. Quando a barra está pesada e eu me encontro sozinha com um homem por
dias e mais dias, é quando compreendo, mais do que nunca, o quanto estou longe de ser livre. Meu
impulso natural é o de puxar o saco. Toda a minha rebeldia altissonante não passa de reação ao meu
profundo servilismo.
Só quando se está proibido de falar sobre o futuro é que se compreende, de repente, o quanto ele
ocupa, de modo normal, nossa vida atual, o quanto a vida cotidiana é gasta, de modo geral, fazendo-
se planos e procurando-se controlar o futuro. Não importa que não se tenha controle algum sobre ele.
A idéia do futuro é nosso maior entretenimento, divertimento e passatempo. Basta retirá-la e resta
apenas o passado — e um pára-brisa empastado de insetos mortos.
Adrian determinava as regras, mas tinha também a tendência a mudá-las com freqüência, a seu
prazer. Nesse particular, fazia-me lembrar minha irmã mais velha Randy, quando ela e eu éramos
crianças. Ensinou-me a jogar dados quando eu tinha sete anos de idade (e ela doze), mas costumava
mudar as regras de um minuto para outro, dependendo do que acontecia quando jogávamos. Depois
de uma sessão de dez minutos com ela, eu estava destituída de todo o conteúdo de meu cofrinho de
economias, enquanto ela (que começara sem um vintém) acabava tão satisfeita quanto Sky
Masterson. Não importa como a Dama Fortuna sorrisse para mim, eu sempre acabava perdendo.
— Catiripapos. . . ganhei! — minha irmã berrava.
— Ganhou? — (Eu costumava guardar minha mesada de um dólar como a formiga, enquanto ela
gastava a sua como a cigarra, mas sempre acabava ganhando, e eu na bancarrota.) Os perigos da
primogenitura. E eu era, de modo perene, a segunda. Adrian, na verdade, nasceu no mesmo ano em
que Randy (1937) e também tinha um irmão mais jovem, e tivera dez anos seguidos para aprender a
oprimir. Logo tomamos conhecimento desses velhos padrões de comportamento, enquanto seguíamos
pelo labirinto da velha Europa.
Viemos a conhecer a pensão austríaca pobre, com suas cortinas de rendas brancas na sala, o
peitoril da janela cheio de cactos,
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a proprietária de faces coradas (que sempre perguntava quantos filhos tínhamos — como
se houvesse esquecido o que lhe contáramos muitos quilômetros atrás), sua cama singular de
tamanho gigantesco e colchão dividido em três partes horizontais (vales que se apresentavam nas
regiões corporais estratégicas — como os seios e os órgãos genitais —, de modo que se acordava
invariavelmente, no meio da noite, com um mamilo ou um testículo, ao que suponho, preso entre a
parte I e a parte II, ou entre a parte II e a parte III). Viemos a conhecer as colchas de penas
austríacas que nos encharcam de suor, nas primeiras horas da noite, escorregam para o chão graças à
feitiçaria exatamente quando começamos a dormir bem, fazem com que passemos a noite toda a
recolocá-las e finalmente nos despertam com os lábios e olhos monstruosamente inchados por causa
de séculos de poeira antiga (e outros alérgenos mais sinistros) aprisionados em seu interior.
Estávamos geralmente embriagados a partir do meiodia, seguindo feito loucos pela Autobahn em
automóvel com volante à direita, entrando errado por toda parte, perseguidos por Volkswagens a
oitenta milhas horárias e MercedesBenz que acendiam os faróis agressivamente e faziam cento e dez,
por BMWS tentando ultrapassar os Mercedes-Benz. Tudo o que o alemão tinha de ver era nossa
chapa inglesa, e partia no nosso encalço, para tirar-nos da estrada. Também Adrian dirigia como
louco, passando pelo lado errado, entrando e saindo da pista de caminhões, deixando-se enfezar pelos
alemães e procurando ultrapassá-los. Em mim havia uma parte que se apavorava com tudo aquilo,
mas outra que se emocionava. Estávamos vivendo no limite, no fio da navalha. Era provável que
morrêssemos em desastre pavoroso que obliteraria nossos traços fisionômicos, nossos pecados
também. Pelo menos eu sabia, com certeza, que não estava entediada.
Todas as pessoas que se preocupam com a morte, e que odeiam as viagens de avião, que estudam
suas rugas, por menores que sejam, diante do espelho, e se apresentam morbidamente receosas dos
aniversários, que se preocupam em morrer de câncer, ou tumor cerebral, ou aneurisma repentino,
estão apaixonadas pela morte, em segredo. Sofro de maneira mórbida, ao viajar na ponte aérea entre
Nova York e Washington, mas ao volante de um carro esportivo começo a fazer cento e dez milhas
horárias sem qualquer hesitação, e adoro cada um daqueles minutos eletrizantes.
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A animação em saber que podemos ser o causador de nossa própria morte é mais intensa do que o orgasmo.
Deve ter sido assim que os camicases se sentiam, criando seu próprio holocausto e sendo engolidos
por ele, em vez de aguardar que o holocausto os apanhasse nalguma manhã, de surpresa, bem
seguros em suas camas em Hiroxima ou Nagasáki.
Havia outro motivo para bebermos muito: era o meu abatimento. Eu me alternava entre o ânimo e
o desalento (ódio por mim mesma, pelo que fizera, desalento por estar sozinha com um homem que
não me amava, e angústia quanto ao futuro e sobre a qual não devia falar). Por isso nos
embebedávamos, e em nossas momices embriagadas e cheias de risadinhas o desespero se apagava.
Nunca desaparecia por completo, é claro, mas se tornava mais fácil de agüentar. É como embriagar-
se num avião, para diminuir o medo de voar. A gente continua acreditando que vai morrer, sempre
que ocorre uma alteração no ruído dos motores, mas já não se importa. Dá, quase, para gostar da
idéia. Imaginamo-nos deslizando e caindo pelas nuvens flocosas, dando com os cornos em um oceano
azul cheio das mais queridas recordações da infância.
Viemos a conhecer as paradas de caminhão francesas, com máquinas italianas que serviam café
expresso forte e excelente. Viemos a conhecer os prazeres da cerveja alsaciana e caixas de pêssegos
compradas aos fruticultores ao longo da estrada. Sabíamos que estávamos na França quando os
faróis dos automóveis passavam de brancos para amarelo-mostarda, e o pão se tornava delicioso.
Viemos a conhecer a parte mais feia da França, aquela terra horrorosa próxima à fronteira alemã,
onde as estradas são trilhas de duas pistas de superfície esburacada e sinuosa que os franceses se
recusam a consertar, dizendo que os alemães estão chegando a Paris assim mesmo. Viemos a
conhecer uma série infinita de estalagens baratas com lâmpadas elétricas de dois watts e bidês
marcados pelas moscas (nos quais urinávamos, devido à relutância de irmos até o toalete comum,
imundo, cuja luz se acendia quando eu quebrava as unhas, empurrando o trinco da porta). Viemos a
conhecer o tipo de camping mais luxuoso, com toaletes internos, bar e caixa de música trombeteando
os Beatles. Na maior parte do tempo (já que estávamos em agosto e todos os burgueses da Europa se
encontram em férias em acampamentos com seus dois filhos e meio), entretanto, encontramos cheios
os melhores locais de acampamento e tivemos de armar nossa barraca ao
lado da estrada
189
(e acocorar-nos para cagar, os matinhos fazendo cócegas na bunda e as mutucas
zumbindo fragorosamente próximas de nossos cus, pousando em seguida sobre os cagalhões recém-
libertados). Viemos a conhecer a Autostrada del Sole com seus auto-grills fantasmagóricos — visões
fellinianas de doce envolto em celofane, montanhas de brinquedos, pacotes de papel prateado
envolvendo panetones, vidros de geléia enfeitados com fitas e triciclos exibindo fieiras de pirulitos.
Viemos a conhecer os loucos italianos que disparam em seus Fiat Cinquecenti a noventa milhas por
hora, mas sempre param para se persignar e depositar algumas liras na caixa de esmolas de um Jesus
à beira da estrada. Viemos a conhecer dezenas de aeroportos maiores e menores na Alemanha,
França e Itália, porque naquele instante do dia em que nossa segunda rodada de cerveja se esgotava e
meu abatimento imponente erguia mais uma vez a cabeça horrenda (juntamente com sintomas
secundários de dor de cabeça e ressaca), eu entrava em pânico e ordenava a Adrian que me levasse
ao aeroporto mais próximo. Ele nunca disse que não. Oh, tornava-se silente, parecia desapontado
comigo, mas nunca se opôs de modo direto a qualquer desejo que eu enunciasse com clareza.
Seguíamos para o Flughafen ou aeroporto mais próximo, perdendo-nos e pedindo informações mais
de dez vezes até chegarmos lá. Chegados, descobríamos inevitavelmente que o próximo aeroplano só
pousaria ali dentro de dois dias, ou que estava lotado (Europa im August: tout lê monde en
vacances) ou que partira dois minutos antes. E depois havia um bar no aeroporto, onde tomávamos
mais cerveja e Adrian me beijava, brincava comigo, segurava afetuosamente minha bunda e falava
sobre a aventura que estávamos empreendendo. E assim partíamos outra vez, animados por algum
tempo. Afinal de contas, eu não tinha certeza completa de que contava com qualquer outro lugar para
o qual pudesse ir.
Nossa tournée dificilmente podia ser considerada viagem de prazer e lazer. Se seguíamos por
trajetória tortuosa, fazendo ziguezagues e depois círculos, era porque nosso itinerário não se
orientava pelos pontos notáveis para ver, nem pelas atrações turísticas de três estrelas, mas pelos
meus próprios estados de espírito vertiginosos — e, em medida menor, os de Adrian. Fazíamos
ziguezagues, de um abatimento para outro, volteios em torno de bebedeiras, circundávamos os bons
momentos. O itinerário não tinha qualquer
explicação geográfica, mas, é claro, só dá para percebê-lo em retrospecto, quando relaciono os
locais por nós visitados. Ficamos em Salzburgo o suficiente para visitar a Geburtshaus de Mozart,
enchermo-nos de Leberknõdel, dormir bem e depois prosseguir para Munique. Fomos em linha
tortuosa, passando por Munique e tendo ao lado os Alpes. Visitamos diversos castelos construídos
pelo Rei Louco Ludwig, da Bavária, subimos a estrada sinuosa até o Schloss Neuschwanstein
debaixo de aguaceiro repentino, visitamos o castelo com todo um exército de donas-de-casa
disformes em sapatos ortopédicos, que passavam por nós dedicando-nos cotoveladas, emitindo ruídos
guturais em sua língua melíflua e pondo-se rubras de orgulho com sua herança nacional gloriosa de
Wagner, Volkswagens e Wddschwein.
Após Munique e adjacências, partimos para o norte até Heidelberg (parando, fazendo voltas e
ziguezagueando a caminho), tomamos a Autobahn até Basiléia (chocolate suíço, schwitzerdeutsch e
uma catedral de arenito e aspecto azedo, acima do Reno), depois fomos a Estrasburgo (terra dos
fígados de ganso e cerveja pesada), uma volta louca e ziguezagueante de estradas laterais que
seguiam mais ou menos na direção de Paris, depois cruzamos o sul da França, entrando na Itália (via
Riviera), indo para o sul até Florença, depois ao norte outra vez até Verona e Veneza, atravessamos
os Alpes, passamos por Ticino, entrando mais uma vez na Áustria, e depois, seguindo para o norte,
passamos pela Alemanha de novo, entramos depois na França e finalmente chegamos a Paris, pela
última vez, onde a verdade (ou uma delas) se me revelou, mas não (ainda não) me libertou.
Por inacreditável que pareça esse itinerário ineficiente, ainda mais incrível é compreender que tudo
aquilo não tenha levado duas semanas e meia. Não vimos quase coisa alguma. Estávamos andando de
automóvel a maior parte do tempo e conversando. E fodendo. Adrian era impotente quando eu o
queria a um canto, em particular, mas se tornava vorazmente viril nos lugares mais públicos: nas
cabanas de praia, nas áreas de estacionamento, aeroportos, ruínas, mosteiros e igrejas. Se não
pudesse derrubar, pelo menos, dois tabus num só ato, não se interessava, em absoluto. O que
realmente o teria aceso seria a oportunidade de enrabar a mãe, dentro da igreja. Bendita sois entre as
mulheres e bendito o fruto de vosso ventre, etc.
190
191

Conversávamos, conversávamos, conversávamos. A psicanálise rodando de automóvel. Recordação


das coisas passadas. Fazíamos listas, a fim de passar o tempo: meus exnamorados, as ex-namoradas
dele, os diversos tipos de fodas (em grupo, por amor, por culpa, etc.), diversos lugares onde
havíamos fodido (no banheiro de um avião 707, na capela judaica deserta do antigo Queen Elizabeth,
em uma abadia arruinada em Yorkshire, em barcos a remo, em cemitérios. . .). Tenho de reconhecer
que inventei algumas delas, mas o principal era o entretenimento e não a verdade literal. O leitor não
está acreditando que eu narro a verdade completa aqui, não é mesmo?
Adrian, como qualquer outro psicanalista que conheci, ou com quem trepei, queria descobrir
configurações no meu passado. Configurações repetitivas, auto-restritivas de preferência — mas
qualquer tipo de configuração serviria. E eu tentava facilitar, é claro. Não era difícil, aliás. No que
diz respeito aos homens, sempre me faltou uma qualidade simples, chamada cautela, ou que talvez
pudesse chamar de bom senso. Conheço um camarada do qual qualquer mulher com algum amor-
próprio trataria automaticamente de correr, e consigo encontrar algo cativante em suas características
questionáveis, algo que me atrai irresistivelmente, em suas maneiras. Adrian adorou ouvir isso. Está
claro que se excluía da companhia dos outros neuróticos que eu conhecera. Nunca lhe passou pela
cabeça a idéia de que ele fazia parte de qualquer configuração.
— Eu sou o único homem que você conheceu e que não pode situar em uma categoria — dizia,
triunfal. E depois esperou que eu pusesse os outros nas respectivas categorias. Fazia-lhe a vontade.
Oh, eu sabia que estava tornando minha vida uma rotina musical, um número de produção, uma
piada sem graça. Pensei em todos os anseios, dores, as cartas (mandadas ou não), os acessos de
choro, os monólogos telefónicos, os sofrimentos, a racionalização, a psicanálise que fora feita em
cada uma dessas relações, sabia que o modo pelo qual os descrevia era uma traição à sua
complexidade, humanidade, confusão. A vida não tem enredo. É muito mais interessante do que
qualquer coisa que se possa dizer a respeito dela porque a língua, por sua própria natureza, ordena as
coisas, e a vida, na verdade, não tem ordem alguma. Até os escritores que respeitam a bela anarquia
da vida e procuram colocá-la, toda, em seus livros terminam fazendo com que pareça muito mais
ordenada do que já foi e,
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afinal, não dizem a verdade. Porque nenhum autor pode dizer a verdade sobre a vida,
qual seja, a de que ela é muito mais interessante do que qualquer livro. E nenhum autor pode dizer a
verdade sobre as pessoas — pelo motivo de que essas são muito mais interessantes do que quaisquer
personagens
— Pare, então, de filosofar sobre essa maldita atividade de escritora e me conte a respeito de um
de seus maridos — disse Adrian.
— Está bem, está bem.
193

12

O louco
”Amantes e loucos, cérebros fervilhantes,
Têm mais fantasias, de forma que apreendem
mais do que a fria razão compreende.
O lunático, o amante e o poeta
são de imaginação tão compacta!
Um vê mais demônios do que todo o inferno comporta,
isto é, o louco; o amante, totalmente frenético,
vê a beleza de Helena num semblante do Egito:
o olho do poeta, rolando em belo frenesi,
mira do céu à terra, da terra ao céu;
e, ao despontar da imaginação,
as formas de coisas ignotas a pena do poeta
transmuta em vultos, e dá ao nada aéreo
uma habitação local e um nome. ..”
Shakespeare, Sonho de uma noite de verão
É preciso imaginá-lo: baixo, moreno, barba castanhoescura — uma combinação de Peter Lorre,
Alfred Drake e Humphrey Bogart (como Pia e eu teríamos dito) ou, às vezes, Edward G. Robinson,
representando o Pequeno César. Gostava de falar à maneira dos heróis cinematográficos de sua
juventude. Era, em suas próprias palavras, um cinemaníaco, e mesmo na faculdade ia duas ou três
vezes ao cinema por dia, preferivelmente (como as chamava) ”nas casas de vômito” — aqueles
cinemas surrados da 42nd Street, aonde os destroços humanos iam para dormir e os pervertidos (a
mãe de Brian os chamava de ”prevertidos”) iam rondar, e se exibiam dois, até três filmes de guerra,
faroeste ou épicos do foro romano.
A despeito de sua inclinação por filmes ruins e versos à Ia Edward G. Robinson, Brian era um
gênio, um verdadeiro garoto genial de QI acima de 200, que chegou a Columbia com registros sem
precedentes de notas obtidas, troféus de sociedades de debates, prêmios de ”cidadania” (o que quer
que seja isso) de todas as escolas na Califórnia que freqüentara, e um registro impressionante de
acessos psicóticos, a partir da idade de dezesseis anos. Só que não tive conhecimento deles senão
muito depois, após estarmos casados e ele mais uma vez hospitalizado. Esse descuido não se deveu
tanto à vontade de tapear, da parte dele,
194
quan to ao fato de que jamais se encarara como doido. O mundo, isso sim, era biruta. Quanto a isso, eu
concordava com ele — e concordei até o instante em que ele tentou sair voando pela janela, levando-
me em sua companhia.
Deve ter sido o brilho e a pirotécnica verbal de Brian o que me fez apaixonar-me por ele, logo de
cara. Grande mímico, orador fascinante, um desses contadores talentosos que parecem ter saído de
um bar de Dublin, ou uma peça de J. M. Synge. Tinha o dom da tagarelice e da lábia, ele era o
”playboy do mundo ocidental” (vindo diretamente de Los Angeles). Sempre atribuí enorme valor às
palavras, e com freqüência cometi o erro de acreditar nas palavras muito mais do que nos atos. Meu
coração (e minha pomba) podem ser apanhados por uma frase brilhante, uma boa expressão, uma
parelha de versos, um símile sensacional. O leitor já ouviu aquela canção de rock americana
intitulada Baby let me bang your box, que apareceu brevemente pelo rádio, antes de ser transferida
para sempre ao esquecimento radiofônico? Dizia algo parecido ao seguinte:
”Baby let me bang your box Baby let me play On our pianer...”
Bem, no meu caso devia dizer:
”Sweetheart let me screw your símile Sweetheart let me sleep in your caesura...”
Foi, sem o mínimo de dúvida, o cerebralismo de Brian o que me cativou. O leitor não sabe como
eram os outros geniozinhos de Columbia, naqueles dias: camisas de flanela e vinte e cinco canetas
esferográficas sujas de tinta no bolso do peito, armações cor de carne nos óculos escuros, cravos nas
orelhas, pústulas nos pescoços, calças axadrezadas, cabelos sebosos e (às vezes) yarmulkes tecidos a
mão, presos por grampos de cabelo. Vinham dos subúrbios pelo subway, tendo acabado de tomar
suas sopas de bolas de matzoh das mamãezinhas, lá do Bronx, para as salas de aulas de Moses
Hadas e Gilbert Highet em Morningside Heights, onde aprendiam literatura e filosofia o bastante
para terem nota máxima, mas nunca pareciam perder sua falta de jeito, sua atitude defensiva de
escolares, sua falta completa de encantos.
195

Brian também obtivera notas máximas, mas tinha o que faltava a eles: estilo. Nunca parecia gastar
tempo algum estudando. Quando lhe cabia um trabalho de dez páginas a ser escrito, tirava dez folhas
de papel de primeira do maço e datilografava diretamente nelas, até haver produzido, de uma só
sentada, um trabalho de primeira. Com freqüência escrevia essas maravilhas de dez páginas na
própria manhã em que devia apresentá-las. E sabia, sabia, e sabia tudo. Não apenas da história
medieval e da história romana, não só sobre os filósofos do Renascimento e primeiros papas da
Igreja, não apenas sobre agostinianismo político, Ricardo Coração de Leão, e Rollo, duque da
Normandia, não somente Abelardo e Alcuíno, Alexandre Magno e Alfredo, o Grande, não apenas
Burckhardt e Beowulf, Averróis e Avignon, poesia goliardesca e reforma gregoriaha, Henrique, o
Leão, e Heráclito, a natureza da heresia e as obras de Thomas Hobbes, Juliano, o Apóstata, e
Jacopone da Todi, o Nibelungenlied e a história do nominalismo — mas também conhecia as safras
de vinhos e os restaurantes, os nomes de todas as árvores no Central Park, os sexos dos gmkgos no
Morningside Drive, os nomes dos pássaros, os nomes das flores, as datas em que os filhos de
Shakespeare haviam nascido, o local exato onde Shelley se afogara, a cronologia dos filmes de
Charlie Chaplin, a anatomia exata das vacas (e, por conseqüência, como escolher os melhores
pedaços de carne no supermercado), a letra de todas as canções compostas por Gübert e Sullivan, o
índice Kõchel de todas as composições de Mozart, os campeões olímpicos de todos os esportes nos
últimos vinte anos, a média de pontos de todo jogador americano de beisebol mais destacado, as
personagens de todas as obras de Dickens, a data em que o relógio Mickey Mouse foi apresentado
pela primeira vez, as datas e modelos de automóveis, e quantos restavam e quais eram os donos
(Bugattis e Hispano-Suizas eram seus favoritos), o tipo de armadura utilizada no século XVI (e como
diferia da armadura do século XIII), o modo como os sapos fornicam e as coníferas se cruzam, todas
as posições do sexo no Kama Sutra, os nomes de todos os dispositivos de tortura da Idade Média, e
assim por diante, ad infinitum.
Estou fazendo com que ele pareça repugnante? Algumas pessoas assim o julgavam, mas todos o
achavam divertido e entretenedor. Era um palhaço nato, um artista de vaudeville, falador incessante.
Dava a impressão de estar sempre explodindo de energia. Podia fazer mais coisas, em um só
dia,
196
do que a maioria consegue fazer em dez, e sempre parecia estar pulando para fora da pele.
Naturalmente isso me atraiu — com minha própria fome, meu apetite exagerado por vivenciar tudo.
Conhecemo-nos na segunda semana de meu primeiro ano (e o último dele), e a partir de então
tornamo-nos quase inseparáveis. Oh, eu me reservava o direito de sair com outras pessoas, de quando
em vez, mas ele providenciou para que eu me visse tão inundada com sua presença, sua fala, seus
presentes, sua datilografia de meus trabalhos escolares, sua procura das pilhas de livros de que eu
precisava, suas cartas e telefonemas e flores e poemas jurando devoção eterna — que inevitavelmente
os outros rapazes pareciam imitações muito fracas.
Naqueles dias, havia atletas e intelectuais, rapazes da Fraternidade e Independentes. Brian não
participava de categoria alguma, e de todas. Era original, uma personagem, uma enciclopédia de
informações sobre todos os assuntos, com a possível exceção do sexo, onde seu conhecimento era
mais teórico, de início, do que prático. Juntos, perdemos a virgindade. Ou quase isso. Eu digo
”quase” porque é duvidoso que me restasse grande coisa, depois de todos aqueles anos de esforçada
foda com o dedo e masturbação constante, e porque Brian estivera em um prostíbulo em Tijuana,
certa vez, com dezesseis anos de idade — presente dado pelo pai, que o levara no carro cheio de
companheiros, no que se poderia chamar de uma comemoração atlética de aniversário.
Na descrição de Brian, a coisa foi um fracasso. A prostituta não parava de dizer ”acaba com isso,
acaba com isso!”, Brian perdeu a ereção, e seu pai (como Édipo preferiria) trepara nela antes,
enquanto os companheiros batiam à porta. Não fora grande coisa como iniciação; a penetração, como
afirmam nos livros de sexo, não se completou. Assim sendo, imagino que se possa dizer que
perdemos, juntos, a virgindade. Eu tinha dezessete (continuava sendo ”um caso de cadeia”, como
Brian singularmente me fez lembrar) e ele dezenove. Conhecíamo-nos havia dois meses — dois meses
de violência feita a nossos instintos, no Riverside Park, sob as mesas da biblioteca de clássicos, onde
”estudávamos juntos” (por baixo dos olhos vigilantes e sem expressão de Sófocles, Péricles e Júlio
César), no sofá da sala de visitas de meus pais, nas estantes da Biblioteca Butler (onde, mais tarde,
tive o choque de ouvir que alguns estudantes sacrílegos chegavam realmente a trepar). Finalmente
obtivemos o favor final mútuo
197
(para usar essa expressão encantadora, do século XVIII) no apartamento de subsolo de Brian,
no Riverside Drive, onde as baratas (ou talvez fossem baratas-d’água) eram maiores do que meu
punho (ou o pênis dele) e os dois colegas de quarto de Brian continuavam batendo à porta, sob o
pretexto de quererem The Sunday Times ”se ainda não tínhamos acabado”.
O quarto de Brian — um dos seis quartos daquele pied à ferre que se espraiava — partilhava uma
parede com a caldeira de aquecimento. Era a única instalação para calefação. Uma das paredes
estava sempre quente como o inferno; a outra, mais fria do que a testa de uma feiticeira (expressão de
Brian). Regulava-se a temperatura apenas abrindo a janela (que dava para uma espécie de ravina de
cimento, um andar abaixo do nível da calçada), e deixando entrar o ar frio. Como o vento soprava do
rio, fazia frio suficiente para contrabalançar o calor da caldeira — mas não o nosso calor.
Foi nesse cenário romântico que nos desfrutamos mu-tuamente pela primeira vez. Fazíamos gemer
as molas da cama de segunda mão que Brian, em prelibação trémula, comprara duas semanas antes,
de um negociante de artigos usados, na Columbus Avenue.
Assim, naturalmente, tive de seduzi-lo. Tenho certeza de que, do paraíso em diante, nunca foi
muito diferente. Depois disso, chorei, senti-me culpada e Brian me reconfortou, como os homens
provavelmente reconfortaram as virgens que os seduziram, no decorrer dos séculos. Ficamos ali
deitados à luz das velas (no romantismo dele, ou talvez em seu sentido ingênito de simbolismo, Brian
acendera uma vela sobre a mesinha, antes de nos despirmos, um ao outro) e ficamos ouvindo o
gemido dos gatos selvagens, do poço de cimento além da vidraça enegrecida pela fuligem. Às vezes
um dos gatos saltava sobre uma lata de lixo transbordante e derrubava uma lata de cerveja no chão, e
o ruído da lata vazia sobre o pavimento ecoava em nosso quarto.
No início nosso romance foi ótimo, espiritual e adolescente. (Em ocasiões posteriores, íamo-nos
parecer mais ao diálogo de uma peça de Strindberg.) Costumávamos ler poesia um para o outro na
cama, debater a diferença entre a vida e a arte, ponderar se Yeats teria ou não se tornado um grande
poeta se Maud Gonne, na verdade, se casasse com ele. A primavera veio encontrar-nos fazendo,
juntos, um curso sobre Shakespeare, como acho que todos os jovens enamorados devem fazer. Em
certo dia brilhante, mas um tanto frio,
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de abril, lemos Conto de inverno em voz alta um para o outro, sentados em um banco no
Riverside Park.
”Quando narcisos começam a despontar Olá! O silêncio sobre o vale já se fez A doçura do ano
vem se revelar E o sangue aflora, em hibernal palidez. . .
Em seu canto tirra-lira as cotovias Olá! Olá! O tordo, o gaio, a gralha São cantos de verão, para
mim e as tias, Rolando, agarradas, no meio da palha.”
Brian se ocupava, desempenhando o papel de Florizel para minha Perdita (”Tuas ervas raras a
cada passo de ti / Conferem vida — não pastora, mas Flora / Fitando na fronte de abril. . .”) quando
toda uma tribo de guris (negros e porto-riquenhos, com cerca de oito ou nove anos de idade) foi
atraída por nossa leitura em voz alta, distribuindo-se pelo banco e na grama em volta de nós,
parecendo fascinados pelo que fazíamos.
Um dos meninos veio sentar-se a meus pés, fitando-me com adoração. Fiquei emocionadíssima.
Com que, então, a poesia era a voz universal! Havia algo em Shakespeare que atraía até mesmo o
ouvido ingênuo e sem educação. Todas as minhas crenças pareciam confirmar-se; li, tomada de novo
assomo de inspiração:
”Não há meio que melhore a natureza
Mas a natureza faz o meio. Acima dessa arte
Que dizes aduz à natura, há uma arte
Que a natureza faz. Vês, doce donzela, casamos
Um rebento mais gentil à cepa mais bruta
E fazemos conceber casta de tipo inferior
Por botão de raça nobre. É uma arte
Que emenda a natureza — muda-a até; mas
A arte por si própria é a natureza”.
(Seria o apelo feito por Shakespeare no sentido do recrutamento franco e/ou miscigenação?)
Os garotos começaram a se pôr inquietos, algumas páginas à frente, e também já se tornara frio
demais para ficarmos sentados ali, de modo que arrumamos as coisas e nos retiramos, pouco depois
de se terem ido embora.
199
— Não foi maravilhoso, querido? — perguntei, enquanto seguíamos, saindo do jardim.
Brian riu.
— A vox popuh, na maior parte, é um grunhido — asseverou, repetindo uma de suas máximas
favoritas; não sei onde a obteve. Mais tarde descobri que minha carteira de dinheiro desaparecera da
bolsa, que estivera aberta no banco, enquanto líamos. Não tive certeza se os garotos a haviam
roubado ou não, se eu a perdera antes, sem o notar. Por um momento de loucura, julguei que talvez
Brian a houvesse tirado, a fim de comprovar o que dizia sobre ”o homem comum”. Como minha mãe,
Brian era hobbesiano. Foi, pelo menos, até descobrir que era Jesus Cristo, passando assim por uma
conversão de caráter e crenças.
A loucura dele? Quais foram os primeiros sinais? Difícil dizer. Uma antiga amiga de faculdade
contou-me recentemente que sabia, desde o começo, que havia algo estranho em Brian e ”jamais se
teria metido com ele”. Mas foi precisamente a estranheza de Brian aquilo de que gostei. Era
excêntrico, diferia de qualquer outra pessoa, via o mundo com olhos de poeta (embora tivesse pouco
talento para escrever poesia). Via o universo como lugar animado, habitado por espíritos. As frutas
lhe falavam. Quando descascava uma maçã, fazia com que ela parecesse gritar, por meio de
ventriloquismo. Usava a mesma técnica de ventríloquo com as tangerinas, laranjas, até com as
bananas — fazendo com que cantassem e falassem, e até declamassem versos.
Transformava a voz e o rosto, pondo-os de acordo com seus estados de espírito. Às vezes era
Edward G. Robinson como Al Capone, às vezes Basil Rathbone como Sherlock Holmes, às vezes
Grimfalcon, o Elfo (personagem que inventamos, juntos), às vezes Shakeswoof (outro amigo
imaginário: em parte Shakespeare, em parte um cão pastor — uma espécie de galgo que escrevia
versos). . . Nossos dias e noites prolongados, juntos, eram uma série de citações, personificações,
pequenas peças teatrais — com Brian fazendo a maior parte da representação. Eu constituía platéia
tão boa! Sabíamos andar, andar e andar mais — desde Columbia até o Village, atravessando a Ponte
de Brooklyn (recitando Hart Crane, claro) e depois por toda a distância até Manhattan — e nunca
nos entediávamos. Jamais nos sentávamos a uma mesa de restaurante em silêncio, como fazem os
casais jovens. Sempre falávamos e ríamos.
Isto é, até que nos casássemos. O casamento veio es-
tragar tudo. Por quatro anos fomos enamorados e os melhores amigos, e estudantes de
Shakespeare, juntos — e estragamos tudo, casando-nos. Eu nunca o desejei fazer. O casamento
sempre parecera algo para o qual eu teria muito tempo, no futuro. Num futuro bem distante. Mas
Brian queria possuir minha alma. Tinha medo de que eu fugisse. Assim sendo, veio com um ultimato.
Case comigo ou eu a abandono. E fiquei com medo de perdê-lo, queria sair de casa, estava
terminando a faculdade, não sabia que mais podia fazer — de modo que casei com ele.
Na verdade, não tínhamos dinheiro com que viver. Minha bolsa para a escola de graduação, um
pequeno fundo financeiro no qual não podia tocar por alguns anos ainda, e algumas poucas ações, em
queda rápida, que meus pais me haviam dado, ao meu vigésimo primeiro aniversário. Brian
abandonara a escola de graduação em acesso de fúria com o establishment, mas agora descobrira
que tinha de arranjar emprego. Nossa vida transformou-se de maneira radical. Passamos a
compreender o pouco que os casais se vêem, um ao outro, depois de entrarem no mecanismo burguês.
Nosso idílio terminara. Os longos passeios, estudar juntos, as tardes ociosas na cama — tudo isso
pertencia a uma época dourada que já passara. Brian passava agora os dias (e a maior parte das
noites) trabalhando para uma pequena firma de pesquisa de mercado, onde suava dentro das salas de
computadores, aguardando, aflito, as respostas a perguntas tão formidáveis quanto saber se as
mulheres que haviam tido dois anos de faculdade iam comprar mais detergentes do que as mulheres
que haviam completado o curso superior. Lançou-se à pesquisa de mercado com a mesma paixão
maníaca que tivera pela história medieval ou qualquer outra coisa. Tinha de saber tudo; tinha de
trabalhar mais do que qualquer outro, incluindo o patrão — que vendeu o negócio por alguns milhões
de dólares, não muito depois de Brian ter sido internado como doido. Toda a operação, mais tarde,
revelou-se impostura e fraude, mas a essa altura o patrão de Brian vivia num antigo castelo na Suíça,
com uma nova esposa jovem, e Brian recebera seu ”certificado”. A despeito de todo o seu brilho,
Brian não sabia (ou não queria saber) que patife seu patrão era. Costumava sentar-se, fitando os
computadores, até meia-noite. Enquanto isso, eu suava em meio às pilhas de livros da Biblioteca
Butler, escrevendo uma tese ridícula sobre palavrões na poesia inglesa (ou, como meu orientador a
intitulara:
200
201

Gíria sexual na poesia inglesa em meados do século XVIII”). Já nessa época eu era uma pornógrafa
pedante.
Nosso casamento foi piorando a olhos vistos. Brian parou de foder comigo. Eu suplicava, pedia,
perguntava o que estava errado em mim, comecei a me odiar, sentir-me feia, desamada,
corporalmente fedorenta — todos os sintomas clássicos da esposa que não é fodida; comecei a
alimentar fantasias de fodas sem zíper com porteiros, párias, freqüentadores de bar do West End,
estudantes — até mesmo (que Deus me ajude!) com os professores. Sentava-me em meu ”Seminário
de literatura inglesa do século XVIII”, ouvindo algum nojento estudante graduado que falava
monotonamente sobre as revisões feitas por Nahum Tate das peças de Shakespeare e, enquanto isso,
imaginava-me chupando cada membro (ah!) masculino da turma. Ás vezes me imaginava realmente
fodendo com o Professor Harrington Stanton, um bostoniano de cinqüenta anos e muito direito, que
tinha família bem relacionada, da Nova Inglaterra — família essa renomada em política, poesia e
psicose. O Professor Stanton tinha uma risada descontrolada e sempre chamava James Boswell de
Bozzy — como se bebesse com ele todas as noites, no West End (o que, na verdade, desconfio que
fazia). Alguém, certa vez, se referiu a Stanton como ”muito brilhante, mas não muito certo da bola”.
Era uma descrição correta. A despeito de ser socialmente bem relacionado, ele oscilava entre a
lucidez e a insanidade, e nunca permanecia em um desses estados tempo bastante para se saber com
certeza. Como o Professor Stanton fodia? Ele se deixara fascinar por palavrões do século XVIII.
Talvez cochichasse ”cona”, ”colhão” (em vez de ”pomba”, ”saco”) em meu ouvido, enquanto
fodêssemos. Talvez ele tivesse o brasão de sua família tatuado no prepúcio. Eu ficava ali sentada,
dando risadinhas sozinha, diante de tais fantasias, e o Professor Stanton sorria para mim, pensando
que eu estava rindo de suas piadas.
Mas de que adiantavam essas fantasias patéticas? Meu marido parara de me foder. Ele achava que
estava trabalhando muito e eu chorava até dormir, todas as noites, ou então ia para o banheiro, a fim
de me masturbar, após ele ter adormecido. Eu estava com vinte e um anos e meio de idade, achava-
me desesperada. Vendo isso em retrospecto, tudo parece muito simples. Por que não procurei outro?
Por que não tive um caso, ou o deixei, ou insisti em alguma espécie de acordo de liberdade sexual?
Mas eu era uma boa
202
menina dos anos 50. Crescera masturbando-me com o dedo e ouvindo Frank Sinatra cantando In
the wee small hours of the morning. Jamais dormira com qualquer outro homem senão meu marido.
Bolinara ”acima da cintura” e ”abaixo da cintura”, de acordo com alguma regra misteriosa e verbal
de decoro. Mas um caso com outro homem parecia coisa tão extremada que nem mesmo conseguia
pensar nisso. Ademais, tinha certeza de que o fracasso de Brian em me foder era culpa minha, e não
dele. Eu devia ser uma ninfomaníaca (porque queria ser fodida mais de uma vez por mês) ou, então,
era uma questão de falta de atrativos de minha parte. Ou talvez fosse a idade de Brian que
constituísse o problema. Eu fora criada de acordo com os diversos mitos sexuais dos anos 50, tais
como:
A. Não existe coisa tal como estupro. Ninguém pode estuprar uma mulher, a menos que ela
consinta, no último instante. (As meninas em meu ginásio costumavam repetir isso, fielmente, entre
si. Só Deus sabe onde obtivemos tal informação. Era a sabedoria recebida e, como robôs, nós a
transmitíamos, passando-a adiante.)
B. Existem dois tipos de orgasmos: vaginal e clitórico. Um é ”maduro” (isto é, bom). O outro, é
”imaturo” (isto é, mau). Um é ”normal” (isto é, bom). O outro é ”neurótico” (isto é, mau).
Esse código moral pseudo-avançado, pseudopsicológico, era mais calvinístico do que o calvinismo.
C. Os homens alcançam seu ápice sexual aos dezesseis anos, e em seguida declinam. ..
Brian estava com vinte e quatro anos. Certamente já passara pelo ápice. Oito anos além dele. Se
me fodia uma vez por mês, com vinte e quatro anos de idade — imagine o pouquíssimo que me
foderia, aos trinta e quatro! Isso se mostrava apavorante, como visão de futuro.
Talvez até mesmo o sexo não tivesse importado, se não fosse uma indicação de todas as outras
coisas erradas em nosso casamento. Jamais nos víamos. Ele ficava no escritório até sete, oito, nove,
dez, onze, meia-noite. Eu ficava em casa, arrumando-a, e fumegava na biblioteca em minha gíria
sexual do século XVIII. O casamento burguês ideal. Marido e mulher sem tempo para estarem
juntos. Havíamo-nos casado porque gostávamos muito de estar juntos. O casamento eliminou nosso
único motivo para o casamento.
As coisas transcorreram assim por diversos meses. Fiquei cada vez mais abatida, achava cada vez
mais difícil sair da cama,
203
de manhã. Em geral me encontrava em estado de coma, até o meio-dia. Comecei a faltar a
quase todas as minhas aulas, a não ser a mais santa das santas: o Seminário. A faculdade parecia-me
ridícula. Eu freqüentara a faculdade porque amava a literatura, mas nessa escola não se estudava
literatura. Devia-se estudar a crítica. Algum professor escrevera um livro ”provando” que Tom Jones
era, na verdade, uma parábola marxista. Algum outro professor escrevera um livro ”provando” que
Tom Jones era, na verdade, uma parábola cristã. Algum outro professor escrevera um livro
”provando” que Tom Jones era, na verdade, uma parábola da Revolução Industrial. E a gente tinha
de guardar todos os nomes dos professores, todas as teorias bem claras, de modo que se pudesse
fazer exames sobre aquilo. Ninguém parecia importar-se porra nenhuma se a gente lia Tom Jones,
desde que se soubesse relacionar os nomes das diversas teorias e quem as inventara. Todos os livros
de crítica tinham títulos como A retórica da gargalhada ou Oi determinantes cômicos da ficção de
Henry Fielding ou Implicações estéticas na dialética das sátiras. Fielding estaria dando pulos, em
sua cova. Minha resposta: dormir o mais possível durante aquelas aulas.
O fato é que eu sempre fora uma estudante de primeira, e as provas se mostravam fáceis.
Entretanto, na faculdade aquela porcariada era tanta que, simplesmente, não dava para deixá-la de
lado. Por isso eu dormia, naquela matéria. Dormia ao fazer os exames globais de maio. Dormi, em
vez de trabalhar em minha tese. Nas ocasiões raras em que fui à aula, ali fiquei sentada garatujando
poemas nos cadernos. Certo dia juntei coragem bastante para falar sobre o assunto com o Professor
Stanton.
— Eu não acho que quero ser professora — disse, tremendo, em minhas botas de camurça
purpúrea. Aquilo era sacrilégio. Minha bolsa Woodrow Wilson obrigava-me a lecionar em faculdade.
Era coisa muito próxima a abjurar Deus, pátria e bandeira nacional.
— Mas você é estudante tão excelente, Mrs. Stollerman, o que mais iria fazer?
(O que mais, na verdade? O que mais poderia haver na vida, senão Implicações estéticas na
dialética das sátiras?)
— Bem, quer dizer, acho que quero escrever — disse, tão escusatória quanto se estivesse dizendo:
”Acho que quero matar minha mãe”.
O Professor Stanton pareceu perturbar-se.
204
— Oh, isso — disse, muitíssimo aporrinhado. Os estudantes, naturalmente, vinham sempre
confiar-lhe suas ambições fúteis, como a de querer escrever.
— A questão, Professor Stanton, é que comecei a estudar a literatura inglesa do século XVIII
porque eu adoro a sátira, mas acho que quero escrever a sátira, e não criticála. A crítica não me
parece de certo modo muito satisfatória.
— Satisfatória! — explodiu ele. Engoli em seco.
— O que faz você pensar que a faculdade deva ser satisfatória? A literatura é trabalho, e não
divertimento — asseverou ele.
— Sim — concordei, humílima.
— Você freqüenta a faculdade porque gosta de ler, porque gosta de literatura. . . bem, a literatura
é trabalho pesado! Não é um brinquedo! — e o Professor Stanton parecia ter descoberto seu
verdadeiro tema.
— Sim, mas se me desculpar, Professor Stanton, parece que toda essa crítica está fora de sintonia
com o espírito de Fielding ou Pope ou Swift. Quer dizer, eu sempre os imagino ali, deitados nos
túmulos e rindo de nós todos. É o tipo de coisa que eles achariam engraçadíssima. Quero dizer, eu
leio Pope, Swift, Fielding, e isso me faz querer escrever. Faz com que minha mente inicie poemas. A
crítica parece-me um tanto boba. Lamento muito dizê-lo, mas é o que acontece.
— E quem fez de você a guardiã do espírito de Pope? Ou de Swift? Ou de Fielding?
— Ninguém.
— Nesse caso, por que cargas d’água está se queixando?
— Não estou me queixando. Eu só acho que cometi um erro. Acho que quero, mesmo, escrever.
— Mrs. Stollerman, vai ter muitíssimo tempo para escrever, depois de obter seu bacharelato. E,
nessa ocasião, vai sempre ter alguma coisa com que possa contar para viver, no caso de descobrir
que não é Emily Dickinson.
— Acho que o senhor tem razão — respondi, e fui para casa dormir.
Brian me despertou com um estrondo, em junho. Não tenho certeza exata de quando começou, mas
foi em meados de junho, quando notei que ele se tornara um pouco mais maníaco do que de costume.
Parara de dormir por completo. Queria que eu ficasse sentada por toda a noite, em sua companhia,
falando sobre o céu e o inferno.
205
Não que isso fosse tão incomum, no caso de Brian. Ele sempre se interessara extraordinariamente pelo céu e pelo
inferno. Mas começava, agora, a falar sobre a Segunda Vinda, e falar bastante, e de modo novo.
O que aconteceria se (perguntava ele) Cristo voltasse à terra como obscuro executivo de pesquisa
de mercado?
O que aconteceria se, mais uma vez, ninguém acreditasse nele?
O que aconteceria se Ele tentasse provar sua identidade, caminhando sobre a água no lago do
Central Park? O noticiário noturno da CBS faria a cobertura da ocorrência? Seria considerada
matéria de interesse humano?
Eu ria. Brian também ria. Era apenas uma idéia para uma novela de ficção científica, ao que
afirmou. Não passava de piada.
Nos dias seguintes, as piadas se multiplicaram.
O que aconteceria, se ele fosse Zeus e eu fosse Hera? O que aconteceria, se ele fosse Dante e eu
Beatriz? O que aconteceria, se houvesse dois de cada um de nós — matéria e antimatéria,
tridimensional e não-dimensional? O que aconteceria, se as pessoas no subway estivessem realmente
se comunicando com ele por telepatia, pedindo-lhe que as salvasse? Que sucederia, se Cristo voltasse
e libertasse todos os animais do jardim zoológico do Central Park? E o que ocorreria, se os iaques O
seguissem pela Fifth Avenue e os pássaros viessem pousar e cantar em Seus ombros? As pessoas
acreditariam em quem Ele era, nesse caso? Que haveria, se Ele abençoasse os computadores e, em
vez de cuspirem folhas impressas sobre que donas-de-casa compram mais detergente, começassem de
repente a cuspir pães e peixes? Que aconteceria, se o mundo fosse realmente controlado por um
computador gigantesco e ninguém soubesse disso, com exceção de Brian? E o que haveria, se esse
computador funcionasse com sangue humano? O que haveria, como disse Sartre, se estivéssemos no
inferno, naquele exato instante? O que haveria, se fôssemos todos controlados por máquinas
complexas que eram controladas por outras máquinas complexas, que eram controladas por outras
máquinas complexas? Ó que aconteceria, se não tivéssemos liberdade, em absoluto? O que haveria,
se o homem pudesse, ao menos, afirmar sua liberdade, morrendo na cruz? O que aconteceria, se
alguém atravessasse as ruas de Nova York com sinais vermelhos, os olhos fechados, por toda uma
semana, e não fosse sequer tocado por um automóvel? Isso provaria que se
é Deus?
206
Que aconteceria, se todos os livros que alguém abrisse, sem escolha, tivessem a
palavra DEUS, em algum ponto de cada parágrafo? Não seria isso prova positiva?
Noite após noite, as perguntas prosseguiam. Brian as repetia para mim, como se fossem um
catecismo. O que aconteceria? O que aconteceria? O que aconteceria? Escute-me. Não durma! Escute-
me! O mundo está acabando e você vai dormir, enquanto ele acaba! Escute-me!
Em seu frenesi por ter platéia e ouvinte constante, chegava a bater em meu rosto, uma ou duas
vezes, para me acordar. Aturdida e de olhos zonzos, eu ouvia. Ouvia. Ouvia. Após a quinta noite, já
não era mais possível duvidar de que Brian não tinha plano algum de escrever ficção científica. Ele
próprio era a Segunda Vinda. O reconhecimento veio lentamente. Quando chegou, não tive certeza
completa de que ele não era Deus. De acordo com a lógica dele, todavia, se ele era Jesus, nesse caso
eu era o Espírito Santo. E por mais que os olhos estivessem cansados, eu sabia que isso era doideira.
Na sexta-feira, o patrão de Brian saiu da cidade, a fim de passar o fim de semana em algum lugar,
e lhe delegou a tarefa de fechar um contrato importante com os fabricantes de um produto destinado
a limpar fornos, chamado Espuma Milagrosa. Brian devia encontrar-se com os camaradas da
Espuma Milagrosa no centro de computadores, no sábado, mas nunca foi lá. O pessoal da Espuma
Milagrosa esperou, depois telefonou para mim. Voltaram a telefonar depois, Brian não aparecera.
Telefonei para todos os que podia imaginar e depois fiquei em casa, sentada, mordendo as unhas e
sabendo que algo terrível ia acontecer.
Às cinco horas Brian telefonou-me para ler um ”poema” que afirmou ter escrito enquanto
caminhava sobre a água do lago do Central Park. O poema dizia:
”Se a Espuma Milagrosa é só uma bolha Por que tanta aporrinhação, em sua escolha? Se não
agirmos, o mundo vira casca de rolha Tudo por causa de uma tola bolha”.
— O que acha, meu bem? — perguntou, a ingenuidade personificada.
— Brian. . . você sabe que aqueles camaradas da Espuma Milagrosa estiveram à sua procura o dia
todo?
— Você não acha brilhante? Realmente resume a coisa toda,
207
ao que entendo. Estou pensando em mandar para o The New York Times. Só que não sei se o
Times vai imprimir um poema com a palavra ”aporrinhação”. O que você pensa?
— Brian. . . você sabe que fiquei sentada aqui, o dia todo, atendendo telefonemas dessa gente da
Espuma Milagrosa? Onde, com os diabos, você esteve?
— É precisamente onde estive.
— Onde?
— Com os diabos, no inferno. Assim como você está no inferno, e eu estou no inferno, e nós todos
estamos no inferno. Como você pode preocupar-se por causa de uma simples bolha, como a Espuma
Milagrosa?
— O que, em nome de Deus, você vai fazer no tocante ao contrato?
— Só isso.
— Só isso, o quê?
— Em nome de Deus, eu vou esquecê-lo. Não vou fazer coisa alguma com aquele contrato. Por
que você não vem à cidade para me encontrar, e eu lhe mostro o poema?
— Onde está?
— No inferno.
— Está bem, eu sei que você está no inferno, mas onde é que devo encontrar você?
— Você devia saber. Foi você quem me mandou para cá.
— Para onde?
— Para o inferno. Onde estou, agora. Onde você está, agora. Você está bem burrinha, meu bem.
— Brian, por favor, seja sensato. . .
— Eu sou perfeitamente sensato. Você é que se importa por causa de uma simples bolha. Você é
quem acha que isso importa, se essa gente da Espuma Milagrosa chama pelo telefone.
— É só me dizer em que esquina encontro você, no inferno, e eu vou. Juro que vou. É só dizer
qual esquina.
— Você não sabe?
— Não. Sinceramente, não sei. Por favor, diga qual é.
— Acho que você está querendo me fazer de palhaço.
— Brian, meu bem, eu só quero ver você. Por favor, só quero ver você.
— Você pode me ver, agora mesmo, com sua visão mental. Sua cegueira é obra inteiramente sua.
Você é o Rei Lear.
208
— Você está numa cabine telefônica? Ou num bar? Por favor, diga-me.
— Você já sabe!
A conversa continuou assim por algum tempo. Brian desligou duas vezes, voltou a chamar.
Finalmente concordou em identificar a cabine telefônica em que se encontrava, não pelo nome, mas
mediante uma espécie de brinquedo de adivinhação. Eu tinha de participar nesse brinquedo,
eliminando as possibilidades. Isso levou mais vinte minutos e diversas moedas foram gastas no
telefone. Finalmente, descobri que se achava no Bar Gotham. Saí correndo, tomei um táxi para
encontrá-lo e fiquei sabendo que passara o dia levando meninos negros e porto-riquenhos para
passeios em barco no lago do Central Park, comprando-lhes sorvetes, dando dinheiro às pessoas no
parque, planejando o seu meio de fugir do inferno. Não chegara realmente a caminhar sobre a água,
mas pensara muito no assunto. Estava agora pronto a mudar de vida. Descobrira que era dotado de
um fundo de energia sobre-humana. Os outros mortais precisavam dormir, ele não. Os outros seres
mortais precisavam de empregos, de diplomas, de todas essas besteiras da vida cotidiana, mas ele
não. Ia embarcar no destino que sempre o esperara: salvar o mundo. E eu devia ajudá-lo.
Para dizer a verdade, toda essa conversa não me desagradou muito. Na verdade, alvoroçou-me
bastante. A idéia de que Brian ia abandonar a pesquisa de mercado e eu abandonar a escola de
graduação, partindo juntos a fim de salvar o mundo, estava muitíssimo bem para mim. Eu sempre
instara com ele para que abandonasse a pesquisa de mercado, na verdade. Procurara atraí-lo para que
fôssemos à Europa, passando lá algum tempo, mas Brian sempre protestara. Entrara na pesquisa de
mercado como se fosse a última grande cruzada santa a ser empreendida.
Ao passarmos pela cidade naquela noite de sábado, foi o comportamento dele o que me perturbou,
muito mais do que suas palavras aloucadas. Queria que ambos fechássemos os olhos e
atravessássemos as ruas, com os sinais fechados (a fim de provar que éramos deuses). Entrava nas
lojas e pedia aos caixeiros que procurassem diversos artigos, depois manuseava-os, falava
animadamente sobre cada um deles e retirava-se. Entrava em um café e brincava com o açucareiro
em todas as mesas, antes de sentar-se. As pessoas não paravam de olhá-lo. Às vezes os caixeiros ou
garçons pediam: ”Vá com calma, rapazinho, vá com calma”, ou, de outras,
209
expulsavam-no dali. Todos percebiam que alguma coisa estava errada. A agitação de Brian
tilintava no ar, mas, aos olhos dele, isso era apenas uma prova de sua divindade.
— Você viu? — perguntava. — Eles sabem que sou Deus, e não sabem como reagir de outra
maneira.
Aquilo era duplamente difícil, para mim, porque eu semi-acreditava na teoria de Brian. As pessoas
excepcionais são, com freqüência, chamadas de loucas pelo mundo comum. Se Deus voltasse à terra
provavelmente acabaria mesmo na enfermaria de lunáticos. Eu era lainguiana, muito antes que Laing
começasse a publicar suas obras, mas também estava assustadíssima.
Quando, finalmente, chegamos a casa, por volta de duas horas da madrugada, Brian continuava
frenético e inteiramente desperto, embora eu me achasse esgotada. Ele queria demonstrar-me seu
poder, queria provar que podia satisfazerme. Não me fodera por cerca de seis semanas, mas agora
não parava mais. Trepava como uma máquina, recusando-se a sucumbir ao orgasmo, mas instando
em que eu gozasse, outra vez, mais uma vez, de novo. Depois das três primeiras vezes eu estava
dolorida, queria parar. Supliquei que parasse, mas ele não atendeu. Continuava a se movimentar em
mim, como um carrasco. Eu chorava, suplicava.
— Brian, por favor, pare — soluçava.
— Você pensou que eu não podia satisfazê-la! — gritava, os olhos tresloucados. — Está vendo?
— dizia, enfiando-se em mim. — Está vendo? Está vendo? Está vendo?
— Brian, por favor, pare!. . .
— Isso não prova o que digo? Não prova que sou Deus?
— Por favor, pare — choramingava eu.
Quando ele finalmente parou, arredou-se de mim com violência e enfiou o pênis ainda duro em
minha boca. Mas eu chorava demais para chupá-lo. Permaneci caída na cama, soluçando. O que ia
fazer? Não queria ficar ali, sozinha com ele, mas para onde ir? Pela primeira vez na vida comecei a
me convencer de que ele era perigoso.
Brian, de repente, parou com aquilo e começou a chorar. Queria castrar-se, afirmou. Queria que
nosso casamento fosse purificado de toda a carnalidade. Queria ser como Abelardo, e que eu fosse
como Heloísa. Queria purificar-se de todos os desejos carnais, de modo que pudesse salvar o mundo.
Queria ser suave como um eunuco. Queria ser suave como Cristo. Queria que o crivassem de flechas,
como São Sebastião.
210
Passou os braços por mim, soluçou em meu colo. Afaguei-lhe os cabelos, contando com
que finalmente adormecesse. Em vez disso, quem dormiu fui eu.
Não tenho noção da hora em que despertei, mas Brian já se levantara horas antes —
provavelmente permanecera acordado por toda a noite. Cambaleei até o banheiro e a primeira coisa
que vi foi um desenho grosseiro, preso ao espelho com fita colante. Representava um homem baixo,
halo em volta da cabeça e enorme pênis ereto. Outro homem, de barba comprida, estava a ponto de
chupá-lo. Atrás deles via-se uma águia enorme (parecida à águia americana), só que ela tinha uma
ereção muito evidente e de aspecto humano. ”O Pai, o Filho e o Espírito Santo”, garatujara Brian por
cima do desenho.
Fui para minha escrivaninha no dormitório. Fragmentos de minhas fichas de arquivo (contendo
todas as anotações para a tese que preparava) achavam-se espalhados pelo chão, por baixo da
escrivaninha, como se fossem confete. Sobre a tampa da escrivaninha via-se uma série de livros: as
obras completas de Shakespeare e Milton encontravam-se abertas, e certas palavras, frases e letras,
marcadas por círculos riscados em cores diversas. De início não deu para perceber qualquer sistema
ou código, mas havia anotações curiosas nas margens das páginas. Frases como ”Oh, inferno!” ou
”A besta de duas costas!” ou ”A mulher é de amargar!” Salpicados sobre Shakespeare e Milton
viam-se os fragmentos de uma nota de vinte dólares cuidadosamente despedaçada. Sobre o resto da
superfície da escrivaninha encontravam-se reproduções arrancadas de livros de arte. Todas elas
apresentavam Deus ou Jesus ou São Sebastião.
Fui correndo para a sala de visitas, procurando Brian, e encontrei-o ajustando o amplificador no
alta-fidelidade. Havia colocado as Variações Goldberg, com Gleen Gould, e começou aumentando o
volume bastante, e depois baixando-o muito, a fim de criar uma espécie de efeito sonoro de sirena.
— A que altura se pode tocar Bach nesta sociedade?
— interpelava-me. — Alto assim? — e ergueu o volume.
— Baixo assim? — e o baixou, de modo que se tornasse quase imperceptível. — Está vendo? Não
existe meio de tocar Bach nesta sociedade!
— Brian, o que você fez com minha tese? — era uma pergunta inteiramente retórica, pois eu sabia
muito bem o que ele fizera com ela.
211

Brian mexia no alta-fidelidade e fingia não me ter ouvido.


— O que foi que você fez com minha tese?
— Até que ponto se pode tocar Bach alto, nesta sociedade, sem que a polícia venha?
— O que foi que você fez com minha tese?
— Alto assim? — e aumentou o volume. —. O que foi que você fez com minha tese?
— Baixo assim? — e baixou o volume.
— O que foi que você fez com minha tese?
— Alto assim?
— Brian! — berrei, a plenos pulmões. De nada adiantou. Fui para minha escrivaninha e ali fiquei
sentada, olhando a ”exposição” que ele deixara. Queria matá-lo, ou matarme. Em vez disso, desandei
a chorar.
Brian entrou.
— Quem você acha que irá para o céu? — perguntou. Não respondi.
— Bach irá? Milton irá para o céu? E Shakespeare? Shakeswoof vai? E São Sebastião, o
Bastardo, irá? Abelardo, o Castrado, irá? E Sindbad, o Marujo, irá? E Candbad, o Carcereiro, irá? E
Zindbad, o Zombeteiro, irá? E Norman Mailer, vai? Joyce vai? James vai? Dante vai, ou já foi? E
Homero? Yeats irá? E Rabelais irá com a ralé? E Villon irá como um vilão? E Raleigh irá como um
rei? E Mozart irá levemente? E Mahler irá pesadamente? E El Greco, em um estrondo de relâmpago?
As lâmpadas irão? — voltei-me para fitá-lo. Ele bracejava tresloucadamente, dava pulos no chão.
— As lâmpadas irão para o céu! — proclamou, gritando. — Elas irão! Irão!
— Você está me deixando doida! — berrei, cheia da maior exasperação.
— Você irá para o céu! — gritou ele, agarrou-me pelo braço e começou a levar-me para a janela.
— Vamos para o céu. Vamos! Vamos! — Escancarava a janela e inclinava-se para fora.
— Pare com isso! — gritei, histérica. — Não agüento mais! — e comecei a sacudi-lo. Ele deve ter
ficado muito assustado, porque passou as mãos por minha garganta e começou a me estrangular.
— Cale a boca! — gritou. — A polícia já vem! —
212
Mas eu não estava gritando. Ele apertava com força e comecei a desmaiar.
O motivo pelo qual me soltou, antes de matar-me, não me passa pela cabeça. Talvez fosse pura
sorte, de minha parte. Não sei como explicar o fenômeno. Tudo o que sei é que, quando finalmente
me soltou, eu tremia da cabeça aos pés e arquejava para respirar (lembro-me de que descobri, mais
tarde, manchas escuras no pescoço).
Corri para o armário embutido e ali fiquei, na escuridão, mordendo os cotovelos e soluçando. ”Oh
Deus, oh Deus, oh Deus”, arquejava. E então, de algum modo, consegui acalmar-me, e telefonei para
o médico da família. Ele se encontrava em East Hampton. Telefonei para o psiquiatra de minha mãe.
Achava-se em Fire Island. Telefonei para meu psiquiatra atual. Achava-se em Wellfleet. Telefonei
para uma amiga de minha irmã Randy, que era ajudante de psiquiatria social. Ela me disse para
chamar a polícia ou um médico — qualquer médico. Brian estava psicótico, afirmoume, e talvez
fosse perigoso. Eu não devia ficar a sós com ele.
Num domingo de junho, se alguém quiser adoecer, é melhor fazê-lo em alguma praia ou balneário.
Nenhum médico é encontrado na cidade. Finalmente consegui falar com o sujeito que estava
ocupando a vaga de meu médico, para ganhar dinheiro. Ele logo viria, ao que afirmou. Cinco horas
depois, chegava. Durante todo esse tempo Brian se manteve espantosamente sossegado. Permaneceu
sentado na sala de visitas, ouvindo Bach, como se estivesse em transe. Fiquei sentada no quarto,
tentando compreender o que acontecera. Fingimos ignorar-nos mutuamente. Era a calma após a
borrasca.
O problema de Brian, pelo menos, tinha um nome, a essa altura. Era o melhor que se podia obter,
fora da cura. Ao me ser dito que ele era ”psicótico”, eu fora tomada por uma sensação estranha de
alívio. Aquilo era uma doença a ser tratada, um problema a ser solucionado. Dar um nome à coisa
viera torná-la menos assustadora. Do mesmo modo, diminuía minha culpa. A insanidade mental não
era culpa de ninguém, mas um ato de Deus. Havia algo muito reconfortante, por esse aspecto. Todos
os desastres naturais são reconfortantes, porque reafirmam nossa impotência, na qual, de outro
modo, poderíamos parar de acreditar. Às vezes é estranhamente calmante saber a medida de nossa
própria impotência.
213

Toleramos aquela tarde juntos, com Johann Sebastian Bach. ”A música tem encantos para acalmar o
peito selvagem”, diz Congreve (que, por certo, está no céu, jogando cartas com Mozart). Quando
penso em todos os momentos ruins nos quais Bach me ajudou a viver, tenho certeza de que ele
também está no céu.
O Doutor Steven Pearlmutter entrou às cinco horas — cheio de desculpas e mãos suadas. A partir de
então nossas vidas se achavam nas mãos dos médicos e em suas categoriazinhas bonitinhas e
cômodas. O meu marido Brian, assegurou-me o Doutor Pearlmutter, era ”um jovem muitíssimo doente”.
Ele ia ”tentar ajudá-lo”. Começou tentando aplicarlhe uma injeção de Thorazine — instante no qual
Brian deu um salto e desceu correndo as escadas do fundo (os três andares), lançando-se ao Riverside
Park. O doutor e eu o perseguimos, encontramo-lo, fizemo-lo parar, engabelamo-lo, vimos quando
voltou a partir, saímos em nova perseguição, voltamos a bajulá-lo, e assim por diante. Os demais
detalhes são tão sórdidos quanto comuns. A partir de então a hospitalização tornou-se inevitável.
Brian, a essa altura, estava inteiramente tomado pelo pânico e suas ilusões se punham cada vez mais
coloridas. Os dias seguintes foram de pesadelo. Os pais dele vieram da Califórnia, de avião, e logo
declararam que Brian estava ótimo, mas que eu era doida. Tentaram impedir que ele tomasse
qualquer medicamento, e zombavam constantemente dos médicos (o que, reconheço, não era difícil).
Instaram com ele para que me deixasse e voltasse para a Califórnia — como se afastá-lo de mim
pudesse, de modo automático, melhorar-lhe o estado. O Doutor Pearlmutter entregou Brian a um
psiquiatra, que por cinco dias corajosos tentou mantê-lo fora do hospital. De nada adiantou. Entre a
mãe e o pai de Brian, o chefe de Brian, aquela gente da Espuma Milagrosa, os ex-professores e
exmédicos de Brian, gente muito bem intencionada, nossas vidas já não eram nossas. Brian era
perseguido pelos seus candidatos a zeladores, e a cada dia piorava.
Na quinta manhã após a visita feita pelo Doutor Pearlmutter, Brian despiu todas as roupas, perto da
Torre Belvedere, no Central Park. Depois procurou trepar no cavalo de bronze do Rei Jagiello, para
sentar-se ao lado do Rei Jagiello, também feito de bronze (espadas cruzadas e tudo o mais). A polícia
finalmente levou-o para a ala de lunáticos no Monte Sinai (sirenas gritando, o Thorazine fluindo
como se fosse vinho em suas veias), e a não ser por algumas licenças
214
dadas em fins de semana, nunca mais voltamos a viver juntos.
Foram necessários oito meses para que nosso casamento se apagasse por completo. Depois de
Brian ter sido levado para o Monte Sinai, os pais dele vieram morar comigo, denunciaram-me dia e
noite, foram ao hospital comigo todas as noites, e nunca mais nos deram mais do que dez minutos a
sós. A hora de visitas ia apenas das seis às sete, e eles estavam decididos a nos manter separados,
mesmo nesses momentos. Ademais, quando eu me achava a sós com Brian, tudo o que ele fazia era
me atacar. Eu era uma Judas, declarou. Como pudera trancafiá-lo? Eu não sabia que iria para o
Sétimo Círculo — o círculo dos traidores? Não sabia que o meu crime era o crime mais imundo, no
livro de Dante? Não sabia que já estava no inferno?
O inferno não poderia ter sido muito pior do que o verão, é bom que se note. O regime de Diem
acabara de cair e os budistas continuavam a se imolar, em um paisinho engraçado, cujo nome se
tornava cada vez mais conhecido: Vietnam. Barry Goldwater concorria à presidência, tendo por
ponto de sua plataforma a afirmação de que ia serrar toda a costa litorânea do leste e jogá-la ao mar.
John F. Kennedy morrera, não fazia ainda um ano. Lyndon Johnson era a única esperança da nação
para derrotar Goldwater e manter a paz. Dois homens brancos, jovens, chamados Goodman e
Schwerner, haviam rumado para o Mississipi a fim de trabalharem para o registro de eleitores,
alinharam-se com um jovem negro chamado Chaney, e os três haviam acabado em uma sepultura
comum e pavorosa. Harlem e BedfordStuyvesant eclodiram no primeiro de muitos verões
prolongados e quentes. Brian, enquanto isso, achava-se no hospital, delirando, afirmando como ia
salvar a humanidade. A humanidade, com certeza, jamais necessitara tanto de um salvador.
Nós nos afastávamos. Não de uma vez, e não porque eu me encontrasse com outros. Não saí, em
absoluto, enquanto Brian esteve no hospital. Eu me achava em estado de choque, precisava de tempo
para me recuperar, mas gradualmente comecei a compreender como seria muito mais feliz sem ele,
como a energia frenética de Brian solapara minha vida, como suas fantasias aloucadas me haviam
privado de qualquer vida de fantasia própria. Comecei, devagar, a dar valor e a ouvir os meus
próprios pensamentos. Comecei a ouvir os meus próprios sonhos.
215
Era como se eu tivesse vivido em uma câmara de eco por cinco anos e, de repente, alguém me deixasse sair dela.
O resto da história é, na maior parte, desenlace. Eu amava Brian e sentia-me terrivelmente culpada
ao compreender que gostava de viver sem ele, mais do que com ele. Da mesma forma, acho que
nunca voltei a confiar inteiramente nele, depois da tentativa que fez de me estrangular. Eu disse que o
perdoava, mas algo dentro de mim jamais o perdoou. Tinha medo dele, e foi isso o que matou nosso
casamento, afinal.
O fim se aproximava. Como de costume, o dinheiro foi um fator a precipitar os acontecimentos.
Depois de três meses no Monte Sinai, a cobertura dada pela Blue Cross se esgotou e Brian teve de
ser transferido. Era preciso ir para um hospital estadual (coisa que nos apavorava, aos dois) ou
hospital particular (onde as despesas atingiam cerca de dois mil dólares mensais). Estávamos
encontrando uma muralha verde de dinheiro.
Os pais dele entraram em cena, não para ajudar, mas para atrapalhar mais ainda. Se eu deixasse
que ele fosse para a Califórnia, pagariam o tratamento particular. De outro modo, nem um tostão.
Vivi com este ultimato por algum tempo, e finalmente resolvi que não me cabia escolha alguma.
Em setembro fizemos nossa peregrinação à Califórnia. Partimos ”rumo ao território aberto”, não
em carroça coberta por lona, mas num 707, e levávamos meu pai e um psicanalista como
acompanhantes. A aerovia não aceitaria o vôo de Brian para a Califórnia sem um psiquiatra por
perto — o que também significava que nós quatro tínhamos de viajar em primeira classe, mastigando
amêndoas de macadâmia entre duas doses de Librium.
Foi um vôo dos mais memoráveis. Brian estava tão agitado que esqueci meu próprio medo de voar.
Meu pai tomava Librium a cada minuto e me aconselhava a ser corajosa, e o psicanalista (um
residente de vinte e seis anos de idade, carinha boa, que se identificou conosco até o ponto de
demonstrar incompetência total) estava tão nervoso que foi preciso dedicar-lhe atenção constante. Eu
era a Mamãe Isadora, e cuidei de todos eles. Todos os doidos, todos os papais que haviam
fracassado.
Na Clínica Linda Bella, em La Jolla, a ilusão do voluntarismo era mantida, com rigidez. Todas as
enfermeiras usavam bermudas, e os médicos camisas esportivas, calças de veludilho e chapéus de
golfe. Os pacientes envergavam
216
rou pá igualmente casual e andavam de um lado para outro, em um cenário que parecia um motel de
luxo, incluindo piscina e mesas de pingue-pongue. Todos, no quadro de funcionários, eram
decididamente animados e tentavam fingir que Linda Bella era uma espécie de balneário, em vez de
um lugar para onde se ia quando ninguém mais sabia o que fazer com você, em casa. Os médicos não
recomendavam cenas prolongadas de despedida. Brian e eu nos despedimos pela última vez na sala
deserta de terapia ocupacional, onde ele esmurrava com fúria um pedaço de argila, sobre uma das
mesas.
— Você não é mais parte de mim — declarou. — Mas já foi.
Eu pensava em como era doloroso ser parte dele, e como quase chegara ao ponto de esquecer
quem eu própria era, mas não podia dizê-lo.
— Voltarei — disse.
— Por quê? — contrapôs ele.
— Porque eu amo você.
— Se você me amasse, não me teria trazido aqui.
— Isso não é verdade, Brian, os médicos disseram...
— Você sabe que os médicos não sabem coisa nenhuma acerca de Deus. Eles não devem saber.
Mas eu pensei que você soubesse. Você é como todos os outros. Por quantas moedas de prata me
vendeu?
— Eu só queria ver você melhor — disse eu, debilmente.
— Melhor do que o quê? E se eu fosse melhor, como é que eles iam saber. . . doentes e doidos
como são? Você esqueceu tudo o que sabia. Eles também lavaram o seu cérebro.
— Eu queria que você ficasse melhor, para não ter de tomar remédios. . . — indiquei.
— Isso é besteira, e você sabe muito bem. Eles dão remédio para começar, e depois usam o
remédio como índice de sua saúde. Quando a medicação é muita. . . você piorou. Quando é pouca. . .
melhorou. O raciocínio é circular. Quem precisa desses malditos remédios, logo de saída? — e ele
esmurrou a argila, selvagemente.
— Eu sei — disse.
O problema é que eu concordava com ele. Com certeza as categorias de saúde e doença, feitas
pelos médicos, eram quase mais loucas do que as de Brian. Com certeza a
estupidez
217
deles era tal que, se Brian fosse Deus, eles não o saberiam.
— É tudo uma questão de fé — asseverou ele. — Sempre foi uma questão de fé. Minha palavra,
ou a palavra da multidão? Você escolheu a multidão. Mas isso não faz com que seja a escolha certa.
E mais. . . você sabe disso. Sinto pena de você. Você é tão fraca. Nunca teve coragem — e esmurrou
a argila, transformando-a em uma panqueca das mais finas.
— Brian. . . você precisa compreender minha posição. Eu achei que ia arrebentar, com tanta
tensão. Os seus pais berravam comigo o tempo todo. Os médicos faziam preleções. Eu parei de saber
quem era. . .
— Você estava sob tensão? Você! Quem foi preso. . . você, ou eu? Quem recebeu doses de
Thorazine, você ou eu? Quem foi vendido. . . você ou eu?
— Nós dois — respondi, chorando. Grandes lágrimas salgadas escorriam por meu rosto, vinham
ao canto da boca. Tinham bom sabor. As lágrimas têm um sabor tão reconfortante! Era como se
fosse possível chorar e criar todo um útero novo, entrar nele. Alice em seu próprio mar de lágrimas.
— Nós dois! Essa é boa!
— É verdade — observei — que nós dois nos machucamos. Você não tem o monopólio da dor.
— Vá — disse ele, apanhando a argila esmagada e começando a enrolá-la, em forma de uma
cobra. — Vá para um convento, Ofélia. Afogue-se, não me importa. . .
— Você parece não se lembrar nunca de que fez uma tentativa contra minha vida, não é? — eu
sabia que não devia dizê-lo, mas estava com raiva, agora.
— Sua vida! Se você me amasse. . . se soubesse qual é o maldito significado do sacrifício... se não
fosse uma menina mimada dos infernos, não viria com essa merda sobre sua vida!
— Brian, você não se lembra?
— Lembrar o quê? Lembro-me de como você me trancou . . . isso é o que lembro. ..
De repente compreendi que havia duas versões do pesadelo que havíamos atravessado — a versão
dele e a minha —, e não coincidiam, de modo algum. Brian não apenas estava destituído de qualquer
empada por minha infelicidade, como não se apercebia dela.
Nem mesmo se recordava dos acontecimentos que o
haviam enviado ao hospital. Quantas outras versões de nossa realidade existiam? A minha versão,
a de Brian, a dos pais dele, a dos meus pais, a dos médicos, a dos enfermeiros, a dos assistentes
sociais. . . Havia uma série infinita de versões, um número infinito de realidades. Brian e eu não
havíamos passado, juntos, por coisa alguma. Tínhamos ingressado em uma vivência pela mesma
porta, mas havíamos tomado túneis diferentes, cambaleado e tropeçado sozinhos por escuridões
separadas e, finalmente, havíamos saído em extremidades opostas da Terra.
Brian me fitava com frieza, como se eu fosse sua inimiga juramentada. Afirmo, com a maior
sinceridade, que não me lembro de nossas palavras de despedida.
Meu pai e eu tínhamos uma tarde e uma noite antes do vôo de regresso a Nova York. Alugamos
um automóvel e fomos a Tijuana, onde compramos uma pinata ligeiramente suja, roxa, em forma de
burrico. Caminhamos juntos pela rua, comentando as ”cores locais”, fazendo observações predizíveis
sobre a pobreza daquela gente e a opulência das igrejas.
Meu pai é, ainda, homem de bom aspecto, que parece ter cerca de quinze anos menos que os seus
sessenta anos, vaidoso quanto a seu físico e aos cabelos, que escasseiam, caminha com um
movimento elástico para cima e para baixo que também se tornou minha marcha característica. Nós
nos parecemos, caminhamos igual, ambos gostamos de trocadilhos e piadas e, ainda assim, de algum
modo, é difícil comunicarmo-nos. Ficamos sempre levemente envergonhados um na presença do
outro — como se ambos conhecêssemos um segredo terrível sobre nossa relação, mas não
pudéssemos falar sobre o mesmo. Que segredo podia ser esse? Lembrome dele batendo na parede
entre nossos dormitórios, a fim de me reconfortar, espantar o medo que eu sentia da escuridão.
Lembro-me dele mudando meu lençol, quando molhei a cama com três anos de idade, e preparando-
me leite quente, quando estava com oito anos e sofria de insónia. Lembro-me dele me contando uma
vez (depois de eu ter assistido a uma briga apavorante entre meus pais) que eles iam continuar juntos
”pelo meu bem. . . mas se havia mais alguma coisa — uma sedução infantil, ou uma cena
**219primeva
— minha memória superanalisada ainda não vai a tal ponto. Às vezes o cheiro de um sabonete (ou
qualquer outra substância doméstica) traz, de repente, uma recordação desde há muito
218
219

esquecida, vinda da infância. E é quando me ponho a imaginar quantas outras recordações se acham
ocultas em mim, nos recantos de meu próprio cérebro; na verdade, o meu cérebro parecerá ser a
última e grande terra incógnita, e eu me encho de espanto, diante da perspectiva de, algum dia,
descobrir mundos novos por lá. Imaginemos o continente perdido da Atlântida e todas as ilhas
submersas da infância, bem ali, esperando serem achadas. O espaço interno que nunca exploramos
adequadamente. Os mundos dentro de mundos dentro de mundos. E o maravilhoso é que estão à
nossa espera. Se deixamos de descobri-los, é apenas porque ainda não construímos o veículo certo —
espaçonave, submarino ou poema — que nos levará até eles.
É por esse motivo, em parte, que escrevo. Como posso saber o que penso, a menos que veja o que
escrevo? Minha escrita é o submarino, ou espaçonave, que me leva aos mundos desconhecidos dentro
de minha cabeça. E a aventura é infinita, inexaurível. Se eu aprender a construir o veículo certo,
poderei descobrir ainda mais territórios. E cada poema novo é um veículo novo, destinado a
mergulhar um pouco mais fundo (ou voar um pouco mais alto) do que o anterior.
Meu casamento com Brian provavelmente terminou naquele dia, quando caminhei naquelas ruas
de Tijuana, em companhia de meu pai, que fazia piadas. Meu pai procurava com todas as forças
mostrar-se animado e prestativo, mas eu naufragara em minha própria culpa. Era um dilema: se
permanecesse ao lado de Brian e voltasse a tentar viver com ele, enlouqueceria, ou pelo menos
desistiria da maior parte de minha identidade. Mas se eu o deixasse sozinho com sua loucura e
medicações dos médicos, estaria abandonando-o — exatamente quando ele mais precisava de ajuda.
De certo modo eu era uma traidora. A coisa se reduzira a uma escolha entre ele e mim, e eu me
escolhera. Minha culpa em relação a isso ainda me persegue. Em algum lugar, no fundo da cabeça
(com todas aquelas recordações submersas da infância) existe alguma imagem gloriosa da mulher
ideal, uma espécie de Griselda judia. Ela é Rute e Ester e Jesus e Maria, tudo ao mesmo tempo. Ela
sempre apresenta a outra face. É um veículo, um vaso, sem desejos ou necessidades próprias.
Quando o marido a espanca, ela o compreende. Quando ele se põe enfermo, ela o trata. Quando os
filhos adoecem, ela cuida deles. Cozinha, arruma a casa, dirige a loja, cuida da contabilidade e dos
livros, ouve os problemas de todos, visita o cemitério, arranca as ervas daninhas das
sepulturas,
220
planta o jardim, esfrega o chão e senta-se tranqüilamente na sacada superior da
sinagoga, enquanto os homens recitam orações sobre a inferioridade das mulheres. Ela é capaz de
praticamente tudo, menos de autopreservação. E, em segredo, eu sempre me envergonho de mim
mesma por não ser ela. Uma boa mulher teria dado a vida aos cuidados e tratamento da loucura do
marido. Eu não era uma boa mulher. Tinha muitas outras coisas para fazer.
Mas se faltara a Brian, compensara em dobro com Charlie Fielding. Em termos de masoquismo
puro — esse ”masoquismo feminino normal” bom e sadio — é praticamente impossível suplantar
minha relação com Charlie (que veio logo após o fim de meu casamento com Brian). É interessante
observar como sempre damos ao camarada seguinte todo o transbordamento do camarada que ficou
para trás. Um caso psicológico de ”segundos assistentes sentimentais”.
221

13

O regente

”É terremoto ou apenas um choque? Sopa de tartaruga ou, dela, só um toque? É um coquetel — esta minha
alegria,
ou, o que sinto, a verdadeira harmonia? Estou no palpite certo, ou estou na ilusão — Vai ser Bach ou Cole Porter e
sua
canção?”
Cole Porter, finalmente o amor (1938)

Charlie Fielding (”Charles”, quando assinava o nome) era alto, tinha ombros caídos e parecia-se ao Judeu
Errante. Seu nariz era imensamente comprido, adunco, as narinas largas, e a boca pequena, voltada para
baixo, estava sempre com expressão azeda, algo entre o desdém e a melancolia. Sua pele pálida, de aspecto
insalubre, fora estraçalhada por espinhas, que de quando em vez ainda o apoquentavam. Usava paletós
esportivos axadrezados e caros, que caíam dos ombros como se estivessem em cabides de arame. Os joelhos
de suas calças avolumavam-se para fora. Os bolsos do terno velho estavam sempre alargados com brochuras.
E na valise surrada, feita de pele de porco, a ponta da batuta de regente aparecia.
Quem o visse no subway ou jantando sozinho no Schrafft’s (onde pendurava as notas na conta do pai)
teria suposto, a julgar por sua expressão, que estava de luto. Não era assim — a menos que deplorasse
antecipadamente o falecimento do pai (cujo dinheiro deveria herdar).
Às vezes, enquanto esperava a chegada do jantar (galinha com creme, sundae quente, com creme gelado
de chocolate), tirava uma partitura orquestral da valise e, com a batuta na mão direita, começava a reger
músicos imaginários. Fazia isso no mais perfeito desconhecimento de que houvesse alguém por perto e, ao
que parecia, sem qualquer desejo
222
de que lhe dedicassem atenção. Estava simplesmente esquecido das pessoas em volta.
Charlie (sua mãe o chamara Príncipe Charles Ossudo e ele, afinal de contas, era um príncipe judeu) vivia
sozinho num apartamento de um aposento, no East Village, na mesma vizinhança em que seus ancestrais
pobres haviam vivido, duas gerações antes. As persianas estavam atopetadas de fuligem negra e gordurosa,
grânulos de sujeira estalavam sob os pés de quem andasse por ali. O ambiente parecia espartano: uma
cozinha pullman com aparadores sempre vazios, a não ser por caixas de abricós secos e sacos de açúcar-
cândi, um piano alugado, uma cama de solteiro, um gravador, um toca-discos portátil, dois pacotes de discos
(que nunca tinham sido abertos, desde que os trouxera da casa dos pais, dois anos antes). Do lado externo da
janela encontrava-se uma escada de incêndio que dava para um pátio fuliginoso e, do outro lado, moravam
duas lésbicas de meia-idade que às vezes deixavam de fechar as persianas. Charles alimentava esse desdém
defensivo pelos homossexuais que as pessoas muitas vezes adquirem, quando sua própria sexualidade
constitui motivo de embaraço para elas. Estava sempre tesudo, mas tinha pavor de ser vulgar. Sua educação
em Harvard fora destinada a extinguir toda a vulgaridade que existisse, até o fundo de seus genes, e embora
quisesse trepar, não desejava fazê-lo de modo que o levasse a parecer grosseiro — quer a si ou às pequenas
que procurava seduzir.
De qualquer modo, já notei que, se o homem não for um gênio autêntico, a educação por ele recebida em
Harvard constitui perigo permanente. Não é tanto pelo que aprendem por lá, mas o que presumem acerca de
si próprios, dali em diante — a patacoada de serem diplomados em Harvard, a aura, a atmosfera, os
problemas de pronúncia, as recordações ternas do rio Charles. Tende a infantilizá-los e levá-los a correr
pelos corredores das agências de publicidade com as gravatas flutuando ao vento. Faz com que agüentem a
comida temível e poltronas cheias de ratos do Harvard Club, a fim de impressionarem alguma coisinha nova
com a fonte gloriosa de seu bacharelado em artes.
Charlie tinha esse defeito harvardiano. Diplomara-se com nota média e sempre se achou
inacreditavelmente superior a mim, com meu Phi Beta Kappa, da déclassée
' Sociedade americana fundada em 1776 cujos membros são escolhidos entre os graduados de mais alta distinção
acadêmica. (N, do E.)
223

Faculdade Barnard. Julgava que, em Harvard, recebera o toque do refinamento, e que, a despeito de
todos os fracassos no mundo, continuava sendo um Homem de Harvard.
Na maioria das manhãs Charlie dormia até meio-dia, depois se levantava e fazia a primeira
refeição em uma das leiterias remanescentes dos bons dias em que a vizinhança era composta por
imigrantes. Duas manhãs por semana, entretanto, arrastava-se da cama às nove horas e tomava o
subway até o centro da cidade, onde ficava a escola de música em que lecionava piano e regia um
grupo coral. O dinheiro que ganhava nesse trabalho era quase nenhum, mas ele vivia principalmente
da renda de um fundo que o pai lhe dera. Mostrava-se inacreditavelmente furtivo com relação ao
montante, dessa renda, como se fosse segredo dos mais imundos. Mesmo assim, sempre supus que, se
não violentasse sua avareza íntima, ele poderia viver um tanto menos miseravelmente.
Existia, no entanto, um sujo segredo de família e talvez fosse isso o que tornava o dinheiro tão
embaraçoso. A família de Charlie viera a ter dinheiro por intermédio de seu tio Mel — o famoso
bailarino pseudo-anglo-saxão puro que deslizara pelos anos 30, cabelos endurecidos, nariz fixo e
esposa bailarina shikse1. Mel Fielding fizera toda uma carreira guardando em segredo seu judaísmo,
e concordara em partilhar a fortuna com a família, mediante a condição de que também ela
consertasse os narizes e mudasse os nomes, passando de Feldstein para Fielding. Charlie se recusara
a atender, no que tocava ao nariz, mas adotara o sobrenome. O pai de Charlie, todavia, amputou
realmente metade do nariz (acabando por parecer-se a um judeu de nariz absurdamente pequeno).
Mas o principal era que os Feldstein saíram de Brooklyn e apareceram no Beresford (aquele gueto
dourado, o pseudocastelo), no Central Park West.
O negócio da família era uma cadeia mundial de escolas de dança que vendiam filiações vitalícias
a pessoas idosas e solitárias. Não era mais escroqueria do que psicanálise, religião, grupos de
encontro ou rosicrucianismo, mas, como os mesmos, também prometia um fim à solidão, falta de
forças e dor, e está claro que vinha a desapontar muita gente. Charlie trabalhara no negócio dos
estúdios de dança alguns verões, durante a faculdade, mas fora apenas um gesto simbólico. Detestava
qualquer espécie de trabalho cotidiano —
' Moça judia que não observa os preceitos judaicos. (N. do E.)
224
mesmo se consistisse em deslizar na pista de dança com uma velha de oitenta anos de idade que
acabara de se tornar sócia vitalícia, ao diapasão de alguns milhares de dólares. Quando o conheci,
Charlie mostrava-se muito sensível na questão de dançar em bailes. Não queria que se soubesse, de
modo geral, que era isso que seu pai fazia para ganhar a vida. Mesmo assim, muitas vezes revelou o
nome do tio famoso a seus amigos, e aos meus. A ambivalência é música maravilhosa para
dançarmos. Tem ritmo todo próprio.
Mas o que fazia Charlie? Preparava-se para a grandeza. Sonhava acordado quanto à sua estréia
como regente — que, de outra forma, não fazia muito por apressar — e iniciou sinfonias. Elas eram
— todas — sinfonias inacabadas. Também iniciou sonatas e óperas (baseadas em obras de Kafka ou
Beckett). Também essas eram inacabadas. Começou canções de jazz — que nunca ultrapassaram os
primeiros acordes (mas que sempre prometia dedicar a mim). Talvez fosse um fracasso, aos olhos
dos outros, mas aos seus próprios era uma figura romântica. Falava de ”silêncio, exílio e astúcia”.
(Silêncio: as sinfonias inacabadas. Exílio: ele deixara Beresford em troca do East Village. Astúcia:
seu caso comigo.) Estava atravessando as dificuldades iniciais de todos os grandes artistas. Como
regente, ainda não tivera sua oportunidade e era ainda mais prejudicado, ao que julgava, pelo fato de
não ser homossexual. Como compositor, era uma questão de aprender a enfrentar a crise de estilos,
que pintava o diabo com nossa época. Também isso viria, a seu tempo. Era preciso pensar em termos
de decênios, e não de anos.
Sonhando ao banco do piano ou sobre uma travessa de bolinhos de cereja no Ratner’s, Charlie
pensava como faria, quando finalmente obtivesse êxito — já grisalho nas têmporas, suave e vestido
de modo excêntrico. Depois de reger sua própria obra nova no Met, não se sentiria rebaixado em
correr ao Half Note para uma sessão de música com candidatos a músicos de jazz. As universitárias
que o reconhecessem viriam assediá-lo à cata de autógrafos e ele as repeliria com observações
espirituosas. Nos verões, retirar-se-ia para sua casa de campo em Vermont, compondo em piano
Bechstein, sob a clarabóia inclinada, saindo do estúdio para conversar inteligentemente com os
poetas e jovens compositores que o teriam acompanhado até lá. Dedicaria três horas diárias à
preparação da autobiografia — em estilo que descrevia como algo entre Proust e Evelyn Waugh
(seus autores favoritos). E depois haveria mulheres. Sopranos wagnerianas,
225

de grandes bundas com covinhas, saídas do pincel de Petrus Paulus Rubens. (Charlie dava grande
preferência às mulheres gordinhas — ou mesmo gordas. Sempre achou que eu era magricela demais,
minha bunda pequena. Se ficássemos juntos, eu teria de me tornar elefantina, ao que calculo.) Depois
das sopranos gordas vinham as mulheres literatas: poetisas que lhe dedicavam livros, escultoras
obcecadas por que ele posasse nu, romancistas que o achavam tão fascinante que haveriam de torná-
lo a personagem principal de seus romans à clef. Talvez nunca se casasse, nem mesmo para ter
filhos. Os filhos (como afirmou com freqüência) eram chatos. Chatos (que pronunciava como se
estivesse gripado) sempre foi uma de suas palavras favoritas. Mas não constituía sua palavra
suprema de condenação (tampouco banal, embora também gostasse dela). Vulgar era sua palavra
suprema de desdém. As pessoas, está mais do que claro, podiam ser vulgares, e o mesmo acontecia a
livros, músicas e pinturas — mas a comida também sabia ser vulgar, no caso de Charles. Como disse
certa feita, quando seu famoso tio o levou ao Lê Pavillon: ”Esses crepes são vulgares”.
Pronunciava-o com grande espaço entre as sílabas — como se, entre vul e gar, estivesse
estremecendo, no limiar de uma revelação. A pronúncia também era uma coisa muito importante para
Charles.
Depois de tudo isso, deixei de dizer o mais importante de tudo — ou seja, que me apaixonei
loucamente por ele. A descrença veio depois. Para mim ele não era um jovem pomposo e espinhento,
mas uma criatura de encanto lendário, um futuro Lenny Bernstein. Eu sabia que a família dele (com
sua sala de jantar de seda champanha, criada por um decorador e coberta de plástico) era cem vezes
mais vulgar do que a minha. Percebi que Charlie era mais esnobe do que inteligente. Sabia que ele
nunca tomava banho, nunca usava desodorante e limpava a bunda inadequadamente’ (como se ainda
estivesse contando com que a mamãezinha viesse salvá-lo), mas endoidei por ele. Deixava que se
mostrasse condescendente comigo. Afinal de contas, era um devoto da mais universal das artes, a
música. Eu, uma pífia escriba, de mente prosaica. Mais importante ainda, ele tocava piano como meu
pai. Quando se sentava diante do teclado, minhas calcinhas umedeciam. Aqueles contínuos! Aqueles
crescendo! Aqueles bemóis! Aqueles sustenidos!
Você conhece aquela expressão horrível, ”fazer cócegas nos marfins”? Foi assim que Charlie me
deixou louca.
226
Às vezes costumávamos, até, trepar no banco do piano, com o metrônomo ligado.
Nós nos conhecemos de modo engraçado. Na televisão. O que pode ser mais engraçado do que
uma poetisa lendo na televisão? Não é poesia, nem televisão. É ”educativo” — se me permitirem a
expressão.
O programa foi no canal 13, uma espécie de salada das sete artes — nenhuma delas viva. O
motivo pelo qual alguém o considerou educativo nunca se chegou a saber. Havia sete jovens
”artistas”, cada um dos quais tinha quatro minutos para fazer sua apresentação. Depois veio um
sujeito de olhos empapuçados, fumando cachimbo, com um nome assim como Phillips Hardtack, que
nos entrevistou, fazendo a cada um perguntas incisivas como ”o que, em sua opinião, é inspiração?”
ou ”que influências se manifestam em seu trabalho?” Para tais perguntas (e cerca de dez outras)
haviam dado mais quatro minutos. Além de comparecer a espetáculos como esse, Hardtack ganhava
a vida escrevendo resenhas de livros e posando para anúncios de uísque, duas ocupações que têm
mais em comum do que parece, vistas superficialmente. O uísque era sempre ”leve” e ”suave” e os
livros eram sempre ”crus” e ”fortes”. Tudo quanto se tinha de fazer era dar corda a Hardtack, e lá
vinham os adjetivos. Às vezes, no entanto, ele os embaralhava e chamava um livro de ”leve” e
”suave”, e ao uísque intitulava ”cru” e ”poderoso”. Para o uísque de vinte anos de idade e autores
geriátricos que haviam publicado memórias, Hardtack reservava a palavra ”maduro”. E para autores
jovens e uísque novo, Hardtack tinha uma resposta automática: ”Falta-lhe suavidade”.
A maioria dos ”artistas” naquele espetáculo merecia Hardtack. Houve um jovem imbecil que se
intitulou a si próprio de ”cineasta” e apresentou quatro minutos de filme trémulo, com luz demasiada,
de algo que parecia duas (ou talvez três) amebas dançando, pseudópodo com pseudópodo; um pintor
negro que se considerava pintor ativista e só pintava cadeiras (estranho tema pacifista para um pintor
ativista); uma soprano com dentes muito amarelos e pontudos (Charlie lá estava também,
acompanhando-a em quatro minutos de um trémulo Puccini); um baterista chamado Kent Blass, que
dava pulos de vez em quando, tocando tambores, xilofones, aquários de vidro, panelas e frigideiras;
uma bailarina moderna que jamais dizia a palavra ”dança” sem usar o artigo definido; um cantor
popular de protesto social,
227

cujo sotaque do Brooklyn fora misturado a lições de dicção, o que deu o estranho resultado de ele
pronunciar meta como menta, e finalmente eu mesma.
Havia-me preparado dentro de uma moldura de compensado cinzento para meus quatro minutos de
poesia, e para chegar lá tive de me encarapitar em uma espécie de andaime. Charlie ficava bem
embaixo, sentado ao piano e olhando por baixo de minha saia. Enquanto eu lia minha poesia, ele
fazia buracos ardentes em minhas coxas, com os olhos. No dia seguinte ele me telefonou. Não me
lembrava dele, mas disse que queria pôr meus poemas em música, de modo que fomos jantar juntos.
Sempre fui muito ingénua no que toca a manobras desse tipo. ”Venha ao meu apartamento para a
gente dar um jeito de pôr música em seus poemas” e eu sempre ia, sempre se dava um jeito.
Mas Charlie me surpreendeu. Ele parecia magricela, ossudo e sujo quando se apresentou à porta
de minha casa, mas no restaurante exibiu um conhecimento gigantesco de Cole Porter, Rodgers, Hart
e Gershwin, todas as canções que meu pai tocara no piano, quando eu era menina. Até as canções
menos conhecidas de Cole Porter, as canções quase esquecidas de Rodgers e Hart, executadas em
espetáculos musicais obscuros, as canções menos conhecidas de Gershwin — ele as conhecia, todas.
Sabia, ainda, mais canções do que eu — com minha lembrança total para os versos capciosos. Foi
então que me apaixonei absurdamente por ele, transformei-o de verdadeiro sapo sem banho e de nariz
bicudo em um príncipe, um príncipe judeu que tocava piano, ainda por cima. Assim que recitou os
últimos versos de Let’s do it e disse as palavras certas, eu estava pronta a topá-lo. Foi um simples
caso edipiano.
Fomos para casa e para a cama. Mas Charlie estava tão empolgado com sua sorte que murchou.
— Dirija-me — pedi.
— Acho que perdi minha batuta.
— Bem, nesse caso faça como Mitropoulos. . . com as mãos.
— Você é um achado e tanto — disse ele, remexendo-se por baixo das cobertas. Com a mão, ou
com a batuta, não adiantou. Seus dentes batiam, os ombros sacudiam-se com estremeções enormes.
Ele estertorava, respirando como um paciente de enfisema.
— Qual é o problema? — perguntei.
228
— O negócio é que você é um achado tamanho que não consigo acreditar — e parecia estar
soluçando e engasgando, alternadamente.
Logo suplicava:
— Você voltará a se encontrar comigo, a despeito disso? Você promete que não vai se voltar
contra mim?
— E você está pensando que eu sou um vampiro? — contrapus, atónita. Todos os meus instintos
maternais tinham sido acordados por sua total falta de jeito. — Que tipo de cretina seria capaz de
jogá-lo fora?
— A última com quem isso aconteceu — respondeu, gemendo — jogou-me lá fora e atirou minhas
roupas em cima de mim, na entrada. Esqueceu de jogar uma das meias. Tive de ir para casa no
subway com um pé sem meia. Foi a coisa mais humilhante que me aconteceu.
— Queridinho — disse eu, embalando-o.
Penso que devia ter esperado a instabilidade emotiva de Charlie, por causa de seus soluços,
engasgos e estremecimentos — mas não foi assim. Para mim, isso vinha apenas confirmar sua
sensibilidade. O Príncipe e a Ervilha. Era compreensível. As noites de estréia derreavam-no. Nós
sempre podíamos cantar obras de Cole Porter, juntos, em vez de treparmos. Em vez disso, todavia,
adormeceu em meus braços. Dormiu como jamais vi alguém dormir. Resfolegava, gaguejava,
peidava e se remexia. Gemia e estremecia. Chegou ao ponto de espremer espinhas, enquanto dormia.
Fiquei acordada metade da noite, observando-o, tomada pelo mais completo espanto.
De manhã ele despertou sorridente e fodeu-me como se fosse um garanhão. Eu passara pela prova,
não o pusera para fora. Era a minha recompensa.
Nos oito meses seguintes, mais ou menos, andamos juntos, em geral passando as noites no
apartamento dele, ou no meu. Eu estava providenciando uma anulação do casamento com Brian e
lecionava inglês no CCNY, enquanto terminava os estudos em Columbia. Continuava vivendo no
mesmo apartamento onde Brian enlouquecera e detestava ficar sozinha à noite, de modo que quando
Charlie não vinha ficar comigo eu o acompanhava até o East Village, e partilhava sua cama estreita.
Ele me amava, afirmou, adorava-me, afirmou, mas mesmo assim me escondia algo. Eu percebi
qualquer coisa estranha em suas declarações de amor, algo reticente e insincero. Fiquei doida, porque
era a primeira vez que alguém me escondia algo.
229

Estava acostumada à posição superior e aquela atitude dele me enraivecia. Fiquei cada
vez mais doida por ele, o que, por sua vez, levou-o a ficar cada vez mais reticente. É aquela história
antiquíssima.
Eu sabia que havia outra pequena em Paris, uma antiga namorada de Radcliffe, que estava
estudando filosofia na Sorbonne. Pelo que Charlie dizia, eram apenas amigos. O namoro acabara,
declarou-me.
Ela era gorducha, tinha cabelos pretos e (pelo que Charlie dizia) possuía o hábito mais irritante do
mundo, o de cair em sono profundo, depois de trepar. Tinha ido para Paris a fim de afastar-se dele, e
estava com um namorado francês que vivia com ela na Rue de Ia Harpe (Charlie parecia conhecer os
detalhes muito bem, para alguém que não se preocupava mais com o fato). Mas se tudo aquilo era
verdade, nesse caso por que ela assinava as cartas que lhe enviava com ”eu te amo”? Era só para
manter um trunfo? E que dizer dele? Seria ela o seu trunfo? Ou o trunfo era eu?
Sempre achei que ler cartas alheias é a maior baixeza, mas o ciúme leva as pessoas a fazerem
coisas singulares. Em certa manhã triste no East Village, quando Charlie saiu cedo para lecionar a
seus estudantes de música, deixei a cama como uma espiã e (o coração estrondeando como um dos
tambores de Saul Goodman) vasculhei-lhe o apartamento. Procurava, como é natural, carimbos de
Paris — e os encontrei, bem por baixo dos calções cinzentos indiscretos de Charlie.
A avaliar pelas cartas que escrevia, Salome Weinfeld (assim chamada por causa de seu avô Sol?)
era do tipo literato. Achava-se também envolvida no brinquedo de fazer Charlie endoidar de ciúme,
enquanto o prendia a si com doses pequenas de afeto.
”Cher Charles [dizia ela]
Nós [nós!] estamos vivendo aqui no sexto andar (sétimo, para você) de um buraco
encantadoramente surrado chamado Hotel de Ia Harpe enquanto procuramos uma toca mais barata.
Paris é divino — Jean-Paul Sartre mora praticamente ali na esquina, Simone de Beauvoir, Beckett,
Genet — tout lê monde, em suma.
Querido, eu te amo. Não pense que é só por estar vivendo com Sebastien (que, por falar nisso,
sabe fazer um cuscuz soberbo) — que parei de gostar de você. É só que preciso de tempo para
experimentar, respirar, viver, estender
as pernas, flexionar os músculos [calculemos quais!] sem
você.
Sinto sua falta dia e noite, penso em você, chego a sonhar com você. Você não imagina como é
frustrante viver com um homem que não sabe o que é um BLT, que nunca comeu um blintz1 e para
quem The Charles é um ex-rei da Inglaterra! Mesmo assim ele (Sebastien) é bonzinho, dedicado e
[toda uma linha foi apagada à tinta, neste ponto] me faz compreender todos os dias o quanto ainda te
amo.
Attends-moi, chéri Sally.”
Attends-moi, uma ova!
Mas como podia apresentar a Charlie uma carta que eu extraíra de sua roupa de baixo, não muito
limpa? Adotei, por esse motivo, a política fabiana de espera vigilante. Mantive meu ressentimento em
segredo. Estava decidida a conquistá-lo, gradualmente, à sua correspondente secreta.
Em junho, partimos juntos para a Europa. Charlie ia a um concurso de regentes musicais na
Holanda; eu tinha amigas a visitar em Yorkshire, devia encontrar-me com minha velha amiga Pia, em
Florença, para um passeio pela Europa meridional, e ia ver minha irmã Randy no Oriente Médio.
Charlie e eu planejamos ficar juntos na Holanda por duas semanas, e depois nos separarmos. Ele
dizia que voltaria para casa, a fim de reger um oratório em algum festival artístico, mas isso ainda
não estava confirmado. Eu contava secretamente que ambos concordássemos em cancelar todos os
outros planos que havíamos feito, viajando juntos por todo
o resto do verão.
Partimos a bordo do velho Queen Elizabeth, em classe turística. A bolorenta empresa Cunard não
nos daria uma cabine para dois a menos que apresentássemos prova escrita de nosso casamento (o
que, naturalmente, não tínhamos). Além disso, Charlie era sovina. Por questão de economia, ficou
com uma cama numa cabine de quatro leitos, com três velhos, e não me restou escolha senão tomar
outra, numa cabine feminina de quatro leitos. Sem janela, naturalmente, e bem em cima dos motores.
Minhas companheiras eram uma alemã que tinha todo o aspecto e qualidades vocais da Cadela de
1 Em ídiche. Espécie de panqueca geralmente recheada de creme de queijo. (N. do E)
230
231

Buchenwald, uma enfermeira francesa magriça que roncava, e uma professora inglesa com cinqüenta
anos de idade, colete de malha de lã, saia enxadrezada e sapatos de sola ondulada. Ela usava English
Lavender da Yardley e toda a cabine trescalava àquilo.
Nosso problema durante aquela travessia de cinco dias e meio foi onde trepar. Em minha cabine,
impossível, já que a enfermeira francesa parecia dormir o dia todo e as damas inglesa e alemã
deitavam-se às nove horas. Certa vez tentamos deixar de lado o almoço, de modo a ficarmos com a
cabine de Charlie, enquanto os três velhotes faziam as refeições, mas um deles voltou e sacudiu a
porta com raiva, exatamente quando começávamos. Por isso, iniciamos uma batida a bordo,
procurando lugares para foder. Estávamos determinados. Seria de imaginar que fosse fácil, em navio
antigo, tão cheio de recantos e cantinhos quanto o Queen Elizabeth, mas nada disso. Os armários de
roupas de cama trancados, os salvavidas altos demais para subirmos até lá, os lugares públicos
demasiadamente públicos, a creche cheia de criancinhas, e nenhuma cabine vazia. Sugeri que
usássemos uma das cabines da primeira classe, enquanto os ocupantes se achassem ausentes, mas
Charlie se amedrontou.
— E se eles voltarem? — perguntou.
— Com certeza iam ficar tão embaraçados que não diriam nada.. . ou, então, iam pensar
automaticamente que tinham entrado na cabine errada, e até procurarem a deles e falarem com o
camareiro, nós já teríamos acabado.
Meu Deus, como eu era pragmática, comparada a Charlie! E que sujeito medroso era ele! Meu
medo de voar, afinal de contas, permite que eu ande de avião, apesar de sofrer por todo o vôo, cheia
de pavor, mas o medo que ele tinha de voar era tamanho que nem mesmo se aproximava de um avião
no chão. Fora assim que tínhamos dado com os costados nessa dificuldade a bordo.
Finalmente achamos o lugar. O único lugar abandonado a bordo. Lugar inteiramente perfeito —
tanto do ponto de vista simbólico quanto do prático (só que não tinha cama): a capela judia, na classe
turística.
— Isso é fantástico! — gritei, quando acendemos a luz e descobrimos onde estávamos. Que
cenário! Bancos de igreja! Uma estrela-de-davi! Até uma Tora, pelo amor de Deus! Eu estava
realmente acesa.
— Vou só fingir que sou uma virgem vestal ou’coisa assim — prometi, e logo comecei a abrir o
zíper de Charlie.
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— Mas não tem fechadura na porta! — protestou ele.
— E quem vai entrar aqui, afinal? Não serão, com certeza, nossos companheiros de viagem,
anglo-saxões brancos e azedos, nem tripulantes anglicanos. Além disso, podemos apagar a luz outra
vez. Quem entrar nessa escuridão vai pensar que estamos davinando, ou coisa parecida. Eles não
entendem os serviços religiosos judaicos.
— Provavelmente vão pensar que você é um archote aceso — disse ele, de picuinha.
— Muito engraçado — e eu já despia as calcinhas e apagava a luz.
Nós só chegamos a trepar diante de Deus uma vez, porque no dia seguinte, quando voltamos a
nosso pequenino templo de amor, descobrimos a porta fechada a cadeado. Nunca soubemos o
motivo. Charlie, naturalmente, tinha certeza (a seu modo paranóico) de que alguém (Deus?)
fotografara nossa conjugação vigorosa e também gravara em fita todos os gemidos que havíamos
emitido. Passou o resto da viagem tomado de pânico. Tinha certeza de que a polícia de costumes da
Interpol estaria à nossa espera, em Lê Havre.
O resto da travessia foi bastante monótono, para mim. Charlie sentava-se em um dos salões,
estudando suas partituras e regendo músicos imaginários, enquanto eu o observava, fervilhando de
ressentimento por causa de Sally, pois tinha certeza de que ele pretendia vê-la em Paris. Tentei
afastar essa questão dos pensamentos, mas não adiantava, ela voltava a eles como um desses
envoltórios de doce que se recusam a afundar no lago do Central Park. O que podia fazer? Tentei
escrever, mas era impossível concentrar a atenção. Tudo em que pensava era em Sally — aquela
supervigarista. Ela mantinha Charlie bem preso a ela, assim como Charlie me mantinha a mim presa
a ele. Todos os problemas do amor são problemas de má distribuição, com seiscentos demônios. Há
grande fartura de elementos naturais, mas eles vão sempre para as pessoas erradas, nos momentos
errados, nos lugares errados. Os amados recebem mais amor, os desamados recebem mais desamor.
Quanto mais nos aproximávamos da França, tanto mais eu me incluía na última categoria.
Charlie, é claro, foi reprovado no concurso de regência. E foi reprovado logo de entrada. A
despeito de sua ostentação de estudo, nunca soube guardar as partituras na memória. E não era
talhado para regente, já que falamos no assunto.
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No pódio, parecia sempre murchar, como murchara na primeira noite na cama. Todo o seu corpo
descaía. Os ombros jogavam-se à frente, para baixo, as costas arqueavam-se como um cannellone-
cozido demais, que perdera o recheio. O pobre Charlie não era dotado de carisma algum. Exatamente
o oposto de Brian. Muitas vezes pensei (enquanto observava Charlie regendo) que, se ele pudesse ter
ao menos um pouco do carisma de Brian, mostrar-se-ia fenomenal. Brian, naturalmente, não tinha
talento algum para a música. Mas se, ao menos, eu pudesse tê-los combinado! Por que sempre acabo
com dois homens que compõem um grande homem? Será esse o segredo de meu problema edipiano?
Meu pai e meu avô? Meu pai, que sempre sai para tocar piano quando as coisas esquentam, e meu
avô, que fica presente como autêntica bola de fogo que é, discutindo marxismo, modernismo,
darwinismo ou qualquer outro ismo — como se sua vida dependesse disso?
Estarei condenada a passar a vida correndo entre dois homens? Um acanhado, quieto e quase
indiferente, o outro tão furioso e inquieto que gasta todo o meu oxigênio?
Uma cena típica à mesa de jantar White-Stoloff. Minha mãe Jude berrando por causa de Robert
Ardrey e a territorialidade. Meu avô Stoloff (que todos chamam de papai), citando Lênin e Púchkin a
fim de provar que Picasso é um impostor. Minha irmã Chloe dizendo a Jude para calar a boca,
Randy berrando com Chloe para que esta cale a boca, Bob e Lalah lá em cima, cuidando dos
quíntuplos, Pierre discutindo economia com Abel. Chloe malhando Bennett sobre psiquiatria, Bennett
tossindo nervosamente e parecendo inescrutável, Randy atacando minha poesia, minha avó (a quem
todos chamam mamãe) costurando e advertindo-nos para não ”falarmos com motoristas de
caminhão” e eu folheando uma revista para me esconder de algum jeito (sempre com a palavra
impressa!) de minha família.
”CHLOE: — Isadora está sempre lendo alguma coisa. Você não pode deixar de lado essa
maldita revista?
EU: — Por quê? Para poder berrar como todo mundo está fazendo?
CHLOE: — Bem, seria melhor do que ler uma maldita revista todo o tempo.
MEU PAI (cantarolando Chattanooga choo choo): — ”Leia uma revista e você chega a
Baltimore.
CHLOE (os olhos voltados para cima, como em súplica):
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— E o papai está sempre cantarolando ou fazendo piadas. Será que nunca se pode conversar a
sério nesta casa?
EU (lendo): — E quem quer conversar a sério?
CHLOE: — Você é uma cadela cheia de hostilidade.
EU: — Para quem detesta a psiquiatria, você usa bastante do jargão dela.
CHLOE: — Foda-se.
MAMÃE (parando de costurar um pouco): — Vocês deviam sentir vergonha. Nunca criei minhas
netas para que falassem como motoristas de caminhão.
PAPAI (deixando, por momentos, o debate travado com Jude): — Revoltante.
CHLOE (a plenos pulmões): — SERÁ QUE TODO MUNDO
PODE CALAR A BOCA E ESCUTAR O QUE EU QUERO DIZER?
Ouve-se o piano tocando, na sala de visitas. É meu pai, que toca sua própria versão de Begin the
beguine, que executou anos atrás na primeira produção de Jubilee da Broadway. ”When they begin.
. the. . . beguine. . . it brings back the thrill of music só tennnderrr. . .”
Sua voz se evola até meus ouvidos, sobre os acordes do piano Steinway levemente desafinado.
Mas papai e Jude percebem o desvio.
— Nesta sociedade — Jude está dizendo — os padrões da arte são estabelecidos pelos agentes da
imprensa e pelos homens das relações públicas... quer dizer que não existem pad.. .
— Eu sempre disse — interrompe papai — que o mundo está dividido em dois tipos de pessoas:
os patifes e os semipatifes...
Meu pai responde, aos dois, com um acorde dissonante.”
Charlie e eu nos despedimos em Amsterdam, com muitas lágrimas. Na estação ferroviária
principal. Ele seguia rumo a Paris e Lê Havre (a fim de voltar aos Estados Unidos, afirmara). Mas eu
não acreditava nisso. Eu seguia para Yorkshire — gostasse ou não, e não estava gostando, de modo
algum. Uma despedida lacrimosa. Comíamos arenques de Amsterdam e chorávamos — os dois.
— É melhor que nos separemos por algum tempo, querida — diz ele.
— Sim — digo eu, mentindo com os dentes (cheios de arenques). Beijamo-nos, então, em grande
intercâmbio de saliva acebolada. Embarco no trem para o Gancho da Holanda. Aceno com a mão
fedendo a arenque. Charlie sopra-me beijos.
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Permanece na plataforma, os ombros redondos, a batuta de regente aparecendo no bolso do


capote, uma valise surrada e cheia de partituras orquestrais e arenques holandeses na mão. E o trem
parte. Chegada ao Gancho da Holanda, rumo de vapor a Harwich, fico em meio ao nevoeiro
chorando, pensando em mim mesma no nevoeiro, chorando, imaginando se algum dia conseguirei
utilizar essa vivência em um livro. Com a unha comprida pintada, desloco outro pedaço de arenque
que se enganchou entre os dentes e o atiro, com gesto dramático, ao mar do Norte.
Em Yorkshire recebo uma carta de Charlie, que continua (está claro) em Paris. ”Querida”,
escreve, ”não pense que, só porque estou com Sally, deixei de te amar. . .”
Hospedo-me em uma casa inglesa de campo, cheia de correntes de ar, lotada de amigos ingleses
doidos, que bebem gim o dia todo, a fim de se aquecerem, e travando conversa oscar-wildiana, e
passo os dez dias seguintes em verdadeiro estupor de embriaguez. Mando um telegrama a Pia para
que venha encontrar-se comigo em Florença, mais cedo do que tínhamos combinado, e vamos as duas
vingar-nos de nossos amantes infiéis (o dela está em Boston) dormindo com todos os homens em
Florença, com exceção do Davi de Michelangelo. Só que de nada adianta. Continuamos
desesperadamente infelizes. Charlie telefona para mim em Florença, a fim de pedir perdão (continua
em Paris com Sally) e isso precipita outra orgia sem alegria alguma. . . depois Pia e eu nos
arrependemos e resolvemos purificar-nos. Fazemos duchas com vinagre chianti branco italiano.
Ajoelhamo-nos diante da estátua de Perseu, na Loggia dei Lanzi, e suplicamos perdão. Vamos ao
topo do Campanile de Giotto e oramos ao fantasma de Giotto (qualquer fantasma velho e antigo
serve, na verdade). Abandonamos a comida por dois dias e só bebemos San Pellegrino. Fazemos
duchas com San Pellegrino. Finalmente, como ato supremo de expiação, resolvemos mandar nossos
diafragmas pelo correio a nossos amantes infiéis e tentar fazer com que eles se sintam culpados, a
seu turno. Mas com que embrulhá-los? Pia tem uma caixa velha de Motta Panetone debaixo da cama
de nosso quarto de ’pensione, que parece atingido por um furacão. Olho por toda a parte mas não
encontro caixa adequada para despachar meu diafragma, de modo que abandono tal projeto, um tanto
afobadamente. (De que adiantaria enviar o meu diafragma a Charlie em uma caixa de panetone,
aliás?) Mas Pia não se deixa demover. Movimenta-se com estardalhaço, procuran-
do papel grosso e fita. Está garatujando o endereço do remetente e destinatário. Fez-me recordar
de mim mesma aos treze anos de idade, despachando furtivamente pedidos de Kotex em ”envoltório
de papel comum”.
Partimos rumo ao American Express (onde dormimos com metade dos funcionários dos correios,
florentinos e zombeteiros). Dizem-nos para fazer uma declaração para fins alfandegários. Mas o que
colocar nessa declaração alfandegária? ”Um diafragma usado?” ”Um diafragma muito abusado?”
”Roupa usada”, talvez? Pode um diafragma ser considerado um artigo de indumentária? Pia e eu
debatemos a questão.
— A gente usa, põe no corpo — diz ela.
Eu sustento a opinião de que deve enviá-lo a Boston como antigüidade, evitando desse modo
qualquer imposto aduaneiro. E se o namorado errante tiver de pagar o imposto por seu diafragma
antigo? Não seria jogar despesas em cima da ofensa, insulto em cima da culpa?
— Que ele se foda! — proclama Pia. — Que ele pague imposto aduaneiro, e fique o mais
embaraçado possível. — Decidido isso, rotula o embrulho: ”Uma bolsa de couro florentina — valor:
cem dólares”.
Pia e eu nos despedimos pouco depois. Eu fui visitar Randy em Beirute, e ela seguiu para a
Espanha, onde, sem diafragma, teria de contentar-se com felação por todo o resto do verão. Quanto a
chupar e ser chupada, ela não sentia culpa de espécie alguma. Parece um tanto ridículo, mas
compreendo perfeitamente esse sentimento. Afinal de contas, nós fomos as boas meninas dos anos
50.
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237

14

Árabes & outros animais

”Eu sou o xeque da Arábia. Teu amor me pertence. À noite, quando adormeceres, em tua tenda entrarei. .”
de O xeque da Arábia, de Ted Snyder, Francis Wheeler e Harry B. Smith
De Florença tomei o rápido para Roma, e de lá peguei um vôo da Alitalia para Beirute.
Achava-me em pânico, lembro-me ainda — por todos os motivos: por causa do vôo, é claro, e
ansiosa por saber se haveria carta de Charlie à minha espera na casa de Randy em Beirute, e se os
árabes descobririam que era judia (embora o designativo ”unitarista” estivesse escrito
cuidadosamente com letras de imprensa em meu visto de passaporte). É claro que se soubessem o que
mo significava, talvez me achassem mais repelente do que judia — já que metade da população do
Líbano é católica. Mesmo assim, apavorava-me ser desmascarada como impostora, e, a despeito de
minha ignorância total do judaísmo, detestava ter de mentir quanto à minha religião. Tinha certeza de
que deixara de lado a proteção que Jeová geralmente me proporcionava (e que não era muita —
reconhecia), por meu gesto terrível de tapeação.
Tinha também certeza de que apanhara gonorréia com todos aqueles florentinos incircuncisos. Oh,
eu tenho fobia com relação a quase tudo o que se pode pensar: desastre de avião, gonorréia, engolir
vidro moído, botulismo, árabes, câncer do seio, leucemia, nazismo, melanoma. . . O problema com
relação a minha fobia pela gonorréia é que não vem ao caso, em absoluto, saber se estou me sentindo
bem, ou se minha pomba está livre de machucados e lesões.
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Eu olho, olho, olho mais, por menos que encontre, continuo na certeza de que estou com alguma forma
silenciosa e assintomática de gonorréia. Em segredo, sei que minhas trompas de Falópio podem estar
se fechando, o tecido da pomba e os ovários ressecando-se como vagens velhas. Imagino tudo isso
com gran-- des detalhes visuais. Todos os meus bebês inatos secando-se! Murchando na vinha, por
assim dizer. O pior na mulher é o caráter oculto do próprio corpo. Passa-se toda a adolescência
dobrada para trás, diante do espelho do banheiro, tentando examinar a própria cona. E o que se vê?
O halo encrespado dos pêlos púbicos, os lábios purpúreos, o botão de alarme róseo do clitóris — mas
nunca o suficiente! A parte mais importante fica invisível! Um canyon inexplorado, uma caverna
subterrânea, e todas as espécies de perigos ocultos à espreita, lá dentro.
O problema é que o vôo a Beirute destinava-se a agitar todas as minhas variegadas paranóias.
Entramos voando em uma tempestade épica sobre o Mediterrâneo, a chuva batendo nas janelas e a
comida entornando no interior do avião, o piloto aparecendo a cada minuto com declarações de
reconforto nas quais não acreditei por um só segundo. (Nada parece inteiramente digno de crédito,
em italiano, por falar nisso — nem mesmo Lasciate ogni speranza.) Eu estava completamente pronta
a morrer por ter escrito ”unitarista” no meu visto. Era, a bem da verdade, exatamente o tipo de
transgressão pelo qual Jeová pega a gente — isso, e por foder pagãos.
Todas as vezes que atingíamos um bolsão de ar e o avião caía cerca de duzentos metros (deixando-
me com o estômago na boca) eu jurava que abandonaria o sexo, o bacon e as viagens de avião, se
conseguisse, um dia, voltar inteira a terra firme.
Os demais passageiros no avião tampouco correspondiam à minha noção de grupo divertido, com
o qual pudesse morrer. Quando as coisas ficaram realmente feias e levávamos solavancos e sopapos
de um lado para outro, como pulgões prendendo-se a um avião de papel, algum idiota embriagado
começou a berrar ”Uaai-cacete” e a cada vez que mergulhávamos alguns outros imbecis riam
histericamente. A idéia de morrer com todos aqueles filhos da puta metidos a engraçados, e depois
chegar ao inferno com um visto marcado ”unitarista”, me manteve em orações pressurosas por todo o
vôo. Não existem ateus a bordo de aviões turbulentos.
Por espantoso que fosse, a tempestade diminuiu
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(ou nós a deixamos para trás) quando sobrevoávamos Chipre. Havia um egípcio gorduroso (e existe outro
tipo?) sentado a meu lado, e, depois de ter percebido que ia sobreviver àquele vôo, ele começou a
flertar comigo. Disse que publicava uma revista no Cairo e que ia a Beirute a negócios. Insistiu,
também, em que não havia ficado assustado, em absoluto, porque sempre usava aquela miçanga azul
contra o mau-olhado. Miçanga azul ou não, pareceu-me muitíssimo assustado. Mas ele tratou de me
afirmar que tanto ele quanto eu tínhamos .”narizes de sorte” e, portanto, não seria possível o avião
cair conosco a bordo. Tocou a ponta de meu nariz, depois a ponta do seu e comentou:
— Está vendo. . . sorte.
”Meu Deus. . . estou diante de um tarado nasal”, foi o que pensei. Além disso, a idéia de que
nossos narizes se parecessem não me agradava nem um tiquinho. O dele era imenso, como o de
Nasser (todos os egípcios, a meus olhos, parecem-se a Nasser), enquanto o meu, embora não seja
exatamente retroussé, é, pelo menos, pequeno e reto. Pode não ser um modelo de cirurgião plástico,
mas também não é um nariz à Ia Nasser. Quando mais não seja, a ponta curta e grossa denuncia a
contribuição genética de algum facínora polonês de semblante suíno, que estuprou uma de minhas
bisavós, durante algum pogrom desde muito esquecido no território.
Os interesses comunicativos do meu egípcio, todavia, iam além dos narizes. Citou um exemplar da
revista Time que ficara aberta (e sem ser lida) em meu colo, durante a tempestade, apontou a
fotografia do (então) embaixador na ONU, Goldberg, e disse, em tom histórico:
— É judeu.
Foi tudo o que disse, mas seu tom de voz e expressão davam a entender que era tudo o que tinha a
dizer.
Olhei-o bem firme (voltando para ele meu nariz polaco), e por dois vinténs teria dito: ”Eu
também”, mas ninguém me ofereceu os dois vinténs. Foi exatamente quando nosso piloto italiano
anunciou a descida no aeroporto de Beirute.
Eu ainda tremia por causa desse pequeno intercâmbio verbal, quando divisei uma Randy
imensamente grávida, por trás da barricada de vidros, no aeroporto. Contava com o pior, na hora de
passar pela alfândega, mas não houve problema algum. Meu cunhado, Pierre, parecia ser amicíssimo
de todo o pessoal do aeroporto, e passei por ali como figura de alta projeção. Estávamos em 1965 e
as coisas não
240
se mostravam tão espásticas no Oriente Médio quanto se tornaram após a Guerra dos Seis Dias.
Desde que não se viesse passando por Israel, dava para viajar ao Líbano como se fosse a praia de
Miami - com a qual, na verdade, se parece um pouco, até na sua abundância de yentas.
Randy e Pierre levaram-me de carro, saindo do aeroporto, um Cadillac inteiramente preto e com
ar-condicionado que haviam importado dos Estados Unidos. A caminho de Beirute, passamos por um
campo de refugiados onde as pessoas viviam em caixotes e inúmeras crianças sujas andavam por ali,
seminuas, chupando os dedos. Randy imediatamente fez algum comentário despótico sobre a visão
desagradável que aquilo representava.
— Visão desagradável? Só isso? — perguntei.
— Ora, não venha bancar uma maldita benfeitora liberal — retorquiu ela. — Você pensa que é a
Eleanor Roosevelt?
— Obrigada pelo cumprimento.
— Me dá vontade de vomitar, de tanto ouvir gente a se lamentar por causa dos pobres palestinos.
Por que você não se preocupa conosco, em vez de com eles?
— Preocupo-me — afirmei.
A cidade de Beirute propriamente dita é boa, mas não tão encantadora quanto seria de esperar,
após ouvir a descrição de Pierre. Quase tudo é novo. Há centenas de edifícios brancos, parecendo-se
a caixas de aveia, com terraços de mármore, e por toda parte as ruas estão sendo arrebentadas para
surgirem novas edificações. Tudo se mostra insuportavelmente quente e úmido em agosto, e qualquer
grama que ainda reste tornou-se marrom, sob o sol. O Mediterrâneo é azul (porém, não mais azul do
que o mar Egeu — a despeito do que Pierre afirme). Vista de determinados lugares, a cidade se
parece um pouco a Atenas — sem a Acrópole. Uma cidade oriental espraiada, edifícios novos
surgindo ao lado de outros que pareciam ruínas. O que dá para lembrar são anúncios de Coca-Cola
ao lado de mesquitas, bombas da Shell anunciando gasolina em árabe, damas em véus nos bancos de
trás de Chevrolets e Mercedes-Benz com cortinas, música árabe monótona, ao fundo, moscas por
toda parte e mulheres de minissaias e cabelos louros passeando pela Rua Hamra, onde todas as
marquises de cinemas anunciam filmes americanos e as livrarias estão cheias de Penguins, Livres de
Poche, brochuras americanas e os mais recentes romances pornográficos, vindos de Copenhague e da
Califórnia.
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Parece que o Oriente e o Ocidente se encontraram, mas em vez de produzirem alguma combinação nova e
esplêndida, foram ambos por água abaixo.
Toda a família me esperava no apartamento de Randy — toda, menos os meus pais, que se
achavam no Japão, mas eram esperados a qualquer dia. A despeito das numerosas vezes que estivera
grávida, Randy continuava a agir como se fosse a primeira mulher na história a possuir um útero.
Chloe lamentava-se esperando cartas de Abel (estavam namorando desde que ela contava catorze
anos de idade). Lalah apanhara disenteria e cuidava para que todos tomassem conhecimento dos
detalhes de cada ataque — incluindo a cor e o grau de consistência da merda. As crianças enchiam-se
de animação com tantas visitas e atenções, e galopavam nos terraços, xingando a empregada em
árabe (o que a levava a fazer as malas e pedir demissão pelo menos uma vez por dia). Pierre — que
se parece a Kahlil Gibran em seus próprios retratos autolisonjeiros — seguia por aquele vasto
apartamento com chão de mármore em roupão de seda, fazendo piadas sobre o antigo costume do
Oriente Médio pelo qual o homem que se casa com a irmã mais velha tem direito a todas as outras
mais jovens. Quando não nos regalava com os seus antigos costumes do Oriente Médio, lia traduções
de sua poesia (todos os árabes escrevem poesias, ao que suponho) que me pareciam muito vaidosas:
”Meu amor é como um feixe de trigo
eclodindo em flores.
Os olhos dela são topázios no espaço. . .”
— O problema — disse eu a Pierre, enquanto tomava um xaroposo café árabe — é que os feixes
de trigo, em geral, não eclodem em flores.
— Licença poética — contrapôs ele, muito solene.
— Vamos à praia! — sugeri, mas todos estavam demasiado cansados, letárgicos ou calorentos.
Era evidente que eu jamais os faria ir a Baalbek ou aos Cedros. Quanto a Damasco e Cairo — era
deixar para lá. Israel ficava logo depois da fronteira, mas teríamos de voar passando por Chipre e
isso parecia inimaginável, após meu último vôo. E haveria também o problema de voltar ao Líbano
mais uma vez. Tudo o que fiz foi permanecer no apartamento de Randy, com os demais, esperando
cartas de Charlie — que raramente chegavam. Em vez disso, recebia notícias de todos aqueles outros
palhaços:
242
o florentino casado que gostava de ouvir palavrões junto ao ouvido, o professor
americano, cuja vida eu transformara, a dar crédito a suas palavras, um dos funcionários do correio
do American Express, que se convencera de que eu era uma herdeira. Era Charlie que eu queria, ou
ninguém. E Charlie queria Sally. Eu me desesperava. Passei metade do tempo em Beirute cuidando
de minha gonofobia, inspecionando minha cona ao espelho e fazendo duchas no bidê de mármore
branco de Randy.
Quando meus pais chegaram, cheios de presentes trazidos do Oriente supostamente misterioso, a
situação piorou ainda mais. Randy gostou muito de vê-los, nos três primeiros dias, e depois disso ela
e Jude entraram em uma de suas lutas maratônicas, nas quais ambas começavam a dragar
acontecimentos ocorridos vinte ou vinte e cinco anos antes. Randy culpava minha mãe por tudo: por
não lhe trocar fraldas o bastante, e por trocá-las demais; por lhe dar aulas de piano quando era jovem
demais, ou não a deixar esquiar quando era nova. Atiravam-se uma à outra como dois advogados em
julgamento, interrogando e rebuscando o passado. Eu me punha a pensar: por que cargas d’água eu
viera descansar na casa deles? Ansiava por dar o fora. Sentia-me como uma bola de pingue-pongue
humana. Não parava de encontrar homens com os quais escapava de minha família, depois voltava à
minha família para escapar dos homens. Sempre que estava em casa, queria sair de lá e sempre que
saía queria voltar para casa. Como se chama isso? Um dilema existencial? A opressão das mulheres?
A situação humana? Era insuportável naquela ocasião, continua sendo agora: de lá para cá, é o que
faço, sobre a rede de minha própria ambivalência. Assim que encosto no chão, quero voltar a subir e
voar outra vez. Ó que faço, então? Rio. Só dói quando rio — embora ninguém saiba disso, apenas
eu.
Meus pais ficaram cerca de uma semana, depois partiram rumo à Itália, a fim de examinarem uma
fábrica de baldes de gelo. Por sorte, têm um negócio de importações e exportações que lhes permite
chegar e dar o fora sempre que a guerra familiar intestina faz uma escalada para o nível dos
bombardeios. Chegam cheios de presentes e bons sentimentos, e partem no primeiro avião quando
alguém caga no ventilador. Tudo isso leva cerca de uma semana, e durante o resto do ano definham
com saudades dos filhos distantes, e ficam imaginando o motivo pelo qual a maioria vive tão longe de
casa. Durante os anos que passei na Alemanha e enquanto
243

Randy se achava em Beirute, minha mãe pensava seriamente no motivo pelo qual duas das filhas
haviam preferido viver (como afirmava) ”em território inimigo”.
— Porque parecia mais hospitaleiro do que nossa casa — disse eu, conquistando-lhe sua inimizade
eterna. Tinha sido, sim, uma cadelice minha, eu reconheço, mas o que já tive para me proteger contra
minha mãe, a não ser palavras?
Após a retirada de meus pais, o lugar continuou bastante congestionado: quatro irmãs, Pierre, seis
crianças (havia apenas seis, em 1965), uma babá e uma arrumadeira.
O calor era tanto que quase não saíamos do apartamento, dotado de ar-condicionado. Eu
continuava querendo sair para ver os lugares bonitos da terra, mas a letargia familiar era contagiosa.
Amanhã, pensava eu, parto rumo ao Cairo, mas tinha medo de ir sozinha e nem Lalah, nem Chloe,
queriam ir comigo.
As coisas continuaram nessa toada deprimente por mais uma semana. Em certa ocasião, fomos
todos a um clubecabana, onde a praia era cheia de rochas e Pierre fez poesias sobre o Mediterrâneo
azul até dar vontade de vomitar. (Ele sempre fazia preleções sobre a boa vida que se levava em
Beirute, e como conseguira afastar-se do ”comercialismo da América”.)
No clube ele nos apresentou a um dos amigos como suas ”quatro esposas”, e fiquei com uma
sensação tão arrepiante que tive vontade de voltar para casa naquele exato instante. Mas onde era
minha casa? Com minha família? Com Pia? Com Charlie? Com Brian? Sozinha?
Nossa letargia familiar parecia destituída de qualquer objetivo, mas, na verdade, apresentava uma
espécie de rotina. Levantávamo-nos à uma hora da tarde, ouvíamos as crianças berrando,
brincávamos um pouco com elas, fazíamos um enorme desjalmoço de frutas tropicais, iogurte, ovos,
queijo e café árabe, líamos o Herald-Tribune de Paris em volta dos buracos que o censor havia
cortado no exemplar. (Qualquer menção a Israel ou a judeus era proibida — bem como os filmes
com aqueles dois israelitas notáveis, Sammy Davis Júnior, e Elizabeth Taylor.) Depois começávamos a
debater como íamos passar o dia. Na verdade, éramos tão unidos quanto árabes planejando um
ataque a Israel. A qualquer momento podia-se apostar que todos, na casa, apresentariam uma
preferência diferente. Chloe sugeriria a praia; Pierre, Biblos; Lalah, Baalbek; os meninos mais
velhos,
244
o museu arqueológico; os meninos mais novos, o parque de diversões; e Randy vetava tudo. Quando
havíamos travado todo o debate, era tarde demais para ir a alguma parte. Por isso, fazíamos a ceia e
depois ficávamos assistindo a Bonanza na televisão (com subtítulos e legendas árabes e francesas
que cobriam quase toda a tela), ou íamos a um cinema da Rua Hamra, onde passavam algum filme
indigesto.
Em outras ocasiões, nossos debates vespertinos eram interrompidos pela chegada da mãe e das tias
de Pierre — três senhoras velhas, de preto (bustos gigantescos e buços), que se pareciam tanto umas
às outras que era difícil distingui-las. Teriam formado um grande conjunto vocal, mas conheciam
apenas uma canção, qual seja: ”Está gostando do Líbano? Líbano melhor do que Nova York?”, e
tocavam essa canção repetidas vezes, só para ter certeza de que haviam sido entendidas. Oh, eram
bastante simpáticas, mas não criaturas com que fosse muitíssimo fácil conversar. Assim que
chegavam, Louise (a empregada) surgia, servindo café, Pierre lembrava-se de repente de um
compromisso comercial e Randy (alegando seu estado delicado) desaparecia no dormitório para tirar
uma soneca. Lalah, Chloe e eu ficávamos para enfrentar aquilo, variações estridentes e infinitas do
refrão ”Sim. . . o Líbano é melhor do que Nova York”.
Não sei se era o calor, a umidade, a presença de minha família, o efeito de estar ”em território
inimigo”, ou meu abatimento por causa de Charlie — mas parecia faltar-me qualquer vontade de me
levantar e fazer alguma coisa. Sentia-me como se houvesse sido transplantada para a terra dos
Comedores de Lotus e parecia que ia morrer em Beirute, de pura inércia. Um dia desembocava no
outro, o clima e o tempo se mostravam opressivos e não parecia haver vantagem alguma em
combater o desejo de ficar sentada, discutir com a família, pensar que estava com gonorréia e ver
televisão. Foi necessária uma crise, finalmente, para nos lançar, a todos, em movimento.
Reconheço que foi uma crise de pouca monta — mas qualquer crise teria servido àquele fito.
Começou com simplicidade. Certo dia Roger, o menino de seis anos, disse ”ibn sharmuta” para
Louise. Em tradução aproximada, isso quer dizer que ”sua mãe é uma puta” e, qualquer que seja a
tradução, constitui o insulto dos insultos, no Oriente Médio.
Louise estivera esforçando-se por dar banho em Roger e ele se pusera a berrar. Pierre,
entrementes, discutia com Randy, afirmando que só os americanos alimentavam essa
245
idéia louca de tomar banho todos os dias, que isso não era natural (sua palavra favorita), e que fazia
secar todos os óleos epidérmicos maravilhosos da criatura.
Randy berrou-lhe, de volta, que não queria que o filho fedesse como um gambá, à semelhança do
ilustre pai, e fez ver que ela não se deixava tapear quanto aos hábitos imundos dele.
— Que diabo quer dizer com hábitos imundos?
— Eu quero dizer que sei muitíssimo bem que quando digo que não vou dormir com você, a menos
que tome um banho de chuveiro, você entra no banheiro, abre a água e fica sentado, lá, fumando um
cigarro, sentado no maldito toalete — e dizia isso com enorme cadelismo, o que deu início a uma
briga verdadeira.
Roger compreendeu, de modo muito natural, do que tratava a discussão, e recusou-se a permitir
que Louise o encurralasse no banheiro, até que seu caso houvesse sido examinado e o veredicto
pronunciado. Mas Louise era muito persistente e, cheio de fúria, Roger jogou-lhe um pano molhado
no rosto, berrando: ”tbn sharmuta”.
É claro que Louise prorrompeu em choro. E depois disse que ia embora e retirou-se para o quarto,
a fim de arrumar a mala. Pierre adotou seus modos de astro cinematográfico francês e tentou
demovê-la, para que ficasse. De nada adiantou, entretanto. Dessa feita, a criada se mostrou
inflexível. Pierre logo atribuiu a culpa a Roger — o que não era justo, porque o menino ouve Pierre
berrando ”ibn sharmuta” constantemente, sempre que saem de carro. (Não existem regulamentos de
tráfego em Beirute, mas muitas pragas e xingamentos.) Pierre, além disso, acha muita graça quando
os meninos xingam em árabe.
De modo evidente, a tarde encerrou-se com todo mundo berrando, chorando, e com água
derramada pelo chão, e mais uma vez não saímos para passear ou mesmo para a praia. O incidente,
porém, veio proporcionar-nos uma lição. Tínhamos de levar Louise de volta à aldeia dela, nas
montanhas (a ”aldeia ancestral” de Pierre, como ele a chamava), e encontrar uma pequena
montanhesa ainda mais ingênua, que a substituísse.
Na manhã seguinte cumprimos aquelas horas obrigatórias de berros uns com os outros, depois nos
amontoamos no automóvel e partimos pela costa do Mediterrâneo, rumo às montanhas. Detivemo-
nos em Biblos a fim de admirar o castelo dos cruzados, refletir letargicamente sobre os fenícios,
246
egípcios, assírios, gregos, romanos, árabes, cruzados e turcos, comemos num restaurante marítimo
próximo e depois seguimos rumo às montanhas encharcadas de sol, por uma estrada que parecia
outra descoberta arqueológica.
Karkabi, a ”aldeia ancestral” muito decantada por Pierre, é uma cidade tão pequena que, com
facilidade, pode-se atravessá-la sem percebê-la. A cidade só recebeu eletricidade em 1963 e a torre de
transmissão, na verdade, é o ponto culminante e mais importante dali. (Também é o único ponto de
atração, e os aldeões logo se lembraram de mostrá-lo.)
Quando chegamos à praça principal (onde um burrico ossudo puxava uma pedra, fazendo voltas,
para moer trigo), praticamente todos se amontoaram e atropelaram, para tocarem no automóvel,
torcendo os pescoços para nos olharem e mostrando-se, de modo geral, deprimentemente
obsequiosos. Dava para ver que Pierre adorava aquilo. Era o carro dele e provavelmente queria que
todos pensassem que éramos suas quatro esposas (embora, como é evidente, soubessem que não
éramos). Tudo isso parecia ainda mais deprimente quando se levava em conta que quase todos, na
cidade, eram no mínimo primos de Pierre e que eram todos analfabetos e andavam descalços — e que
diabo de dificuldade podia existir em impressioná-los?
Pierre reduziu a marcha daquele carro ridiculamente grande enquanto seguíamos por ali (para
deixar que todos os curiosos dessem uma boa espiada). Depois parou diante do ”lar ancestral” —
casa de tijolos crus, pequena e caiada, com parreiras no teto e sem vidraças ou cortinas, mas apenas
pequenas janelas quadradas, de grades em ferro trabalhado (e moscas a entrarem e saírem com plena
liberdade — mas, como era inevitável, entrando mais do que saindo).
Nossa chegada desatou um frenesi de atividade em todos. A mãe de Pierre, bem como suas tias,
começaram a preparar tabuli e homus com empenho guerreiro, e o pai de Pierre — que tem cerca de
oitenta anos e bebe arak o dia todo — saiu a fim de caçar pássaros para o jantar, e quase acertou um
tiro em si próprio. Entrementes, o tio Gavin de Pierre — um londrino refugiado que se casara com tia
Françoise lá em 1923 (e se acha em Karkabi deplorando isso desde aquela data) — surgiu com um
coelho que caçara de manhã e começou a limpá-lo.
No interior da casa havia apenas uns quatro aposentos, com as paredes caiadas e crucifixos por
cima de todos os leitos (a família de Pierre era de católicos maronitas)
247’

e figuras superbeijadas de diversos santos que subiam aos céus, em papel luzidio de revista. Havia,
também, numerosas fotografias esfrangalhadas da família real inglesa, e depois o próprio Jesus,
usando toga, o rosto quase invisível, sob uma saraivada de marcas de beijos.
Enquanto o jantar era preparado, Pierre nos levou para mostrar ”seu domínio”. Randy insistiu em
permanecer na casa, os pés voltados para cima, descansando, mas os demais seguimos
obedientemente, por cima das pedras (acompanhados por uma comitiva de primos descalços que não
paravam de apontar entusiasticamente para a torre de eletricidade). Pierre disse-lhes alguma coisa em
árabe raivoso; procurava algo mais pastoral. E o encontrou, logo após a elevação rochosa seguinte,
onde um pastor de verdade guardava ovelhas de verdade, sob uma macieira cheia de vermes. Era
tudo de que Pierre necessitava. Começou a produzir ”poesia” como se fosse Kahlil Gibran e Edgar
Guest ao mesmo tempo. Um pastor! Ovelhas! Uma macieira! Era encantador. Era pastoral. Era
Homero e Virgílio e a Bíblia. Assim é que fomos ter com o pastor — garoto sardento, com seus
quinze anos — e o encontramos ouvindo um radinho transistor japonês, que tocava Frank Sinatra,
acompanhado imediatamente por uma série de jingles em árabe. Depois a saftig Chloe, de dezessete
anos de idade, tirou seus cigarros de mentol e ofereceu um ao pastor — que aceitou, procurando
mostrar-se tão calmo e civilizado quanto possível. E foi então que esse pastor encantador enfiou a
mão em seu bolso encantador e tirou de lá um isqueiro a gás encantador. Quando acendeu o cigarro
de Chloe, dava para ter certeza de que ele passara praticamente toda a vida sendo filmado.
Após o jantar, todos os parentes na cidade (isto é, praticamente a cidade toda) compareceram.
Muitos deles vinham para assistir à tevê (já que a tia de Pierre é uma das poucas que possuem um
receptor em Karkabi), mas, aquela noite, vieram para nos ver, também. Em sua maioria, ficavam por
ali, olhando-nos e com aspecto de acanhamento, mas às vezes tocavam em meus cabelos (ou os de
Chloe, ou Lalah) e emitiam ruídos para indicar que gostavam muitíssimo das louras. Ou, então,
davam-nos palmadinhas por toda parte, como se fossem cegos. Meu Deus — nada existe que se
compare a levar palmadinhas de dez mulheres libanesas, pesando mais de cem quilos, e de bigodes.
Eu me via tomada pelo pânico. Conseguiriam, por aquelas palmadinhas, saber que éramos judias?
Eu tinha certeza de que o fariam.
248
Equivocava-me, no entanto, porque quando chegou o momento de nos dar presentes, recebi um rosário
de prata, um suéter de lã angorá, cor-de-rosa, feito a mão, número 46 (vinha até os joelhos) e uma
miçanga azul numa correntinha (para o conhecido mau-olhado). Eu não ia rejeitar qualquer amuleto,
a essa altura. Todas as intercessões junto a todas as divindades eram aceitas com a maior gratidão.
Quando a doação de presentes acabou, todos se sentaram para assistir à televisão — a maior parte
reprises de programas americanos antigos. Lucille Ball batendo os cílios postiços, Raymond Burr
como Perry Mason e toda a tela era uma verdadeira tempestade de subtítulos e legendas. Quase não
se enxergavam os atores, por causa das legendas.
Era-se realmente levado a acreditar na universalidade da arte, ao ver todos aqueles tipos pastorais
adorando Lucille Ball e Raymond Burr. Eu ansiava pelo dia em que os Estados Unidos estendessem
sua civilização gloriosa a outros sistemas solares. Lá estariam eles — todos aqueles tipos de vida
intergalácticos — assistindo a Lucille Ball e Raymond Burr, na maior atenção extasiada.
Os parentes ficavam, não se retiravam, as horas se adiantavam. Tomavam café, vinho e arak, e tia
Françoise já retorcia as mãos gorduchas. Achávamo-nos todos esgotados e queríamos dormir, de
modo que, em vez de expulsar dali os visitantes, o tio Gavin de Pierre retirou-se despercebidamente
da sala, subiu ao telhado e começou a mexer na antena da televisão, até que a imagem se
transformasse numa verdadeira massa de ziguezagues. Em questão de minutos os visitantes se
retiraram, e foi-me dado a entender que o tio Gavin sobe ao telhado com muita freqüência.
Os arranjos para dormir mostravam-se difíceis. Randy, Pierre e as crianças ficariam na casa do
pai de Pierre, lá em baixo do morro. Lalah e Chloe deviam ficar com uma cama, na casa de outra tia,
ao lado. E eu fiquei com uma cama de solteiro num anexo minúsculo da casa de tia Françoise. Eu
preferiria ficar com Lalah e Chloe, em vez de permanecer naquele quarto horripilante, dormindo sob
um crucifixo e imagens ensebadas da ilustre rainha. Mas não havia espaço para três na cama, de
modo que fui deitar-me sozinha, entretendo-me, antes de adormecer, com a possibilidade de
escorpiões subindo pela parede, mordidas mortíferas de aranhas e visões nas quais partia o pescoço
durante a noite, quando precisava ir ao toalete externo, sem ter lanterna.
249

Oh, havia muita coisa para manter a mente mais cheia de fobias inteiramente ocupada por outras tantas horas
ativas de insónia.
Estava ali deitada, em pleno florescimento de fobia, havia cerca de hora e meia, quando a porta
rangeu e se abriu.
— Quem é? — disse eu, meu coração disparado.
— Psiu — e uma sombra se movia em minha direção. O homem debaixo da cama.
— Pelo amor de Deus! — eu estava apavorada.
— Psiu... sou eu.. . Pierre — disse ele. E depois veio, sentou-se na cama.
— Jesus. . . pensei que era algum estuprador, um tarado, coisa assim.
Ele riu.
— Jesus não era um tarado.
— Acho que não... o que se passa? — indaguei, sem ter muito o que dizer, em tais circunstâncias.
— Você parece tão abatida — disse ele, cheio de falsa ternura.
— Acho que sim. Toda aquela loucura com o Brian, no verão passado, e agora o Charlie. ..
— Eu detesto ver a minha irmãzinha abatida — disse ele, afagando-me os cabelos e, por algum
motivo, aquele ”irmãzinha” me causou calafrios.
— Você sabe que sempre penso em você como minha irmãzinha, não é?
— Não sabia, na verdade, mas muito obrigada, assim mesmo. Vou estar bem. Não se preocupe
comigo. Estou pensando em voltar para casa e parar na Itália outra vez, por alguns dias. A minha
passagem permite uma parada gratuita em Roma. Não creio que o clima daqui combine comigo.
Lalah e Chloe devem voar para Nova York na próxima semana, e isso aqui está ficando cada vez
mais quente. . .
Eu tagarelava, por puro nervosismo. Entrementes, Pierre se estendia na cama a meu lado e
passava os braços em volta de meu corpo. O que devia eu fazer? Se o repelisse como se fosse um
estuprador comum, eu o ofenderia, mas se adotasse a trilha da menor resistência e concordasse com
ele, seria incesto. Para não falar no fato de que Randy, com toda a certeza, me mataria. Mas o que
devia dizer? Qual era a etiqueta, em situação assim?
— Eu não acho que isso seja muito boa idéia — disse, a voz fraca. As mãos de Pierre estavam por
baixo da camisola, afagando minhas coxas. E eu não me sentia tão fria quanto queria fingir que
estava.
250
— O que não é boa idéia? — perguntou ele, imperturbável. — Afinal de contas, é natural que um
irmão ame a irmãzinha... — e continuou a fazer o que se segue com toda a naturalidade.
— O que você disse? — perguntei, sentando-me.
— Só que é perfeitamente natural que o irmão ame a irmãzinha... — parecia-se a Albert Ellis
fazendo uma preleção.
— Pierre — contrapus, com gentileza —, você nunca leu Lolita?
— Não tolero o estilo de prosa falsa daquele sujeito — explicou-me, irritado porque o distraía.
— Mas isso é incesto — disse eu, em tom categórico.
— Psiu. . . assim, vai acordar todos.. . Não se preocupe, você não vai engravidar. Nós faremos ao
modo grego, se você quiser. . .
— Não é com a gravidez que eu me preocupo, pelo amor de Deus. . . mas com o incesto! — e
meu raciocínio não pareceu abalá-lo nem um milímetro.
— Psiu — disse ele, empurrando-me para o travesseiro. Era como alguns dos camaradas que eu
conhecera na Itália. Se eu resistisse porque não estava mesmo interessada, julgavam que era medo à
gravidez e continuavam a sugerir outras alternativas, cópula anal, chupar, masturbação mútua,
qualquer coisa, menos ”NÃO”. Pierre foi-se aproximando da cabeceira da cama, oferecendo o pênis
ereto à minha boca. . . Era a hora da decisão. Diante de mim, uma batalha eclodira. Teria sido tão
filhodaputamente fácil fazer-lhe a vontade! Chupá-lo e acabar logo com aquilo. Era muito simples,
na verdade. Que diferença mais uma chupada faria em minha vida?
— Eu não posso — declarei.
— Vamos — disse Pierre —, eu ensino a você.
— Eu não queria dizer isso. Queria dizer que não posso; moralmente, não posso. ..
— É fácil — prometeu ele.
— Eu sei que é fácil — retorqui.
— Olhe — disse ele —, tudo o que você faz é...
— Pierre! — berrei. Pierre levantou a calça do pijama e deu o fora do quarto.
Ali fiquei sentada por todo um minuto, o quarto estremecendo com o berro que dera, esperando
para ver o que acontecia. Nada. A casa se achava em silêncio.
251

Apanhei então o roupão, os chinelos e saí à procura de Lalah e Chloe. Estava decidida a dar o fora do Líbano o
mais depressa possível. Deixar o Oriente Médio e nunca visitá-lo novamente.
Segui de qualquer jeito, descendo o morrote até a casa onde elas se achavam, quase tropeçando
nas pedras, raízes de árvores, a cada passo. Pouco a pouco, meus olhos se acostumaram à escuridão
e deu para divisar os telhados de Karkabi, dominados pela torre de eletricidade. Civilização! Em
metade dos paióis e pastos de Karkabi, garotos deviam estar fodendo ovelhas, ou as irmãs, naquele
exato instante. E o que havia de errado nisso? Nada, na verdade, ao que supunha, mas eu não o
conseguiria fazer. Era uma santarrona? Por que tal dilema moral, por causa de uma mísera
chupadinha? Porque quem começa a chupar o marido da irmã logo depois vai estar chupando o
marido da mãe — e, santo Deus — e esse é o papai!
Mas o nosso analista insiste em que é ao papai quem realmente queremos. Assim sendo, por que
fazê-lo é tão inimaginável? Talvez eu devesse chupar o papai e acabar com o negócio? Talvez fosse
esse o único modo de sobrepujar o medo?
Esgueirei-me diante da porta fronteira da casa da tia Simone (passando pela tia Simone e tio
George, que estavam ambos roncando musicalmente) e encontrei Chloe e Lalah sentadas na cama,
juntas, lendo em voz alta um livro de pornografia intitulado Meninas da orgia. Na cama havia cerca
de dez outros livros, com títulos tais como Incesto adolescente; Troca de casais; Estilo familiar;
Minha irmã e eu; Minha filha, minha esposa; O curto e o comprido; Beco gostoso; Entrei em todos
os lugares; Uma viagem em volta do mundo e Cartas de luxúria.
Lalah lia em voz alta um trecho especialmente poético; nenhuma das duas percebeu minha
chegada.
”As coxas dele começaram a mover-se mais depressa [Lalah lia com voz histriónica], ao se
aproximar o clímax. Eu sentia que o corpo dele batia no meu, seu cacete rijo preenchia todo o meu
canal feminino, tinha vontade de dar gritos de prazer. Sentia que as explosões começavam em meu
interior e os sucos de minha pomba começaram a escorrer por todo o comprimento de minha
passagem do amor, lubrificando-lhe o pau quente e fazendo-o deslizar com mais facilidade...”
252
. . .Por que motivo as pessoas, nos livros de pornografia, nunca eram alcançadas por quaisquer
dos escrúpulos que me importunavam? Elas nada mais eram do que enormes órgãos sexuais a se
sacolejarem cegamente, uns com os outros, na escuridão.
— Podem parar um pouquinho com esse negócio e falar comigo? — interpelei-as.
— Você não acha o máximo? — perguntou Lalah, brandindo o livro.
— Escutem, meninas, estamos com o fato verdadeiro em mãos, de modo que vocês podem guardar
esses livros de pornografia e prestar atenção ao que vou dizer. . .
Lalah olhou para Chloe, Chloe olhou para Lalah e as duas começaram a rir, como se soubessem
de algo que eu desconhecia.
— Bem. . . o que é? — perguntei, e elas continuaram a rir, como duas conspiradoras.
— Vamos, suas idiotas. . . contem-me!
— Você vai contar que o Pierre tentou seduzi-la — disse Lalah, ainda com risadinhas.
— E, puta que pariu, como é que você sabe?
— Porque ele tentou comigo — explicou.
— E comigo — disse Chloe.
— Estão brincando.
— Nós não estamos brincando — afirmou Lalah. — Oxalá estivéssemos. . .
— E o que aconteceu?
— Bem, eu o toquei da cama com risadas e a Chloe diz que fez o mesmo, mas. . . não tenho muita
certeza de que acredito. . .
— Sua cadela! — berrou Chloe.
— OK. . . OK. . . eu acredito.
— E quer dizer que vocês continuaram por aqui, depois de isso acontecer?
— Bem, por que não? — contrapôs Lalah, imperturbável. — Ele é bastante inofensivo. . . só está
um pouco assanhado porque Randy passa a vida toda em estado avançado de gravidez.
— Um pouco assanhado? Você chama isso de um assanhamento? Eu chamo de incesto.
— Oh, meu Deus, Isadora, você é demais. Ele é só o seu cunhado. . . Isso não é realmente incesto.
— Não é? — contrapus, e creio que estava desapontada.
253
— Isso quase não conta, em absoluto — explicou Lalah, cheia de desdém —, mas tenho certeza de
que você descobrirá o jeito de enfeitar bastante, quando escrever a respeito. (Lalah já detestava o
meu trabalho, nessa época.)
— Vou dar um jeito — prometi.
Quando saímos de Karkabi, levando a nova empregada, Pierre estava inteiramente calmo e
desanuviado. Apontava os pontos interessantes do lugar, para que os víssemos.
Árabes, pensava eu, malditos árabes. Que sensação de culpa desproporcional eu tivera, por causa
de todas as minhas pequeninas transgressões sexuais! No entanto, havia gente no mundo, muita
gente, que fazia o que lhe agradava e não ficava com uma só gota de culpa — desde que não fossem
pegos. Por que eu fora amaldiçoada com um superego tão hipertrofiado? É apenas pelo fato de ser
judia? O que Moisés fizera pelos judeus, afinal de contas, ao conduzi-los para fora do Egito e lhes
dar o conceito de um Deus feito de bolas de matzoh e culpa eterna? Não poderia simplesmente tê-los
deixado em paz, adorando gatos, touros, falcões, ou vivendo como os outros primatas (com os quais
— como minha irmã Randy sempre me faz lembrar — são tão intimamente aparentados)? Será
motivo de espanto que todos odeiem os judeus, por darem a culpa ao mundo? Não podíamos ter
vivido bem, sem ela? Apenas chafurdando na lama primeva, adorando besouros vira-bosta e fodendo
quando tivéssemos vontade? Bastava pensar naqueles egípcios que tinham construído as pirâmides,
por exemplo. Será que eles ficavam sentados, preocupados em saber se eram ou não empregadores
que davam oportunidades iguais aos empregados? Ter-lhes-ia ocorrido indagar se seus restos mortais
valiam as vidas de milhares e mais milhares que tinham morrido na construção das pirâmides? A
repressão, a ambivalência, a culpa. ”O quê. . . eu me preocupar?”, pergunta o árabe. Não espanta
que desejem exterminar os judeus. Não é um desejo natural, em todos?
De volta a Beirute, planejamos regressar para casa. Lalah e Chloe iriam num vôo charter até
Nova York, de modo que precisavam partir juntas, e eu usaria minha passagem antiga da Alitalia, de
Beirute a Roma e JFK.
Parei em Roma como planejara e passei mais uma semana em Florença, antes de voltar para casa,
a fim de enfrentar a música com Charlie. Mesmo em agosto, quente e cheia de gente, Florença
continuava sendo uma das minhas cidades preferidas em todo o mundo. Reatei com Alessandro e,
254
dessa feita, tivemos um caso quase perfeito, ainda que sem amor, por seis dias. A meu pedido, ele
abandonou sua mania de palavrões e achamos um quarto encantador numa estalagem de Fiesole,
onde podíamos copular da uma às quatro todas as tardes (costume muito civilizado, reservado à hora
do almoço). Talvez fosse por causa de minha fúria contra Charlie, ou talvez Pierre me houvesse
realmente acendido, mas o fato é que esse amor com Alessandro mostrou-se inspirado. Foi a única
vez em minha vida que consegui fazer sexo exuberante e afetuoso com alguém sem me convencer de
que estava apaixonada. Uma espécie de trégua de seis dias entre meu id e superego.
Quando Alessandro voltava para a casa da esposa à noite, eu ficava sozinha. Freqüentava
concertos no Pitti, via algumas das outras personagens que conhecera na visita anterior e era mais
uma vez calorosamente assediada pelo Professor ”Michelangelo” (Karlinsky), da barba incendiada. A
despeito do calor e da variedade heterogênea de namorados, eu amava Florença e houve momentos
nos quais senti vontade de não sair dali. Mas um emprego deprimente de professora e um programa
de doutorado em filosofia, que eu detestava, aguardavam-me em Nova York, e eu continuava a ser
uma escolar demasiadamente levada pelo superego para não escolher algo que odiava, em vez de algo
que amava. Ou talvez fosse Charlie: eu me sentia afrontada por sua traição, mas queria voltar a vê-
lo, o mais depressa possível.
Charlie e eu rompemos logo após voltarmos a nos encontrar. Parece que eu não pude em momento
algum perdoarlhe a ambivalência, embora possa ver, agora, que foi algo muito próprio de mim, e
talvez devesse mostrar-me mais compreensiva. Alessandro não parava de escrever, de Florença,
falando em divórzio, mas eu assistira a filmes italianos em demasia para poder acreditar nele.
”Michelangelo” apareceu uma vez, e seu aspecto era tão pior, à luz do sol poluído de Nova York, que
não tive coragem de continuar. As sombras castanhas e cor de âmbar em Florença tinham sido muito
amigas dele — como qualquer fã de E. M. Forster compreende com facilidade. Setembro e outubro
apresentaram-se sombrios, temíveis. Eu saía com uma variedade deprimente de divorciados, filhinhos
de mamãe, neuróticos, psicóticos e psicanalistas. Só conseguia manter o ânimo descrevendo-os, a
todos, com detalhes os mais cheios de cadelice, nas cartas que enviava a Pia. E em novembro, então,
Bennett Wing entrou em minha vida, parecendo a solução de todos
255

os meus problemas. Calado como uma esfinge, e muito gentil. Salvador e psicanalista ao mesmo
tempo. Despenquei naquele casamento do mesmo modo como (na Europa) despencara na cama.
Parecia uma cama macia; os pregos estavam por baixo.
256

15

Viagens com meu anti-herói

”Eu quero! Eu quero!”


William Blake
Contei tudo a Adrian. Toda a minha história histérica, procurando o homem impossível e sempre
me encontrando de volta à estaca zero: dentro de minha cabeça. E representei, para ele, o papel de
minhas irmãs, minha mãe, meu pai, avós, marido, amigos. . . Seguíamos de carro e conversávamos,
seguíamos de carro e continuávamos conversando.
— Qual é a sua prognose? — perguntei-lhe, sempre a paciente à procura do médico perfeito.
— Você vai ter de fazer uma reforma, patinha — era o que Adrian continuava dizendo. — Precisa
mergulhar em si mesma e salvar sua própria vida.
Eu já não estava fazendo isso? Que itinerário doido, afinal, era esse, senão uma viagem de volta a
meu passado?
— Você ainda não mergulhou o bastante — afiançava ele. — Tem de chegar ao fundo, depois
voltar a subir.
— Meu Deus! Acho que já cheguei!
Adrian saía-se com seu belo sorriso contorcido, o cachimbo enfiado entre os lábios róseos.
— Você ainda não chegou ao fundo — insistiu, como se conhecesse algumas das surpresas a mim
reservadas.
— Você vai me levar até lá? — perguntei.
— Se você insistir, amor.
Era essa indiferença magnífica, da parte dele, o que me enfurecia, acendia-me, endoidecia-me de
contrariedade.
257

A despeito de seus afagos e carícias na bunda, Adrian era tão calmo! Eu continuava a fitar sem
descanso aquele belo perfil, imaginando o que estava acontecendo dentro da cabeça dele e o motivo
pelo qual eu não conseguia sondá-lo.
— Quero entrar dentro de sua cabeça — declarei — e não consigo. Isso está me enlouquecendo.
— Mas por que você quer entrar em minha cabeça? O que acha que isso vai resolver?
— É só que eu quero sentir-me realmente bem perto de alguém, unida a alguém, completada ao
menos uma vez. Quero amar alguém de verdade.
— E o que faz você pensar que o amor resolve alguma coisa?
— Talvez não resolva nada — contrapus —, mas quero, assim mesmo. Quero sentir-me inteira.
— Mas você se sentia parte de Brian, e isso não deu certo.
— Brian era doido.
— Todos são um pouco doidos, quando se entra na cabeça deles — proclamou Adrian. — É
apenas uma questão de grau.
— Eu acho.. .
— Olhe... por que você não pára de procurar o amor e tenta viver sua própria vida?
— Que tipo de vida eu tenho, se não tiver amor?
— Tem seu trabalho, você escreve, suas aulas, seus amigos...
Bolas, bolas, bolas, pensava eu.
— Tudo o que escrevo é uma tentativa para ter amor, já que falamos no assunto. Sei que é
loucura. Sei que estou destinada ao desapontamento. Mas essa é a verdade: quero que todos me
amem.
— Vai perder — disse Adrian.
— Eu sei, mas saber isso não muda coisa alguma. Por que o meu saber nunca muda nada?
Adrian não respondeu. Acho que não estava endereçando a pergunta a ele, aliás, mas apenas
jogando a indagação às montanhas azuis e crepusculares (seguíamos pelo passo Goddard, com a
capota do Triumph abaixada).
— De manhã — disse Adrian, finalmente —, nunca me lembro de seu nome.
Era essa, então, a resposta. Cortou-me como um punhal. E lá estava eu, acordada todas as noites e
ao lado dele,
258
tremendo e dizendo o meu próprio nome repetidas vezes, a mim mesma, para tentar lembrar-me de
quem era.
— O problema do existencialismo — (eu dizia isso enquanto seguíamos pela autostrada) — é que
não se pode parar de pensar no futuro. Os atos têm conseqüência.
— Eu posso parar de pensar no futuro — asseverou Adrian.
— Como?
Ele deu de ombros.
— Não sei. Posso, simplesmente. Eu, por exemplo, me sinto muitíssimo bem.
— E por que eu me sinto tão mal, e você tão bem?
— Porque você é judia — respondeu ele, rindo. — O Povo Eleito. Vocês podem ser medíocres em
outras coisas, mas no sofrimento sempre são soberbos.
— Filho da puta.
— Por quê? Só porque lhe disse a verdade? Olhe. .. você quer amor, quer ardor, quer sentimento,
quer aconchego... e com que sai, afinal? Sofrimento. Pelo menos o seu sofrimento é ardoroso.. . A
paciente ama a doença que tem. Ela não quer ser curada.
Meu problema era querer sempre ser a maior em tudo. A maior amante, a maior faminta, a maior
sofredora, a maior vítima, a maior imbecil. . . Se me metia em embrulhadas o tempo todo, era por
minha própria culpa, por estar sempre querendo ser a maior. Tinha de ter o mais doido dos primeiros
maridos, o mais inescrutável dos segundos maridos, o mais audacioso dos primeiros livros, o mais
descarado dos pânicos após a publicação... Eu não sabia fazer coisa alguma pela metade. Se queria
tornar-me uma palhaça, graças a um caso com um filho da puta destituído de sentimentos, tinha de
fazê-lo diante de toda a comunidade psicanalítica de nosso mundo. E tinha de complicá-lo, partindo
com ele em uma saída encharcada de bebida, que talvez resultasse em nossa morte. A transgressão e
o castigo, tudo no mesmo embrulho. Se não puder ser entregue, devolver ao remetente. Mas quem era
o remetente? Eu. Eu. Eu.
259

Então, acima de tudo o mais, comecei a me convencer de que estava grávida. Era tudo de que
precisava. Minha vida era um estardalhaço. Meu marido, só Deus sabia onde se achava. E eu
sozinha, com um homem desconhecido que não se importava merda nenhuma comigo. E grávida. Ou
assim pensava. O que estava querendo provar? Era capaz de agüentar tudo? Por que tinha de
continuar a fazer de minha vida tamanha demonstração de resistência?
Não dispunha de qualquer motivo verdadeiro para julgar que estivesse grávida. Não faltara
nenhuma regra, mas eu não preciso de motivo real para pensar coisa alguma. Eu nunca preciso de
motivo real para entrar em pânico. Todas as vezes que tirava o diafragma, apalpava minha cerviz,
procurando alguma pista. Por que eu nunca sabia o que se passava dentro de mim? Por que meu
corpo era tamanho mistério para mim? Na Áustria, na Itália, na França, na Alemanha — apalpava
minha cerviz e examinava as possibilidades. Descobriria que estava grávida. Atravessaria toda a
gravidez sem saber se o bebé ia ser louro e de olhos azuis como Adrian ou chinês como Bennett. O
que faria? Quem o aceitaria? Abandonara meu marido e ele jamais me perdoaria, jamais me receberia
de volta. E meus pais nunca me ajudariam sem cobrar um preço emotivo tão grande que eu teria de
transformar-me em criança outra vez, para contar com eles. Minhas irmãs achariam que tinha sido
bem feito, o castigo por minha vida dissoluta. E meus amigos ririam por trás da máscara de
comiseração falsa. Isadora morde o pó!
Ou, então, faria um aborto. Um aborto atrapalhado, que acabaria me matando. Envenenamento de
sangue, ou então a esterilidade permanente. De repente eu queria um bebé, e queria de todo o
coração. O filho de Adrian. O filho de Bennett. Meu filho. Filho de qualquer um. Eu queria estar
grávida, queria encher o ventre com uma criança, Achava-me deitada na barraquinha de Adrian,
chorando. Ele continuava a roncar. Dormíamos ao lado de uma estrada, em algum ponto da França,
aquela noite, e era como se estivéssemos na Lua, tão solitária eu me sentia, tão inteiramente
abandonada.
”Ninguém, ninguém, ninguém, ninguém...”, gemia, abraçando-me como criancinha grande que era.
Tentei embalar-me até dormir. A partir de agora, pensava, terei de ser minha própria mãe, meu
consolador, meu próprio embalador. Talvez fosse a isso que Adrian se referia, sobre mergulhar até o
fundo de mim mesma e começar a subir, em seguida.
260
Aprender como sobreviver à própria vida. Aprender a suportar a própria existência. Aprender a
ser mãe de si própria. Nem sempre voltar-se para um analista, um amante, um marido, um pai.
Eu me embalei. Dizia meu próprio nome, a fim de lembrar-me de quem era:
”Isadora, Isadora, Isadora, Isadora. . . Isadora White Stollerman Wing. . . Isadora Zelda White
Stollerman Wing. . . Bacharel em artes, mestre em artes e Phi Beta Kappa. Isadora Wing, jovem
poetisa promissora. Isadora Wing, sofredora e promissora jovem. Isadora Wing, feminista e mulher
candidata à libertação. Isadora Wing, palhaça, chorona, idiota. Isadora Wing, espirituosa, erudita,
ex-esposa de Jesus Cristo. Isadora Wing, com seu medo de voar. Isadora Wing, calorenta, levemente
gorducha, com astigmatismo forte nos olhos mentais. Isadora Wing, com uma, pomba imprescindível
e um buraco na cabeça e no coração. Isadora Wing, da palpitação de fome. Isadora Wing, cuja mãe
queria que ela voasse. Isadora Wing, cuja mãe a prendeu ao chão. Isadora Wing, paciente
profissional, à procura de salvadores, sensualismo, certeza. Isadora Wing, lutando contra moinhos,
de vento, carpideira profissional, aventureira falhada. . .”
Devo ter adormecido, e despertei para ver a luz do sol entrando pelo azul brilhante da barraquinha.
Adrian continuava roncando. Seu braço de pêlos louros caíra com força sobre meu peito e o
apertava, pondo-me desagradavelmente cônscia de minha respiração. Os pássaros pipilavam.
Achávamo-nos na França, à beira de alguma estrada. Alguma encruzilhada de minha vida. O que
fazia ali? Por que estava deitada em uma barraca na França, com um homem que mal conhecia? Por
que não me achava em casa, na cama, com meu marido? Pensei em meu marido com uma onda
repentina de ternura. O que estaria fazendo? Sentiria minha falta? Terme-ia esquecido? Encontrara
outra? Alguma garota comum, que não precisava partir em aventuras, a fim de provar sua
resistência. Alguma garota comum, que se contentava em preparar o desjejum e criar filhos. Alguma
moça americana e comum, saída da revista Seventeen?
Apoderou-se de mim, subitamente, o desejo intenso de ser essa garota comum. Ser aquela dona-de-
casa boazinha, a glorificada mãe americana, essa mascote de Mademoiselle, a matrona de McCall’s,
a belezoca de Cosmo, a garota com o Selo da Boa Doméstica tatuado no rabo e jingles de
publicidade programados no cérebro. Essa era a solução! Ser comum!
261

Exotismo nenhum! Contentar-se com a transigência, os TV-dinners e Este Casamento Pode


Ser Salvo? Tive, então, a fantasia de mim mesma como dona-de-casa feliz, fantasia que veio
diretamente do cérebro minúsculo do publicitário. Eu de avental, cuidando de meu marido e filhinhos,
enquanto o receptor onipresente de TV decanta as virtudes do lar americano e da esposa-escrava
americana, com seu minúsculo cérebro confuso.
Pensei em como me sentira sem lar e sem raízes na noite anterior e a resposta a tudo aquilo, em
um repente, apresentou-se clara: seja comum! Seja uma esposinha bem a salvo, em sua casinha bem
segura, e jamais despertará outra vez, abandonada, ao lado de uma estrada na França.
Mas a fantasia explodiu. Explodiu, como verdadeira bolha que era. Pensei em todas aquelas
manhãs de Nova York, em que despertara com meu primeiro marido e me sentira igualmente
solitária. Todas aquelas manhãs solitárias em que nos entreolhávamos à mesa, por cima do suco de
laranja e xícaras de café. Todos aqueles momentos solitários medidos em colherzinhas de café, notas
de lavanderia, rolos de papel higiénico usado, copos sujos, pratos quebrados, cheques cancelados,
garrafas de uísque vazias. O casamento também podia ser solitário, também podia ser triste. Tudo
em que aquelas felizes donas-de-casa que preparavam o desjejum para os maridos e filhos estavam
pensando era em fugirem com amantes, para dormirem em barracas na França! Tinham as cabeças
atoladas em fantasias. Preparavam os desjejuns, arrumavam as camas, faziam suas refeições e depois
saíam para comprar o último capítulo da vida de Jackie Onassis na revista McCall’s. Sonhavam
constantemente em fugir. Constantemente fervilhavam de ressentimento. Tinham as vidas ensopadas
em fantasias.
Não havia solução? Seria a solidão universal? A inquietação constituía um fato da vida? Seria
melhor reconhecer isso a continuar procurando soluções falsas? O casamento não era cura para a
solidão. Os filhos cresciam e iam embora, os amantes não eram panaceia, o sexo não se apresentava
como solução final. Se se encarasse a vida como uma doença prolongada, nesse caso a morte vinha a
ser a cura única. Tudo, de repente, surgia com grande clareza. Lá estava eu naquela barraca, deitada,
naquele saco de dormir duplo, ao lado de um desconhecido que roncava, pensando, pensando e
pensando. Que fazer, em seguida? Como levar minha vida? Para onde, a partir daqui?
262
À tarde, estávamos embriagados e cheios de alegria. Enchemo-nos de cerveja. Paramos para
comprar pêssegos de um agricultor à beira da estrada e descobrimos que ele só os vendia por caixa,
de modo que partimos com o Triumph lotado de pêssegos. Um caixote enorme, cheio de pêssegos,
enchendo a parte traseira do automóvel. Comecei a comê-los avidamente e descobri que quase todos
estavam bichados. Ri e comi, em volta dos bichos. Joguei as metades bichadas à beira da estrada.
Estava bêbada demais para me preocupar com bichos, gravidez, casamento ou o futuro.
— Sinto-me ótima! — asseverei a Adrian.
— É isso aí, patinha. Você se inseriu no lance.
Ao anoitecer, quando o efeito das cervejas terminou, voltei ao abatimento. Havia algo tão sem
sentido em nossos dias, aquela viagem de carro, nossa bebedeira! Eu não sabia sequer em que dia da
semana nos achávamos. Não vira um só jornal, desde Viena. Quase não me lavara, nem mudara de
roupa. E aquilo que me fazia mais falta, acima de tudo, era escrever. Não escrevera um só poema por
semanas seguidas e começava a achar que jamais conseguiria fazê-lo. Pensei em minha máquina
elétrica de escrever vermelha, lá em Nova York, e uma pontada de anseio percorreu-me o corpo. Era
isso o que eu amava! Imaginava-me voltando a Bennett só para ficar com a máquina de escrever.
Como as pessoas que ficam juntas ”por causa dos filhos” ou porque não conseguem decidir quem vai
ficar com o apartamento e pagar o aluguel.
Aquela noite fomos para um acampamento verdadeiro, em vez de improvisar um à beira da
estrada. (Lê camping, como dizem na França.) Não era dos mais incrementados, mas tinha piscina,
cantina para refeições ligeiras, cabines onde se podia tomar banho de chuveiro. Eu ansiava por um
chuveiro e, assim que Adrian delimitou nossa faixa de chão, parti para lá. Enquanto a sujeira descia
de meu corpo, na água, eu falei com Bennett, por telepatia. ”Perdoe-me”, foi o que lhe disse, onde
quer que estivesse (e a mim mesma, onde quer que estivesse).
Quando voltei à barraca, Adrian já fizera uma amizade. Duas, na verdade. Um casal americano,
ela, grosseiramente bonita, cabelos ruivos, sardenta, busto grande, judia, com sotaque de Brooklyn;
ele, barbudo, cabelos castanhos, felpudo,
263

gorduchinho, com sotaque de Brooklyn. Era um animado corretor de ações que dava umas
voltinhas com alucinógenos. Ela, uma dona-de-casa quente, que dava umas voltinhas no adultério.
Tinham uma casa em Brooklyn Heights, um Volkswagen, três filhos acampados e aquela famosa
coceira dos catorze anos de idade. Adrian cantava a esposa (Judy) com seu sotaque inglês e teorias
lainguianas (já um tanto batidas para mim). Ela parecia a ponto de ir para a barraca com ele.
— Oi — disse eu, muito animada, a dois compatriotas e correligionários.
— Oi — disseram eles, em uníssono.
— E agora, o quê? — perguntou Adrian. — Cama antes, ou bebida?
Judy deu uma risadinha.
— Não se importem comigo — declarei. — Nós não acreditamos em compromissos — e achei que
estava fazendo uma imitação muito boa de Adrian.
— Estamos com um bife na chapa — propôs o marido (Marty), nervoso. — Vocês querem ficar
com a gente? — Pelo sim, pelo não, era melhor comer. Eu conhecia o tipo dele.
— É uma boa — disse Adrian. O homem que viera jantar. Evidentemente estava realmente aceso
pela possibilidade de foder com Judy, enquanto o marido dela olhava. Estava na dele. Como Bennett
desaparecera do palco, Adrian se desinteressara por mim.
Sentamo-nos para comer bife e ouvir a história da vida deles. Tinham decidido ser sensatos,
afirmou Marty, em vez de se divorciarem como todos os casais amigos. Haviam resolvido conferir,
um ao outro, imensa dose de liberdade. Tinham feito uma porção de ”coisas de grupo”, como ele o
declarou, em Ibiza, onde haviam passado o mês de julho. Pobre filho da puta, não parecia muito
satisfeito. Repetia aquele catecismo sexual quente como se fosse um meeiro de bar mitzvah. Adrian
sorria. Aqueles dois já eram convertidos, ele podia mandar sua brasa.
— E que me diz de vocês? — perguntou Judy.
— Não somos casados — expliquei. — Não acreditamos em casamento. Ele é Jean-Paul Sartre e
eu sou Simone de Beauvoir.
Judy e Marty entreolharam-se. Tinham ouvido falar nesses nomes, em algum lugar, mas não se
lembravam onde.
264
— Somos famosos — disse eu, dando o trambique. — Na verdade, ele é R. D. Laing e eu sou
Mary Barnes.
Adrian riu, mas notei que alienara Judy e Marty. Questão de autodefesa. Pressentira um momento
de decisão e tinha de me mostrar intelectual. Era tudo o que me restava.
— Certo — disse Adrian. — Por que não trocamos, pra começar?
Marty pareceu abatidíssimo. Isso não era coisa que me lisonjeasse, mas a verdade é que também
não o desejava muito.
— À vontade — disse eu a Adrian. Queria vê-lo saírse com seu próprio petardo, fosse lá isso o
que fosse. (Nunca tive certeza.) — Acho que vou ficar sentada. Se você quiser posso olhar.
Resolvera ultrapassar Adrian em sua própria safadeza. Calma. Desligada. Toda aquela merda.
Foi quando Marty deu um salto, a fim de afirmar sua virilidade.
— Eu acho que devemos trocar também, ou então nada feito — gaguejou.
— Sinto muito — disse eu —, não quero estragar as coisas, mas não estou com vontade. —
Achava-me prestes a acrescentar: ”Além disso, acho que estou com gonorréia. . .”, mas resolvi não
estragar a coisa para Adrian. Que ele fosse na dele. Eu era durona, agüentava.
— Você não acha que podemos decidir em grupo? — propôs Judy.
Rapaz, que boa menina para as bandeirantes!
— Eu já me decidi — proclamei. Estava muitíssimo orgulhosa de mim mesma; sabia o que queria
e não ia recuar. Dizia não e estava gostando. Até Adrian se orgulhava de mim. Percebia-se pelo
modo como sorria. Formação de caráter, era o que ele dizia. Ele sempre se interessara por salvar-me
de mim mesma.
— Bem — perguntei —, vocês querem que nós olhemos, ou vamos ficar sentados perto da piscina
e conversar? Qualquer coisa me serve.
— A piscina — disse Marty, desesperado.
— Espero que eles nadem direitinho — comentei.
Acenei airosamente para Adrian e Judy, que embarcavam no Volkswagen e fechavam as cortinas.
Depois tomei Marty pela mão e o levei para a piscina, onde nos sentamos numa pedra.
265

— Você quer me contar a história de sua vida ou só descrever os casos de Judy?


Ele parecia imerso em pensamentos lúgubres.
— Você encara essas coisas de modo tão casual? — perguntou, meneando a cabeça na direção do
carro.
— Em geral eu sou fogo, de tanta preocupação, mas o meu amigo, ali, andou construindo o meu
caráter.
— O que quer dizer?
— Ele procura me ensinar a parar de sofrer, e talvez consiga. . . mas não pelo motivo que imagina.
— Não entendi — declarou Marty.
— Sinto muito. Acho que dei um baita pulo à frente. É uma história comprida, triste, e não se
mostra das mais originais.
Marty olhou, sôfrego, na direção do carro. Tomei-lhe a mão.
— Vou lhe contar um segredo. . . é bem possível que não aconteça muita coisa lá dentro. Ele não é
o garanhão que julga ser — informei.
— Impotente?
— Muitas vezes.
— Isso não me faz sentir-me muito melhor, mas aprecio sua consideração.
Olhei para Marty. Não era feio. Pensei em todas as vezes que ansiara por homens desconhecidos,
lugares desconhecidos, cacetes enormes e desconhecidos. Mas tudo o que senti foi indiferença. Sabia
que foder com Marty não me levaria para mais perto da verdade que procurava — qualquer que
fosse. Eu queria um ato supremo e belo de amor, no qual cada pessoa se tornasse a roda de orações
do outro, o seu tobogã, o seu foguete. Marty não era a resposta. Existiria alguém que fosse?
— Como é que chegou aqui? — perguntou ele. — Você não é americana?
— Essas duas coisas não se cancelam mutuamente. . . Na verdade, deixei meu marido, homem
muito bom, por esse aí.
Foi quando Marty se empertigou. Uma leve onda de choque perpassou-lhe o semblante. Fora por
esse motivo que eu o fizera, afinal, só para poder dizer, descaradamente: ”Deixei meu marido”, e ver
as ondas de choque vagando entre mim e algum desconhecido? Aquilo não passava de exibicionismo?
E de exibicionismo de tipo bastante cretino, afinal.
— De onde você é?
266
— Nova York.
— O que faz?
A situação singular em que estávamos, esperando fora de um carro, enquanto nossos
companheiros fodiam lá dentro, pedia alguma espécie de confissão, de modo que cedi.
— Nova-yorkina, judia, de família da classe média superior muito neurótica, casada pela segunda
vez com um psiquiatra, sem filhos, vinte e nove anos de idade, acabei de publicar um livro de poemas
tidos por eróticos, que levaram homens desconhecidos a me telefonarem de noite com proposições e
proposições, e talvez tenham provocado uma grande onda sobre mim... tournée de preleções em
faculdades, entrevistas, cartas de malucos, coisas assim. . . dei o fora. Comecei a ler meus próprios
poemas, tentando identificar-me à imagem apresentada neles. Comecei a tentar viver minha fantasia.
Comecei a acreditar que era uma personagem fictícia inventada por mim.
— Esquisito — disse Marty, impressionado.
— A questão é que fantasias são fantasias, e não se pode viver em êxtase por todos os dias do ano.
Mesmo se a gente bater a porta e der o fora, mesmo se federmos com todos que apareçam, mesmo
assim não se chega obrigatoriamente mais perto da liberdade.
Minhas palavras não pareciam as de Bennett? Que ironia!
— Eu bem queria que você dissesse isso a Judy — sugeriu Marty.
— Ninguém pode dizer nada a ninguém — obtemperei.
Mais tarde, quando Adrian e eu estávamos juntos na barraca, perguntei-lhe como fora com Judy.
— Pomba chata — afirmou. — Fica lá deitada, nem mesmo toma conhecimento da existência da
gente.
— Ela gostou de você?
— Como é que vou saber?
— Você não se importa?
— Olhe... eu fodi Judy assim como a gente toma café, depois do jantar. E o café não estava dos
melhores.
— Nesse caso, por que se amola?
— E por que não?
— Porque, se você reduzir tudo a esse nível de indiferença, tudo perde o sentido. Não é
existencialismo, é entorpecimento. Acaba tornando tudo sem sentido.
267

— E então?
— E então você acaba com o oposto do que queria. Queria o ardor, arranja entorpecimento. É
contraproducente.
— Você está me fazendo uma preleção — observou Adrian.
— Tem razão — disse eu, sem pedir desculpas.
Na manhã seguinte Judy e Marty haviam desaparecido. Tinham feito as malas e partido durante a
noite, como ciganos.
— Eu menti a você, ontem à noite — disse Adrian.
— Sobre o quê?
— Na verdade, não fodi com Judy, em absoluto.
— Como é que pode?
— Porque não tive vontade. Eu ri, perversa.
— Você quer dizer que não conseguiu.
— Não. Não é o que eu quis dizer. Eu queria dizer que não quis.
— A mim não importa, de modo nenhum — contrapus —, se você fodeu e conseguiu, ou não.
— Isso é besteira.
— Opinião sua,
— Você está com raiva, porque sou o primeiro homem que conhece que não consegue controlar, e
você não agüenta muito tempo alguém ou alguma coisa que não controle.
— Merda. Acontece que eu tenho padrões um tanto mais elevados para o que quero do que você.
Já entendi o seu joguinho. Concordo com você no que diz respeito a espontaneidade e a
existencialismo. . . mas isso não é espontaneidade, de modo nenhum... é desespero. Você me disse
isso, a meu respeito, no primeiro dia em que trepamos, e agora vou devolvê-lo a você. É desespero e
abatimento, fantasiados de liberdade. Nem mesmo chega a ser agradável. É comovente. Até essa
viagem é comovente.
— Você nunca dá oportunidade a nada — retorquiu Adrian.
Mais tarde nadamos na piscina e nos secamos ao sol. Adrian estendeu-se na grama, fechava os
olhos por causa da luz forte. Deitei-me com a cabeça no peito dele, sentindo o odor cálido de sua
pele. De repente uma nuvem passou
268
na frente do sol e a chuva começou a cair, de leve. Nem nos mexemos. A nuvem de chuva passou,
deixando-nos salpicados e borrifados de gotas grandes. Dava para senti-las se evaporarem, quando o
sol reapareceu, aquecendo-nos novamente. Um besourinho caminhava pelo ombro de Adrian e se
metia em seus cabelos. Sentei-me no mesmo instante.
— O que há?
— Um bichinho nojento.
— Onde?
— No seu ombro.
Ele lançou um olhar de esguelha pelo peito, agarrou-o por uma das pernas. Deixou-o assim
dependurado, observando enquanto o bichinho esperneava.
— Não mate! — supliquei.
— Pensei que você tinha medo.
— Tenho, mas não quero vê-lo matar esse bichinho — disse, encolhendo-me.
— E que me diz disso? — perguntou, arrancando uma das pernas do besouro.
— Oh, meu Deus. . . não! Eu odeio quando as pessoas fazem isso.
Adrian continuou a arrancar as pernas do besouro, como se fossem pétalas de margarida.
— Bem me quer, mal me quer. . . — dizia.
— Eu odeio isso — insisti. — Por favor, não faça isso.
— Julguei que você odiava os insetos.
— Eu não gosto deles rastejando em mim. . . mas tampouco agüento ver matá-los. E me enoja ver
você mutilá-lo assim. Não agüento. — Levantei-me e corri para a piscina.
— Eu não entendo você! — Adrian gritava. — Por que é tão sensível, com os diabos?
Mergulhei na água.
Não voltamos a nos falar até depois do almoço.
— Você estragou tudo — disse Adrian — com as suas preocupações, sua hipersensibilidade.
— OK, está bem, deixe-me em Paris e eu volto para casa de avião.
— Com prazer.
— Eu podia ter dito a você que ia enjoar de mim, se eu exibisse qualquer sentimento humano. Que
tipo de mulher plástica você quer, afinal?
— Não seja biruta. Quero apenas que você cresça.
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— Por sua definição.


— Por definição de nós dois.
— Não está sendo muito democrático — contrapus, cheia de sarcasmo.
Começamos a arrumar o automóvel, guardando com estardalhaço os paus da barraca e demais
artigos de acampamento. Levamos cerca de vinte minutos, durante os quais não trocamos uma só
palavra. Finalmente embarcamos.
— Não deve representar coisa alguma para você o fato de que eu tenha abalado toda a minha vida
por sua causa.
— Você não fez isso por mim — retorquiu. — Foi apenas a desculpa.
— Eu nunca seria capaz de fazê-lo, se não gostasse muito de você. — E então, com um arrepio
que me percorreu todo o corpo, recordei-me de meu anseio por ele em Viena. Os joelhos bambos. As
entranhas a se revirarem, o coração disparado. A falta de fôlego, todas as coisas que ele despertava
em mim e que me haviam levado a acompanhá-lo. Ansiava por ele como tinha sido, ao nos
conhecermos. O homem em que ele se transformara era desapontador.
— O homem por baixo da cama jamais pode ser o homem em cima da cama — disse eu. — São
mutuamente excludentes. Quando o homem vem de baixo, não é mais aquele que se deseja.
— De que diabo está falando?
— Minha teoria da foda sem zíper — respondi, e expliquei o melhor que pude.
— Você quer dizer que a desapontei? — perguntou, passando os braços por mim e puxando-me
até que estivesse com a cabeça em seu regaço. Senti o cheiro gostoso de suas calças sujas.
— Vamos sair do carro — propus.
Caminhamos até uma árvore e nos sentamos embaixo dela. Permaneci com a cabeça em seu
regaço. Sem qualquer intenção, comecei a mexer com sua braguilha, abri-a um pouco e tirei seu
pênis macio, com a mão.
— É pequeno — disse ele.
Fitei-o, seus olhos entre verdes e dourados, os cabelos louros na testa, as linhas de sorriso nos
cantos da boca, as faces bronzeadas. Continuava belo, a meus olhos. Ansiava por ele, com anseio
que não era menos doloroso por ser, em parte, causado pela nostalgia. Beijamo-nos por muito
tempo,
270
e a língua dele fez círculos enlouquecedores na minha boca. Por mais que nos beijássemos, seu
pênis continuava mole. Ele lançou sua risada alegre, e ri também. Sabia que ele sempre se manteria
um tanto distante de mim. Sabia que jamais o possuiria de verdade, e isso fazia parte de sua beleza
imensa. Eu escreveria a seu respeito, falaria sobre ele, haveria de me lembrar de Adrian, mas nunca o
teria. O homem inatingível.
Seguimos de carro rumo a Paris. Insisti em que queria ir para casa, mas Adrian tentou fazer-me
ficar. Receava perder minha fidelidade a essa altura. Pressentia que eu me afastava. Sabia que eu já o
registrara no caderninho, para referências futuras. Ao nos aproximarmos dos arrabaldes de Paris,
começamos a ver frases garatujadas por baixo das pontes rodoviárias. Uma delas dizia: ”FEMMES!
LIBÉRONSNOUS!”
271

16

Seduzida & abandonada


O voto, julgava eu, nada significa para as mulheres. Devíamos estar armadas.”
Edna O’Brien

Paris, de novo.

Chegamos cobertos de poeira da estrada. Dois migrantes saídos de um livro de John Steinbeck,
dois artistas de variedades, empoeirados, de um livro de Colette.
Mijar à beira da estrada é coisa muito encantadoramente rousseauniana na teoria, mas, na prática,
sempre deixa a virilha pegajosa. E uma das desvantagens de ser mulher é que urinamos nos sapatos.
Ou sobre eles.
Assim é que chegamos a Paris pegajosos, empoeirados e levemente urinados. Estamos novamente
apaixonados um pelo outro — na segunda etapa do amor que consiste de nostalgia da primeira etapa.
Aquela segunda etapa do amor que aparece quando achamos, cheios de desespero, que estamos
perdendo o amor e não podemos suportar a idéia de mais uma perda.
Adrian acaricia meu joelho.
— Como está, amor?
— Otimamente, amor.
Já não sabemos o que é verdadeiro e o que é impostura. Somos um só em nosso desempenho
teatral.
A essa altura acho-me decidida a descobrir Bennett e fazer nova tentativa, se ele me aceitar de
volta. Mas não faço a menor idéia de seu paradeiro. Resolvo tentar
telefonar-lhe.
272
Suponho que tenha voltado a Nova York. Ele detesta bater pernas pela Europa quase tanto
quanto eu.
Na Gare du Nord, acho um telefone e procuro fazer um telefonema de pessoa para pessoa. Mas
esqueci todas as palavras de francês que havia aprendido e o inglês da telefonista deixa muito a
desejar. Após um diálogo absurdo, muitos erros, zumbidos e números errados, liga-me com o telefone
de minha própria casa.
A telefonista indaga pelo ”Docteur Wing” e lá longe, como se estivesse por baixo de todo o
Oceano Atlântico, ouço a voz da jovem que sublocou nosso apartamento durante o verão.
— Ele não está aqui. Está em Viena.
— Madame, lê docteur est à Vienne — diz a telefonista, como um eco.
— Ce n’est pás possible! — berro, mas meu francês só vai até aí. Quando a telefonista começa a
discutir comigo, minha língua se enrola cada vez mais. Certa feita, anos atrás, quando vim aqui em
viagem, como estudante universitária, dava para falar essa língua. Agora quase não consigo falar
nem mesmo inglês.
— Ele deve estar aí! — grito. E onde se encontra, se não está em casa? E que diabo vou fazer de
minha vida, sem ele?
Trato de dar um telefonema imediato ao mais velho amigo de Bennett, Bob, que ficou com nosso
automóvel durante o verão. Bennett, com certeza, devia estar em contato com ele, antes de qualquer
outra pessoa. Para minha surpresa, encontro Bob em casa.
— Bob. . . sou eu. . . Isadora. . . estou em Paris. O Bennett está aí?
A voz de Bob vem, muito débil:
— Pensei que estivesse com você.
Faz-se, então, silêncio. A ligação foi interrompida. Só que não é silêncio total. Será o barulho do
oceano que estou ouvindo — ou é imaginação minha? Sinto que um córrego minúsculo de suor
escorrega entre meus seios. De repente, a voz de Bob volta à superfície:
— O que houve? Vocês brig. . . — e depois vem a interferência gargarejante. Segue-se o silêncio.
Imagino um peixe gigantesco mordendo o cabo submarino no Atlântico. A cada vez que o peixe dá
uma mastigada, a voz de Bob desaparece.
— Bob!
273

— Não estou ouvindo. Eu disse: vocês brigaram?


— Sim. É muito difícil explicar. É horrível. Foi tudo minha...
— O quê? Não a escuto. . . Onde está Bennett?
— É para saber isso que eu estou telefonando.
— O quê? Não entendi.
— Merda. Eu também não escuto... ouça aqui, se ele telefonar, diga-lhe que eu o amo.
— O quê?
— Diga que o estou procurando.
— O quê? Não escuto.
— Diga a ele que eu o quero.
— O quê? Não estou ouvindo.
— Diga a ele que eu o quero.
— O quê? Pode repetir?
— Isso é impossível.
— Eu não escuto.
— Basta dizer a ele que eu o amo.
— O quê? Essa ligação está horr. . .
A ligação se interrompe pela última vez. A voz da telefonista surge, trazendo a notícia de que
estou devendo cento e vinte e nove francos novos e trinta e quatro centavos.
— Mas eu não pude ouvir nada!
A telefonista insiste em que estou devendo, assim mesmo. Vou à caixa, procuro uma carteira e
descubro que não tenho franco algum, antigo ou novo. Por isso é preciso atravessar a confusão de
cambiar dinheiro e lutar com o caixa, mas finalmente efetuo o pagamento. É problema demais para
sair com maiores protestos.
Começo a puxar notas de francos como se fosse penitência. Pagaria qualquer coisa só para estar
em casa, agora, relembrando aquilo tudo na tranqüilidade. É a parte que mais me agrada em tudo
isso. Por que me iludo? Não sou existencialista. Nada tem realidade alguma para mim, a menos que
possa escrevê-lo — revisando e embelezando, ao fazê-lo. Estou sempre aguardando que as coisas
acabem, de modo que possa ir para casa e registrá-las no papel.
— O que houve? — pergunta Adrian, saindo do banheiro dos homens.
— Tudo o que sei com certeza é que ele não está em Nova York.
— Talvez esteja em Londres.
— Ei... talvez esteja — e meu coração dispara à idéia de voltar a vê-lo.
274
— Por que não vamos juntos para Londres — sugiro
— e nos despedimos como bons amigos?
Porque eu acho que você precisa enfrentar isso sozinha — proclama Adrian, o Moralista.
Não vejo nada de desonesto em sua proposta. De certo modo, ele tem razão. Eu me meti nessa
embrulhada — por que contar com ele para me safar?
— Vamos tomar alguma coisa e pensar no caso — proponho, para ganhar tempo.
— Certo.
E partimos no Triumph, com o mapa de Paris no meu colo, a capota arriada e o sol brilhando
sobre a cidade -— como na versão cinematográfica de nossa história.
Dei as indicações para que Adrian seguisse rumo ao Boul’Mich e tenho a gratíssima satisfação de
descobrir que me lembro das avenidas, dos pontos turísticos, e dos caminhos. Pouco a pouco, meu
francês retorna.
— ”U pleure dans mon coeur/Comme U pleut sur Ia ville!” — grito, emocionada por haver
lembrado dois versos do poema que consegui guardar de cor, de todos aqueles anos de aulas de
francês. De súbito (e sem motivo algum, a não ser a visão de Paris) estou voando mais alto do que
uma pipa. ”Ela nasceu com um jato de adrenalina”, costumava dizer minha mãe. E era verdade;
quando não me achava pavorosamente deprimida, explodia de energia, risadinhas e piadas.
— Que negócio é esse de U pleut? — indaga Adrian.
— É o dia de sol mais malditamente ensolarado que vejo em semanas.
Mas ele esteve se contagiando comigo, nas risadinhas, e, antes mesmo de chegarmos ao café,
estamos bem altos. Estacionamos o carro na Rue dês Écoles (o lugar de estacionamento mais
próximo que achamos) e deixamos todo o nosso material no automóvel. Por momentos, hesito,
porque não há meio de trancarmos nossos pertences — o Triumph só tem uma capota de lona —,
mas, afinal de contas, o que me importa a permanência, o que me importam os objetos? A liberdade
é apenas outra palavra para nada que resta a perder — certo?
Subimos para um café na Place Saint Michel, tagarelando um com o outro sobre a beleza que é estar
de volta a Paris, como Paris nunca muda, como os cafés estão sempre ali, onde os deixamos, e as
ruas sempre onde as deixamos, e Paris sempre onde a deixamos.
275

Duas cervejas cada um e começamos a nos beijar ostensivamente, em público. (Qualquer um


pensaria que éramos os maiores amantes do mundo, no quarto.)
— O superego é solúvel em álcool — assevera Adrian, voltando a tornar-se o namorador que fora
em Viena.
— O meu superego é solúvel na Europa — explico, e rimos os dois, um tanto altos demais.
— Não vamos nunca mais voltar para casa — proponho. — Vamos ficar aqui para sempre,
delirar todos os dias.
— A uva é a única existencialista verdadeira — responde Adrian chamando-me a si.
— Ou o lúpulo. Lúpulo ou lúpolo?
— Lúpulo — diz ele com autoridade, tomando outro copo de cerveja.
Seguimos
276
porvPffisQjm uma só cervejada. Comemos cuscuz no almoço e ostras no jantar, e no
intervalo sorvemos inúmeras cervejas e fazemos paradas inúmeras, a fim de mijar; passamos pelo
Jardin dês Plantes e em volta do Panthéon, pelas ruas estreitas próximas da Sorbonne. Passamos pelo
Jardin du Luxembourg. Finalmente descansamos num banco próximo da Fontaine de l’Observatoire.
Estamos encharcados de cerveja, e muito felizes. Observamos os grandes cavalos de bronze que se
empinam no chafariz. Tenho aquela sensação singular de invulnerabilidade que o álcool proporciona,
e sinto estar vivendo um filme romântico. Tão descansada, alegre e tonta! Nova York encontra-se
mais longe do que a luz.
— Vamos achar um quarto de hotel e deitar — proponho. Não é um acesso forte de luxúria,
apenas o desejo amistoso de consumar aquela tontura romântica. Podíamos tentar mais uma vez. Só
mais uma foda perfeita, a fim de poder recordá-la. Todas as nossas tentativas se mostraram
decepcionantes, de algum jeito. Parece uma pena que tenhamos estado todo esse tempo juntos e nos
arriscássemos tanto por tão pouco. Ou talvez seja exatamente isso!
— Não — diz Adrian —, não temos tempo.
— Que negócio é esse de que não temos tempo?
— Eu tenho de partir esta noite, para chegar a Cherbourg amanhã cedo.
— Por que você tem de chegar amanhã cedo a Cherbourg? — algo pavoroso começa a irromper
em meio à euforia alcoólica.
— Para encontrar Esther e as crianças.
— Você está brincando?
276
— Não, não estou brincando. — Ato contínuo, consulta o relógio. — Devem estar partindo de
Londres agora. Vamos tirar umas férias na Bretanha.
Eu-e-fito, a Adrian, que consulta calmamente o relógio de pulso. A enormidade de sua traição me
deixa sem fala. Aqui estou — bêbada, sem me lavar, sem saber ao menos que dia é — e ele de olho
num compromisso que assumiu faz mais de um mês.
— Quer dizer que você sabia disso o tempo todo? Ele assente, confirmando.
— E você me deixou pensar que estávamos sendo existencialistas, enquanto sabia, o tempo todo,
que ia encontrar-se com Esther, em determinado dia?
— Bem. . . entenda como quiser. Não foi planejado de modo tão maligno quanto você parece
pensar.
— Então o que foi? Como podia deixar de pensar que estávamos seguindo por aí, onde bem desse
na telha. . . quando, todo esse tempo, você tinha esse encontro com Esther?
— Era a sua reforma, patinha, e não a minha. Eu nunca disse que ia reformar a minha vida para
fazer companhia a você.
Senti-me como se me houvessem esmurrado no queixo. Era como estar com seis anos de idade e
ter a bicicleta estraçalhada por alguém que supúnhamos nosso melhor amigo. Era a maior traição que
podia imaginar.
— Quer dizer que você esteve todo o tempo falando de liberdade, imprevisibilidade, e sabia que
tinha a intenção de encontrar-se com Esther? Nunca vi tanta hipocrisia!
Adrian começou a rir.
— O que é tão filhodaputamente engraçado?
— Sua raiva.
— Eu gostaria de matá-lo! — berro.
— Aposto que sim.
Eu, com isso, comecei a esmurrá-lo e a bater-lhe. Ele me agarrou pelos pulsos e me conteve.
— Eu só queria lhe dar alguma coisa para escrever — dizia, rindo.
— Seu filho da puta!
— Isso não é fecho de ouro para sua história?
— Você é mesmo um porco.
— Ora, vamos, amor, não fique assim. A moral da história é sempre a mesma, seja lá como for,
você não acha?
— A sua moral se parece às estradas dos Alpes. Faz curvas fechadas o tempo todo.
277

— Acho que também já ouvi isso, em algum lugar, antes — comenta ele.
— Bem, eu vou com você.
— Aonde?
— A Cherbourg. Nós vamos ter de passear pela Bretanha à cinq. Vamos ter de foder um ao outro,
sem qualquer desculpa moral besta. . . como você dizia, lá em Viena.
— Bobagens, você não vai.
— Vou, sim senhor.
— Você não vai. Não permito.
— Que negócio é esse de não permito? Que tipo de merda é essa? Você desdenhou tudo, na frente
de Bennett. Incitou-me a deixar minha vida e partir em sua companhia, e agora está ocupado,
mantendo a sua familiazinha intacta! Que tipo de merda você acha que eu vou agüentar? Foi você
quem me veio com aquele trambique sobre a honestidade, abertura, não viver em um milhão de
contradições. Eu vou com você, fique sabendo! Quero conhecer Esther, os garotos, e depois a gente
vai tocando de ouvido.
— Absolutamente. Eu não levo você. Eu a jogo fora do carro, se preciso.
Encarei-o, incrédula. Por que era tão difícil acreditar que ele se mostrasse tão insensível? Estava
claro que ele falava sério. Eu sabia que ele me jogaria fora do carro, sendo preciso. E talvez partisse
rindo.
— Mas você não se importa de ser hipócrita? — e toda minha voz estava misturada com súplica,
como se eu já soubesse que havia perdido.
— Recuso-me a criar problemas desse tipo para as crianças — explicou —, e tenho dito.
— É claro que você não se importa em criar problemas para mim.
— Você é crescida, agüenta. Eles, não.
Que resposta podia eu dar? Podia berrar, chorar e gritar, dizendo que também era uma criança,
que enlouqueceria se me abandonasse, que perderia a tramontana. Talvez fosse assim. Mas eu não
era sua filha, não era da conta dele essa coisa de me salvar. E eu não era filha de ninguém, agora.
Libertada. Inteiramente livre. Isso me trazia a sensação mais apavorante que me ocorrera até então.
Como pendurar-se à beira do Grand Canyon, e ficar na esperança de aprender a voar, antes de chegar
ao fundo do precipício.
278
Só depois que Adrian se foi é que pude segurar o meu pavor com as duas mãos, e possuí-lo. Não
nos separamos como inimigos. Quando vi que estava derrotada, parei de odiá-lo .-Comecei a me
concentrar em como agüentaria ficar sozinha. Assim que deixei de contar com a salvação da parte
dele, descobri que podia sentir empatia pelo desgraçado. Não era filha dele, e Adrian tinha o direito
de proteger os filhos. Mesmo contra mim — se me imaginasse como ameaça a eles. Ele me traíra,
mas eu percebera o tempo todo que isso ia acontecer e, de algum modo, o utilizara como traidor,
assim como ele me utilizara como vítima. Ele se mostrara, de modo inverso, um instrumento de
minha liberdade. Ao vê-lo se afastando de carro, percebi que voltaria a me apaixonar por ele assim
que a distância entre nós fosse suficiente.
Ele não se retirara sem oferecer auxílio, é preciso que se note. Havíamos indagado sobre as
passagens aéreas para Londres, e descobrimos que todos os aviões estavam cheios, por dois dias
seguidos. Eu podia esperar até quarta-feira ou indagar a respeito dos trens-barcos no dia seguinte.
Ou poderia ir ao aeroporto e esperar, para aproveitar alguma desistência. Dispunha de opções. Tudo
o que me cabia fazer era agüentar as batidas desesperadas do coração, até poder descobrir Bennett
mais uma vez — ou alguém. Talvez a mim mesma.
Arrastei a mala de volta ao café na Place Saint Michel. De repente, sem companhia masculina,
compreendi como aquilo era duro. Eu não arrumara a mala na expectativa de viajar sozinha.
Trouxera-a cheia de guias turísticos, um pequeno gravador de fita para o artigo que nunca escrevera,
caderninhos de anotações, o secador de cabelos, dez exemplares de meu primeiro livro de versos.
Alguns destinavam-se a um agente literário em Londres. Outros tinham vindo por simples questão de
insegurança; etiquetas de identidade a usar, caso encontrasse alguém. Destinavam-se a provar que eu
não era uma mulher comum. Destinavam-se a provar que eu era excepcional. Destinavam-se a provar
que eu devia receber salvo-conduto. Agarrei-me à minha posição de exceção, porque sem ela não
passaria de outra mulher sozinha, rondando por aí.
— Eu tenho seu endereço? — perguntou Adrian, antes de partir no Triumph.
279

— Está no livro que lhe dei. Na última página. Mas ele perdera o livro. A dedicatória que lhe fizera,
com tinta roxa. Nem é preciso dizer que ele jamais o leu por completo.
— Aqui. . . vou apanhar outro para você — e comecei a abrir minha enorme bolsa de lona, no
meio da rua. Potes de cosméticos caíram no chão, folhas de papel, anotações para poemas em que
trabalhava, fitas cassete, filmes, batons, romances em brochura, um Guide Michelin com folhas
marcadas com dobras. Enfiei toda essa porcaria de volta na mala italiana toda mole e extraí de lá
um de meus livros. Abri aquelas folhas virginais.
”Ao descuidado Adrian [escrevi]
que perde livros.
Com amor e muitos beijos.
Sua assistente social
de Nova York.”
E voltei a escrever meu endereço de Nova York é o número do telefone na última folha, sabendo
que ele ia perder também aquele exemplar, com toda a certeza. Foi assim que nos separamos.
Prejuízo sobre prejuízo. Minha vida derramando-se na rua, e apenas um volume fino de versos entre
mim e o vazio.
No café, sentei-me ao lado da mala e pedi outra cerveja. Estava aturdida e esgotada — quase
esgotada demais para sofrer tanto quanto devia sofrer. Teria de procurar um hotel. Já escurecia, a
mala era muitíssimo pesada e talvez tivesse de andar pelas ruas, arrastando-a, subindo todas aquelas
escadas espiraladas para indagar se tinham quartos, recebendo a resposta de que estavam todos
ocupados. Baixei a cabeça sobre a mesa, queria chorar de puro esgotamento, mas sabia que não
podia chamar a atenção dessa maneira. Já me eram lançados os olhares indagadores- que a mulher
sozinha sabe atrair. E me achava cansada e aporrinhada demais para reagir com sutileza. Se alguém
viesse com conversa fiada, naquele momento, era quase certo que eu começasse a berrar e esmurrá-
lo. Eu me achava além de qualquer palavra e descrição. Estava cansada de raciocinar, discutir e
procurar ser inteligente. O primeiro homem que me abordasse com um olhar cínico ou de flerte ia
ver:
280
um joelho nos colhões e um murro no queixo. Estava farta de ficar sentada ali, amedrontada, como
fizera com treze anos de idade, quando os exibicionistas começaram a abrir o zíper das calças para
mim, no subway deserto, rumo ao ginásio. Eu chegava a recear que eles ficassem insultados e se
saíssem com alguma vingança horrível, a menos que eu permanecesse presa ao meu banco. Por isso
ficava olhando para outro lado, fingindo não notar, fingindo não estar apavorada, fingindo estar
lendo e contando que, de algum modo, o livro me protegesse. Mais tarde, na Itália, quando os homens
me acompanhavam nas ruínas ou me perseguiam em automóveis pelas avenidas (abrindo as portas e
cochichando vieni, vieni) sempre ficava pensando por que me sentia tão conspurcada, tão cuspida e
tão furiosa. Aquilo devia ser lisonjeiro. Devia provar a minha feminilidade. Minha mãe sempre
dissera que, na Itália, sentia-se muito feminina. Nesse caso, por que me fazia sentir tão perseguida?
Devia haver algo errado em mim. Eu costumava tentar sorrir, sacudir os cabelos, para mostrar que
estava reconhecida. E depois sentia-me como uma impostora. Por que não ficava agradecida por me
perseguirem?
Naquele momento, todavia, queria estar sozinha, ser deixada em paz, e se alguém interpretasse
minha conduta de modo diverso, reagiria como animal selvagem. O próprio Bennett, com toda a sua
alegada psicologia e percepção, sustentava que os homens tentavam abordar-me o tempo todo porque
eu irradiava minha ”disponibilidade” — como o enunciou. Porque eu me vestia de modo muito
sensual. Ou usava um penteado muito exagerado. Ou alguma coisa. Em suma, merecia ser atacada.
Era o mesmo velho ditado acerca da guerra entre os sexos, o mesmo papo dos antigos anos 50
disfarçado: não existe essa coisa chamada estupro; vocês, mulheres, é que pedem. Vocês,
mulheninhas.
Acariciei meu copo de cerveja. Assim que ergui o rosto, meu olhar cruzou com o de um homem na
mesa ao lado. Estava com aquela expressão pimpona em que se lê: eu sei o que você quer, meu bem.
. Era a mesma mania de namorar que me fizera apaixonar-me por Adrian, mas que vinha agora
enojar-me. Tudo o que vi nela, a essa altura, foi sadismo e intimidação. Ocorreu-me de súbito que,
para mim, talvez noventa por cento dos homens que a exibiam estavam, na verdade, ocultando a
impotência. E não queria pôr à prova essa hipótese, note-se bem.
Franzi as sobrancelhas e olhei para outro lado.
281

Não dava para ele perceber que não queria ninguém? Não dava para ver que estava cansada, suja e
estuporada? Não dava para ver que eu me agarrava ao copo de cerveja como se fosse o Santo Cálice?
Por que, sempre que se recusa um homem, de modo sincero e completo, ele continua acreditando que
a gente estava sendo coquete?
Pensei nos dias em que alimentava fantasias com homens estranhos. É verdade que nunca fiz coisa
alguma com tais fantasias, e não me atreveria a fazer. Nem sequer tinha coragem suficiente para
escrever sobre elas, o que ocorreu apenas muito mais tarde. Mas suponhamos que eu houvesse
topado um desses homens, e que ele me rejeitasse, desviasse o olhar, demonstrando desagrado e
recuando. O que aconteceria nesse caso? Teria imediatamente levado essa rejeição a sério,
acreditando que estava errada, culpando-me por ser uma mulher má, prostituta, vagabunda, uma
perturbadora da ordem.. . Mais exatamente, teria imediatamente incriminado a minha própria falta de
atrativos, e não a relutância do homem, e teria ficado arrasada por dias inteiros por causa de sua
recusa. O homem, no entanto, supõe que a recusa da mulher faz apenas parte de um jogo. Ou, de
qualquer modo, uma porção de homens pensa assim. -Quando o homem diz não, é não. Quando a
mulher diz não, é sim ou, pelo menos, talvez. Existe até uma piada nesse sentido. E, pouco a pouco,
as mulheres começam a acreditar nessa visão de si mesmas. Finalmente, depois de séculos vivendo à
sombra de tais suposições, não sabem mais o que querem, e não conseguem decidir-se acerca de
coisa alguma. E os homens, é claro, complicam o problema zombando delas por sua indecisão e
atribuindo-a à biologia, hormônios, tensão pré-menstrual.
De súbito — com os olhos zombeteiros daquele homem desconhecido cravados em mim —, eu
sabia o que tinha feito de errado com Adrian e o motivo pelo qual ele me deixara. Eu quebrara o
mandamento básico. Eu o perseguira. Anos seguidos alimentando fantasias com homens e nunca
agindo de acordo com elas — e então, pela primeira vez na vida, eu agira conforme uma fantasia.
Persigo um homem a quem desejo loucamente, e o que sucede? Ele amolece como macarrão
encharcado e me recusa.
Homens e mulheres, mulheres e homens. Nunca vai dar certo, pensava eu. Naqueles dias em que
os homens eram caçadores, batiam no peito e as mulheres passavam a vida toda preocupando-se por
causa da gravidez ou por morrerem no parto,
282
era freqüente que tivessem de ser traçadas contra/a vontade. Os homens se
queixavam de que as mulheres eram frias, frígidas, sem reação. . . Queriam as mulheres soltas,
queriam as mulheres doidas. Agora, as mulheres estavam finalmente aprendendo a serem soltas e
doidas — e qual o resultado? Os homens murchavam. Não adiantava. Eu desejava Adrian como
jamais desejara outra pessoa em minha vida, e o próprio ardor dessa necessidade cancelara o dele.
Quanto mais eu berrava minha paixão, tanto mais ele esfriava. Quanto mais eu me arriscava para
estar com ele, menos ele se prestava a arriscar-se em minha companhia. A coisa era simples assim?
Resumia-se tudo ao que minha mãe me dissera, anos atrás, sobre ”fazer-se de difícil”? Parecia
verdade, sem dúvida, que os homens que mais me tinham amado fossem aqueles com quem eu fora
mais despreocupada. Mas qual a graça disso? De que adiantava? Não era possível juntar philos e
eros, pelo menos por um tempinho? De que adiantava esse rodízio constante de perdas a se
alternarem, esse círculo constante de desejo e indiferença, indiferença e desejo?
Tinha de achar um hotel. Era tarde, escurecia, minha mala não só era um grande trambolho, como
também aumentava meu ar de disponibilidade. Eu esquecera como é horrível ser uma mulher sozinha
— os olhares zombeteiros, as piadas, as ofertas de ajuda que não temos coragem de aceitar, com
medo de contrair uma dívida sexual. A sensação horrível de vulnerabilidade. Não admira que eu
houvesse passado de um homem a outro, e sempre acabasse casada. Como podia ter abandonado
Bennett? Como podia ter esquecido?
Arrastei aquele trambolho de mala, chegando à Rue de Ia Harpe (reminiscências de Sally, a
namorada de Charlie) e, por surpreendente que fosse, achei quarto no primeiro hotel onde procurei.
Os preços haviam subido bastante desde quando estivera lá, e me deram o último quarto no último
andar (uma escalada comprida e penosa, com aquela mala). O hotel era uma arapuca, caso se
incendiasse, o que observei com prazer masoquista, e o último andar seria onde as criaturas ficariam
ainda mais presas. Tive todos os tipos de pensamentos: Zelda Fitzgerald morrendo naquele incêndio
do asilo (acabara de ler uma biografia dela); o quarto de hotel em mau estado, no filme Breathless;
meu pai me advertindo muito sério, antes da primeira viagem que fiz desacompanhada à Europa, com
dezenove anos, de que assistira
283

Breathless e sabia o que acontecia às moças americanas na Europa; Bennett e eu travando uma luta
azeda em Paris, cinco Natais antes. Pia e eu no mesmo hotel, quando estávamos com vinte e três
anos; minha primeira viagem a Paris aos treze anos (uma suite luxuosa no Georges V, em companhia
de meus pais e irmãs, todos nós escovando os dentes com Perrier); os casos contados por meu avô
sobre viver de bananas em Paris, como estudante de artes sem um vintém; minha mãe dançando nua
no Bois de Boulogne (ela contou). . .
Eu me animara um pouco com a sorte de achar o quarto, mas quando cheguei a ele e compreendi
que teria de passar a noite ali, sozinha, o coração gelou. Era, na verdade, meio quarto, com uma
divisão de compensado (só Deus sabia o que havia do outro lado) e uma cama de solteiro afundada,
coberta por uma colcha estampada muito empoeirada. As paredes estavam forradas com um velho
papel listrado, muito manchado e descolorido.
Puxei a mala e fechei a porta. Fiquei remexendo na fechadura, até conseguir fazê-la funcionar. Por
fim, afundei na cama e comecei a chorar. Percebia que queria chorar apaixonadamente e sem
qualquer reserva, queria chorar todo um oceano de lágrimas e afogar-me nele. Mesmo as lágrimas,
porém, estavam impedidas. Havia um estranho nó no estômago, que me fazia pensar em Bennett. Era
quase como se meu umbigo estivesse preso ao dele, de modo que nem mesmo podia libertar minhas
lágrimas sem pensar nele, preocupar-me com ele. Onde estava? Não podia eu chorar, ao menos, até
que o achasse?
O mais estranho no choro (e talvez isso venha da infância) é que nunca podemos chorar com todo
o coração, sem que haja um ouvinte — ou, pelo menos, um possível ouvinte. Não nos permitimos
chorar tão desesperadamente quanto poderíamos. Talvez receemos afundar sob a superfície das
lágrimas, com medo de que não haja alguém para nos tirar de lá. Ou talvez as lágrimas sejam uma
forma de comunicação — como a palavra — e requeiram um ouvinte.
Você precisa dormir, disse a mim mesma, com severidade. Mas já me sentia entrando num pânico
que recordava meus piores medos noturnos da infância. Senti que o centro de mim mesma deslizava
para trás no tempo, embora o meu eu adulto e racional protestasse. Você não é uma criança, disse
em voz alta, mas as batidas desesperadas do coração prosseguiam. Estava coberta de suor frio.
Sentei-me, presa à cama.
284
Sabia que precisava tomar banho, mas não o tomaria, por causa do meu medo de sair do
quarto. Precisava desesperadamente mijar, mas tinha medo de ir ao toalete. Nem mesmo me atrevi a
descalçar os sapatos (com medo de que o homem por baixo da cama me agarrasse pelo pé). Não me
atrevia a lavar o rosto (quem sabe o que estava atrás da cortina?). Julguei ter visto alguém andando
no terraço, fora das janelas. Automóveis fantasma de luz cruzavam o teto. Alguém deu descarga no
banheiro e eu dei um pulo. Ouvi passadas pelo corredor. Comecei a lembrarme de cenas do
Assassinato na Rua Morgue. Lembrei-me de um filme a que assistira na televisão, por volta dos
cinco anos de idade. Era sobre um vampiro que sabia passar através de paredes. Nenhuma fechadura
impedia sua entrada. Visualizei-o saindo e entrando por aquele papel de parede sujo e desbotado.
Voltei a apelar para meu eu adulto, procurando ajuda. Tentei dotar-me de crítica e razão. Eu sabia o
que os vampiros representavam. Sabia que o homem debaixo da cama era meu pai, em parte. Pensei
na obra de Groddeck, onde ele diz que o medo ao intruso é o desejo de que ele apareça. Pensei em
todas as minhas sessões com o Doutor Happe, nas quais havíamos falado de meus pavores noturnos.
Lembrei-me de minha fantasia adolescente de ser apunhalada, ou levar um tiro de um desconhecido.
Estaria sentada à escrivaninha, e o homem sempre atacaria por trás. Quem era ele? Por que minha
vida era povoada por homens fantasma?
”Não existe meio de sair da mente?”, indaga Sylvia Plath em um de seus últimos poemas
desesperados. Se eu estava aprisionada, era por meus próprios receios. Motivando tudo aquilo existia
o terror de estar sozinha. Às vezes parecia que me prestava a fazer qualquer acordo, tolerar qualquer
ignomínia, ficar com qualquer homem, só para não ficar sozinha. Mas por quê? O que era tão terrível
em estar só? Procure pensar nos motivos, dizia a mim mesma. Procure.
Eu: — Por que é tão terrível estar só?
Eu: — Porque se nenhum homem me ama, não tenho identidade.
Eu: — Mas isso, evidentemente, não é verdade. Você escreve, as pessoas lêem seq trabalho e ele
tem importância para elas. Você leciona, seus estudantes precisam de você e se importam com você.
Você tem amigos que a amam. Até seus pais e irmãs a amam — a seu modo singular.
285

Eu: — Nada disso diminui minha solidão um só milímetro. Não tenho homem. Não tenho filho.
Eu: — Mas você sabe que os filhos não são antídoto para a solidão.
Eu: — Sei.
Eu: — E você sabe que os filhos só pertencem temporariamente aos pais.
Eu: — Sei.
Eu: — E você sabe que os homens e mulheres jamais poderão possuir-se, uns aos outros, por
completo.
Eu: — Sei.
Eu: — E você sabe que detestaria ter um homem que a possuísse por completo e usasse o seu
espaço mínimo de respirar. . .
Eu: — Sei. .. mas anseio desesperadamente por isso.
Eu: — Mas se você o conseguisse, ia sentir-se presa.
Eu: — Sei.
Eu: — Você quer coisas contraditórias.
Eu: — Sei.
Eu: — Você quer liberdade e quer também proximidade.
Eu: — Sei.
Eu: — Pouquíssimas pessoas encontram isso.
Eu: — Sei.
Eu: — Por que esperar ser feliz, quando a maioria das pessoas não é?
Eu: — Não sei. Sei, apenas, que se parar de contar com o amor, parar de esperá-lo, parar de
procurá-lo, minha vida vai ficar tão vazia quanto um seio canceroso, depois da extração cirúrgica.
Eu me nutro dessa expectativa. Alimento-me dela. Ela me mantém viva.
Eu: — Mas que me diz da libertação?
Eu: — Dizer o quê?
Eu: — Você acredita na independência?
Eu: — Acredito.
Eu: — E então?
Eu: — Desconfio que desistiria dela, venderia a alma, os princípios, as crenças, por um homem
que amasse de verdade . ..
Eu: — Hipócrita!
Eu: — Tem razão.
Eu: — Você não é melhor do que Adrian!
Eu: — Tem razão.
286
Eu: — Não se incomoda em descobrir essa hipocrisia em si mesma?
Eu: — Me incomodo.
Eu: — Nesse caso, por que não luta contra ela?
Eu: — Luto, estou lutando. Mas não sei que lado vai vencer.
Eu: — Pense em Simone de Beauvoir.
Eu: — Eu adoro a resistência dela, mas os livros que escreve estão cheios de Sartre, Sartre, Sartre.
Eu: — Pense em Doris Lessing!
Eu: — Anna Wulf não goza, a menos que esteja apaixonada. . . que mais se pode dizer?
Eu: — Pense em Sylvia Plath!
Eu: — Morta. Quem quer uma vida ou morte como a dela, mesmo se for canonizada?
Eu: — Você não morreria por uma causa?
Eu: — Aos vinte anos, sim, mas não aos trinta. Não acredito em morrer por causas. Não acredito
em morrer pela poesia. Já adorei Keats, por haver morrido jovem. Agora acho que é mais corajoso
morrer idoso.
Eu: — Bem. . . pense em Colette.
Eu: — Um bom exemplo, mas ela é uma das pouquíssimas.
Eu: — Bem, por que não procura ser como ela?
Eu: — Estou tentando.
Eu: — O primeiro passo é aprender a ficar sozinha. . .
Eu: — Sim, e quando se aprende isso de verdade, esquece-se como estar aberta para o amor, se
ele vier um dia.
Eu: — Quem disse que a vida é fácil?
Eu: — Ninguém.
Eu: — Nesse caso, por que tem tanto medo de ficar sozinha?
Eu: — Estamos de volta ao ponto de partida, girando em círculos.
Eu: — É um dos problemas de estar sozinha.
Não adiantava. Não consigo raciocinar e, dessa maneira, sair desse pânico. A respiração vem em
arquejos curtos e estou suando profusamente. Procure descrever o pânico, digo a mim mesma. Finja
que está escrevendo. Ponha-se na terceira pessoa do singular. Mas é impossível. Afundo no centro
do pânico. Parece que estou sendo dilacerada por cavalos selvagens e que meus braços e pernas voam
em direções diferentes. Fantasias horríveis de torturas me obcecam. Guerreiros chineses que esfolam
inimigos vivos.
287

Joana Darc queimada na fogueira. Protestantes franceses arrebentados na roda. Lutadores da Resistência de
quem arrancam os olhos. Nazistas torturando judeus com choques elétricos, alfinetes, ”operações”
sem anestesia. Sulinos linchando negros. Soldados americanos cortando as orelhas de vietnamitas,
índios sendo torturados, índios torturando. Toda a história da raça humana, gotejando sangue e
pavor, os berros das vítimas.
Aperto bem os olhos, mas as cenas voltam a passar diante de minhas pálpebras ardentes. Sinto-me
como se estivesse sendo esfolada, como se todos os órgãos internos estivessem abertos aos elementos,
como se a parte superior da cabeça houvesse sido arrancada e o próprio cérebro estivesse à vista.
Todos os nervos transmitem apenas dor. A dor da única realidade. Não é verdade, digo. Lembre-se
dos dias em que sentiu prazer, quando gostou de estar viva, quando sentiu alegria tão grande que
julgou que ia explodir. Mas não consigo lembrar-me. Estou presa à cruz de minha imaginação. E
minha imaginação é coisa tão horrível quanto a história do mundo.
Lembro-me de minha primeira viagem à Europa, com treze anos de idade. Passamos seis semanas
em Londres, visitando nossos parentes ingleses, vendo as paisagens e coisas a serem vistas,
acumulando contas enormes no Claridge’s que, dizia meu pai, eram ”pagas pelo Tio Sam...” Que tio
rico! Mas passei toda a viagem apavorada pelos dispositivos de tortura que vimos na Torre de
Londres e todos os horrores em cera que vimos no famoso museu de Madame Tussaud. Eu nunca
havia visto instrumentos de tortura que arrebentavam dedos, nem cavaletes destinados à tortura de
seres humanos. Eu nunca soubera, antes.
— As pessoas ainda usam essas coisas? — perguntara a minha mãe.
— Não, querida. Só usaram nos tempos antigos, quando as criaturas eram mais bárbaras. A
civilização fez progressos, desde aquela época.
Estávamos no ano civilizado de 1955, apenas uma década, mais ou menos, depois do holocausto
nazista; estávamos na era das provas atômicas e do armazenamento de armas atómicas; dois anos
haviam decorrido desde a Guerra da Coreia, e nos achávamos pouco antes do ápice da perseguição
aos comunistas, com listas negras contendo os nomes de muitos dos amigos de meus pais. Minha
mãe, porém, alisando os lençóis de linho verdadeiro entre os quais eu
tremia,
288
insistia, naquela noite chuvosa de Londres, em falar da civilização. Procurava poupar-me.
Se a verdade era dura demais para agüentar, ela mentiria para mim.
— Ótimo — disse, fechando os olhos.
E o Tio Sam, que tornava tantas coisas dedutíveis do imposto de renda, dois anos antes
eletrocutara os Rosenberg, em nome da civilização. Os dias bons datavam de dois anos atrás? Minha
mãe e eu conspirávamos, fingindo que sim, enquanto nos abraçávamos, antes de apagar a luz.
Mas onde estava minha mãe, naquele momento? Ela não me salvara naquela ocasião e não poderia
salvar-me agora, mas se aparecesse, ao menos, eu conseguiria atravessar a noite. Noite após noite,
nós vamos em frente. Se, ao menos, eu pudesse ser como Scarlett O’Hara, e deixar para pensar em
tudo aquilo na manhã seguinte. .
289

17

Sonhos

”Parece-me ser assim. Não é uma coisa terrível — quer dizer, pode ser terrível, mas não é daninha, não é de
envenenar, depararmo-nos sem alguma coisa que realmente queremos... O terrível é fingir que o de segunda é de
primeira. Fingir que não precisamos do amor, quando precisamos; ou que gostamos do trabalho, quando sabemos
muito
bem que somos capazes de coisa melhor.”
Doris Lessing, The golden notebook

Quando se tornou bem claro que jamais adormeceria, resolvi levantar-me. Insone traquejada, sei
que às vezes dá para arredar a insónia mediante esperteza: fingir que não me importa dormir. Com
isso, o sono às vezes ficava amuado, como amante rejeitado, e vinha rastejando, tentando seduzir-me.
Sentei-me na cama, prendi o cabelo e tirei as roupas sujas. Marchei até a cortina, abri-a com
grande coragem de mentira e olhei em volta. Ninguém. Montei no bidê e mijei verdadeiros rios,
atônita ao ver por quanto tempo conseguira ficar sem esvaziar a bexiga. Depois lavei minha virilha
dolorida e pegajosa, limpei o bidê. Joguei água de torneira no rosto e tomei um banho superficial com
esponja. A sujeira saía de meus braços do mesmo modo como na infância, quando brincava todo o
dia ao ar livre. Fui verificar a fechadura da porta, para ter certeza de que estava firme.
Quando alguém tossiu no quarto ao lado, quase bati com a cabeça no teto, tamanho o salto.
Calma, ordenei a mim mesma. Mas percebia vagamente que o fato de me levantar e lavar constituía,
pelo menos, um sinal de vida. Os lunáticos verdadeiros deixam-se ficar, deitados em sua própria
urina e merda. Que reconforto! Estava, mesmo, raspando o fundo da barrica. Você está melhor do
que alguém, disse, e tive de rir.
290
Nua e um tanto incentivada por estar mais limpa, coloquei-me diante do espelho comprido e
lascado. Ostentava um bronzeado singular, por causa dos dias que havíamos passado no automóvel
de capota arriada. Os joelhos e coxas, vermelhos e descascando. O nariz e faces, vermelhos. Os
ombros e antebraços igualmente queimados. Mas o resto de mim continuava branco, alvo, em curioso
desenho de remendos.
Fitei-me nos olhos, em volta dos quais havia círculos brancos, por ter usado óculos escuros
semanas seguidas. Por que eu nunca conseguira descobrir de que cor eram meus olhos? Seria
importante? Isso estaria, de algum modo, no cerne de meus problemas? Azul-acinzentados, com
salpicos amarelos. Não de todo azuis, não de todo cinzentos: azul de ardósia, costumava dizer Brian,
e seu cabelo é da cor do trigo. ”Cabelo triguento”, como o chamava, afagando-o. Brian tinha os olhos
mais castanhos que eu já vira — olhos de um santo bizantino em mosaico. Quando começara a
endoidar, costumava fitar os próprios olhos por horas seguidas, diante do espelho. Acendia e apagava
a luz como criança, tentando ver as pupilas se dilatando de repente. Falava de modo bastante literal,
nessa ocasião, de um mundo de espelho, um mundo de antimatéria, para o qual podia passar. Seus
olhos eram a chave desse mundo. Acreditava que a alma podia ser sugada pelas pupilas, como a
albumina sugada de um ovo furado. Lembro-me de como fui atraída pela loucura de Brian, como
ficava fascinada com as imagens por ele criadas. Naqueles dias eu não escrevia poemas surrealistas,
mas poemas comuns e descritivos, com muito jogo de palavras. Mais tarde, todavia, quando comecei
a me aprofundar mais e dar rédeas à imaginação, sentia muitas vezes que estava vendo o mundo
pelos olhos de Brian e que a loucura dele era a fonte de minha inspiração. Sentia como se houvesse
enlouquecido com ele e voltasse à superfície. Tínhamos estado próximos a esse ponto. E, se me sentia
culpada, era porque pudera descer e subir outra vez, enquanto ele ficara preso. Como se eu fosse
Dante e ele Ugolino (uma de suas personagens favoritas do Inferno), e eu pudesse regressar do
Inferno e contar sua história, escrever a poesia que pudera colher em sua loucura, enquanto ele se
deixava empolgar inteiramente por ela. Você seca todos, acusava a mim mesma; você usa todos.
Todos usam todos, respondi.
Lembrei-me de como me sentira mal por desmanchar
291
o casamento com Brian, e me ocorreu que eu achara que merecia passar o resto da vida imersa na
loucura dele. Meus pais e os de Brian, bem como os médicos, haviam-me arrancado daquilo. Você
está com apenas vinte e dois anos, dissera o psiquiatra de Brian; não pode jogar fora sua vida. E eu
lutara contra ele, acusara-o de trair a nós dois, ou trair nosso amor. O fato era que eu poderia
facilmente ter ficado com Brian, se o dinheiro e os protestos dos parentes não houvessem intervido.
Achava que devia estar com ele. Achava que merecia perder a vida desse modo. Não desconfiava de
que tinha vida própria, nessa altura, e de que não sabia deixar as pessoas, por pior que me tratassem.
Algo em mim sempre insistiu em dar-lhes outra oportunidade. Ou talvez fosse covardia. Uma espécie
de paralisia da vontade. Eu ficava, e escrevia minha raiva, em vez de representá-la. Deixar Bennett
tinha sido meu primeiro gesto de independência real, e mesmo assim fora, em parte, por causa de
Adrian e da obsessão sexual que nutria por ele.
Era perigoso, evidentemente, fitar os próprios olhos no espelho por tempo demasiado. Afastei-os
para examinar o corpo. Onde terminava meu corpo e começava o ar em volta dele? Em algum artigo
sobre a imagem do corpo eu lera que em momentos de tensão — ou êxtase — perdemos as fronteiras
de nossos corpos. Esquecemos que somos seus donos. Era sensação que me ocorrera com freqüência
e eu a reconhecia como parte importante de meus pânicos. A dor constante também a causava. Minha
perna quebrada fizera-me perder contato com os limites de meu corpo. Tratava-se de um paradoxo:
grande dor corporal ou grande prazer corporal faziam-nos sentir que deslizávamos para fora do
corpo.
Tentei examinar meu eu físico, fazendo um levantamento, para poder lembrar-me de quem era —
se, na verdade, meu corpo me pertencia. Lembrei-me de uma história sobre Theodore Roethke,
sozinho em sua grande casa antiga, vestindo-se e despindo-se diante do espelho, examinando a nudez
entre acessos de composição. Talvez a história fosse apócrifa, mas para mim soava verossímil.
Nosso corpo se acha intimamente relacionado com o que escrevemos, embora a natureza exata dessa
ligação seja sutil e possamos levar anos para compreendê-la. Alguns poetas altos e magros escrevem
poemas curtos e gordos. Mas não é uma simples questão de lei de inversões. Porque, em certo
sentido, cada poema é a tentativa de estender os limites de nosso corpo. Nosso corpo se torna a
paisagem, o céu e, finalmente,
292
o cosmos. Talvez seja o motivo pelo qual me encontro muitas vezes escrevendo nua.
Eu perdera peso durante aquela jornada estranha que havíamos feito, mas continuava bastante
gorda para a moda de então; não obesa, mas com cerca de três quilos a mais, para poder usar biquíni.
Seios de tamanho médio, bunda grande, umbigo profundo. Alguns homens diziam gostar de meu
corpo. Eu sabia (do modo como se sabe de coisas em que não se acredita ao todo) que era
considerada bonita e até minha bunda grande atraía alguns, mas detestava cada grama de gordura a
mais. Fora uma luta a vida toda adquirir peso, perdê-lo, readquiri-lo com juros. Cada grama a mais
constituía prova de minha própria fraqueza, relaxamento e comodismo.
Cada grama a mais provava que eu estava certa em me abominar, em me considerar vil e nojenta.
Carne em excesso era coisa ligada a sexo — isso eu sabia. Aos catorze anos, quando passara fome
voluntariamente, até chegar ao peso de quarenta e dois quilos, minha culpa emanava inteiramente do
sexo. Mesmo depois de eu perder todo o peso que queria — e mais ainda — eu negava água a mim
própria. Queria sentir-me vazia. A menos que as contrações de dor se tornassem tonitruantes, eu me
odiava por meu comodismo. Era, do modo mais claro, uma fantasia de gravidez — como meu
marido, o psicanalista, diria — ou, talvez, uma fobia de gravidez. Meu inconsciente acreditava que
masturbar Steve me tinha engravidado, e eu emagrecia cada vez mais, a fim de me convencer de que
era assim. Ou talvez eu ansiasse por estar grávida, acreditando primitivamente que todos os orifícios
no corpo eram um, e receando que qualquer comida ingerida semeasse meus intestinos como se fosse
esperma, e frutas crescessem de mim.
Você é o que come. Mann ist mann isst. A guerra entre sexos iniciara-se com a mordida, de dentes
masculinos, em maçã feminina. Plutão atraiu Perséfone ao inferno com seis sementes de romã.
Depois de tê-las comido, o negócio não podia ser desfeito. Comer é selar o próprio destino. Fechar os
olhos e abrir a boca. Vai pelo buraco abaixo. Coma, querida, coma. ”Coma apenas o seu nome”,
costumava dizer minha avó. ”O meu nome todo?” ”I...” ela engabelava... (um bocado daquele
detestável fígado). . . ”S. ..” (um bocado de batatas amassadas e cenouras). . . ”A. . .” (mais fígado
duro, cozido demais). . . D. . . (outro pedaço de batata fria, com gosto de cenoura). . . O. . .
293

(uma florzinha mole de brócolos). . . ”R. . .” (ela leva mais uma vez o fígado a meus lábios, e eu saio da
mesa). . . ”Você acaba pegando beribéri!”, ela berra, em meu encalço-. Todos, em minha casa, são
donos de repertório completo de doenças deficitárias e de subnutrição (das quais não se ouve falar em
Nova York, faz decênios). Minha avó é uma criatura praticamente sem instrução, mas conhece
beribéri, escorbuto, pelagra, raquitismo, triquinose, vermes redondos, vermes compridos... qualquer
um. Tudo quanto se pega, por comer ou deixar de comer. Ela chegou mesmo a convencer minha mãe
de que, se eu não tomasse um copo de suco de laranja recém-extraído, todos os dias, pegaria
escorbuto, e estava sempre a me regalar com histórias sobre a Marinha inglesa e as limas. Limas.
Você é o que come.
Lembro-me de uma coluna de dieta num jornal médico de Bennett. Parecia que a Senhorita X seguira
uma dieta rigorosa de seiscentas calorias diárias por semanas e mais semanas, e ainda assim não
perdia peso. De início o médico, intrigado, achou que ela estava trapaceando, de modo que a obrigou
a preparar listas completas de tudo o que comia. Ela não parecia estar trapaceando. ”Tem certeza de
que relacionou tudo o que pôs na boca e comeu?”, perguntou. ”Tudo o que pus na boca?”, perguntou
ela. ”Sim”, disse o médico, cheio de severidade. ”Eu não sabia que isso tinha calorias”, explicou ela.
Bem, a coisa é que ela era prostituta, engolindo pelo menos dez a quinze ejaculações por dia, e as
calorias em um só jato de bom tamanho bastavam para mantê-la para sempre fora do peso
necessário. Qual era a contagem de calorias? Não me lembro, mas dez a quinze ejaculações vinham a
ser o equivalente a uma refeição de sete pratos no Tour dArgent, embora, é claro, eles pagassem a
ela para **294comet em vez de ela pagar a eles. Gente pobre, que passa fome por falta de proteínas, em
todo o mundo. Se ao menos soubessem! A cura para a fome na índia e a cura para a superpopulação
— tudo em um só bocado! Um bocado só não resolve grande coisa, mas faz uma beleza de pratinho.
Seria possível que eu estivesse me levando a rir.
”Ho, ho, ho”, dizia a mim mesma, nua.
E então, com o impulso adquirido pela pequena explosão de humor falso, enfiei a mão na mala e
tirei de lá todos os caderninhos, folhas de trabalho e poemas.
”Vou calcular como cheguei aqui”, disse a mim mesma. Como tinha acabado nua, assada como
galinha, pela metade,
294
numa espelunca em Paris? E aonde, com os demônios, iria depois?
Sentei-me na cama, espalhei os caderninhos e poemas em volta de mim e comecei a folhear um
caderno gordo, folhas presas por arame, que remontava a quase quatro anos. Não havia qualquer
sistema especial. Anotações diárias, listas de compras, listas de cartas a serem respondidas,
rascunhos de cartas furiosas nunca enviadas, recortes de jornal colados, idéias para histórias,
primeiros rascunhos de poemas — tudo amontoado de qualquer jeito, caótico, quase ilegível. Meus
assentamentos eram feitos com canetas hidrográficas de todas as cores. Mas também não havia
sistema algum de codificação pelas cores. Roxo-chocante, verde-Kelly e azul-mediterrâneo pareciam
ser as cores preferidas, mas havia também boa quantidade de preto, abóbora e púrpura. Quase não se
via tinta preto-azulada sombria. Lápis, esse, nunca. Eu chego a sentir o fluxo da tinta sob os dedos,
ao escrever. Eu queria que minhas obras efêmeras durassem.
Folheei aquilo, agitada, procurando alguma pista para a enrascada em que me metera. As
primeiras páginas do caderninho eram dos meus dias em Heidelberg. Havia descrições agoniantes das
brigas que Bennett e eu havíamos travado, registros literais de nossas piores cenas, descrições de
minhas análises com o Doutor Happe, descrições de meus esforços para escrever. Meu Deus — eu quase
esquecera o quanto sofrera, na ocasião, como estivera sozinha. Esquecera como Bennett fora frio e
inflexível. Por que um casamento ruim tinha de ser muito mais atraente do que casamento nenhum?
Por que eu me prendera desse modo a meu sofrimento? Por que acreditava que era tudo com que
contava?
Lendo o caderninho, comecei a ser levada por ele, como por um romance. Quase comecei a
esquecer que o escrevera. E, nisso, uma revelação curiosa começou a raiar. Parei de culpar a mim
mesma; foi simples, assim. Talvez minha fuga não se devesse a maldade de minha parte, nem a
qualquer infidelidade pela qual precisasse desculpar-me. Talvez fosse uma espécie de fidelidade a
mim mesma. Um modo drástico, porém necessário, de mudar minha vida.
Não era preciso desculpar-me por querer possuir minha própria alma. Afinal de contas, após todos
os debates, era tudo o que possuía.
O casamento se mostrava perigoso porque, de algum modo, era sempre uma folie à deux. Às vezes
não se sabe onde terminam as nossas próprias doideiras e começam as do
cônjuge.
295

Você se inclina a incriminar-se demais, ou não o bastante pelas coisas erradas. E se


inclina a confundir a dependência com o amor.
Continuei lendo e a cada página tornava-me mais filosófica. Sabia que não queria voltar ao
casamento descrito naquele caderninho. Se Bennett e eu voltássemos a ficar juntos, teria de ser sob
circunstâncias muito diversas. E se não voltássemos, eu sabia que conseguiria sobreviver.
Nenhuma lâmpada se acendeu dentro de minha cabeça, ao reconhecer isso. Tampouco dei um salto
no ar e berrei Eureka! Fiquei sentada, quieta, olhando as páginas que escrevera. Sabia que não queria
cair na armadilha de meu próprio livro.
Também era reconfortante ver como eu mudara nos últimos quatro anos. Já conseguia despachar
meu trabalho para os editores. Não tinha receio de dirigir. Passava longas horas sozinha, escrevendo.
Lecionava, fazia preleções, viajava. Apavorada com viajar de avião, como era, não deixava que o
medo me dominasse. Talvez perdesse esse medo, um dia, por completo. Se algumas coisas podiam
mudar, outras também. Que direito tinha eu de predizer o futuro e predizer de modo niilista? Com o
passar do tempo eu deveria mudar em centenas de modos que não dava para antever. Tudo o que
tinha a fazer era esperar.
Parecia muito fácil matar-me em um acesso de desespero. Era bastante fácil fazer-me de mártir.
Mais difícil era não fazer nada. Suportar a vida. Esperar.
Dormi. Acho que adormeci com o rosto encostado no caderninho de arame. Lembro-me de ter
acordado às horas azuladas do amanhecer e sentido a compressão do espiral em minha face. Depois
arredei o caderninho e voltei a dormir.
Os sonhos foram extravagantes. Cheios de elevadores, plataformas no espaço, escadarias
fantasticamente íngremes e escorregadias, templos zigurates que tinha de escalar, montanhas, torres,
ruínas. . . Veio-me uma sensação vaga de que estava escolhendo sonhos, como uma espécie de cura.
Lembro-me de, uma ou duas vezes, despertar e depois voltar ao sono, pensando: ”Agora vou ter o
sonho que toma as decisões por mim”. Mas que decisão eu buscava? Todas as escolhas pareciam tão
insatisfatórias, de um modo ou de outro! Toda escolha excluía alguma outra. Era como se eu
estivesse pedindo a meus sonhos para me dizerem quem eu era e o que devia fazer. Eu despertava
com o coração parado, e depois voltava ao sono. Talvez contasse despertar ou trem.
296
Fragmentos desses sonhos ainda me ocorrem. Em um deles, eu tinha de caminhar por uma prancha
estreita, entre dois arranha-céus, a fim de salvar a vida de alguém. De quem? Minha? De Bennett? De
Chloe? O sonho não dizia. Mas era claro que, se eu fracassasse, minha própria vida terminaria. Em
outro, enfiava a mão em mim mesma para tirar o diafragma e ali, flutuando dentro de mim, havia
uma grande lente de contato. Ütero com visão. Dentro de mim havia, na verdade, um olho. E um olho
míope, por falar nisso.
Lembro-me, então, do sonho no qual eu voltava à faculdade, preparando-me para receber o
diploma de Millicent Mclntosh. Subi um lance prolongado de degraus que se pareciam mais aos
degraus de um templo mexicano do que aos da Biblioteca Low. Encarapitava-me nos saltos altos e
preocupava-me, com medo de tropeçar na toga.
Quando, ao me aproximar da mesa, Mrs. Mclntosh estendeu um pergaminho em minha direção,
compreendi que não estava apenas na formatura, mas ia receber honraria especial.
— Devo dizer-lhe que o corpo docente não aprova isso — disse Mrs. Mclntosh. E eu sabia, nesse
momento, que a bolsa conferia a mim o direito de ter três maridos simultaneamente. Eles se achavam
sentados na platéia, usando capas e togas negras: Bennett, Adrian e algum outro sujeito cujo rosto
não dava para divisar. Todos eles esperavam, para aplaudir quando eu recebesse o diploma.
— Somente o seu excelente desempenho escolar nos impossibilita de suspender esta honra — disse
Mrs. Mclntosh —, mas o corpo docente espera que você decline dela por sua própria vontade.
— Mas por quê? — protestei. — Por que não posso ficar com todos os três?
Prorrompi, então, em discurso prolongado e de racionalização, acerca do casamento, de minhas
necessidades sexuais e de como eu era uma poetisa, e não uma secretária. Coloquei-me à mesa e fiz
uma peroração para a platéia. Mrs. Mclntosh exibia uma expressão de sábia desaprovação. Depois
eu seguia, descendo os degraus íngremes, entre acocorada e apavorada, com medo de cair. Olhei para
aquele oceano de rostos e compreendi de repente que me esquecera de apanhar o diploma. Cheia de
pânico, sabia que abandonava tudo: a formatura, a bolsa, meu harém de três maridos.
Lembro-me do sonho final, o mais estranho de todos. Eu subia novamente os degraus da biblioteca
a fim de recuperar meu diploma.
297

Dessa feita, não era Mrs. Mclntosh quem estava à mesa, porém Colette. Só
que essa era uma mulher negra, de cabelo avermelhado e encarapinhado reluzindo em volta de sua
cabeça, como um halo.
— Só existe um modo de diplomar-se — disse ela —, e ele nada tem a ver com o número de
maridos.
— O que preciso fazer? — perguntei, desesperada, sentindo-me capaz de tudo.
Ela me entregou um livro, que tinha meu nome na capa.
— Isso é apenas um início muito fraco — comentou —, mas, pelo menos, você fez o começo.
Interpretei isso como significando que ainda tinha de atravessar bom número de anos.
— Espere — disse ela, abrindo a blusa. De repente compreendi que amá-la em público era a
diplomação verdadeira, e nesse momento pareceu-me a coisa mais natural do mundo. Muito
estimulada, parti em sua direção. Nisso, o sonho se desfez.
298

18
Matrimônios de sangue ou sic transit

”A verdadeira dificuldade no que toca às mulheres é que elas precisam sempre continuar tentando adaptar-se às
teorias que os homens formulam sobre elas.”
D. H. Lawrence

Despertei ao meio-dia, descobrindo que o sangue se avolumava entre minhas pernas. Se abrisse as
coxas, um pouco que fosse, o sangue escorreria e mancharia o colchão. Grogue e semi-aturdida como
me encontrava, sabia que tinha que juntar as pernas. Queria levantar-me a fim de procurar um
Tampax, mas era difícil sair daquela cama afundada sem abrir as pernas ao menos um pouco.
Coloquei-me em pé de repente e os filetes vermelho-escuros começaram a escorrer para o interior de
minhas coxas. Uma mancha escura de sangue brilhava no chão. .. Corri até a mala, deixando um
rastro de pontos luzidios. Sentia aquela puxada forte e bem conhecida no baixo ventre.
— Porra — disse, procurando desajeitadamente os óculos para poder enxergar dentro da mala e
encontrar um Tampax. Mas não encontrei sequer os malditos óculos. Enfiei a mão na mala e comecei
a apalpar lá dentro. Exasperada, principiei a jogar as roupas no chão.
— Que se dane tudo! — gritei. O chão começava a parecer-se a um local de desastre
automobilístico. Como é que ia limpar todo aquele sangue? Não ia. Limitar-me-ia a dar o fora de
Paris antes que a gerência do hotel tomasse conhecimento daquela sujeira.
Que monte de porcaria inútil eu tinha na mala! Bem podia usar os poemas como toalhas
higiénicas, não?
299

Simbolismo encantador. Por azar, entretanto, não eram muito absorventes.


— Ah — o que é isso? Uma das camisas esportivas de Bennett. Dobrei-a, formando uma espécie
de fralda, e enfiei um (apenas um!) alfinete de segurança para mantê-la em mim — de um certo jeito.
Como ia dar o fora de Paris, usando fralda? Teria de caminhar com os joelhos juntos. Todos
pensariam que estava precisando mijar. Oh, Deus — o crime, definitivamente, não compensa. Lá
estivera eu, imaginando se meu castigo por fugir com Adrian ia ser toda uma gravidez, sem saber de
que cor a criancinha ia nascer e, em vez disso, sou eu quem está de fralda. Por que o meu sofrimento
não pode, pelo menos, ser dotado de alguma dignidade? Quando os outros autores sofrem, é uma
coisa épica ou cósmica, ou então avant garde, mas quando eu sofro é palhaçada.
Capengo para o corredor, envergando o capotão e mantendo os joelhos juntos, a fim de que a
fralda fique no lugar. Eu me lembro, repentinamente, de que tudo o que me distancia da pobreza total
se acha na bolsa de mão: passaporte, cartão do American Express, cheques de viagem — e capengo
de volta ao quarto. Depois retorno ao corredor, joelhos juntos, descalça, agarrando a bolsa, e agarro
também a maçaneta do toalete e começo a sacolejá-la.
— Un moment, s’il vous plait — responde uma voz masculina, com embaraço. Sotaque
americano. Afinal de contas, estamos em agosto e não deve haver muitos franceses por toda uma boa
distância de Paris.
— Está bem — digo eu, segurando a fralda no lugar,
com as coxas.
— Pardon? — ele não escutou o que disse. Continua esforçando-se por falar francês, enquanto
aperta o rabo para que saia o último fragmento de merda.
— Está bem — berro. — Sou americana.
— J e viens, je viens — murmura ele.
— J e suis américaine!
— Pardon?
Isso está ficando embaraçoso. De qualquer modo, nenhum de nós dois saberá o que fazer, quando
ele finalmente surgir. Resolvo dar no pé, descendo ao pavimento inferior, a fim de ver o toalete de lá.
Lá vou eu, capengando novamente pelas escadas em espiral. O toalete no andar debaixo não está
fechado, mas ali não se vê papel algum, de modo que tenho de descer mais um andar. Na verdade,
estou começando
300
a ficar em excelente forma para fazer aquilo. Que adaptabilidade fantástica demonstramos, nos
momentos de dificuldade! Como na ocasião em que quebrei a perna e inventei todas aquelas posições
engenhosas para foder, tendo um molde de gesso pesadão e comprido para atrapalhar.
Voilà! Papel! Mas que papel horroroso! Por falar na história do mundo através dos toaletes — este
aqui parece-se muitíssimo a uma oubliette, e o papel parece estar com bichinhos mortos, embutidos
nele. Tranco a porta, abro a janela minúscula, jogo a camisa esportiva e ensangüentada de Bennett
para o pátio (pensando momentaneamente na mágica de simpatia de todos aqueles costumes tribais
mencionados em O ramo de ouro. . . virá algum feiticeiro mau encontrar a camisa de Bennett,
encharcada com meu sangue, e utilizá-la para lançar um sortilégio sobre nós dois?). Depois sento-me
no vaso e começo a inventar uma espécie de toalha higiênica para mim, com camadas diversas de
papel higiênico.
Os absurdos a que somos sujeitos, por nossos corpos! Além de estar sentada, com diarréia, em
algum toalete público fedorento, não conheço nada mais ignominioso do que ter as regras quando se
está sem Tampax. O singular é que nem sempre me senti assim, com relação à menstruação. Na
verdade, ansiei por minha primeira regra, desejei-a muito, rezei por ela. Costumava examinar
palavras como ”regra” e ”menstruação” no dicionário. Costumava recitar uma oração curta, que
dizia assim: por favor, que a regra venha hoje. Ou então, com medo de que me ouvissem, dizia: P.
F. Q. A. R. V. H., P. F. Q. A. R. V. H., P. F. Q. A. R. V. H. Costumava entoar isso sentada no vaso
sanitário, limpandome repetidas vezes e contando encontrar ao menos uma mancha, por menor que
fosse, de sangue. Nada. Randy tinha suas regras (ou ”não passava bem”, como minha mãe e avó,
liberadas, diziam) e o mesmo ocorria com todas as moças, em minha turma da sétima série. E minha
turma da oitava. Que seios grandes, que sutiãs e pelinhos púbicos! Que discussões emocionantes
sobre Kotex e Modess e (para as que eram muito, mas muito audaciosas), Tampax! Mas eu nada
tinha com que contribuir. Aos treze anos, contava somente com um ”sutiã de treinamento”
(treinamento para quê?) que eu não preenchia, alguns pêlos esparsos ruivo-castanhos (nem mesmo
louros, embora eu fosse uma loura natural), e informações sobre sexo obtidas em maratonas pela
noite afora com Randy e sua melhor amiga, Rita. Por isso as orações
301
sobre o vaso continuavam. P. F. Q. A. R. V. H., P. F. Q. A. R. V. H., P. F. Q. A. R. V. H.
E então, quando estava com treze anos e meio de idade (velha, comparada aos dez anos e meio de
Randy), finalmente ”veio” a bordo do lie de France, em meio do Atlântico, quando regressávamos
em família daquela excursão europeia desastrosamente cara (embora dedutível do imposto de renda).
Estávamos nós quatro, que ficáramos com um conjunto interno próximo ao barulho dos motores
(enquanto nossos pais tinham ficado com uma cabine externa, no convés de barcos) e, de repente,
tornei-me mulher, a dois dias e meio de Lê Havre. O que fazer? Lalah e Chloe (que dividiam entre si
um dos beliches) não deviam saber — sendo como pensa minha mãe, jovens demais para isso —, de
modo que Randy e eu nos empenhamos em algumas viagens confabulativas e de ar conspiratório à
farmácia, buscando suprimentos, e nos esgueiramos pela cabine, procurando lugares onde escondê-
los. Eu, naturalmente, estou tão satisfeita com meu novo brinquedo e minha nova sensação de
distinção no mundo adulto, que mudo meu Kotex nada menos de doze vezes por dia, usando-os quase
mais depressa do que os conseguimos comprar. E o momento da verdade chega quando o camareiro
(um francês mal-humorado, o rosto parecido ao de Fernandel e de mau génio como o Cardeal
Richelieu) descobre o toalete entupido até em cima e transbordando. Até então eu não me sentira
muito oprimida pela menstruação. Só quando o camareiro (que, com certeza, não se emocionava em
ter de cuidar de uma cabine que se parecia a um dormitório de meninas) começou a berrar para mim,
é que engrossei as fileiras dos fanáticos e extremados latentes.
— O que você botar in ze commode? — berrava (ou coisa parecida). E depois me fez olhar,
enquanto puxava o Kotex a se desintegrar, pedaço por pedaço. É possível que ele não soubesse de
que se tratava? Ou procurava humilharme? Seria, na verdade, uma questão de diferença de línguas?
(Comment dit-on Kotex en français?) ou simplesmente não estaria ele desabafando sua contrariedade
em cima de minha menarca? Fiquei ali, avermelhando-me e murmurando drugstore, drugstore, que
(como me informam agora) é uma palavra francesa.
Entrementes, Lalah e Chloe riam mais do que duas macacas de auditório, quando seu ídolo lhes
lança um olhar meloso. (Elas sabiam que era sujeira, embora não
compreendessem todos os detalhes.
302
Sabiam, com certeza, que alguma coisa estava errada, ou então por que
estaria eu correndo para o banheiro dez vezes por dia, e por que estaria aquele homem assustador
berrando comigo?) Rumávamos para Nova York deixando um rastro de Kotex ensangüentados para
os peixes.
A meus olhos, com treze anos de idade, o lie de France era o navio mais romântico do mundo,
porque foi apresentado em These foolish things — aquela canção sonhadora e romântica (tocada por
meu sonhador e romântico pai ao piano):
”Um piano tilintando no apartamento ao lado Aquelas palavras gaguej antes que te diziam O que
meu coração queria dizer...”
(A poesia dom que fui criada!) Em algum ponto dessa canção, ”O lie de France, com todas as
gaivotas ao redor. . .” é mencionado, em sonho. Eu nem sabia que as gaivotas estariam mergulhando
atrás de meu Kotex sanguinolento. Tampouco sabia que, na altura em que embarcasse, o lie de
France estaria muito mais desgastado, jogando e pinoteando como uma banheira velha, levando
quase todos os passageiros a marearem. Os camareiros enlouqueciam. O refeitório se mostrava
praticamente vazio em todas as refeições, e as campainhas, pedindo serviço nos quartos, não
paravam de tocar. Vejo a mim mesma, com treze anos e gorducha, agarrada à minha bolsa cheia de
Kotex, nos conveses balouçantes e inclinados, e sangrando por todo o caminho de volta a Manhattan.
Senhoras e senhores, minha menarca.
Um ano e meio depois, eu me matava de fome e minhas regras haviam parado, sem mais aquela. A
causa? Medo de ser mulher, como afirmou o Doutor Schrift. Ora essa, e por que não? OK. Eu tinha
medo de ser mulher. Não tinha receio do sangue (realmente ansiava por isso — pelo menos até o
momento em que berraram comigo, por sua causa), mas sim de todas as besteiras que vinham
conjuntamente com ele. Como a de me dizerem que, se tivesse filhos, jamais seria artista, como a
amargura de minha mãe, como a concentração cacetérrima de minha avó sobre o que se comia e se
excretava, como a de algum garoto de cara gorda a perguntar se pretendia ser secretária. Secretária!
Estava decidida a nunca aprender datilografia. (E nunca aprendi.
303

Na faculdade Brian datilografava meus trabalhos. Mais tarde, catei milho com dois dedos, ou paguei
para que datilografassem por mim. Oh, isso me causou grande inconveniência, custou-me somas
tremendas de dinheiro — mas o que são o dinheiro e a inconveniência, quando se tem um princípio
em jogo? E eis o princípio em jogo: eu não era e jamais seria datilógrafa. Até para mim mesma, não
importa o quanto isso teria facilitado minha vida.)
Assim sendo, se a menstruação significava que eu tinha de datilografar, eu pararia de menstruar! E
pararia de datilografar! Ou as duas coisas! E se ter filhos significava que era preciso ficar sentada em
casa, enfurecendo-me, nesse caso não teria filhos! Cortaria fora o nariz, para ficar com o rosto
pavoroso. Jogaria fora o bebé, na água em que lhe houvesse dado banho. E isso, está claro, constituiu
outro motivo pelo qual me achava em Paris. Eu me separava de tudo — família, amigos, marido —
só para provar que era livre. Livre como um satélite posto no espaço exterior em órbita errada. Livre
como um seqüestrador que pulasse de pára-quedas sobre o Vale da Morte.
Recolhi o resto do rolo de papel higiénico, enfiei-o na bolsa e parti de volta a meu quarto. Mas em
que andar ficava, afinal? Eu me esquecera. Todas as portas pareciam iguais. Subi correndo dois
lances de escadas e parti às cegas para a porta do canto. Escancarei-a. Lá estava um homem gordo e
de meia-idade, nu, sentado na cadeira, cortando as unhas do pé. Olhou-me com leve surpresa.
— Desculpe-me! — disse eu e bati a porta, afobada. Subi correndo mais um lance de escadas,
encontrei meu quarto e tranquei a porta. Não podia esquecer-me da expressão no semblante do
homem. Divertimento, mas não choque. Um sorriso tranqüilo, como o de Buda. Ele não ficara
alarmado, em absoluto.
Existiam, portanto, pessoas que se levantavam ao meiodia, aparavam as unhas e sentavam-se,
nuas, num quarto de hotel, sem encararem cada dia como se fosse um apocalipse. Espantoso! Se
alguém houvesse irrompido em meu quarto e me achasse nua, aparando as unhas, eu teria morrido de
choque. Teria, mesmo? Talvez fosse mais forte do que imaginava.
Mas era, também, mais suja do que imaginava. A despeito do que Auden afirma, dizendo que
todas as pessoas adoram o cheiro de seus próprios peidos, meu fedor começava a ofender as narinas.
Como não dispunha de Tampax,
304
não podia tomar banho, mas era preciso tomar alguma providência quanto ao cabelo, que pendia
inerme, em feixes gordurosos. Começava a coçar, como se estivesse com pulgas. Nova partida.
Lavaria o cabelo, pelo menos, encharcar-me-ia de perfume como as cortesãs cheirosas de Versailles,
e decolaria. Para onde, porém? À procura de Bennett? À procura de Adrian? À procura de Tampax?
À procura de Isadora?
— É só calar a boca e lavar os cabelos — declarei, para que pudesse ouvir. — As coisas mais
importantes vêm primeiro.
Por sorte, dispunha de muito xampu, e embora a pia fosse pequena e a água estivesse fria, lavar os
cabelos me deu uma sensação de estar no comando das coisas.
Uma hora depois tinha feito as malas, estava vestida, maquilada e amarrara um lenço sobre os
cabelos úmidos. Coloquei os óculos escuros para me proteger ainda mais do mau-olhado.
Improvisara outra toalha higiénica com papel e prendera-a às calcinhas. Não era um arranjo dos mais
cómodos, mas ainda assim eu estava pronta a pagar a conta, carregar o trambolho da mala e
enfrentar o mundo.
Graças a Deus pela luz do sol, pensei, ao sair para a rua. Ex-druida que era, sabia agradecer aos
deuses pelos pequenos favores. Conseguira sobreviver àquela noite! Tinha até dormido! Por
momentos, dei-me ao luxo de pensar que tudo acabaria bem.
Nada de pensar, disse a mim mesma. Nada de pensar, nem de analisar, e nada de se preocupar.
. Basta concentrar-se em chegar a Londres, controlar-se. Basta atravessar este maldito dia.
Arrastei a mala até uma drugstore, comprei Tampax, e depois arrastei-me de volta ao café da
noite anterior na Place Saint-Michel. Deixei a mala ao lado de uma mesa, enquanto descia para o
banheiro, a fim de colocar um Tampax. Tive uma pontada momentânea de preocupação por haver
largado a mala, mas depois pensei: ao diabo com ela. Seria um presságio. Se a mala continuasse lá
ao meu regresso (adequadamente tampada com Tampax), nesse caso tudo estaria bem.
E estava.
Sentei-me ao lado dela e pedi uma xícara de cappuccino e um brioche. Era quase uma hora da
tarde e eu me sentia calma, quase eufórica. Como nossa felicidade depende de pouco! Uma loja
aberta, a mala que não fora roubada, uma xícara de cappuccino! De repente eu me apercebia
305
de todos os pequenos prazeres de me achar viva. O paladar soberbo do café, a luz que vinha aos borbotões, as
pessoas parando nas esquinas para que as possamos admirar. Tinha-se a impressão de que todo o
Quartier Latin havia sido tomado por americanos. À minha direita e à minha esquerda, ouvia
conversas sobre os requisitos para fazer o curso na Universidade de Michigan e os perigos de dormir
nas praias da Espanha. Havia um grupo turístico de mulheres negras e de meia-idade, chapéus
floridos, atravessando a Place Saint-Michel rumo ao Sena e à Notre-Dame. Havia casais americanos
jovens, com criancinhas e mochilas. ”Picasso com certeza tinha um fetiche por seios. . .”, dizia um
tipo magro, à la Oscar Wilde, à companheira (envergando o último modelo de tudo o que Cardin
fazia). Que cena! Como os peregrinos de Cantuária, de Chaucer. A Mulher de Bath como senhora
americana e negra, fazendo peregrinação a Notre-Dame; o Cavalheiro como garoto universitário,
rosto gentil e barba loura, levando um exemplar de O profeta, a Prioresa como encantadora estudante
de história da arte, recém-saída de um cotillon ou dois, e Sarah Lawrence (vestida em jeans sujos,
para reduzir seu passado e perfil aristocrático); o Monge Lascivo como pregador de esquina,
recomendando a macrobiótica e os estilos de vida naturais; o Frade como convertido, cabelos
amarrados na cabeça, em nó, a consciência de Krishna; o Moleiro como ex-ativista político da
Universidade de Chicago, que distribuía agora literatura do movimento feminista francês. .. (”Por que
você é feminista?”, perguntei recentemente a um camarada que conheço e que é muito ligado ao
movimento. ”Porque é o melhor meio que conheço de dar uma trepada, nos dias de hoje”, explicou
ele.) Chaucer estaria bem em casa, por aqui. Nada que não pudesse enfrentar.
Sinto-me tão fresca e serena, nesse momento, que resolvo divertir-me antes que o pânico regresse.
Com que, então, eu não estava grávida, afinal de contas. Em certo sentido, era triste — a
menstruação sempre se mostrava um pouco triste —, mas era, também, um novo começo. Eu tinha
merecido outra oportunidade.
Pedi outro café e fiquei observando o desfile. Todos aqueles inocentes no exterior! Um casal se
beijava na esquina e fiquei a vê-los, pensando em Adrian. Fitavam-se um nos olhos do outro, como se
o segredo da vida estivesse ali. O que é que os enamorados vêem, um nos olhos do outro, aliás?
Vêem-se mutuamente? Pensei em minha idéia doida de que Adrian era meu duplo mental, e em como
viera a
306
revelar-se outra coisa. Papageno para minha Papagena. Mas talvez fosse a mais ilusória de todas
as minhas ilusões. As pessoas não nos completam. Nós nos completamos a nós mesmos. Se não
tivermos o poder de nos completarmos, a procura pelo amor se torna uma procura de auto-
aniquilamento; e, nesse caso, buscamos convencer-nos de que o auto-aniquilamento é amor.
Eu sabia que não sairia correndo atrás de Adrian, seguindo para Hampstead. Sabia que não ia
encangalhar minha vida por causa de uma grande paixão autodestruidora. Havia uma parte de mim
que queria ir, e outra que desprezava Isadora por não ser o tipo de mulher que dá tudo de si pelo
amor. Mas de nada adiantava fingir. Eu não era esse tipo de mulher. Não. Não tinha inclinação para
o auto-aniquilamento total. Jamais seria uma heroína romântica, talvez, mas continuaria viva. E era
isso tudo quanto importava no momento. Iria para casa e escreveria acerca de Adrian. Eu o manteria
comigo, desistindo dele.
Era verdade que sentia desesperadamente sua falta, às vezes. Observava o casal a se beijar e dava
quase para sentir a língua de Adrian em minha boca. E tinha todos os outros sintomas imbecis,
igualmente: continuava achando que via o automóvel dele do outro lado da rua e talvez mais tarde
quisesse me aproximar, a fim de examinar as placas. Por um instante, julguei tê-lo visto de costas, no
café, e depois me vi olhando para o rosto de algum desconhecido. Continuava a lembrar-me, em
momentos isolados, de seu cheiro, sua risada, suas piadas. . .
Mas isso passaria, com o tempo. Sempre passava, infelizmente. O machucado no coração que, no
começo, parece tão sensível ao menor toque, com o tempo se transforma em todas as tonalidades do
arco-íris e pára de doer. Esquecemonos dele. Chegamos a esquecer que temos coração, até que
apareça a vez seguinte. E é quando tudo acontece de novo e nos espantamos em verificar como foi
possível esquecer. Pensamos: ”Este é mais forte, este é melhor. . .”, porque, na verdade, não
conseguimos lembrar bem da vez anterior.
”Por que você não se esquece do amor e procura levar sua própria vida?”, Adrian perguntara. E eu
discutira com ele, mas talvez tivesse razão, afinal. O que o amor já fizera por mim, senão
desapontar-me? Ou talvez eu procurasse as coisas erradas, no amor. Queria perder-me em um
homem, deixar de ser eu, ser transportada ao céu em asas de empréstimo. Isadora ícaro, eis como
devia chamar-me.
307

E as asas emprestadas nunca permaneciam no lugar, quando precisava delas. Talvez eu devesse criar as
minhas próprias asas.
”Você tem seu trabalho”, disse ele, e tinha razão também nesse particular. Oh, ele estava certo,
por todos os motivos errados. Eu, pelo menos, dispunha de compromisso vitalício, uma profissão,
uma paixão que me orientava. Era, com certeza, mais de que a maioria das pessoas dispunha.
Tomei um táxi para a Gare du Nord, entreguei a mala, cambiei dinheiro e indaguei a respeito dos
trens. Eram quase quatro horas e haveria um trem-barco à noite, às dez horas. Não que fosse um dos
trens rápidos, de nome bacana, mas o único trem para Londres que podia pegar. Comprei a
passagem, ainda sem saber direito por que ia para Londres. Tudo quanto sabia era que tinha de dar o
fora de Paris. E havia coisas a fazer, em Londres. O agente com quem falar, diversas pessoas a
procurar. Outras pessoas viviam em Londres, além de Adrian.
Não tenho muita certeza de como perdi todo o resto da tarde. Li o jornal, andei, fiz uma refeição, e
quando escureceu voltei à estação e fiquei sentada, escrevendo no caderninho, enquanto esperava o
trem. Passara tanto tempo escrevendo em estações ferroviárias, quando morava em Heidelberg, que
estava quase começando a me sentir em casa, no mundo, outra vez.
Quando o trem chegou, pequenos grupos de pessoas amontoaram-se na plataforma. Estavam com
aquela expressão de desalento que os viajantes exibem quando estão partindo de algum lugar à hora
em que costumam deitar-se. Uma velha chorava e beijava o filho. Duas jovens americanas
enlameadas puxavam as malas sobre rolamentos de esferas. Uma alemã dava de comer ao bebé um
alimento tirado de um pote e o chamava de Schweinchen. Todos se pareciam a refugiados de guerra.
Eu também.
Fui carregando a mala enorme, embarcando, e depois arrastândo-a pelo corredor, procurando um
compartimento vazio. Finalmente encontrei um que tinha o cheiro de peidos antigos e cascas de
banana em decomposição. O fedor da humanidade, e eu contribuía com minha parte para aquele
fedor. O que não daria por um banho!
Suspendi a mala e quase consegui enfiá-la na prateleira. As juntas dos braços doíam, e foi quando
surgiu um jovem cabineiro, de uniforme azul, tirando a mala de minhas mãos. Com um só gesto,
enfiou-a na prateleira de cima.
308
— Obrigada — disse eu, procurando a bolsa, mas ele passou por mim sem esperar.
— Vai ficar sozinha? — perguntou, de modo ambíguo. Não ficou claro se ele perguntava se eu
queria estar sozinha ou se ia viajar só. Depois começou a baixar todas as cortinas. Quanta bondade,
pensei. Quer me mostrar como impedir que outras pessoas me amolem, como ficar com um
compartimento para mim. Exatamente quando estava a ponto de desistir das pessoas, aparecia
alguém e fazia um favor assim, sem mais aquela. Ele recolhia os braços das poltronas, preparando
uma cama para mim. Depois passou a mão pelos bancos a fim de indicar que aquele era um lugar
para deitar.
— Eu não sei se isso é justo com os outros — obtemperei, sentindo-me culpada por estar
ocupando todo um compartimento. Mas ele não compreendera uma só palavra, e eu não sabia
explicar-lhe em francês.
— Está seule? — voltou a perguntar, pondo a palma da mão em minha barriga e empurrando-me
na direção do banco. De repente, tinha a mão entre minhas pernas e tentava forçar-me a deitar.
— O que está fazendo? — berrei, pondo-me em pé e empurrando-o. Sabia muito bem o que ele
estava fazendo, mas precisava de alguns segundos para compreender.
— Seu porco! — cuspi-lhe. Ele dirigiu-me um sorriso acanalhado e deu de ombros, como a dizer
”não há mal em tentar”.
— Cochon! — berrei-lhe, traduzindo para que entendesse. Ele riu sem muita vontade. Não estava,
por assim dizer, a ponto de me estuprar, mas também não compreendia toda a minha afronta.
Afinal de contas eu estava sozinha, não?
Com verdadeira explosão de energia, saltei para o banco, agarrei a mala e quase a derrubei em
cima de minha cabeça. Retirei-me do compartimento como uma fúria, enquanto ele se limitava a ficar
ali, com aquele sorriso acanalhado e dando de ombros.
Fiquei furiosa comigo mesma, por ser tão crédula. Como podia ter-lhe agradecido, por tanta
consideração, quando qualquer idiota teria percebido que ele planejava me agarrar assim que as
cortinas estivessem arriadas? Eu era mesmo uma imbecil — a despeito de todas aquelas pretensões
de cosmopolitismo. Era tão cosmopolita quanto uma maldita garota de oito anos de idade. Isadora no
País das Maravilhas. A eterna palerma.
309
Puxa, como você é estúpida”, dizia a mim mesma, ao seguir pelo corredor procurando outro
compartimento. Queria, agora, um compartimento bem cheio, com freiras, uma família de doze
pessoas, ou tudo isso ao mesmo tempo. Desejava ter tido a coragem de dar-lhe uma boa porrada. Se,
ao menos, eu fosse uma daquelas mulheres escoladas, que portam latas de Mace, ou estudam caratê!
Talvez precisasse de um cão de guarda, um cachorro enorme, adestrado para todos os tipos de
serviços. Talvez fosse mais útil do que um homem.
Só quando me achava finalmente instalada, diante de um belo grupo familiar — mamãe, papai,
neném — é que me apercebi de como tinha sido engraçado aquele episódio. Minha foda sem zíper! O
meu desconhecido no trem! Ali tinha-me sido oferecida minha própria fantasia, a fantasia que me
mantivera cravada no assento vibratório do trem, por três anos, em Heidelberg, e em vez de me
acender, causara-me revolta!
Intrigante, não acham? Verdadeiro tributo aos mistérios da psique. Ou talvez minha psique
houvesse começado a mudar de um modo com que eu não contara. Já não havia coisa alguma
romântica acerca de desconhecidos nos trens. Talvez não houvesse mais coisa alguma romântica,
com relação aos homens todos.
A viagem a Londres mostrou-se um purgatório. Em primeiro lugar, havia meus companheiros no
compartimento: um professor americano caturra, sua mulher desmazelada e o bebê babão. O marido
foi quem começou com o interrogatório. Eu era casada? Que resposta podia dar a tal pergunta? Já
não sabia, de verdade. Podia ser uma situação fácil para uma criatura mais taciturna, mas eu sou
uma dessas idiotas que se sentem obrigadas a contar toda a história de sua vida a qualquer transeunte
que indagar.
Necessitei de toda a minha força de vontade para responder, na maior simplicidade:
— Não!
— E por que uma moça tão bonita como você ainda não se casou?
Sorri. Isadora Esfinge. Devia começar com uma diatribe sobre o casamento e a condição das
mulheres? Devia atrair solidariedade, dizendo que meu amante me dera o fora? Devia mostrar-me
corajosa e dizer que meu marido se afogara no jargão, em Viena? Devia dar a entender mistérios
lésbicos além do domínio e percepção deles?
310
— Não sei — disse, e me esforçava tanto para sorrir que quase estalei o rosto.
Era mudar depressa o assunto, pensava, antes que conte a eles. Se existe alguma coisa que não sei
fazer direito, é me esconder.
— Para onde vocês vão? — perguntei, num assomo de inteligência.
Rumavam para Londres, onde passariam as férias. O marido falava e a mulher dava de comer ao
bebê. O marido emitia opiniões e a mulher mantinha a boca fechada. ”Por que uma moça bonita
como você não é solteira?”, pensava eu. Oh, cale a boca, Isadora, não se intrometa. . . As rodas do
trem pareciam estar dizendo: cale a boca. . . cale a boca. ..
O marido era professor de química, lecionava em Toulouse. A ele agradava o sistema francês.
— Disciplina — observou. Precisávamos de mais disciplina nos Estados Unidos, eu não achava?
— Não acho — rebati, e ele pareceu apoquentado. Na verdade, ao que lhe informei, eu também
lecionava em faculdade.
— É mesmo? — e isso me conferia nova posição. Eu podia ser uma mulher solitária, que chamava
a atenção, mas, pelo menos, não era uma lavadora de mamadeiras, como sua esposa.
— Você não acha que nosso sistema educacional americano tem interpretado mal o significado de
democracia? — perguntou-me, cheio de pompa e bile.
— Não — rebati —, não concordo.
Oh, Isadora, você está sendo ríspida. Quando foi a última vez que disse ”não concordo. ..” com
tanta calma? Começo a gostar de mim, e gostar muito, é o que penso.
— Nós ainda não descobrimos de verdade como fazer a democracia funcionar nas escolas —
assevero —, mas isso não é motivo bastante para voltar ao sistema elitista como o que eles têm aqui.
. (E faço gesto rápido na direção do campo às escuras, do outro lado da janela do trem) — . . .
afinal de contas, os Estados Unidos foram a primeira sociedade, na história, a enfrentar esses
problemas com uma população heterogênea. Não é como a França, a Suécia e o Japão...
— Mas você acha realmente que a solução está em sermos mais permissivos?
Ah, permissividade — a palavra-chave do puritano.
311

— Acho que temos pouca permissividade verdadeira — contraponho — e demasiada desorganização


burocrática mascarada como permissividade. A permissividade verdadeira, a permissividade
construtiva, é outra coisa muito diferente. — Obrigada, D. H. Lawrence Wing.
Ele parecia perplexo. O que eu queria dizer? (A esposa embalava o bebê e continuava calada.
Parecia imperar um acordo tácito entre os dois, de que ela ficaria de boca fechada e ele se
apresentaria como o intelectual da família. É fácil ser intelectual, quando a esposa se mostra muda.)
O que eu queria dizer? Referia-me a mim mesma, é claro. Queria dizer que a permissividade
verdadeira promove a independência. Queria dizer que estava decidida a tomar meu destino nas
próprias mãos, que ia parar de ser uma escolar. Mas não o disse. Em vez disso, pus-me a boquejar
sobre educação e democracia e todos os tipos de imbecilidades generalizadas.
A conversação esmagadoramente cacete estendeu-se até a metade do caminho até Calais. Depois
apagamos a luz e fomos dormir.
O chefe do trem nos despertou em hora sacrílega, a fim de apanharmos um vapor. Desembarcados
do trem, ficamos em meio a nevoeiro tão espesso, e eu com tanto sono, que se alguém me fizesse
andar diretamente para o canal, não teria presença de espírito para resistir. Depois disso, lembro-me
de arrastar a mala por corredores sem fim, tentar dormir em uma cadeira dobradiça em certo convés
inclinado, esperando, em fila, na umidade da madrugada, enquanto os funcionários da imigração
examinavam nossos documentos. Fiquei fitando os penhascos brancos de Dover por duas horas, os
olhos cheios de sono, enquanto fazíamos aquela fila, aguardando que os passaportes fossem
carimbados. Depois veio um corredor de cimento, com quase dois quilômetros de comprimento, pelo
qual arrastei a mala, a fim de chegarmos ao trem. Quando as ferrovias britânicas finalmente vieram
nos salvar, o trem se arrastou, parou, e se arrastou, por quatro horas até Waterloo. A paisagem vista
pelas janelas era desolada e estava encoberta por uma película de sujeira. Pensei em Blake e nos
moinhos satânicos e escuros. Pelo cheiro, dava para dizer que era a Inglaterra.
312

19

Um fim novecentista
”... Não ouvi as afirmações didáticas do autor, mas os gritos baixos de chamamento, dados pelas personagens,
enquanto seguem, desgarradas, pelas matas escuras de seu destino.”
D. H. Lawrence

O hotel era um edifício antigo, vitoriano e cheio de rangidos, perto de


Saint James. Tinha uma gaiola
velha que servia de elevador e cricrilava como um grilo enlouquecido, corredores desertos e janelas
enormes em cada patamar.
Indaguei à mesa de recepção pelo Doutor Wing.
— Não temos ninguém com esse nome, madame — disse o porteiro compridão e magro, que se
parecia a Bob Cratchit.
Meu coração esfriou.
— Tem certeza?
— Olhe, pode examinar o registro. . . se quiser. . . — e me entregou o livro de registro de
hóspedes. Havia apenas cerca de dez, naquela casa mal-assombrada. Dava para ver o motivo. A
movimentada Londres passara por ali, muito movimentada, mas não parará.
Examinei o registro. Strawbridge, Henkel, Harbellow, Bottom, Cohen, Kinney, Watts, Wong. . .
era esse. Tinha de ser Wong. Eles, naturalmente, escreviam o nome dessa maneira. Todos os chineses
se parecem, e todos os nomes chineses são Wong, na Inglaterra. Senti grande solidariedade por
Bennett, criatura que tivera de agüentar aquele tipo de merda por toda a vida, sem se amargurar.
— Que me diz deste hóspede no quarto 60? — perguntei, apontando o nome mal grafado.
313

— Oh, o cavalheiro japonês?


Merda, pensava eu. Eles nunca sabem distinguir japoneses e chineses.
Sim, pode telefonar pata o quarto dele, por favor?
— A quem devo anunciai?
— A esposa dele.
O termo ”esposa”, ao que parece, tinha peso ali, em pleno século XIX. Meu amigo Bob Cratchit
só faltou dar um pulo para pegar o telefone.
Talvez tosse, mesmo, um cavalheiro japonês. Toshiro Mifune, quern sabe? E completo, com
espada de samurai, e cabelos nai cabeça? Um dos estiradores de Rashomon? O fantasma de Yukio
Mishima, cofli «s ferimentos ainda escorrendo sangue?
Sinto muito, madame não atendem — disse o porteiro.
— Posso esperar no quarto?
— Como quiser, madame.
Ato continuo, empurrou a campainha na mesa e chamou o carregador de malas. Outro tipo
dickensiano. Este era mais baixo do que eu, o cabelo luzidio, de tanta vaselina.
Acompanhei-o até a gaiola do elevador. Muitos minutos de cncnlaçao depois, chegai^ ao sexto
anular.
Era o quarto de Bennett, sem dúvida: seus paletós e gravatas muito bem pendurados no guarda-roupa. Uma pilha
de programas de teatro em cima da gaveteira, a escova de dentes e o xampu na orla da pia antiquada. Os chinelos
no chão. A roupa de baixo e as meias secando sobre o aquecedor Eu quase não tinha sensação alguma de que
houvesse estado longe dali. E estivera? Seria Bennett tão capaz de se ajustar à minha ausência, freqüentando
calmamente os teatros e voltando para casa e lavando as meias? A cama era de solteiro. Não fora arrumada, mas
quase não parecia desarrumada.
Folheei a pilha de prograin» teatrais. Ele vira todas as peças de Londres. N*, endoidara, não fizera loucura
alguma. Era o mesmo Bennett, previsível, de sempre.
Suspirei com alívio, ou seria de desapontamento?
Preparei um banho e tirei todas as roupas sujas, deixando-as cair em fileira, pelo cl)5o.
A banheira era dessas compridas, fundas, e tinha os pés em formato de garras. Um verdadeiro
sarcófago. Afundei nela até o queixo.
Olá, meus pés — quando estes surgiram à superfície, na outra extremidade. Os braços estavam machucados de
tanto arrastar aquela mala, os pés tinham calos. A água tão quente que, por momentos, pensei que ia desmaiar.
”AFOGADA NA BANHEIRA DO MARIDO ABANDONADO”, escrevi mentalmente, como manchete para o National
Enquirer. Não fazia a mais remota idéia do que ia acontecer em seguida e, por momentos, não me importava.
Flutuei com facilidade na banheira funda, achando que algo estava diferente, algo se mostrava
estranho, mas não consegui calcular o que fosse.
Olhei para meu corpo. Era o mesmo. O V róseo de minhas coxas, o triângulo de cabelos
enrodilhados, o cordão de Tampax pescando na água como um herói de Hemingway, a barriga
branca, os seios semiflutuantes, os mamilos empinados e corados, por causa da água fumegante. Um belo corpo.
Meu. Resolvi ficar com ele.
Abracei-me. O que me faltava era o meu medo. A pedra fria que usara dentro do peito, por vinte e nove anos de
vida, havia sumido. Não de repente, e talvez não se houvesse mandado para sempre.
Mas tinha sumido.
Talvez eu tivesse vindo mesmo para tomar banho. Talvez batesse em retirada antes que Bennett regressasse. Ou
talvez fôssemos juntos para casa, para examinar a questão. Ou talvez fôssemos juntos para casa e lá nos
separássemos. Não estava claro como ia ser o fim. Nos romances do século XIX, eles se casam. No romance deste
século, divorciam-se. Dá para pensar num final em que não se faça nenhuma das duas coisas? Rio de mim mesma,
por ser tão literata. ”A vida não tem enredo”, eis um de meus ditos favoritos. Pelo menos, não tem enredo quando
se está vivo. E, depois de morrer, o enredo não é de nossa conta.
O que quer que acontecesse, todavia, eu sabia que ia sobreviver. Sabia, acima de tudo, que continuaria
trabalhando. Sobreviver significava renascer repetidas vezes. Não era fácil, e sempre se mostrava doloroso, mas não
restava qualquer outra escolha, com exceção da morte.
O que diria eu se Bennett entrasse, naquele momento? ”Só vim tomar banho?” Nua como me
achava, como poderia ser tão desligada e neutra? A gente consegue ser neutro, quando está sem roupa?
”Se você rastejar, volta à estaca zero”, dissera Adrian. Eu sabia com certeza que não ia rastejar,
nem implorar. Mas era tudo o que sabia. E bastava.
Abri mais a água quente e ensaboei os cabelos.

Pensava em Adrian, soprei-lhe bolhas de sabão que continham beijos. Pensei no inventor desconhecido da
banheira. Tinha certeza de que fora uma mulher. Quem inventara a banheira, um homem?
Cantarolava baixinho e enxaguava o cabelo. Quando voltava a enxaguá-lo, Bennett entrou.

O AUTOR E SUA OBRA

Nascida em Nova York, em 1942, formada em língua e literatura inglesa pela Universidade de
Colúmbia, Erica Jong iniciou sua carreira com dois livros de poesias, ”Fruits and vegetables” (1971) e ”Half lives”
(1972). Seu sucesso junto ao público, contudo, veio em 1973, com a publicação deste seu primeiro romance, ”Medo
de voar”.
Quando começou a escrevê-lo, ela própria o achou audacioso e explícito demais no plano sexual. Mas o
escândalo compensou; hoje, as aventuras amorosas que descreveu (autobiográficas, segundo os críticos) venderam,
só nos Estados Unidos, cinco milhões de exemplares e lhe renderam por volta de dois milhões e meio de dólares,
além de um apelido: ”Henry Miller de saias”. Na verdade, o famoso escritor (1891-1980) referindo-se a ”Medo de
voar” afirmou: ”Esse livro é a contrapartida feminina do meu ’Trópico de Câncer’”.
Mas a escritora, em suas entrevistas, costuma reagir: — Para começo de conversa, na sua maioria, os críticos de
Nova York são homens de meia-idade, gordos e carecas, enclausurados em seus casamentos infelizes. Eles têm que
odiar I s adora, minha heroína. E, por tabela, a mim. Tudo o que eu faço é unir realidade e fantasia. Misturo os dois
ingredientes e sigo em frente. Mas o que me aborrece é insinuarem que minha vida é que está nesses meus livros.

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