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GERALDO JORDÃO PEREIRA (1938-2008) começou sua carreira aos 17 anos, quando foi trabalhar
com seu pai, o célebre editor José Olympio, publicando obras marcantes como O menino do dedo
verde, de Maurice Druon, e Minha vida, de Charles Chaplin.
Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propósito de formar uma nova geração de leitores e
acabou criando um dos catálogos infantis mais premiados do Brasil. Em 1992, fugindo de sua linha
editorial, lançou Muitas vidas, muitos mestres, de Brian Weiss, livro que deu origem à Editora
Sextante.
Fã de histórias de suspense, Geraldo descobriu O Código Da Vinci antes mesmo de ele ser lançado
nos Estados Unidos. A aposta em ficção, que não era o foco da Sextante, foi certeira: o título se
transformou em um dos maiores fenômenos editoriais de todos os tempos.
Mas não foi só aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o próximo, Geraldo desenvolveu
diversos projetos sociais que se tornaram sua grande paixão.
Com a missão de publicar histórias empolgantes, tornar os livros cada vez mais acessíveis e despertar
o amor pela leitura, a Editora Arqueiro é uma homenagem a esta figura extraordinária, capaz de
enxergar mais além, mirar nas coisas verdadeiramente importantes e não perder o idealismo e a
esperança diante dos desafios e contratempos da vida.
Título original: The Magic Strings of Frankie Presto
Copyright © 2015 por Asop, Inc.
Copyright da tradução © 2016 por Editora Arqueiro Ltda.
A295c
A noite inteira
No original: Here’s to all the boys who came along/Carrying soft guitars in cardboard cases/All night
long/And do you wonder where those boys have gone?
1
Ele está ali dentro do caixão. Na verdade, já é meu. Mas um bom músico
aguarda respeitosamente até as notas finais serem tocadas. A melodia desse
homem acabou, mas os que estão de luto por ele vieram de muito longe
acrescentar umas poucas estrofes. Uma espécie de coda, de conclusão.
Vamos ouvir.
O céu pode esperar.
Eu assusto você? Não deveria. Não sou a morte. Um ser encapuzado,
fedendo a putrefação? Como diriam os jovens: me poupe.
Tampouco sou o Grande Juiz que todos vocês temem no final. Quem sou
eu para julgar uma vida? Estive entre os maus e os bons. Não proponho
veredito para os erros que este homem cometeu nem avalio suas virtudes.
Sei coisas boas sobre ele: os feitiços que teceu com seu violão, as
multidões que encantou com sua voz grave e sussurrada.
As vidas que mudou com suas seis cordas azuis.
Eu poderia compartilhar tudo isso.
Ou poderia descansar.
Sempre reservo tempo para descansar.
Você me acha afetada? Às vezes sou. Também sou meiga e
tranquilizadora, dissonante e irada, difícil e simples, calmante como areia a
escorrer e perfurante como uma alfinetada.
Sou a Música. E estou aqui pela alma de Frankie Presto. Não toda ela. Só
a porção muito grande de mim que ele pegou quando veio a este mundo. Por
mais bem utilizada que eu seja, sou um empréstimo, não uma posse. Você me
devolve ao partir.
Vou recolher o talento de Frankie para espalhar por almas recém-nascidas.
E farei o mesmo com o seu algum dia. Existe um motivo para você dar uma
olhadinha para o alto quando ouve uma melodia pela primeira vez ou bater o
pé ao som de uma percussão.
Todos os humanos são musicais.
Por que outro motivo o Senhor daria a vocês um coração pulsante?
Claro que alguns de vocês recebem mais de mim do que outros. Bach,
Mozart, Tom Jobim, Louis Armstrong, Eric Clapton, Philip Glass, Prince –
para não citar muitos. Senti, quando cada um deles nasceu, suas mãozinhas
vindo a mim, me agarrando. Vou contar um segredo: é assim que os talentos
são concedidos. Antes de os recém-nascidos abrirem os olhos, fazemos um
círculo ao redor deles, aparecendo como cores brilhantes, e, quando fecham
as mãozinhas pela primeira vez, na verdade estão agarrando as cores que
acharam mais atraentes. Aqueles talentos ficam com eles pela vida toda. Os
sortudos (na minha opinião, claro) me escolhem. Música. Dali em diante, vivo
dentro de cada cantarolar e assobio, de cada corda dedilhada ou tecla de piano
pressionada.
Não posso manter você vivo. Careço de tal poder.
Mas impregno você.
E, sim, impregnei o homem no caixão, meu misterioso e incompreendido
Frankie Presto, cuja morte no momento em que se apresentava em um festival
foi testemunhada pela multidão que lotava a plateia, o corpo ascendendo até
as vigas antes de cair no palco, uma casca sem vida.
Aquilo causou um rebuliço e tanto. Hoje, ao se reunirem nessa basílica
centenária para o funeral, as pessoas ainda perguntam: “Quem matou Frankie
Presto?” Porque ninguém, dizem elas, morre daquele jeito por si.
Isso é verdade.
Você sabia que o primeiro nome dele era Francisco? Os empresários
tentaram esconder. Acreditavam que “Frankie” era mais palatável para os fãs
americanos. Do jeito que as garotas gritavam nos shows – “Frankie! Eu te
amo, Frankie!” –, suponho que estavam certos. Nomes curtos são mais
adequados para a histeria. Mas você não pode mudar seu passado, não
importa quanto elabore seu futuro.
Francisco era seu nome verdadeiro.
Francisco de Asís Pascual Presto.
Gosto desse nome.
Eu estava lá na noite em que lhe foi dado.
É verdade. Conheço os detalhes desconhecidos do nascimento de
Frankie Presto, aqueles que historiadores e críticos de música – e até ele
mesmo – sempre rotularam como um mistério.
Posso contar se você quiser.
Isso o surpreende? Minha sugestão de começar com uma história tão
cobiçada? Bem, por que adiar? Não sou um dos talentos “lentos”, como o
Raciocínio ou a Matemática. Sou a Música. Se o abençoo com o dom de
cantar, você já consegue cantar na primeira tentativa. Composição? Minhas
melhores frases residem, em geral, nas notas de abertura. Eine kleine
Nachtmusik – Dum, da-dum, da-dum da-dum da-dum –, de Mozart? Ele
desatou a rir quando tocou aquilo no pianoforte. Levou menos de um minuto.
Você quer saber como Frankie Presto veio a este mundo?
Vou contar.
Simples assim.
Aconteceu aqui na Espanha, em Villarreal, uma cidade próxima ao mar,
fundada por um rei há mais de sete séculos. Prefiro começar com uma
fórmula de compasso; por isso, vamos fixar em agosto de 1936, num tempo
errático de 6/5, pois era um período sangrento da história do país. Guerra
civil. Uma coisa mencionada aos sussurros como El Terror Rojo – o Terror
Vermelho – estava chegando às ruas e, mais especificamente, àquela igreja. A
maioria dos padres e freiras já tinha fugido para a zona rural.
Lembro bem daquela noite. (Sim, tenho memória. Sem membros, mas
com uma memória infindável.) O céu trovejava, a chuva martelava no
calçamento. Uma jovem gestante entrou apressada para rezar pelo filho que
carregava. Seu nome era Carmencita. Era esguia, com maçãs do rosto
salientes e farta cabeleira ondulada, da cor de uvas pretas. Acendeu duas
velas, fez o sinal da cruz, colocou as mãos sobre a barriga protuberante e
dobrou-se ao meio de dor. O trabalho de parto havia começado.
Ela gritou. Uma jovem freira com olhos cor de avelã e dentes separados
veio correndo e ajudou-a a se levantar.
– Tranquila – disse a freira, com as mãos em concha envolvendo o rosto
de Carmencita. Porém, antes que a mulher pudesse ir para o hospital, as
portas da frente foram arrombadas.
Os invasores haviam chegado.
Eram revolucionários e milicianos em fúria contra o novo governo.
Tinham vindo destruir a igreja, como estavam fazendo por toda a Espanha.
Estátuas e altares eram profanados, santuários eram reduzidos a cinzas, padres
e freiras eram assassinados em locais sagrados.
Quando um horror desses acontece, as novas vidas, chocadas, deviam
deter-se. Mas não. Nem a alegria nem o terror adiam um nascimento. O futuro
Frankie Presto não tinha conhecimento da guerra do lado de fora do ventre de
sua mãe. Ele estava pronto para fazer sua entrada.
E eu idem.
A freira apressou Carmencita, levando-a, por uma escada secreta
construída séculos antes, até uma câmara oculta. Enquanto os invasores
destruíam a igreja lá embaixo, ela deitou a mãe de Frankie sobre um cobertor
cinza num canto iluminado por velas. As duas mulheres respiravam rápido,
criando um ritmo: inspira, expira.
– Tranquila, tranquila – murmurava a freira.
A chuva golpeava o telhado como um malho. Os trovões eram como
timbales. No térreo, os invasores ateavam fogo ao refeitório e as chamas
crepitavam como centenas de castanholas. Os poucos que não haviam fugido
da igreja davam guinchos suplicantes, revidados pelas ordens rosnadas
daqueles que cometiam as atrocidades. Os graves e agudos das vozes, o
crepitar do fogo, o açoitar do vento, o tamborilar da chuva e o tonitruar dos
trovões criavam uma sinfonia irada, turbilhonando em um crescendo. No
momento em que os invasores escancararam a tumba de São Pascoal, prestes
a profanar seus ossos, os sinos no alto da basílica começaram a badalar,
fazendo com que todos erguessem o olhar.
Naquele exato instante, Frankie Presto nasceu.
As mãozinhas dele me agarraram.
E ele pegou um pedaço de mim.
Será que estou caprichando nessa narrativa? Devo considerar a
composição. Uma coisa é contar a história de um nascimento, outra bem
diferente é contar a vida inteira.
Vamos deixar o caixão e ficar um pouco lá fora, onde o sol matinal faz as
pessoas semicerrarem os olhos ao saírem dos carros, estacionados ao longo de
ruas estreitas. Até agora poucas chegaram. Deveria haver muito mais gente.
Pelas minhas contas (que são sempre exatas), Frankie Presto tocou com 374
bandas durante seu tempo na Terra.
Era de se imaginar que este seria um funeral concorrido.
Mas a verdade é que todo mundo entra numa banda nesta vida. Mas só
alguns tocam música. Frankie, meu discípulo precioso, era mais do que um
violonista, mais do que um cantor, mais do que um artista famoso que ficou
sumido por boa parte de sua existência. Quando criança, sofreu enormemente
e, por causa desse sofrimento, foi-lhe concedida uma dádiva. Um conjunto de
cordas que lhe deu o poder de mudar vidas.
Seis cordas.
Seis vidas.
Por essa razão, suspeito eu, essa despedida poderia revelar-se interessante.
E por isso ficarei para ouvir os enlutados falarem – a notável sinfonia de
Frankie, tocada por aqueles que o conheceram. Tem também a questão de sua
estranha morte e da figura sombria que o seguia pouco antes.
Quero ver isso resolvido.
A música anseia por resolução.
Mas, no momento, devo descansar. Tantas notas já compartilhadas… Está
vendo aqueles homens nos degraus da igreja, fumando cigarros? O de chapéu-
coco de tweed? Ele também é músico. Trompetista. Já teve dedos ágeis, mas
agora está velho e luta com a doença.
Escute-o por um momento.
Todo mundo entra numa banda nesta vida.
Frankie esteve na banda daquele homem em certa ocasião.
Marcus Belgrave
Trompetista de jazz da Marcus Belgrave and His Quintet; banda
de Ray Charles; músico acompanhante de McCoy Tyner, Dizzy
Gillespie, Ella Fitzgerald e outros
ME EMPRESTA O FOGO AÍ… HUM… HUM… OBRIGADO…
Não, não acredito nisso também. Ninguém morre assim. Mas estou
dizendo, Frankie estava metido em alguma parada estranha, magia, vodu,
alguma coisa. Nunca contei essa história para ninguém, mas juro que é
verdade.
Estávamos tocando num clube lá em Detroit, por volta de 1951 ou 1952,
na parte da cidade que chamavam de Black Bottom. Tinha um monte de
clubes legais por lá, mas, depois da guerra, ficou bem perigoso.
Enfim, estávamos tocando numa sexta-feira à noite, quatro sessões – oito,
dez, meia-noite e duas da manhã –, e Frankie estava conosco, um adolescente
esquelético que tocava violão. Foi bem antes de ele gravar hits ou mesmo de
começar a cantar. Cara, eu nem sabia o sobrenome dele. Era só “Frankie”. Ele
não deveria estar ali, por causa da pouca idade, mas não pediu dinheiro
algum, e para o dono do clube ele tinha 21 anos, entende? Deixamos ele
sentar no fundo, longe dos holofotes, com a cabeleira negra balançando nas
sombras. No fim da noite, ele descolou um prato de frango grátis e a gente,
um violonista grátis.
Eu sei, eu sei, já vou chegar lá. Como falei, o lugar era meio baixo nível,
cheio de maus elementos. A certa altura, tocávamos “Smokehouse Blues” e
podíamos ver um grandalhão barbudo sentado num canto com uma loura
bonita, novinha e muito maquiada, talvez tentando parecer mais velha.
Bem, algo deve ter acontecido, porque de repente o barbudo pulou da
cadeira, que voou para trás, empurrou a garota contra a parede e botou uma
faca na garganta dela. Parecia estar estrangulando a menina, berrando,
chamando-a de tudo que era tipo de nome. Tilly, nosso pianista, correu porta
afora – porque ele era assim, costumávamos chamá-lo de “Tilly Não-Quer-
Problemas” –, mas o resto de nós ficou lá, tocando riffs com aquele olhar
congelado, do tipo que não quer ver mas não consegue desviar os olhos. Era
quase como se, caso a gente parasse de tocar, o barbudo fosse matar a garota.
Ele berrava e agitava a faca enquanto ela sufocava, e ninguém fazia nada
porque o cara era grande.
De repente, Frankie saltou para a frente do palco e começou a tocar bem
alto e rápido. Tocava tão bem que as pessoas não sabiam para onde olhar.
Frankie berrou “Ei!”, e o barbudo olhou e rugiu alguma coisa, totalmente
bêbado. E Frankie tocou mais rápido. Eu, Tony e Elroy tentamos acompanhar,
mas ele estava fora de si, os dedos se moviam como se possuídos.
– Ei! – berrou Frankie de novo.
Ele tocava como um raio, e ainda assim cada nota era limpa e precisa. E
não é que o cara se virou e apontou a faca para Frankie, como se estivesse
aceitando o desafio?
– Mais rápido – resmungou o barbudo.
Frankie então acelerou. Algumas pessoas começaram a urrar, como se
fosse um jogo. E aí Frankie parou de tocar “Smokehouse” e começou “Flight
of the Bumblebee”, daquela ópera russa, sabe? Fiquei tentando achar as notas
no trompete e Elroy bateu o pedal tão forte que a droga do pé dele quase
saltou fora.
– Mais rápido! – berrou o cara de novo.
E lá estávamos nós, pensando que, por Deus do céu, ninguém conseguiria
tocar mais rápido que aquilo, quando, antes mesmo de terminarmos o
pensamento, Frankie acelerou de novo, os dedos correndo pelas cordas tão
ligeiro que eu jurava que um bando de marimbondos ia sair voando daquele
violão. Ele nem olhava para as mãos. Olhava fixamente para aquele cara, os
lábios entreabertos, o cabelo caindo por cima da testa, e então todos batiam
palmas, tentando seguir o ritmo da batida de Elroy. Frankie começou aquela
corrida à extremidade do braço do instrumento, até os trastes mais altos, e o
barbudo foi se aproximando, hipnotizado, chegando mais perto para ver
melhor. Frankie logo estava vidrado na garota de batom e ela nele, e, quando
ele sacudiu a cabeça, ela saiu correndo feito uma bala em direção à porta.
Naquele momento, todo mundo dentro do lugar urrava – como a multidão
costuma fazer nos grandes shows – e o moleque apertava os lábios nas notas
mais altas, soando superagudo e perfeito; o barbudo na beira do palco estava
fascinado, e Frankie apontou o braço do violão direto para ele, como uma
espécie de metralhadora – Rá-tá-tá-tá-tá-tá –, e então terminou. Fim. Ele girou
o violão sobre a cabeça e o local inteiro foi à loucura, resfolegando feliz e
comentando coisas do tipo “Aquele garoto toca muito” e “Ainda bem que
ninguém morreu”.
Frankie imediatamente desembestou porta afora, no encalço da garota.
Mas foi aí que a coisa aconteceu.
Olhei para o violão, e uma das cordas ficou azul. Juro. Azul como o miolo
de uma chama.
Pensei comigo mesmo: “Não sei de onde veio esse moleque. Talvez nem
queira saber.”
2
Aquela lourinha teria morrido se Frankie não tivesse feito o que fez. Mas
ele era jovem demais para entender essas coisas, ou até mesmo para saber que
possuía tal poder…
Desculpe-me.
Psiu, aqui em cima.
No parapeito.
Eu estava escutando um rádio tocar “Heart of Glass”, da Blondie, no beco
atrás da igreja. Já notou como a música soa diferente quando tocada ao ar
livre? Um violoncelo num casamento em um jardim, um órgão num parque de
diversões à beira-mar…
Isso é porque eu nasci ao ar livre, no quebrar das ondas do oceano e no
assobiar das tempestades de areia, no crocitar das corujas e no piar de alguns
pássaros. Eu viajo nos ecos. Cavalgo a brisa. Fui forjada na natureza, robusta
e bruta. Os homens apararam minhas arestas apenas para me deixar mais
bonita.
E deixaram. É verdade. Mas, ao longo da jornada, fizeram suposições,
como a de que quanto mais silencioso o ambiente, mais pura eu sou.
Bobagem. Um de meus discípulos, um saxofonista magricelo chamado Sonny
Rollins, tocou seu sax por três anos numa ponte de Nova York, suas ternas
melodias de jazz flutuando em meio ao ruído do tráfego. Eu sempre dava uma
parada por ali, nas vigas, só para ouvir.
Ou meu amado Frankie, nascido em meio à cacofonia de sinos badalando
e à destruição clamorosa. Lembra daquela noite dentro da igreja em chamas?
Carmencita, a mãe de Frankie, precisou impedir o filho recém-nascido de
chorar para que não fossem descobertos pela milícia assassina. Assim,
deitados juntos em um cobertor cinza, ela sussurrou uma canção no ouvido
dele. Era uma melodia do passado, muito conhecida na cidade de Villarreal,
escrita por um de seus filhos nativos, meu brilhante violonista Francisco
Tárrega. Carmencita cantarolou de modo impecável, como nenhuma canção
jamais fora cantarolada, as lágrimas caindo de suas bochechas sobre a pele do
recém-nascido.
O bebê não chorou.
Ainda bem, porque em questão de minutos os invasores chegaram ao altar
principal, e era possível ouvi-los destruindo tudo lá embaixo. Estavam se
aproximando e logo subiriam as escadas. A freira de olhos cor de avelã e
dentes separados tremia. Ela sabia que a jovem mãe não podia ser deslocada,
pois estava fraca demais. E havia sangue por toda parte.
Ela também sabia que os invasores matariam qualquer freira que
descobrissem ali.
Ela recitou uma prece, tirou o hábito por cima da cabeça e apertou os
dedos contra a chama das velas, apagando a luz.
– Silêncio – sussurrou.
Carmencita suspendeu a única melodia que cantaria para o filho.
A canção chamava-se “Lágrima”.
Claro que tudo isso parece disparatado se você só conheceu Frankie
Presto a partir de seus anos mais populares, no final da década de 1950 e
início da de 1960, quando o chamavam de “o próximo Elvis Presley”. Ele fez
discos que levaram a apresentações na televisão, shows barulhentos e uma
foto icônica, em que aparece sorridente, com um casaco esporte marrom e
camisa de colarinho rosa, inclinando-se para fora da janela de um carro para
autografar a mão de uma morena bonita.
Aquela foto, usada pela revista LIFE, virou capa de seu álbum mais
comercial, Frankie Presto Wants To Love You. O disco vendeu milhões de
cópias e rendeu mais dinheiro do que Frankie seria capaz de imaginar nos
tempos de infância nas ruas pobres de Villarreal, onde homens transportavam
laranjas em carroças puxadas por cavalo.
Naquele estágio de sua vida, Frankie era um artista americano, com um
empresário americano, e não havia vestígio de sotaque espanhol quando ele
cantava. Até o violão fora relegado a segundo plano. As canções que o faziam
cantar estavam, falando muito francamente, abaixo de seu talento.
Mas ainda não contei sobre o primeiro instrumento de Frankie, ou o cão
pelado, ou a menina na árvore, ou El Maestro, ou a guerra, ou Django, ou
Elvis, ou Hank Williams, ou por que Frankie desapareceu no auge da
popularidade.
Ou como ele morreu, alçando-se acima de uma plateia atônita.
A jornada de Frankie. Uma narrativa tão saborosa de compartilhar. Você
demonstra interesse. Isso é tentador. Sempre sou tentada por uma plateia.
Os carros estão chegando. O sol está se erguendo sobre a cidade. O padre
ainda está se vestindo em seus aposentos.
Temos tempo, suponho.
Então vamos direto ao ponto, como convém a um homem chamado
Presto. Hoje algumas pessoas exclamam “presto” após um truque de mágica.
Mas antigamente a palavra era usada por compositores para marcar meus
andamentos mais velozes, vivazes, saltitantes e energizados. A expressão
deriva do italiano e quer dizer “rápido”. Presto.
Também significa “pronto”.
Você está pronto?
Aqui está o resto da história de meu filho.
3
Você nasce na sua primeira banda. Sua mãe faz o solo. Ela divide o palco
com seu pai e seus irmãos. Ou talvez seu pai seja ausente, um banquinho
vazio sob um holofote. Ainda assim é um membro fundador, e, se um dia
aparecer, você vai ter que dar espaço a ele.
No decorrer da vida você vai entrar em várias bandas; em algumas por
amizade, em outras por romance, em outras ainda por questões da vizinhança,
da escola, do exército. Talvez vocês se vistam todos iguais, ou deem risada de
seu vocabulário particular. Talvez desabem em sofás no backstage, dividam
uma mesa numa sala de reuniões ou se aglomerem na cozinha de um navio.
Porém, em cada banda em que entrar, você vai tocar um trecho distinto, e ela
vai afetá-lo tanto quanto você a ela.
E, como em geral é o destino das bandas, a maioria vai se desfazer – por
causa da distância, de diferenças, do divórcio ou da morte.
A primeira banda de Frankie foi um duo – mãe e filho. Pela graça do
Senhor, eles não foram descobertos pelos invasores naquela noite e
conseguiram escapar da igreja incendiada. Porém, traumatizada pelos
acontecimentos, a mulher mudou-se para a extremidade oposta da cidade e
nunca falou sobre o que enfrentou. Naquele tempo, havia grande desconfiança
na Espanha; você guardava seus segredos para si. Quando os habitantes da
cidade passavam por ela, a mãe baixava a cabeça, evitando contato visual.
– Qué niño más guapo! – exclamavam.
Ele era realmente muito bonito.
– Gracias – agradecia baixinho, indo adiante apressada.
O bebê desenvolveu uma cabeleira negra. Com o passar dos meses, a
mulher notou que ele se virava sempre que os sinos badalavam. Certa vez
passaram por um músico de rua que tocava flauta, e o jovem Francisco
estendeu as mãos como que para agarrar mais de mim (embora ele já tivesse o
bastante de mim, obrigada).
Ele foi uma criança normal em muitos aspectos, exceto que, por um longo
tempo, não chorou. Mal fazia qualquer som. Eles moravam em um
apartamento de um só cômodo, em cima de uma panadería, e, quando
ficavam com fome, o que era frequente, a mãe descia e esperava o padeiro
idoso perguntar sobre o bebê calado.
– Não se preocupe, senhora, tenho certeza de que um dia ele vai falar –
dizia o homem, dando-lhe um prato de pãezinhos embebidos em azeite de
oliva.
Ocasionalmente ela ganhava dinheiro costurando ou lavando roupas. Mas
o país passava por uma guerra debilitante, o dinheiro era escasso, e, sozinha
com um bebê, era impossível conseguir trabalho. Mês após mês, ela mal se
mantinha.
– Vá à igreja, deixe que a ajudem – diziam os vizinhos.
Mas ela nunca foi. Não queria mais saber de igreja.
No primeiro aniversário de Frankie, para quebrar a monotonia, ela levou a
criança à única rua calçada da cidade, a Calle Mayor, e à Casa Medina, a
maior loja, para olhar coisas que eles jamais possuiriam. Demorou-se nos
carrinhos de bebê, desejando poder comprar um. A loja também exibia um
gramofone e, na saída, ela parou para admirá-lo. O proprietário, um homem
bem-vestido, com um bigodinho bem cuidado, adiantou-se, quem sabe
reparando que a mulher não usava aliança. Ele sorriu ao colocar um novo
disco de goma-laca.
– Escute, por favor, senhora – disse ele, orgulhoso.
O artista no disco era um violonista espanhol chamado Andrés Segovia. A
música tocada naquela manhã deixou o bebê Frankie fascinado. Sua cabeça
inclinou-se. As mãozinhas se cerraram.
E, quando a canção acabou, ele chorou.
Ruidosamente.
A voz do bebê era tão poderosa quanto a de um homem adulto. O
proprietário fez uma careta. Os clientes fecharam a cara. A mãe,
envergonhada, sacudiu a criança de modo severo, sibilando:
– Silêncio!
Mas o ruído lancinante continuou, e tão forte que dava para ouvir de ponta
a ponta da loja. Um vendedor pegou um doce num recipiente no balcão e
colocou nos lábios de Frankie para fazê-lo parar, mas a criança agitou as mãos
de modo alucinado e chorou ainda mais alto.
E então o proprietário, perturbado, colocou o braço do gramofone no
disco.
Segovia tocou de novo.
E Frankie ficou em silêncio.
Qual era a canção?
“Lágrima”.
Daquele dia em diante, o bebê nunca mais ficou contente. Chorava o
tempo todo. Não dava trégua. Nem a cama nem o cobertor acalmavam-no.
Gemia mais alto que os galos ou os cachorros do beco. Parecia gritar por algo
que jamais poderia ter.
– Chega! – berravam os vizinhos pelas janelas. – Dê leite para ele! Faça-o
parar!
Mas nada parecia funcionar. Ele uivava noite após noite, mesmo que
punhos socassem as paredes e cabos de vassoura batessem no teto.
– Faça alguma coisa!
– Precisamos dormir!
Ninguém conseguia recordar-se de um bebê tão barulhento. Até o padeiro
do andar de baixo parou de dar pão para a mãe, na esperança de que
encontrassem outro lugar para morar.
Sem ajuda e com alimentação tão escassa, a pobre mulher chegou ao seu
limite. Insone, deprimida e padecendo de fome, sua saúde se deteriorou. Ao
chegar o inverno, pegou uma febre e teve acessos de delírio. Andava pelas
ruas da cidade com uma toalha vermelha em volta do pescoço, deixando
Francisco chorando sozinho no apartamento. Às vezes balbuciava palavras
que pensava estarem sendo ditas para ela.
Numa manhã fria, sem nada para alimentar o bebê e sem conseguir fazê-lo
parar de gritar, ela o levou para a periferia da cidade, onde o rio Mijares corre
para o mar. Desceu uma colina até a margem. Um vento forte soprava,
redemoinhando folhas no chão lamacento. Ela olhou para o bebê envolto em
um cobertor cinza. Por um momento ele ficou quieto, e o rosto dela abrandou-
se. Mas então os sinos distantes da igreja tocaram, e o uivo recomeçou. A
mulher jogou a cabeça para trás e soltou um grito estridente.
Atirou o bebê dentro d’água.
E correu.
Uma mãe jamais deveria fazer uma coisa dessas. Mas aquela mulher fez.
Lágrimas caíram de seus olhos cor de avelã, rolando até a boca com dentes
separados. Ela correu até os pulmões quase explodirem e não olhou para trás,
nem para a criança nem para o rio.
Uma mãe jamais deveria fazer uma coisa dessas. Mas aquela mulher não
era a mãe de Frankie. A mãe morrera na câmara da igreja, envolta no hábito
de uma freira.
Clem Dundridge
Backing vocal, King-Tones, Jordanaires, Frankie Presto Band
COMO VAI? CÊ TÁ COM ALGUMA ESTAÇÃO DE TV OU COISA ASSIM? A QUE horas vai
começar esse funeral aqui, faz ideia?
Eu? Nãã… Nunca estive na Espanha, mas meio que gosto da música. Ah!
Conhece aquela canção?… Quem é mesmo? Three alguma coisa… “Three
Dog Night”! É isso… Que espécie de nome idiota é esse?
Caramba, sei como é. Onde eu moro, os funerais também nunca começam
na hora… Greenville, atualmente. Carolina do Sul. Estados Unidos…
Não, não via Frankie fazia uns 20 anos. Simplesmente perdemos o
contato, entende? A maioria das pessoas perdeu o contato com ele, sabe? Ele
era assim. Eu nem sabia que ele ainda tocava até ouvir como ele morreu…
Se conheci ele? Ih! Tá preparada pra essa? Conheci ele com Elvis Presley,
no circuito do Louisiana Hayride, em 1957… Sim, dona… Sim, dona… Bem,
pode crer, é uma história verdadeira. Não me importo de contar agora. Eu
tinha que ficar calado até o dia que Elvis morresse e o dia que Frankie
morresse. Mas agora os dois se foram, e tenho 82 anos. O que estou
esperando? Estou pensando em contar na igreja, talvez. A gente tem
permissão pra falar durante o serviço? É igreja católica, não é? Talvez não
deixem…
Agora?… Vamos fazer o seguinte. Dê pra mim um pouco desse café que
cê tá tomando que eu vou… Obrigado… muito grato… mmmff…
Certo. O que aconteceu foi o seguinte. Naquele tempo eu cantava com
The Jordanaires, o grupo que fazia backing vocal de Elvis. Montes de caras
entraram e saíram dos Jordanaires ao longo dos anos, a maioria cantores de
gospel, alguns deles pastores que no fim voltavam para a igreja. Fiquei só por
um tempinho, mas naquela época Elvis estava começando a bombar. Cada
show era maior que o anterior.
E Frankie era muito parecido com Elvis, não dá para negar. Os dois
tinham um sorriso cheio de dentes e aquele cabelo todo, negro pra burro –
embora Elvis pintasse o dele, a cor natural era mais para castanho-
avermelhado, e Frankie fosse um pouco mais alto e magro. Mas, naquele
tempo, ninguém tinha ideia de que Frankie sabia fazer qualquer coisa além de
tocar violão. Não sei ao certo como ele chegou à Louisiana. Alguém disse que
ele veio de Detroit no porta-malas de um carro. Sério. Mas ele ficava na dele,
não fumava nem farreava, e, se você não faz isso numa banda, dificilmente
alguém tem como conhecer você de verdade…
Enfim, naquela tarde estávamos no Auditório Municipal de Shreveport –
local onde era gravado o Louisiana Hayride, um programa de rádio muito
importante por lá –, fazendo a passagem de som para o show daquela noite.
Elvis estava em algum lugar fora dali, com uma garota qualquer fazendo
sabe-se lá o quê. O Coronel Parker, empresário de Elvis, furioso, estava
pronto para chutar o primeiro traseiro que visse pela frente. Ele tinha pulso
firme e odiava que qualquer um se atrasasse – até mesmo Elvis. Esperou uns
cinco, dez minutos, olhando no relógio, e então berrou: “Toquem alguma
coisa! Mexam-se!” Bem, não se contrariava o coronel, não, senhor; de modo
que a banda começou com o primeiro número do show, “I Want You, I Need
You, I Love You”, e nós, Jordanaires, fizemos nossos trechos de backing
vocal. Mas claro que sem Elvis soou meio idiota, só um monte de “Uuuuh,
uuuh”. Dava para sentir a fúria do coronel a 30 metros de distância, a cara
ficando vermelha, ele encarando as portas, andando de um lado para outro. E
de repente ouvimos uma voz cantando a letra, sabe? E parecia o Elvis, só que
era Frankie lá no microfone. Ele cantava perfeitamente. Olhei para os outros
caras, pensando: o coronel vai enforcar esse moleque! Imitando Elvis na
frente do chefe? Quer dizer, simplesmente não se faz uma coisa dessas. O
coronel cravou os olhos nele, empurrou o maxilar para a frente e mordeu
aquele charuto que sempre tinha na boca, e eu pensei: “Foi bom trabalhar com
você, Frankie.” Mas o coronel não o interrompeu. Terminamos a canção, e
tudo que ele fez foi perguntar ao cara do som: “Feito?”
Aí fomos embora, meio que sacudindo a cabeça, sem entender, e lembro
que Hoot, o pianista, deu uma cerveja para Frankie e, quando Frankie
perguntou a troco de quê, Hoot disse: “Por você ainda estar inteiro.”
Vamos dar um salto agora, para cerca de um mês depois, em turnê pela
costa noroeste do Pacífico com Elvis, e estávamos agendados para tocar em
Vancouver, Canadá, num estádio de futebol. Ficamos sabendo que o Coronel
Parker estava conversando com o exército sobre o recrutamento do Elvis. O
exército queria que Elvis começasse a servir, e o coronel estava desesperado
para fazer com que adiassem até que houvesse mais gravações prontas. Ele
tinha em mãos um esquema de um milhão de dólares, e ninguém, nem mesmo
o governo dos Estados Unidos, iria tirar aquilo dele.
Assim, o exército concordou em se reunir com Elvis e o coronel, mas
seria uma reunião secreta e na Virgínia, exatamente no dia em que deveríamos
tocar em Vancouver. Eles foram irredutíveis quanto à data, pois um general
poderoso estaria presente e queria conhecer Elvis. E ficou claro que ou a
reunião acontecia no dia imposto, ou o cantor receberia a carta de alistamento.
Bom, a maioria das pessoas simplesmente cancelaria o show, mas o
Coronel Parker não era a maioria das pessoas. Ele não queria abrir mão do
que renderia um estádio de futebol lotado. Seriam umas 20 mil pessoas. Era
muita grana.
Então, no dia anterior ao show em Vancouver, fomos chamados a
comparecer, à meia-noite, a um pequeno teatro. Nem sinal de Elvis; só um
palco com todo o nosso equipamento. O coronel já se encontrava lá com –
adivinhe quem? – Frankie. Ele sussurrava algo e Frankie concordava com a
cabeça. Não sabíamos o que estava rolando. Finalmente o coronel se virou
para a gente e disse:
– Quero que vocês passem o show com o moleque cantando.
Nós nos entreolhamos. Quê? Mas não dissemos nada. Seguimos a ordem.
Tocamos. Frankie cantou. E, tão certo quanto estou parado aqui, no final do
ensaio, se eu fechasse os olhos, não saberia dizer se estava ouvindo Frankie
ou Elvis. Aquele garoto era tão musical que podia fazer um tambor soar como
um rouxinol, entende?
Ainda assim nos indagamos: Como é que isso vai dar certo? Ele parece o
Elvis, mas não é o Elvis! No entanto, quando terminamos o ensaio, o coronel
falou:
– Agora escutem aqui. O garoto vai ficar atrás, ao lado de vocês. Ele não
chegará à frente do palco, estão ouvindo? E nada de conversa entre os
números. Vocês vão simplesmente de uma canção para outra. Depressa.
Em seguida, claro, ele acrescentou o aviso:
– Se algum de vocês abrir o bico sobre isso para quem quer que seja, vai
se ver comigo!
Ele não precisava ter dito aquilo. Nenhum de nós abriria mão do show de
Elvis. Estávamos todos no mesmo barco.
E aí chegou a noite seguinte. O verdadeiro Elvis estava em alguma parte
da Virgínia com o governo, e nós lá em Vancouver, Canadá, num sedã preto,
estacionando no estádio. Sentado atrás e totalmente imóvel, Frankie vestia um
casaco de cetim dourado e usava óculos escuros. Eu não saberia dizer se ele
estava super-relaxado ou morto de medo. Eu estava morto de medo, posso
garantir. Recebemos ordens de cercá-lo quando caminhássemos pelo
backstage e de não deixar ninguém, nem mesmo a polícia, chegar perto
demais dele. Paramos junto à cortina e dava para ouvir o estrondo da multidão
lá fora. E eu só pensava que, Deus do céu e da terra!, não tinha jeito de aquilo
dar certo.
Mas, ao entrarmos no palco, vimos que os fãs ficavam bem longe, nas
arquibancadas. E os cavaletes que o coronel mandara colocar no gramado,
dizendo para todo mundo que era para a segurança de Elvis, nos ofereciam
um isolamento de uns 40 metros – ninguém chegaria perto, exatamente como
o coronel queria. E, por ser final de verão e ainda estar um tanto claro, os
holofotes não estavam acesos, o que dificultava que se enxergassem detalhes
a distância.
– O que você acha? – sussurrei para Bill, um dos outros cantores.
– Clem, se der errado, corra para a direita, que é onde estão os carros –
respondeu.
Então o locutor berrou:
– Senhoras e senhores, Elvis Presley!
Os gritos se tornaram ensurdecedores quando Frankie, com aquele casaco
dourado, a camisa preta e o violão no pescoço com a correia alta como Elvis
usava, se mostrou para a multidão. Me preparei para algum incidente, as
pessoas vaiarem ou atirarem objetos. Mas não aconteceu nada disso. Todos
acreditaram completamente! Frankie ficou lá atrás conosco, como o coronel
havia dito; não foi para a frente, onde as câmeras poderiam pegá-lo sozinho.
Não disse uma palavra, apenas começou direto com “Well, since my baby left
me”, de “Heartbreak Hotel”. Dali em diante pouco importaria se fosse
Frankie, eu ou Paul Bailey cantando, a loucura era tamanha que mal dava para
ouvir qualquer coisa. De repente toda a garotada saiu correndo das
arquibancadas e veio para o campo e Frankie atacou “I Gotta a Woman”, “Rip
It Up” e “Ready Teddy”. Olhamos uns para os outros, sorrindo como
vigaristas, porque ele era bom e estávamos nos saindo bem. A polícia forçava
a garotada a voltar para as arquibancadas, mas todos retornavam ao gramado.
A cada canção, Frankie se soltava mais, sacudindo as pernas e mexendo os
quadris do jeito que Elvis fazia. Balancei a cabeça para Frankie algumas
vezes, tipo, não faça isso, rapaz, alivie; vamos sair daqui a salvo, por favor.
Mas então começou “Hound Dog” e acho que ele não conseguiu se segurar,
simplesmente se soltou. Pulou para a frente, sacudindo e girando os braços,
com aquele sorrisinho de escárnio nos lábios, igual a Elvis. Aí pronto. A
multidão amontoou-se no campo. A polícia tentava conter, apitos estrilavam,
pessoas eram derrubadas. Assim que “Hound Dog” acabou, os seguranças nos
tiraram do palco às pressas, Frankie sorrindo e acenando para a multidão,
tipo, adeus, até mais!
Vinte e dois minutos. O show inteiro foi isso. Vinte e dois minutos.
Conseguimos. Até hoje as pessoas falam daquele show como um dos mais
selvagens e loucos da carreira de Elvis – e o último dele no Canadá. E apenas
a banda, os Jordanaires, o coronel e o próprio Elvis, que Deus o tenha, sabiam
a verdade.
E Frankie, claro.
Ele deixou a banda no dia seguinte. Acho que não quis encarar Elvis. Ou
talvez Elvis não quisesse encará-lo. De qualquer modo, Frankie se foi, e não o
vi de novo até ele me convidar para sair em turnê alguns anos depois. Àquela
altura ele estava diferente. Mais confiante. Parecia um astro, entende? Acho
que aquele show o transformou. Ele experimentou o sucesso e quis aquilo
para si.
Ninguém disse uma palavra sobre aquela noite por quase 60 anos. Mas
agora estou com 82 anos, Frankie está morto, então pro inferno, ele merece o
crédito. Você pensa em todos aqueles imitadores de Elvis, essa gente que fez e
faz carreira com isso. Mas Frankie foi o primeiro – e, verdade seja dita, o
melhor.
Quer dizer, se a ideia é fazer as pessoas terem a sensação de estar vendo o
Rei, ele foi o único que realmente conseguiu isso um dia.
4
HAVERÁ MAIS HISTÓRIAS COMO A DO SR. DUNDRIDGE. É POR ISSO QUE Aequipe de
jornalismo espanhola está acampada nos degraus da igreja: o homem
corpulento de barba segura a câmera de TV e a jovem bem penteada parada
ao lado dele tem um microfone na mão. Uma morte tão espetacular quanto a
de Frankie chama a atenção. Mas, sejam quais forem os casos
compartilhados, nenhum contará toda a verdade. Porque ninguém sabe toda a
verdade a não ser eu. Bem. Tem uma outra pessoa. Mas posso garantir que
essa pessoa não estará aqui.
Onde estávamos? Ah, sim. O rio Mijares. Uma manhã de inverno. Uma
mulher em fuga. E uma criança abandonada neste mundo, tendo por proteção
apenas um cobertor cinza e o som de sua própria desgraça.
Veja bem, o menino não se lembraria de nada disso. Para Frankie Presto, a
memória só se cristalizaria na fase seguinte de sua vida, a parte que ele
chamaria de seu “princípio”.
Mas mesmo princípios têm princípios. Veja o prelúdio, uma forma
consagrada de composição musical. Hoje, pode ser bonito e elaborado, uma
canção em si mesmo, embora originalmente – em seu princípio –, um
prelúdio fosse algo que um alaudista do século XVI chamava de tastar de
corde, “teste das cordas”. Não muito poético, mas preciso. Deve-se de fato
testar as cordas nesta vida, ricochetear o arco, umedecer o bocal, preparar-se
para a música mais profunda que vem a seguir.
O prelúdio para Frankie Presto começou com seu nascimento calamitoso e
terminou com o arremesso no Mijares. No período de um ano, ele
testemunhou morte, cerco, fome e abandono, e agora a água fria do rio
respingava em seus olhos e o fazia piscar repetidamente, enquanto a
correnteza começava a carregá-lo rio abaixo. Ele deveria ter afundado e se
afogado rapidamente, e eu estava presente para recolher seu talento não
cumprido caso isso tivesse acontecido. Mas existem momentos inexplicáveis
no mundo de vocês, e tudo o que posso relatar é o que testemunhei: o cobertor
cinza – o mesmo que certa vez fora colocado debaixo da verdadeira mãe de
Frankie, Carmencita – não submergiu. Atuou como uma embarcação por no
mínimo três minutos, carregando a criança na direção da cidade, enquanto
Frankie esfregava os olhos e chorava em um volume incrível – chorava até o
próprio Altíssimo não poder ignorar o som.
Neste momento, vou compartilhar algo que vocês ainda estão para
descobrir plenamente. Os humanos não são os únicos que são musicais. Os
animais também fazem parte desse universo. Isso deveria ser óbvio a partir da
observação dos milhares de aves canoras que gerei ou do estalido dos
golfinhos e do lamento das baleias jubarte que produzi. Os animais não
apenas fazem música: eles a escutam de forma ímpar.
Naquele dia, no rio, o choro de Frankie elevou-se a um tom além do
ouvido humano. De repente, um cão pelado, com pernas finas e rijas, desceu
correndo a ribanceira. A guia presa à sua coleira sacolejava loucamente.
Quanto mais agudos e intensos os guinchos de Frankie, mais o cachorro corria
e gania, até que, numa curva do rio, ele se atirou à água. A criancinha tentou
se agarrar a algo na direção dos latidos e seus dedos se enredaram na correia.
O cachorro abocanhou o cobertor e voltou aos trambolhões para a margem,
colocando os dois a salvo.
A criança rolou sobre si mesma. O cobertor escorregou para dentro
d’água, desaparecendo correnteza abaixo. O cachorro colocou uma pata
molhada de cada lado da cabeça de Frankie e deitou a própria cabeça, arfando
pesadamente.
Prelúdio completo.
Sem talento a ser recolhido.
5
1 A-tisket, a-tasket / Uma cesta verde e amarela / Escrevi uma carta para o meu amor / E deixei cair no
caminho.
6
VOCÊS TÊM MUITAS PALAVRAS PARA AS FORMAS COMO DEVO SER TOCADA. Na
música clássica, a maioria é em italiano. Adagio. Moderato. Isso é da época
que vocês chamam de Renascença, quando a Itália era o centro da criatividade
e os músicos que lá estavam inventaram centenas de nomes para meus
andamentos. Vivace. Andantino. Prestissimo. Até aqui, na história de Frankie,
fomos em largo, lentamente, ou larghissimo, tão lento quanto possível.
Porém, com o serviço fúnebre se aproximando, devemos empregar o
accelerando, chegando quem sabe a adagietto ou allegro.
Os três anos seguintes da vida de Frankie – do dia em que roubou o
fonógrafo ao dia em que deixou a Espanha no fundo de um navio –
registraram os seguintes acontecimentos: ele cresceu 23 centímetros, perdeu
seis dentes de leite, meteu-se em quatro brigas na escola, fez a primeira
comunhão, aprendeu futebol, passou brilhantina no cabelo, foi beijado na
orelha por uma garota (que fugiu rindo), aprendeu a andar de bicicleta, a rezar
em latim e a fazer bocadillos com linguiça e azeite de oliva. Usou seu
primeiro calção de banho, viu o primeiro tanque, pediu a Baffa
constantemente para lhe mostrar a América num globo e dormiu todas as
noites com a fotografia da mulher de cabelo claro debaixo do travesseiro,
aquela que ele acreditava ser sua mãe.
Também praticou violão no mínimo três horas por dia no jardim,
aprendendo mais de uma centena de canções e fazendo serenatas para o
cachorro com arpejos e exercícios para os dedos.
Sobre as aulas com El Maestro, posso atestar que ele fez progressos
extraordinários, medidos pelo fato de o professor cego às vezes até sorrir
enquanto Frankie tocava. El Maestro inclusive parou de fumar, embora isso
possa dever-se à ocasião em que Frankie, usando o isqueiro, sem querer ateou
fogo a uma toalha de mesa e então apagou com vinho, antes que o professor
pudesse avisar que o álcool poderia botar o lugar inteiro em chamas. (Não
botou. Mas um susto desses pode acabar com um hábito.)
Frankie passava cada vez mais tempo no apartamento em cima da
lavanderia na rua Crista Senegal, aprendendo as técnicas clássicas adequadas,
afastando o braço do violão de seu ombro esquerdo, inclinando-o para cima,
colocando o pé num banquinho. El Maestro fazia Frankie segurar uma laranja
na mão direita por horas, para estimular a posição correta para tocar as cordas,
e agarrava os dedos do menino para indicar a parte carnuda do polegar e o
ângulo das unhas que produziriam o som mais límpido. El Maestro deu aulas
sobre cada centímetro do violão, os sons agudos penetrantes ao tocar no alto
do braço, o volume e o tom referentes à boca, como cada corda vibrava e
podia ser pega, batida, tocada, dedilhada ou arranhada.
Frankie também aprendeu a usar o fonógrafo que havia roubado na beira
da calçada. De início, El Maestro ficou furioso. Insistiu para jogarem o
aparelho fora. (“Se a policía fechou a loja, o que acha que vai fazer comigo,
menino estúpido?”) Porém, quando Frankie colocou a agulha em um disco da
orquestra de Duke Ellington tocando “Don’t Get Around Much Anymore”, El
Maestro afundou na cadeira boquiaberto e fez o garoto colocar a agulha de
novo treze vezes seguidas.
No fim, ele e Frankie escutaram cada disco daquela pilha muitas e muitas
vezes. O favorito de El Maestro era um disco de goma-laca de um violonista
cigano chamado Django Reinhardt, que ele rotulou de “do outro mundo”.
Frankie era fã de Louis Armstrong e da canção “Bill Bailey, Won’t You
Please Come Home?”, cuja letra memorizou. Um dia, enquanto El Maestro
comia um dos bocadillos de linguiça de Frankie, o garoto cantou a música
para seu professor em uma imitação perfeita.
“Won’t you come home, Bill Bailey? / Won’t you come home?” / She
moans the whole day long. / “I’ll do the cookin’ honey; I’ll pay the rent. /
I know I’ve done you wrong…”2
Quando Frankie parou, o cego terminou de mastigar, depois coçou o
queixo com dois dedos.
– Francisco, você vai ter um problema.
– Que problema?
– Você canta bem.
– Obrigado, Maestro.
– Bem demais. Você terá que decidir o que vai ser: um grande cantor ou
um grande violonista.
– Posso ser os dois?
El Maestro suspirou.
– Ser os dois significa não ser nenhum.
Frankie olhou para o professor, os óculos escuros, as suíças não
barbeadas. Ele não pretendia desapontar El Maestro cantando.
– Sinto muito, Maestro.
O cego estalou os dentes.
– E pare de imitar Louis Armstrong. Vai machucar a garganta.
2 “Você não vai voltar para casa, Bill Bailey? / Não vai voltar para casa?” / Ela se queixa todos os dias /
“Vou cozinhar, meu bem; vou pagar o aluguel / Sei que agi mal com você…”
12
3 Encontrei o meu amor em Avalon / Junto à baía… / Deixei o meu amor em Avalon / E parti…
4 Sonho com ela em Avalon / Do anoitecer ao amanhecer / Por isso acho que seguirei viagem / Até
Avalon.
Niles Stango
Historiador de música, escritor
FRANKIE PRESTO TINHA MEDO DO PALCO.
1969
– POSSO AJUDAR? – PERGUNTOU O HOMEM ATRÁS DO BALCÃO.
1946
– TOQUE ALGUMA COISA. JOUE.
Frankie olhou para cima. Ele tinha 10 anos, vestia roupas esfarrapadas e
estava sentado ao lado do estojo aberto do violão nas docas de Southampton,
um porto na costa sul da Inglaterra, duas horas ao sul de Londres. Um homem
de bigodinho fino e fala francesa se aproximou dele.
– Joue – disse o homem de novo, sacudindo o punho. – Pompe.
– Como, senhor?
– Pompe. Seu “violom”. “Asim.”
O homem fez um movimento rápido, como se coçasse o peito. Já estava
quase escuro e Frankie deu uma olhada nas duas moedas dentro do estojo.
Não eram o suficiente para comprar uma única batata, que era tudo que ele
havia comido desde a manhã. Os navios tinham entrado no porto para passar a
noite. Aquele estrangeiro era a última esperança.
– Por favor, senhor. Estou com fome. Posso tocar uma canção por um
xelim.
O homem mordeu o cigarro e tirou uma moeda do bolso.
– Joue – repetiu ele, jogando a moeda. – Algo alegre, oui?
Algo alegre. A simples ideia parecia estranha para Frankie. Fazia mais de
um ano que ele havia deixado a Espanha naquele navio. Depois de três dias
sob o convés, foi acordado à noite e lhe mandaram rastejar para debaixo de
um cobertor vermelho imundo.
– Para sua proteção – disse um dos marinheiros.
– Onde está meu professor?
– Está vindo.
– Meu violão…
– Estamos levando suas coisas. É uma brincadeira, certo?
– Eu quero El Maestro!
– Baixe a voz! A brincadeira é assim. Você se esconde, e então ele acha
você.
– Mas…
– Quieto! Se você falar, ele não vem.
Frankie inspirou enquanto o mundo escurecia. Envolvido naquele
cobertor, foi carregado para fora do barco por dois homens. Ouviu o bater da
água, o ranger da madeira, velas se agitando, a própria respiração acelerada.
Ele foi depositado em cima de uma superfície dura e o estojo do violão foi
deslizado para debaixo do cobertor. Ele o agarrou com um braço, como se a
caixa pudesse mantê-lo a salvo.
– Seu professor vem logo – sussurrou um marinheiro. – Fique no cobertor
até ouvi-lo.
Claro que o professor nunca veio. Nem ninguém. Os marinheiros
abandonaram Frankie no porto britânico e, nos meses que se seguiram, o
jovem Francisco Presto juntou-se a uma longa linhagem de predecessores
talentosos, mendigando com sua música para conseguir comida. Quanto isso
recua no tempo? Francesco Corbetta, meu virtuoso italiano do violão barroco,
teve que tocar nas ruas da Florença do século XVII; trezentos anos depois,
Irving Berlin cantava por moedas no Lower East Side de Manhattan. Vocês
deveriam se envergonhar de tratar meus filhos dessa maneira, como cachorros
implorando restos.
Frankie, com o violão onipresente, raramente vagava para além das docas.
Pelo bilhete, ele sabia que deveria encontrar a tia na América. Mas os
contrabandistas haviam levado o dinheiro; portanto, isso agora era impossível.
Toda noite ele sonhava que via El Maestro descendo de um navio, guiado por
Alberto, o músico de conga; Frankie corria para o professor e pegava sua
mão. E o cego então perguntava: “Você tem praticado, Francisco?” E as
coisas ficavam bem outra vez.
Assim, o menino permaneceu à espera naquele porto fedorento, tocando
para viajantes, até mesmo dançando se eles quisessem. Frankie foi de músico
a artista – às vezes ele tinha o que comer, às vezes não.
Naquele momento, ele acomodou o violão no joelho que era puro osso. As
unhas estavam irregulares por serem roídas para se manterem curtas. Algo
alegre. Ele escolheu uma canção vivaz chamada “Billets Doux”, de Django
Reinhardt, o famoso cigano nascido na Bélgica, considerado o maior
violonista de jazz da Europa. (El Maestro se referiu a ele certa vez dizendo:
“Ele não é deste mundo.”)
A canção era rápida e vibrante, como uma criança saltitante, e exigia
plena atenção de Frankie – por isso, enquanto tocava, ele não reparou na
expressão atônita do francês, nem viu o cigarro cair de seus lábios.
– Qual é nome, essa canção? – perguntou ele, falando a língua com
dificuldade.
– “Billets Doux”.
– Quem compor?
– Django Reinhardt.
– Quem ser ele?
– Um grande violonista.
– Que significar? “Billets Doux”?
– Não sei. Só sei o nome.
– Você tocar bem.
– Obrigado, senhor.
– Onde sua mãe?
– Morreu, senhor.
– Onde seu pai?
– Não sei, senhor.
O homem acendeu outro cigarro e olhou para a água.
– Eu ir em viagem. Muito longe.
– Sorte sua, senhor.
– Não querer ir.
– Por que não, senhor?
– Ter bebê. Menino como você.
– Que bom, senhor.
– Bebê morrer. Dois mês atrás. Não querer ir viagem. – Ele bateu com a
mão na amurada. – Não querer fazer nada.
Frankie não soube o que dizer. A água batia nos pilares de madeira.
– Parles-tu français? – perguntou o homem subitamente.
– Não, senhor. Apenas inglês.
– Você não ser inglês.
– Sim, senhor. Sou.
– Hablas español?
Frankie não respondeu.
– Bueno – disse o homem, e dali em diante falou apenas num espanhol
capenga. – Agora, de onde você realmente é?
Frankie sacudiu os ombros.
– Espanha, sim? Qual parte?
– Não sou mais de lá.
O homem tocou com o pé no estojo do violão de Frankie.
– Escute. Para onde tenho que ir preciso de alguém que fale inglês. Meu
inglês é ruim.
– E daí?
– Seu inglês é bom. Você vai? Traduz minhas palavras? Daí talvez eu vá.
– Não, obrigado.
– Eu pago.
– Não, obrigado.
– Dou cama.
– Não, obrigado.
– Dou comida.
– Por que você está indo?
– Para fazer música.
– Você é músico?
– Oui. Talvez não tão bom quanto você.
O homem estendeu a mão direita na direção do violão de Frankie.
– Deixe-me tentar.
– Não estrague ele.
O homem ajustou a correia no ombro. Colocou a mão esquerda no braço
do violão. Só então Frankie reparou que os dedos tinham graves deformações:
dois estavam mutilados e apenas o segundo e o terceiro alinhavam-se aos
trastes.
– É bom violão.
– Eu sei.
– Onde conseguir essas cordas?
– Meu professor.
– De que são feitas?
– Não sei.
Ele ronronou como se acariciasse veludo.
– Magnifique.
– Você toca mesmo?
Vendo os dois dedos, Frankie teve dúvidas.
– Eu tentar “Billets Doux” – disse o homem.
Ele balançou o queixo, expirou profundamente, então tocou a mesma
canção – mas tão rápido que Frankie parou de respirar. Os dois dedos do
homem dispararam pelos trastes, segurando uma nota e a seguir saltando para
muitas outras, derramando cascatas de oitavas com a suavidade de um óleo
vertido por um funil. Aqueles dois dedos produziam mais música que
quaisquer cinco dedos poderiam, e ele terminou com um sweep de acordes
usando a técnica de pump que havia tentado explicar, um dedilhado sincopado
que fazia o violão soar como uma locomotiva.
– “Billets Doux”, não? – disse o francês, devolvendo o violão. – Significa
“cartas de amor”.
– Como é que você sabe?
– Eu escrever ela.
O homem sorriu pela primeira vez, o bigode se elevou.
– Sou Django.
– Você?
– Oui. Eu mesmo.
Frankie pegou o violão. Sentia arrepios.
– O que aconteceu com suas mãos?
– Um incêndio.
– Você se queimou?
– Quando eu era jovem.
– Você toca com dois dedos?
– Toco com isso.
Ele tocou o peito, perto do coração.
Frankie não podia acreditar. Tinha escutado os discos daquele homem
tantas vezes, sentado ao lado de El Maestro no apartamento em cima da
lavanderia, ambos imaginando um violonista com mãos grandes, poderosas,
de incrível alcance. Foi a primeira vez que meu filho percebeu a total
desconexão entre o corpo de um homem e a música que ele pode fazer.
– Você ser cigano? – perguntou Django a Frankie.
– Não.
– Eu sou cigano. Venha comigo, eu lhe mostro como tocar como cigano.
Frankie mordeu o lábio superior. Estava com tanta fome. E aquele era
Django Reinhardt!
– Quando?
– Partimos em manhã.
– Amanhã de manhã?
– Sim.
– Por que tão rápido?
– Toco com banda. Estão esperando.
– Que banda?
– Duke Ellington.
– O Duke Ellington?
– Oui.
– Onde?
– América.
Frankie estremeceu. América? Sua tia estava lá!
Django estendeu a palma da mão.
– Você vai, eu vou?
– Ok – disse Frankie.
Apertaram-se as mãos. Frankie olhou para o violão.
A última corda tinha ficado azul.
19
1969
– WHIP, WHOP! WHIP, WHOP! WHOOO!
1946
– VENHA CÁ, FRANCISCO! – BRADOU DJANGO. – ELES CHEGAR!
Frankie voltou correndo para perto do francês, que usava uma echarpe
vermelha e casaco esporte azul e estava parado junto a um portão da estação
de trem chamada Grand Central, em Nova York. Frankie estivera pulando
entre os feixes de sol que se derramavam pelas janelas mais altas do terminal.
Ele nunca vira paredes tão elevadas. O mundo de Frankie, até seus 9 anos de
idade, começava e terminava nas ruas de Villarreal. Expandiu-se nas docas de
Southampton. E explodiu ao desembarcar na América. Tudo que ele via era
maior e mais grandioso do que já vira antes. Os carros. Os edifícios. As malas
que as pessoas carregavam. Os chapéus que usavam.
– Veja, Francisco. Ser ele, não?
Entre as ondas de viajantes, Frankie viu dois estranhos se aproximarem,
um deles um homem alto e impressionante, com bigodinho e cabelo penteado
para trás. Frankie tinha visto o rosto dele na capa de um disco. Era como ver o
papel ganhar vida.
– Monsieur Django, suponho? – disse Duke Ellington, estendendo a mão.
– Monsieur Duke, prazer grande é.
Frankie estava abismado. Lembrou-se da noite em que El Maestro o fez
colocar para tocar o disco de Duke Ellington repetidas vezes até permitir que
ficassem com o fonógrafo.
Django tocou no ombro de Frankie e balbuciou “chavo” (a palavra cigana
para “garoto”), e então desandou numa mistura de espanhol e francês. Frankie
devolvia as palavras em inglês.
– O Sr. Django diz que está muito animado e honrado por conhecê-lo e se
apresentar com sua orquestra – traduziu Frankie. – Além disso, gostaria de
ouvir Dizzy Gillespie tocar em algum local.
– E você, jovem escudeiro? – perguntou Duke Ellington sorrindo.
– Hã?
– Você é filho dele?
– Não… – Frankie não sabia o que ele era. – Sou o falador dele.
– Muito bem, falador. Diga que partiremos para Cleveland em uma hora.
Frankie fez conforme o solicitado, embora não soubesse o que era
Cleveland; por isso, disse apenas “Cleveland”. O homem que acompanhava
Duke Ellington propôs:
– Eu carrego o violão do Sr. Reinhardt.
– É meu – esclareceu Frankie.
– Onde está o do Sr. Reinhardt?
– Ele não trouxe nenhum.
– Ele não trouxe um violão?
Frankie traduziu. Django pareceu constrangido, quase zangado. Desfiou
uma torrente de palavras.
– Ele disse que achou que alguém aqui daria um violão para ele.
No trem para Cleveland, Frankie estava excitado demais para ficar
sentado e quieto. Ele agora trajava um casaco novo que Django lhe comprara
em uma loja na estação de trem. E estava viajando com músicos! Na
plataforma, Frankie maravilhou-se com a bagagem deles – trompetes, bateria,
um contrabaixo. Alguns abriram seus estojos e sopraram algumas notas para
ele.
– O que vocês tocam? – perguntou Frankie para um grupo de homens.
– Saxofone – responderam.
– Todos vocês tocam o mesmo instrumento?
– Tenor.
– Alto.
– Barítono.
Frankie ficou boquiaberto. Os músicos permitiram que ele segurasse
diferentes instrumentos de sopro – dourados, prateados, um trombone com
pisto que deslizava para a frente e para trás. Ele se sentia como se alguém
tivesse aberto um baú de tesouros. O melhor de tudo foi que lhe deram o
roteiro da turnê, e nele Frankie leu a palavra Detroit. Aquela era a cidade! A
do pedaço de tecido que ele guardava no estojo do violão! Ele encontraria sua
tia e ela o ajudaria a voltar para a Espanha, para o pai e para El Maestro.
Ele estava no caminho certo outra vez.
Frankie permitiu-se uma sensação de vertigem que não experimentava
desde Villarreal, um frio na barriga que o fazia ansiar pelo dia seguinte.
Deram a ele a cama de baixo no beliche do vagão-dormitório, mas, em pé ao
lado de um trompetista atarracado, Frankie não se controlou e pediu:
– Posso ficar em cima?
– Claro que sim – disse o homem. – Assim não preciso ficar escalando.
Frankie subiu ligeiro e saltou sobre o colchão. O trem arrancou e começou
a roncar. Frankie ouviu o riso disperso dos músicos e alguém cantarolando
uma canção. Gostou da camaradagem daqueles homens, que se pareciam mais
com os meninos do que com os homens da Espanha. Tinham até nomes
infantis, como “Cat”, “Taft” e “Shorty”. Deitado no beliche, Frankie sorriu.
Ele havia entrado em outra banda, dessa vez sem sequer tocar.
Naquela noite, Django veio ver as acomodações de Frankie. Os músicos
estavam se vestindo para deitar e Django reparou que todos usavam cuecas
boxer com estampas florais coloridas.
– Que están usando? – perguntou, rindo.
– Ele quer saber o que vocês estão vestindo – disse Frankie.
Os homens pareceram surpresos.
– Será que ele nunca viu roupas de baixo bacanas antes?
– Vocês são loucos – falou Django sem pensar.
– Ele disse que vocês são loucos.
– Nós ouvimos.
– Não somos nós que temos um tradutor tampinha.
– Digam isso a Duke.
Frankie seguiu Django ao compartimento que ele dividia com o Sr.
Ellington. Quando entraram, o líder da banda também estava se despindo.
Django ficou chocado ao ver que os trajes íntimos dele eram ainda mais
espalhafatosos, com corações e flores em uma estampa colorida.
– Algum problema? – questionou Duke.
– Non, non – negou Django.
Ele se inclinou para Frankie e sussurrou em espanhol:
– Chavo, isso aqui é um país estranho.
21
1969
– VAI COZINHAR ESSES OVOS? – PERGUNTOU A MULHER NA VAN.
Ela usava sombra azul, tinha os lábios pintados e três colares pendiam de
seu pescoço.
– Cozinhar? – Frankie olhou para a caixa. – Sim.
– Onde?
Ele apontou na direção da música.
– Lá.
– De onde você é?
– Eu?
– Sim, lindo. – Ela sorriu. – Você.
Quando questionado dessa maneira, Frankie normalmente dizia
Califórnia. Dessa vez disse:
– Espanha.
– Bem longe – murmurou a mulher. – Veio ouvir a música?
– Tocar.
– No palco?
– Sim.
– Você está bem distante do palco.
– Tenho esses ovos.
– Você disse que…
– Para o café da manhã.
– Você é mesmo da Espanha?
– Sí.
– Você é engraçado.
Ele sentiu os joelhos bambos. Firmou-se na porta da van.
– Por que não entra?
– Onde?
– Aqui do meu lado.
Frankie entrou. Ficaria apenas por um minuto, disse a si mesmo.
– Como você chegou aqui? – perguntou ela.
– Vim a pé da loja.
– Não – falou rindo. – Você disse que é da Espanha. Como chegou aqui? –
Ela abriu os braços. – Estados Unidos.
Frankie deixou cair a cabeça sobre um almofadão bordado. Observou a
mulher fechar um cigarro.
– Com uma banda – respondeu ele.
22
1946
A BANDA DE DUKE ELLINGTON EXCURSIONOU POR TRÊS MESES. NESSE PERÍODO,
Frankie viu pela primeira vez uma vaca (pela janela do trem), um sorvete de
casquinha e um cinema americano. Continuou a aprender as técnicas de
violão cigano com Django – e a aperfeiçoar a linguagem franco-hispânica que
forjaram juntos. Também ficou sabendo que o bebê de Django chamava-se
Jimmy e que morrera após viver por apenas algumas semanas, que Django
selecionou Bach, Händel e Mozart para tocar na missa fúnebre e que o
bebezinho foi sepultado em um cemitério francês. Era a segunda vez que ele
ouvia falar de um funeral adequado (a primeira vez fora por intermédio de
Aurora York) e pensou em ver onde sua mãe estava sepultada quando
chegasse a Detroit.
Também ficou sabendo que Django estivera prestes a cancelar aquela que
acabaria sendo sua única viagem à América – ele só mudou de ideia quando
Frankie concordou em acompanhá-lo. A possibilidade de viajar com um
menino tornou a jornada após a morte do filho mais suportável.
Posso ver todos os futuros, aqueles que meus talentos terão e aqueles dos
quais se afastarão (assim como posso ouvir todas as melodias em um teclado,
aquelas tocadas e aquelas ainda não tocadas), e posso afirmar que, se Frankie
não estivesse lá, Django jamais teria vivenciado a América nem a forma como
ela influenciou sua vida e arte.
Por isso a corda de Frankie ficou azul quando eles se encontraram.
Voltaremos a esse assunto. Mas, primeiro, a noite de estreia.
Quando chegaram a Cleveland, Django foi forçado a comprar um violão
novo para o show, o que o deixou furioso.
– Isso é palhaçada – falou para Frankie enquanto afinava o novo
instrumento. – Por que eles não ter um violão para mim? Um Selmer, como
eu amo? Sou Django. Deveriam me dar um violão de ouro.
– Pode tocar com o meu – disse Frankie.
– Sim?
Ele largou o novo e pegou o de Frankie. Após alguns acordes, parou.
– É perfeito. Você afinou já?
– Sim, senhor.
Django analisou Frankie.
– Vou tocar seu violão hoje à noite e mostrar para eles quem eu sou. Mas
vou devolvê-lo, e você jamais deve se desfazer dele. Nunca venda. Nunca
perca. Nunca dê para alguém e espere que volte. Não renuncie à música,
chavo. Ou vai renunciar a si mesmo.
– Sim, Sr. Django.
Naquela noite, das coxias do Cleveland Music Hall, Frankie vivenciou
algo que permaneceria com ele para sempre. Os primeiros acordes de uma
orquestra. O rodopiar elegante dos clarinetes e saxofones. O poder dos
trombones e baixos. Até mesmo a aparência da banda – a uniformidade, todos
lindamente trajados com smokings pretos – impressionou-o. E o público!
Quase duzentas pessoas! Ovacionando! Era uma reação que Frankie jamais
imaginara. Alguma coisa explodiu dentro dele, espalhando-se pela corrente
sanguínea. Ele não entendeu a química do aplauso, mas soube, a partir
daquele instante, que queria ouvir aquilo para si um dia.
Django só apareceu no final, acompanhado apenas por Duke Ellington ao
piano e um baixista que tentou segui-lo. Praticamente não houve ensaio. Mas
alguém disse sobre Reinhardt: “Ele é a música em forma de homem.” E eu
aceito o cumprimento. Ele foi um de meus prêmios. Seu desempenho naquela
noite, no violão já muito viajado de Frankie, foi tão notavelmente original que
até os membros da banda bradavam:
– Vai fundo, Mestre! Vai fundo!
Django tocou quatro canções, e cada uma causou impressão maior que a
anterior. Na manhã seguinte, no hotel, pediu a Frankie que achasse um jornal
e lesse qualquer coisa que houvessem escrito sobre ele. Frankie folheou as
páginas até ver uma manchete: ARTISTA FRANCÊS DO VIOLÃO ROUBA
SHOW DE DUKE.
– Humpf – disse Django, bebendo café. – Como tinha que ser.
O tempo que ficaram juntos foi tão agitado e passou tão rápido que anos
depois pareceria mais um sonho do que uma memória para Frankie. Mas certa
noite, em Chicago, Frankie assistiu à montagem de palco e reparou que a
bateria exibia um desenho da gravadora RCA Victor – um cachorro olhando
um gramofone.
Frankie sentiu o estômago embrulhar. Pensou no cão pelado e no
fonógrafo no apartamento de El Maestro. Pensou em todas as partes de sua
vida que havia deixado para trás. De repente, sentiu-se profundamente triste.
A viagem era empolgante, mas ele ainda era uma criança, e todas as crianças
em algum momento querem ir para casa.
Quando a turnê chegasse a Detroit, ele trataria disso.
23
1969
A MULHER DA VAN PASSOU A LÍNGUA PELOS LÁBIOS.
– Que grande barato essa história – disse ela. – Você viajou por todo lado
quando era criança? Com Duke Ellington?
– É.
– Que demais!
Ela tragou o cigarro que enrolara e passou-o para Frankie. Inclinou-se
sobre as pernas dele.
– Quero ver esse violão.
A mulher abriu o estojo.
– Cuidado – balbuciou Frankie.
– Cuidado por quê?
– Ele faz coisas estranhas.
– Tipo o quê?
– Mágica. Uns lances assim.
Ela abriu um sorriso.
– Você é engraçado.
– Não sou.
– Acho que é.
Frankie olhou para a mão. Parecia enorme. A fumaça o fazia piscar. A
mulher deslizou mais para perto dele.
– Pegue uma dessas.
– O que é isso?
– Uma Lemmon. Não gosta de Lemmons?
Ela colocou uma pequena pílula verde na boca de Frankie, depois engoliu
uma também. Aconchegou-se a ele.
– Qual é a desses ovos?
– Minha esposa. São para minha esposa. Vamos ter um bebê.
– Onde ela está?
– Não sei.
– Não sabe?
– No palco.
Ela sorriu.
– Então ela não está aqui, não é?
Ela colocou o rosto perto do dele.
– O que aconteceu a seguir?
– A seguir?
– A história. Depois que você deixou a banda?
– Não lembro.
– Tente.
Frankie fechou os olhos.
– Estava frio.
24
1946
ESTAVA FRIO. NEVAVA. FRANKIE PUXOU O CASACO DE LÃ QUE DJANGO havia
comprado e acomodou as coxas no alpendre de concreto. Naquele momento,
sua estada na América somava outubro, novembro e parte de dezembro. Ele
não sabia como as pessoas viviam num clima daqueles. Pela centésima vez
abriu o estojo do violão e tirou o pedaço de tecido com um endereço escrito
na caligrafia de Baffa, o endereço de sua irmã: rua Claret, 467, Detroit,
Michigan.
Frankie já havia batido na porta várias vezes. Ninguém atendera. Ele ficou
esperando nos degraus a maior parte da tarde. Django se oferecera para ir com
ele, mas Frankie, a essa altura bastante audacioso em sua independência, disse
ao violonista que a tia provavelmente iria querer saber tudo sobre Baffa e por
isso ele ficaria lá por um tempo. E provavelmente ela iria querer que Frankie
morasse com ela até poder mandá-lo de volta para a Espanha.
– Se for assim, você deve vir para se despedir, chavo – falou Django. –
Partimos amanhã, sim?
– Ok – concordou Frankie.
Ele puxou o casaco. A casinha de tijolos vermelhos era parecida com
outras do quarteirão. Todas tinham uma entrada de veículos curta e reta, como
os trastes que cobrem o braço de um violão, com carros estacionados
enchendo-se de neve. Carros grandes. Carros compridos. Para Frankie,
parecia que todo mundo tinha um veículo na América, ao contrário de
Villarreal, onde as pessoas ainda usavam carroças e cavalos.
Frankie fechou os olhos e reviu a casa de Baffa na rua Calvário, viu-se
sentado no jardim, ouvindo rádio, o cão pelado junto dele. Lembrou daqueles
dias como quentes e agradáveis.
– Está perdido, filho?
Frankie abriu os olhos. Um carteiro de uniforme azul e sacolão de couro
estava diante dele. Flocos de neve salpicavam a aba do seu boné.
– Não, senhor.
– O que está fazendo?
– Esperando.
– Na neve?
– Sim.
– Quem?
– Minha tia.
Frankie estendeu o pedaço de tecido.
– Bem, você está na casa certa. É sua tia, é?
– Sim, senhor.
– Como chegou aqui?
– O Sr. Django pagou um carro.
– Você quer dizer um táxi?
– Acho que sim.
– Ela sabia que você viria?
– Estou atrasado.
– Deveria ter chegado de manhã?
Frankie trocou de posição no concreto.
– Antes disso.
O homem cerrou os lábios, avaliando o garoto à sua frente. Pegou vários
envelopes.
– Quer entregar a correspondência deles?
Frankie pegou as cartas.
– Mantenha-se aquecido – disse o homem. – Eles devem chegar do
trabalho a qualquer momento.
Quem eram “eles”?, pensou Frankie. Observou o homem fazer seu trajeto,
parando em cada casa, até não conseguir mais enxergá-lo. Escureceu. Frankie
já temia ter que dormir ali.
Naquele momento, um Chevrolet verde-claro dobrou na rua com os faróis
acesos. Quando o carro reduziu a velocidade, o coração de Frankie acelerou.
Pare aqui, ele desejou em silêncio. Pare aqui. Pare aqui.
Parou. Frankie levantou-se. Ele não entendia realmente o que era uma
“tia”, pois nunca tivera uma. Porém, desde o momento em que lera o bilhete
de El Maestro no fundo daquele navio, desejava conhecê-la, esperando que
ela consertasse as coisas, mandasse-o de volta para casa, reunisse-o com sua
banda original.
O que ele viu mudou tudo.
Ele viu as portas do carro se abrirem e um homem sair por um lado e uma
mulher roliça de cabelo claro pelo outro. Frankie tinha visto o rosto dela
antes, inúmeras vezes, em uma fotografia, com o braço ao redor de Baffa –
uma fotografia que ele mantinha debaixo do travesseiro. Um arrepio
percorreu seu jovem corpo e algo zuniu em sua cabeça. Largou as cartas,
pulou da varanda e, enquanto a mulher ficava boquiaberta sem entender nada,
ele correu pela grama polvilhada de neve, com os braços estendidos para o
alto, e gritou:
– Mãe!
Na música ocidental, as coisas se resolvem. Uma quarta suspensa volta
para a terça. Um acorde diminuto desliza para a sua tônica. Dissonância para
consonância. Eu firmo a paz dessa forma. Humanos não seguem tais regras.
Por isso, naquela noite, na rua Claret, Danza Rubio, a mulher que desceu do
Chevrolet verde-claro, ficou atônita com o menino correndo em sua direção.
E, sem manter contato algum com o irmão, Baffa, por muitos anos, ficou
desconfiada com a aparição repentina de uma criança. Ficou imóvel quando
Frankie tentou abraçá-la. E, quando ele exclamou “Sou seu filho!” e contou a
história que Baffa havia contado (sobre a esposa, o carro, o acidente), ficou
furiosa e revelou a verdade a Frankie ali mesmo, na rua, como uma série de
fortes batidas no aro da caixa.
Thwack!
Ela não era sua mãe.
Thwack!
Ela não era esposa de Baffa.
Thwack!
Baffa nunca teve uma esposa.
Thwack!
Ele nunca conseguiu arranjar uma esposa.
Thwack!
Ele nunca estivera na América.
Thwack!
Não houve acidente.
Thwack!
Não havia sepultura.
Thwack!
Baffa era um mentiroso.
Thwack!
Ele não falava com ela havia anos.
Thwack!
Ela presumia que ele estivesse morto.
Tudo isso levou menos de três minutos. Cada golpe aprofundou o silêncio
atordoado de Frankie. No fim, o marido de Danza interrompeu rispidamente:
– Olha aqui, garoto, não vamos lhe dar dinheiro algum, se é isso que você
espera.
O menino, perplexo, sentiu o maxilar tremer. Usou toda a energia que lhe
restava para agarrar o estojo do violão e correr. Danza gritou atrás dele, mas
Frankie não voltou. Desapareceu entre os flocos de neve que caíam sob os
jatos de luz dos postes, as lágrimas escorrendo pelas bochechas.
Eu disse que a música permite a criação rápida. Mas não é nada
comparada ao que vocês humanos conseguem destruir em uma única
conversa.
Burt Bacharach
Compositor, artista, produtor
FRANKIE PRESTO AMAVA O ESTÚDIO. MORARIA LÁ DENTRO SE TIVESSE uma cama.
Oh… claro… meu nome é Burt Bacharach… América… Los Angeles.
Mas conheci Frankie em Nova York. Produzi a canção “Our Secret” em 1964.
Ótima balada. Coloquei um reverb na voz dele e a deixei misteriosa. Criamos
o trecho de cordas por volta da meia-noite. Aí comecei a dar uns telefonemas
e lá pelas três ou quatro da madrugada achei dois violinistas para irem ao
estúdio. Frankie e eu éramos de partes diferentes do mundo, mas tínhamos
uma coisa em comum: não íamos embora até ficar perfeito. Alguns músicos
não gostam disso. Eu os mantenho lá para fazer vinte takes, trinta takes. Mas
qual é o sentido de fazer arte se não fizer direito?
Frankie sacava isso, sabe? Era uma alma linda. Se eu soubesse que ainda
estava tocando, teria viajado o mundo para ouvi-lo. Realmente não fazia ideia
de para onde tinha ido – ou se ainda estava vivo – até saber de sua morte há
uns dias. Foi mesmo no palco?… Meu Deus… Que coisa horrível.
A primeira vez que o ouvi tocar? Lembro, sim. Na verdade, foi como nos
conhecemos. Eu estava no Bell Sound Studios de Nova York para uma sessão
de gravações com Dionne Warwick. Cheguei cedo e a sala grande estava
vazia, exceto por aquele cara de costas para nós, com fones de ouvido,
inclinado sobre uma guitarra. Pedi ao engenheiro para abrir o som; ia mandar
o cara sair, mas não consegui. Congelei. Ele tocava de um jeito incrível.
Estava alternando entre riffs clássicos e a canção de jazz “Body and Soul”.
– Quem é esse cara? – perguntei.
– Você não vai acreditar. É Frankie Presto – respondeu o engenheiro de
som.
– O cantor?
– O cantor toca uma guitarra irada.
Acho que ele tinha gravando umas faixas antes de nós. Todo mundo tinha
ido embora, mas ele permanecera lá dentro por mais duas horas, brincando
com todos os instrumentos, indo da bateria para o piano e as guitarras. Meu
pessoal estava chegando, por isso liguei o microfone da sala e disse:
– Ei, desculpe interromper esse seu lance genial, mas estamos no nosso
horário.
Ele tirou os fones de ouvido e acenou pedindo desculpas.
– Foi fantástico, você deveria ter colocado esse som para todo o prédio
ouvir – falei.
Ele se inclinou sobre o microfone e declarou:
– Eu estava só brincando.
Veio em minha direção e me apresentei. Ele soube quem eu era na mesma
hora, o que me surpreendeu, porque na época eu não estava gravando, só
compondo, mas ele disse que gostava muito de algumas coisas que fiz —
“Baby, It’s You”, das Shirelles, e “Only Love Can Break a Heart”, a canção
de Gene Pitney. Falou algo sobre trompetes e flugelhorns – o que era
incomum para um cara do rock and roll –, aí perguntei:
– Onde você aprendeu sobre os metais?
– Viajando com Duke Ellington – respondeu.
Eu ri.
– O que você era, o menino que servia água para ele? – falei, brincando.
Porque ele era jovem demais para Duke.
Ele era mais alto do que eu imaginara e sua figura era impressionante.
Quando o pessoal da banda chegou, também ficou vidrado. O cara tinha
presença, entende? E, ainda por cima, vestia um casaco esporte vermelho
berrante. Quando contei que estávamos gravando Dionne Warwick, ele disse
que amava a voz dela e perguntou se podia ficar. Normalmente não gosto de
distrações externas quando gravo, mas Frankie tinha uma vibe do bem, sabe?
Ele era musical, dava para sentir. Por isso, concordei.
– Pode ficar aqui na cabine se estiver a fim.
E ele disse que tudo bem.
A música que gravávamos era para um filme chamado Uma certa casa
suspeita. Hal David escreveu a letra. Eu compus a música. Para ser honesto,
estávamos gravando porque, embora Brook Benton já a cantasse, eu queria
experimentá-la com Dione. Fizemos montes de takes com orquestra completa,
seção de cordas, cantores de apoio – como eu disse, trabalho até ficar perfeito
–, e meio que esqueci de Frankie sentado lá. Então, durante um playback, por
acaso me virei enquanto Dione cantava o trecho:
But a room is not a house, / And a house is not a home / When the two of
us are far apart / And one of us has a broken heart.7
Vi Frankie chorando.
– Você está bem? – perguntei.
– Sim.
Mas dava para ver que aquilo tinha mexido com ele. Ele nem limpou as
lágrimas. Só muito depois fui saber que ele era órfão. Sem mãe. Sem pai.
“Uma casa não é um lar.” Não é de surpreender, né? Poderia haver coisa mais
dura de ouvir?
7 Mas um quarto não é uma casa, / E uma casa não é um lar / Quando nós dois estamos distantes / E um
de nós está com o coração partido.
25
1950
– VOCÊS ME OUVIRAM? – BERROU A FREIRA. – EU DISSE PARA FAZEREM FILA!
Você sabe que elas vieram de Carmencita, a linda mãe de cabelos escuros
de Frankie.
Você sabe que eram para o marido dela, El Maestro, que na verdade era o
pai de Frankie.
Você sabe que permaneceram intocadas por nove anos – dentro de uma
bolsa no closet de El Maestro –, até ele dá-las a Frankie no dia em que o
menino deixou a Espanha.
O que você não sabe é onde Carmencita conseguiu as cordas.
Ou com quem.
Aconteceu na última manhã de sua vida. O sono havia sido agitado, a
criança por nascer mexia-se dentro dela. Carmencita levantou ao alvorecer,
vestiu-se em silêncio para não acordar o marido. Colocou um xale e caminhou
na direção do rio Mijares. Um nevoeiro pairava sobre o solo, esmaecendo
todas as cores em um branco leitoso. Era tão espesso que ela quase não viu
uma família cigana às margens do rio. O homem tinha orelhas grandes e
cabelo ralo. A mulher sentada ao lado dele parecia mais velha. Atrás deles
havia uma menininha com tranças ruivas compridas. Ela escovava um cavalo.
– Fique com Deus, señora – disse o homem.
Aquelas eram palavras perigosas durante a guerra. Mas Carmencita
respondeu:
– Fiquem com Deus também.
– Seu bebê virá logo – falou a mulher.
Carmencita colocou a mão na barriga.
– Posso lhe oferecer um lenço? – perguntou a mulher, metendo a mão
dentro de uma caixa de madeira.
– Não trouxe dinheiro – respondeu Carmencita.
– Não estamos vendendo essas coisas – esclareceu o homem. – Estamos
doando.
– Meu marido pensa nos outros…
– Não precisamos delas…
– Ele é um homem de Deus…
– Não passo de um comerciante de cavalos…
– Querem matá-lo, señora!
A mulher começou a chorar. Carmencita tirou a mão da barriga. Tanta
gente em seu país se encontrava naquela situação, fugindo de um lado para
outro. A guerra arruinava vidas. Seu marido tinha perdido a visão. Seu irmão
havia desaparecido. Padres eram caçados e famílias como aquela estavam em
fuga. Ela se perguntava a que mundo seu bebê estava prestes a chegar.
– Vocês podem ficar conosco – convidou Carmencita.
Os ciganos se entreolharam.
– Onde?
– Em nossa casa. Não temos muito espaço, porém vocês serão bem-
vindos.
– Mas somos estranhos.
– Digam-me seus nomes e não serão mais estranhos.
O homem sorriu.
– Um nome faz tanta diferença?
– Claro que não – respondeu Carmencita.
Ela sabia que, na guerra, às vezes era melhor não se saber os nomes.
– Obrigado, boa mulher – falou o homem. – Mas não poderíamos colocá-
la em risco dessa maneira.
Ele segurou a mão da esposa e chamou a filha, que largou a escova de
cavalo.
– Temos pouco a oferecer em troca de sua generosidade. Mas quem sabe
uma canção?
A criança começou a cantar uma suave melodia cigana.
– Que bela voz – afirmou Carmencita.
– Gosta de música? – perguntou o homem.
– Meu marido é violonista.
– Também sou. Ou era. Eu costumava tocar canções para o Senhor.
Infelizmente, meu violão se foi.
– Levaram – revelou a esposa.
– Sinto muito – disse Carmencita.
– Seu marido vai ensinar seu filho a tocar?
– E só no que ele fala.
– Então você deve ficar com isso.
Ele mexeu na caixa e retirou um conjunto de cordas enroladas, presas por
uma fita amarela. Pareciam novinhas, quase reluzentes.
Ela protestou.
– Não posso aceitar.
– Por sua bondade.
– Não é nec…
– Por favor. Para ligar a criança e o pai. São cordas especiais. – Ele baixou
a voz: – Elas têm vida dentro de si.
A esposa deu um tapa no braço dele.
– Ele quer dizer que foram feitas de seda, e a seda vem de vermes, e os
vermes um dia estiveram vivos.
Ela lançou um olhar severo para ele.
– Não fale por charadas.
Ele sorriu e se balançou para a frente e para trás. Quando a esposa lhe deu
as costas para cuidar do cavalo, ele se inclinou na direção de Carmencita.
– Não me referi a vermes – sussurrou.
O cigano tirou um rosário do bolso, com contas e uma pequena cruz
negras. Carmencita reparou que o rosário era montado em uma corda de
violão como as que ele havia acabado de lhe dar. Quando o homem puxou
pelas extremidades, a corda começou a cintilar num tom azulado como o
miolo de uma chama.
– Le duy vas xalaven pe – disse ele, expressão cigana que se traduz como
“uma mão lava a outra”, significando que estamos todos conectados.
Quando a esposa se aproximou, o homem enfiou o rosário de volta no
bolso. Ele fitou o céu branco.
– Melhor seguir seu caminho, señora.
– Têm certeza de que não querem ir junto?
– Deus nos protegerá. Assim como rezo para que Ele proteja você.
– Acenderei uma vela por sua família na basílica.
– San Pascual?
– Conhece?
Os olhos do homem se perderam ao longe.
– Estivemos lá uma vez. Com nossa outra filha. Fique atenta. São tempos
perigosos para se rezar.
Carmencita olhou as cordas.
– Posso perguntar seu nome? – questionou ela. – Mesmo que isso não
tenha importância?
– Ele é conhecido como El Pelé – declarou a esposa.
Carmencita caminhou para o nevoeiro. Virou-se um minuto depois, mas
eles haviam sumido.
A caminho de casa, Carmencita colocou as cordas dentro de uma
bolsinha, planejando dá-las a El Maestro quando o bebê nascesse. Naquela
noite, durante a tempestade, ela estava com a bolsa na catedral, onde foi
acender uma vela não só pelo bebê, mas também pela família cigana que
havia encontrado de manhã. Fez as preces, foi ao chão por causa das dores,
deixou cair a bolsa e não a viu mais. Não viu o receptáculo das velas ser
derrubado pelos invasores. Não viu o fogo das velas de oração que ela
acendeu unir-se ao fogo maior que consumiu tudo em seu caminho.
No dia seguinte, quando a polícia de Villarreal vasculhou as ruínas,
encontrou os restos carbonizados de Carmencita. Os invasores, presumindo
que fosse uma freira – devido ao hábito que a envolvia – haviam profanado o
corpo. Os despojos eram pavorosos demais para ser identificados, e os ossos
foram rapidamente sepultados em uma cova anônima.
Dois dias depois, um adolescente estava limpando os escombros quando
encontrou uma bolsinha que inexplicavelmente havia sobrevivido às chamas.
Dentro havia um documento de identidade. O garoto devolveu a bolsa ao
endereço citado, entregando-a à pessoa que atendeu a porta.
Um homem alto, cego, chamado Carlos Andres Presto.
Mais conhecido como El Maestro.
Ele agarrou a bolsa e afundou numa cadeira. Entendeu o que aquilo
significava – por que a esposa não aparecia havia três dias. Despejou o
conteúdo em cima da mesa de madeira. Tateou um objeto enrolado.
– O que é isso? – perguntou ao garoto.
– Parecem cordas.
– De violão?
– Sim.
El Maestro mordeu o lábio.
– Deixe-me sozinho. Agora!
O garoto saiu voando.
Segurando o presente que nunca foi entregue, a gentileza final da esposa,
El Maestro desabou. Chorou até anoitecer, sem sair da cadeira. Então colocou
tudo de volta dentro da bolsa e escondeu-a no closet. Aquelas cordas com
“vidas” dentro de si permaneceram intocadas por nove anos, assim como a
história da bondade de um estranho permaneceu ignorada.
Semanas depois, o homem conhecido como “El Pelé” correu para ajudar
um padre que estava sendo espancado por soldados da República. Foi detido e
mandaram-no entregar o rosário. Quando se recusou, foi abatido por um
pelotão de fuzilamento. Os matadores viram seu corpo cair, mas não viram
uma outra coisa: o rosário, no momento de sua morte, adquiriu um tom de
azul flamejante.
Décadas depois, El Pelé seria canonizado pela igreja católica como o
primeiro santo cigano. As pessoas ainda falam de sua coragem, humildade e,
claro, daquele rosário.
Ninguém menciona as cordas que ele doou.
Elas contariam sua própria história.
27
1969
A MULHER DA VAN ESCALAVA O PESCOÇO DE FRANKIE COM BEIJOS. ELE SE sentia tão
pesado que não conseguia se mexer. Frankie contemplou a lateral do corpo
dela, o top de algodão cor de laranja, o short jeans, as pernas bronzeadas e as
unhas dos pés pintadas de vermelho, preto, roxo.
– Sem azul – murmurou Frankie.
– Hã?
– Você não tem azul.
– Unhas do pé azuis? Você é engraçado.
– Am I blue… – disse ele, meio que cantando.
– Sei quem você é.
– Hã?
Ela o beijou um pouco mais.
– Você é o cantor…
– Minha esposa está esperando…
– Frankie Presto.
– Café da manhã.
– Você vai mesmo se apresentar?
– Tenho que cozinhar esses ovos.
– Você não terminou a história… depois que fugiu.
– Toquei violão.
– Você era um moleque.
– Eu era bom.
– Quanto?
– Salvei a vida dela.
– Quem?
– Aurora.
– Quem é Aurora?
Os olhos de Frankie ficaram vidrados.
– Continue cantando para mim… – pediu a mulher.
Mas os pensamentos atrapalhados de Frankie estavam nas cordas azuis,
em Aurora York e em onde ele a deixara, grávida, dormindo sobre uma
manta. Ele sabia que tinha que voltar, não queria decepcioná-la, ser
irresponsável como havia sido tantas noites antes.
– Tenho que ir… – disse ele de repente.
Frankie levantou tão rápido que a mulher escorregou de cima dele,
esborrachando-se no chão. Agarrou suas coisas e saiu aos tropeções pelas
portas de correr, que rosnaram como leões quando ele as afastou.
– Ei, o que é isso? – bradou a mulher atrás dele.
28
1951
– MAS O QUE É ISSO? — GRITOU UM HOMEM AO ABRIR O PORTA-MALAS DO CARRO.
1952
AGORA, UMA PEQUENA ANTEPOSIÇÃO (OU UMA “ANACRUSE”, AS NOTAS QUE
precedem o primeiro tempo forte de uma canção).
Frankie fugiu do orfanato após o reencontro com o cão pelado. Nos meses
seguintes, achou trabalho na região de Detroit chamada de Black Bottom,
onde, apesar da idade, fazia shows à noite com grupos de jazz em troca de
comida para ele e para o cachorro e de um colchão no porão dos clubes. Foi lá
que fez amizade com o trompetista Marcus Belgrave, tocou junto com o
quarteto dele e certa noite salvou a vida de uma jovem loura, distraindo o
agressor com sua velocidade espantosa ao violão.
E, embora ela parecesse muito mais velha agora, Frankie acreditava que
aquela jovem fosse Aurora York, a menina da árvore. O homem da faca
admitiu que acabara de conhecê-la e disse que ela estava de passagem, vinda
do Tennessee. E foi por isso que Frankie se escondeu num carro rumo ao sul.
Quando se deu conta, estava dormindo no sofá de Hampton Belgrave,
primo de Marcus.
Todo mundo entra numa banda nesta vida.
Algumas vezes por acaso.
Seis meses depois daquela viagem escondido no porta-malas, Frankie
obteve sua primeira contratação solo, na esperança de atrair Aurora até ele:
cantar na frente de uma concessionária de automóveis de Nashville.
Carros, carros, carros,
Temos carros, carros, carros…
O proprietário da Vines Fine Cadillacs, o Sr. Rutland Vines, era um
empresário careca com queixo duplo que gostava de enganchar os dedos nos
suspensórios. Havia contratado Frankie (na esperança de atrair compradores)
por insistência de seu mecânico, Hampton Belgrave (que sem saber havia
transportado o garoto para o Tennessee).
– Meus Cadillacs não são diferentes dos Cadillacs lá da Shimey Motors –
declarou Rutland. – A única diferença, imagino, é a experiência que
proporciono ao cliente, entende?
Frankie, na verdade, não entendia. Mas Hampton disse que o homem
pagaria, e essa parte Frankie entendera.
– Apenas faça uma música boa, tipo de igreja, gospel, como Red Foley, ou
hillbilly boogie, como Tennessee Ernie Ford, e quem sabe um honky-tonk
também – instruiu Rutland. – Deixe eles felizes. Está entendendo?
Frankie assentiu com a cabeça.
– E você tem que se vestir direito. Arranje uma gravata bonita. E passe
brilhantina nesse cabelo. Tem cabelo demais saltando aí. Ouviu?
Naquela noite, de volta à casa de Hampton, Frankie plantou-se ao lado do
rádio enquanto o amigo preparava um ensopado de carne de porco, milho e
cebola. Os dois estavam juntos havia meses, após Hampton telefonar para o
primo e Marcus confirmar que Frankie não era de forma alguma o capeta.
Hampton era um homem atarracado, de pescoço curto e cotovelos
grossos, apreciador de tortas, chapéus-coco e blues. Sempre sonhara em fazer
música, embora consertasse automóveis para ganhar a vida. Tocava um pouco
de harmônica (ele pegou uma pequena quantidade de mim ao nascer) e à noite
colocava discos que Frankie acompanhava ao violão.
– Seu ouvido é bom, moleque – dizia a Frankie. – Você ouve, você toca.
Naquela noite, Frankie girou o dial de uma rádio para outra, aprendendo
rápido um repertório de country. Boa parte da música que os locutores
chamavam de “honky-tonk” ou “hillbilly” era bastante simples, três ou quatro
acordes, tocar a nota grave, dedilhar. Mas não era fácil imitar os cantores.
Eles trinavam ou espichavam as palavras no sotaque sulista. Ainda assim,
Frankie gostou da música, pois contava histórias de coração partido, amor e
bebedeira. Além disso, era muito mais fácil de tocar que os 12 estudos de
Heitor Villa-Lobos a que El Maestro costumava submetê-lo.
– Yodel-ley-ee-hee-ho – cantou Frankie, tentando imitar o som de
yodeling (ou iodelei) numa canção chamada “Chime Bells”, de Elton Britt. –
Yodel-ley-ee-hee-ho…
Hampton surgiu, carregando uma enorme concha de sopa, e desligou o
rádio de supetão.
– Pare com isso! Você tá quase me levando à loucura! – Ele sacudiu a
cabeça. – Vista-se, moleque. Vou levar você num lugar onde há música de
verdade.
O cão pelado ergueu-se.
– Cachorro não pode ir – disse Hampton.
O cachorro sentou-se.
– Yodeling – resmungou Hampton. – Deus acuda esse mundo.
Naquela noite, Hampton ciceroneou Frankie pelas ruas de Nashville.
Passaram por um prédio de tijolos vermelhos chamado Ryman Auditorium.
– É onde fazem o programa Grand Ole Opry – disse Hampton. – Toca nas
rádios do país inteiro. Aquele lugar faz o artista ficar famoso.
– Posso tocar lá? – perguntou Frankie.
– Acho que sim. Basta as pessoas verem como você é rápido.
Hampton coçou o queixo.
– Você quer fazer isso?
– Claro.
– Tá certo então. Talvez faça mesmo.
Ele levou Frankie até Printer’s Alley, região de clubes noturnos que
apresentavam música country. Quando as portas se abriam, ouviam-se rabecas
misturadas a violões e contrabaixos.
– Tá captando o som? – perguntou Hampton.
– Podemos entrar?
– Você pode. Mas os clubes para pessoas de cor ficam mais adiante.
Frankie não entendia bem a regra “de cor” que Hampton mencionava com
frequência. Mas sabia que era injusta. Ele nem era americano e mesmo assim
podia entrar em lugares que Hampton não podia.
– Então vamos a esses outros clubes – disse Frankie.
Hampton sorriu.
– Certo, moleque. Mas no estacionamento da loja você não vai poder
tocar nada da música que ouvir por aqui. Ou Rutland te dá um pé na bunda.
Naquela noite, Hampton levou Frankie para cima e para baixo pela rua
Jefferson, a lugares chamados Club Baron, Del Morocco, Maceo’s, Sugar Hill
e Pee Wee’s. Os olhos do garoto se esbugalharam com a música que ouviu:
violões e baixos desconexos, canto rosnado, pianistas cujos dedos pareciam
correr e andar ao mesmo tempo. Havia risos, gemidos e gente levantando da
cadeira e gingando os quadris ou gritando “Vai! Vai! Vai!”. Frankie amou. Era
como se a música e a plateia estivessem no mesmo palco. Até Hampton, com
seu chapéu-coco, foi dançar um pouco, voltando suado e abanando a mão
como um leque.
– E aí, Hampton, quem é esse moleque? – perguntou um homem que
andava pelo salão segurando uma bebida. – Arranjou um filho branco?
Hampton riu.
– Petey, esse moleque bota no chinelo a maioria dos dedilhadores dessa
cidade. Tô dando um jeito de empresariar ele. Botar ele no Opry.
– Empresariar?
– Isso.
– Você é mecânico de carro.
– No momento.
– Você entende de música?
– Entendo o suficiente.
– Quando vai começar a empresariar esse garoto?
– Assim que ele encontrar o que está procurando.
– O menino tá procurando o quê?
– Que que todos os moleques da idade dele procuram?
Os dois desataram a rir. Frankie sentiu que ficou vermelho.
Claro que Frankie não havia esquecido o motivo de ter ido para
Nashville: encontrar Aurora York. Ele tinha certeza de que ela era a garota
naquele clube de Detroit. Mas não imaginava que a cidade fosse tão grande.
Para Frankie, o mundo estava ficando cada vez maior, e tornava-se cada vez
mais difícil encontrar as pessoas.
Nos dias de semana, ele caminhava pelas ruas comerciais de Nashville
todas as manhãs, parando nas lojas para perguntar por uma garota chamada
Aurora. Muitos perguntavam se ele tinha uma foto.
– Não – dizia. – Mas ela fala de um jeito engraçado. Com sotaque
britânico.
– Filho, você também fala de um jeito engraçado – respondiam.
Ninguém se lembrava dela. Em pouco tempo, tendo esgotado os pontos
comerciais, Frankie começou a bater na porta das casas, perguntando a mães
ou senhoras de idade se tinham visto uma menina loura da idade dele. Pegou
o emprego na concessionária de Cadillacs e falava para todo mundo que era
da Espanha, na esperança de que alguém comentasse com Aurora. Com
certeza ela ficaria curiosa a respeito de um violonista da Espanha.
Quando o tempo começou a esquentar, Frankie reparou nos adolescentes
em conversíveis a caminho de parques de diversões ou lagos. Sentiu um
pouco de solidão. Hampton era bacana, mas já tinha idade; os filhos estavam
espalhados por aí e a esposa havia falecido. E no trabalho ninguém realmente
conversava com Frankie. Apenas o cão pelado lhe dava uma esperança de
dias melhores. Frankie brincava muito com o animal, rolando pelo chão e
coçando atrás de suas orelhas.
Claro que, quando ficava triste de verdade, Frankie recorria ao violão.
Hora após hora. Dia após dia. Praticando, tocando, praticando mais um
pouco, lapidando as progressões de blues que ouvia nos clubes da rua
Jefferson. Para os meus discípulos, o mapa é simples. Todas as estradas
solitárias levam de volta à música. Eu acolho. Eu perdoo.
Jamais abandono.
Será que os humanos podem dizer o mesmo?
Certo dia, Frankie estava diante da concessionária, cantando o gospel
predileto de Rutland, chamado “By and By”.
Temptations, hidden snares / Often take us unawares, / And our hearts are
made to bleed / For a thoughtless word or deed; / And we wonder why the
test / When we try to do our best, / But we’ll understand it better by and
by.8
Um carro parou e, pela porta do carona, desceu um homem alto e magro
usando um chapéu de caubói. Bebeu de um cantil e limpou a boca com o
braço. Frankie reparou nas orelhas de abano e na linha estranhamente delgada
dos lábios, que parecia traçada de uma ponta a outra da face.
O homem repousou os braços no capô do carro e balançou a cabeça
acompanhando a canção de Frankie.
– Você vem? – perguntou o motorista.
– Você vai lá dentro e vê o que eles têm – disse o homem. – Vou ouvir a
música.
O amigo entrou para falar com Rutland. Frankie terminou a canção. O
homem alto bateu palmas.
– Mas que trabalho esse, hein? Tocar numa loja de carros.
– Sim, senhor.
– Você aceita pedidos?
Frankie olhou em volta. Não havia outros clientes.
– Sim, senhor. Se eu souber.
– Toque a canção mais triste que tiver.
Frankie hesitou. Estava quente e ele sentia o suor escorrendo pelas
têmporas.
– Por que você quer ouvir uma canção triste?
O homem tomou outro gole do cantil.
– São bem mais verdadeiras que as alegres, você num acha?
– Canções alegres podem ser verdadeiras, se você está alegre.
O homem deu uma sonora risada.
– De onde você é, filho?
– Espanha – respondeu Frankie, pensando em Aurora. Ele conferiu se
Rutland estava olhando e anunciou: – Esta é uma canção triste de lá.
E tocou “Lágrima”, a composição do xará Francisco Tárrega, a mesma
que a mãe dele cantarolou, que ele ouviu Segovia tocar e que Tárrega compôs
por estar com saudades de casa.
O estranho alto ouviu atentamente, olhos fixos no asfalto, como se
houvesse um buraco através do qual estivesse enxergando.
Quando Frankie terminou, o homem coçou a sobrancelha.
– Bem, filho, essa foi ótima, simplesmente ótima. – Ele olhou para o alto.
– Você sabe que é bom demais para estar trabalhando aqui, certo?
– Por favor, não conte ao Sr. Rutland que toquei isso – implorou Frankie.
O homem sorriu de modo irônico.
– Seu segredo está a salvo. – Aproximou-se de Frankie. – Posso
experimentar esse violão?
Frankie olhou para o interior da loja.
– Tá tudo bem, filho – disse o homem. – Seu patrão não vai se importar.
Frankie entregou o violão.
– Instrumento robusto – falou o estranho, examinando-o.
– Sim, senhor.
– Madeira boa. Braço forte. Mas o selo está coberto. Como aconteceu
isso?
– Não sei, ele veio assim.
O homem sacudiu os ombros.
– Certo. Esta é a canção mais triste que conheço. Ouça.
Ele cantou uma canção chamada “I’m So Lonesome I Could Cry”. Falava
sobre o apito de um trem, noites longas, o lamento de pássaros e a lua
escondendo-se atrás de uma nuvem. Cada verso terminava com o homem
dizendo o quanto estava solitário, até que, no final, o próprio Frankie sentia-se
prestes a chorar.
– O que você acha? – perguntou o cara alto depois do último acorde.
– Foi o senhor quem compôs?
– Foi, sim.
– É triste.
– Falei pra você.
– Para quem escreveu?
– Minha esposa. Mas ela não é mais minha esposa. – Ele tossiu. – Você
tem uma garota?
– Estou esperando por ela.
– Aqui?
– Sim.
– Você pode ter que esperar um bocado.
– O senhor é um cantor muito bom mesmo.
O homem deu uma risadinha.
– Filho, você não sabe quem eu sou, né?
– Não, senhor. Quem é o senhor?
O homem olhou para o interior da loja, acenou para o acompanhante,
depois fitou Frankie e deu um sorriso largo.
– Luke – disse ele, estendendo a mão. – Luke the Drifter é meu nome
artístico.
– O senhor grava discos?
– Às vezes.
Frankie apertou a mão dele.
– Sou Frankie Presto.
– Quer me ajudar a escolher um carro, Frankie Presto?
De repente, Rutland veio voando da loja, com o maior sorriso que Frankie
já vira. Parecia uma criança, pensou Frankie, com as pernas curtas e gordas
saltitando na direção deles.
– Olááá! – exclamou, agarrando a mão do homem. – Não posso acreditar!
Sr. Williams, é uma honra! Quer dizer, sou um fã, um verdadeiro fã de sua
música. Você é o maior artista de nosso tempo! Oh, céus! Oh, céééus! Hank
Williams!
O homem alto virou-se para Frankie e deu uma piscadinha.
– Estou eletrizado, honrado, já disse isso, não disse? – tagarelou Rutland.
– Estou honrado por lhe vender um carro, senhor! Um Cadillac, claro! O
melhor que temos!
O homem ajeitou o chapéu.
– O que você tem em azul?
Logo depois estavam percorrendo fileiras de veículos. Rutland não parava
de falar um segundo, perguntando sobre uma e outra canção. Falou de “Hey,
Good Lookin’”, “Move It On Over”, “Cold, Cold Heart” e de uma chamada
“I Saw the Light”, que ele disse que o coro de sua igreja tinha tentado cantar.
– Música linda, Hank, tão cheia de alma!
O homem de chapéu ia passando os dedos pelo capô de cada carro, até
deparar com um modelo azul-bebê e parar.
– Uau, este é lindo – disse ele.
– Bem que pode ser este – concordou o acompanhante.
– Não tem melhor, Hank – apoiou Rutland rapidamente.
– O que você acha, Frankie Presto? – perguntou o homem.
Frankie sentiu todos os olhares em cima dele. Girou o violão para as
costas e colocou a mão no capô. Sentiu algo gelado e apavorante, sua
expressão ficou sombria. Puxou a mão como se tivesse levado um choque.
– O que é isso, rapaz? – perguntou Luke, ou Hank.
– Não leve este carro – balbuciou Frankie.
– Mas o que foi?
– Não leve este carro. Tem algo de ruim nele.
– Oh, Deus, ele não entende de nada, é só um adolescente estúpido –
protestou Rutland, lançando um olhar carrancudo para Frankie. – De qualquer
forma, hoje é o último dia dele aqui. Volte ao seu posto, garoto. – Rutland
forçou um sorriso. – Sinto muito, Hank. Estou certo de que podemos fazer
uma excelente proposta para você. É um carro ótimo. Cadillac. Simplesmente
o melhor.
O homem com chapéu de caubói sacudiu os ombros para Frankie e
Frankie afastou-se lentamente com o violão às costas.
Uma hora depois, concluída a papelada, os dois homens saíram do
escritório e voltaram para o carro deles. Frankie estava sozinho ao sol,
dedilhando acordes e tentando não chorar. Não queria perder o emprego.
Como Aurora iria encontrá-lo?
– Vamos seguir nosso rumo agora, Frankie Presto – disse o homem.
– O senhor comprou aquele carro?
– Sim.
Frankie baixou o olhar.
– É só um carro. Seu patrão fez uma oferta boa. E é difícil deparar com
uma boa oferta. Posso não necessitar do dinheiro, mas as pessoas para quem
eu devo com certeza precisam.
O homem riu da própria piada. Frankie não disse nada. O homem pegou
um frasquinho de pílulas no bolso. Engoliu uma e empurrou com o que quer
que houvesse no cantil. Em seguida escorregou para o assento do carona,
fechou a porta e pendurou o braço para fora da janela.
– Senhor? – chamou Frankie.
– Pois não?
– Quem é o senhor realmente?
O homem coçou o nariz.
– Se quer ganhar a vida fazendo música, filho, você vai ter que ser um
monte de gente. Vai gostar mais de ser uns do que outros. – Ele sacudiu a
cabeça para trás na direção da loja. – Não vá embora sem pegar um envelope
que seu patrão tem para você.
O carro foi embora com uma nuvenzinha de fumaça saindo do cano de
descarga. De repente ficou tudo silencioso. O sol torrava, sem uma nuvem
para abrandar o calorão. Frankie tocou um pouco mais. Quando eram seis
horas, foi ao escritório, onde Rutland, claramente aborrecido, entregou-lhe um
envelope e disse que não voltasse mais.
– Eu nem deveria estar lhe dando isso – falou o patrão. – Você quase me
custou aquela venda. É melhor aprender a ter respeito se espera trabalhar em
algum lugar de novo.
Na caminhada para a casa de Hampton, Frankie parou e sentou na beira da
estrada. Estava com medo do que Hampton diria sobre a demissão. Em
primeiro lugar, ele jamais deveria ter conversado com Hank, ou Luke.
Abriu o envelope e ficou boquiaberto. Dentro havia 107 dólares, a
comissão da venda do Cadillac que Hank Williams insistiu que fosse paga a
Frankie e a mais ninguém. Era mais dinheiro do que Frankie jamais tinha
visto na vida, mais do que ganharia em seis meses no estacionamento da loja.
Também havia a letra de uma canção rabiscada num pedaço de papel:
Sunflowers waiting for the sunshine. / Violets just waiting for dew. / Bees
just waiting for honey / And honey, just waiting for you!9
Embaixo as seguintes palavras: “Boa sorte na espera de sua garota.” E
assinado “Hank Williams”.
Seis meses depois, na madrugada de ano-novo de 1953, Hank Williams,
com a corrente sanguínea cheia de morfina, morreu quietinho no banco de trás
de um Cadillac azul-bebê. O motorista, tentando levar Hank para uma
apresentação, parou num posto de gasolina e descobriu o cantor, gelado e
inanimado, debaixo de uma coberta, morto aos 29 anos de idade.
O que Frankie sentiu no capô daquele carro foi o que eu antevi, o que
desejei que ele transmitisse: que a morte estava à espreita, que o cantor
precisava tomar jeito, maneirar, parar com a bebida e a medicação. Você me
acha intrometida? Por quê? Eu disse que amo meus discípulos. Disse que as
visitas mais tristes são aquelas que acontecem cedo demais. Disse que posso
ver todos os futuros. Não tenho o direito de compartilhar esse poder de vez
em quando? Não devo fazer nada? Devo deixar a música morrer sempre?
8 Tentações, armadilhas ocultas / Com frequência pegam-nos de surpresa / E fazem sangrar nosso
coração / Por uma palavra ou ação irrefletida / E nos indagamos por que o teste / Quando tentamos fazer
nosso melhor / Mas entenderemos melhor pouco a pouco.
9 Girassóis esperando a luz do sol / Violetas esperando o orvalho / Abelhas esperando o mel / E eu, meu
bem, só esperando por você!
30
1969
ESTAVA ESCURO AGORA, E FRANKIE AVANÇOU AOS TROPEÇÕES PELA MULTIDÃO de
Woodstock até não ver mais a van roxa da mulher. Havia chovido e os pés
dele chapinhavam na lama. Virou o violão nas costas. O palco. Ele tinha que
chegar ao palco. Onde estava o palco? Como se perdera tanto? Ouviu risos
uivantes, virou-se e viu um grupo de jovens deslizando em poças de lama e
guinchando quando o barro espirrava neles.
– Sou o Rei da Lama! – gritou um rapaz.
Frankie foi em frente, arrastando-se, passando por um homem que
distribuía sanduíches de mortadela e um grupo que compartilhava um jarro de
água. Esbarrou nas pessoas com a caixa de ovos, desviando bruscamente,
como se circulasse por um planeta estranho e acidentado, passando por
barracas improvisadas, filas de sacos de dormir e uma mãe nua lavando duas
crianças em um laguinho.
Viu pessoas numa fila comprida e, com a mente ainda confusa, entrou no
fim dela, calculando que alguém lá na frente poderia orientá-lo.
– Para quem você quer ligar, irmão?
– Hã?
Um homem sardento sorria para ele. Estava sem camisa e tinha o peito
cabeludo. O cinto apertava a cintura flácida, que se derramava em volta.
– É uma fila de telefone, cara. Para quem você vai ligar?
– Fila de telefone?
– Sim. Estão deixando a gente usar os telefones de graça. Tenho que ligar
para a minha velha. Eu deveria ter voltado ontem.
Frankie sentiu o suor em seu rosto. Movimentou a mandíbula. O que quer
que fosse a pílula verde da mulher, estava fazendo efeito. Os ossos pareciam
estar desconjuntados.
– Você também está tentando ir para casa, irmão?
– O palco.
– Vai tocar?
– Aham.
– Lá longe. Lá longe!
O homem semicerrou os olhos. Frankie semicerrou os dele também.
– Ei, irmão!
– Sim?
– O palco é naquela direção.
31
1953
– O PALCO ESTÁ LOGO ATRÁS DESSA PORTA – SUSSURROU HAMPTON.
1954
SOBRE O CACHORRO.
Frankie agora estava com 18 anos, o que significava que seu companheiro
de quatro patas era ainda mais velho. Na vida dos caninos, isso é raro. Mas
aquele era um animal incomum, e sua longevidade era claramente
determinada pela necessidade, não pelos anos. O cachorro estava lá para tirar
Frankie do rio. Estava lá para distrair os soldados na fábrica de sardinhas.
Estava lá para fazer companhia a Frankie quando Baffa foi preso. E, de algum
modo, estava lá em Detroit, do lado de fora do orfanato, quando Frankie
precisou desesperadamente de um amigo.
Já em Nova Orleans, o cachorro esperava à noite em quartos de hotel
enquanto Frankie ganhava dinheiro tocando com grupos de doo-wop e
quartetos de jazz. De dia, o animal seguia Frankie para cima e para baixo,
esperando do lado de fora das lojas enquanto Frankie perguntava sobre
Aurora. A cada vez que meu filho saía abatido, sem qualquer informação
nova, o cachorro levantava-se, a língua arfante, e acompanhava Frankie até a
próxima parada.
Porém, quando 1954 chegava ao fim, Frankie reparou que seu
companheiro estava ficando mais lento. Levava mais tempo para andar pelas
ruas ou cruzar a grama alta embaixo da ponte Huey P. Long, que atravessava
o rio Mississippi. Frankie praticava embaixo da ponte três horas por dia,
enquanto os trens passavam lá no alto. Ele se tornara bastante hábil no rhythm
and blues e dedilhava na batida das rodas quando atingiam uma lacuna na
junção dos trilhos. O cão pelado olhava para cima com o barulho.
– Chuckutty, chuckutty – cantava Frankie.
Mas, nas últimas semanas, nada do que Frankie tocasse fazia a criatura
erguer a cabeça; nem mesmo quando imitou o trinado agudo de um jovem
Elvis Presley e o ritmo rascante de uma canção de seu novo disco, chamada
“That’s All Right (Mama)”.
– Você é um espectador difícil – disse Frankie.
O cachorro espirrou.
– O que você quer ouvir?
O cachorro piscou e olhou diretamente para ele.
– Hum. Algo lento e bonito?
Frankie recostou-se numa árvore e começou a tocar numa progressão 2/5.
O ar estava quente e o sol escondia-se atrás de uma única nuvem branca. A
memória de Frankie vagou. Antes que se desse conta, estava tirando
“Maalaala Mo Kaya”, a canção que certa vez tocara para homenagear os
mortos enterrados em um campo espanhol. Frankie não havia tentado tocar
aquela obra por muitos anos e ficou surpreso com a facilidade com que ela
voltou à sua lembrança. A melodia simples era tranquilizadora. O cão pelado
deu um longo bocejo silencioso.
Quando Frankie terminou, o animal veio até ele e Frankie coçou suas
orelhas. O cachorro lambeu seus dedos.
– Obrigado – agradeceu Frankie, rindo. – Agora estou todo pegajoso.
O cachorro deu meia-volta e andou para a beira do rio. A corrente
lamacenta movia-se ligeira.
– Ei, cuidado! – gritou Frankie, inclinando-se para a frente.
E, pela primeira vez em todos aqueles anos, o cachorro virou-se e rosnou,
fazendo Frankie inclinar-se para trás, confuso.
Existem canções que você toca e tem que recomeçar, e canções que você
toca e nunca acerta. Mas, quando uma canção está concluída, não há mais
nada que você possa fazer.
O cão pelado pulou na água e foi chapinhando rio adentro.
Frankie assistiu a tudo inerte, sabendo, de algum modo, que não deveria ir
atrás enquanto o último membro de sua banda original de três elementos
desaparecia nas águas do Mississippi.
Um instante depois, ouviu um farfalhar na grama alta atrás dele. Girou a
cabeça e semicerrou os olhos ao sol. Viu um vulto pairando acima dele,
sorridente.
– Ouvi dizer que você estava me procurando – disse Aurora York.
Cecile (York) Peterson
Irmã de Aurora York, matemática aposentada da Escola de
Economia de Londres
NOSSO PAI ERA UM ESPIÃO.
Foi assim que chegamos à Espanha, minha cara. Ele foi espião durante a
Segunda Guerra Mundial e achou que ficaria mais seguro lá do que na
Inglaterra. E suponho que, dada a Blitz – os bombardeios estratégicos da
aviação alemã contra o Reino Unido –, ele estava certo. Meu pai trabalhou
para a inteligência britânica na Operação Fortitude. Na verdade, ela é bastante
famosa. Distraiu os alemães da invasão da Normandia, fingindo que os
aliados planejavam ataques maiores em outras partes… Oh, sim, minha cara.
Escreveram livros a respeito. Faça uma consulta.
Meu pai trabalhou com um agente duplo espanhol em quem os alemães
confiavam. Era tudo muito produtivo – exceto para nossa família. Papai nos
colocou em uma casinha perto de Valência – minha mãe, Aurora e eu. E então
nos deixou para sempre. Foi assassinado em 1945, oito meses depois da
Normandia. Encontraram o corpo num quarto de hotel em Barcelona,
estrangulado com um arame. Acredito que ele tenha sido traído. Nunca se
sabe. “O sigilo faz parte da vida que escolhemos”, ele costumava dizer.
Minha irmã e eu éramos bastante diferentes. Aurora era um espírito livre.
Vestia roupas esquisitas com estampas descombinadas e gostava de dançar já
na primeira hora da manhã. Amava subir em árvores, correr na chuva e
besuntar o rosto com massa de tomate. Eu era mais estudiosa. Recatada.
Resguardada. Filha de minha mãe, suponho. Os números me intrigavam.
Matemática. Ciência. Eu preferia as coisas organizadas. Aurora apreciava as
coisas bagunçadas.
Daria para descrever Aurora e Frankie assim. Bagunçados.
Para ser exata, ouvi falar de “Francisco” anos antes de encontrá-lo. Minha
irmã conheceu-o quando era bem novinha, nos bosques aqui da Espanha. Não
sei o que eles disseram ou fizeram naquela tarde, mas, o que quer que tenha
sido, ele se tornou parte do vocabulário dela. “Um dia, quando eu casar com
Francisco…” ou “Um dia, quando eu tiver uma casa com Francisco…” eram
algumas das frases que costumava dizer. Honestamente, pensei que ele fosse
imaginário. Ela tinha apenas 7 ou 8 anos, e você sabe como são as
menininhas. De qualquer forma, sendo filhas de um espião, verdade e mentira
com frequência eram indistinguíveis em nossa casa.
Só quando ela fugiu, ao chegar à América, me dei conta de que
“Francisco” era uma pessoa real. A esta altura Aurora era uma adolescente e
naquele verão tinha ido para o Tennessee com nossa mãe e nosso padrasto
para uma conferência médica. Ele era médico. Escocês. Temperamento
medonho. Ele e Aurora viviam discutindo – ela odiava a ideia de minha mãe
substituir meu pai. E certo dia, durante aquela viagem, tiveram uma briga
horrível. Ela tinha uma mala nova amarela e, quando minha mãe voltou para o
quarto do hotel após o evento, a mala havia sumido e Aurora idem. Eles a
procuraram por algumas semanas, mas por fim desistiram e voltaram para
casa.
Lembro-me deles entrando em casa – duas pessoas, em vez de três – e de
me sentir muito traída, como se tivessem saído com todas as minhas coisas e
voltado de mãos vazias. O que me sobrara da infância com minha irmã, meu
padrasto levou embora. Nunca o perdoei por isso. Talvez nunca tenha
perdoado Aurora por deixar mamãe e eu sozinhas com aquele homem.
Ao longo dos meses, recebemos cartões-postais dizendo que ela estava
bem, mas com poucos detalhes sobre qualquer assunto, exceto que ela
acreditava que “Francisco” estava em algum lugar da América também, ela
podia sentir. Desconsiderei a ideia, acreditando que fosse mais um dos
devaneios da minha irmã maluca. Francamente, não sei como ela sobreviveu.
Então, num dia de 1955, ela telefonou para nosso apartamento em
Londres. Eu devia ter 23 anos; portanto, ela tinha 18 ou 19. Atendi o telefone
e ouvi Aurora dizer:
– Cecile, vocês têm que vir. Vou me casar!
Nem mesmo um “olá”. Fiquei pasma ao escutar a voz dela.
– Aurora? É você mesmo? – perguntei.
– Ele finalmente me encontrou, Cecile – respondeu ela.
– Quem encontrou você? – questionei.
– Francisco, é claro!
Era assim que a coisa funcionava entre os dois. Longos períodos de
ausência – e aí um romance louco e intenso. Acredito que ela e Frankie foram
feitos um para o outro, mesmo que raramente permanecessem juntos. Era
como se estivessem ligados por um segredo que os alegrava na maior parte do
tempo e os ensandecia no restante.
Apaixonados? Oh, sim, minha cara. Frankie e Aurora eram
profundamente apaixonados, mais do que quaisquer pessoas que eu já tenha
conhecido, e isso inclui meu próprio casamento, que durou 42 anos. Lembro-
me de Frankie praticando ou compondo, de minha irmã chegando por trás e
beijando sua orelha – sempre a orelha –, e ele dizendo: “Aurora quer dizer
alvorecer.” Eles riam, sabe-se lá por quê. Faziam pequenos duetos cantando
juntos. Tinha a canção espanhola sobre um vagão de trem. Laaaa-paaan-de-
ro la-la-la, la-la-la-la-la. Conhece?… Pensei que, estando aqui na Espanha…
Enfim. Deixa para lá.
A fase mais feliz dos dois foi logo antes de Frankie ficar famoso, quando
se casaram. Moravam em Nova Orleans. Comprei passagem para ser dama de
honra de Aurora. Meu padrasto proibiu minha mãe de ir. Dá para acreditar?
Ele disse: “A vadiazinha já nos causou dor de cabeça suficiente.”
Sinceramente, aquele homem era uma cobra.
Assim, viajei sozinha para os Estados Unidos, mas, quando cheguei a
Nova Orleans, descobri que, como nem Frankie nem Aurora tinham a
documentação necessária, não podiam casar-se legalmente.
Isso não os deteve. Realizaram o casamento num clube noturno do Bairro
Francês… Não, não recordo o nome. Mas lembro que começou às duas da
madrugada, após o estabelecimento fechar. Havia muitos músicos lá. Fats
Domino tocou piano. Ele era amigo de Frankie. E vários artistas de jazz
também.
Foi a primeira vez que vi Frankie se apresentar. Ele era de fato brilhante.
Entendi por que minha irmã ficara caidinha por ele. Cantava como um
rouxinol e era tremendamente atraente. Na época, ele trabalhava com um
grupo de… é “doo-wop” a música? Sim… Exato… Cada um tinha um
registro vocal diferente, um muito grave, outro muito agudo, um
intermediário, e fizeram uma canção chamada “Earth Angel” para minha
irmã. Frankie ajoelhou-se no momento em que a canção pergunta: “Você será
minha?” E Aurora começou a chorar quando ele colocou um anel no dedo
dela. Fiquei tão feliz por ela! Era minha irmã, afinal de contas. E ninguém
poderia ser mais feliz do que Aurora quando ficava feliz. Ela agarrava você
pelas mãos, rodopiava seus braços e ficava dizendo “Não é maravilhoso?!”,
como se fosse uma garotinha.
Talvez por isso ela e Frankie se sentissem atraídos um pelo outro. Eles
pouco puderam ser crianças quando eram crianças. Então, ao se tornarem
adultos, muitas vezes agiam como crianças. Dormiam tarde. Faltavam a
compromissos. Sempre rindo e se desculpando pelas coisas. Mas já não eram
crianças, certo? E foi aí que os problemas começaram.
Quando ela o deixava por longos períodos, eu a censurava, mas Aurora
sempre tinha uma desculpa: ele tinha que trabalhar sua música, ela tinha que
tratar de alguma coisa. Ele enviava dinheiro para ela. Ela mandava de volta.
Ele telefonava. Ela desligava. Ela sabia que havia outras mulheres. Isso não a
perturbava. Eu dizia:
– Aurora, se ele é seu marido, vocês têm que ficar juntos.
– Oh, Cecile, estamos juntos. Estamos apenas afastados – explicava ela.
Eles guardavam muitos segredos. Papai teria aprovado. Mas isso me
deixava no escuro a respeito de muitas questões – inclusive sobre o motivo da
grande separação. Até hoje não sei dizer. Imagino que o casamento com
aquela atriz não tenha ajudado muito. Nem direi o nome dela, me aborrece
muito. Não sei o que Frankie estava pensando. Você viu fotos da minha irmã
quando moça? Mais bonita do que qualquer atriz, minha cara. Aurora poderia
ter tido qualquer homem que escolhesse. Ela escolheu Frankie. Foi
exatamente isso.
Você conhece o lema em latim da Escola de Economia de Londres?
Rerum cognoscere causas. Significa “conhecer as causas das coisas”. Mas há
tanta coisa que eu não sei a respeito de Frankie e Aurora que talvez nem seja
muito útil para a sua reportagem. Posso apenas confirmar que ele foi a causa
de muita alegria para ela – e de muito desgosto. Talvez por isso ele
acreditasse que eu não gostava dele. Sempre que nos visitavam, ele me
abraçava e oferecia:
– Cecile, deixe eu tocar uma canção para você.
– Não, não precisa – dizia eu.
Eu não deixaria a música dele me enfeitiçar. Artistas acham que a arte
torna todo comportamento aceitável. Não concordo. E falei isso para ele.
Olhando agora, penso que posso ter sido ríspida. Mas sempre fui uma
pessoa prática. Aurora entendia isso. Ela costumava rir e dizer:
– Melhor para você que ele não toque música, Cecile. Aquele rapaz e seu
violão só precisam de alguns minutos para mudar a sua vida.
33
1955
O PRIMEIRO MOVIMENTO DE FRANKIE E AURORA. ALLEGRO. RÁPIDO. ANIMADO.
Começou na Espanha e adquiriu velocidade na Louisiana. Encontraram um
local para morar, alugando um apartamento conjugado em cima de uma
farmácia em Nova Orleans. Aurora dormia numa cama de solteiro e Frankie
num sofá no outro cômodo, ainda tímido nos caminhos do amor e atento à
advertência de Aurora: “Nada até agora conta. Estamos começando do zero.”
Toda noite, enquanto comiam feijão-vermelho e arroz, Frankie contava
suas aventuras para Aurora: a viagem de barco desde a Espanha, o encontro
com Django nas docas, o orfanato, Hank Williams e o Grand Ole Opry. Ela
se inclinava com o queixo entre as mãos, maravilhada com todos os lugares
onde ele estivera. Aurora não falava muito de suas viagens, e Frankie não
perguntou sobre o homem de barba de Detroit nem sobre quaisquer outras
pessoas com quem ela pudesse ter estado. Mas, às vezes, de manhã, enquanto
ele praticava violão, ela o fitava e chorava um pouquinho. Uma vez, ele
questionou:
– Qual é o problema?
– Por que você não me encontrou antes? – perguntou ela.
– Corri atrás de você naquela noite – respondeu ele.
– Fiquei envergonhada – disse Aurora.
– Aquilo não me deteve – afirmou Frankie, contando que batera de porta
em porta com o cão pelado em diversas cidades.
– Obrigada.
– Pelo quê?
– Por não desistir.
– Por que eu desistiria?
Às vezes eles caminhavam ao longo do rio Mississippi à noite e dividiam
rosquinhas fritas de um saco de papel. Dava para ouvir a música dos clubes
do Bairro Francês, e aí Frankie começava a cantar junto. Ou cantava uma
canção que as crianças de Villarreal costumavam entoar enquanto corriam
atrás do trem pela cidade.
La pan-der-o-la-la-la
La pan-der-o-la-la-la
Aurora ria e recostava a cabeça no ombro dele e Frankie recordava uma
conversa que tivera com seu professor de violão certa vez:
– Como você sabe que está apaixonado, Maestro?
– Se você está perguntando, não está.
– Você se apaixonou alguma vez, Maestro?
– Quem escreveu “Recuerdos de la Alhambra”?
– Francisco Tárrega.
– Que técnica ele usou naquela canção?
– A técnica de tremolo.
– São essas as perguntas que você deveria fazer. Não perguntas sobre o
amor.
– De onde vem tremolo, Maestro?
– Da palavra “tremer”.
– O que significa “tremer”?
– Sacudir. Agitar. Estar assustado ou nervoso.
– Quando isso acontece?
El Maestro fez uma pausa.
– Quando você está apaixonado.
Frankie tocou um bocado de música em Nova Orleans, uma cidade que
eu impregno mais que a maioria. Tocou com bandas de blues. Tocou jazz no
Dew Drop Inn. Aurora foi com ele a barzinhos e shows ao ar livre, até a um
estúdio de gravação nos fundos de uma loja de eletrodomésticos no Bairro
Francês. A versatilidade de Frankie ao violão fez dele um favorito por lá, e o
dono dizia aos clientes:
– O que quer que você precise – presto! – esse garoto sabe tocar! É por
isso que o chamam de Presto!
Numa noite de verão, Frankie estava no estúdio quando um negro forte,
de cabelo penteado para cima e bigodinho, veio gravar umas canções. Eram
basicamente blues, algo fácil para Frankie acompanhar, mas ele notou que o
produtor não estava satisfeito com o resultado. Depois de várias horas,
fizeram um intervalo.
O cantor, cujo nome era Richard Penniman, foi para o beco nos fundos do
estúdio para engraxar os sapatos. Ele parecia frustrado. Frankie saiu atrás
dele. O engraxate era um menino de 6 anos chamado Ellis, que adorava
Frankie porque este mostrava a ele como fazer acordes no violão.
– Quer uma boa engraxada, Sr. Presto? – perguntou Ellis.
Frankie pediu a ele para tratar primeiro dos sapatos novos do homem.
– Obrigado – disse Richard Penniman.
– Por nada.
– É sua garota lá dentro? A loura?
– Sim.
– Ooooo-paa.
Frankie sorriu.
– Você é um tipo bonitão – declarou o homem. – Faz shows?
– Basicamente toco violão.
– Hum-hum.
– O quê?
– Ninguém fica famoso tocando violão. Se quer aparecer, melhor cantar.
Na frente. Sozinho.
Aurora chegou e falou que ia comprar sorvete. Perguntou se eles queriam.
– Que tal uma casquinha de tutti frutti? – perguntou o homem.
Frankie riu.
– Qual é a graça?
– Tutti frutti. É italiano.
– Significa?
– Todas as frutas.
– Humpf. Quisera saber disso antes.
– Antes do quê?
– Antes de escrever minha canção.
– Que canção?
– “Tutti Frutti”.
– Sobre frutas?
– Não é sobre frutas! É sobre, você sabe… – Ele sacudiu a cabeça de leve
e mexeu os quadris. – Quer ouvir?
E ali, no banco do engraxate, ele cantou um verso – um boogie-woogie
ruidoso e rápido. Frankie balançou a cabeça em aprovação, de olhos
arregalados, e até o pequeno Ellis, o engraxate, abriu um sorrisão.
– Talvez – sugeriu Frankie – você devesse gravar esta.
Minutos depois, ele gravou. A música foi concluída rapidamente. A
energia na sala era palpável. Richard Penniman gritou “Aaaaah” para avisar o
saxofonista de que era a hora do solo. As palavras foram consideradas
picantes demais, por isso num instante uma mulher no estúdio inventou uma
nova letra e, quinze minutos depois, a versão final foi gravada. (Criação
rápida, lembra? Meu presente para vocês?)
“Tutti Frutti” (com Frankie tocando no violão um lick, um pequeno solo,
não creditado) tornou-se um tremendo sucesso e forjou a carreira do homem
de bigode, que ficou mais conhecido como Little Richard.
Ninguém notou quando Aurora voltou com o sorvete.
– O que foi que eu perdi? – perguntou ela.
O allegro continuou. Frankie economizou dinheiro dos trabalhos
musicais e, pouco antes do Natal, comprou um pequeno anel, que trazia dois
corações ligados por uma lasca de diamante. Na noite seguinte à sua compra,
ele e Aurora caminharam pela Canal Street, passando pela loja de
departamentos Maison Blanche, onde, na vitrine, como parte da tradição
anual, havia um boneco de neve de papel machê chamado Mr. Bingle,
descrito como ajudante do Papai Noel. Aurora adorava aquela criação
esquisita, de chapeuzinho e olhos negros redondos.
– Papai Noel não pode fazer nada sem Mr. Bingle – proclamou ela, com o
rosto colado no vidro.
– Aurora.
Frankie abriu a caixa do anel.
– Eu também não posso fazer nada sem você. Aceita casar comigo?
Aurora inspirou fundo. As lágrimas rolaram por suas faces. Eu tinha plena
consciência da falta de música, mas Frankie, sempre confiável e atento,
cantou baixinho a letra de “Earth Angel” e o momento ficou completo.
Earth angel, Earth angel, / Will you be mine?10
– Papai Noel e Mr. Bingle estão sempre juntos – sussurrou Aurora.
– Sempre – disse Frankie.
– Seja como for.
– Seja como for.
– Muito bem. Vou casar com você.
Eles se beijaram docemente, ela colocou o anel e Frankie cumprimentou o
boneco de neve de papel machê dando um tapinha na aba de um chapéu
imaginário, fazendo Aurora rir.
Marcaram o casamento numa igreja das redondezas e só na semana do
evento se deram conta de que faltavam documentos. Tanto Frankie quanto
Aurora viviam à margem da sociedade, nenhum dos dois tinha carteira de
motorista, o dinheiro que ganhavam era na maior parte em espécie e, pelo que
pude deduzir (esses detalhes me chateiam), obter os documentos necessários
teria ocasionado um longo adiamento.
Então, cancelaram a igreja e usaram a casa noturna de um amigo para a
celebração. E um violinista que um dia frequentara um seminário protestante
abençoou a união às três da madrugada. Cecile, a irmã de Aurora, foi a dama
de honra, e o jovem Ellis, o engraxate, fez as vezes de padrinho de Frankie.
Teve comes e bebes, Fats Domino tocou piano, Richard Penniman cantou
suas canções desvairadas e Hampton Belgrave veio de Nashville e fez uma
participação tocando harmônica.
De manhãzinha, quando todos já tinham ido para casa, Frankie e Aurora,
ainda vestindo os trajes nupciais, deram uma caminhada ao longo do rio.
– Lembra do dia em que nos conhecemos? – perguntou Aurora.
– No bosque – disse Frankie.
– Você estava muito apavorado.
– Não, não estava.
– Estava sim.
Ela tirou os sapatos. Um bando de pássaros voou sobre a água.
– Aquele foi o último dia em que você viu seu pai.
– Ele não era meu pai.
– Lamento ele não estar aqui.
– Sua mãe também não veio.
– Tem razão. Ela não veio.
Aurora deu a mão para Frankie. Caminharam em silêncio. Lá longe, um
homem de avental jogou um balde d’água na calçada e começou a varrer a
folia da noite.
– Francisco?
– Sim?
– Nós dois temos uma família agora.
– Você e eu?
– Sempre.
Frankie cantou a primeira frase de “Always” (Sempre), uma canção
popular, gravada pelos Ink Spots e Frank Sinatra. Aurora passou o braço dele
em volta de seu ombro.
– Nem tudo é uma canção.
– É, sim.
– Ok. É.
Enquanto o sol se erguia sobre a extremidade leste de Nova Orleans, eles
se recolheram ao apartamento em cima da farmácia e se deitaram juntos no
mesmo travesseiro. Mais tarde Frankie adormeceu com o nariz no cabelo
louro de Aurora e o braço em volta de sua cintura. Ele havia entrado em
muitas bandas. Essa era a sua favorita.
1969
A MÚSICA FICOU MAIS ALTA NA ESCURIDÃO DE WOODSTOCK, E FRANKIE ouviu,
vinda dos céus, a voz áspera de uma cantora de blues chamada Janis Joplin.
Mesmo no seu estado confuso, conseguiu decifrar o padrão 1/4/5 do acorde de
uma canção chamada “Piece of My Heart” e um refrão estrondoso no qual a
cantora brada para o amante que pegue, pegue, pegue outro pedacinho do seu
coração.
– Palco? – gritou Frankie para um grupo próximo.
– Para lá! – bradou alguém, apontando.
– Palco? – berrou ele um minuto depois.
– Para lá!
Ele tinha a direção. Tinha os ovos. Frankie determinou uma marcha para
suas pernas, que, devido à pílula verde, ele tinha que manobrar mentalmente
por meio das articulações dos joelhos, como se fosse uma marionete. Ergue,
estende, pisa…
– Posso experimentar seu violão, senhor?
Frankie olhou para baixo. Viu um menino de cabelo claro, com camisa
listrada e cuecas brancas, sem sapatos, que devia ter uns 6 anos. Ao seu lado
estava uma menina, ainda mais nova, também em roupas de baixo. Os dois
estavam brincando na lama.
– Posso experimentar depois dele? – questionou a menina.
Frankie girou o pescoço, tentando processar. Crianças. Noite. Brincadeira
na lama. Ele tinha que continuar andando. Porém, por algum motivo,
ajoelhou-se e levou a mão às costas.
– Este? – perguntou ele.
– Sim – disse o menino.
– Você sabe tocar?
– Claro.
– Eu também – ecoou a irmã dele.
– O namorado da minha mãe toca.
– Onde está sua mãe?
– Lá.
O menino apontou para um círculo de pessoas embrulhadas em mantas,
passando cachimbos. Frankie tentou adivinhar qual era a mãe. Coçou a
cabeça. Vá andando, disse a si mesmo.
– Quer um pouco de lama? – ofereceu o menino.
– Hã?
– Pode pegar um pouco.
– Ok.
O garoto colocou uma bolota de lama na mão de Frankie.
– Obrigado.
– Agora posso tocar o violão?
– Você é jovem demais.
– Não sou, não.
Frankie lembrou da escola de música em Villarreal, Baffa Rubio
discutindo com o dono.
– Não, você não é – balbuciou Frankie. – Tem razão.
Frankie pensou em Aurora deitada sobre a manta. O que ele fazia ali? Por
que não estava com ela? Quem eram essas crianças? Qual era a letra da
canção que ele estava escutando? Pegue? Pegue? O palco. Vá andando.
– Vão procurar a mãe de vocês – sussurrou Frankie.
– Mas queremos o violão.
Frankie esfregou a lama de volta na mão do menino e se levantou. Foi
embora aos tropeções na direção da música e de outro pedacinho de coração
sendo levado.
36
1956
SEGUNDO MOVIMENTO DE FRANKIE E AURORA. ADAGIO. O PERÍODO LENTO.
1957
À MEDIDA QUE O ADAGIO DELES PROSSEGUIA, FRANKIE E AURORA IAM enxergando
as mesmas coisas de modos diferentes. Um dia, telefonaram convidando
Frankie para tocar no Pontchartrain Beach, um parque de diversões em um
lago perto de Nova Orleans. Elvis Presley tinha uma apresentação marcada
ali, e a banda queria um violonista de apoio porque, embora Elvis carregasse
um violão, raramente o usava. Aurora foi ao show. A gritaria era
ensurdecedora. Depois do último número, Aurora tentou chegar aos
bastidores, mas havia tantas mocinhas histéricas que ela desistiu e foi para
casa.
Quando retornou ao apartamento aquela noite, Frankie ficou aliviado ao
vê-la.
– Onde estava? Procurei você por toda parte.
– Estava cheio demais – disse ela.
– Gostou da música?
– Não consegui ouvir.
– Querem que eu faça mais shows.
– Na praia?
– Shreveport.
– É meio longe.
– Não é nada mau.
– Como foi?
– Uma loucura!
– Elvis é bacana?
– Ele não falou muito. Disse que gostou do meu cabelo.
Aurora sorriu.
– Claro.
Nas harmonias mais simples, as notas vão juntas para cima e para
baixo, mantendo a mesma distância, como as bordas dos trilhos de trem.
Uma versão mais complexa é o contraponto, no qual duas linhas musicais
desenvolvem-se de modo independente uma da outra, ainda em equilíbrio
harmônico, mas não mais ligadas como que por um eixo.
Nos três anos subsequentes ao casamento, Frankie e Aurora foram da
harmonia para o contraponto, enquanto o adagio completava seu ciclo lento.
Frankie fez uma viagem a Nova York. Aurora pegou um emprego numa
floricultura. Frankie substituiu Elvis sigilosamente num show em Vancouver.
Aurora entrou para uma igreja. Frankie foi a Los Angeles, conheceu o agente
Tappy Fishman e assinou um contrato. Aurora aprendeu a fazer caranguejo.
Quando chegou em casa, Frankie disse:
– Tenho uma grande novidade. Vamos nos mudar para a Califórnia.
O que se seguiu foi uma discussão que se prolongou por duas semanas,
algo costumeiro entre casais de humanos quando um quer ir a algum lugar e o
outro não. No fim do mês, finalmente encaixotaram as coisas do apartamento
e, de cara amarrada e com pouca conversa, encheram a traseira de um
Plymouth Belvedere que Frankie havia comprado após Tappy Fishman ajudá-
lo a tirar a carteira de motorista.
Ao deixarem Nova Orleans, só Aurora olhou para trás.
Se fosse nos primeiros tempos de casados, eles teriam passado a viagem
de mãos dadas. Mas, agora, o carro estava abarrotado com instrumentos,
roupas e duas ideias de futuro muito diferentes. Rodaram por três dias, do Sul
para o Oeste americano, e, quando chegaram à costa, pouco antes do
crepúsculo, Frankie reparou que o sol parecia uma laranja gigante.
38
1958
– VOCÊ NÃO VAI TOCAR VIOLÃO? – PERGUNTOU AURORA.
1969
FRANKIE FINALMENTE AVISTOU O PALCO DE WOODSTOCK. BRILHAVA COMO uma
praça na escuridão, iluminando um campo imenso de espectadores.
– Ei, cara, olhe por onde pisa.
– Hã?
– Calma aí, meu irmão.
– Desculpe.
A pílula verde agora fazia Frankie guinar de um lado para outro, dando
encontrões nas pessoas; as coisas ficavam borradas e depois clareavam de
novo. Ele sentia o violão batendo nas costas. Quando era aluno, El Maestro
havia ensinado a barrar as distrações cantarolando a melodia que estivesse
tentando tocar, de modo que mente e dedos fossem uma coisa só.
Agora, enquanto descia aos trancos e barrancos a encosta inclinada,
passando por barracas, latrinas, pessoas sentadas de pernas cruzadas ou
deitadas lado a lado, ele repetia três palavras:
– Aurora… bebê… café da manhã.
Ganhou velocidade, decidido a endireitar as coisas.
– Aurora… bebê… café da manhã.
– Ai!
– Aurora.
– Cuidado!
– Bebê.
– Calma!
– Café da manhã.
De repente, estava correndo, ou sentiu como se estivesse correndo, as
luzes ficando maiores, a música mais alta, os comentários sendo deixados
para trás enquanto ele avançava.
– Peraí!
– Aurora.
– Viu aquele cara?
– Bebê.
– Que cara?
– Café da manhã.
– Com o violão. É o… qual é mesmo o nome? Presto! Frankie Presto! Era
ele!
40
1968
MAS VAMOS VOLTAR À HISTÓRIA DE AMOR. O MINUET. UMA DANÇA CURTA. Certo dia
em dezembro, Frankie atendeu a porta no Greenwich Village, semivestido, os
olhos injetados, e ali estava ela, Aurora York, usando um cachecol e luvas, o
cabelo louro enfiado debaixo de um chapéu.
– Terminou com aquela atriz? – perguntou ela.
– Sim.
– Papelada concluída?
– Sim.
– Podemos nos casar agora?
– Se você quiser.
– Pra valer?
– Pra valer.
– Vim só para me certificar.
– Vai ficar?
– Não.
Ele não a viu de novo por várias semanas. Numa quinta-feira à tarde, ela
apareceu de novo.
– Você está praticando?
– Sim.
– Está tocando?
– Quando consigo.
– Está usando drogas e bebendo?
– Às vezes.
– Você tem que parar.
– Eu sei.
– Então faça isso.
– Você vai ficar?
– Não.
No mês seguinte, ela retornou. Dessa vez passou algumas horas. No mês
posterior, veio e passou a noite.
Ela repetiu esse padrão, danças curtas – um minuet perfeito – ao longo de
todo o inverno e primavera adentro, até que, numa manhã de segunda-feira,
no meio de uma tempestade terrível, apareceu de novo. Dessa vez, segurava
uma sombrinha numa mão e a mala amarela na outra.
Frankie sorriu.
– Vai ficar? – perguntou.
– Estou grávida – disse ela.
43
1969
É HORA DE TERMINARMOS NOSSA JORNADA EM WOODSTOCK. FRANKIE finalmente
chegou ao backstage. Àquela altura, o festival havia se transformado numa
confusão. Helicópteros traziam os artistas para uma área destinada a pouso e
decolagem, de onde eles atravessavam uma ponte de madeira para chegar ao
palco. Mas eram deixados ali por um longo tempo, aguardando o momento de
tocar, e muitos não sabiam quando deveriam se apresentar. A chuva causou
estragos na eletricidade. Os amplificadores fritaram. Os suprimentos
acabaram. Na madrugada de domingo, o evento dava uma sensação de festa
arrastada, sem fim, em que hordas de pessoas lutavam contra o sono enquanto
tentavam se manter secas.
Uma história contada frequentemente é que as bebidas do backstage eram
batizadas com drogas alucinógenas. Não posso confirmar isso. Mas sei que,
quando Frankie enfim chegou lá, ele estava morto de sede e bebeu a primeira
coisa que viu num dos copos de papel arrumados em cima de uma mesa
dobrável. Seu rosto estava pincelado de lama e a camisa branca estava
imunda. Ele girou a cabeça de um lado para outro.
– Aurora… bebê… café da manhã – seguia balbuciando.
Frankie encarou os outros músicos, que sorriram amarelo ou desviaram o
olhar. Havia um grande balde de água ao lado de toalhas de papel. Frankie
então jogou água no rosto e limpou a lama.
Em meio à música barulhenta de uma banda chamada Sly & The Family
Stone, apresentando uma canção chamada “Stand!”, Frankie girou à direita e
à esquerda e começou seu minuet final.
– Aurora!
Ele berrou girando. Berrou cambaleando. Ergueu a caixa de ovos.
– Aurora! Voltei! Aurora!
Escorregou. Ergueu-se de novo. Seus gritos eram engolidos pela música e,
quando pipocava um vocal ou uma guitarra guinchava, não dava para ouvir
Frankie.
“Stand!…”
– Aurora!
“Stand!…”
– Aurora!
Ela não estava lá.
E quando finalmente a banda terminou, em meio a estrondosos aplausos –
eram 4h05 da manhã –, as luzes do palco foram apagadas. Ficou a maior
escuridão.
E Frankie decidiu tocar violão.
Para atrair Aurora.
E mudar a sina deles.
O que aconteceu a seguir não é agradável de contar e, em defesa de meu
querido discípulo, preciso dizer que ele não estava em si. Seu corpo, mente e
coração estavam em três lugares separados. Ele tropeçou rampa acima e se
aproximou do palco gigante. Ninguém o deteve porque ele trazia um violão
ao pescoço e se movia como um músico que sabia aonde estava indo. Uns
poucos operários tinham começado a montar o palco para o número seguinte
(a celebrada banca britânica The Who), mas era tarde, eles estavam exaustos e
não deram bola para o músico de cabelo comprido que avançou decidido para
a muralha de amplificadores.
Resmungando consigo mesmo, Frankie pegou o conector de um cabo
cinza e enfiou na saída do violão, que ele equipara com um dispositivo
elétrico. Não podia segurar os ovos e tocar, por isso largou a caixa. A tampa
se abriu. Sob o pouco luar que havia ali, ele pôde ver que todos os ovos
estavam quebrados.
Seus olhos se encheram de lágrimas.
O que nem você nem ninguém sabe é o que aconteceu poucas semanas
antes, na noite em que Roger McGuinn encontrou Frankie em Nova York.
Aurora, grávida, tinha se mudado para o apartamento dele, sob a condição de
que Frankie se endireitasse, retornasse imediatamente para casa após cada
apresentação e se preparasse para ser um bom pai para o bebê. Sem drogas.
Sem bebida. Sem outras mulheres. Ela estava com cinco meses e a
combinação funcionou por um tempo. Mas Frankie, ao rever McGuinn,
recordou-se de Londres, de 1965, dos Beatles, da festa e de quão distante ele
se encontrava da antiga fama mundial, tocando naquele clube frio, úmido e
fedido. Com o ego ferido, ficou deprimido e permaneceu na rua até
amanhecer, bebendo e fumando com os músicos no porão do clube.
Pouco antes de o sol nascer, ele cambaleou de volta para o apartamento,
envergonhado pela recaída e preparado para um confronto. Mas tudo estava
escuro lá dentro. Frankie entrou no quarto em silêncio e deslizou para debaixo
das cobertas enquanto Aurora dormia. Os movimentos dele sacudiram
Aurora, que, sonolenta, se virou para colocar um braço em volta do marido.
– Francisco – balbuciou ela.
– Aurora – sussurrou ele.
– Significa alvorecer.
– Eu sei.
– Estou com fome. Se você me ama, faça o café da manhã.
Ele suspirou profundamente. Estava salvo. Ela não sabia. Ele nunca mais
faria aquilo de novo. Jurou para si mesmo.
– Vou comprar ovos – prometeu ele.
Tudo que ele precisava fazer era manter-se acordado.
Mas seus olhos se fecharam.
A noitada tinha acabado com Frankie.
Uma hora depois, Aurora acordou e deparou com Frankie roncando
sobre o travesseiro. Decidiu fazer um bom café da manhã para ambos. Não
havia nada na geladeira, então ela vestiu uma jaqueta, pegou a bolsa e saiu do
apartamento. Comprou uma caixa de ovos e cebola no mercado. Na volta, a
um quarteirão de casa, foi abordada por três rapazes que saltaram de um beco,
empurraram-na e agarraram sua bolsa. A alça estava enganchada no braço de
Aurora e, quando ela a puxou de volta, seu corpo girou e ficou de frente para
um dos agressores, que levantou a perna e deu um chute forte em sua barriga.
Ela caiu de joelhos, a bolsa ainda no ombro. Ele a chutou de novo para que
soltasse a bolsa. Os outros dois o xingaram e fugiram correndo, e ela deu
meia-volta e correu também.
Um táxi parou rangendo os freios. Um homem saltou. Aurora emitiu um
ruído estranho, caiu no calçamento e começou a tremer.
Frankie ressonava no momento da primeira ligação do hospital. E
ressonava no momento da segunda. Quando chegou para ver a esposa, uma
criança natimorta viera à luz, fora envolvida em uma manta, dada à mãe para
que a segurasse por um minuto e levada embora. Aurora olhava pela janela
quando Frankie entrou. Seu rosto estava machucado e ela tinha curativos em
vários lugares. Aurora virou a cabeça e Frankie parou como uma estátua. Ele
sentia culpa por todos os poros.
– Quem fez isso? – balbuciou.
Ela balançou a cabeça.
– Como eles…
Ela balançou a cabeça.
– Por quê…
Ele ficou sem palavras.
– Onde você estava? – murmurou ela.
Daquele instante até o minuto em que começou a tocar em Woodstock, as
semanas não passaram de um borrão para Frankie. E, embora ele mal pudesse
se lembrar dos acontecimentos, posso atestar que não esteve sóbrio um único
dia. Ele não conseguia encarar Aurora. Não conseguia encarar nada.
Cambaleou do hospital para casa, apanhou o violão e não voltou mais. Pegou
carona até o norte do estado de Nova York, usando qualquer droga que lhe
permitisse não pensar no que havia acontecido. Mas sua mente torturada não
esquecia. Em vez disso, imaginava Aurora todos os dias, de todas as
maneiras, até realidade e fantasia perderem a nitidez. Finalmente, em
Woodstock, ele imaginou Aurora dormindo sobre aquela manta (“Se você me
ama, faça o café da manhã”) e partiu numa busca inútil por ovos.
E ao se encontrar na escuridão do palco, querendo apenas vê-la mais uma
vez, Frankie tentou a última coisa em que pôde pensar para mudar o que
acontecera.
Afastou-se das cascas quebradas e, irado, girou o botão do volume no
dispositivo do violão. Ouviu um zumbido de um amplificador gigante. No
topo dele havia uma garrafa de cerveja vazia. De algum lugar da memória,
Frankie resgatou um truque que Hampton Belgrave havia mostrado. Bateu a
garrafa na borda do amplificador, quebrando-a em duas direitinho, aí pegou a
parte do gargalo e enfiou o dedo anelar direito dentro dela, criando um “slide”
de vidro – um equipamento que músicos de blues utilizam para afetar o tom e
o vibrato das cordas. A umidade provocou uma sensação boa na pele de
Frankie. Ele bateu o pé duas vezes, correu o slide braço acima e disparou um
acorde penetrante de si maior com sétima, como que para sacudir a música.
Fora do palco, os músicos ergueram o olhar, porque o acorde retiniu com
muita clareza. Mas tudo que viram foi escuridão. Frankie começou tocando
como um fantasma, um emaranhado de arpejos que ficavam mais e mais
rápidos, então deslizavam braço abaixo como que colidindo com um foguete.
Ele usou os pedais a seus pés para criar distorção, fuzz, wah-wah. Segurou um
ré agudo, sacudindo a mão como que estrangulando todo o sussurro do braço,
a seguir fez uma escala flamejante de blues subindo e descendo e subindo de
novo. Não havia outros instrumentos tocando, nada de bateria, nem baixo. A
maioria dos solos é tocada em cima de uma linha melódica ou contra uma
seção rítmica. Mas essa foi uma apresentação singular de violão, e as
melodias dentro dos riffs de Frankie tornaram tudo ainda mais notável. Ele era
um homem nadando contra águas enfurecidas, e, durante todo o meu tempo
dentro dele, não consigo recordar uma batalha maior. Eu esvoacei naquele
solo como um lençol numa tempestade de vento. Trechos de Leadbelly,
Mozart, Chet Atkins, Segovia. Frankie conjurou todas as influências musicais
que conhecia e emitiu as notas com tanta emoção que as lágrimas escorreram
por suas faces e caíram sobre seus dedos.
E o tempo todo ele olhava fixamente para as cordas e gritava:
– Mudem! Mudem!
Ele queria que ficassem azuis.
Em sua mente transtornada, Frankie acreditava que poderia desfazer
aquela noite terrível, salvar seu filho e trazer Aurora de volta para ele. Ele não
tinha tal poder? Para que serviam aquelas cordas se não para aquele
momento?
– Mudem!
Os dedos voavam. O solo explodia pelos amplificadores.
– Mudem!
A última onda de notas veio em jorro, um tema de Vivaldi, um lick de
Chuck Berry; o violão estava quase sufocando, a emoção crua e sem fim. Ao
lado da plataforma, um assistente de palco resmungou:
– Vou pegar esse cara.
Mas, ao passar pelos integrantes do The Who, o guitarrista Pete
Townshend agarrou-o e sussurrou:
– Não se atreva.
No total, Frankie tocou por dois minutos e dezessete segundos. Terminou
açoitando o violão com a mão direita, como uma borboleta esvoaçante,
enquanto deslizava acordes pescoço abaixo, que soavam como um motor
gigante morrendo. Aí moveu o slide de vidro para cima e para baixo e fez
ressoar uma nota grave uivante e três sobretons harmônicos, seguidos pelo
final.
Bum-bum-bum.
Dummmmmmmmmmmmmm.
As cordas permaneceram inalteradas. Ele afundou no chão. Como não
havia luz, ninguém o viu tocar. E, como já eram quase cinco da manhã, muita
gente no meio da multidão estava dormindo. Ao som de aplausos levemente
esparsos, alguns gritos de aprovação dispersos e um homem berrando
“TRAGAM THE WHO!”, Frankie sentiu que nada em sua vida melhoraria.
Estava escuro, sombrio e ele estava só.
Assim, de joelhos, já em posição de prece, meu amado filho inclinou-se
para a frente e estendeu a mão esquerda como sempre havia sido instruído,
reta e aberta, como que pedindo ajuda a Deus.
E então, lembrando-se das palavras de El Maestro (“Garoto estúpido!
Deus não dá nada!”), cravou o pescoço da garrafa quebrada na palma da mão,
de novo, e de novo, de novo, dilacerando a mão que o alimentava, até não
conseguir mais ver os dedos por causa do sangue.
Pau Sanz
Inspector Jefe (inspetor chefe de polícia), Cuerpo Nacional de
Policía
DOU ENTREVISTA AGORA.
1981
A BALSA ADENTROU A BAÍA E TRÊS RAPAZES FITARAM OS PENHASCOS VERDES.
1944
– MAESTRO?
– Sim?
– Meu pai vai voltar para casa?
– Não sei, Francisco. Sirva uma bebida para mim.
– E se ele nunca voltar para casa?
– Não pense nessas coisas. Agora sirva.
– Mas e se ele não voltar?
– Aí você vai ter que recomeçar.
– Do começo?
– Não. Você não pode ser um bebê duas vezes.
– Então como se recomeça?
– Do jeito que um compositor começa uma nova peça. Onde está minha
bebida?
– Não quero começar sem meu papai.
– Não chore, garoto.
– Mas…
– Pare já com isso.
– Mas…
– Escute aqui, Francisco. Você acha que eu queria uma vida na
escuridão? Você acha que eu não queria ver meus dedos ou os trastes e as
tarraxas de afinação? Acha que eu queria ter que tatear por aí como um
animal perdido?
– Não, Maestro.
– Não, eu não queria. Isso é a vida. Tem coisas que são levadas embora.
Você vai aprender a recomeçar muitas vezes – ou será um inútil.
– Sim, Maestro.
– E você está sendo um inútil neste momento, visto que ainda não tenho
minha bebida.
– Desculpe, Maestro.
– Não tem importância. Volte aos arpejos. Isso é tudo que direi a respeito
deste assunto. Está me ouvindo?
– Sim, Maestro.
– Pare de chorar. Comece a tocar.
46
11 Um dia nosso segredo / Não será segredo / Porque todo mundo vai ver / Que meu segredo / É o seu
segredo / Vou amar você / E você vai me amar também.
47
1981
AQUELES GAROTOS DO TEXAS TIRARAM OS SAPATOS E ERGUERAM-SE DA moita. Em
seguida, caminharam lentamente pela areia, aproximando-se do violonista.
– Sr. Presto?
Frankie olhou para cima. Estava barbudo e com a pele bronzeada.
Não disse uma palavra.
– Somos americanos.
Frankie estreitou os olhos. O silêncio dele fez com que os rapazes
falassem mais rápido:
– Na verdade, somos do Texas…
– Montamos uma banda…
– Desculpe incomodar…
– Aquele cara, Kevin, falou pra gente…
– Ele nos deixou no bosque…
– Nem sabíamos…
– Que você estava aqui…
– Amamos sua música…
Frankie levantou a mão e, embora não fosse aquela a sua intenção, eles se
calaram. Na verdade, ele estava acenando para uma garotinha de uns 4 ou 5
anos que vinha correndo pela praia.
Ela tinha o cabelo trançado, estava descalça e sem blusa, e Frankie abriu
um grande sorriso quando ela passou o braço dele por sua barriga. Ele a fez
rodopiar. Ela ria, mas não fazia som algum. Quando foi colocada no chão, viu
os três estranhos e sua expressão mudou. Voltou correndo, e em silêncio, por
onde tinha vindo.
Lyle, Eddie e Cluck observaram para onde ela se dirigia: uma casinha no
fim da praia, envolta em árvores, de onde agora surgia uma mulher loura
usando um roupão.
– O que está acontecendo? – indagou a mulher.
– Ah, desculpe, senhora, voltaremos mais tarde – gaguejou Lyle.
E ele e os outros debandaram rumo às arvores.
Tony Bennett
Cantor, pintor, vencedor do Grammy, homenageado pelo
Kennedy Center
BEM, ANTES DE MAIS NADA, QUE NOTÍCIA TRÁGICA A DA MORTE DELE. É uma
tragédia para o mundo da música. Era um homem maravilhoso. Você o
conheceu? Se conheceu, teve sorte. Estou falando sério. Frankie Presto era
um verdadeiro artista. Muito gentil. Muito atencioso. E o violonista mais
puramente musical que já conheci.
Vou contar por que falo isso. Eu canto desde o final da década de 1940.
Frank Sinatra, Nat King Cole, Billie Holiday, essas pessoas foram as minhas
influências. Eu adorava cantores de jazz. Era como me via. Mas, quando
chegou a hora de ganhar dinheiro, falaram que eu não conseguiria como
cantor de jazz. Entende? Era assim que a indústria funcionava. Uma vez
disseram a Duke Ellington que iam tirá-lo da gravadora. Ele perguntou:
– Por quê?
– Você não está vendendo discos o bastante – responderam.
E ele disse:
– Vocês estão confundindo as coisas. Meu trabalho é fazer discos. O
trabalho de vocês é vender.
Duke Ellington. Dá para acreditar?
Bem, chegou um momento, no início dos anos 1970, em que eu também
não estava vendendo muitos discos. E não admitia fazer a música que queriam
que eu fizesse. Sob pressão, havia gravado um álbum de rock. Algo terrível
para mim. Enquanto o gravava, fiquei doente. Foi um período difícil. Senti
como se estivesse me separando daquilo que mais amava.
Deixei a gravadora e fui para Londres, onde permaneci por quase dois
anos. Foi a época mais fantástica da minha vida, pois só fiz a música que
desejava fazer.
No tempo em que morei lá, me instalei num hotel cujas janelas da sala
davam para um parque. Toda manhã, ao acordar, sempre via o mesmo homem
sentado num banco do lugar com um violão. Ele nunca tocava. Apenas
segurava o instrumento no colo.
Então, depois de algumas semanas, fiquei curioso. Ao voltar de uma
caminhada, passei por ele e achei que conhecia aquele rosto. Falei:
– Com licença, vejo você aqui todos os dias…
E, antes que eu pudesse terminar a frase, ele olhou para mim e cantou um
verso de “Love Letters”, uma canção que gravei em meu primeiro álbum. E a
voz dele era linda. Perfeita.
– Seu violonista foi Chuck Wayne – disse ele.
– Isso mesmo – confirmei.
– Um grande disco aquele.
– Obrigado.
– Existe outra canção chamada “Love Letters”.
– É?
– Django Reinhardt. Chama-se “Billets Doux”.
– “Billets Doux”.
– Francês. É instrumental.
– Pode tocar?
– Não. – Ele olhou para o violão. – Não mais.
Foi quando vi a mão esquerda dele, cheia de cicatrizes.
– É por isso que você senta aqui todos os dias, mas não toca? – perguntei.
Ele me fitou e respondeu:
– Estou esperando uma pessoa.
– Quem?
– Minha esposa.
– Ela vai chegar logo? – questionei.
Ele balançou a cabeça dizendo que não tinha certeza, que nem mesmo
sabia se ela ainda morava em Londres.
Seguimos conversando, até que me dei conta de que era Frankie Presto.
Ele estava fora do circuito havia anos. Contou que seu verdadeiro nome era
Francisco e eu revelei:
– Ei, meu nome verdadeiro é Benedetto, talvez sejamos primos!
Rimos e batemos um bom papo.
Sempre pensei que Frankie fosse um cara do rock, mas constatei que nós
dois tínhamos um monte de conhecidos em comum. Frank Sinatra. Bob Hope.
Ele inclusive conheceu Duke Ellington quando era garoto, sabia?
No dia seguinte, ele estava sentado lá de novo. Um carro veio me buscar,
então convidei-o para ir comigo ao local onde estávamos fazendo um
programa de TV chamado The Talk of the Town. Aquela estava sendo uma
experiência bárbara, com Robert Farnon, o maior arranjador do mundo (todos
o chamavam de “o Governador”) – tocávamos canções e falávamos sobre
música toda semana.
Francisco – ele gostava que eu o chamasse assim – foi comigo naquele
dia. Ao chegar ao estúdio, sentou-se e ouviu. Não abriu o estojo do violão.
Convidei-o mais algumas vezes, e, cada vez que entrávamos no carro para
sair, ele dava uma última olhada em volta, como se a esposa pudesse estar
chegando.
Mas ela nunca apareceu.
Então, umas duas semanas depois, estávamos ensaiando para o show e
comecei a cantar uma música de Kurt Weill chamada “Lost in the Stars”,
acompanhado apenas por um pianista. É uma canção linda, mas triste.
Conhece?
Before Lord God made the Sea and the Land / He held all the stars in the
palm of his hand / And they ran through his fingers like grains of sand /
And one little star fell alone.12
De repente, ouvi os mais lindos acordes de violão, um dedilhado de cada
vez. Olhei em volta e vi que era Frankie Presto tocando. Cada acorde parecia
uma luta. Dava para ver no rosto dele. Mas, como o andamento era muito
lento, ele tinha tempo de fazer as trocas de dedos. Continuei cantando. Não
quis parar, pois senti que aquilo era importante para ele. Fizemos alguns
versos e chegamos ao fim.
But I’ve been walking through the night and the day / Till my eyes get
weary and my head turns grey / And sometimes it seems maybe God’s
gone away… / And we’re lost out here in the stars.13
Ele tocou o acorde final e vi as lágrimas rolarem por seu rosto. Até os
ajudantes de palco aplaudiram. Eu disse “Legal”. Mas eu estava mentindo.
Não quis embaraçá-lo. Foi mais do que legal. Foi espetacular.
No fim daquele verão, decidi voltar para os Estados Unidos. O carro veio
me buscar e lá estava Francisco, como de costume, sentado em seu banco.
Mandei o motorista esperar e fui me sentar ao lado dele.
– Estou indo – falei.
– Aonde?
– Para casa.
– Obrigado por me levar a seus programas, Sr. Benedetto.
– Por quanto tempo você vai esperar aqui?
– Não sei.
– E se sua esposa não voltar?
– Ela vai voltar.
– Bem, se algum dia tiver vontade, eu ficaria honrado em gravar com
você.
Ele quase riu.
– Não consigo mais tocar.
– Consegue. Você tocou.
– Só uns acordes.
– Nada de acordes. Música.
Expliquei que, enquanto ele tivesse aquele tipo de música dentro de si,
nada poderia impedi-la de sair. Falei sério.
E aí perguntei:
– Quando você esteve em casa pela última vez?
– Na verdade, não tenho uma casa – declarou ele.
– Todo mundo tem algum lugar que chama de casa.
Ele ergueu o violão.
– Tudo que eu já tive foi isto – disse –: ela.
12 Antes de o Senhor Deus fazer o Mar e a Terra / Segurou todas as estrelas na palma da mão / E elas
escorreram por seus dedos como grãos de areia / E uma estrelinha caiu sozinha.
13 Mas estive caminhando dia e noite / Até meus olhos ficarem cansados e meus cabelos acinzentados /
E às vezes parece que talvez Deus tenha ido embora… / E estejamos perdidos aqui nas estrelas.
48
UMA DAS CANÇÕES FAVORITAS DE FRANKIE ERA “SAVE THE LAST DANCE FOR ME”,
dos Drifters. A letra – dizendo a uma mulher que tudo bem ela dançar com
outros, contanto que lembre quem vai levá-la para casa – foi escrita por Doc
Pomus, uma vítima da pólio. Ele a escreveu ao recordar a noite de seu
casamento, quando outros homens dançaram com a noiva enquanto ele teve
que assistir a tudo da cadeira de rodas. Ele rascunhou as palavras no verso do
convite de casamento.
Eu falei que todas as histórias de amor são sinfonias e que o movimento
final é o rondo, tema que se repete em meio a várias interferências. Frankie e
Aurora, com seu rondo de chegadas e partidas, guardaram suas últimas
danças por bastante tempo. Finalmente, no ano de 1974, se reconciliaram para
sempre – graças, quem diria, a um programa de rádio.
Sim. Um programa de rádio. O Sr. Tony Bennett (ou Benedetto) fez um
último favor ao ferido Sr. Presto. Ao deixar Londres naquele dia, ele dividiu a
limusine com outro passageiro, um apresentador da BBC. Os dois homens
foram conversando durante o trajeto até o aeroporto e o Sr. Bennett relatou
parte da história de Frankie. Omitiu seu nome, mas mencionou que toda
manhã esse homem esperava pela esposa com o violão no colo.
– Não é incrível? – indagou Bennett.
– Extraordinário – concordou o apresentador.
Comovido com a triste narrativa, o homem da BBC contou o caso no
programa de rádio daquela semana. De carro a caminho do trabalho, Cecile
(York) Peterson ouviu o programa e, ao chegar a seu gabinete na Escola de
Economia de Londres, telefonou para a irmã, Aurora, e disse:
– Acho que seu marido está de volta à cidade.
Na manhã seguinte, sob uma chuva incessante, Aurora York saltou de um
ônibus e caminhou na direção do parque. Avistou Frankie e espiou-o,
escondida atrás de um poste, esperando por uma hora, observando ele ficar
molhado. Aurora contou os pingos de chuva caindo em sua sombrinha e
atribuiu a cada gota um motivo pelo qual não deveria ir até Frankie. Quando
se esgotaram os motivos, ela fechou a sombrinha e se deixou encharcar.
Aí atravessou a rua.
Frankie viu Aurora se aproximar, a chuva pingando no rosto dela. Aurora
afastou o violão e sentou-se no colo dele.
– Vai ficar? – perguntou ele.
– Sim – respondeu ela.
A música pode aliviar a alma. O corpo é outra história. Aurora York
passou meses procurando os melhores especialistas para a mão ferida de
Frankie. Sou muitíssimo grata por isso. Ela usou as conexões da irmã. Pagou
outra cirurgia. Fez com que ele praticasse os exercícios de reabilitação todos
os dias. Cuidou de meu amado discípulo até ele se recuperar. Depois disso,
meu fascínio reacendeu-se nele.
Enquanto isso, voltando ao amor entre os dois (o rondo, lembra?), Frankie
e Aurora tiveram o prazer de descobrir que as barreiras entre eles haviam se
dissolvido. A fama já não era um problema, nem as viagens, as noitadas ou as
outras mulheres. Aurora despachou o que restava de narcóticos e álcool na
vida de Frankie.
E, a partir daí, foi tratar de encontrar uma casa.
– Quer ficar em Londres? – perguntou Frankie.
– De jeito nenhum – disse ela.
– Onde então?
– Algum lugar distante – pediu ela. – E sossegado.
Foram de carro a várias localidades do interior da Inglaterra. Nenhuma
delas agradou a Aurora.
– Mais longe – declarou ela. – Mais sossegado.
Voaram para Nova York, onde Frankie recuperou duas guitarras.
– Mais longe – repetiu ela. – Mais sossegado.
Voaram até Los Angeles, onde Frankie sacou dinheiro de um banco e
Aurora recusou-se até mesmo a sair do aeroporto.
– Mais longe. Mais sossegado.
Voaram para a Austrália.
– Mais longe. Mais sossegado.
Pegaram um navio para a Nova Zelândia. Ao passar a noite nas
imediações do porto de Auckland, ela viu uma balsa partir ao luar. Perguntou
para onde ia e um funcionário informou que era para um lugar chamado
Waiheke, cujo nome maori, “Te Motu-arai-roa”, significava “ilha distante e
abrigada”.
Na manhã seguinte, Aurora e Frankie estavam na balsa com todos os seus
pertences. Uma hora depois, ao chegar às docas, ver os penhascos verdes e
ouvir o suave bater da água, Aurora virou-se para o amor de sua vida e olhou
nos olhos dele.
– Aqui – disse ela.
49
1981
OS RAPAZES DO TEXAS SORTEARAM NO PALITINHO. DECIDIRAM QUE UM deles
tentaria de novo. (Eles concluíram que os três juntos era intimidante demais.)
Lyle tirou o palitinho menor e, no final da tarde seguinte, com o sol se pondo,
caminhou através de arbustos e árvores e rumou sozinho para a praia. Frankie
estava sentado sem camisa, a correia do violão sobre a pele nua e bronzeada,
tocando escalas em fá: escala maior, escala menor, dórica, frígia, lídia,
ascendente, descendente.
– Pode chegar – disse Frankie sem olhar para trás.
Lyle avançou com as mãos enfiadas nos bolsos.
– Olá, senhor.
– Minha esposa disse que vocês voltariam.
– Desculpe pela última vez…
Frankie continuou tocando escalas, lenta e deliberadamente.
– Eu só… nunca pensei que realmente o encontraria, Sr. Presto. Meu
nome é Lyle.
Frankie passou para as escalas em fá sustenido.
– Eu também toco violão.
Frankie assentiu com a cabeça.
– Não como o senhor, claro.
Frankie assentiu com a cabeça.
– Foi o senhor que tocou o famoso solo em Woodstock?
Frankie assentiu com a cabeça.
– Mesmo? Porque ninguém pôde confirmar que o senhor estava lá.
Frankie continuou balançando a cabeça até Lyle perceber que ele não
estava respondendo às perguntas, e sim movendo-se ao ritmo do quebrar das
ondas, como se acompanhasse um baterista.
– O senhor está praticando? Quer dizer, desculpe. Pergunta idiota. Por que
escalas? Por que está praticando escalas?
Frankie parou de tocar.
– Hã?
– Por que escalas?
– Retreinando.
– Retreinando?
– Meus dedos. Meus ouvidos. É um longo processo.
Lyle queria fazer mil perguntas, mas, como Frankie retomou a prática,
ficou quieto e escutou. Quando Frankie completou as escalas de si bemol e si
natural, parou de novo.
– Estropiei minha mão. Estou trabalhando para encontrar.
– Encontrar o quê?
– A beleza. A mão esquerda encontra a beleza.
Ele estendeu a palma e Lyle notou as cicatrizes.
– O que aconteceu?
– Não lembro direito.
– Acidente?
– Não exatamente.
– Quando?
– Em 1969.
– O ano de Woodstock. Então o senhor esteve em Woodstock?
– Mais ou menos.
– Aquele era o senhor tocando?
– Tocando o quê?
– O solo. O que acabei de perguntar.
– Desculpe. Não ouvi.
– É famoso. Quer dizer, é um pirata famoso.
Frankie olhou diretamente para o jovem.
– Pirata?
– A gravação. O senhor consegue se for atrás.
– De um solo?
– É o solo mais incrível de todos os tempos. Eu não conseguiria tocar
mesmo que tentasse. Ninguém consegue.
A respiração de Frankie pareceu acelerar-se.
– Não era eu.
Olhou para os pés.
– Você deveria ir agora. Tenho muito que praticar.
Passaram-se vários dias. Lyle e os companheiros de banda tentaram
outras três visitas, mas a praia estava vazia em todas elas.
– Talvez tenham se assustado e fugido por nossa causa – disse Eddie.
– Ele falou que não era ele – comentou Lyle.
– Você acredita nisso?
– Não sei. Ele toca muito devagar.
– Como ele se machucou?
– Não falou.
– O que vamos fazer agora?
Eles se entreolharam.
– Beber – declarou Cluck.
Dez minutos depois, entraram em um pub chamado McGinty’s e pediram
cerveja. Acharam uma mesa.
– Não são os roqueiros ianques?
Os três avistaram Kevin, o motorista, rindo atrás do bar.
– Você é bartender também? – perguntou Eddie.
– Aff, não, estou só me servindo. Como está indo a aventura?
– Não está – disse Lyle, taciturno.
– Ele desapareceu – acrescentou Cluck.
Kevin puxou uma cadeira.
– Sabem, camaradas, as pessoas costumam mudar-se para uma ilha para
ficar em paz. Se quisessem ser encontradas, com certeza não escolheriam
Waiheke.
– Então por que você nos levou até ele?
– Sei lá. Ele está aqui faz tempo. Achei que gostaria de saber que as
pessoas não haviam esquecido dele.
– Você sabia quem ele era? Que era famoso nos anos 1960?
– Claro! “I Want To Love You”? Ouvíamos essa canção no exército.
Uhhh-huu! Faz mexer os quadris, né?
– Então por que nos disse que nunca tinha ouvido falar dele?
– Primeira regra da amizade, camaradas: aprender a guardar segredo.
Os rapazes ficaram abatidos. Beberam a cerveja.
– Por isso dei uma passada na casa dele naquela noite. Para ter certeza de
que estava tudo bem.
– Espera aí – disse Lyle. – Ele deu permissão para você nos levar lá?
– Ele não, camarada. Ela.
– A esposa dele?
– Aurora. Ela é adorável. Achou que seria uma boa ideia.
Revigorados com a novidade, os rapazes do Texas decidiram ficar na
ilha durante o fim de semana, quando aconteceria um evento tradicional anual
conhecido como Dia da Corrida. Cavalos, pôneis e tratores competiam numa
praia ampla, enquanto os ilhéus se reuniam ao sol, comendo bifes do
McGinty’s e bebendo cerveja de barris. A música fazia parte das festividades,
e não foi difícil os Clever Yells arranjarem para tocar algumas canções à
tarde. (Os outros músicos eram uma pequena banda de metais e um homem
com acordeão.) O palco era tosco, com uma bateria velha no centro,
amplificadores pequenos e microfones utilizados nas reuniões do conselho
local. Mas Lyle, Eddie e Cluck estavam ansiosos para tocar – bandas que se
juntam depois de um período de inatividade ficam tão inebriadas quanto
amantes no aeroporto – e, assim que plugaram os instrumentos e fizeram uma
rápida saudação, abriram sua apresentação com uma canção country escrita
por Lyle, que recebeu aplausos vigorosos. Fizeram “Jambalaya”, de Hank
Williams, e uma versão de “Twist and Shout”, e todas pareceram combinar
bem com o sol, a cerveja e o ruído ambiente de crianças guinchando e homens
bêbados rindo.
– Gostaríamos de tocar mais uma – disse Lyle. – Antiga, mas com certeza
das boas.
Cluck rufou os tambores e, com o violão tocando uma frase familiar, Lyle
mandou o verso de abertura do maior sucesso de Frankie Presto:
I want to love you, / I will be true, / No one will love you / The way I do.14
A multidão aplaudiu na mesma hora, como as pessoas fazem ao
reconhecer as canções aos primeiros acordes. Lyle olhou para Eddie, que
sorria. O carinho deles pela música era evidente. Mas um olhar de relance
pela multidão tirou o sorriso de Lyle.
Frankie estava lá atrás, com a menininha nos ombros.
No meio da canção, deu as costas e foi embora.
Tenho que explicar o caso da criança.
Frankie e Aurora encontraram na ilha a paz que procuravam. Como a terra
era barata, compraram um pequeno terreno na praia e construíram uma bela
casa com materiais locais e deque com vista para a água. De manhã
caminhavam à beira-mar; à noite Aurora grelhava peixe fresco enquanto
Frankie praticava escalas e arpejos para readquirir a destreza. Vestiam short e
camiseta. E notaram que os moradores da ilha eram artistas, andarilhos e tipos
pitorescos que não davam bola para a antiga fama de Frankie.
Certo dia, cerca de um ano depois de chegaram ali, Frankie e Aurora
estavam voltando de uma caminhada quando ouviram um animal gritando.
Avistaram um vira-lata nas moitas. Ele tinha o pelo branco e estava abaixado,
encarando o casal. Quando se aproximaram, o animal ganiu e recuou alguns
passos. Atrás dele descobriram uma bebê muito pequena, com não mais de
três meses de vida, embrulhada em um cobertor cinza.
– Quem é você, querida? – sussurrou Aurora, erguendo a criança
delicadamente.
Frankie observou. A menina não emitiu som algum. Aurora segurou-a
contra o peito, mas os olhos da bebê permaneceram abertos e voltados para
Frankie.
– Alguém abandonou-a à morte – disse ele.
As palavras simplesmente saíram. Dentro de cada ser humano existe o
conjunto total de suas memórias, aquelas que ele consegue acessar e aquelas
que não consegue. Em algum lugar nas profundezas da mente de Frankie
estava seu abandono, seu próprio cobertor cinza, seu cachorro a ganir.
– Precisamos encontrar um lugar para ela – declarou Aurora.
Foram depressa para o carro e não viram um vulto pesadamente vestido
escondido no bosque.
Levaram a criança até a igreja mais próxima, um pequeno prédio térreo.
A freira atendente, uma mulher de pescoço grosso e semblante severo,
pareceu surpresa com a chegada dos dois. Ela pegou a criança e pediu que
esperassem. Em seguida chegou um policial, que os inquiriu, pedindo
detalhes. Onde? Como? Quando? Quem eram eles?
– Por que tantas perguntas? – questionou Frankie.
– Porque a bebê foi deixada aqui há dois dias, camarada – replicou o
policial. – Alguém abandonou-a no vestíbulo com um bilhete pedindo que a
igreja cuidasse dela. E então, nesta manhã… – Ele fez uma pausa. – Ela
sumiu.
Frankie olhou para Aurora.
– Não temos nada a ver com isso.
– Contamos o que aconteceu.
– Simplesmente a encontramos.
– É verdade. No bosque. Um cachorro estava de guarda.
Como a bebê estava perfeitamente bem, o policial acabou acreditando na
história. Permitiu que fossem para casa. Mas naquela noite Aurora sonhou
com a criança. E, no dia seguinte, insistiu com Frankie para que fosse à igreja
com ela.
– Olá, preciosa – murmurou Aurora, inclinando-se sobre o berço.
– Não espere resposta – falou a freira.
– Por que não?
– Tem algo errado com ela.
– O quê?
– Não dá um pio. Apenas uns poucos grunhidos. Talvez seja surda. Em
geral o motivo é esse. Pobrezinha. Vamos levá-la ao continente amanhã.
Aurora olhou para Frankie.
– Pegue o violão – disse ela.
Frankie voltou com o violão. Dedilhou. A criança não reagiu.
– Toque uma canção para ela – pediu Aurora.
Frankie tocou as notas básicas de “Hush Little Baby”.
– Cante – sussurrou Aurora.
Ele cantou:
Hush little baby, don’t say a word, / Papa’s gonna buy you a
mockingbird.15
A criança olhou. Aurora cantou a frase seguinte:
And if that mockingbird don’t sing, / Mama’s gonna buy you a diamond
ring.16
A criança abriu a boca.
Os adultos cantaram juntos:
And if that diamond turns to brass, / Mama’s gonna buy you a looking
glass.17
Pararam. A criança virou a cabeça. Começou a chorar, os olhos bem
apertados. Mas mal e mal saía um som. Apenas grunhidinhos abafados, quase
dolorosos de se ouvir de uma criatura tão minúscula.
Frankie começou a tocar de novo.
E ela parou de chorar.
– Viu só? – perguntou Aurora à freira. – Ela não é surda. Consegue ouvir.
– Virou-se para Frankie. – E gosta quando você toca.
– Bem, não sei… – disse ele, sorrindo.
Mas eu sabia. Sabia exatamente o que estava acontecendo. Vejo o futuro
de todos os meus filhos. E vi ali uma discussão, uma decisão, uma adoção e
uma arrumação para dar espaço para um bercinho na bela casa deles. Uma
nova banda estava se formando com Frankie Presto no centro dela.
Esta banda era uma família.
14 Quero amar você, / Serei fiel, / Ninguém vai amar você / Como eu.
15 Nana, nenê, não diga nada / Papai vai comprar um passarinho para você.
16 E se o passarinho não cantar / Mamãe vai comprar um anel de diamante para você.
18 A coisa mais importante que você vai aprender um dia / É simplesmente amar e ser amado de volta.
51
SIGA-ME.
Escada acima.
Os lugares lá embaixo estão sendo ocupados, o padre está recepcionando
os enlutados. A missa fúnebre vai começar em instantes. Nossa história deve
terminar em breve. Mas há uma narrativa nessa basílica que precisamos
concluir.
Olhe para o interior dessa câmara vazia. Vê o piso de concreto e as
paredes nuas? Foi aqui que Frankie nasceu. Foi aqui também que um homem
chamado Pascual Baylón morreu há quase quatrocentos anos. Baylón, um
monge espanhol pobre e com pouca instrução, foi posteriormente canonizado
pela humilde devoção a Deus – e pelos pequenos milagres ocorridos ao seu
redor. Dizem que, durante seu próprio funeral, os olhos de Baylón se abriram
para observar a cerimônia da eucaristia.
O corpo de Pascual Baylón permaneceu enterrado nesta igreja até a noite
em que ela foi reduzida a cinzas, a mesma noite em que a mãe de Frankie,
Carmencita, perdeu a vida ao dar à luz nesta mesma câmara, colocando o
nome de Pascual no filho – Francisco de Asís Pascual Presto – na esperança
de que isso pudesse protegê-lo.
De fato, já havia protegido.
Existe um motivo para mais gente não ter sido morta naquela noite, um
motivo para a igreja estar quase vazia quando os invasores chegaram. Horas
antes, San Pascual realizou um último milagre, dessa vez do mundo dos
mortos.
Ele sinalizou para os membros da igreja fugirem.
Batendo palmas de dentro da tumba.
As pessoas ouviram o som com nitidez.
Clap. Clap. Clap.
E saíram correndo.
Música de advertência.
Quando Frankie retornou à Espanha, ela deveria ter soado de novo.
– Maestro, podemos ir até o rio hoje?
– Por que faríamos isso?
– Meu pai me levou lá uma vez, para ver a estátua do Pastoret. O
pequeno pastor de ovelhas.
– Então você já viu. Não precisa ir de novo.
– Conhece a história da estátua, Maestro?
– Em Villarreal todo mundo conhece a história.
– É verdade?
– Pegue o violão.
– É verdade que um menino pastor de ovelhas ouviu música vinda de uma
caverna?
– O violão.
– E lá dentro encontrou uma estátua da Virgem Maria?
– Francisco…
– É verdade que ele trouxe a estátua para a cidade…
– Quanta bobagem…
– E no dia seguinte ela desapareceu?
– Já chega.
– E que, quando as pessoas voltaram à caverna, ouviram música e
encontraram a estátua de Maria de novo?
– Chega! A música vem das cavernas?
– Não, Maestro.
– Não, não vem. Vem da prática. Que você não está realizando.
– Então a história não é verdade?
– Vou dizer o que é verdade. Se Maria queria ficar numa caverna com sua
música, por que o pastor tinha que ir lá incomodar?
– Sim, Maestro.
– Por que as pessoas precisam incomodar as outras?
– Sim, Maestro.
– Não volte atrás à procura das coisas. Deixe estar, deixe quieto.
Entendeu?
– Sim, Maestro.
– Agora comece a tocar, porque eu não estou ficando mais jovem.
A família saiu do aeroporto para o sol ofuscante. Os olhos de Frankie
começaram a doer. Ele pegou os óculos escuros e, enquanto seguiam de carro
pela costa, olhou pela janela, dando-se conta de que havia se esquecido das
cores de seu país: as casas em tom pastel, os laranjais, as marolinhas brancas
quebrando o azul do mar Mediterrâneo. O que não esqueceu, Frankie enterrou
em sua mente. Inclusive todas as lembranças de Baffa Rubio, sem jamais
perdoar o homem pelas mentiras.
A ideia de voltar foi de Aurora. Já haviam passado pela Califórnia, Nova
Orleans e Londres, onde Aurora viu a mãe pela primeira vez em anos. Em
volta de uma mesa retangular, compartilharam um jantar de rosbife e repolho,
e Aurora aguentou os olhares da mãe para a criança que eles chamavam de
filha.
– Se eu consigo lidar com isso – Aurora disse a Frankie naquela noite –,
você consegue lidar com a Espanha.
– Não é a mesma coisa.
– Você acha que seu pai está vivo?
– Ele não é meu pai.
– Então você não irá vê-lo?
– Ele não está vivo.
– E se estivesse? Você não iria falar com ele?
– E dizer o quê?
– E dizer que você sobreviveu. Dizer que tem uma esposa e uma filha.
Dizer obrigado.
– Não se agradece às pessoas por mentirem.
– Francisco…
– Não quero ir.
– Nós vamos.
– Por que isso é tão importante para Kai?
– Não é só para Kai.
– Não quero ir.
Ela entrelaçou os dedos nos dele.
– Você já falou isso.
Por conta própria, Frankie jamais teria feito a viagem. Porém, com a
esposa segurando uma mão e a filha segurando a outra, ele foi reconduzido à
sua quente terra natal.
E aos segredos que ela guardava.
A vida na Espanha mudara radicalmente desde a década de 1940. O
ditador Franco estava morto e o país que ele oprimira por tanto tempo ia aos
poucos se erguendo. Frankie mal reconheceu Villarreal. As ruas estavam
pavimentadas e os carros dominavam as vias antes percorridas por cavalos e
bicicletas. Agora havia um ginásio esportivo, um hospital grande e muitas
lojas novas ao longo da Calle Mayor.
Frankie caminhou com a família por uma praça movimentada, passando
por um jardim de salgueiros-chorões e pelo canal de irrigação onde Francisco
Tárrega fora jogado pela babá, assim como Frankie certa vez fora lançado em
um rio. Ele evitou contar quaisquer histórias sobre Baffa Rubio, embora
pudesse sentir o incentivo silencioso de Aurora enquanto ela caminhava a seu
lado.
No fim, foi a pequena Kai que fez Frankie mudar de ideia. Eles foram a
um parque ver La Panderola, a velha maria-fumaça que deixara de circular
havia décadas. Restavam apenas a locomotiva e um vagão de passageiros
abrigados sob um toldo.
– A gente costumava correr atrás desse trem – contou Frankie para Kai.
– Quem?
– As crianças.
– Por quê?
– Era divertido.
– E se você caísse nos trilhos e o trem estivesse vindo?
– Isso não aconteceria.
– E se você corresse assim – disparou ela na frente do velho trem – e
caísse, oh?
Ela se jogou, rindo, e Frankie pegou-a e a levantou bem alto.
– Aí meu papai teria me salvado no último segundo – falou ele com voz
retumbante.
Quando colocou Kai no chão, Frankie reparou em Aurora olhando para
ele com as sobrancelhas arqueadas. Frankie suspirou.
– Venha comigo, Kai. Vou lhe mostrar onde cresci.
A casa na rua Calvário fora pintada num tom cítrico e as janelas eram
novas. Na parte inferior do pórtico ainda havia duas fendas para rodas de
carroça. De resto o local parecia tão moderno quanto as casas circundantes.
– Cá está – disse Frankie.
– Você morou aqui, papai?
– Quando garoto.
– Quem mais morava aqui?
– O homem que cuidava de mim. E nosso cachorro.
– Onde estavam sua mamãe e seu papai?
– No céu.
Frankie estendeu as mãos na direção de Aurora como a dizer: “Já chega?
Podemos ir?” Mas a criança soltou-se em disparada e bateu na porta.
– Kai, por que você fez isso? – berrou Frankie, agarrando-a pelo braço.
– Pare – repreendeu-o Aurora. – Ela só está curiosa.
A porta se abriu. Uma mulher miúda com um xale nos ombros espiou para
fora.
– Sí?
Frankie empertigou-se e então falou em espanhol:
– Me desculpe, señora. Não queríamos incomodar. Minha filha estava…
– Você fala inglês? – interrompeu Aurora.
– Um pouquinho – respondeu a mulher.
– No es necesario… – disse Frankie.
– Meu marido morou aqui quando criança. Nesta casa. Sua casa.
– Sí? – A mulher olhou para Frankie. – Ah – acrescentou, com o
semblante a se abrir. – Já vi você antes.
– Onde? – perguntou Aurora.
A mulher ergueu um dedo. Desapareceu por um instante, deixando a porta
aberta, em seguida voltou arrastando uma caixa grande pelo chão.
– Venham, venham – pediu ela.
Os três entraram, Frankie por último. Seu coração batia rápido. Olhou em
volta de relance, esperando ser atingido por uma onda de emoção. Mas estava
tudo diferente. A pintura. As fotos. A mobília. No fim das contas, salas são
salas, assim como uma pauta musical é uma pauta musical. A forma como
você as preenche é que as torna suas.
– Mira – disse a mulher.
Ela ergueu um pano que cobria a caixa e dali retirou um velho disco.
– É você, não é?
Era a capa do primeiro lançamento de Frankie, um importado espanhol.
– Papai, olhe! — exclamou Kai, agarrando o disco.
Mas os olhos de Frankie já haviam se voltado para outros conteúdos da
caixa. Um rádio velho. Uma trela de cachorro. E sua braguinha.
– Aquele ali era o seu violão? – cochichou Aurora.
– Onde você conseguiu isso? – perguntou Frankie à mulher.
– Um homem trazer. Muito tempo atrás. Diz deixar na casa se família vem
buscar. Não vir família.
– Que homem?
Ela torceu os dedos, procurando a palavra em inglês, aí desistiu.
– El hombre del cementerio.
– O que ela disse? – questionou Aurora.
– O homem do cemitério – respondeu Frankie.
Há tempos a música faz parte dos rituais de morte de vocês. Missas de
réquiem. Hinos. Um corneteiro soprando toques fúnebres. Sendo um talento,
eu não me lamento. Mas vocês com certeza lamentam-se por meu intermédio.
Suas composições mais apaixonadas com frequência são inspiradas pela
perda.
O réquiem para Baffa Rubio chegou tarde, na forma de seu filho adotivo,
Francisco, que vagou pelo cemitério municipal vasculhando criptas em busca
de um nome. Não era um lugar que o jovem Frankie houvesse alguma vez
visitado. Durante sua infância, as tropas de Franco arrancavam cidadãos de
suas casas, alinhavam-nos contra o muro externo do cemitério e os fuzilavam.
Muitos carregavam porções do meu talento e foram sepultados com suas
canções não cantadas. Seus ossos ocupam tumbas anônimas e os buracos de
bala nas paredes são seus únicos marcos.
Baffa manteve o filho longe daquele lugar. Mas agora, ali dentro, Frankie
procurava o nome de Baffa, passando por jazigos empilhados em quatro
camadas, alguns assinalados com imagens de Jesus ou da Virgem Maria,
outros exibindo flores frescas. Não encontrou nada. Nenhum registro de
Rubio. E ninguém conseguiu lembrar quem poderia ter entregado a caixa de
seus pertences na casa da rua Calvário. Haviam se passado anos demais.
Todas as pistas tinham desaparecido. O filho mais uma vez foi deixado a se
perguntar onde seu pai poderia estar.
Aurora e Kai esperaram do lado de fora, para permitir privacidade a
Frankie. Quando ele apareceu, de mãos abanando como havia entrado, viu as
duas sentadas ao sol num banco, a pequena Kai agarrada ao velho disco. Ele
tentou imaginar o que Baffa teria pensado ao ver aquele disco pela primeira
vez. Será que descobrira numa loja? Será que alguém dera a ele? Será que se
perguntava por que o nome de Frankie fora modificado? Por que nunca
entrara em contato? Será que Baffa ouvira a música? Será que conseguira
redescobrir ali a voz do menino que cantava em seu jardim?
Frankie ficou zonzo com a amplitude de tudo aquilo e se recostou na
parede do cemitério. Ao tocar nela, sentiu uma arremetida súbita de memórias
horríveis, como se aqueles buracos de bala gritassem milhares de histórias
silenciosas dentro de sua alma. Uma delas, Frankie sentiu, pertencia a Baffa.
Ele se afastou com um tremor.
– Francisco? – disse Aurora ao avistá-lo. – Você está bem?
Ele cambaleou para a frente, abraçou e segurou Aurora por um minuto.
Viu Kai fitando-o com amor, o disco encostado na boca. Naquele momento,
Frankie percebeu que aquela menininha não era sangue de seu sangue, mas
olhava para ele como ele certa vez havia olhado para Baffa Rubio – com
olhos arregalados, confiante, amorosa, protegida. Percebeu também que, não
fosse o fabricante de sardinhas, ele talvez nunca tivesse ouvido música, nunca
tivesse aprendido a tocar violão, nunca tivesse conhecido o cão pelado ou ido
ao bosque para encontrar Aurora. E, se nada disso tivesse acontecido, agora
não haveria uma garotinha segurando o álbum dele e franzindo os olhos ao
sol.
Frankie limpou os olhos e caminhou com a família até uma fonte nas
redondezas. Sentaram-se.
E ele contou tudo sobre seu pai.
53
SE ELES TIVESSEM IDO EMBORA NAQUELE DIA, NOSSA HISTÓRIA SERIA diferente.
Acontece que, se qualquer um de vocês deixasse algum lugar um dia antes, a
paisagem de suas vidas seria rearranjada. Você não pode destocar notas que já
foram tocadas. Nesse aspecto, o tempo é como a música: indelével.
Frankie, Aurora e Kai estavam voltando para a Inglaterra para visitar a
irmã de Aurora e em seguida retornariam à Nova Zelândia. Em sua última
noite no hotel, Frankie teve um sonho vívido. Sonhou que caminhava atrás de
Baffa, subindo as escadas de um prédio com uma lavanderia no térreo. Viu
Baffa enxugar a testa e encorajar o jovem Frankie a cantar. Viu uma porta se
abrir e pôs os olhos pela primeira vez numa figura alta e barbuda com óculos
escuros.
E aí tudo sumiu.
Na manhã seguinte, Aurora acordou e deparou com Frankie sentado à
janela.
– Qual é o problema? – perguntou ela.
– Tem uma coisa que preciso fazer aqui.
– Então vamos ficar.
– Tenho que fazer sozinho.
Ela olhou meio desconfiada.
– Está tudo bem – garantiu Frankie. – Vá ver sua irmã. Vocês já têm as
passagens. Irei para lá em poucos dias.
– Promete?
– Prometo.
Ele levou as duas de carro ao aeroporto, despediu-se com beijos e então
voltou para Villarreal.
Para procurar El Maestro.
Talvez você esteja se perguntando por que isso não aconteceu antes.
Uma pergunta pertinente, pois Frankie nunca deixou de pensar no professor.
Ele se lembrava de cada instrução, de cada reprimenda. Sempre que pegava o
violão, vislumbrava o rosto de El Maestro, o cabelo escuro despenteado, a
barba desgrenhada, os óculos escuros. Será que ainda estava vivo? Qual seria
sua aparência? Como estaria se virando? Um cego aos 70 anos? Será que se
lembraria da criança que acolhera?
E o que ele acharia da carreira de Frankie?
Na verdade, foi essa pergunta que manteve o ex-aluno distante todo
aquele tempo. A despeito de todos os sucessos, dos discos de ouro e dos
shows, às vezes Frankie ficava envergonhado pela maneira como havia
chegado lá. El Maestro fizera preleções sobre a pureza da música, a dedicação
ao se tocar violão e os perigos das distrações tolas. No entanto, Frankie
tornara-se muito popular (e rico) com canções relativamente simples. O
violão tivera pouca importância. O que vendera Frankie ao público foram sua
voz e sua bela aparência. Sua dança apenas contribuíra ainda mais para a
popularidade. Frankie temia que certas coisas que havia feito pudessem de
fato enojar seu mentor.
Frankie quase podia ouvir El Maestro dizer: “Por que você se comportou
como um bobalhão?” Não havia fama ou riqueza que aplacasse isso. O tempo
que passara no pequeno apartamento de El Maestro em cima da lavanderia
tinha sido o período em que Frankie estivera mais próximo de minha beleza
nua e crua, da minha sedução melódica. Ao se perder disso, Frankie temia ter
se extraviado das graças de El Maestro.
Devo observar que, com frequência, essa é a relação entre mentor e
aprendiz. Tome como exemplo meu compositor francês Henri Duparc, que
agarrou uma porção considerável de mim ao nascer, no século XIX. Ele criou
algumas obras inspiradas, lindas combinações de orquestra e voz. Contudo,
tinha tamanha reverência por seu mentor, o compositor alemão Richard
Wagner, que em 1885, com apenas 37 anos, Duparc parou totalmente de
compor e acabou destruindo toda a sua obra, queimando as transcrições,
convencido de que não eram dignas do homem que ele admirava.
A sombra de um professor pode pairar sobre uma vida inteira. Claro que
Frankie não tinha como saber que seu professor também era seu pai. Nem
podia imaginar que, ao procurá-lo agora, não apreciaria o que viria a
descobrir.
Assim sendo, acordou cedo, tomou um expresso no hotel e refez um
trajeto familiar pelas ruas, a mesma rota que fizera muitas vezes com um
carrinho verde e um violão grandão. Quantas vezes repetira aquele percurso,
usando boné e calças curtas, balbuciando as informações que El Maestro
costumava exigir! “Que compositor escreveu tal peça?… O que é a técnica de
rasgueado do flamenco?” As lembranças inundaram Frankie. Ele podia sentir
a pulsação acelerando, como a do aluno nervoso que outrora havia sido.
Porém, ao virar a esquina da rua Crista Senegal, seu corpo vergou. A
lavanderia se fora, substituída por um prédio de escritórios quadrado, com
uma placa indicando “Estacionamento”. Nada de venezianas azuis. Nada de
escadas para subir. Apenas uma entrada envidraçada e uma garagem com
portão amarelo.
Foi como se tivessem destruído suas memórias.
Frankie sentou no meio-fio. Sentiu o sol no pescoço. Ele não podia
desistir tão rápido. “Onde mais?”, pensou. Somente no último dia eles haviam
se aventurado para longe daquela região. Frankie reconstruiu mentalmente
suas últimas paradas, mas não conseguiu recordar a localização das lojas, do
restaurante, nem mesmo do fabricante de violões que entregara a El Maestro o
instrumento que Frankie tocava até hoje.
Mas lembrou da taberna.
E ficou pensando se ela ainda existiria.
– Um cego, é?
– Sim. Alto. Cabelo escuro.
– Não, señor. Não me recordo.
– Faz muito tempo.
– Então foi na época em que meu pai era o proprietário.
– Ele ainda vive?
– Não, señor…
– É importante que eu encontre esse homem…
– …mas você parece familiar.
– Isso não vem ao caso.
– Espere. Você é o americano. O ator!
– Não…
– O cantor?
Frankie contraiu os lábios.
– Ah! Estou certo? Sim?
– Sim.
– Seu nome é Presto.
– Sim.
– Você é daqui, señor?
– Quando menino.
– Villarreal?
– Sim.
– Eu não sabia.
– Eu tinha outro nome.
– É por isso que você fala espanhol. Increíble!
O homem berrou para o bartender, que arrumava as cadeiras. Um lavador
de pratos também ergueu os olhos. Eles balançaram a cabeça diante da
novidade.
– “I want to love you” – rugiu o bartender. – “I will be true…”
A entonação soava como uma imitação ruim. Frankie deu um sorriso
forçado.
– Señor, por favor, nos daria a honra de tocar em nosso palco?
– Tocar? – perguntou Frankie.
– Amanhã à noite. Temos uma banda grande nas sextas. Eles ficariam
muito felizes em incluí-lo.
– Não estou aqui para tocar….
– Você seria nosso convidado…
– Eu só queria…
– Você esteve aqui quando garoto…
– Sim, mas…
– E retorna como um homem! Perfeito, não?
Frankie suspirou. Olhou ao redor. A taberna estava abrindo para o
expediente, as cadeiras sendo retiradas de cima das mesas. O lugar era pouco
iluminado e cheirava a álcool e desinfetante. Frankie não mencionou que já
havia tocado ali uma vez. Nem que se recordava vividamente. Lembrava cada
vez que pisava num palco. Os vivas transformando-se em vaias. O bater dos
copos. A maneira como El Maestro o forçara a fazer uma reverência.
“Talvez devesse tocar”, pensou Frankie. Havia demônios naquele local
que ele há muito desejava calar. Ele havia conseguido uma certa paz em
relação à memória do pai. Não estaria na hora de fazer o mesmo no que se
referia àquela última noite?
– Vou pensar – disse ele.
– Por favor – replicou o proprietário. – Faremos uma refeição especial
para você. Comida deliciosa. Bebida. Música.
– Existe mais alguém que possa conhecer o homem que estou
procurando?
O homem coçou o queixo.
– Talvez os músicos. Alguns são bem velhos. Eles cobram mais barato,
né? – Ele abriu um sorriso e ergueu um copo de suco. – Ao seu retorno,
señor!
Frankie acenou com a cabeça e saiu.
Mais tarde naquele dia, Frankie foi à prefeitura de Villarreal para ver se
havia registros de seu professor. Após preencher um formulário, informaram-
no de que a resposta demoraria vários dias. Quando Frankie mencionou que
El Maestro era violonista, foi encaminhado a um homem de rosto redondo
chamado Jacinto, encarregado do setor cultural. Jacinto disse não se lembrar
de um professor cego, mas se ofereceu para mostrar a Frankie uma sala em
homenagem ao amado violonista Francisco Tárrega. Havia fotos, cartas,
partituras e o grande busto de gesso que outrora fora carregado pelas ruas de
San Felix. Também havia vários dos amados violões de Tárrega em
mostruários de vidro, inclusive o primeiro deles, feito pelo venerável Antonio
de Torres Jurado, famoso luthier do século XIX a quem remontam as raízes
da maioria dos violões atuais.
Frankie reparou que o instrumento estava danificado, com lascas e nódoas
que não haviam sido consertadas.
– Você sabe a história deste violão? – perguntou Frankie a Jacinto.
– Sei, señor – disse o homem, empertigando-se como se para uma
apresentação. – Era um dos favoritos de Tárrega. Tocou com ele por 20 anos.
Quando foi forçado a substituí-lo por estar usado demais, procurou alguém
que o restaurasse. Depois de muitas tentativas, uma pessoa conseguiu.
– E?
– Tárrega e seu violão reuniram-se outra vez.
– Então ele o deixou quando morreu?
– Sim e não, señor. Tárrega deixou o violão para a família, mas, passado
um tempo, seu irmão Vicente vendeu-o, pensando que fosse para o famoso
músico Domingo Prat, discípulo de Tárrega que morava em Buenos Aires.
Assim, despachou-o de navio para a América do Sul. Mas, ao chegar lá, o
violão não foi para as mãos do grande Domingo Prat, e sim para uma menina
de 10 anos de idade. Com o passar dos anos, acabou danificado.
– Na América do Sul? – indagou Frankie.
– Sim.
– E como voltou para cá?
– Um ex-aluno de Tárrega descobriu-o anos depois numa casa em Buenos
Aires, em cima de um sofá. Ele ajudou a providenciar o retorno à Espanha.
Frankie fitou o violão, que tinha uma rachadura no corpo perto do braço e
estava sem pedaços da roseta em volta da boca.
– Por que ele se deu ao trabalho? Está quebrado.
– Não importa, señor – disse o homem. – Agora ele pertence ao lugar
onde produziu sua melhor música, não é?
Frankie fitou o instrumento demoradamente. Desejou que El Maestro
pudesse ter visto ou, melhor ainda, tocado o violão quando estava inteiro.
Uma conexão com o grande Francisco Tárrega? Como El Maestro teria
amado! Frankie agradeceu a Jacinto e deixou o prédio. Mas pelo resto do dia
pensou na jornada daquele violão: manufaturado aqui, despachado de navio,
enviado ao local errado, danificado, agora de volta à terra natal.
Ele pertence ao lugar onde produziu sua melhor música.
Frankie decidiu tocar na taberna. Para honrar seu professor.
E, se possível, atraí-lo.
Na música, regressos ao lar jamais são previsíveis. Alguns são
ruidosamente bem-sucedidos (como o roqueiro Bruce Springsteen tocando em
Nova Jersey), alguns são agridoces (como o pianista russo Vladimir Horowitz
no retorno a Moscou depois de 60 anos de exílio) e alguns ficam muito aquém
do esperado.
O regresso de Frankie foi arranjado às pressas, de modo que a plateia era
formada por frequentadores habituais. Ainda assim ele esperava que a notícia
se espalhasse. Se El Maestro estivesse vivo, talvez ouvisse dizer que seu
aluno havia voltado. Villarreal ainda não era tão grande, certo?
Frankie chegou cedo com seu violão. Havia homens fumando na calçada,
ao lado de uma fileira de motocicletas. Lá dentro, reparou que o palco era
maior do que antes e que a banda da casa, que chegou aos poucos, tinha nove
integrantes e os músicos variavam de meia-idade a idade avançada. Frankie
repassou o repertório com o líder da banda, um pianista de braços finos. Ao
contrário de 40 anos atrás, agora as canções estrangeiras eram apresentadas
normalmente na Espanha e o homem aprovou toda a seleção de Frankie.
Frankie escolheu um repertório variado. Decidido a apagar as más
recordações do lugar, escolheu composições de sua autoria, “I Want To Love
You” e “Our Secret”, e também instrumentais como “St. Louis Blues”, “Tiger
Rag” e “Parfum”, de Django Reinhardt, além das que conseguiu lembrar da
última apresentação de El Maestro naquele palco.
O público foi chegando. Os lugares foram ocupados e as bebidas servidas.
As luzes apagaram-se.
Pouca gente notou uma figura pesadamente vestida que ocupou uma
cadeira lá no fundo do lugar.
O dono da taberna fez uma apresentação entusiasmada de Frankie, que foi
recebido com aplausos formais. Mas isso foi mudando à medida que Frankie
focava nas lembranças daquela última noite, e a ovação se intensificou a cada
número. Tocou Ellington, Schumann e Tárrega, conforme El Maestro havia
ensinado, como se a melhor coisa depois de encontrar o antigo professor fosse
conjurar seu espírito. Foi brilhante em várias composições do flamenco,
agradando a plateia espanhola. Quando cantou suas músicas famosas, os
clientes deram vivas, encantados com o fato de o homem que gravou aquelas
canções famosas estar em Villarreal.
Frankie não fez intervalos. Não saiu do palco. As bebidas foram repostas,
mais cigarros foram fumados. Passaram-se quase duas horas e a música do
violonista ficou mais e mais pungente. Uma antiga jota espanhola. Um blues
de Muddy Waters.
Para o último número, Frankie escolheu uma canção muito específica:
“Avalon”. Foi a primeira que ele tocou para uma plateia, naquele mesmo
palco, em 1945, e a única peça que ele um dia apresentou com seu amado
professor.
Ao dedilhar os primeiros acordes, gotas de suor escorreram pela testa de
Frankie. Ele visualizou El Maestro sentado ao seu lado, sussurrando as velhas
palavras, instigando-o a seguir.
– Cante a canção.
– Mas eu não quero.
– Por que não?
– Estou com medo.
– Sim. E você ficará com medo de novo. A vida inteira. Você deve vencer
isso. Encare-os e finja que não estão ali.
– Maestro…
– Você consegue. Lembre-se sempre de que eu disse que você consegue.
Enquanto a banda o acompanhava, Frankie reparou nas cabeças
balançantes e nos dedos tamborilantes da plateia. As batidas ficaram mais
ruidosas e alguns frequentadores acompanharam com palmas. Frankie cantou:
I found my love in Avalon / Beside the bay… / I left my love in Avalon /
And I sailed away… / I dream of her in Avalon / From dusk till dawn / So I
think I’ll travel on / To Avalon19
Ele olhou para o dono da taberna, que batia palmas com os demais.
Embora uma parte de Frankie se preparasse para a repetição da história,
dessa vez não houve protesto, apenas entusiasmo, e ele se pegou olhando de
um lado para outro, na vã esperança de ver El Maestro sentado a uma das
mesas, sorrindo por trás dos óculos escuros, um cigarro pendurado nos lábios.
No fundo, esse tinha sido seu desejo por anos, buscando o que todo aluno
procura desesperadamente no professor amado: a aprovação final.
Ela não aconteceu. Frankie concluiu o solo pleno de vivacidade e foi para
a última parte da letra como um corredor ao cruzar a linha de chegada. Tocou
três acordes para finalizar, o último deles ressoando entre a plateia, e curvou a
cabeça. O dono do lugar pulou em pé e todos fizeram o mesmo, levantando-se
em uma ruidosa torrente de aclamação.
Frankie ergueu-se devagar, suspendendo o violão diante de si. Pensou no
instrumento de Tárrega que esteve perdido por tanto tempo e, de repente, foi
dominado pelo anseio mais profundo que já havia sentido na vida: ver seu
velho professor uma vez mais.
Em vez disso, foi ovacionado. Forçou um sorriso. Regressos ao lar jamais
são previsíveis. E poucas coisas são mais vazias do que aplausos quando você
acha que não merece.
Um arranjador tem uma tarefa difícil: coordenar instrumentos em uma
combinação harmoniosa. O que aconteceu a seguir na história de Frankie
pode ser descrito como uma série de sons arranjados para chegar a um clímax.
Houve aplausos agudos e veementes, como violinos em crescendo,
quando Frankie encerrou o show. E então vieram as linhas do baixo, nas
vozes dos frequentadores que conversavam ao sair. Houve os sons
percussivos da banda desmontando o palco, guardando os sopros e pratos, e o
rabiscar suave de Frankie dando autógrafos para fãs mais velhos que se
recordavam de seus discos.
Houve o som de barítono no entusiasmo do proprietário dizendo a Frankie
para retornar quando quisesse. Houve os vocais suaves, como teclas de piano
tocadas de leve, de Frankie e vários músicos. E houve perguntas sobre um
cego que se alçavam em esperança e afundavam em decepção, como um
glissando de uma flauta.
Mais tarde, com o local quase vazio, houve o som da porta dos fundos
rangendo ao se abrir enquanto Frankie saía para o beco de onde certa vez
havia escapado num carro.
E, finalmente, o som do acender de um fósforo.
– Conheço você – declarou uma voz em espanhol.
Frankie viu o brilho alaranjado da ponta de um cigarro.
– Me conhece?
– Aquela canção. Não ouvia há muitos anos. Mas jamais poderia esquecer.
Você é Francisco.
– E você quem é?
– Um bêbado.
– Qual o seu nome, senhor?
– Você não me reconhece? Toquei no palco com vocês a noite toda. Lá
atrás.
Um velho emergiu das sombras cambaleando, nitidamente embriagado. O
cabelo ralo, branco e cacheado. Os ombros encurvados debaixo do casaco
pendurado sobre eles.
– Congas – disse ele.
Frankie inclinou a cabeça, curioso. O velho colocou dois dedos em cima
dos lábios.
– Antigamente eu usava bigode. Está vendo? – Ele baixou a mão. – Sou
Alberto.
Os olhos de Frankie arregalaram-se.
– Alberto – sussurrou ele.
– Sim.
– Você nos levou de carro aquela noite…
– Levei.
Frankie sentiu o coração disparar.
– Alberto, por favor, estive à procura de El Maestro. Meu professor. Seu
amigo. Ele…
– Sei quem é.
– Você sabe onde ele está?
Alberto esquadrinhou o rosto de Frankie.
– Sim.
– Está vivo?
– Não.
Frankie sentiu um aperto no estômago.
– Quando ele morreu?
– Pare com esse jogo. Você sabe a verdade.
– Que verdade?
Alberto deixou o cigarro cair. Inspirou fungando e tentou ficar ereto.
– Você quer que eu diga? Muito bem. Eu matei ele.
Frankie engoliu em seco.
– O que está dizendo?
– O que estou dizendo? – repetiu Alberto, desviando o olhar. – O que
estou dizendo? Quer que eu desenhe? Matei ele. É por esse motivo que você
está aqui. Pare de brincar comigo. Acabe com isso.
Frankie sentiu uma dor nas entranhas, a alma começando a se desprender
do corpo. Quando falou, os pulmões estavam sem ar, e voz não parecia a dele:
– Explique-se, señor Alberto.
Alberto arqueou as sobrancelhas.
– Ninguém mandou você?
– Mandou como?
– Para vingar a morte dele.
– Não estou entendendo.
– Joguei ele no mar. Logo depois que o seu navio partiu.
– Mas por quê…
– Dinheiro. Um saco de dinheiro. Roubaram de mim uma semana depois.
– Ele deixou cair a cabeça. – Então agora você já sabe.
– Mas você gostava dele.
– Gostava.
– Ele confiou em você…
– Um erro…
– Por dinheiro? – murmurou Frankie.
– Sim. Sim! Sou um ladrão! Está bem?
Ao dizer isso, Alberto pareceu acabado, a voz como um fagote vacilante.
Mas então elevou-se num tom irado, alimentado pelo álcool e pelos anos de
culpa:
– Pelo dinheiro! Pelo dinheiro!
Meteu a mão por debaixo do casaco e sacou uma arma. Apontou
diretamente para o peito de Frankie.
– Passa o dinheiro!
– Não, por favor…
– Me dê! Se você não vai se vingar, então vou pegar o que você tem aí.
Passa o dinheiro. Ou talvez eu mate você também.
Frankie levantou as mãos. Abriu os dedos. À luz do poste, Alberto viu as
cicatrizes recobrindo a palma esquerda de Frankie. Inclinou-se para a frente,
piscando.
– O que fez com sua mão, Francisco? Como é que consegue tocar daquele
jei…?
Frankie agarrou o braço de Alberto e o sacudiu. O velho trêmulo não era
páreo para o vigor de Frankie. Alberto soltou a arma. Ela caiu no calçamento.
Ele apertou os punhos em volta do colarinho da camisa de Frankie.
– Me mate, Francisco. – A voz era um apelo gutural e as lágrimas rolavam
pelas faces. – Vivo com esse pecado há 40 anos. Há 40 anos me pergunto se
El Maestro virá atrás de mim. Vingue-o! Agora!
Frankie esquadrinhou o rosto de Alberto, os olhos chorosos, os dentes
podres. Sentiu o sangue inundar seu cérebro. Era essa a resposta? El Maestro
se fora? Um músico de conga choroso havia assassinado o homem mais
poderoso que Frankie havia conhecido?
Uma fúria silenciosa abateu-se sobre o meu discípulo. Ele se afastou do
velho.
– Nada? – indagou Alberto. Ele recuou aos tropeções, bêbado. – Então
adeus, garoto estúpido.
Frankie olhou-o fixamente.
– Señor Alberto…
– Estúpido… estúpido – balbuciou o homem.
– Señor Alberto…
Frankie pegou a arma. Alberto virou-se. Frankie apontou o cano para o
alto.
Alberto investiu contra ele.
– Não, Francis…!
Frankie puxou o gatilho três vezes.
Alberto vergou.
Frankie baixou a arma, atônito. Uma nuvem de fumaça saiu pelo cano, no
formato de uma estante de partitura.
Naquele momento, dentro da taberna, a quinta corda de um velho violão
encostado numa parede exibiu uma tonalidade incandescente de azul.
19 Encontrei o meu amor em Avalon / Junto à baía… / Deixei o meu amor em Avalon / E parti… /
Sonho com ela em Avalon / Do anoitecer ao amanhecer / Por isso acho que seguirei viagem / Até
Avalon.
54
1943
– MAESTRO?
– O que foi?
– Fiz uma coisa errada.
– O quê?
– Arrebentei uma corda.
– Estava manejando o violão de qualquer jeito?
– Não, Maestro.
– Estava usando ele como brinquedo?
– Não, Maestro.
– Como a corda arrebentou?
– Eu estava praticando.
– Seus exercícios e escalas? Ou as músicas tolas que já mandei evitar?
– Não eram as músicas tolas.
– Então você estava fazendo a coisa apropriada?
– Sim, Maestro.
– E uma coisa ruim aconteceu.
– Sim, Maestro.
– Me dê o violão.
– Aqui, Maestro.
– Vamos reparar o estrago.
– Sim, Maestro.
– Me ajude a passar uma corda nova pela tarraxa…
– Já passei, Maestro.
– E você prendeu?
– Sim, Maestro.
– Agora ouça como afinar. Preste atenção ao que estou fazendo e nunca
mais esquecerá. A corda começa baixa. Mas você gira a tarraxa e a tensão faz
com que o tom suba.
– Sim, Maestro.
– Você gira até soar assim… Está ouvindo?… É assim que uma corda
nova encontra seu lugar.
– E se você continuasse girando e girando?
– A corda se romperia. Não se pode pedir das coisas aquilo que elas não
se destinam a fazer, Francisco. No fim, elas vão estragar.
– Maestro?
– Sim?
– Fiz uma coisa ruim.
– Você já me contou.
– Eu não estava fazendo meus exercícios. Girei a tarraxa até a corda
arrebentar.
– Então você mentiu para mim?
– Sim, Maestro.
– E também arrebentou a corda.
– Sim, Maestro.
– E agora se sente culpado?
– Sinto muito, Maestro… Sinto muito…
– Chore. Tem mais é que chorar. Chore como o menino mentiroso que
você é.
Wynton Marsalis
Trompetista, compositor, vencedor do Grammy, diretor artístico
de jazz do Lincoln Center
FRANKIE PRESTO NÃO FALOU DURANTE TRÊS ANOS. QUANTOS MÚSICOS podem
dizer isso? Três anos, cara. Nenhuma palavra. Apenas tocou violão num
mosteiro. Foi onde o conheci. Pirei com ele. A chave para aprender música é a
humildade, entende? Se você quiser que eu fale sobre Frankie Presto, tenho
que começar daí. Quer dizer, é preciso um tipo muito raro de humildade para
não falar por três anos…
Espanha? Sim. Venho bastante para cá. Passei 12 anos escrevendo uma
peça para um festival em Vitoria – música espanhola com blues americano –
e, quando acabei, ergueram uma estátua para mim. Sério, cara. Uma estátua.
Amam o jazz por aqui.
Mas minha primeira visita foi em 1987, e nunca vou esquecer. Foi quando
encontrei Frankie. A gente tinha feito alguns shows e estava na estrada,
voltando para Barcelona, quando avistei aquele castelo no alto das
montanhas. A tradutora disse que era um mosteiro. Perguntou se eu queria ir
lá ver. Claro que sim, eu disse. Sou de Nova Orleans. Não é todo dia que se
veem monges andando por lá.
Bem, o lugar era único. Novecentos anos de idade. A arquitetura, as
pedras, em tons rosa claros e dourados esmaecidos, diferente de tudo que
existe hoje. E, cara, que silêncio. Silêncio mortal. Vaguei por lá, meio que me
perdi. Quando é silencioso assim, gosto de caminhar para ter ideias.
De repente, ouvi música. Disse a mim mesmo: “Devo estar louco, porque
soa como blues.” Como Leadbelly ou Albert King. Pensei que algum anjo do
jazz fosse surgir do nada e puxar conversa, sabe?
Passei por uma fonte debaixo de uma pontezinha e foi então que vi aquele
homem, sozinho, com um violão. Ele estava de costas para mim, então parei e
escutei. Olha, foi uma das coisas mais lindas que já ouvi tocarem. Não só a
velocidade e a destreza. Mas a história que estava sendo contada. Música tem
a ver com comunicação, entende? Tem a ver com desnudar sua alma nas
notas, narrando sua história. É assim que se toca. Eu nem conhecia aquele
cara, mas, pela música que fazia, pelo modo como dedilhava as cordas, soube
que estava machucado e à procura de alguma coisa.
Quando ele parou, falei:
– Com licença.
Ele se virou. Eu não queria que o homem desse um pulo e saísse correndo,
por isso coloquei as mãos diante de mim como se estivesse rezando. Ele ficou
observando eu me aproximar.
– Sinto muito por tê-lo perturbado – murmurei.
O cara não respondeu.
– Você toca lindamente.
Eu estava a pouca distância dele. Notei que tinha a cabeça raspada e olhos
azuis. Um espanhol de mais idade e bem-apessoado, sabe? Usava um hábito,
mas não o hábito branco como os outros monges.
– Meu nome é Wynton Marsalis. Sou um músico da América. Toco
trompete – declarei.
Ele olhou para mim de um jeito intenso – na realidade, me encarou por
uns dez segundos – e aí percebi que estava chorando.
– Sinto muito. Falei alguma coisa que não devia? – perguntei.
Ele sacudiu a cabeça, ainda chorando, e eu disse que sentia muito. Pegou
um bloquinho e finalmente escreveu três palavras:
“Conheci seu pai.”
Ah, tá, qual é? Estava num mosteiro, nas montanhas, na Espanha! E
aquele monge tocava blues e dizia que tinha conhecido meu pai? Que lance
maluco! Então perguntei:
– Qual o seu nome, senhor?
Ele escreveu “Frankie” e depois “Presto”.
E aí caiu a ficha.
Meu pai também era músico, sabe, e conheceu Frankie Presto em Nova
Orleans na década de 1950, quando ambos eram garotos e faziam shows pela
cidade. Costumavam fazer jam sessions numa espelunca chamada Dew Drop
Inn. Quando moleque, eu ouvia o nome “Frankie Presto” mais do que gostaria
– sempre que eu não queria praticar o trompete, por exemplo. Meu pai falava
daquele jovem violonista branco que, na minha idade, já se apresentava – e
não tinha uma mãe ou um pai para incentivá-lo. E contava que ele havia
criado um som diferente, uma espécie de mistura de clássico e blues, e que
outros caras do jazz apareciam de todos os cantos só para ouvi-lo. Em Nova
Orleans, os músicos sabem quando você sabe tocar. Não importa quantos anos
você tenha. A música fala a verdade. E eles diziam que Frankie Presto sabia
fazer um violão cuspir a verdade. Mesmo que, no fim das contas, tivesse ido
embora e entrado na cena rock and roll.
Então lá estávamos nós, anos depois, naquele mosteiro, o oposto do
Bairro Francês, sabe? E perguntei:
– Você tem permissão para falar?
Ele acenou que sim com a cabeça.
– Não é contra as regras? – questionei.
Ele acenou que não com a cabeça.
– Mas você não está falando!
Ele acenou que não de novo.
– Há quanto tempo?
Ele mostrou três dedos.
– Três meses?
Ele acenou que não mais uma vez.
– Três anos?
Ele acenou que sim.
Ouviu isso, cara? Três anos de silêncio! Uma parte de mim queria deixá-
lo sozinho. Mas outra parte sentiu que eu me encontrava ali por algum
motivo; afinal era coincidência demais, sabe?
– Por que você está aqui, Sr. Presto? – indaguei.
Ele escreveu: “Penitência.”
Bem, conheci um monte de caras que se meteram em encrenca, vários
com quem cresci foram presos, então não me acanho diante disso. Portanto
perguntei sem rodeios:
– Você matou alguém?
Ele acenou que não, escrevendo: “Mas estive a ponto de fazer isso.”
– Não é a mesma coisa – declarei.
Ele tocou no coração, como se dissesse: “Aqui dentro é.”
Mais tarde entendi aquilo. Ele falava da intenção. Isso também é
importante na música. É de importância crucial. O que você pensa pode ser o
que você se torna. Bem e mal. Mas, na verdade, parecia que ele já havia
cumprido a pena. Três anos, cara? Por pensar algo ruim? Perguntei se tinha
família. Ele acenou que sim, e perguntei:
– Sabem onde você está? Você escreve para eles?
Ele confirmou com a cabeça.
– Não precisam de você ao lado deles? – questionei.
O homem não disse nada, mas vi que tocara num ponto sensível. Notei
que chorava sem fazer ruído, lágrimas caindo como de um conta-gotas, sabe?
Me senti péssimo.
– Sr. Presto, o mundo da música poderia aproveitá-lo. Eu adoraria gravar
com o senhor – revelei.
E ele escreveu: “Não quero mais me apresentar.”
– Talvez pudesse ensinar – sugeri.
Por algum motivo, aquilo encerrou a conversa. Ele pegou o violão e saiu
andando. Tive que me sentar e digerir o que havia acontecido. Tô dizendo,
cara, foi um dos encontros mais malucos que já tive – e não havia mais
ninguém lá. Fiquei me perguntando se alguém acreditaria em mim.
Quando reencontrei a tradutora, perguntei se poderíamos conversar com
alguém da administração. Ela me levou a um monge mais velho. Sentamos
num banquinho no refeitório onde eles comiam e contei que eu conhecia
Frankie Presto de muito tempo atrás. O homem disse que não podia falar
sobre nenhum dos irmãos que ali se encontravam. Perguntei se ele sabia o que
havia acontecido, se tinha conhecimento sobre a pessoa que Frankie quase
havia assassinado. Ele tornou a dizer que não podia comentar nada.
– O que seria preciso para tirá-lo daqui? – perguntei.
O monge pareceu surpreso.
– Um noviço pode partir a qualquer momento. É só cruzar a porta –
explicou.
Depois daquela conversa, fui procurar Frankie. Voltei à fonte e à ponte,
mas não consegui achá-lo. Estava ficando tarde, então seguimos para o
pequeno estacionamento. E lá estava ele, recostado no carro, em trajes
comuns, segurando o estojo do violão. Levantou-se, olhou para nós e falou
pela primeira vez, com uma voz muito fraca, como se cada palavra arranhasse
a garganta.
Ele disse apenas uma frase:
– Podem me ajudar a chegar em casa?
55
EXISTE MAIS UM MOMENTO DOS ANOS PASSADOS NA ILHA QUE PRECISO detalhar.
Logo após o retorno de Frankie, foi realizada a festa de 12 anos de sua
filha. Montaram uma mesa com bolo na praia e um grupo de crianças juntou-
se a Kai na comemoração. Reunida com o pai outra vez, Kai estava nas
nuvens.
Ao cair do sol, Frankie chamou Kai à mesa e disse que tinha um presente
para ela. E pegou o estojo surrado do violão.
– Pai, não quero o seu violão – disse a menina.
– Eu sei – respondeu ele. – Mas talvez queira o seu próprio.
Ele abriu o estojo e exibiu um instrumento de aspecto dos mais incomuns:
um violão vermelho com tarraxas brancas, o corpo com uma pintura colorida
de um cavaleiro espanhol e uma linda moça.
– Oh, papai, é para mim?
– Todo seu.
– Onde você conseguiu?
– Em outro país.
– Olhe o cavalo!
– E a señorita.
– Tão linda.
– Como você.
– Vai me ensinar a tocar?
– Se você quiser.
– Sim!
Kai agarrou o violão e saiu correndo com os amigos. Aurora observou até
estarem fora do alcance de sua voz, então inclinou-se para a frente e tocou no
ombro de Frankie.
– Onde está o seu violão?
– Não tenho mais.
– O que fez com ele?
– Deixei para trás.
– Mas as cordas. O poder delas…
– Foi por isso que o deixei para trás.
– Elas fizeram o bem, Francisco.
– E o mal. Uma corda ficou azul quando Alberto morreu.
– Você não o matou.
– Ele estaria vivo se eu não tivesse ido lá.
– Isso significa apenas que você afeta as pessoas.
– Não quero afetar as pessoas.
– Você não pode evitar.
– Posso tentar.
– Era uma dádiva…
– Eu sei…
– Do seu professor…
– Assim como minha habilidade para tocar…
– E do que a sua música provoca nos outros.
– Para mim chega, está bem?
Ficaram em silêncio. As ondas chocavam-se contra as rochas.
– Francisco?
– Sim?
– E se alguma coisa… acontecer?
– Acontecer?
– E se você precisar afetar alguém? E se precisar salvar uma vida?
– A sua?
– A dela.
Aurora acenou com a cabeça na direção da filha, lá na praia, balançando o
violão enquanto os amigos riam.
– Terei que fazer isso sozinho – disse ele.
E encerrou-se aí o que eles falaram a respeito. Na vida, como na música,
existem compassos para tocar e compassos para repousar. Pela primeira vez
desde os 9 anos de idade, Frankie Presto estava sem o seu precioso violão,
que permaneceu do outro lado do mundo, debaixo de uma cama num mosteiro
espanhol.
Com uma corda azul a ser usada.
– Pai?
– Sim, Kai?
– Meus dedos doem.
– Música é dor.
– Mesmo?
– Foi o que meu professor me ensinou.
– O que são essas coisas?
– São calos.
– Por que tenho isso?
– Porque está aprendendo. Quanto mais tocar, mais duros eles vão ficar.
– Ontem eles sangraram.
– Ontem você tocou muitas canções.
– Fui horrível.
– Não, não foi.
– Serei melhor hoje.
– Será.
– Posso ficar tão boa quanto você?
– Talvez melhor. Suas unhas estão cortadas rentes?
– Sim… Que acorde é esse?
– Sol.
– Gosto dele. É fácil.
– Toque suas escalas.
– Os dó-ré-mi?
– Isso mesmo.
– Papai?
– Sim, Kai?
– Você sempre quis tocar violão?
– Acho que não. Talvez no começo eu quisesse apenas deixar meu pai
feliz.
Kai sorriu. Seus dentes eram perfeitos.
– Eu também.
– Volte às escalas.
– Esses calos são feios.
– Eles vão desaparecer.
– E vão parar de doer?
– Em breve.
– Então música não é dor?
Frankie olhou para a filha, segurando seu primeiro violão. Sentiu o
coração transbordar.
– Não, nem sempre – disse ele.
Ingrid Michaelson
Intérprete, cantora, compositora
TUDO BEM, MAS TEM QUE SER RÁPIDO… ESTOU MUITO ATRASADA. AINDA não
começou, não é? Cheguei hoje de manhã e demorou muito até conseguir um
carro…
Sim… isso… meu nome é Ingrid Michaelson, sou dos Estados Unidos.
Conhecia Frankie… Bem, quando o conheci, não o chamava de Frankie. Era
o Sr. Rubio. Era assim que todos o conheciam. Nem sabíamos que era o
mesmo cara.
Professor… ensinava violão. Havia uma loja de instrumentos musicais
onde eu cresci, em Staten Island… É um distrito de Nova York… Sim,
tecnicamente é uma ilha, assim como Manhattan… Enfim, essa loja era como
qualquer loja de equipamentos musicais, acredito eu. Grande, abarrotada,
amplificadores revestindo as paredes, uma sala para baterias, uma sala para
teclados e alguns adolescentes num canto tocando riffs de guitarra.
Aquilo parecia um pequeno teatro, e eu era ligada em teatro quando garota
– e em música, visto que meus pais me fizeram ter aulas de piano –, então
perambulava pela loja, meio que observando os personagens e ouvindo o que
todo mundo tocava. Havia salas de aula nos fundos, quatro ou cinco salas em
um corredor, e era possível ver as crianças entrando e saindo dali, arrastando
instrumentos grandes demais para elas, como oboés e violas – se tivessem
sorte, tocavam flauta, que não pesa muito.
Então, certo dia eu estava na loja e notei um garoto alto com cabelo
moicano experimentando um grande amplificador Marshall. Ele disparou um
acorde de guitarra tão barulhento que quase explodiu minha cabeça. Aí
resolvi ir lá para trás para escapar daquele som. Caminhando pelo corredor,
ouvi, dentro de uma das salas de aula que estava com a porta aberta, alguém
tocando violão. Clássico. E imediatamente o moicano disparou outro mi com
sétima ou coisa assim – whaammm! Fiquei surda por um segundo, até captar
o som clássico, poucos segundos depois, e outra explosão do garoto roqueiro,
seguida do clássico outra vez. A justaposição daqueles dois sons era tão
bizarra. Mas também era um barato!
Fiquei curiosa para saber quem estava tocando música clássica – ainda
mais naquela loja. Andei pelo corredor, fingindo ir para uma aula, e espiei. Vi
um cara mais velho de cabelo comprido, tocando tranquilamente, sem ligar
para todo o barulho. Dei a volta, tornei a espiar, e ele continuava tocando. Fui
e voltei algumas vezes. Em determinado momento ele começou a tocar
trechos de música espanhola, tão melódicos, mas tão rápidos, que pareciam
duas pessoas a tocar, e não apenas uma, e isso me fez estacar à porta,
hipnotizada. Ele ergueu os olhos – fui flagrada – e disse:
– Barrios.
– Hã? – perguntei, confusa.
– O compositor é Barrios – explicou ele. – Chama-se “La Catedral”.
Sempre devemos saber o autor da obra que estamos tocando.
Apenas concordei com a cabeça. Quer dizer, eu tinha 14 anos. Ele sorriu,
soltou o violão clássico, pegou uma guitarra plugada num amplificador
Fender pequeno – havia umas dez guitarras na sala – e começou a tocar um
rock doido e selvagem.
– Hendrix – revelou.
Eu meio que dei de ombros, pois naquele tempo não conhecia a música de
Jimi Hendrix. Então ele trocou por outra.
– Stevie Ray Vaughan? – indagou ele.
De novo eu não conhecia. Ele tocou uma frase de “Walk This Way” e
falou:
– Aerosmith?
Fiz uma cara de dúvida, como se dissesse “Ah, sim, acho que já ouvi
essa!”. E aí simplesmente deixei escapar:
– Conhece alguma canção de musicais?
Pensando agora, foi uma tremenda idiotice. Porque “Conhece alguma
canção de musicais?” é o tipo de pergunta que sua avó faria. Mas ele não deu
bola. Pegou outro violão e tocou “Somewhere Over the Rainbow” com
tamanha beleza que me arrepiei. Afinal, eu amava Judy Garland e sempre
adorara aquela canção, mas nunca tinha ouvido uma versão tão melódica.
Quando ele terminou, perguntei:
– Pode me ensinar a fazer isso?
O jeito como ele tocava fazia a gente ter vontade de experimentar, saber
como era ter aquele tipo de música emanando dos dedos.
Ele disse que eu teria que me matricular nas aulas, que era a política da
loja. Quando cheguei em casa e pedi a meus pais, eles disseram que eu já
estudava voz e piano e fazia teatro. Era bastante coisa. Além disso, um cara
trabalhando nos fundos de uma loja de equipamentos musicais não era o que
eles tinham em mente. Meu pai é compositor clássico.
– Mas, pai – declarei –, ele tocou Barrios.
Meu pai ficou surpreso.
– Agustín Barrios? – perguntou.
É claro que eu não conseguia lembrar do primeiro nome do cara, por isso
não pude me gabar de mais nada.
Em todo caso, voltei à loja cerca de uma semana depois e lá estava ele de
novo, em sua sala. Ao me ver, disse:
– Ei, senhorita Canções de Musicais!
Então tocou, e cantou, uma música de O caminho do arco-íris. Perguntei
como conhecia tanta coisa e ele contou que, quando criança, na Espanha,
ouvia os mesmos discos várias e várias vezes até decorá-los. Perguntei por
que morava em Nova York se era da Espanha e ele respondeu que a filha
também era violonista e havia entrado na Juilliard, por isso ele e a esposa
tinham se mudado para lá, para estar com ela.
Achei muito legal a família inteira se mudar para que a filha pudesse
estudar música. Continuei aparecendo na loja, até que um dia ele disse que eu
podia trazer meu violão às quintas-feiras porque um aluno havia pagado um
ano de aulas e desaparecido, de modo que ele estava livre naquele horário –
contanto que o garoto não mudasse de ideia. Ele me ensinou algumas coisas
incríveis. Sabia tocar tudo que tivesse cordas. Baixo. Banjo. Foi a primeira
pessoa a me mostrar o uquelele, que mais tarde acabei usando bastante em
minhas gravações.
Mas, como falei antes, eu não fazia ideia de que ele fosse Frankie Presto.
Como se apresentou como Sr. Rubio, era assim que todo mundo se referia a
ele. Só fiquei sabendo seu primeiro nome porque, num certo dia de inverno,
sua esposa apareceu por lá para lhe entregar um suéter. Ela tinha um sotaque
inglês e falou:
– Camadas, Francisco, camadas. É assim que se fica quente.
Ca-madas, Francisco, ca-madas. Adorei. Para mim, formavam o casal
perfeito: ela era linda e britânica; ele havia crescido na Espanha; tinham
morado numa ilha – uma ilha da Nova Zelândia, não Staten Island; ambos
apoiavam a filha; e ele conhecia todas aquelas canções e ainda era bonito,
mesmo aos 55 ou 60 anos de idade.
Frequentei a loja, às quintas, por uns dois anos. Às vezes a gente apenas
conversava sobre a escola, garotos ou sobre fazer uma carreira na música ou
no teatro. Ele basicamente escutava. Nunca me falou que tinha sido uma
estrela do rock. Jamais fez qualquer comentário. O único conselho que me
deu, várias e várias vezes, foi: “Não deixe sua música escapar de suas mãos.”
Na época não significou muito. Porém, anos depois, quando comecei a
gravar, compreendi. Foi um dos motivos para eu conservar os direitos sobre
minhas obras, mesmo quando pessoas do ramo me aconselhavam a agir de
modo diferente.
Vou dizer uma coisa sobre o Sr. Rubio: ele sabia guardar um segredo.
Lembro que alguns “alunos” incomuns começaram a aparecer na loja. Caras
mais velhos. Músicos de jazz. Certa noite, dei uma passada por lá e juro que
vi Jon Bon Jovi andando pelo corredor e entrando de mansinho na sala do Sr.
Rubio. E Lyle Lovett também – quer dizer, tinha que ser ele, afinal sua
aparência é bastante singular. Mas eu ainda era adolescente e meio sem noção
da coisa toda.
Fui para a Universidade de Binghamton (SUNY) e, num verão, quando
voltei, ele não estava mais lá. A sala estava vazia. Perguntei o que acontecera
com o Sr. Rubio e disseram que ele e a esposa haviam se mudado para o Sul.
Nunca tive oportunidade de agradecer ou de me despedir. Só descobri
quem ele realmente era há alguns anos, quando a Rolling Stone fez uma
reportagem sobre aquele álbum pirata, o tal The Magic Strings. Louco, hein?
Na verdade, algumas frases de minhas canções foram inspiradas pelo Sr.
Rubio, como uma a respeito de compartilhar um suéter em “The Way I Am”,
ou aquela sobre se mudar para uma ilha em uma canção chamada “Far
Away”. Com o tempo, acho que todos os seus professores acabam entrando
em sua música, não é?
Quando fiquei sabendo como ele morreu, achei que deveria vir ao funeral.
Por anos tive vontade de encontrá-lo para dizer quanto fiquei impressionada
com o fato de ele nunca usar o passado para se exibir ou se sentir superior ao
ensinar uma adolescente esquisitona a tocar “Somewhere Over the Rainbow”.
Quero dizer, quantas pessoas são assim para valer? Não muitas.
Oh… está ouvindo o canto? Tenho que entrar…
57
21 Quero amar você, / Serei fiel, / Ninguém vai amar você / Como eu.
22 Ah, se você deixar / Eu mostrar meu amor por você / Então amanhã / Você me amará tambééém!
59
FRANKIE PASSOU OS ANOS RESTANTES DE SUA VIDA TÃO LONGE QUANTO possível
de suas memórias, em Manila, nas Filipinas, ensinando violão clássico na
Universidade de Santo Tomás. A pedido do pai, Kai usou suas conexões com
orquestras sinfônicas para lhe conseguir uma entrevista.
– É tão longe – protestou ela.
– Eu sei – disse ele.
A criação católica de Frankie ajudou na contratação. Ele jamais contou
aos empregadores que havia abandonado as orações, a Igreja e Deus. Assumiu
o cargo docente com salário modesto e foi morar num pequeno apartamento
no España Boulevard, o que lhe permitia ir e voltar do campus a pé, cruzando
a Plaza Intramuros sob o imponente Arco dos Séculos, obra de estilo barroco.
Frankie constatou que os estudantes filipinos eram educados e respeitosos.
E ele ensinava um a um, com paciência e firmeza. Os alunos admiravam seu
conhecimento. Mas Frankie raramente tocava para eles. E não entrou em
nenhum conjunto nem orquestra da faculdade. Ele fora para lá por um só
motivo: estar num lugar onde ninguém o encontrasse.
Apenas à noite, sozinho diante da janela com vista para um terminal de
ônibus, Frankie pegava no violão. Tocava melodias barrocas lentas de Gaspar
Sanz e blues de Robert Johnson. Mas os dedos agora doíam o tempo todo, a
artrite consumia a mão esquerda de nervos danificados e uma rigidez
permanente instalara-se nos ombros e pescoço. Ele não corria. Não cozinhava
massa. Não restaurava amplificadores, não fazia chá nem participava de
qualquer rotina que tivesse compartilhado com a esposa. A solidão era como
um ogro pairando sobre aquelas atividades.
Aurora havia dito que, quando ela se fosse, Frankie teria a música, além
de Kai. Mas eu lhe trouxe pouco conforto. Ele escreveu uma canção nos
meses seguintes à morte dela e depois não compôs mais nada.
Em 2009, Kai foi visitar Frankie ao término de uma turnê com a sinfônica
e contou que fora selecionada para o prestigioso Concurso Internacional de
Violão Francisco Tárrega, na Espanha. Tratava-se de um festival famoso,
realizado há mais de 40 anos, e estar naquela edição era uma honra especial,
pois marcava o aniversário dos 100 anos da morte de Tárrega. Em função
disso, o festival e a competição teriam lugar pela primeira vez na cidade natal
de Tárrega, Villarreal.
– Pai, quero que você vá.
– Não, Kai.
– É importante para mim.
– Não posso.
– Você me ensinou Tárrega. Foi a primeira coisa que me ensinou. Tudo
que sei sobre a música dele aprendi com você.
– Tem muitas…
– O quê? Memórias?
– Sim.
– As memórias não estão nos lugares, pai. As memórias estão na sua
cabeça. Elas também estão aqui neste – ela olhou em volta – apartamento
ridiculamente minúsculo.
Frankie esfregou o rosto e puxou o cabelo para trás; cabelo que, embora
ralo e acinzentado, ainda caía despenteado sobre a testa.
– Você nunca usa uma escova? – perguntou Kai, tentando fazê-lo sorrir.
– Para quem?
Ela desviou o olhar.
– Também sinto falta dela, pai.
– Eu sei.
Ele olhou para a filha, analisando como se tornara ainda mais bonita
agora, no auge dos 30 anos, enquanto ele definhava.
– Vai ficar uns dias? – questionou ele.
– Até sexta-feira.
– Alguns dias depois disso?
– Terei que dar um telefonema.
– Pode usar meu telefone.
Ele foi até uma mesa.
– Tenho um telefone, papai. Todo mundo tem celular hoje em dia.
– Ah. Certo.
Ela se inclinou para a frente e afagou o joelho dele.
– Você está bem?
Uma torrente de amor e angústia atingiu Frankie.
– Quando é o festival? – perguntou ele.
John Pizzarelli
Guitarrista, cantor e compositor de jazz, filho do guitarrista
Bucky Pizzarelli
SIM, COM CERTEZA… MEU NOME É JOHN PIZZARELLI, SOU MÚSICO, MORO em Nova
York. Estou aqui porque Frankie Presto era um velho amigo e antes de morrer
me pediu para fazer uma coisa… Pediu que eu encontrasse as fitas originais
de The Magic Strings of Frankie Presto e as entregasse para a filha dele…
Estão aqui dentro desta pasta…
Frankie e eu? Há muito tempo. Primeiro ele conheceu meu pai, Bucky
Pizzarelli. Eles se encontraram em meados da década de 1960, quando
Frankie participou do Tonight Show. Meu pai estava na banda do programa.
Guitarristas, os dois começaram a conversar, Frankie experimentou a sete
cordas do meu pai e o deixou completamente pasmo. Papai adorou Frankie. E
dizia: “E ele nem é italiano!” Pensamos que fosse um de nós. “Presto”, sabe?
Parece italiano.
Enfim, nos anos seguintes, quando vinha a Nova York, Frankie passava
em nossa casa e fazia jam sessions com Bucky e o pessoal do jazz que
aparecia por lá depois dos shows, basicamente para comer o rigatoni da minha
mãe. Acho que eu estava com uns 6 ou 7 anos quando o vi pela primeira vez.
Seu visual era diferente do dos caras mais velhos. Era bonito, tinha cabelo
escuro e usava óculos de sol. Era tipo Elvis para mim. Ou o mais próximo
disso. Eu estava aprendendo banjo tenor e, após Frankie tocar uma canção no
violão dele, mostrei meu banjo e disse:
– Tá, mas você saber tocar neste?
Óbvio que eu era um moleque metido a sabichão. Mas ele pegou o banjo,
piscou para mim e tocou “La Malagueña”, a famosa música espanhola, mais e
mais rápido, até eu ficar, sei lá!, de queixo caído. E isso no banjo, que na
verdade não era a especialidade dele. Frankie terminou e perguntou:
– Que tal?
– Muito bom – respondi.
E ele arrematou:
– Muito bom está muito bom.
Ele costumava me chamar de “LPJ”, de Little Pizzarelli John, porque na
época o presidente era Lyndon Baines Johnson, LBJ. Frankie adorava me ver
tocar com meu pai. Acho que não conheceu o próprio pai, então a ideia de pai
e filho tocando juntos era especial para ele.
E aí ficamos sem ver Frankie por um longo período. Ele apareceu uma
vez nos anos 1970, quando estava casado com Aurora e os dois estavam de
passagem por Nova York. Minha mãe fez massa. Eu estava no ensino médio e
tinha um cabelão encaracolado – estava ligado em Peter Frampton –, e ele
perguntou:
– Quem está debaixo dessa cabeleira toda é o LPJ?
E eu falei:
– É!
– Como vai?
– Muito bem.
– Muito bem está muito bem – disse ele. E aí perguntou: – Já aprendeu
“La Malagueña”?
Passou-se muito tempo antes que eu tornasse a encontrá-lo – eu já tinha
uns 30 anos e estava gravando e viajando pelo mundo. Ouvi dizer que ele
lecionava em uma loja de instrumentos musicais de, quem diria, Staten Island,
usando um nome diferente. Fui até lá, e era ele mesmo. Frankie mandou que
eu fechasse a porta da sua sala, então me deu um abração e perguntou como
estava meu pai. Contou sobre a filha, do lance da Juilliard, e explicou o
motivo para estar na moita, que era toda aquela gente curiosa sobre ele.
Naquela ocasião, eu estava tocando na cidade e supliquei para que ele desse
uma canja – prometi não apresentá-lo –, mas Frankie declinou. Disse que ele
e Aurora talvez aparecessem por lá qualquer noite, mas nunca foram.
Depois se mudaram para Nova Orleans e perdemos o contato.
A última vez que o vi foi há um ano. Nossa banda fazia uns shows pela
Ásia e fomos nos apresentar em Manila. Após o show, um estudante da
universidade local me aguardava na entrada dos fundos do lugar e disse que
tinha uma coisa importante para me falar. Uma mensagem de um homem que
costumava comer almôndegas na minha casa. Ele disse as palavras “La
Malagueña” e me deu um endereço. Tipo filme de James Bond, não é? Mas
não ficava longe de onde havíamos tocado, por isso pedi a um taxista para me
levar até lá. Subi ao apartamento. Sem porteiro, sem nada. Simplesmente bati
na porta.
Frankie atendeu e disse:
– Ei, LPJ.
Fiquei um pouco chocado. Ele não tinha um aspecto saudável. Encurvado
e supermagro, de óculos de leitura e cabelo todo despenteado, parecia um
professor meio descompensado. Eu não sabia que Aurora tinha morrido.
Quando soube, entendi. Eles eram loucos um pelo outro.
Conversamos por um tempo. Ele perguntou sobre o meu pai, como
sempre fazia, quis saber se ainda tocávamos juntos e, quando eu disse que
sim, pareceu feliz. Perguntei se ele estava gravando ou compondo qualquer
coisa e ele respondeu que só havia escrito uma canção desde que a esposa
morrera. Perguntei se podia ouvir. Ele a cantou para mim. E era tão curta que
lembro dela inteirinha.
Yesterday / I saw a bird / Whose tree had disappeared, / The clouds lay
claim / To a moonless sky / You are gone / I’m here.23
Era de partir o coração, tão triste e tão linda. Perguntei se ia gravá-la, mas
ele me olhou como se aquilo jamais fosse acontecer. E declarou:
– Pode ficar com ela se quiser.
Foi quando me pediu o favor. Frankie disse que um álbum pirata dele
chamado The Magic Strings of Frankie Presto circulava havia anos (não falei
que todos os guitarristas que eu conhecia tinham uma cópia ou já tinham
ouvido?) e que ele precisava muito conseguir as fitas originais. Imaginei que
ele quisesse o dinheiro que lhe era de direito.
Mas eu estava errado. Frankie não ligava para isso. Queria as fitas porque
se recordava que a esposa e a filha estavam dentro do estúdio com ele naquele
dia. Lembrava-se de que eles conversaram e riram entre as músicas e a
gravação original continha tudo aquilo. Frankie disse que queria que Kai
tivesse lembranças felizes dos pais quando ele morresse.
Bem, levou um ano para eu chegar até as fitas. Mas cheguei. Alguém da
Nova Zelândia tinha vendido para alguém da Austrália, depois da Inglaterra,
depois do Japão. Eu estava em Tóquio no mês passado e encontrei o
engenheiro de som que tinha as fitas. Ele ficou meio apavorado quando eu
falei que representava o verdadeiro Frankie Presto. “Pensei que ele estivesse
morto”, declarou.
E simplesmente me entregou as fitas após eu assinar uma coisa em
japonês prometendo que ele não seria processado.
Quando peguei as fitas, liguei para o número de Frankie nas Filipinas.
Mas acho que ele já tinha vindo para cá. Nos desencontramos por questão de
uns dois dias.
Isso é típico do timing de Frankie Presto, não é?
23 Ontem / Vi um pássaro / Cuja árvore desapareceu, / As nuvens reclamam para si / Um céu sem lua /
Você se foi / Eu estou aqui.
61
FRANKIE NÃO VOLTOU AO HOTEL. NÃO COMEU. NÃO BEBEU. VAGOU EM transe até a
saída da cidade e sentou-se perto do eremitério à margem do rio Mijares. A
frustração ardia em seu peito. Imaginou-se sendo lançado naquelas águas.
Imaginou Baffa Rubio encontrando-o. Imaginou a freira desgraçada caída na
lama, vendo-o ser levado. De quem era aquela vida? Parecia uma ópera que
levava seu nome, mas que não fora escrita por ele.
Frankie ficou nas proximidades do rio a maior parte do dia, junto ao velho
moinho e à escultura do menino pastor de ovelhas. Por fim, com o sol da tarde
perdendo a força, entrou numa igrejinha outrora frequentada por refugiados
escondidos nas cavernas.
Não havia ninguém lá dentro. Seus passos ecoaram. Ele foi até o altar e se
ajoelhou. Pela primeira vez desde criança, abriu as mãos para algo que não o
violão. E, a despeito da advertência de El Maestro de que “Deus não dá
nada”, Frankie pediu alguma espécie de resposta ao Senhor. Um pouco de
clareza. Um pouco de paz.
Esperou. Ficou à escuta. Um filho meu espera um som.
Ouviu apenas o silêncio.
Conforme seu professor havia avisado.
Ergueu-se lentamente e tomou o caminho de volta à cidade.
A última noite do festival teve lugar no Auditório Municipal lotado. Ao
chegar lá, Frankie estava exausto. Não havia comido nada. Não tinha o
ingresso. Foi até os fundos do prédio, familiarizado, como todo músico, com
as entradas e saídas de artistas, e achou uma porta por onde se esgueirar. Ao
longo do corredor, viu os músicos se aprontando e vislumbrou Kai usando um
vestido vermelho que fora de Aurora.
– Pai? – Ela correu até ele. – Onde você estava?
– Você está linda.
– Eu estava muito preocupada.
– Fui caminhar.
– Está se sentindo bem? Você está todo suado.
– Estou bem. Pense apenas na sua apresentação.
– Sabe qual é o seu assento?
– Talvez eu fique aqui atrás. Tudo bem?
Ela buscou uma cadeira.
– Descanse, pai.
– Vá se preparar – disse ele. – Estou bem. Boa sorte.
Kai desapareceu pelo corredor.
Minutos depois, a competição começou. Frankie ouviu a orquestra lá do
outro lado da parede, o sobe e desce das cordas e dos sopros e as passagens
silenciosas quando os violonistas eram apresentados. Lembrou-se da primeira
vez que ouvira aqueles sons, quando menino, nos bastidores de um teatro em
Cleveland, escutando Duke Ellington. Mas ele não tinha mais aquele arroubo
de assombro juvenil. Seus olhos permaneceram grudados nos sapatos
enlameados. Ele nunca se sentira tão cansado.
Quando chegou a vez de Kai tocar, Frankie deslocou-se com lentidão até a
coxia. Última competidora, ela selecionara duas composições de Tárrega,
difíceis para a maioria dos violonistas, mas que haviam feito parte de sua vida
desde a infância. E tenho orgulho de dizer que ela tocou com perfeição. A
orquestra acompanhou Kai como se tocassem juntas há anos. Quando ela
acabou, os espectadores aprovaram vigorosamente, de pé, saudando com
gritos e aplausos. Tivessem os jurados escolhido qualquer outro, a plateia
teria se revoltado.
Quando foi anunciada como a vencedora, Kai deu um passo à frente e
curvou-se. Frankie sentiu uma onda de orgulho maior do que qualquer coisa
que houvesse sentido pelos próprios feitos. Kai foi conduzida à beira do palco
e recebeu dois buquês de flores com o prêmio.
– Muito obrigada – disse ela ao microfone, em um espanhol perfeito. –
Sinto-me muito honrada por tocar as obras do grande Francisco Tárrega, um
filho de Villarreal.
Mais aplausos.
– Mas eu não saberia uma única nota de violão não fosse outro de seus
conterrâneos. Ele é meu pai.
Burburinho na multidão. Ela se virou e acenou para Frankie. Por essa ele
não esperava. Ficou aturdido.
– Pai, venha aqui.
Ele balançou a cabeça, negando.
– Pai… Por favor…
Ele cerrou os punhos, em seguida entrelaçou as mãos atrás das costas.
Caminhou para o palco de cabeça baixa. A multidão aplaudiu.
– Aqui está meu pai, que talvez vocês conheçam como… Frankie Presto.
Ele cresceu nesta cidade e aprendeu música aqui.
Os aplausos se intensificaram. Aquilo era uma surpresa. Frankie saudou a
multidão com um leve aceno de cabeça. Ele se deu conta de que não subia em
um palco havia muitos anos.
– Pai, hoje uma pessoa nos trouxe isso – disse Kai, apontando para um
ajudante de palco que se aproximava. – Seu violão, do tempo em que você era
criança aqui. Um milagre.
Frankie engoliu em seco. Não quis corrigir a filha. Nem contar a verdade.
– Você tocaria uma canção comigo?
Antes que Frankie pudesse reagir, a plateia rugiu em tom persuasivo. Kai
estendeu-lhe o violão. Um auxiliar posicionou uma cadeira. Outro trouxe um
banquinho para o pé. Saíram rápido, deixando apenas pai e filha. Kai sentou-
se, colocando o violão no joelho. Sorriu e gesticulou para Frankie fazer o
mesmo. Ele sacudiu a cabeça em negativa.
– Pai – sussurrou ela –, está na hora de tocar música outra vez.
Frankie permaneceu imóvel, estupefato. Finalmente sentou-se ao lado de
Kai. O auditório ficou em silêncio. Até as tosses ocasionais cessaram. Frankie
posicionou o velho violão como havia feito um milhão de vezes antes. Mas,
de repente, não conseguia parar de tremer. A garganta secou. A visão turvou-
se. Os dedos travaram. Kai olhou para ele preocupada. Ele fechou os olhos e
exalou. Ao esvaziar o peito, Frankie ouviu a voz de seu professor – seu pai –
em uma última recordação.
– Quando vou parar de aprender música, Maestro?
– Nunca.
– Nunca?
– Você nunca vai saber tudo que existe para saber. Vai aprender até os
seus últimos dias. E aí vai inspirar alguém. É isso que um artista faz.
– O que significa inspirar?
– Significa que você fará alguém amar a música do jeito que você ama.
– E ele vai querer tocar que nem eu?
– Talvez.
– Posso mesmo fazer isso?
– Não com toda essa conversa.
– Lo siento, Maestro. Sinto muito.
– Em inglês.
– I am sorry.
– Muito bem, então. Comece…
Frankie colocou os dedos nas cordas. Olhou para a filha.
Começaram.
Era um dueto meigo e vivaz de Tárrega, um que haviam tocado muitas
vezes ao longo dos anos. Chamava-se “Adelita”, e as cordas de Frankie
entremearam-se às de Kai, apoiando, acentuando, solando. Ela se movia de
leve, como ele, recordando as muitas vezes que haviam tocado essa peça no
quintal da casa na ilha.
Ao concluir, deixaram as últimas notas ressoar, a seguir baixaram as mãos
ao mesmo tempo, como se coreografados. A multidão vibrou e Frankie sentiu
o coração transbordar. Até a orquestra saudou-os de pé. Era a última banda
em que Frankie entraria.
Mas aquela não foi sua última canção.
Kai estendeu a mão na direção dele e a plateia reagiu ruidosamente,
querendo mais. Ela beijou-o no rosto antes de se afastar e sussurrou:
– Agora só você. Algo para a mamãe.
Frankie observou-a deixar o palco. Sentou-se de novo.
Sua respiração acalmou-se. Ele sabia que só restava uma canção a tocar.
“Lágrima.”
A morte não tem ouvidos. Alguém escreveu isso quando Tárrega
morreu. Se tivesse, jamais privaria o mundo da música dele.
Quando Frankie tocou naquela noite, o mundo ouviu outra vez algo que
apenas a morte poderia ignorar. Frankie conectou-se a mim da maneira mais
rara, de dentro para fora. Assim, não tocou as notas da canção, tocou as
lágrimas dela, as lágrimas que caíram dos olhos de Tárrega ao compô-la, as
lágrimas que escorreram pelas faces de Carmencita ao cantarolar a melodia,
as lágrimas que transbordaram por trás dos óculos escuros de El Maestro
quando ele percebeu que havia transmitido minha beleza para o filho de um
fabricante de sardinhas.
O mundo nunca testemunhou uma conexão tão forte entre música e
memória. Quando Frankie chegou à frase final de “Lágrima”, deu uma olhada
para as coxias e viu a filha cobrindo um sorriso. Então vislumbrou a anciã
Josefa atrás dela, cabisbaixa.
Ele manteve os olhos nela até Josefa erguer o olhar, com a tristeza de uma
vida reprovada. Tudo que Frankie havia conhecido fora aquela mulher, de
algum modo, quem dera a ele: seu pai, sua esposa, sua filha, seu cachorro, sua
segurança, sua saúde, sua música. Sim, uma vez ela lhe dera as costas. Mas
ele tinha feito o mesmo com ela, negando até mesmo a decência do perdão.
De repente, ele parou de tocar. Enquanto a plateia o observava em curioso
silêncio, ele se levantou e ergueu o violão lentamente na direção da anciã,
como se oferecendo um sacrifício. Em seu íntimo, Frankie escutou a voz que
esperara ouvir na igreja naquela tarde.
E soube o que fazer.
– Perdoo você, bondosa mulher – disse ele. – E lhe agradeço.
– Me agradece? – murmurou ela.
– Por minha vida.
Ele olhou para a filha e sorriu.
– Toda a minha incrível vida.
Os lábios de Josefa se entreabriram de leve. Naquele momento, ela ficou
estranhamente parecida com o pai, o cigano que certa vez havia dado cordas
mágicas de presente. As luzes do auditório se apagaram de súbito, como uma
vela soprada. Frankie ouviu a plateia arfar. Olhou para baixo e viu uma linha
fina e brilhante.
A corda do alto tinha ficado azul.
A plateia, pensando que aquilo fazia parte do fim da apresentação,
começou a aplaudir com vigor. Na escuridão, Frankie sentiu uma bem-
aventurada capitulação, o esgotamento tanto de seu poder quanto de suas
preocupações, como se alguém o tivesse desplugado do peso deste mundo. As
cordas, ele entendeu naquele momento, de fato tinham vidas dentro de si, mas
não era o modo como ele tocava que as deixava azuis, era o seu coração.
Com a ovação cada vez mais intensa, Frankie ergueu a cabeça. Então viu,
nas vigas lá no alto, os espíritos de El Maestro, Baffa e Aurora acenando para
ele. Foi na direção deles, e seu peito foi tomado pela dor. O violão caiu no
chão com um ruído estridente.
Aqui preciso esclarecer uma coisa. O corpo de Frankie não se alçou ao ar.
Aquilo era sua alma. Acontece que o desejo do mundo de ouvir sua música
esplêndida – de retê-la por mais alguns segundos – era tão grande que o
espírito de Frankie ficou momentaneamente preso entre o céu e a terra.
Só pode haver um vitorioso nesse embate.
Segundos depois, ele se foi e apenas o corpo ficou para trás, tombando no
palco como se as cordas de uma marionete tivessem sido cortadas.
Olhe a hora. Olhe a igreja. Olhe os que carregam o caixão, todos alunos
de Frankie ao longo dos anos, homens e mulheres mais jovens, rostos tristes
em trajes escuros. No início, eu disse que polvilharia o talento de Frankie
sobre outras almas. Mas ele fez isso. O talento de Frankie está dentro
daqueles jovens que carregam seu caixão, nos músicos mais velhos que
viajaram até aqui para se despedir, nos milhões de pessoas que ouviram suas
canções ou tentaram imitar sua maneira de tocar, e no coração da filha que o
adorava, dos filhos que ela terá e dos filhos dos filhos dela, que ouvirão a
melhor performance de Frankie – e os risos com sua família – gravada em
fitas há muito tempo.
Neste momento, deixo vocês e retorno à minha eterna atividade: aguardar
recém-nascidos e suas mãozinhas abertas.
Você sabia que, certa vez, anos depois de sua morte, o corpo de Francisco
Tárrega foi exumado para ser transportado para mais perto de casa? O famoso
violonista Andrés Segovia foi lá presenciar, postando-se aos pés do caixão
aberto. Segovia chorou ao ver os restos mortais de Tárrega, numa homenagem
ao talento que tanto o influenciara.
Fico lisonjeada. Mas, ao partir, tenho que confessar. Não está nos ossos.
Nem nos lábios ou pulmões, nem mesmo nas mãos. Sou a Música. E a Música
está conectada à alma humana, falando uma linguagem que não necessita de
palavras.
Todo mundo entra numa banda nesta vida. E a forma como você toca
sempre afeta alguém.
Às vezes, afeta o mundo.
Chega ao fim a sinfonia de Frankie.
E afinal repousamos.
Agradecimentos
MITCH ALBOM é autor de seis livros, entre eles A última grande lição,
As cinco pessoas que você encontra no céu e Por mais um dia. Suas obras já
foram traduzidas para 42 idiomas e venderam mais de 35 milhões de
exemplares.
Um dos jornalistas esportivos mais premiados dos Estados Unidos,
trabalha como colunista de jornal e apresentador de rádio e de televisão. É
também roteirista e músico. Fundou oito instituições de caridade em Detroit e
atua em um orfanato em Port-au-Prince, no Haiti. Atualmente mora com a
esposa, Janine, em Michigan.
Facebook.com/mitchalbom
@mitchalbom
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Sumário
Créditos
Parte 1
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
Parte 2
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
Parte 3
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
Parte 4
44
45
46
47
48
49
50
51
Parte 5
52
53
Parte 6
54
55
56
57
58
59
60
61
62
63
Agradecimentos
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