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© le dilettante

Romain Puértolas, de origem franco-espanhola, nasceu em Montpellier, em 1975. Levado pelas voltas do
destino a Espanha e Inglaterra, foi DJ, professor de línguas, tradutor-intérprete, comissário de bordo e mágico.
De regresso a França, trabalhou durante quatro anos como inspetor da polícia numa brigada especializada no
desmantelamento de redes de imigração ilegal. Viciado confesso na escrita compulsiva, Puértolas fez a sua
estreia no universo literário com A incrível viagem do faquir que ficou fechado num armário IKEA, publicado
pela Porto Editora em 2014. Ainda antes do seu lançamento em França, o romance já havia conquistado mais de
quarenta editoras estrangeiras, convertendo-se num fenómeno editorial mundial conhecido como
«faquirmania». Atualmente, reside em Málaga e dedica-se exclusivamente à escrita.
A menina que engoliu uma nuvem do tamanho da torre Eiffel
Romain Puértolas

Publicado em Portugal por:


Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Lisboa
E-mail: dellisboa@portoeditora.pt

Título original:
La petite fille qui avait avalé un nuage grand comme la tour Eiffel
© 2015, le dilettante

Tradução: Inês Amado

Grafismo e ilustração: © Ed Carosia


Design da capa: © Penguin Random House Grupo Editorial

1.ª edição em papel: setembro de 2015


Este livro respeita as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

ISBN 978-972-0-68621-3
Para Patricia,
o meu único ponto fixo no universo.
Esta história é totalmente verdadeira, visto que a inventei de uma ponta à
outra.
BORIS VIAN

Um coração é de certo modo um grande envelope.


PROVIDENCE DUPOIS
PRIMEIRA PARTE

Uma carteira e a sua conceção


bem peculiar da maionese e da vida
A primeira palavra que o velho cabeleireiro proferiu mal entrei no salão foi uma injunção
breve e categórica, digna de um oficial nazi. Ou de um velho cabeleireiro.
– Sente-se!
Dócil, executei a ordem, antes que ele me executasse a mim com o seu par de tesouras.
Depois, começou a dançar à minha volta sem sequer me perguntar qual o corte de cabelo
com que desejava sair do seu estabelecimento ou aquele com que, precisamente, não queria sair
dali. Ter-se-ia alguma vez visto a braços com a afro recalcitrante de um mestiço? Não iria ficar
dececionado.
– Quer que lhe conte uma história incrível? – perguntei-lhe para quebrar o gelo e instaurar
um clima de convivialidade entre nós.
– Conte, desde que pare de mexer a cabeça. Ainda lhe corto uma orelha.
Considerei aquele «Conte, desde que» um enorme passo, um convite ao diálogo, à paz e à
harmonia entre irmãos, tentando, ao mesmo tempo, esquecer o mais rapidamente possível, em
nome desses mesmos pactos de fraternidade, a ameaça de amputação do meu órgão auditivo.
– Bem, então aqui vai. O meu carteiro, que é uma mulher, uma mulher encantadora, aliás,
apresentou-se na torre de controlo onde trabalho e dirigiu-se-me: «Senhor Machin1 (é o meu
nome), preciso que me dê permissão para descolar. Bem sei que o meu pedido lhe poderá
parecer insólito, mas é o que é. Não pense muito no assunto. Eu cá desisti mal toda esta história
começou. Peço-lhe apenas que me autorize a descolar do seu aeroporto. Suplico-lhe.» O pedido
em si não se me afigurava insólito. Por vezes, particulares, levados à ruína pelas escolas de
aviação das redondezas, vinham pedir-me para continuarem a fazer horas de voo por conta
própria. O que me surpreendia, em contrapartida, era o facto de ela nunca ter mencionado
aquela sua paixão pela aeronáutica. Bem, também nunca tínhamos tido ocasião para conversar,
nem sequer para nos cruzar (o meu horário é rotativo e alterno horas diurnas e noturnas), mas
ainda assim… Regra geral, limitava-se a levar-me o correio a casa na sua velha 4L amarela.
Nunca me fora visitar ao trabalho. O que era pena, porque a miúda era uma beldade. «Noutra
altura qualquer, minha senhora, enviar-lhe-ia para o escritório os planos de voo para este tipo
de pedido. O problema é que hoje o tráfego aéreo está caótico com esta estúpida nuvem de
cinzas e não poderemos permitir voos privados. Lamento.» Vendo a sua expressão perturbada,
o que me perturbou o coração, fingi interessar-me pelo seu caso. «Pilota o quê? Um Cessna?
Um Piper?» Ela hesitou bastante. Via-se bem que se sentia incomodada, que a minha pergunta
a tinha embaraçado. «É precisamente nesse aspeto que o meu pedido é insólito. Não piloto um
avião. Voo sozinha.» «Sim, sim, já tinha percebido que voa sem instrutor.» «Não, não, sozinha.
Quero dizer, sem aparelho, assim.» Ergueu os braços acima da cabeça e girou sobre si própria
como uma bailarina. Por falar nisso, já lhe tinha dito que ela estava de fato de banho?
– Omitiu esse pequeno pormenor – retorquiu o cabeleireiro, concentrado nesse momento
no combate que travava com a minha afro. – Sempre imaginei que um controlador aéreo
tivesse uma rica vida, mas isso é o cúmulo!
O velho estava cheio de razão. Um controlador aéreo em Orly não tinha muito de que se
queixar. Embora isso não nos impedisse de o fazermos, de vez em quando, lançando uma
pequena greve-surpresa. Só para que não se esquecessem de nós na época das festas.
– Bom. Portanto, trazia um biquíni às flores – continuei. – Uma belíssima mulher. «Não
quero perturbar o tráfego, senhor controlador. Gostaria apenas que me encarasse como mais
um avião. Não voaria a grande altitude, pelo que a nuvem de cinzas não me afetaria. Não há
problema se tiver de pagar as taxas do aeroporto. Tome.» Estendeu-me uma nota de cinquenta
euros, que tirou sei lá de onde. De todo o modo, não foi da sua grande sacola de pele, porque
não a trazia consigo. Custava a crer. Não percebia nada daquela história, mas ela arvorava uma
expressão muitíssimo determinada. Estaria mesmo a dizer-me que conseguia voar? Como o
Super-Homem ou a Mary Poppins? Durante alguns segundos, pensei que o meu carteiro,
enfim, a minha carteira, tinha ficado com uns parafusos a menos.
– Resumindo, o seu carteiro, que é uma carteira, decidiu aparecer-lhe um belo dia na torre
de controlo onde trabalha, em fato de banho, quando a praia mais próxima se encontra a
centenas de quilómetros, e pedir-lhe autorização para descolar do seu aeroporto a bater os
braços como uma galinha.
– Parece-me muito bem resumido.
– E pensar que o meu carteiro só me traz contas para pagar… – suspirou o homem,
limpando o pente à bata antes de o voltar a mergulhar na imensidão de canudos.
Na outra mão, a tesoura abria e fechava sem parar, lembrando as patas de um cão no soalho
ou as de um hamster na roda.
Tudo na sua atitude indicava que não acreditava numa única palavra do que lhe acabara de
narrar. E não podia censurá-lo.
– Então o que é que fez? – perguntou-me, decerto para ver até onde conseguiria a minha
imaginação delirante ir.
– Que teria feito no meu lugar?
– Não faço ideia, não trabalho na aviação. Além disso, não estou habituado a receber aqui
no salão mulheres seminuas.
– Fiquei desconcertado – retomei, ignorando as graçolas do velho rezingão.
– Pensei que nada poderia desconcertar um controlador aéreo – contrapôs ele, irónico. –
Não é para isso que vos pagam?
– Essa ideia é um pouco exagerada. Não somos máquinas! Enfim, ela olhou-me com
aqueles olhos de boneca de porcelana e disse-me: «Chamo-me Providence2, Providence
Dupois.» De seguida, esperou que aquelas palavras surtissem o efeito desejado em mim. Dir-se-
ia que queimava o último cartucho. Julgo que me revelou o seu nome para que deixasse de a
considerar uma mera carteira. Fiquei tão desnorteado que, por alguns segundos, cheguei
inclusive a pensar que se poderia tratar… enfim, sabe, de alguma rapariga com quem me
tivesse envolvido e que não estivesse a reconhecer. Tive algum sucesso na juventude… Mas não
havia dúvidas, mesmo sem o boné e a farda azul-marinho, aquela beldade era mesmo a minha
carteira.
Havia já alguns segundos que o cabeleireiro retirara o pente e a tesoura dos meus cabelos
crespos e os mantinha suspensos no ar.
– Disse Providence Dupois? A Providence Dupois?! – exclamou, pousando os instrumentos
na bancada de vidro à minha frente, como que tomado de uma súbita e profunda fadiga. Era a
primeira vez que manifestava o menor interesse desde que havíamos entabulado a conversa,
enfim, desde que eu entabulara aquele monólogo. – Refere-se à mulher de que se fala em todos
os jornais? A que voou?
– Essa mesma – respondi, espantado com o facto de ele a conhecer. – Mas, naturalmente,
naquele momento era apenas a minha carteira. A bomba sexual da 4L amarela.
O comerciante deixou-se cair no sofá vazio que se encontrava a meu lado. Parecia ter
acabado de levar com uma estação espacial em cima.
– Esse dia evoca-me recordações muito duras – explicou ele, o olhar perdido algures entre
os mosaicos brancos e pretos do salão de cabeleireiro. – Perdi o meu irmão num acidente de
avião. Precisamente no dia em que a famosa Providence Dupois deu que falar graças a esse
espantoso acontecimento. O Paul, o meu irmão mais velho, ia passar uns dias num lugar ao sol.
Umas férias curtas, que ele estava longe de imaginar… que se fossem tornar tão longas. Férias
intermináveis… Cento e sessenta e dois passageiros. Nem um sobrevivente. Sempre pensei que
Deus andasse de avião, como toda a gente. Nesse dia, deve ter-se atrasado para o check-in.
O homem voltou a erguer a cabeça. Uma centelha de esperança brilhou-lhe nos olhos.
– Bom, mas falemos de assuntos mais alegres. Diga-me, ela voava mesmo? Quero dizer,
viu-a voar, a essa Providence Dupois? Li-o nos jornais, mas escrevem com cada coisa mais
disparatada… Gostaria de saber a verdade, nada mais do que a verdade.
– Os media não estavam lá. Assenhorearam-se do acontecimento mais tarde e empolaram-
no, alimentando os rumores mais estapafúrdios. Cheguei mesmo a ler algures que a Providence
tinha voado no seu Renault amarelo até Marrocos e esbarrado contra uma nuvem! O que,
enfim, não anda muito longe da verdade, mas não é correto. Vou contar-lhe o que de facto se
passou em Orly. E, acredite em mim, isto é apenas a ponta visível do icebergue. Ainda mais
impressionante foi saber como a minha carteira o conseguiu e o que aconteceu depois, o que
me levou a pôr em causa uma série de coisas no meu espírito cartesiano. Gostaria de saber?
O cabeleireiro fez um gesto largo para o salão vazio.
– Como vê, estamos à pinha – retorquiu com ironia –, mas seja. Julgo que me posso
permitir uma pequena pausa. Sempre é uma boa alternativa às sempiternas descrições de
casamentos ou batizados com que as clientes me brindam de cada vez que vêm arrepelar os
cabelos! – acrescentou o velho homem, a expressão falsamente serena, quando estava desejoso
de tudo saber.
E eu de tudo contar…

1 Machin significa sujeito, fulano, coiso, um nome que não nos ocorre. (N. da T.)

2 Providence pode ser traduzido por Providência. (N. da T.)


No dia em que aprendeu a andar, Providence soube logo que não se ficaria por aí. Que as
suas ambições eram muitíssimo mais elevadas e que aquela atuação, porque se tratava disso
mesmo, mais não constituía do que o início de uma longa série. Correr, saltar, nadar. O corpo
humano, essa fantástica máquina, encerrava espantosas capacidades físicas que lhe permitiriam
avançar na vida, tanto no sentido literal quanto no figurado.
Do alto dos seus sete meses e dos seus sessenta e oito centímetros e meio, era já devorada
por um desejo exacerbado de descobrir o mundo com os seus próprios olhos (bom, mais com
os seus próprios pés). Os pais, ambos médicos num dos hospitais pediátricos mais prestigiados
de França, nem queriam acreditar. Na sua longa prática de medicina, nunca se tinham
confrontado com semelhante caso. Eis que foi a própria filha quem os pôs perante tal realidade
e veio derrubar, com a energia com que um bebé de poucos meses destrói uma torre de cubos,
todas as suas belas teorias acerca da aquisição da marcha. Como poderia a sua única filha dar
os primeiros passos numa idade tão precoce? Como poderiam os ossos e os músculos das
pernas suportar já aquele pequeno corpo de Buda sorridente cheio de refegos? Teria aquilo
qualquer relação com os seis dedos que tinha no pé direito? Tantas perguntas para as quais
Nadia e Jean-Claude não encontraram resposta, nem naquele momento, nem mais tarde.
Tratava-se de algo que não sabiam explicar e que acabaram por aceitar. Na altura, a mãe
auscultara-a. O pai chegara inclusive a radiografar-lhe o cérebro. Mas nada havia de errado.
Tudo parecia normal. Era assim mesmo, só isso. A sua pequena Providence começara a andar
aos sete meses. Ponto final. Providence era uma menina apressada.
Evidentemente, tudo o que possam ter sentido nessa época não foi nada quando
comparado com o sentimento que os submergiria qual maremoto naquele dia de verão, trinta e
cinco anos mais tarde, em que a filha meteu na cabeça que iria aprender a voar.
Situação: Aeroporto de Orly (França)
Quis-Ó-metro3: 2105 quilómetros

Compreendeu, portanto, que, aquando do início desta incrível aventura, Providence tinha
trinta e cinco anos e sete meses. Tratava-se de uma mulher perfeitamente vulgar – embora
dotada de seis dedos no pé direito e de um nome próprio pouco comum para quem não tivesse
nascido nos Estados Unidos –, que vivia num pequeno povoado a sul de Paris e tinha um
emprego o mais vulgar possível.
Ela era carteiro.
Embora o feminino do vocábulo, «carteira», estivesse já dicionarizado havia vários anos e,
portanto, fosse aceite pela Academia, Providence – a quem, tendo em conta o seu ofício, o
nome assentava na perfeição – preferia utilizar o masculino, «carteiro». Estava habituada a que
lho assinalassem. Apesar de encarar semelhante feminização de forma positiva e de perceber
que certas mulheres vissem naquela vogalzinha, «a», o corolário de toda uma existência
dedicada à causa feminista, a ela isso não lhe dizia muito. Ponto. Porque os carteiros existiam
havia quinhentos anos e o feminino nessa aceção da palavra só fora aceite poucas décadas
antes. Mesmo hoje em dia continuava a soar estranho (e muitos dos que se encontravam do
outro lado da porta quando tocava à campainha pensavam logo numa mala ou numa sala de
aulas!). Apresentando-se como o carteiro, poupava-se a longas explicações e economizava nas
palavras e no tempo, o que não era de desprezar para uma mulher apressada como ela, que
aprendera a andar aos sete meses.
Eis o motivo por que naquela manhã, no balcão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, no
aeroporto de Orly, enquanto preenchia o questionário para a permissão de estada em
Marraquexe, escreveu com toda a naturalidade carteiro no espaço reservado à profissão.
A resposta não pareceu agradar à fleumática funcionária que revia o documento. Aliás, via-
se logo naquele rosto carregado de maquilhagem barata que era o género de mulher que
aproveitava toda e qualquer ocasião para exaltar a sua condição feminina, acima de tudo
perante mulheres que lhe parecessem esquecidas da sua. Em compensação, a polícia, com um
bigode digno de um agente, esquecera-se de rapar o buço naquela manhã, pelo que a sua
condição feminina tinha sofrido um rude golpe.
– Escreveu carteiro.
– Sim, é a minha profissão.
– Agora já se pode dizer carteira.
– Que bom.
– Digo-lhe isto porque é um pouco suspeito escrever-se carteiro quando se é uma mulher.
Ao lermos o documento, esperamos ver um homem. Ora, mal olhamos para si, percebemos
que se trata de uma mulher. Isso complica as coisas. E nós, na polícia, não gostamos de
complicações, se é que me está a compreender. É por si que digo isto. Eu cá deixo-a embarcar,
mas não me apetecia nada que ficasse bloqueada no controlo de entrada em Marrocos porque
escreveu carteiro em vez de carteira. Seria uma parvoíce. Sabe, aquela gente é especial. Lá, a
igualdade de sexos não é muito usada. São mais dados aos trabalhos manuais, como gravar
cinzeiros e fazer pufes de pele.
Pois, porque está claro que ter uma enorme bigodaça preta quando se é uma mulher não
complica nada as coisas, pensou Providence. Incrível! A peluda a dar-lhe lições de género. Será
que o bigode voltara a ser obrigatório na polícia, como nos anos trinta? Ou teria a agente
seguido a moda lançada pela grande vencedora do Festival Eurovisão da Canção de 2014?
– Sim, isso seria uma parvoíce – limitou-se a dizer, pegando no impresso com um gesto
seco e corrigindo a caneta o pomos da discórdia.
Era melhor não levantar ondas. Uma vez retificado o erro, voltou a entregar o documento à
versão da Conchita Wurst em uniforme.
– Bom, assim está melhor. Passará pelo controlo como uma carta por um marco – brincou
a polícia. – Mas, de qualquer modo, não vejo porque estamos para aqui nesta conversa fiada. A
verdade é que nem sei se conseguirá chegar até lá.
– Como assim?
– Estão a cancelar os voos, um por um, devido à nuvem de cinzas.
– À nuvem de cinzas?
– Não está a par? Um vulcão entrou em erupção na Islândia. Ouve-se pela primeira vez
falar na Islândia… e é logo para nos chatearem com um vulcão!
Dizendo isto, a mulher carimbou o formulário com um golpe violento que lhe fez tremer o
bigode e depois entregou-o à passageira (o formulário, não o bigode).
– Sabe quando foi a última vez que entrou em atividade? – retomou a polícia, enervada.
– Não sei. Há cinquenta anos? – arriscou Providence.
– Mais.
– Sessenta?
– Mais.
– Cem?! – aventou a carteira, com a sensação de ter de adivinhar o montante da vitrina d’O
Preço Certo.
A funcionária abafou um risinho nervoso, tentando dar a entender à interlocutora que
estava bem distante da realidade.
– Foi em 9500 antes de Cristo! – rematou, para encurtar o sofrimento. – Anunciaram no
telejornal. Tem noção? E eis que desperta assim, de um momento para o outro. Ah, pois!
Realmente… é só para nos chatear, digo-lhe! O nome também… Parece que o inventaram para
nos enervar. O Theistareykjarbunga. Acha que se andam a divertir à nossa custa, os islandeses?
– É na Islândia, esse Tatakabunga?
– Sim. Também não lhe parece assim lá muito islandês?
– Reconheço que me parece mais africano.
– Pensei nisso mesmo, mas, africano ou não, espero que tenha sorte. E que o Tal… bunga
não a impeça de viajar.
– Tenho de ir para Marraquexe esta manhã sem falta.
A carteira fez menção de acrescentar que se tratava de uma questão de vida ou de morte,
mas conteve-se. A polícia teria, decerto, achado a coisa suspeita.

3Invenção registada pelo professor Alain Jouffre (CNRS), que permite calcular a distância entre dois corações que se querem.
Neste caso, o de Providence e o de Zahera. Margem de erro de 3,56 metros. (N. do A.)
Há um livro de Paulo Coelho que se intitula Na Margem do Rio Piedra Eu Sentei e Chorei.
Na margem do terminal sul do aeroporto de Orly, Providence sentou-se em cima da sua
Samsonite cor-de-rosa e chorou.
Chorou ainda mais quando se apercebeu de que, em jeito de bolsa, trazia pendurado no
braço um saco de plástico do Carrefour repleto de lixo. Parecia gritar que não se sai indemne de
um despertar às quatro e quarenta e cinco da manhã. A carteira saltou tão depressa como um
diabrete de mola numa caixa, uma careta de nojo no rosto, e livrou-se do saco, como se este
fosse uma bomba, no primeiro caixote de lixo transparente, modelo antiterrorismo, com que se
cruzou. Como conseguira chegar até ali com aquilo sem sequer se dar conta? O odor invulgar
fora totalmente inibido pela fadiga. O cansaço leva-nos a fazer coisas curiosas, pensou ela,
desvairada ante a ideia de ter deixado a bolsa em casa. Vê-la pendendo do outro braço
tranquilizou-a. Uma pessoa sai porta fora com os sacos do lixo pensando em levá-los para o
caixote e acaba por trazê-los de viagem consigo.
Providence retomou a sua pose de Pensador de Rodin em cima da Samsonite cor-de-rosa.
A polícia bigoduda tinha razão. Metade dos voos havia sido cancelada devido à maldita
nuvem de cinzas que um vulcão islandês em plena erupção cuspira na véspera. O cúmulo nesta
era de luta contra o tabagismo! Ora, a situação parecia longe de estar resolvida. Dali a algumas
horas, o aeroporto poderia encerrar por completo. E, com isso, a possibilidade de Providence se
esfumar, sem trocadilhos.
Como poderia uma nuvem ser assim tão perigosa?
Como poderia uma enorme bola de algodão, um gigantesco carneirinho de pó, interferir
com máquinas tão sofisticadas? Constava que era tão perigosa como a de Chernobyl,
radioativa, que percorrera os céus europeus uns anos antes, transformando à sua passagem
algumas crianças em génios do piano (a três mãos) ou em virtuosas das castanholas (a quatro
testículos) e parando, como que por milagre, perto da fronteira francesa. Por falta de visto,
decerto.
Os apresentadores dos telejornais emitidos nos ecrãs do aeroporto afirmavam que, caso
tivessem a infelicidade de atravessar esta massa de cinzas, os aviões iriam muito provavelmente
despenhar-se, isto é, desaparecer dos radares tão depressa como um par de cuecas numa festa
de Larry Flynt. A obsessão pelo Triângulo das Bermudas voltava a surgir. Grandes mastodontes
desfeitos por minúsculas partículas de fumo. Que coisa insana! David contra Golias. Pelos
vistos, as cinzas sujavam as engrenagens e encravavam os motores. Na pior das hipóteses, iria
tudo pelos ares. Para atribuir à tragédia escalas mais humanas e compreensíveis para o comum
dos mortais, os jornalistas comparavam os efeitos com catástrofes domésticas bem conhecidas
dos telespetadores: o filtro defeituoso de uma Nespresso novinha em folha ou o garfo de prata
da sogra esquecido no micro-ondas. Bum! Adeus, café; adeus, micro-ondas; adeus, avião!
No entanto, uns poucos «peritos» de alguns dos maiores gabinetes de consultoria
afirmavam que as aeronaves nada tinham a temer de uma tal nuvem. Que a ameaça fora, como
sempre, exagerada. Porém, as companhias aéreas não estavam dispostas a arriscar os seus
aparelhos e a segurança dos passageiros em nome de um punhado de iluminados. Em causa
estava a sua sobrevivência financeira. Não teria valido de nada andarem a economizar durante
anos em amendoins e azeitonas nos tabuleiros de refeição para de seguida decidirem
esborrachar maquinetas de cento e quarenta e nove milhões de euros como se de vulgares
aviões de papel lançados da janela de uma escola se tratasse. Não, sejamos razoáveis.
Portanto, como ninguém queria tentar o diabo, ninguém se mexia. Nesse dia, a palavra de
ordem do INAC4 assemelhava-se a uma imposição de um assaltante de bancos: «Toda a gente
no chão!» Os atrasos sucediam-se. O pessoal em terra não ousava anunciar os cancelamentos
dos voos. Os painéis das partidas estavam caóticos. Pelo menos, ninguém tentaria estrangular
um computador. Portanto, os voos iam desaparecendo um a um a cada voltar de minuto, como
que num mau passe de mágica de David Copperfield. O rico, não o pobre.
Não havia nada mais a fazer senão esperar.
Ora, Providence não tinha tempo a perder.
Cada segundo que passava era mais um de vida que Zahera perdia. Porque a doença
avançava a passos de gigante, e o hospital de lá não tinha os meios técnicos necessários para a
tratar. A menina, portanto, devia a saúde que ainda lhe restava a uma vontade férrea e, agora, à
esperança de que a sua mamã a viesse buscar quanto antes.
Providence remexeu na ficha azul que lhe tinham acabado de dar. A senha mágica, o
«Abre-te, Sésamo». O culminar de burocracias intermináveis ao longo de vários meses com
vista a trazer aquela criança para França. E eis que, após o rolo compressor administrativo,
chegara a vez de os elementos se voltarem contra ela. Porque teria o mundo inteiro tanto
prazer em prender-lhe as rodas da sua velha 4L de carteira? Cada segundo que passava era mais
um que arrancavam à sua filha. Parecia-lhe demasiado injusto. A ponto de só lhe dar vontade
de chorar. A ponto de querer partir coisas.
Para se acalmar, a jovem mulher mergulhou a mão na mala e retirou um pequeno leitor
MP3. Trocara os maços de tabaco pelo pequeno aparelho no dia em que o governo decidira
afixar fotos de pulmões e de fígados necrosados nas embalagens. A música parecia-lhe bem
melhor para a saúde e ainda ninguém se lembrara de colar imagens de gente surda nos
aparelhos! A tremer, pôs os auscultadores nos ouvidos e carregou no Play, lançando a cabeça
para trás como se se encostasse à cuba no salão de beleza enquanto aguardava por uma
maravilhosa massagem capilar.
No momento em que a canção dos U2 arrancava no trecho exato em que a deixara ao
chegar ao aeroporto («in a little whiiile, in a little whiiile, I’ll be theeeere»), Providence viu o
rosto e o sorriso de Zahera refletidos na grande baía envidraçada do terminal. Sim, tal como
Bono cantava, num instante, ela estaria lá. Lá, junto dela. Havia que relativizar; era um milagre
que a pequena marroquina tivesse sobrevivido até àquele dia. Sete anos, quando não lhe
tinham prognosticado mais de três. Decerto aguentaria ainda um little while. «Man dreams one
day to fly, a man takes a rocket ship into the skies.» Sim, se ao menos ela tivesse um foguetão…
Vou buscar-te, meu amor, murmurou Providence, ignorando os olhares zombeteiros dos
turistas que passavam por ela. Não importa o preço, não importa como, nada me impedirá de
te ir buscar hoje. Fica tranquila, meu anjo. A Lua não surgirá sem que eu esteja junto de ti.
Prometo-te. Nem que tenha de aprender a voar como um pássaro para te ir buscar.
Providence nem sonhava quão perto da verdade estava ao pronunciar tais palavras.

4 INAC, Instituto Nacional de Aviação Civil. (N. da T.)


Nesse mesmo momento, a milhares de quilómetros de Orly, Zahera, o queixo fora do lençol
lembrando a barba do capitão Haddock em Carvão no Porão, contemplava a constelação
fosforescente colada no teto branco despido de nuvens. Reproduzira naquela superfície acima
da sua cabeça o alinhamento da Ursa Maior com a ajuda de minúsculas réplicas de estrelas de
plástico, que brilhavam como milhares de crachás de xerife recém-polidos mal se apagava a luz.
As verdadeiras, essas, não brilhavam. Zahera sabia alguma coisa acerca do assunto porque
Rachid lhe tinha oferecido um pedaço de estrela que encontrara por mero acaso no deserto.
Parece que, não raro, acontecia caírem. A pedra acinzentada deixava de emitir luz mal a
mergulhavam no escuro. Segundo o fisioterapeuta, tratava-se de uma questão de radiação. O
pedaço de estrela, uma vez amputado e afastado das suas congéneres moleculares, deixava de
reverberar. Certo dia em que observava atentamente o calhau, não maior do que a sua mão, a
menina apercebeu-se de uma misteriosa inscrição numa das faces irregulares e cortantes: Made
in China.
– O que quer dizer? – apressou-se a perguntar a Rachid.
– Ah, isso? Bom, é inglês – respondeu o fisioterapeuta, incomodado. – Quer dizer que foi
fabricada na China.
Comprara a contrafação num pequeno bazar na cidade. A rapariga, que nunca saíra do
hospital, conhecendo, em virtude disso, muito pouco do mundo, tinha acreditado nele, porque
tendia a confiar em todos os adultos.
– Ah, as estrelas do céu são fabricadas na China… – assinalara Zahera, ante o olhar
pasmado de Rachid, que acabara de perceber que a sua confissão do crime não surtira o efeito
esperado.
Sensibilizado com tamanha manifestação de inocência, não encontrara a coragem para a
contradizer. Bem pelo contrário. Reforçara-a um pouco.
– A bandeira deles é, aliás, composta de cinco estrelas amarelas sobre um fundo vermelho.
Logo por aí se vê a importância dessa indústria no país!
Convencida de que os chineses construíam toneladas de estrelas e as lançavam ao espaço
para iluminar os homens no deserto marroquino, a menina agradecia-lhes todas as noites,
antes de se deitar, em preces que inventava expressamente para tal propósito. Agradecia-lhes o
facto de serem tão generosos para com o seu povo.
Um dia, ela sairia daquele hospital remeloso dos subúrbios de Marraquexe e empreenderia
uma fantástica viagem. Entraria a bordo do Expresso do Oriente, que, malgrado o seu nome,
não passava pela China, e visitaria aquele país onde homens e mulheres de olhos rasgados –
cuja organização lembrava centenas de milhares de minuciosas formigas – lançavam para o
espaço, servindo-se para o efeito de poderosos canhões, calhaus luminosos do tamanho de
laranjas, que cortavam com as suas arestas afiadas o tecido azul-marinho do céu noturno.
Àquela hora da manhã, as estrelas já não cintilavam, mas tinham, pelo menos, o mérito de
lançar um pouco de fantasia naquela triste ala de hospital. A pequena marroquina passara
quase toda a sua existência entre aquelas paredes cinzentas. Portanto, desde que Providence lhe
oferecera as estrelas, também Made in China, mal caía a noite, erguia os olhos para o teto e aí
via o céu. Via sobretudo centenas de olhos brilhantes e vivos como os da sua nova mamã, a
única que tinha, uma vez que a outra morrera a dar-lhe a vida. Os pequenos pontos luminosos
cintilavam quais piscadelas de olho cúmplices.
A Ursa Maior.
Adorava o nome porque juntava as suas duas grandes paixões: animais e o espaço. Mais
tarde, seria veterinária-astronauta. Tinha a certeza disso. Num ambiente de gravidade zero,
seria fácil curar doenças graves nestes e noutros animais selvagens. Mas isso, bom, era uma
convicção só dela. O seu segredo. Parecia-lhe evidente, embora ninguém ainda se tivesse
lembrado disso. O problema é que esse «mais tarde» talvez nunca acontecesse. Ora, o grave é
que, se a morte chegasse antes do previsto, ninguém se lembraria dela como a primeira
veterinária-astronauta do mundo, mas sim como a menina doente que morrera certo dia de
verão sob um teto de estrelas de plástico num hospital remeloso de Marraquexe.
Portanto, ela tentava resistir para enganar os médicos. Para enganar a doença. Por muito
que os seus braços permanecessem frágeis, lembrando jovens rebentos de uma árvore, o seu
espírito era composto por uma liga de metais indestrutíveis. Porque o espírito é bem mais forte
do que o corpo. Sempre. A boa disposição também. Um sorriso e uma gargalhada destroem
tudo à sua passagem como um enorme buldózer, acabam com a doença, pulverizam a tristeza.
Quando perdemos os braços e as pernas, quais bonecos estragados; quando a vida nos arranca,
com um violento golpe de tesoura, o rosto e o coração; quando os homens perdem a virilidade
e as mulheres os cabelos e os seios; quando perdemos tudo o que faz de nós humanos; quando
perdemos os olhos, as orelhas, os pulmões; quando voltamos a ser recém-nascidos; quando
ficamos incontinentes; quando nos voltam a meter fraldas e desconhecidos limpam, de manhã
cedo, a merda que deixámos nos lençóis de hospital durante a noite; quando já não nos
conseguimos lavar sozinhos; quando a água escaldante nos tira a pouca pele que nos resta;
quando a velhice nos verga os ossos, as lágrimas nos queimam os olhos e ainda não perdemos a
razão, então, o melhor a fazer é rir, sorrir e combater. O riso é o pior que pode acontecer à
doença. Há que soltar-lhe uma gargalhada na cara. Nunca perdermos a esperança. Nunca nos
darmos por vencidos. Porque a aventura não terminou. Nunca devemos levantar-nos do lugar
e sair da sala de cinema antes de o filme ter terminado, porque o desenlace reserva, não raras
vezes, grandes surpresas. Surpresas fantásticas. O happy end. Ocasionalmente, mais cedo ou
mais tarde, a vida atira-nos para uma cama. Contudo, permaneceremos vivos enquanto um
pequeno fio nos percorrer as veias, enquanto um finíssimo fio, não mais grosso do que uma
linha de costura, continuar a ligar-nos à vida. Permaneceremos vivos e fortes. Fortes mesmo
que frágeis, partícipes da bela raça dos vivos. Eis o motivo pelo qual Zahera lutava. Queria
assistir ao fim do filme. O final feliz. Combatia como uma mulher. Uma mulher forte e bela.
Uma mulher extraordinária, que não renunciou, nem nunca renunciará, à beleza da vida.
Numa obra que Providence lhe tinha oferecido, L’immense pouvoir de votre prénom sur
votre vie5, a menina lera que «as Zaheras lutam, com todas as suas forças, em prol da felicidade
e do bem da humanidade, são pacientes e profundamente fiéis».
Estava convencida disso mesmo.
Provaria ao mundo inteiro que se podia continuar a ter sonhos depois de se ter engolido
uma nuvem e seria a primeira veterinária-astronauta à face da Terra.
Engolir uma nuvem fora uma expressão encontrada por Providence para lhe falar da sua
doença: a mucoviscidose. Fora bem encontrada. Era um pouco isso que a pequenita sentia no
fundo dos pulmões, uma dor vaporosa e dissimulada que a asfixiava ligeiramente, mas de
forma contínua, como se ela, distraída, tivesse certa vez engolido um enorme cúmulo-nimbo,
que ficara, de seguida, enclausurado no seu corpo. Todas as manhãs, ao pequeno-almoço,
esperavam-na nuvens com morangos. Vertia-as numa taça tal como outras crianças vertiam os
cereais. Cereais que lhe teriam irritado a garganta e que ela teria sido obrigada a engolir sem
resmungar. Há quem seja alérgico aos amendoins ou às ostras, ela, bom, ela, era-o àquelas
nuvens do tamanho de Paris que lhe nasciam no mais fundo do peito. Aliás, por vezes, tinha a
sensação de ter engolido, de facto, Paris. Com as suas pontes de pedra, os seus elegantes
edifícios de pé alto haussmanianos, os seus museus de vidro e a sua torre Eiffel. Todas as
manhãs, era Paris que ela devorava tijolo por tijolo. Era a torre Eiffel que engolia, cavilha por
cavilha. Com todos os seus andares e restaurantes. Trezentos e vinte e quatro metros de nuvem.
Os pedaços de ferragem, de tijolos e de vidro esfolavam-lhe os brônquios como se de arame
farpado se tratasse, e ela chorava. Então, chovia na capital francesa. Todas as manhãs, era um
país inteiro que ela engolia. E chovia em todo o mundo.
Apesar da sua doença, Zahera sentia-se sortuda. No andar de cima, encontrava-se um
rapazinho acometido de um padecimento bem mais dissimulado, uma doença engraçada, à
qual os médicos haviam chamado síndrome da maldição de Ondina. Segundo a lenda, a ninfa
Ondina, para castigar o marido, condenara-o a não mais conseguir respirar de forma
automática, o que o matara mal adormecera. Ondina… Que belo nome para tamanho horror!
Os médicos sabem ser cruéis. Como se fosse necessário meter poesia em tudo, até na morte.
Em suma, de cada vez que adormecia, o corpo de Sofiane, à semelhança do que acontecera com
o do marido de Ondina, esquecia-se de respirar. Como se fosse necessário estar consciente para
tal. Como se a criança tivesse de pedir, segundo a segundo, aos pulmões para se encherem e
depois esvaziarem. Inspiração, expiração. Inspiração, expiração. Respiro, logo, existo. Sofiane
vivia noite e dia ligado a uma máquina, como um robô. Um robozinho de quatro anos e meio
com pulmões de vidro.
De modo que há sempre alguém mais doente do que nós à face da Terra. Apercebermo-nos
disso mesmo permite-nos relativizar, dizer, enfim, que temos muita sorte, que as coisas
poderiam ser bem piores. Ver Sofiane rir e brincar como qualquer outra criança de quatro anos
e meio chegava a provocar-nos calafrios na espinha. Vê-lo rir às gargalhadas, os tubos de
plástico dançando-lhe nas narinas minúsculas, vê-lo abrir um sorriso rasgado ao ouvir uma
anedota, vê-lo maravilhar-se com um pôr do sol, vê-lo gritar de alegria quando as enfermeiras
o levavam até ao jardim por uma hora ou duas, vê-lo reler pela centésima vez o único livro de
contos infantis de que o hospital dispunha… era uma bela lição de vida. Todos os dias. Todas
as noites, antes de a máquina lhe tomar conta dos pulmões, para que nunca corresse o risco de
se esquecer de respirar enquanto sonhava. Para que, enquanto sonhasse, nunca tivesse de
pensar em respirar.
Afinal de contas, ela só tinha engolido uma nuvem.
Era bonito, uma nuvem.
Talvez o seu fascínio pela meteorologia e o sonho de um dia mais tarde vir a tornar-se
veterinária-astronauta lhe adviessem desse padecimento. Aprender a conhecer uma nuvem
assemelhava-se um pouco a aprender a domá-la, a dominá-la e a diminuir o sofrimento.
Porém, quão difícil lhe parecia domar uma nuvem. Primeiro, era preciso capturá-la. Ora,
mesmo correndo a grande velocidade sobre o globo terrestre, nunca conseguíamos ser mais
velozes do que elas na superfície do céu. Zahera já o tentara. E depois nunca ninguém a
ensinara a domesticar as nuvens. Em Marrocos, não se ensinava, e ainda menos às mulheres, a
domesticar nuvens, o que era uma grande pena.
Portanto, chegara à conclusão de que lá em cima, no espaço, no seu oásis de estrelas Made
in China, ficaria curada. Porque a sua nuvem, gigantesca quando vista cá de baixo, lá em cima,
na estação espacial, não seria maior do que um fio de cabelo. Ela poderia inclusive esconder
todo o planeta por detrás do dedo mindinho pousado no postigo. Eis o milagre das perspetivas.
Além disso, de qualquer forma, não havia nuvens no espaço, porque não existia ar e, portanto,
não ocorria condensação de moléculas de ar. Fazia sempre bom tempo acima da tropopausa.
Estava sempre solarengo.
Porém, ainda não chegara a hora de fazer uma viagem espacial e, nos últimos tempos, a
maléfica nuvem tornara-se selvagem. As crises, cada vez mais violentas, iam-se aproximando
umas das outras. Era preciso resistir. O que se tornara mais fácil agora que sabia que a mãe a
iria levar para França. Da última vez que viera, porque a vinha visitar com muita frequência,
Providence mostrara-lhe fotografias do quarto e dos brinquedos que a aguardavam lá, em
Paris, a cidade do Mickey e da Euro Disney. Dissera-lhe que em breve poderiam andar juntas
nas montanhas-russas e mascarar-se de princesas, porque os juízes finalmente lhe tinham dado
permissão para avançar com a adoção, o que significava que também seria mamã dela aos olhos
da lei.
No dia em que soubera disso, a menina saltara da cama e pusera-se a correr pela ala a gritar
a boa-nova, libertando um perfume de felicidade que despertava um sorriso em todos os lábios
e fazia com que cada uma daquelas mulheres esquecesse por instantes as preocupações de
saúde que as atormentavam.
Sim, era preciso resistir. Aguentar até que a mamã chegasse. Ela tinha-lhe prometido que a
viria buscar naquele mesmo dia. Nos últimos tempos, essa fora a sua única razão de viver. Só
pensava nisso. Nesse dia em que iria finalmente começar a viver. Como se alguém passasse
uma borracha Mallat sobre os últimos sete anos de sofrimento e lhe desse a oportunidade de
uma nova viagem na grande roda. Excitada perante a ideia de deixar aquele lugar, a menina
nem pregara olho durante a noite. No calendário da Hello Kitty que a francesa lhe oferecera,
todas as casas se encontravam riscadas com uma cruz e aquele dia estava rodeado com um
círculo de verniz cor-de-rosa. Um verniz com brilhantes de princesa.
Assaltada por um violento ataque de tosse, Zahera dobrou-se ao meio na cama e cuspiu
para um bacio um líquido espesso e avermelhado. Lá estava ela: a nuvem acordara, aquela
maldita nuvem que tinha engolido em bebé e que a perseguia para todo o lado. Vingava-se da
sua felicidade. Sempre que aquilo lhe acontecia, a menina tentava convencer-se de que o que
lhe escorria dos lábios era apenas doce de morango, um belo suco de morangos-silvestres,
tentava convencer-se de que os pulmões se encontravam repletos de compota. Imaginar um tal
cenário parecia-lhe um pouco mais suportável. Mesmo que o doce lhe rasgasse o peito e fosse
uma marmelada de urtigas. Apesar de a ferir, obrigava-se a pensar que a sua nuvem era boa e
que ela até tinha sorte porque podia viver, ao passo que outras nuvens, mais terríveis,
devoravam crianças por todo o mundo. Sim, a dela era generosa, mesmo transformando-se em
compota de morango no fundo do peito. Bastava que se impusesse um pouco, não a deixando
tomar muito mais espaço lá dentro. Gritar-lhe «Stop» mal tentasse destruir tudo à sua
passagem, qual elefante numa loja de porcelanas. Mamã, vem depressa, por favor, murmurou
Zahera, sem forças, antes de se deixar cair pesadamente nos lençóis húmidos. O elefante largara
a correr e partira a loiça toda.

5 O título traduzir-se-ia à letra por: O imenso poder do seu nome na sua vida. (N. da T.)
Situação: Aeroporto Orly (França)
Quis-ó-metro: 2105,93 quilómetros

Quando, lançada numa vendetta contra tudo o que se parecesse, por mais ligeiramente que
fosse, com o uniforme azul da Royal Air Maroc, partiu arrastada por três hospedeiras de bordo
com bons modos, duas brutas como tudo e uma auxiliar de limpeza, Providence só se podia
culpar a si, uma vez que a maldita nuvem de cinzas estava a uma altitude demasiado elevada
para poder saltar até lá e varrê-la com uma braçada violenta. Uma nuvem de cinzas! Os
fumadores, de facto, fazem de tudo para nos levar ao limite! De tanto soltarem fumo na
atmosfera, foram eles os responsáveis por aquele monstro negro! O vulcão não passava de uma
desculpa inventada pelas grandes tabaqueiras. Ah, a Islândia tinha costas largas! Quem é que se
queixaria? Decerto não os islandeses, nem sequer sabíamos que existiam. Conhecem-nos,
vocês? Sabem como são os islandeses? Conseguem descrevê-los? Os cientistas provaram que,
no decurso da nossa vida, temos mais probabilidade de nos cruzar com um yeti do que com um
islandês…
Se Providence fosse um gigante, teria dado uma valente sova àquele maldito cinzeiro
ambulante! Empoleirada nos seus saltos altos, teria pegado num enorme aspirador e desatado a
limpar o céu mais rapidamente do que limpava a sua casa num domingo de manhã, enquanto
ouvia a Rádio Bossanova.
Mas a verdade é que ela não era gigante e o seu aspirador não ultrapassava em tamanho a
pequena Samsonite, formato bagagem de mão, transportável em cabina. Além disso, ninguém
lhe ensinara a domar nuvens, fosse com aspirador fosse com uma corda enlaçada. Em França,
não ensinavam as mulheres, e menos ainda as carteiras, a domar nuvens, o que era uma grande
pena.
Não, pela primeira vez na vida, Providence só poderia esperar, a coisa que ela mais
detestava no mundo, ela, a mulher apressada que tinha começado a andar aos sete meses. E
acalmar-se, o que também não lhe agradava muito. Fez, portanto, um esforço sobre-humano e
decidiu sentar-se no primeiro café que encontrou. Sentiu-se tentada a tirar do bolso das calças
de ganga, onde o guardara, o seu MP3, pôr os auscultadores nos ouvidos e balançar-se ao som
de uma música dos Black Eyed Peas no volume máximo, mas optou por pedir um chá bem
quente.
«Agitado, não mexido», quase acrescentou, ao jeito de James Bond, mas faltou-lhe o ânimo.
Portanto, limitou-se a resmonear: «Um chá bem quente!» Nem sequer acrescentou um «se faz
favor», embora logo de seguida tenha pedido desculpas pela falta de modos. Não tinha o direito
de se comportar assim. Ao fim e ao cabo, os outros não eram culpados do que se estava a
passar. A culpa era da nuvem. Da vida.
Zahera estava a morrer enquanto ela bebia um chá.
Um chá terrível. Um chá de aeroporto, pelo qual se paga uma fortuna.
No entanto, por muito mau que fosse, a decocção de água quente teve o mérito de a
acalmar. Teria preferido beber piscinas de café ali mesmo. Num ápice, teria entornado um funil
com mais sacos de café do que os que aparecem nos anúncios da Nicola, mas deixara-se disso,
tal como fizera com o cigarro. Mais a mais, precisava de se acalmar. Ora, essa não era,
propriamente dita, a função primeira (nem segunda, aliás) do pequeno líquido negro.
Aguardou mais alguns minutos.
Nesse jogo de paciência, tinha acabado de terminar um nível e saltava já para o seguinte. O
esforço sobre-humano acabara de se transformar num esforço divino. Em breve, dar-lhe-iam
uma medalha, canonizá-la-iam. Iriam rebatizá-la Santa Paciência6.
Sim, poder-se-ia falar de esforço sobre-humano, visto que estava habituada a controlar tudo
e nunca se deixar levar ao sabor dos acontecimentos. No trabalho, era ela quem estabelecia as
rondas; era ela quem decidia por onde os colegas começavam a distribuição e onde davam por
terminada a jornada de trabalho. Ditava o ritmo. Tratava-se de um pequeno luxo a que só uma
profissional com quinze anos de experiência se poderia dar. Nos dias de sol, ponderava se faria
as coisas com calma ou se se lançaria de cabeça ao trabalho até ficar sem forças. Contudo, nos
últimos tempos, o sol brilhava-lhe sempre no peito porque o dia em que iria buscar Zahera se
aproximava a passos largos. Aquela criança tinha-a feito renascer. Aos trinta e cinco anos. Fora
tão inesperado. Até então, a sua grande ambição na vida passara por tentar melhorar a receita
paterna de maionese sob o olhar atento e bondoso que lhe lançava o chef Frédéric Anton do
ecrã de televisão nas noites de MasterChef. Porque a vida é um pouco como a maionese. Feita
de coisas simples, como gemas de ovo e óleo, que de nada vale apressar, porque com um
esforço regular se transforma numa das mais saborosas misturas que há. Ora, isto ajudava-a a
acalmar os nervos e aquela pressa inata que a devorava. Portanto, sim, Providence estava
convencida de que, aperfeiçoando a receita de maionese, estaria a aprimorar a vida.
A aparição de Zahera fora um enorme progresso. Ela que pensava que iria passar o resto da
sua existência sozinha, sem progenitura a quem legar a receita. Não se tratava de problemas
com homens. Bastava-lhe estalar os dedos para que eles viessem a correr. Não, tratava-se de
algo mais profundo. O instinto de maternidade. Ter um pedacinho de si consigo. Um
pedacinho de si que deixaria sobre a face da Terra quando, um dia, daqui partisse, e que, mais
tarde, deixaria, por seu turno, um pedacinho delas as duas.
Ora, depois de lhe terem tirado a última réstia do útero, tivera de aceitar a ideia de que
nunca teria um filho. O cancro, na sua enorme magnificência, deixara-lhe a possibilidade de
escolha. Ou morria ela ou o seu desejo de um dia procriar. Providence passara por momentos
difíceis, mas, no fim, conseguira vencer aquela porcaria. Hoje, seria mãe, independentemente
daquilo que o cancro julgara. Um pedaço de papel certificava-o. Conseguira ir mais além do
que o seu corpo. Acabara de dar à luz uma bonita princesinha marroquina de sete anos.
Acabara de se tornar mãe sem passar pelos «biberões, choros e insónias».
Suspirou, os olhos repletos de estrelas borbulhantes.
Como na belíssima canção de Cabrel, sabia que, quanto maior a distância entre ela e
Zahera, mais o ar lhe faltava, como se também ela tivesse engolido uma nuvem.
A lembrança do seu primeiro encontro despertou-lhe um sorriso. Fora uma apendicite que
a precipitara nos braços de Zahera aquando de uma estada em Marraquexe. A francesa tinha
aterrado na ala feminina de um estabelecimento médico de segunda categoria, sem grandes
meios, nos subúrbios a este da cidade. Num piscar de olhos, fora lançada para o outro lado do
cenário. Aí, não se avistavam turistas, nada de franceses de calção e sandálias, nada de imagens
bonitas para fotografar, adeus pensão completa. A pulseira «tudo incluído» de pouco lhe servia.
A vodka à discrição transformara-se em água da torneira, pouco potável e limitada, porque não
tinham água engarrafada para toda a gente. E aquele calor sufocante… Sentira falta do ar
condicionado do seu quarto de hotel quatro estrelas, mas apenas nas primeiras horas, porque,
logo de seguida, encontrara uma fonte de bem-estar em algo muito mais profundo, muito mais
espiritual. É triste dizê-lo, mas só se conhece bem um país depois de se ter estado internado
num seu hospital. Aí, é impossível mascarar a realidade. A tinta dourada com que se tinge as
paredes do turismo escama e cai, revelando o cimento cinzento e os tijolos.
A vida arrebatara-a bruscamente dos lugares que nos dão a ilusão de sermos ricos. Essa
sensação engraçada que começa com a gratificação que damos ao paquete do hotel, um
verdadeiro luxo numa era em que as malas são pequenas, leves… e com rodas. Rica, eis como
se sentira Providence ao enfiar uma nota de vinte dirhams marroquinos na mão do homem.
Não nadava em dinheiro, mas havia sempre alguém mais pobre. E não poderíamos considerar
que até o mais pobre dos sem-abrigo europeus era mais rico do que um etíope, que nem
possibilidade tinha de ver algumas moedas caírem-lhe no copo de plástico, de ver um qualquer
pedaço de pão cair-lhe no ventre vazio?
Uma insignificante apendicite lançara Providence para as malhas de um pequeno recanto
da sociedade marroquina. A sociedade feminina enferma, visto que ali não se misturavam os
sexos. Cada qual tinha o seu piso. Contudo, aquilo que mais impressionara a francesa fora o
facto de, uma vez superada a surpresa, as mulheres a terem considerado uma delas, por
completo. Ela tinha visto aquelas velhas que cobrem cada centímetro do corpo, exceto o
coração e o sorriso, que oferecem de bom-grado; aquelas mulheres que perderam um marido,
um filho; aquelas quinquagenárias, ainda belas, que um acidente de automóvel estropiou,
levando-lhes uma perna, um pedaço do rosto. E, depois, aquela menina, tão bela num universo
devastado, sem a sua idade, uma pequena princesa atirada para aquela ala hospitalar quase após
o nascimento por uma doença impiedosa e que a vida parecia ter esquecido.
Naquele lugar, era mais uma peça de mobiliário. Que esperava ela? Nem a própria o sabia.
Se Providence tivesse o tal aspirador de nuvens, tê-lo-ia usado para limpar também o peito
da menina. Teria libertado os brônquios da sua pequenina querida. Tê-lo-ia capturado, a esse
monte vaporoso, e enfiado numa caixa de sapatos. Sempre era preferível que as nuvens
estivessem em caixas de sapatos a habitarem no peito de meninas.
De qualquer das formas, o destino fizera bem as coisas. Juntara, lado a lado, em camas cujos
lençóis se afloravam, uma mulher desejosa de ser mãe, apesar de já não o poder, e uma menina
sem mamã. Poder-se-ia dizer que elas tinham nascido para se compreenderem.
Providence cerrou os punhos, o olhar perdido no seu copo de plástico.
E eis que hoje punha a vida da filha em mãos alheias! Ficara dependente de um voo,
dependente de um avião, dependente de uma nuvem. Sim, a vida de Zahera dependia agora de
duas nuvens. A que lhe queimava as entranhas e a que obstruía o céu. Em suma, estava
entalada entre dois nimbos.
Tanto mais que o que estava a acontecer só se refletia numa parte ínfima do globo, os países
escandinavos, a França e o Norte de Espanha. O resto do mundo vivia tranquilo, alheio às
tribulações deste monte de cinzas. Ela encontrava-se no lado errado do planeta. Só isso.
No momento em que uma nova lágrima lhe caiu no chá, provocando uma onda
concêntrica que por instantes perturbou o seu reflexo, a jovem mulher decidiu que deveria
voltar a tomar o assunto em mãos e lutar. Quando uma guerra irrompe perto de nós, cabe-nos
escolher se nos queremos envolver ou se desejamos permanecer meros espectadores. Ora,
Providence não conhecia qualquer ancestralidade suíça.
6 Sainte Patience no original, um claro trocadilho com o nome Providence. (N. da T.)
Zahera apaixonara-se por Providence à primeira vista.
Porque ela vinha «de lá», era uma europeia e nunca a tinham visto naquele lugar, naquele
hospital. Porque ela era também bonita e se lhe lia no rosto uma enorme determinação. Era
linda, mesmo tendo ali chegado numa maca, ainda sedada, a boca pastosa e os olhos remelosos.
A menina, muitíssimo curiosa, soubera pela enfermeira que a recém-chegada tivera «uma
apendicite»; logo de seguida, surgiu a explicação do termo médico.
– É uma infeção do apêndice, um pedacinho de nós que não serve para nada e que tem de
ser retirado mal estas situações acontecem. É uma operação muito simples, uma coisinha de
nada.
A criança pareceu aliviada. Contudo, outra coisa a apoquentava.
– É um pouco como um sexto dedo do pé?
– Sim, um pouco. Não nos serve de nada. Bom, na verdade, nenhum dedo tem grande
utilidade. Enfim, são bons para se gastar verniz…
– E porque é que não serve para nada? Não o dedo do pé, mas o apêndice.
– Não sei – retorquiu Leila, sentando-se na cama da menina. – Há quem diga que se trata
de um vestígio do período em que éramos peixes.
– Peixes? Pensava que antes tínhamos sido gatos e que o cóccix era o que nos restava da
cauda…
A jovem enfermeira sorriu.
– Tu lembras-te de cada uma! Então, digamos que todos fomos gatos e peixes.
– Sim, peixes-gatos!
Esta conversa poderia ter durado horas, não fosse Providence ter, a dado momento,
acordado da letargia em que os sedativos a haviam mergulhado. Abriu lentamente as pálpebras
para se habituar à luz.
– Por onde andam esses peixes-gatos?
Leila desatou a rir, escondendo, pouco depois, envergonhada, a enorme boca atrás da
manga da bata branca. Tinha uma gargalhada comunicativa que rapidamente se propagou até à
última cama da ala hospitalar, lembrando uma série de peças de dominó numa queda em
cascata.
A jovem francesa precisou de alguns minutos para se situar no espaço e no tempo. De
seguida, perguntou-se o que faria naquele aquário onde se falava de peixes-gatos. Um ligeiro
desconforto no lado direito do ventre logo lho lembrou.
Encontrava-se coberta por uma bata de papel azul e tinha um enorme penso em cima da
virilha. Sempre acabara por desenvolver a fatídica apendicite! Havia trinta anos que esperava
pacientemente por ela, desde que um colega de turma decidira, certo dia, assustar toda a gente
levando o seu apêndice para a escola num frasco de doce repleto de formol. É claro que não lhe
poderia ter acontecido aquilo em Paris. Tinha de ter sido ali, entre o deserto e as montanhas.
Providence não tinha nada contra aquele país em particular, mas não enterremos a cabeça na
areia (nem tapemos o rosto). Marrocos era bem mais conhecido pelas cerâmicas, tapetes e
cornos de gazela7 do que por um bom sistema de saúde. Além disso, a ter de acontecer numa
viagem, preferiria de longe que a maldita apendicite se desenvolvesse nos Estados Unidos. Ah,
uma semanita de convalescença num quarto do Serviço de Urgência com o belo doutor George
Clooney…
Olhando em volta, a jovem mulher apercebeu-se de que era o centro das atenções de todo o
andar. As marroquinas não teriam pregado no rosto uma expressão mais surpreendida se,
nesse preciso momento, ali tivesse entrado, transportado numa padiola, um esponjoso
marciano de Roswell e houvesse sido dissecado diante dos seus olhos e de uma equipa de
televisão americana por cientistas com escafandros.
Providence fez menção de se levantar, mas só conseguiu erguer o rabo da cama por uns
milímetros. Uma dor lancinante no lado direito pregou-a logo ao colchão.
– Bom, já que terei de ficar aqui internada, mais vale passar logo às apresentações – lançou
ela. – Chamo-me Providence. – E ergueu a mão para a assembleia em jeito de cumprimento. –
Providence, e sou carteira, como o meu nome indica.
Incomodadas por se verem apanhadas em flagrante delito de curiosidade, a maioria das
doentes, as mais visíveis, pelo menos, voltou a cabeça para outro lado, mergulhando de novo na
sua ocupação preferida: morrer.
Apenas a pequena vizinha de Providence lhe estendeu a mão em resposta. Tratava-se de
uma bonita menina com longos totós negros e sardas que lembravam cacau com que alguém
lhe tivesse alegremente polvilhado a cara e o nariz. Era de uma palidez e de uma magreza
extremas, apesar de um ventre desmesuradamente inchado.
– Como te chamas? – perguntou-lhe Providence.
– Zahera.
– É bonito.
– Quer dizer «saudável, realizado» em árabe.
– Isso lê-se na tua cara.
– Se fosse saudável e realizada, não estaria neste hospital desde que vim ao mundo!
Exaltava-se com pouco, a princesinha! No entanto, Providence teve de admitir que a petiza
até tinha uma certa razão. Aquela personalidade vincada agradou desde logo à mulher, que
reconheceu em Zahera a criança que ela própria fora. A francesa sorriu ante a expressão
amuada da nova amiga e, constatando que não corria perigo, deixou-se cair, embalada pelos
resquícios dos sedativos, num novo sono artificial.
Nos dias seguintes, a recém-chegada observou, sem compreender grande coisa, o vaivém
dos médicos e das enfermeiras junto da cabeceira de Zahera, a visita frequente do fisioterapeuta
para a ajudar a tossir e a cuspir, as massagens, a garrafa de oxigénio, a máscara atarraxada
grande parte do tempo ao seu rosto doce, mesmo por debaixo daqueles lindos olhos negros.
Uma máscara para respirar na nuvem. Duas a seis horas de cuidados diários; um tratamento
extremamente penoso para uma criança.
Certa manhã, aproveitou o facto de a pequenita estar a dormir a sono solto para perguntar
a Leila qual a doença que a acometia. A enfermeira confidenciou-lhe que a menina padecia de
mucoviscidose, uma doença genética grave que provocava o aumento da viscosidade do muco
nas vias respiratórias. Por outras palavras, Zahera asfixiava pouco a pouco, como se lhe
pressionassem, cada vez com mais força, uma almofada de encontro à boca. A imagem era
horrível.
Tratava-se de uma afeção rara naquele lado do Mediterrâneo, uma afeção que ocorria mais
nos europeus. Porque assim era, isso, Providence desconhecia. Eles é que decerto não se iriam
queixar de, por uma vez, uma calamidade, indiferente ao poderio económico dos Brancos, não
devastar a África. Eis o motivo da sua inexperiência, da falta de material adequado, das lacunas
naquela caça à nuvem. Combatiam com camaroeiros e redes para caçar borboletas ao passo que
no Norte se lutava com aspiradores antinuvens de última geração. Apesar disso, a pequena
vivera bem mais do que aquilo que os médicos tinham previsto. Isso calaria a matraca dos
especialistas europeus. Nada mal, diriam eles. Nada mal para um país de terceiro mundo.
Para a carteira, era uma descoberta, um primeiro encontro físico com esta doença
hedionda, de que sempre ouvira falar na televisão, embora sem grande interesse, e que só lhe
despertara um pouco mais a atenção no momento em que um jovem cantor francês com uma
voz prodigiosa, descoberta num concurso de talentos nacional, morrera, engolido pela sua
nuvem. Chorara a morte desse célebre desconhecido, desse filho de alguém, desse menino de
sua mãe.
Essa mãe que Zahera nunca tinha conhecido. Uma vez que um mal nunca vinha só,
houvera complicações aquando do parto e fora preciso recorrer-se à cesariana. Uma
hemorragia interna pusera fim aos dias da sua progenitora. Uma coisa de minutos e, upa!, a
menina ficara órfã no mundo. Do seu pai, nunca soubera nada. As suas primeiras lágrimas, no
momento em que a retiravam do ventre ensanguentado da mãe, pareciam soltar-se por ela.
Não se tratava de um choro de vida, como o que assinala o nascimento de cada um de nós, mas
de um pranto de dor, de tristeza, um grito de perda. O grito de um recém-nascido que perde o
que tem de mais precioso nesse mundo novo que se abre para ele. A sua mamã. A carne da sua
carne. O corpo onde passou os nove mais belos meses da sua vida anterior. Da sua vida
interior.
Depois de ouvir as confissões de Leila, Providence lançara-se numa corrida desenfreada
para conquistar o tempo perdido e mostrar o mundo à menina, porque esta, do nosso belo
planeta azul conhecia apenas a ala do primeiro piso e o jardim daquele hospital de província.
Providence mostrara-lhe, no seu smartphone 4G, a beleza do mundo, a beleza das pessoas, a
beleza da vida. Mostrara-lhe livros, vídeos, artigos de jornal e fotografias, muitas fotografias. As
fotos daquele homem que posava em tutu nos quatro cantos do mundo para arrancar à mulher,
com cancro, um sorriso. As fotos de pessoas normais que, certo dia, se propõem fazer coisas
extraordinárias. Porque, enquanto há vida, há esperança e, enquanto houver seres humanos,
haverá amor.
Zahera sentia-se como um condenado que tivesse aproveitado o tempo de pena, todo esse
tempo de que dispunha na prisão, para mergulhar nos livros e se transformar em alguém de
bem, para preparar a nova vida que o esperava à saída. A menina estava presa àquela cama
havia sete anos e só então se apercebera de que poderia fazer daquilo uma força. Tinha tempo.
Tempo para aprender e conhecer o mundo. A sua sede de leitura e de conhecimento era
imensa. Absorvia tudo como uma esponja. Em poucos dias, tinha devorado o equivalente a
uma biblioteca de bairro. Em algumas semanas, engolira a Biblioteca Nacional francesa e a
Sorbonne. Após anos a comer nuvens do tamanho da torre Eiffel, eis que se punha a devorar
bibliotecas inteiras, andar após andar, cavilha após cavilha. O organismo nunca sentiria falta de
ferro. Uma alternativa original aos espinafres.
A menina aprendeu, portanto, que os esquilos do Central Park, em Nova Iorque, se sentem
tristes à segunda-feira. Saberiam eles que esse dia era, estatisticamente, o mais propício para se
ter um ataque cardíaco?
Aprendeu, de igual modo, que a palavra francesa para «esquilo» provém dos termos
«sombra» e «cauda» em grego antigo. Que um camelo consegue beber cento e trinta litros em
dez minutos. Que o nono presidente dos Estados Unidos fora um tal de William Henry
Harrison, cujo mandato, o mais curto da história do país, durara apenas trinta dias, doze horas
e trinta minutos. Que a cena em que Indiana Jones mata a tiro o vilão que o tenta impressionar
com a sua exímia demonstração de manejo de um sabre não fora inicialmente prevista e que
Harrison Ford a improvisou, porque estava com uma gastroenterite e queria terminar as
filmagens o mais cedo possível nesse dia.
Que o porteiro de luxo internacional John Paul pode mandar entregar, numa hora, um
elefante num iate privado em pleno oceano para satisfazer os caprichos de um multimilionário.
Que os álbuns de Tintim não têm mais de sessenta e duas páginas e que, de todos, Tintim no
Tibete é o único onde nos deparamos com o herói a chorar.
Soube ainda que um indonésio da sua idade acabava de entrar num programa de
desintoxicação para deixar de fumar. Que o termo máfia surgiu aquando da rebelião dos
sicilianos contra a ocupação francesa em 1282 e que se trata do acrónimo do seu grito de
revolta: «Morte ai francesi Italia anela» («Morte aos franceses, deseja a Itália»). Que são
necessárias pelo menos sessenta toneladas de tinta para pintar a torre Eiffel, coisa que se faz de
sete em sete anos. Que o primeiro episódio de Columbo fora realizado por Steven Spielberg.
Que o pintor espanhol Jesús Capilla compunha todas as suas cores a partir de pigmentos
naturais (sangue para o vermelho, ovo para o amarelo, salsa para o verde). Que um australiano
de doze anos, irritado por ver sempre o seu país em baixo e à direita nos mapas, teve certo dia a
bela ideia de voltar o seu mapa-múndi e de o centrar na Austrália. Que há colmeias nos tetos da
Opera Garnier em Paris e que se produz aí mel. Que a bandeira nepalesa é a única não
retangular. Que Albert Uderzo, o ilustrador de Asterix, é daltónico e nasceu com seis dedos em
cada mão. Que uma indiana nascera com quatro braços e quatro pernas, e que os pais lhe
haviam dado o nome de Lakhsmi, a deusa hindu da riqueza, dotada, também ela, de quatro
braços. Que o pequeno símbolo «&» se chama sinal tironiano e foi criado pelo secretário-
escravo de Cícero e considerado a vigésima sétima letra do alfabeto francês até ao século XIX.
Que Honoré de Balzac media apenas um metro e cinquenta e sete centímetros. Que no decurso
da nossa vida andamos o equivalente a três voltas ao mundo. Que na Nova Zelândia
novecentos automobilistas declararam o seu veículo na categoria de «carro fúnebre» para
pagarem a vinheta mais barata. Que Agatha Christie escrevia os seus romances de uma penada
até ao penúltimo capítulo, momento em que escolhia o assassino menos provável e reescrevia
toda a obra desde o início, tendo em conta esse novo elemento. Que os primeiros biquínis eram
vendidos em caixas de fósforos. Que a aranha não se enreda na própria teia porque tem o
cuidado de se mover nos fios não adesivos que teceu para esse mesmo efeito. Que Tom Cruise
se chama na realidade Thomas Cruise Mapother IV. Que é filho de Thomas Cruise Mapother
III, engenheiro eletrotécnico. E que, se cortarmos uma maçã ao meio no sentido da largura,
obtemos no centro uma estrela de cinco pontas.
Encontrava-se de tudo na internet. Era a porta para o mundo que faltara à menina ao longo
de todos aqueles anos.
Na véspera de Providence partir, já restabelecida da intervenção cirúrgica, a pequena
marroquina decidiu revelar-lhe em confidência que gostaria de um dia vir a ser veterinária-
astronauta, um segredo que nunca revelara a quem quer que fosse, sobretudo a ideia de os
tratamentos lá serem mais fáceis em virtude da ausência de gravidade. Mas tinha toda a
confiança do mundo em Providence.
– Se calhar, a pergunta vai parecer idiota, mas porque é que dizes astronauta e não
cosmonauta?
– Em linhas gerais, é a mesma coisa – respondeu a garota, orgulhosa por poder ensinar algo
a um adulto. – Só a nacionalidade é que muda. Um astronauta é um europeu e um
cosmonauta, um soviético.
– Ah, sim?
– Nos Estados Unidos são astronautas e os chineses são taikonautas!
– Nesse caso, Zahera, não é astronauta aquilo que queres vir a ser, porque não és europeia,
será mais «marroquinauta»!
As duas desataram a rir.
– Na verdade, lembras-te do que me trouxe aqui? – perguntou a francesa.
A menina precisou de alguns momentos para se relembrar do termo médico.
– Uma apendicite? – acabou por dizer.
– Sim. Bom, sabes que, se um dia fores lá para cima tratar de animais doentes, irão tirar-te o
apêndice antes de partires em missão, por via das dúvidas. Porque, se te acontecesse um azar
destes lá em cima, seria muitíssimo delicado. Não há bloco operatório nem cirurgiões, sabes?
Portanto, mais vale prevenir.
De seguida, a jovem mulher prometeu que faria tudo para que o sonho da menina se viesse
a realizar um dia e ela se tornasse a primeira «veterinária-marroquinauta» do universo.
Prometeu-lhe também que voltaria para a visitar dali a algumas semanas e que traria presentes.
– Prometido?
– Prometido.
– Sob risco de teres outra crise de apendicite!
– Tiraria todos os apêndices do mundo para te voltar a ver, se fosse caso disso. E, se
contarmos um por cada pessoa na Terra, perfaria milhões. Prometo-te que voltarei daqui a três
semanas.
– És um pouco como uma mamã telecomandada.
– Uma mamã telecomandada?
– Sim, porque, se tivesse um telecomando de mamãs, faria com que viesses sempre que me
sentisse um pouco triste. Mais: nunca te deixaria partir.
– Virei sempre que estiveres triste, meu anjo. Serei a tua mamã telecomandada.
E ela cumpriu a promessa. As frequentes idas e voltas ao longo de dois anos tinham unido
as duas vizinhas de cama, enchendo o coração de Providence de felicidade e a sua carteira com
o reputado cartão de fidelidade Safar Flyer Gold da Royal Air Maroc.

7 Trata-se de um típico bolo seco marroquino. (N. da T.)


Providence esboçou um sorriso rasgado.
Perante a simples evocação de Zahera, o detestável chá que estava a beber transformou-se
num néctar precioso, oferecido por um marajá indiano, e o aeroporto transfigurou-se num
paraíso de As Mil e Uma Noites (apesar de os dois não terem nada a ver). Dir-se-ia que estava
num teatro, quando a luz se apaga entre duas cenas e os técnicos baixam a grossa cortina para
alterarem o cenário. Exceto que ali havia sempre inúmeros figurantes. Milhares de turistas
apanhados com ela em cena.
Naquele dia, para além de ser uma mamã telecomandada, precisava de um avião
telecomandado para conseguir ir buscar a filha.
Um estremecimento agitou-lhe o flanco direito, como que para lhe recordar que fora por ali
que tudo começara, que fora nesse preciso sítio que o corpo começara a sentir. De seguida, a
dor percorreu-lhe o ventre até se transformar numa agradável sensação de calor no peito. O seu
bebé. A sua menina querida.
A esperança regressou a Providence mais depressa do que se descongela um peixe panado
Findus. E, com ela, a força para mover montanhas. Começou, portanto, por mexer as mais
pequenas, as nádegas em cima das quais estava sentada, levantando-se de um salto. A mala
debaixo do braço, pôs-se à procura de stands de aluguer de automóveis. Meter-se-ia num carro
e iria até Marrocos a todo o vapor buscar a filha.
Mal lá chegou (ao stand de aluguer de automóveis, não a Marrocos), a jovem mulher
apercebeu-se de que não fora a única a ter aquela ideia genial. Havia tanta gente que, por
segundos, Providence julgou que estariam a oferecer dinheiro. A fila interminável lembrava-lhe
as dos talhos soviéticos nos anos setenta. Haveria mais automóveis para alugar do que carne
picada russa? Nada era menos certo. Providence decidiu averiguar o assunto mais de perto,
esticando os cotovelos e usando a mala Samsonite para perfurar a turba compacta.
Colocou, portanto, a mala diante de si e empurrou sem quaisquer escrúpulos a multidão
com golpes nas tíbias, não se esquecendo de ir pedindo desculpa e de assumir uma expressão
inocente. Ao cabo de poucos metros, ante a surpresa de uns quantos curiosos que lhe seguiam
com um certo interesse o avanço e de outros que tinham aproveitado a ocasião para deslizar
atrás dela, como quem vai na esteira das brechas abertas no trânsito por uma ambulância, fez
uma meia-volta brusca, sob o olhar furioso ou assustado daqueles que empurrara na ida e cujos
pés e tíbias se preparava então para maltratar de novo.
O zumbido murmurado veio confirmar-lhe que aquilo que ela temia acabara de acontecer.
Já não havia carne picada soviética. Nada de automóveis para alugar. O que era perfeitamente
credível, tendo em conta as centenas de pessoas que se matavam pela última chave, como se
disso dependesse a sua sobrevivência, como se ela abrisse o cofre do Banco de França ou do
Fort Boyard8. Tudo o que era provido de rodas fora pilhado. Os automóveis, as motos, as
scooters e até as cadeiras de rodas. Providence decidiu, portanto, que não perderia nem mais
um minuto ali.
Tinha de haver outra forma de sair de França. Marrocos… não era o Peru! Que restava? A
jovem mulher contou pelos dedos. Avião, carro… comboio!
Não era nada mal, o comboio! Olhou para o relógio. Dez horas e quarenta e cinco minutos.
Lembrou-se de que o seu voo, que se mantinha confirmado mas francamente atrasado, deveria
ter partido às seis horas e quarenta e cinco minutos da manhã. Estava a pé havia seis horas.
Para nada.
Fez rapidamente as contas. Seriam necessárias pelo menos sete horas para alcançar a
fronteira espanhola e ainda cerca de umas dez para chegar a Gibraltar. Contabilizando o tempo
de espera para os transbordos e eventuais atrasos, chegaria a Marraquexe no dia seguinte. A
Lua ter-se-ia levantado e deitado. Não teria cumprido a sua promessa. No entanto, por vezes há
que aceitar fazer compromissos para se alcançar os objetivos, teria gritado entusiasticamente
Steve Jobs ao microfone diante de uma assistência que se levantaria em bloco para o aplaudir
de pé. Providence iria, ainda assim, buscar Zahera e levá-la consigo. Já era um bom
compromisso.
A jovem mulher esgueirou-se por entre a turbamulta e encaminhou-se para a saída. Tinha a
sensação de que lhe faltava percorrer quilómetros para sair daquele terminal opressivo. Decerto
assim era, porque se via obrigada a ziguezaguear constantemente entre as pessoas, isto para não
mencionar o facto de estar a andar, havia vários minutos, num tapete rolante em sentido
contrário…
Mal chegou às escadas rolantes que a conduziriam até ao Aerobus, perguntou-se se, antes
de sair dali, não seria melhor certificar-se de que o voo fora mesmo cancelado. Não tinha sido
anunciada qualquer previsão de partida, e o voo registava então um atraso de quatro horas,
mas, se acabasse por descolar, Providence não se perdoaria. Porque, mesmo que partisse ao
início da tarde, conseguiria estar em Marraquexe muito antes de o comboio entrar sequer em
Espanha.
Sentiu a cabeça deitar fumo. Algumas gotas de suor aventuraram-se pelo rosto em busca de
um mundo melhor. Que deveria ela fazer? Embora fosse uma mulher apressada, sentia horror a
todo o tipo de decisões precipitadas. Por norma, terminavam em grandes catástrofes. E,
naquele caso, era a vida de Zahera que estava em jogo. Não podia permitir-se um erro.
A paralisia da indecisão rondava-a.
E tudo isso sem contar com o aparecimento do pirata chinês.

8O Fort Boyard foi um programa de televisão francês, filmado no forte homónimo, no qual os concorrentes se submetiam a
uma série de provas (semelhantes às dos Jogos sem Fronteiras) com o objetivo de encontrarem a chave do forte e ganharem a
quantia lá depositada. (N. da T.)
Com o seu fato-macaco fluorescente, assemelhava-se a um foragido de Guantánamo, mas
era pouco provável, a menos que os chineses se tivessem lançado na nova tendência do setor do
terrorismo islâmico sem que Providence tivesse ouvido falar do assunto. Bem vistas as coisas,
por norma, não assistia ao telejornal.
– Por Deus, tem probleeemas? C’os diabos, nós resolvemo-los num piscar de olhos!
O homem diante dela tinha todo o aspeto de um asiático que houvesse engolido um pirata
ao pequeno-almoço, um pirata com um sotaque chinês de cortar à faca. Com uma faca de
mato. Com uma faca à Rambo. Parecia uma cabra a gritar probleeemas, isto, se uma cabra
pudesse vir a ter problemas e a gritá-lo. Fosse como fosse, escolhera bem o seu pouso. Em Orly,
naquele dia, problemas era o que não faltava.
– Por Deus, tem probleeemas? C’os diabos, nós resolvemo-los num piscar de olhos –
arrulhava ele.
Arengava a um público-fantasma como aqueles pregadores americanos que, alcandorados
num banco num passeio qualquer, anunciavam o fim do mundo. Ainda que não estivesse
alcandorado (pelo menos, não num banco), não fosse americano e não anunciasse o fim do
mundo (embora este nunca lhe tivesse parecido tão próximo). Era um pirata chinês a quem só
faltava o papagaio ao ombro, a pala no olho e a perna de pau. De pé, junto das escadas rolantes,
distribuía panfletos às centenas de mortos-vivos que passavam diante dele sem o verem, apesar
da sua indumentária vistosa e dos gritos que soltava. Talvez mais não fosse do que o fruto da
imaginação da jovem mulher. Uma alucinação devida à fadiga.
Providence aproximou-se. À sua frente, uma senhora idosa, desorientada, agarrou no papel
que o chinês lhe estendia, assoou-se a ele sem sequer verificar do que se tratava e atirou-o para
o chão. O terminal transformara-se numa enorme lixeira pública e ninguém parecia
preocupado com isso. A limpeza e a ordem tinham-se tornado supérfluas naquela nova
sociedade. Àquele ritmo, RoboCop e Judge Dredd em breve entrariam ao serviço.
Providence postou-se diante do homem e aguardou. Naquele momento, não percebeu o
que lhe dera. Uma força misteriosa, quiçá a curiosidade, levara-a a estender o braço para
agarrar num panfleto.
O flibusteiro chinês de pijama cor de laranja lançou-lhe um olhar estranho. Não deveria
estar habituado a que se lhe dirigissem voluntariamente. Não parecia acostumado a que o
vissem, menos ainda a que o observassem. Teve a sensação de ter sido notado pelo único ser
humano nas redondezas. Em redor deles, as abelhas de sandálias e camisas havaianas
continuavam a sua ridícula dança ziguezagueante.
Sem se mexer um milímetro, Providence mergulhou na leitura da publicidade que o chinês
distribuía. Parecia achar a literatura interessante. Intrigado, o homem olhou, por seu turno,
para um dos prospetos a fim de verificar se não se teriam transformado, à sua revelia, em
versos de Arthur Rimbaud.

Mestre Supremo Bué


Especialista em problemas afetivos. Conhece todas as dificuldades da sua vida. A sorte
sorrir-lhe-á e a sua vida será transformada. Casamento, sucesso, timidez, carta de
condução, exames, desamarração, impotência, diarreia, obstipação, vício em compras ou
no Harry Potter, regresso a casa da pessoa amada.
Trabalho sério e rápido.
Facilidades de pagamento de acordo com os seus meios. Recebe todos os dias das 9h às
21h em Barbès, diante do stand de bebidas Sahara.
Não deitar na via pública.

Estava bem longe de Rimbaud.


A jovem francesa ergueu de novo os olhos para ele (o asiático, não Rimbaud). A
globalização abarcava, efetivamente, todos os setores. Inclusive o do charlatanismo, até então
monopólio dos bruxos africanos. Da diarreia à carta de condução, passando pelo vício na saga
Harry Potter, diacho, esse tal Mestre Supremo Bué abrangia todos os domínios e resolvia todos
os «probleeemas»!
– Espero que tenha tanto sucesso quanto o nome indica – lançou Providence para quebrar
o gelo.
Ele pareceu não entender o jogo de palavras e permaneceu imóvel diante dela, como
aquelas estátuas humanas que surgem nos locais turísticos.
– Disse isso por causa do Bué… de muito… – precisou ela diante da impassibilidade do
chinês.
Perante a evocação do nome do seu mestre, o homem voltou à vida, como se a viajante lhe
tivesse acabado de lançar uma moeda à gamela.
– Com mil diabos! – exclamou. – Não pronuncie o nome dele.
– O quê? Bué?
– Chiuuuu! Apre!
– Mas está escrito no seu papel!
– Com mil milhões de mil e quatrocentos e noventa e cinco macacos! Pelo zarolho cego!
O asiático transformara-se numa máquina de injúrias. Lançou olhares furtivos em redor
lembrando um traficante em plena transação.
– Ora bem, leia com a sua voz mental – continuou ele, uma vez tranquilizado –, mas nunca
poderá pronunciar o nome do Mestre e 90, senhor dos sete mares e guardião do tesouro dos
flibusteiros.
– O Mestre e 90! É o seu nonagésimo mestre?
– Não, é a medida dele. 1 mestre e 90. Na confraria, para além de um título honorífico,
todos os monges são nomeados de acordo com as suas medidas.
– Parece-me lógico – ironizou Providence. – E porque é que o senhor fala como um pirata?
– Como um pirata? – repetiu o homem, surpreendido. – Não estou a compreender aonde
quer chegar.
Este chinês tem pancada, e não é de kung-fu, pensou a jovem carteira, que se apressou a
girar sobre os calcanhares e a deixá-lo ali plantado. Contudo, aquele deteve-a pousando-lhe a
mão no ombro.
– Posso ajudá-lo, grumete.
– Desculpe?
– Vejo nos seus olhos que tem um probleeema!
A jovem mulher assinalou com o indicador a turbamulta desvairada que formigava em
redor deles, alheia àquela conversa surreal.
– Bem visto, Sherlock! E parece que não sou a única aqui.
O asiático esboçou um enorme sorriso, após o que o seu rosto se fechou novamente.
Aproximou-se dela e baixou a voz. Providence esperava que, de um momento para o outro, ele
abrisse o macacão cor de laranja e lhe apresentasse uma miríade de relógios roubados.
– Que posso eu fazer por si? – limitou-se ele a perguntar.
– Não tem por acaso um avião escondido na manga?
O chinês ergueu o braço e espreitou a dita.
– É uma expressão – explicou Providence sensibilizada com a inocência do homem. –
Contentar-me-ia com a possibilidade de o senhor conseguir que o meu avião descolasse.
– Aviões, grumete, há que pedir à Força Aérea! – exclamou ele, devolvendo o braço à sua
posição inicial.
– Pois, enfim, no meu caso, seria mais à Royal Air Maroc. Mas, bem, pedi-lhe isso porque
no panfleto está escrito que você muda a vida das pessoas…
– Macacos me mordam! – retorquiu o asiático, cheio de sorte por não haver nenhum
babuíno por perto. – Essa é boa! Pensa, portanto, que eu sou o Mestre e 90? Apesar de medir
isto? Sou apenas um marujo que distribui panfletos. Se quiser conhecer o ancião, terá de aproar
naquela direção. Ele, sim, transforma a vida das pessoas.
Tudo lembrava uma cena d’A Ilha do Tesouro, ou, antes, de um mau remake do filme de
Fleming revisto por Kubrick depois de uma noite de copos.
O homem apontou para o pedaço de papel. A unha do mindinho era desmesuradamente
grande. Um pouco como a dos guitarristas de flamenco. Meta-se um chinês, um terrorista
islâmico, um pirata e um andaluz numa máquina de lavar e sairá este tipo aqui, pensou
Providence, que estava a gastar o seu latim, enfim, o seu chinês.
– Meta-se a caminho de Barbès. Mesmo diante do Sahara.
– Ah, sim, o Sahara é o bar. Por instantes, julguei que me estivesse a indicar outro
continente, que era precisamente o meu destino. Teria sido engraçado.
–…
– Temo que não seja possível – disse Providence, então séria. – Não me posso ausentar do
aeroporto. Estou à espera da hora de partida do meu voo.
Perguntava-se por que motivo continuava a conversar com aquele homenzinho.
– Isso é assaz maçador, grumete!
– Suponho que não faça domicílios, certo?
– Quem?
– Bom, o Mestre Bué.
– Chiuuuu! Não, gentil dama, o Mestre e 90 só recebe nos seus aquartelamentos. Por uma
questão de segurança…
– De segurança?
– O Mestre e 90 é um homem muito poderoso. Reina sobre a Humilde Casta Louva-o-tricô!
– Louva-o-tricô? Quer certamente dizer louva-a-deus.
– Aqui, eles rezam – explicou o monge, unindo as mãos e esfregando-as uma na outra. –
Daí chamarem-lhes louva-a-deus. Mas, no nosso país, eles tricotam. Sim, para ser mais preciso,
os monges desta humilde casta tricotam peças de roupa feitas de queijo.
Providence, que se sentia a perder centenas de neurónios a cada segundo que passava
naquela conversa de doidos, preferiu não aprofundar mais o assunto.
– Enfim, se estou a compreender bem, é um mestre muito poderoso, mas que vive em
Barbès…
– Oh, isso não passa de uma questão de marketing. O Mestre vive num apartamento
luxuoso no 16º.
– Século?
– Bairro! – retificou o chinês intrigado. – Caso contrário, teria dito XVI em numeração
romana.
– Num diálogo, não vemos numeração romana.
– Tem razão. Bem, voltemos ao assunto. Como dizia, vá-se lá saber porquê, para este
género de negócio, causa melhor impressão ter nome na praça em Barbès do que no 16º (em
numeração árabe, devo precisar).
– Compreendo – retorquiu Providence, que não compreendia patavina. –
Independentemente disso, seja em Barbès ou no 16º bairro, não me dá jeito. Não quero sair do
aeroporto. Surgem novas informações a cada minuto.
Providence não sabia como pôr cobro àquele diálogo e afastar-se do pobre diabo. Que é que
lhe passara pela cabeça para se meter à conversa com semelhante tipo? Por vezes, num cais do
metro ou numa sala de espera, somos abordados por personagens estranhas que de repente nos
começam a falar da sua vida e dos seus problemas sem que lhes tivéssemos perguntado o que
quer que fosse. Ouvimo-las distraidamente rezando para que a composição entre depressa no
túnel ou para que a assistente de dentista nos venha buscar. Já lhe acontecera diversas vezes.
Contudo, naquele momento, só se poderia culpar a si. Fora ela quem o interpelara.
– Sabe, o Mestre e 90 é mais poderoso do que a Air France – declarou o chinês de pijama
cor de laranja, sentindo que estava em vias de perder uma cliente. – Ainda há pouco me
perguntou se eu poderia fazer com que o seu avião descolasse. O Mestre pode fazer bem mais
do que isso. Palavra de corsário.
O homem acabara de reavivar a curiosidade de Providence.
O chinês olhou em redor e certificou-se, uma vez mais, de que ninguém que não ela
escutaria aquilo que se aprestava para lhe contar.
– Quer aprender a voar? – perguntou-lhe como quem oferece uma pastilha elástica.
– Desculpe?
Providence teve a sensação de que acabara de captar ondas do Além num velho rádio ou as
de um outro planeta onde só se falaria extraterrestre. Já não compreendia nada.
– Se quer partir hoje, é a única solução que lhe resta. Voar pelos seus próprios meios.
Algo nele se alterara.
– Quer que eu aprenda a pilotar um avião numa tarde? – perguntou ela apavorada.
– Quem é que falou em pilotar? Estou a falar de voar, apre!
Dizendo isto, certificou-se de que ninguém o observava, posicionou-se a noventa graus da
jovem rapariga e agitou discretamente as mãos como se estas fossem asas. Providence teria
achado o gesto ridículo, não fora o facto de as solas dos All Stars do pirata se terem elevado uns
bons cinco centímetros do chão. O homem deixou de remexer o ar, e os pés pousaram
lentamente.
– Como fez isso? – quis ela saber, estupefacta. Procurou com o olhar outras potenciais
testemunhas da cena, mas ninguém prestara atenção. O mundo seguia o seu curso, alheio ao
incrível acontecimento que acabara de se produzir ali mesmo.
Os iniciados teriam decerto reconhecido a levitação de Balducci, uma atuação de
ilusionismo de rua, visualmente muito surpreendente, mas mais falsa do que uma moeda de
três euros de chocolate.
– Tenha fé e vá consultar o Mestre, palavra de quem bebe rum! Para onde vai ao certo,
milady? – acrescentou ante a expressão atordoada da sua interlocutora.
A voz do chinês trouxe Providence de volta à realidade. Se é que se poderia chamar àquilo
realidade. Tudo era tão pouco credível.
– Hum… Marraquexe. Mas como fez você isso?
O homem ergueu os olhos para o céu e tremeu.
– Maldito Jack! Prevejo que o seu voo vá ser cancelado – declarou ele, seguro de si, como
que assaltado por uma visão. – Por todos os ossos do esqueleto de Rackham, o Terrível, o seu
voo é o AT643 da Royal Air Maroc, não é, grumete?
– Como é que sabe? – perguntou Providence, desconhecendo que havia já um minuto que,
atrás de si, num gigantesco quadro das partidas, as palavras cancelado/cancelled brilhavam a
vermelho diante da linha onde se lia o número do seu voo.
– Tenho, também eu, um dom ou outro. Sou mentalista. Se fosse você, hastearia a vela e
rumaria até Barbès sem esperar que o fantasma do Barba Ruiva se lançasse no meu encalço!
Nesse preciso momento, uma voz robótica anunciou pelos altifalantes que o voo AT643 da
Royal Air Maroc com destino a Marraquexe, inicialmente previsto para as seis e quarenta e
cinco da manhã, acabava de ser cancelado.
Incrível!, pensou Providence, pasmada com os poderes do homem de pijama antes de este
desaparecer na multidão, numa interpretação moderna, livre e cor de laranja de Onde está o
Wally?
Providence tinha oferecido a Zahera um pequeno computador portátil com ligação à
internet, para que a menina pudesse continuar a aprender coisas mesmo quando a jovem
francesa não se encontrasse presente. Providence dizia-lhe sempre:
– Quando voltar, quero que me contes coisas impressionantes. Coisas que nem eu conheça.
Ora, isso provocava um sorriso na menina, que logo se lançava em incríveis pesquisas, das
quais só emergia ao cabo de largas horas. Precisava de colmatar aqueles sete anos de pousio,
aqueles sete anos em que vegetara num hospital de província sem nada saber do mundo.
Assaltada por um desejo louco, imperioso e devastador de tudo descobrir acerca de tudo,
noites havia em que nem sequer dormia, sentada de pernas cruzadas e coberta pelos lençóis
para não acordar as outras pacientes com a luminosidade proveniente do ecrã. Zahera tornara-
se uma esponja sedenta de absorver todo o saber humano. Tinha a sensação de que tudo em
seu redor se interligava, até mesmo as coisas mais distantes, as mais improváveis, aquelas que
pareciam não ter qualquer relação entre si. Na verdade, poderíamos ligar tudo e desenhar uma
imensa rede de saber, um mapa do conhecimento humano, uma constelação, como a que lhe
decorava o teto sob a forma de estrelas fosforescentes. Ela podia, portanto, dizer tudo e o seu
contrário. Dizer, por exemplo, que era a descendente marroquina de Shakespeare. Dizer que o
escritor inglês estava na iminência de inventar o moonwalk no dia em que ela celebraria os seus
-399 anos. Encontrara, aliás, um meio de transcrever a sua idade negativa em velas num bolo
de aniversário, metendo-as todas ao contrário. Obtinha-se, então, contra todas as expectativas,
uma nave espacial prestes a descolar no céu ou uma medusa ladeando as costas do Magrebe
num verão quente.
Fora também assim que ela descobrira que as estrelas não vinham da China, que chinês
algum manufaturara o objeto celeste antes de o enviar para o espaço a fim de iluminar o céu e o
deserto à noite. Que uma estrela, segundo a Wikipédia, mais não era do que uma «bola de
plasma cujos diâmetro e densidade são tais que a região central atinge a temperatura necessária
ao desencadeamento de reações de fusão nuclear» e que Rachid era, portanto, um mentiroso,
que lhe oferecera uma simples contrafação. Sentia-se um pouco desiludida, mas como poderia
querer mal àquele homem que gostava tanto dela e que lhe desobstruía os brônquios ao longo
do dia, àquele homem a quem ela devia bem mais a sua vida do que ao seu próprio pai, àquele
homem que lhe quisera agradar com um pequeno seixo? Para não o melindrar, não lhe dissera
que sabia a verdade. Além disso, o objeto sempre vinha da China, um país longínquo e exótico,
cujo nome provocava já nela um certo deslumbramento. De um dia para o outro, deixara
inclusive de rezar por essa gente que em nada era responsável pela iluminação do deserto
marroquino à noite.
Em poucas semanas, Zahera tornara-se, no hospital, a mensageira do mundo exterior. As
restantes pacientes faziam-lhe uma série de perguntas acerca desse universo com o qual a
maior parte delas perdera o contacto desde que ali tinha posto os pés. A menina informava-as,
no decurso da sua convalescença, a respeito das estreias cinematográficas, dos mais recentes
produtos de beleza, dos últimos modelos de telemóveis, dos novos mexericos das estrelas.
Num piscar de olhos, Zahera passara a ser o centro das atenções. Transformara-se no novo
brinquedo. Portanto, contava tudo e, visto que sabia tudo acerca de tudo, polvilhava as
conversas com casos insólitos e picantes.
No regresso de Providence, propusera-lhe um teste:
– Pega em duas palavras sem qualquer relação aparente e introdu-las no Google. Vais ficar
surpreendida com o número de sites ou de artigos em que essas duas palavras aparecem juntas.
Ei-las!, exclamava ela orgulhosa qual aprendiz de ilusionismo que conseguiu efetuar o seu
primeiro passe de mágica. No ecrã do computador, mais de uma dezena de sites relacionava as
palavras «Hitler» e «amendoim», embora a pertinência de uma tal combinação fosse, para dizer
o menos, bizarra. A não ser que o segundo termo se referisse ao tamanho do coração do
primeiro…
– Há sempre ligação. Sempre.
Depois, a carteira voltava ao seu país para trabalhar um pouco. Os franceses não podiam
passar muito tempo sem as boas-novas que ela lhes deveria trazer. A contragosto, a menina
tinha de partilhar a sua amiga com uma centena de seres humanos. Portanto, para não pensar
na ausência de Providence, Zahera voltava a mergulhar nas ditas pesquisas, devorando tudo à
sua passagem. Não se deitava sem antes ter aprendido que em Jameos, nas ilhas Canárias, havia
um pequeno lago habitado por caranguejos albinos cegos. Minúsculos caranguejos, muito
sensíveis ao ruído, cuja existência fora ameaçada pela mania, entre os visitantes do local, de
lançar moedas ao lago. Que os pequenos porta-chaves da torre Eiffel tomados de assalto pelos
turistas chineses nas lojas parisienses eram fabricados… na China! Que, na África Negra, para
se dissuadir os caçadores-furtivos, se furavam os cornos dos rinocerontes com um furador e
neles se introduzia um veneno vermelho. Que em francês «passeio» é «trottoir» e em russo,
«trotoar», «catástrofe» é «catastrophe» e em russo, «katastrof», telefone se diz «teléphone» e em
russo, «telefon». Nesse caso, de que serviria o russo, se era quase igual ao francês? Que um
homem fora apunhalado 16 302 vezes sem que morresse (mas fora-o em palco, num teatro,
naturalmente!). Que os tecelões de tapetes persas e árabes introduziam voluntariamente um
erro nas suas obras a fim de romperem com o equilíbrio perfeito, visto que só Deus cria coisas
perfeitas.
Só Deus cria coisas perfeitas. E Providence. Porque Providence era perfeita, e Zahera queria
ser igual a ela quando crescesse. Bom, se lá chegasse. E eis que voltava a pensar na sua doença.
Por fim, na internet ou na vida real, tudo a devolvia à sua nuvem.
Providence não acreditava no que os seus olhos viam.
Ali, no ecrã de cinquenta polegadas da Samsung, pendurado na parede do terminal, um
jornalista maltratado por uma multidão furibunda balançava de um lado para o outro como se
se encontrasse em pleno mar revolto, agarrando-se ao pilar de iluminação para não cair. Uma
legenda a vermelho anunciava que a cena estava a ser transmitida em direto do átrio da gare de
Lyon, em Paris, onde todos os comboios haviam sido tomados de assalto. Atrás do pobre
apresentador, a mesma paisagem apocalítica que em Orly. A mesma turbamulta enlouquecida.
Toda a França parecia exposta àquele terrível tumulto com ligeiras semelhanças a um cenário
apocalítico.
Alguns segundos após o súbito desaparecimento do pirata chinês e do cancelamento, nesse
momento já confirmado, do seu voo, Providence encaminhara-se para o Aerobus com a ideia
de se dirigir ate à gare mais próxima e apanhar o primeiro comboio que partisse rumo a Sul.
Mais uma brilhante ideia que acabara de lhe explodir na cara qual balão de pastilha elástica.
Providence parou a Samsonite, a sua pequena ilha naquele oceano enraivecido. Se um avião por
ali tivesse passado nesse preciso momento, ter-se-ia posto em cima da dita mala e elevado os
braços no ar para fazer sinais de perigo. Contudo, nesse dia, Orly era o único local à face da
Terra sem aviões a sobrevoá-lo.
O cerco apertava-se em volta dela. Cada vez um pouco mais, como um trapo molhado que
encolhe ao sol. Nada de aviões, nada de carro, nem um comboio, uma condenação absoluta ao
imobilismo. Em Paris, só o metro e a rede ferroviária urbana pareciam estar a funcionar, mas,
até prova em contrário, nenhum deles fazia a ligação a Marraquexe.
No cais, um pé no aeroporto e outro no exterior, deixou que o pequeno autocarro que
acabara de chegar seguisse viagem sem entrar nele. De que lhe serviria ir até à gare se fosse para
se deparar com o mesmo pandemónio, a mesma loucura assassina que se vivia ali?
Pedir boleia? A bela mulher não teria tido qualquer dificuldade em encontrar um condutor
desejoso de a levar até ao fim do mundo. Porém, semelhante solução seria, de longe, demasiado
arriscada. Poderia dar de caras com um tarado ou um ex-diretor do Fundo Monetário
Internacional de férias nessas paragens.
A jovem mulher lembrou-se da Renault amarela dos Correios, que se encontrava numa
oficina havia uma semana, após um passeio bastante regado de um colega, no sentido tanto
figurado quanto literal, uma vez que a viatura acabara o trajeto enfiada numa boca de incêndio.
E esqueça-se, desde já, a bicicleta de carteiro.
Em suma, não restava grande coisa. A não ser os pés. Contudo, esse era de longe o meio
mais lento. Até no século XXI o homem continua bastante limitado em termos de transportes.
É preciso que um novo Leonardo da Vinci acorde! Tem muito com que se entreter!
Uma vez que o teletransporte ainda não fora inventado (o homem encontrava-se apenas no
estado embrionário da deportação e expulsão), Providence agarrou no telemóvel e digitou o
número do hospital. Zahera iria ficar bastante desiludida, isso, parecia-lhe certo. Nunca mais
voltaria a confiar nela. Mas, enfim, assim eram as reviravoltas da vida. Ora aí estava… ensinar-
lhe-ia uma nova palavra: «reviravolta.» Que lhe diria? Que chegaria um pouco mais tarde do
que o previsto? Mas quando, ao certo? Nem ela própria o sabia.
Providence detestava ser portadora de más notícias. Aliás, fora por isso mesmo que
escolhera ser carteira. Porque queria trazer boas-novas às pessoas. Porque queria ser a cegonha
que transporta a felicidade na sacola. Tinha vinte anos quando entrara ao serviço nos Correios,
a cabeça cheia de sonhos, mas a experiência ensinara-lhe que um carteiro, por mais otimista,
transporta também o seu rol de más notícias e de tristeza. Isso, porém, não desencorajara a
jovem mulher.
Ouviu um toque. Depois dois.
Providence pousou os olhos no chão. Ao lado da sua sandália, roçando-lhe no sexto dedo
do pé direito, encontrava-se um pedaço de papel. A pessoa que o deitara ao chão tinha-se
decerto servido dele para se assoar, mas ainda se distinguiam duas palavras impressas a tinta
preta e envoltas em ranho.

Mestre Supremo

Depois voltou a erguer os olhos e topou com aquele cartaz.


O terceiro toque soou no telemóvel de Providence e, antes que alguém respondesse, a
jovem mulher desligou. Era demasiado fácil baixar os braços, assim, sem mais. Talvez tivesse
tentado tudo. Mas não o impossível.
Foram, portanto, um prospeto e um simples cartaz publicitário que levaram Providence a
lançar-se de corpo e alma na mais louca aventura da sua vida.
O cartaz, esse, era um anúncio publicitário a uma grande Organização Não Governamental
especializada no apadrinhamento de crianças com o vírus da SIDA em África. Nele, podíamos
ver uma aldeia situada numa região remota do continente e povoada por crianças a quem
tinham desenhado asas de penas brancas com grandes pinceladas de Photoshop. O amor dá
asas, rezava o slogan.
A frase deu uma série de voltas no espírito da carteira, qual meia em pleno programa de
centrifugação. O amor dá asas. Com o passar do tempo, a expressão fora-se transformando
num cliché, mas a jovem mulher estava convencida de que era necessário levá-la à letra, de que
aquele anúncio lhe era destinado. O cartaz parecia dizer-lhe: «Providence, se pensares muito
em Zahera, o amor pode fazer com que te nasçam asas.»
Teria sido ela assaltada pela mesma insanidade inconsciente que Dédalo, o pai de Ícaro,
sentira no dia em que tiveram a ideia de fugir do labirinto do Minotauro colando penas aos
braços? Para fazer as vezes de cola, tinha na mala um pote de cera depilatória, mas e as plumas?
Deveria ela lançar-se sem mais delongas numa caça aos pombos pelas pistas alcatroadas de
Orly? E, depois, poderia ela comparar-se com um tipo que nunca existira, apesar de ter sido o
MacGyver da mitologia grega?
Não. Era ainda mais louca do que pensava, porque algo a levava a crer que não teria
necessidade de qualquer artifício para se elevar nos céus. Não precisaria de cartolina nem de
papier mâché. Estava convencida de que conseguiria lá chegar sem mais do que muita vontade
e agitando um pouco os braços, conforme vira aquele chinês de pijama cor de laranja fazer
alguns minutos antes.
Voar.
Era nela um sonho bastante recorrente. Bastava-lhe executar umas quantas braçadas de
bruços para descolar do solo e levantar voo. Nadava nos ares sobre cidades e rios qual pássaro,
sem peso. Porém, como o próprio nome indica, esse sonho não passava disso mesmo, de um
sonho. Depois, acordava e a gravidade da Terra fixava-a ao chão ao longo do resto do dia.
Providence tentava lembrar-se se algum destes sonhos havia sido a cores. Porque, quando tinha
a idade de Zahera, aprendera que os sonhos a cores que se tivesse às sextas-feiras à noite eram
premonitórios, pelo que viriam a acontecer na vida real. Mesmo a sério, como se costuma dizer.
Sim, aquilo, sonhara-o a cores. Contudo, também tinha sonhado tantas outras coisas a cores.
Que ganhara a lotaria, por exemplo. E continuava à espera que a Santa Casa lhe enviasse o
cheque… Fora no tempo da inocência, tudo isso. No tempo das cerejas. Enfim, no tempo dos
Calippo.
Providence, apesar de adulta, preservara um pouco da infância dentro de si, uma coisa a
que os adultos chamam «ingenuidade», e isso apesar das rudes bofetadas que a vida lhe
pregara. Voar. Era loucura acreditar em semelhante coisa, mas, afinal de contas, porque não?
Que é que a impedia de sonhar de olhos abertos? Nada a proibia de sonhar, era até gratuito.
Além disso, vira com os seus próprios olhos aquele chinês elevar-se uns quantos centímetros
no ar no meio daquele terminal sobrelotado.
Sim, era uma loucura, mas ela conseguira coisas bem mais complicadas e impossíveis ao
longo da vida. Por exemplo, adotar uma menina marroquina de sete anos com mucoviscidose,
sendo ela uma mulher solteira e com um salário de carteiro. Ou, pior ainda, de carteira.
Então, porque não acreditar num milagre?
Os juízes franceses só muito raramente apoiavam aquele género de processos, mas, por
sorte, ela tinha encontrado um advogado excecional que defendera a sua causa com brio.
Providence aprendera que, na vida, para realizarmos os nossos sonhos, basta que nos façamos
rodear de boas pessoas. Que nada é impossível quando o desejamos mais do que tudo e que o
destino nos coloca a pessoa certa no caminho.
Mais a mais, aprendera a andar antes de toda a gente, correra antes de toda a gente, nadara
antes de toda a gente. Por que motivo não seria ela capaz de voar antes de toda a gente,
deixando, de novo, os seus pais e pediatras boquiabertos? Talvez o sexto dedo no seu pé direito
tivesse essa função, a de lhe permitir voar. Talvez funcionasse como um pequeno leme. Porque,
aos trinta e cinco anos, ainda não encontrara uma utilidade para aquela engraçada
excrescência. Ora, nesta vida, tudo tem de ter forçosamente uma razão de ser. Ela não
acreditava no acaso. Aquele dedo que tinha a mais não lhe era necessário, mas fazia dela um ser
único naquele mundo.
Se, como sempre lhe haviam dito, o amor dava asas, então, por que diacho aquele imenso
amor que nutria por Zahera não lhas daria? Se, como Leila e Zahera acreditavam, no passado,
tínhamos sido peixes e gatos, talvez não fosse assim tão descabido pensar que também
havíamos sido pássaros. Se tínhamos sido animais de água e de terra, porque não teríamos
igualmente conhecido os éteres do ar?
Providence abanou a cabeça, como se, mediante aquele simples gesto, pudesse varrer de
uma vez por todas as ideias absurdas que lhe turvavam a mente. O cansaço estava, sem dúvida,
a pregar-lhe uma partida. Não era possível que uma mulher equilibrada e sã, de trinta e cinco
anos, sem um único cabelo loiro9, acreditasse em semelhantes inépcias.
Porém, nunca se perdoaria caso fosse verdade e ela tivesse desprezado a possibilidade.
Aquele dia insólito era um sinal. O encontro com o pirata do ar fora outro. Sentiu-se invadida
por uma nova vaga de esperança. De qualquer forma, naquele momento, não tinha já nada a
perder. O pior acontecera. O seu voo fora cancelado. Nada mais a retinha ali.
Sorriu. Dir-se-ia que esperava desde o início esse mesmo desfecho, que o seu voo se
esfumasse, para que ficasse em situação de provar a si própria que estava disposta a tudo para ir
buscar a filha. Até ao improvável.
Confiante, entrou no Aerobus cujas portas acabavam de se abrir, rezando para que o
francês do Mestre Bué fosse mais contemporâneo do que o do seu distribuidor de panfletos.

9 Longe de mim a ideia de me associar a esse ignóbil movimento de mistificação mundial que tende a difundir a ideia de que as
loiras são menos inteligentes do que as morenas. (N. do A.)
– É verdade que tudo teria sido bem mais simples com aviões telecomandados – resumiu o
cabeleireiro.
– Ou nuvens telecomandadas – acrescentei. – Carregando num simples botão, a Providence
teria conseguido fazer desaparecer do céu aquela terrível besta negra, e os aviões teriam podido
descolar. Por seu turno, controlando uma nuvem telecomandada, a Zahera teria conseguido
fazer com que a doença lhe saísse do peito para poder respirar. Sim, a vida seria bem mais
simples, e as pessoas bem mais felizes.
– Não iria tão longe, mas a verdade é que, mesmo no mundo dos penteados, as nuvens
telecomandadas seriam de grande utilidade. Ora veja, por exemplo, que as minhas clientes
nunca vêm quando chove. Encaracola-se-lhes o cabelo. Chegadas a casa, veem o meu brushing
transformado num campo de serapilheira. Não, de facto, isso aplica-se a toda a gente. Mostre-
me um agricultor que não ficasse encantado com a ideia de poder controlar os elementos em
cima do seu terreno. Se pensarmos nisso, deve ser imensa a quantidade de pessoas que, nos
quatro cantos do mundo, sonham ao mesmo tempo com nuvens telecomandadas…
O fisioterapeuta chegara um pouco mais cedo do que de costume.
Cumprimentara a menina e sentara-se na cama ao lado dela. Pela primeira vez em dois
anos, vislumbrara um laivo de tristeza no seu olhar, aquela mesma tristeza que a habitava antes
de o destino lhe ter posto Providence no caminho. A era pré-Providence, como gostava de se
lhe referir. Era preciso reconhecer que aquela francesa fizera um bem louco a Zahera. E
também lho fizera a ele, aliás. Passava mais amiúde por aquele andar sempre que a jovem
mulher vinha visitar a menina, aquando das suas frequentes estadas em Marraquexe. Tratava-
se de uma mulher esplêndida. E tão simpática… O que lhe agradava, mais do que tudo isso, era
a forma como abria as portas do mundo à menina, todos aqueles presentes que lhe trazia,
aquele amor desmesurado, aquela gentileza. Nunca vira alguém percorrer tantos quilómetros
só para visitar e dar algumas horas de felicidade a uma criança doente, que, mais a mais, não
era sua. Como naquele dia em que a jovem francesa chegara com um pacote de estrelas
fosforescentes nas mãos.
A astronomia é coisa de rapazes; as meninas são mais terra a terra, pensara Rachid, o
fisioterapeuta. Mas sabia que em França se esforçavam por esbater as diferenças entre os dois
sexos porque era mais justo. Além disso, Providence nunca poderia interditar fosse o que fosse
com base apenas numa questão de género. Isso teria sido descabido vindo de uma mulher que
preferia ser tratada por carteiro a carteira.
Vendo o seu presente, Zahera saltara de alegria e por pouco não batera com a cabeça no
teto ainda despido de estrelas.
– Tenho tanta vontade de ir lá acima – dissera a pequena marroquina, apontando para os
pedaços de plástico fosforescente que Providence colava, um por um, montada num
banquinho e seguindo as suas instruções precisas.
– Assim, já lá estarás um pouco, minha querida.
– Apanharei um foguetão em Paris. Essa estrela aí é um pouco mais à direita!!!
– Não há foguetões em Paris – respondera Providence, movendo a estrela alguns
centímetros. – Enfim, não por agora. Mas pode ser que isso mude se fores viver para lá…
Lançara a ideia como se não fosse nada de especial e espiara a reação da menina pelo canto
do olho enquanto as suas mãos trémulas se esforçavam por colar o pedaço de plástico e nada
deixar transparecer. O rosto de Zahera iluminara-se qual estrela fosforescente em plena noite.
– Oh, sim! – gritara ela. – Verdade, verdadinha?
– Verdade, verdadinha – respondera a francesa, aliviada por a pequena aceitar a sua
proposta com tamanha alegria.
A menina lançara-se às pernas da carteira e abraçara-as com força, lembrando um jogador
de râguebi que se apresta a fazer uma placagem a um adversário em campo.
– Ainda fazes com que caia!
Rachid sorrira. Elas eram tão cúmplices… Dir-se-ia que se tinham encontrado. Adotaram-
se uma à outra, estas duas, pensara ele, longe de suspeitar que a francesa acabaria por tomar
oficialmente Zahera sob a sua proteção.
– A que horas se põe o sol hoje, senhora astrónoma? – quisera saber Providence enquanto
descia do banco e assentava os pés em terra firme.
Zahera consultara um caderninho que guardava debaixo da almofada como se de um
tesouro se tratasse.
– Às 19h37.
– Bom, então, dentro de alguns minutos, verás algo que nunca viste.
E, logo a seguir, mal as trevas engoliram o dormitório, as estrelas puseram-se a brilhar
como que por magia. Como se aquele teto de cimento acinzentado tivesse derretido qual
chocolate ao sol e revelado ante os olhos maravilhados da menina o belo céu estrelado de
Marrocos.
Hoje, Providence levar-lhes-ia a menina e eles ficariam todos tristes ao verem Zahera partir.
Vivia ali desde que nascera. Fazia parte daquela família. Contudo, era também com imenso
prazer que a veriam atravessar aquela ala pela última vez e calcar com os próprios pés o
caminho de pedras que conduzia à estrada. Estariam todos à janela quando ela se voltasse para
trás antes de entrar na ambulância que as levaria até ao aeroporto.
Rachid e Leila sabiam que ela seria acompanhada em França pelos melhores médicos.
Providence tratara de o conseguir. Não havia outra cura para a mucoviscidose que não o
transplante pulmonar, mas os avanços científicos e tecnológicos tinham permitido a melhoria
da qualidade de vida dos pacientes. Além disso, havia que reconhecer que lá, no outro lado do
Mediterrâneo, a longevidade dos doentes era um pouco maior.
Rachid pousou a mão na de Zahera.
– Ela não ligou, pois não? – perguntou-lhe.
– Não. Ela esqueceu-se de mim. São onze horas, sabias? O avião deveria chegar a
Marraquexe esta manhã às sete e um quarto, hora local. O táxi não leva, nem pouco mais ou
menos, quatro horas para vir do aeroporto. Até uma carroça puxada a burros chegaria mais
depressa.
Não se podia confiar numa mamã telecomandada. Haveria sempre um momento em que
ela deixaria de funcionar, em que as pilhas se acabariam, em que algo se estragaria no
mecanismo, como acontece com todos os brinquedos que deslumbram as crianças no Natal e
acabam no caixote de lixo na véspera do Ano Novo. A sua mamã não voltaria mais.
A menina tentou acalmar uma crise de nuvem iminente acariciando um pequeno
dromedário de peluche. Naqueles últimos tempos, dava dó de ver. Estava de uma alvura
cadavérica. Tão branca que parecia azul. Porque se lhe viam, através da pele fina, longos veios
semelhantes aos das colunas coríntias de mármore. Perdera também muito peso, sendo que a
caixa torácica duplicara em volume. O seu coraçãozinho consumia-se. Morrer ou ir para
França. Zahera vestira inclusive a sua t-shirt I Love Paris expressamente para a ocasião, a sua t-
shirt favorita. Os dedos cerraram-se em volta do dromedário.
– Não acredito nisso, Zahera. Ela teve, de certeza, algum problema. Como poderia
esquecer-se de ti? Sabes bem que os pilotos e os controladores aéreos passam a vida em greve.
Acham que não são bem pagos ou que não têm boas condições de trabalho. Que se diria de
nós?
– Os Airbus A320 da Royal Air Maroc deveriam ser telecomandados, como as mamãs.
– Toda a gente sabe que o sonho de qualquer menina é receber no Natal um Airbus A320
telecomandado – troçou gentilmente Rachid.
– Mas, para mim, o Natal é hoje, em pleno mês de agos…
A menina não teve tempo de terminar a frase. Tudo aquilo era demasiado para os frágeis
ombros de uma criança tão jovem. Depositara todas as suas esperanças naquele dia. Portanto,
alimentada pelo stress, a tristeza e a ira, a nuvem que a asfixiava pouco a pouco inchou-lhe de
súbito o peito, qual leite a ferver que se derrama de um púcaro, e queimou-lhe os pulmões. Um
violento ataque de tosse sacudiu-a, manchando-lhe os lençóis brancos de compota de
morangos.
– Zahera! – gritou Rachid.
De seguida, posicionou-a de lado e começou a massajá-la energicamente para que
expulsasse aqueles grandes pedaços de cotão, aqueles grandes pedaços de nuvem que lhe
obstruíam as vias respiratórias. Uma tempestade acabara de nascer no mais fundo do seu
coração e arrasava tudo à sua passagem, enchendo a ala hospitalar de assombro. Como sempre
que aquilo acontecia, toda a gente se calou. Os olhos negros encheram-se de temor e de tristeza.
Tantas vezes julgaram que a perderiam. Aquela menina era o barómetro de esperança, a
pequena luz, a força, a chama daquelas mulheres, e eis que se apagava como uma vela ao vento
árido do deserto. Uma vida não pesa nada. Nem mesmo à face desta Terra sujeita à lei da
gravidade. Vivemos algum tempo até que a doença nos venha procurar e nos obrigue a escalar
com ela rumo a um teto de estrelas.
De plástico fosforescente.
Made in China.
No autocarro sem condutor que a levava até ao comboio urbano, Providence foi tomando,
pouco a pouco, consciência do que estava a viver. Porque, quanto mais palpáveis os seus atos se
tornavam, mais ela chocava contra aquela realidade louca qual borboleta perto de uma
lâmpada. Tinha a sensação de que fora projetada para um episódio d’A Quinta Dimensão e que,
de repente, já nada lhe era impossível. Acabara de se libertar das leis da física e da razão como
numa banda desenhada da Marvel, convencida de que, se alguém podia realizar a proeza de
voar, esse alguém era ela.
Noutras circunstâncias, teria julgado aquela sua postura absurda e dado uma brusca meia-
volta para se reunir aos seus pares, que aguardavam pacientemente uma resolução para o
problema, como fazem os adultos normais e equilibrados, no marasmo em que se encontrava o
gigantesco formigueiro de Orly. No entanto, nessa manhã, tudo se tornara possível. Estava a
caminho de um bairro popular de Paris para fazer um curso ultra-intensivo de voo, ministrado
por um mestre chinês. E aquilo parecia-lhe a coisa mais normal do mundo.
Se, naquele momento, se tivesse sentado diante dela um homem com uma tromba de
elefante a fazer as vezes de nariz, Providence não teria ficado minimamente espantada. Aliás,
foi um pouco o que aconteceu três paragens adiante quando um indivíduo de turbante, alto,
seco e nodoso como uma árvore, o rosto moreno atravessado por um gigantesco bigode, depôs
com mil cuidados sobre o banco a seu lado uma prancha quadrada de madeira cheia de pregos
e nela se sentou com a naturalidade com que se sentaria em cima de uma folha de jornal para
não sujar as calças. Abriu um livro, cujo título se estendia em letras azuis sobre um fundo de
capa amarelo fluorescente, e desatou a rir às gargalhadas, expondo duas grandes fileiras de
dentes brancos e abanando os piercings em todas as direções.
Eis-me sentada ao lado de um faquir e a caminho do consultório de um grande mestre
espiritual chinês para aprender a voar que nem um pássaro, pensou ela. Nada de mais
extraordinário me poderá acontecer.
Enganava-se.
Eis que Providence se encontrava perante o homem mais poderoso do mundo.
O homem que sabia o segredo dos pássaros. O homem que lhe iria ensinar a voar acima das
nuvens.
O Mestre Supremo Bué. O Mestre e 90 (embora a jovem mulher não tenha conseguido
avaliar a justeza de tal título, uma vez que ele se encontrava sentado). Um senegalês
embrulhado numa jelaba verde e com um gorro esburacado e imundo do Paris Saint-Germain
na cabeça. O seu trono: uma cadeira de campismo barata com um espaldar de juta
semiesfiapado. O seu cetro: uma caneta Bic de quatro cores.
– O que é? – perguntou o homem, intrigado e melindrado com a atitude daquela mulher
que o perscrutava sem dizer palavra desde que entrara no gabinete.
– É que… não o imaginava assim.
O homem soltou uma gargalhada sonora. Um riso que lembrava uma mola enferrujada a
saltar de um colchão ou uma vigorosa serradela.
– Ficou impressionada?
– Pode dizer-se que sim, pois…
– Aposto que pensava que eu era chinês!
– Também há isso… – reconheceu Providence, enervada.
– Eu subcontrato.
– Ah, o senhor subcontrata – repetiu, irritada.
– Sim, subcontrato a mão de obra. Onde é que lhe deram o panfleto?
– Em Orly.
– Ah, então conheceu o Tchang! Não se chama mesmo assim. O nome dele é
impronunciável! Por isso, trato-o por Tchang, como no Tintim. Um rapaz impecável! É um
bom trabalhador, apesar de falar de forma bastante bizarra. Aprendeu a nossa língua com a
versão francesa dos Piratas das Caraíbas. Era o que tinha à mão. Isso deixa as suas marcas.
Mas, enfim, há que ser compreensivo. A verdade é que só está em França há três semanas. A
senhora consegue imaginar-se a aprender chinês em três semanas?
Não, Providence não se imaginava a aprender a língua de Confúcio em tão pouco tempo.
Sobretudo, a ver blockbusters de cinema americano. Tendo um Star Wars como professor de
mandarim, só poderia aspirar a alcançar em três semanas o nível de Chewbacca. E ainda
assim… Bem vistas as coisas, Tchang deveria ser um génio. Um génio, talvez, mas com um
gosto para vestuário duvidoso e uma forte tendência para a mentira. A jovem mulher tinha a
desagradável sensação de ter sido vigarizada em toda a linha. Tchang mentira-lhe
descaradamente. De facto, a menos que tivesse barrado o rosto e os braços com graxa preta,
Bué era, sem sombra de dúvida, um feiticeiro africano.
– E esse nome, Bué… – disse a carteira, que exigia uma explicação.
– Chiuuu! Não pronuncie o meu nome, ó infeliz! As paredes têm ouvidos. Eu sou muito
invejado, sabia? O poder atrai os seres mais desprezíveis que se possa imaginar. Este nome
chinês é uma questão de marketing. Não fique zangada. Tente compreender. Nos dias que
correm, já ninguém se fia nos feiticeiros africanos. A profissão foi descredibilizada por
charlatães da pior espécie e continuamos a pagá-lo caro. Responda-me com toda a franqueza.
Teria vindo se no panfleto publicitário estivesse professor Bando?
– Claro que não! – retorquiu a jovem mulher, categórica.
A sensação de que fora vigarizada alcançava níveis himalaicos a cada segundo que passava.
– Está a ver? Consegui despertar-lhe interesse. Hoje em dia, toda a gente deposita uma
confiança cega nos chineses, com aquele seu arzinho de quem não faz mal a uma mosca e os
sorrisos constantes. Mas tudo isso é um golpe maçónico. Daqui a uns anos, vai ver… Quando a
moda tiver passado, mais ninguém quererá nada com eles. O mundo dá muitas voltas. E os
feiticeiros africanos voltarão a ser consultados! Lembre-se do que lhe digo. Enquanto isso, eu
vou na onda.
Apontou para um diploma pendurado na parede atrás de si e no qual o presidente da
República certificava que o senhor Bando tinha concluído com excelência as provas de
admissão ao cargo de Mestre Supremo Bué da Humilde Casta dos Louva-o-tricô.
– Um garante de qualidade e confiança.
Providence suspirou, resignada. Era impossível lutar.
– Sabe, tanto me faz que o senhor seja chinês, senegalês ou monegasco, desde que encontre
uma solução para o meu problema. Já perdi demasiado tempo na viagem de metro até aqui. Se
faz favor, estou com pressa.
O homem ergueu a mão.
– Eh lá, minha senhora – exclamou como teria feito para acalmar uma égua selvagem, coisa
que até aí nunca tivera de fazer porque a ocasião nunca se havia apresentado. – Para já, preciso
que se acalme um pouco. Depois, logo me dirá em que lhe poderei ser útil.
– Eu…
– Chiuuu! Para já, presentemente, vai acalmar-se. Aproveitarei para almoçar.
O feiticeiro tirou de uma geleira pousada aos seus pés uma sanduíche embrulhada em papel
de celofane e um iogurte de framboesa do Lidl. O homem mais poderoso do mundo comia
sandes com todo o aspeto de terem sido compradas numa estação de serviço e iogurtes em
promoção.
Providence respirou fundo. Bem vistas as coisas, uma pausa não lhe faria mal. Desligar a
mente das preocupações por alguns segundos. Decidiu confiar no adepto do Paris Saint-
Germain que se encontrava diante de si. Mais a mais, a voz dele e a sua expressão tinham
qualquer coisa de apaziguador. Era bom entregar-se nas mãos de alguém, por uma vez na vida!
Não pensar em nada. Ser um mero executante. Providence mergulhou, portanto, na
contemplação silenciosa das suas unhas, cujo verniz vermelho estava a escamar.
– Bom – declarou ele, uns minutos depois, mal terminou de limpar a boca a um pedaço de
papel de cozinha. – Sou todo ouvidos.
– Ora bem, eu queria uma coisa impossível.
– É mulher, logo, isso parece-me normal.
Providence preferiu não refutar aquele comentário machista e prometeu permanecer zen
durante todo o encontro.
– Gostaria de aprender a voar.
– Há escolas para isso.
– Não estou a falar de aprender a pilotar um avião. Quero voar assim.
A jovem mulher fez uns gestos largos com os braços, como se estivesse a arejar as axilas.
– Quer aprender a voar fazendo gestos largos como se estivesse a arejar as axilas.
– É isso mesmo – retorquiu Providence.
– Não há problema.
– Ah, bom… O meu pedido não o espanta?
– Um pássaro que nasceu numa gaiola pensa que voar é uma doença.
– Não vejo a relação.
– E não há qualquer relação. Gosto de fazer citações, só pelo prazer. Esta é do Alejandro
Jodorowsky.
– Certo. Portanto… no que diz respeito à minha questão…
– Podemos começar presentemente na próxima semana.
– Presentemente ou na próxima semana?
– Na próxima semana.
– Ficar-lhe-ia muito grata se parasse de dizer «presentemente» quando quer dizer «na
próxima semana». É uma maçada e enganador! Consulte a sua coisa aí e diga-me se não
podemos fazer isto «presentemente».
O homem consultou a agenda em pele para a qual a cliente apontara e cujas colunas se
encontravam em branco até 2043.
– De momento, estou cheio de trabalho – declarou ele, para grande surpresa de Providence.
– A sua agenda está vazia!
– O vazio e o cheio são noções relativas e subjetivas.
– Não posso esperar tanto tempo – retorquiu a carteira, fazendo a sua careta alarmada
número quatro, a de último recurso.
– Então, podemos começar na sexta-feira. Depois, continuará a vir sempre às sextas. Assim
está melhor?
– Em abono da verdade, pensei que me pudesse ensinar a voar numa hora, tudo de uma só
vez. Aqui, agora, presentemente, como o senhor diz.
– Isso vai ser difícil.
– Sabe porque é que está bom tempo em Marrocos?
– Não.
– Porque uma menina engoliu todas as nuvens. A ponto de adoecer.
Em dois minutos e trinta frases, a jovem mulher pôs o africano ao corrente. O tempo que
passava, Zahera, a nuvem que ela engolira, a compota de morangos, aquela ignóbil doença, a
sua promessa.
– Aprender a voar numa hora – repetiu o homem, com uma expressão pensativa, mal
Providence terminou o seu relato.
– Por favor.
– Vou ver o que posso fazer, mas tire-me essa careta alarmada número quatro. Essas coisas
não pegam comigo. Sou feiticeiro. Bom, vou ajudá-la. Vou subcontratar esta questão.
– Tem essa mania, você!
– Assim vai o nosso mundo…
– Então, sempre vou aprender a voar?
– Foi o que acabei de lhe dizer.
A jovem mulher não queria acreditar nos seus ouvidos. Teria de haver uma rasteira algures.
Tudo aquilo lhe parecia demasiado bonito, demasiado fácil.
– Apenas uma pequena curiosidade. Se é capaz de ensinar as pessoas a voarem, porque é
que não se vê assim tanta gente quanto isso pelos céus?
– Porque nem todas as pessoas têm capacidades para tal. Aliás, muito poucos humanos
podem aspirar a voar. Bom, quase ninguém. Na verdade, nenhum.
– Nenhum?
– Bem, conheço um – retorquiu ele, após uma hesitação de três segundos.
– Está a dizer-me que só conseguiu ensinar uma pessoa a voar?
– Para ser mais preciso, digamos que ensinei uma série de pacientes (o termo divertiu
Providence), mas só consegui que um voasse.
Havia arrependimento e nostalgia na sua voz.
– Então, o Tchang é o único homem no mundo que sabe voar – concluiu a jovem mulher.
– O Tchang? Mas o Tchang não sabe voar – corrigiu o homem, intrigado.
– Vi-o fazê-lo no aeroporto, vi com estes olhos que a terra há de comer. Flutuou acima do
chão.
– Ah, isso! Sim, efetivamente, o Tchang sabe levitar, mas não voar. É que há uma grande
diferença entre elevarmo-nos uns quantos milímetros e nadarmos entre as nuvens.
– Peço mil desculpas pela minha ignorância! Ainda há alguns segundos, acreditava
piamente que a gravidade condenava o homem a permanecer pregado ao chão, e eis que agora
descubro que há quem levite e quem voe!
– Antes de sabermos as coisas, ignoramo-las.
– Que grande lapalissada! E, se não for indiscrição, que é feito do seu aluno?
– O Oscar? Lavava as janelas do arranha-céus mais alto do mundo, no Dubai, até ter sido…
atropelado.
Providence sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.
– Sinto muito. Enfim, o que mais me espanta é que, sabendo ele voar que nem um pássaro,
a sua única ambição tenha sido a de limpar janelas.
– Está a ser um pouco dura com ele. Cada qual lida como sabe com os poderes que tem.
Além disso, há que escondê-los, na medida do possível. Olhe para mim, sou o homem mais
poderoso do mundo e faço tudo para que isso não se note.
– E consegue-o admiravelmente bem!
– Obrigado. A esta hora, poderia estar a saborear um Cuba Libre no meu iate, nas
Seychelles, com os pés para o ar, mas escolhi consagrar a minha vida aos outros, a tentar
solucionar-lhes os problemas (a jovem mulher quase ouvia Tchang a gritar probleeemas no seu
fato-macaco fluorescente). Procuro ajudar as pessoas a fazerem sobressair o melhor de si. Eis o
motivo pelo qual estou aqui, em Barbès, num apartamentozinho remeloso, sem ar
condicionado, à procura da melhor solução para o seu problema, porque não conseguiria
dormir enquanto não a fizesse feliz…
– … Fossem todos os homens como o senhor!
– Não nos devemos vangloriar do nosso poder, mas antes utilizá-lo para uma causa nobre.
É um meio, não um fim. Ora, para mim, lavar janelas no Dubai é uma causa nobre. O Oscar era
bom rapaz.
O homem meditou por alguns segundos. Tirou o gorro do Paris Saint-Germain e limpou a
cara. Providence perguntou-se por que motivo tantos africanos andariam com gorros de lã em
pleno verão, mais a mais, num apartamento sem ar condicionado. Um verdadeiro forno. Ela
teria arrancado a t-shirt e as calças de ganga e mergulhado numa banheira repleta de cubos de
gelo.
– Voar como um pássaro – continuou o feiticeiro, de volta à vida. – A fantasia do homem
desde que é homem. Somos um animal quase perfeito. Andamos, corremos, nadamos,
rastejamos, temos quase todas as competências dos outros animais. Só nos falta a capacidade de
voarmos pelos nossos próprios meios, mas temos os ossos demasiado pesados e faltam-nos
asas. Agarramo-nos muitas vezes de mais às coisas terra a terra e não conseguimos libertar-nos
das amarras que nos prendem ao chão e levantar voo. O homem já alcançou coisas
maravilhosas. Fala, ri, constrói impérios, adapta-se a todos os ambientes, acredita em Deus,
grava filmes pornográficos homossexuais, joga Scrabble e come com pauzinhos. Que outro
animal, até o mais inteligente, se pode gabar de fazer tanto? O homem também voa nas nuvens.
Faz batota, é verdade, mas voa. Nos aviões, nos aeróstatos, nos dirigíveis. Porém, não voa pelos
seus próprios meios. E talvez seja essa a única coisa que lhe falta, a única coisa que ele não sabe
fazer. Portanto, não está contente. Sente-se frustrado. Faz birra e bate com o pé qual criança a
quem não se ofereceu o brinquedo que exigia. A sua história lembra-me um pouco aquelas
anedotas que os miúdos contam uns aos outros. Era uma vez um inglês, um espanhol, um
alemão e um francês, que… Ora bem, aqui a história é de uma francesa, um senegalês e uma
marroquina.
– Não é que o queira apressar, mas seria possível começar a ensinar-me a voar? – cortou a
jovem mulher.
O homem sorriu.
– Já comecei a ensiná-la.
– Desculpe?
– Ensiná-la, já comecei a ensiná-la. Nada. Este diálogo lembrou-me uma cena de um filme.
O Karaté Kid, julgo eu. Em suma, a aula já começou. Nuns quantos minutos, avançou bem
mais do que possa imaginar. Vi quem você era de facto. Ora, não podemos aprender a pilotar
um avião de caça, sem antes sabermos arrastar um carrinho de mão.
Por vezes, as imagens do homem assemelhavam-se a uma mensagem codificada. Teria ele
sido um espião durante a guerra? Mas de que guerra?
– Podia ser mais claro? Não estou a compreender nada de nada.
– Queria apenas dizer que a senhora já tem tudo para poder voar. Só lhe falta uma coisa:
aprender a canalizar a sua energia, a concentrar a sua força no único objetivo de voar. Não se
dispersar e não gastar em vão esse fluído raro que nos corre nas veias. Vê-se que é uma mulher
intensa, que vive a vida a mil à hora. Porém, por vezes, há que saber perder tempo para ganhá-
lo… Quanto ao resto, tem tudo o que é preciso. Como diria o meu outro distribuidor de
panfletos, também ele chinês, o Bruce Lee (sim, é verdade, nesse dia, estava com pouca
imaginação): «Você voal ao sétimo céu se você tel muitos olgasmos de amol no colação.»
– Olgasmos de amol – repetiu a jovem mulher, sem ousar perguntar com que género de
filmes aprendera o recém-chegado a língua de Molière.
– Olgasmos de amol – repetiu o homem, batendo no peito. – Amor. Ele troca os «r» pelos
«l». Esse só cá está há três dias.
– Ah…
– E vejo que o seu coração transborda.
– De quê?
– De amor.
– Ah.
– Julgo que lhe ensinei já tudo o que poderia ensinar. Quanto ao resto, aprenderá no
mosteiro.
Providence sobressaltou-se.
– No mosteiro?
Impassível, o Mestre Bué abriu uma gaveta da secretária e retirou um bloco de folhas
brancas timbradas.
– Sim. Quer aprender a voar numa hora, certo?
– Hum… Sim.
– Bom, vou, portanto, prescrever-lhe um curso ultra-intensivo de meditação num templo
tibetano registado. Dar-lhes-á isto da minha parte.
Garatujou duas ou três palavras com a ponta azul da sua Bic de quatro cores e assinou.
Providence não podia crer no que os seus olhos viam. O homem estava a passar uma receita. O
bruxo sino-africano de Barbès tomava-se por um médico.
– O senhor está doido! – exclamou ela, mal compreendeu que o homem a queria mandar
para um templo tibetano. – Então quer que eu vá para a China quando todos os aviões estão
colados ao chão? A menos que estivesse a pensar em mandar-me a voar até lá. Se for esse o
caso, mais vale pôr-me já a caminho de Marraquexe.
Levantou-se de um salto e procurou no bolso uma nota de dez euros para lha atirar à cara.
Era o que ele merecia por a ter feito perder o seu tempo e a fazer sonhar com coisas
impossíveis. E estava cheio de sorte por ela não chamar a polícia.
– O senhor é um parasita, vive às custas dos outros e só lhes dá falsas esperanças! Não passa
de um…
– De um…?
– De um charlatão africano… que se julga um charlatão chinês, ainda por cima barato!
– A senhora tem muito a aprender em matéria de paciência e calma. Duvido que este curso
ultra-intensivo lhe sirva de grande coisa, sua dona pulga saltitante. Mas, se quer saber, vejo em
si uma poderosa capacidade extrassensorial. A senhora poderia vir a ser a segunda pessoa que
eu conseguiria pôr a voar e a única viva, uma vez que o Oscar já não se encontra entre nós.
Sinto esse poder em si. Só não o faz já porque nunca tentou voar antes, é isso.
– Mais uma deixa de um filme de kung-fu de série B?
– Não, isto é da minha lavra.
– Se estou a compreender bem, o senhor quer mandar-me para um templo tibetano na
China, é isso?
– Quem é que lhe falou de um templo tibetano na China? Além disso, o Tibete já não é na
China. Ou nunca o foi. Não sei, não percebo nada dessas histórias de chineses.
– Na China, no Japão ou noutro ponto qualquer da Ásia, tanto me faz. Já lhe disse que hoje
nenhum avião vai descolar!
– Não tem problema. Apanha o Intercidades.
– Pois, é claro! – exclamou Providence teatralmente, batendo no rosto com a palma da
mão. – Que idiota! Não há qualquer problema. Basta apanhar o Intercidades. Diga-me lá, está a
falar a sério? Quer que eu vá até à China num comboio da CP?
– Acabei de lhe dizer que o templo não é na China.
– Não. Disse-me que o TIBETE não era na China.
– Não. Antes disse-lhe: Quem é que lhe falou de um templo tibetano na China?
– Certo. Stop! Estou apenas a afirmar que ir à China está fora de questão.
– E Versalhes é na China?
– Vá-se lixar! Não vejo qual a relação – respondeu Providence, que estava enervadíssima e
mais perdida do que Louis de Funès num episódio de Star Wars.
– A relação é que você irá até Versalhes.
– Quando?
– Mal tenha terminado esta conversa.
– E que irei eu fazer a Versalhes?
– Irá até ao templo de Versalhes.
– Está, decerto, a referir-se ao palácio de Versalhes.
– Convinha que prestasse um pouco mais de atenção… Não, refiro-me ao templo tibetano
da Humilde Casta dos Louva-o-tricô. É em Versalhes.
– Ah, sim. Daqueles que tricotam – declarou a carteira, irónica.
– Não se pode dizer que eu não tenha tentado. Se prestar atenção a tudo o que lhe for dito,
coisa de que muito duvido, antes das três da tarde, voará que nem um pássaro. Esta noite, tal
como prometeu, poderá ter a sua filha nos braços.
Atordoada, a jovem mulher pegou no cartão de visita que o feiticeiro lhe estendia. Nele, o
homem inscrevera uma morada e uma estação de comboios.
– São vinte e três euros. Não aceitamos multibanco.
– Vinte e três euros? Mas isso é o que custa uma consulta médica – exclamou Providence
sem tirar os olhos do cartão. Um templo tibetano em Versalhes?
Custava-lhe a acreditar.
– Ainda por cima, será reembolsada pela Segurança Social – acrescentou o verdadeiramente
falso chinês.
Mal Providence se sentou na composição que a conduziria ao destino mais exótico, senão o
mais louco da sua vida, relembrou as palavras do Mestre Bué: «A sua história lembra-me um
pouco aquelas anedotas dos miúdos. É a história de uma francesa, um senegalês e uma
marroquina…»
Tinha razão; a sua história começara como uma piada, mas o fim estava longe de o ser.
Porque Zahera morria.
SEGUNDA PARTE

Quando não estão a rezar, os monges tibetanos


ouvem Julio Iglesias
Situação: templo tibetano, Versalhes (França)
Quis-ó-metro: 2087 quilómetros

Em 1997, uma dezena de monges da Humilde Casta dos Louva-o-tricô havia sido expulsa
do Tibete após ter sido surpreendida a planear a abertura de uma fábrica da Ferrari no seu
templo. Inspirados no best-seller da época O Monge que Vendeu o seu Ferrari, tinham decidido
fazer o contrário do protagonista da obra e lançar-se na construção automóvel a grande escala.
Os monges que quiseram voltar a comprar o Ferrari fora uma das parangonas dos jornais locais.
Eis como, repudiados pela sua elevação espiritual, haviam aterrado em França, na região
parisiense, com o firme intuito de se lançarem no comércio. Estimulados pela tradição monacal
francesa, rapidamente abandonaram a ideia de fabricarem automóveis desportivos de luxo
vermelhos para se lançarem na confeção de roupas à base de queijo, uma nova tendência
depois dos sapatos de papoila. Assim, em poucos anos, o pequeno templo budista de Versalhes
tornou-se um dos negócios mais prósperos da região. Contudo, naqueles últimos tempos, a
crise afetara grandemente o seu setor, apesar de lhes caber a eles o monopólio. Naquele ano, o
seu único contrato resumira-se a fornecer fatos de treino de roquefort à equipa olímpica de
lançadores de caroços de cereja (uma nova modalidade engendrada pelo Comité Nacional
Olímpico após a sobreprodução de ginjas de 2013). Enviara-se o excedente (de roupas, não de
cerejas) a Fidel Castro, o homem que elevara o jogging em licra a um modelo de bom gosto e
elegância.
Mal o comboio a depôs no destino, Providence apercebeu-se de que havia tantos aspetos
em comum entre Orly e aquele templo tibetano quanto entre um formigueiro e um cemitério.
Sentiu-se subitamente invadida por uma enorme paz. Acabara de entrar numa bolha de
tranquilidade. O tempo parecia ter parado naquela parte do mundo.
Se se tivesse efetivamente instalado na cidade real, o templo da Humilde Casta dos Louva-
o-tricô estava, na verdade, mais próximo da barraca de venda de farturas do que do palácio de
Versalhes. A julgar pelo aspeto do edifício e pela enorme inscrição em ferro forjado que
pontificava orgulhosamente sobre a entrada, o lugar de culto tibetano estabelecera-se numa
antiga fábrica da Renault desmantelada e remelosa. Num painel de plástico mais moderno,
encontrava-se pintado, sobre o célebre losango negro da marca, um belo louva-a-deus, verde
como uma folha de menta. Estava-se bem longe do prestígio do Rei-Sol e da exuberância dos
jardins de André Le Nôtre.
Providence aproximou-se de uma pequena porta em madeira e bateu com a aldraba
dourada em forma de louva-a-deus.
Um Mars e decido dar já meia-volta, pensou ela, lembrando-se de um anúncio à dita marca
de chocolates, no qual um jovem playboy batia à porta de um mosteiro com a firme intenção de
se tornar monge e, após uma dentada no Mars, antes mesmo de alguém abrir a porta, mudava
de ideias. Porém, ela queria ir até ao fim desta estranha aventura. Agora que ali se encontrava
teria sido uma idiotice girar sobre os calcanhares sem sequer ver o que as paredes de tijolo
escondiam.
Um homem baixo, possivelmente sexagenário, a cabeça rapada e envergando uma longa
túnica cor de laranja, abriu-lhe a porta e apresentou-se como sendo um monge superior, uma
espécie de Grande Estrunfe da comunidade, mas sem o barrete nem a barba. Avisado da vinda
de Providence pelo senegalês do gorro roto, não ficara espantado por ver a jovem mulher à
soleira da sua porta naquela belíssima tarde de verão. Com um movimento seco do braço, que
fez com que a sua manga flutuasse por um instante qual bandeira laranja, convidou-a a entrar.
Atravessaram o pátio interior, a um canto do qual vários monges, todos eles baixinhos,
jogavam à petanca com o que lhe pareceu serem tomates verdes. De seguida, entraram num
grande edifício coberto de heras. No corredor de entrada, aguardavam-nos duas réplicas
perfeitas do velho homem, as quais aquele apresentou com um sorriso rasgado. Dir-se-ia que
eram gémeos. Trigémeos, contando com o Grande Estrunfe. Pequenos, também eles, a cabeça
rapada, abaetados numa longa túnica cor de laranja. Aquele gosto pela exuberância…
Perto deles, a palavra superior, do título Monge superior, revestia-se de todo o sentido,
porque, não sendo o Mestre propriamente alto, tinha mais duas boas cabeças de altura do que
os seus confrades. De súbito, Providence teve a sensação de estar rodeada de crianças num
recreio.
O nome dos dois monges era tão pouco identificável que a jovem francesa optou de comum
acordo consigo mesma batizá-los Pingue e Pongue, em homenagem àqueles seus crânios em
forma de bola. Saudou-os um a um baixando a cabeça.
– Se preferir, também pode chamá-los Mestre e 30 e Mestre e 35.
Providence, que elegia as letras aos números, decidiu manter-se fiel à sua primeira escolha:
Pingue e Pongue.
– O Mestre Supremo – continuou o monge – avisou-me da sua vinda por tele…
– … patia? – completou a jovem mulher.
– … fone – corrigiu o sábio, intrigado. – Por telefone. Já estou a par do problema da sua
filha, que engoliu uma nuvem do tamanho da torre Eiffel. Não tem muito tempo.
Providence aquiesceu com um movimento da cabeça. Finalmente uma pessoa sensata.
– Portanto, vamos levá-lo.
– O quê?
– O tempo.
– Ah – respondeu a carteira sem compreender o paradoxo.
– Vou contar-lhe uma história. O almirante Oswaldo Kerroda era um grande explorador.
Um Cousteau à antiga. Herdeiro de uma família endinheirada, não precisava de trabalhar e
passava o tempo em viagens. Agarrava no seu globo terrestre, girava-o e, para escolher o
próximo destino, pousava o dedo algures. Egito, Jordânia, Seychelles, Polinésia, Canadá,
Islândia. Explorara tudo. O quente, o frio, a terra, o mar, o muito alto, o muito baixo. Tudo.
Certo dia, portanto, o nosso Oswaldo decidiu girar o seu globo e o dedo aterrou numa
minúscula ilha perdida no oceano Pacífico entre as ilhas Galápagos e a Ilha da Páscoa. Ditava a
regra que os seus pés deveriam ir para onde lhe caísse o dedo. Movido apenas pela coragem, o
aventureiro montou uma expedição. Passou a zona a pente fino, primeiro de barco e depois
numa avioneta. Nenhuma ilha à vista. Persistiu e fretou submarinos com radares. Nada a fazer.
A ilha não aparecia em lado nenhum. Contudo, o Oswaldo, teimoso, não era do género de
desistir com facilidade. A sua equipa decidiu abandonar o projeto, mas ninguém conseguia
demovê-lo. Certa manhã, escapando à vigilância dos seus homens, desapareceu numa chalupa.
Sondou o mar e por duas vezes quase morreu. Primeiro, afogado e, depois, devorado por um
tubarão. Havia que variar os prazeres. O sol é forte nestas latitudes, e as reservas de alimento e
de água doce esgotam-se rapidamente. Ao fim de algumas semanas, um navio mercante que
passava por ali encontrou-o na chalupa à beira da água e da loucura. Pás! Como as pernas se
viram sem força para aguentar tamanha insanidade, acabou numa cadeira de rodas. O seu
apelido, Kerroda, pronunciar que roda, ganha agora todo o sentido… Foi um maldito vírus que
ele terá apanhado aquando daquela expedição. Em suma, eis que um mês depois deu consigo a
entrar no seu pequeno apartamento parisiense e a dirigir-se, rolando, até ao globo terrestre, os
olhos repletos de incompreensão. Aproximou-se da bola azul e amarela, disposto a lançar-lhe
um feitiço, a maldizê-la, a insultá-la, pronto para a lançar janela fora e a partir em mil pedaços.
Aproximou o nariz da ilha que não existia e que contudo ali estava, representada por um
minúsculo ponto negro na superfície azul de plástico. Passou-lhe o dedo em cima. A ilha ficou
colada na polpa do seu indicador.
O monge ergueu um dedo e assumiu um tom solene.
– O almirante Oswaldo Kerroda, grande explorador diante do Eterno, acabara de se
aperceber de que a ilha pela qual perdera a cabeça e as pernas mais não era do que um vulgar
mosquito esmagado. Um homem que confundira um mosquito com uma ilha…
Providence não compreendia bem aonde ele queria chegar.
– Não estou a compreender bem aonde quer chegar.
– Tudo isto para lhe dizer que, na vida, nunca nos devemos precipitar. Por vezes, há que
saber levar o seu tempo para o ganhar… Bem-vinda ao templo onde o tempo para.
O monge esboçou um gesto largo para indicar o lugar insólito onde ela se encontrava. O
corredor pelo qual haviam seguido lembrava o de um restaurante asiático. Efetivamente, o
tempo parecia ter parado nos anos cinquenta. Uma miríade de luminárias de papel e outros
talismãs de plástico vermelho encontrava-se suspensa nas janelas. Um aquário repousava numa
pequena consola e um quadro luminoso representando uma cascata pendia de uma parede,
torto, tão torto que a queda de água parecia desafiar a gravidade, correndo horizontalmente.
O monge, a carteira, Pingue e Pongue avançaram, cruzaram-se com um gato de metal
dourado que balançava a pata de cima para baixo como se os quisesse apanhar e
desembocaram num grande salão coberto de tatâmis. Dir-se-ia tratar-se de um enorme dojo ou
de uma bela sala de zumba, o que lembrou Providence da necessidade de em breve renovar a
inscrição no ginásio.
Haviam sido necessárias algumas adaptações para transformar aquela antiga fábrica da
Renault num templo budista, sobretudo nas secções de montagem, onde uma horda de
monstros de ferro agonizava. Porém, com karma nada era impossível. As máquinas tinham-se
transformado em ferozes sacos de pancada, com os quais os monges treinavam as suas artes
marciais, e o armazém, um gigantesco campo de treinos de Takeshi’s Castle, esse Fort Boyard
japonês, no qual os concorrentes percorriam circuitos repletos de ciladas e pranchas
escorregadias.
– Aguarde aqui. O seu instrutor chegará dentro de momentos.
O primeiro monge, seguido de Pingue e de Pongue, desapareceu em bicos de pés por uma
porta secreta.
Uma vez sozinha, Providence foi assaltada pela dúvida. Perguntou-se se tudo aquilo seria
sério. Ter-se-ia metido em maus lençóis? A jovem mulher consultou o relógio. Eram duas da
tarde. Perdera já a manhã e estava no bom caminho para perder o resto do dia numa demanda
do absurdo. Não estaria ela também em vias de perder um parafuso no encalço de uma ilha
imaginária?
Porém, nunca se sabia.
Porque, no fim, a ilha poderia revelar-se real. Sim, seria lindo se ela o conseguisse. Se ele
cumprisse aquele sonho. Daria uma bela história. A história de uma mãe que aprendera a voar
como um pássaro para se reunir à filha doente no outro lado do Mediterrâneo. Ou que fora
vigarizada pela rede criminosa sino-senegalesa de Versalhes…
Providence sentiu-se de novo esperançada. Deveria haver uma razão para lhe terem
acontecido tantas coisas naquele dia. A jornada não se poderia saldar como um fracasso. Era
impossível.
Olhou em redor. Viu as bonitas inscrições chinesas pintadas com tinta negra em grandes
painéis, os biombos em madeira trabalhada, as lanças medonhas encostadas à parede. Sentiu a
fragrância do arroz com limão que invadia o local e lhe recordava que desde manhã cedo não
comia. Se havia alguém à face da Terra capaz de lhe ensinar a voar, encontrá-lo-ia decerto ali. A
seu ver, os monges tibetanos, que ela confundia com monges Shaolin, eram os únicos capazes
de levitar. Vira uma reportagem no Arte, a uma hora impossível, acerca desse estranho
fenómeno. Com meditação, conseguiam libertar-se das leis da física e controlar o corpo,
subjugá-lo ao espírito. Vira demonstrações extraordinárias. Vira-os dormir em pino ou
equilibrados no dedo mindinho. Vira-os levarem pontapés nos testículos sem reagir. Vira-os
andar descalços sobre brasas incandescentes e rachar com um só golpe barras de madeira. E
sem que um músculo do rosto se contraísse. Se conseguiam fazer tudo aquilo, não tinha
qualquer dúvida de que poderiam também agitar os braços e voar. Tchang fizera-o à sua frente.
Desde que entrara no dojo, Providence escutava o rumor longínquo de uma canção
lancinante. Não saberia dizer se fora o seu ouvido que se habituara ao silêncio ou se alguém
aumentara ligeiramente o volume, mas a verdade é que a música se ia tornando cada vez mais
presente. Não, não podia ser. Decerto estava enganada. A fome começava a pregar-lhe partidas.
Numa zona remota do mosteiro, uma série de violinos tocava de forma quase impercetível
uma melodia que lhe lembrava muitíssimo Pauvre Diable, de Julio Iglesias. Aguçando o
ouvido, Providence conseguiu distinguir o tom suave da voz do cantor romântico latino.
Contudo, algo não batia certo. Mais do que cantar, o espanhol parecia miar. E de forma
entrecortada. Como um enorme gato a quem tivessem entalado a cauda na porta de entrada de
uma loja parisiense em dia de saldos. A jovem mulher não tardou a perceber que Julio não
estava a miar mas a cantar em chinês. O refrão confirmara-o. Tratava-se, de facto, de Pauvre
Diable. Disso, não havia qualquer dúvida.
Impossível, pensou Providence. Será que os monges tibetanos ouviam Julio Iglesias? Que o
conheciam, aliás? Não consistia a filosofia daqueles indivíduos em viver precisamente à
margem da modernidade ou da nossa sociedade? Como a comunidade Amish, na qual
Harrison Ford se fora esconder em Witness? Providence tentou convencer-se de que estava
enganada, mas desde quando a fome provocava alucinações auditivas?
Um marulho singular de pés húmidos caminhando sobre o tatâmi arrancou-a do seu
torpor. A jovem mulher voltou-se e viu um pequeno monge com um porte bastante atlético
aproximar-se dela. Não se parecia nem um pouco com os que vira até então. Envergava um
kimono preto, tinha cabelos curtos e ruivos, e uma barba dessa mesma cor. O monge instrutor
lembrava-lhe Chuck Norris numa versão asiática.
Sob a barba ruiva, adivinhava-se um rosto anguloso. Parecia ter sido talhado de um só
bloco de granito. Nenhuma expressão lhe deformava os olhos ou a boca.
– Sou o Mestre e 40, mas pode tratar-me por Choo Noori.
Choo Noori? Providence lembrou-se de uma piada, mas o homem não tinha aspeto de
quem apreciasse o humor. Preferia ficar calada porque pressentia que um piparote de Choo a
faria dar três voltas nas cuecas de renda sem tocar nos elásticos.
– Talvez isto lhe vá parecer óbvio, mas, para voar – continuou ele, sem qualquer tipo de
preâmbulo –, há que ser o mais leve possível. Será, portanto, vital libertá-la de todo o peso
supérfluo.
Por instantes, Providence julgou que o Ranger do Texas chinês lhe iria saltar em cima e
tirar-lhe a gordura das ancas com golpes da mão em cutelo. Contudo, o homem não se mexeu
nem um milímetro. Deveria achar os cinquenta quilos e o pequeno peito aerodinâmico da sua
interlocutora bastante razoáveis. Como acontecia com noventa e nove por cento dos homens à
face da Terra. Uma coisa boa.
– Já que falamos nisso, seria possível comer qualquer coisinha? Estou a morrer de fome.
Não como desde as quatro e meia da manhã e duvido que consiga concentrar-me no que quer
que seja sem nada na barriga.
– Começamos bem! Falo-lhe de se libertar de todo o peso supérfluo e a senhora diz-me que
precisa de comer!
– Não se preocupe, que não engordo com facilidade.
O homem grunhiu e desapareceu pela mesma porta secreta que os seus colegas haviam
transposto alguns minutos antes. Reapareceu um instante depois com um prato de arroz
fumegante e algumas bolinhas de carne. Ou aquele monge era o maior mágico de todos os
tempos ou a porta dava diretamente para uma cozinha.
– Bom, enquanto come, anunciar-lhe-ei os preceitos de base. Há que segui-los à letra.
– Nada mais fácil para uma carteira – brincou Providence ante o olhar intrigado do monge.
– Preceito número um: o melhor é descolar da Austrália.
– Da Auffrália? – repetiu a jovem mulher, a boca cheia de arroz.
O monge explicou-lhe que a gravidade terrestre variava em função do local onde nos
encontrássemos no globo e que pesávamos mais ou menos de acordo com o sítio onde
vivíamos. Na Austrália, ficávamos mais leves. Enfim, fora esse o resultado de uma insólita
investigação de três físicos norte-americanos que se haviam lançado numa viagem ao mundo
com um anão de jardim, um pouco como acontecia no filme O Fabuloso Destino de Amélie
Poulain, de Jean-Pierre Jeunet, e que se tinham apercebido de que este, ao longo do périplo,
marcava pesos ligeiramente diferentes numa mesma balança que transportavam. Registaram,
portanto, 308,66 gramas em Londres; 308,54 em Paris; 308,23 em São Francisco; 307,80 em
Sydney; e 309,55 no Polo Sul. Assim sendo, perdíamos cerca de um grama na Austrália. Ao
menos, isso!
– Pelo que compreendi, deseja descolar de Paris.
– Sim. É impossível ir a Ffydney.
– Certo. Esqueçamos o preceito número um. Preceito número dois: cortar os cabelos.
Ganha-se alguns gramas. O Mestre e 50, perdão, o irmão Yin Yang terá todo o gosto em
tosquiá-la.
– Tosquiar? – exclamou Providence, horrorizada, cuspindo alguns perdigotos de carne para
o kimono do sábio. – Ficaria bastante grata, se pudesse perder alguns gramas de outra maneira.
Não me importo nada com uma pequena mudança de visual, um corte à Audrey Hepburn, mas
está fora de questão que me rapem como uma ovelha ou como a Britney Fpears. Talvez
pudéssemos começar pelas pernaf, o pubif e as axilaf.
Enervado com os queixumes e os modos da sua aprendiza, o monge ordenou-lhe que se
calasse estalando os dedos, como se tivesse acabado de esmagar uma mosca em pleno voo.
– Pare de se queixar! Sobretudo com a boca cheia. O meu kimono já está repleto de nódoas
de comida. O que me lembra o preceito número três: tirar a roupa.
– Quer que voe nua?
– Um biquíni não lhe fará mal nenhum.
– É uma sorte ser verão. Em todo o caso, isso, isso, agrada-me. Fornecem o biquíni?
Podemos escolhê-lo? É também o irmão Yin Yang quem trata disso?
– O fato de banho terá de ser adquirido por si. A menos que se sinta tentada por umas
cuecas de gorgonzola…
Pela primeira vez, um minúsculo ricto deformou o bloco de granito que lhe fazia as vezes
de cara. Pelo menos, aquele bloco de pedra era dotado de sentido de humor. Naquele
momento, o negócio não andava a correr lá muito bem para o mosteiro, pelo que não se
privaria de vender de passagem algumas peças em queijo.
– Para ser honesta, tenho o olfato demasiado apurado para poder usar esse tipo de roupas.
– Bom, preceito número quatro: meditação, meditação, meditação. Amor e vontade. Muito
amor e vontade. Sei que a filosofia asiática nos ensina que o mais importante não é o fim, mas
os meios. Que o mais belo não é alcançar o cume da montanha, mas a viagem que nos conduz
até lá, blá, blá, blá. Esqueça todas essas tretas! Para voar, terá de se concentrar no resultado. Só
deve pensar em voar, voar, voar e sempre voar. Como aquele homem que não tinha dinheiro
para comprar uma taça à mulher e meteu na cabeça que iria vencer a Volta a França para
receber aquela que eles oferecem ao vencedor. Enquanto pedalava, só pensava na taça que iria
oferecer à mulher e ganhou a Volta a França.
A jovem carteira não conhecia aquela história. Não soube se se tratava de um caso real ou
se o homem a havia inventado para reforçar o seu discurso, mas, fosse como fosse, fora bem
encontrada. Em compensação, sempre achara o troféu da prova de ciclismo horrível.
– Imagino que, no que respeita ao amor e à vontade, já tenha tudo o que é necessário.
Portanto, aqui, vamos insistir na meditação. A senhora é uma mulher dispersa. Vai aprender a
canalizar a sua energia num único e só objetivo. Um objetivo positivo, mas com o qual não
tenha qualquer ligação afetiva. A taça da Volta a França.
Providence pensou para consigo que iria ser difícil concentrar-se em algo tão piroso.
Decidiu, portanto, pensar noutra coisa. E, como não podia pensar na filha, com a qual tinha
um profundo vínculo afetivo, decidiu focar-se no rabo em forma de melancia do seu professor
de zumba.
Uma equipa de paramédicos acorrera à cabeceira de Zahera e transportara-a de urgência
para a seção dos Cuidados Intensivos. A pequena perdera os sentidos. Deixara que a sua nuvem
a cingisse por completo.
Ligada à vida por uma miríade de tubos de plástico, aguardava, imóvel, as mãos abertas,
qual princesa adormecida por um feitiço mau, que um médico a quisesse salvar.
Na confusão, perdera o sapatinho de cristal, e, caso alguém lhe tivesse olhado para os pés,
teria visto o seu sexto dedo do pé esquerdo tremer ligeiramente, lembrando um pequeno
bicho-de-conta.
Ao cabo de uma hora de meditação, ao longo da qual tivera de entrelaçar os braços e as
pernas como numa partida de Twister, Providence arfou por fim.
– Pode esticar-se durante dois minutinhos… o tempo de eu preparar o último módulo.
Uma pausa bem-vinda. Nunca teria acreditado que uma sessão de meditação pudesse ser
tão exaustiva. Talvez tivesse de reconsiderar as suas aulas de zumba e trocá-las por aquela nova
disciplina.
Choo Noori ligou um grande televisor conectado a uma Wii e selecionou um jogo cujo
protagonista era um frango que os jogadores deveriam fazer voar e pousar nos alvos indicados
para acumular pontos. Bem antes de os dois minutos de repouso se terem escoado, o monge
ordenou a Providence que se postasse diante do ecrã, os braços levantados.
A jovem mulher não queria acreditar. Os monges aperfeiçoavam o seu treino com jogos de
vídeo! Proclamavam-se garantes dos valores tradicionais, budistas, monacais, e eis que, um
segundo depois, apareciam com uma Wii de se lhe tirar o chapéu. Aquilo lembrava-lhe um
episódio que lhe sucedera numa viagem que fizera ao Quénia, quando o chefe da tribo Masai
local se pusera a vibrar freneticamente diante dela enquanto lhe explicava, na obscuridade da
sua cubata, construída com excrementos de cabra, que ele e o seu povo se alimentavam do
sangue de gnus. Inicialmente, julgara que ele tinha entrado em transe, conforme vira acontecer
a feiticeiros africanos nos documentários que passavam na televisão. Porém, pouco depois, ele
mergulhara a mão na túnica vermelha e tirara de lá, com a maior naturalidade do mundo,
como se fosse comum naquela aldeia situada a quatro horas de estrada de toda e qualquer
forma de civilização, um iPhone 4 novinho em folha, para responder a «uma chamada
urgente». Nesse momento, sentira-se ligeiramente vigarizada e arrependera-se de ter pago
quarenta dólares para ir visitar selvagens perdidos na savana queniana que viviam com mais
conforto do que ela. Furiosa, pedira logo o reembolso do dinheiro quando o africano, que não
parecia indiferente ao charme da jovem europeia, tivera a audácia de tirar uma foto com ela
para publicar rapidamente o cliché na sua página de Facebook. Aquilo era o mundo ao
contrário. Em breve, seriam os turistas masai quem se comprimiria na sala da sua casa de
quarenta metros quadrados em Paris para aprender os usos e costumes franceses.
– É preciso ser-se um homem do seu tempo – disse o monge tibetano como se tivesse lido
os pensamentos de Providence. – Além disso, ainda não se encontrou nada melhor para
trabalhar a coordenação dos braços e do corpo. Os tipos que conceberam este jogo são geniais!
Como pode alguém considerar geniais pessoas que inventaram um jogo de um frango
descongelado a bater asas?, perguntou-se a carteira. Contudo, antes que pudesse delinear o
mais ténue esboço de resposta, o monge algoz ordenou-lhe aos berros que batesse as asas do
seu frango. Mais depressa! Mais depressa! ainda mais depressa! ainda mais alto! Parecia um
treinador russo a gritar o lema dos jogos olímpicos à sua poldra ginasta.
Providence descolou logo da ilha onde se encontrava e sobrevoou o mar. Quanto mais batia
as asas, mais se elevava. Mal afrouxava o movimento, a galinha pipilava e caía lenta e
lamentavelmente rumo à superfície ameaçadora da água.
– Concentre-se e bata as asas! você é uma galinha! Aplique tudo aquilo que trabalhámos na
meditação e alie-o ao esforço físico – gritava o Chuck Norris chinês como se se encontrasse
num campo de treinos militar. Tinha todo o aspeto de quem sentia um imenso prazer em
humilhar a jovem mulher. – Pense no objetivo! pense na taça!
Ah, não, não na horrível taça da Volta a França! Desconcentrada, Providence afrouxou o
esforço e começou a desaparecer no mar. Lembrou-se logo do rabo arredondado e musculado
de Ricardo. Ao cabo de algumas piruetas, recuperou e ascendeu às nuvens. Chegou, por fim, o
momento de pousar no alvo. Se conseguisse fazê-lo no centro, ganharia cem pontos.
– cem pontos, cem pontos! – berrou o homem no kimono cheio de nódoas de carne. O
instrutor militar transformara-se num candidato em transe de um jogo televisivo popular e na
moda. – cem pontos! cem pontos, cem pontos – escandia ele que nem um possesso, batendo o
pé com toda a força no chão.
Apesar dos encorajamentos, o frango da carteira aterrou na zona dos dez pontos. A deceção
tomou conta do rosto de Choo Noori.
– Ta ma deeee! – gritou ele, lançando um murro de raiva ao vazio.
Providence não falava chinês, mas aquilo não lhe parecera de todo uma felicitação.
Pouco depois, o frango ergueu-se nos céus e sobrevoou uma montanha. A jovem mulher já
não aguentava mais. Começava a sentir dores nos antebraços e bíceps.
– Tem a certeza de que tudo isto serve de alguma coisa? Será que agora não podíamos
tentar voar de verdade?
– Voar exige uma enorme concentração e imensa energia. Mais vale reservar todo o seu
poder para o momento oportuno. Além disso, a viagem vai ser longa e exaustiva. São diversos
milhares de quilómetros, não é boa ideia cansar-se e esbaforir-se antes.
– Porque julga que agora não me estou a cansar e a esbaforir, é isso? – perguntou
Providence, melindrada, antes de deixar cair os braços ao longo do corpo.
No ecrã, o frango mergulhou de cabeça e esborrachou-se de encontro ao cume de um
pinheiro. Game over.
– Aqui, morreria – disse o monge.
Porém, vendo a discípula determinada e considerando-a apta a afrontar o maior desafio da
sua vida, Choo Noori foi buscar Yin Yang para a sessão de cabeleireiro.
Com menos uns gramas de cabelo, Providence aguardava qual criança bem-comportada no
corredor. Os monges não tardaram a chegar, um atrás do outro, em fila indiana, a mão
pousada no ombro do que lhe antecedia como num comboio de um bailarico popular. Chegara
o momento das despedidas e, com ele, o dos últimos conselhos.
– Fica-lhe bem – disse o superior, assinalando com a mão o novo corte de cabelo da jovem
mulher.
– Obrigada. Não há nada melhor do que uma mudança de visual assim para recomeçar a
vida com o pé direito.
– É verdade. Bom. Vamos encerrar o curso. Pelos poderes que me foram conferidos,
declaro-a apta para voar.
– Parece simples quando dito em terra firme – retorquiu Providence, cética –, mas, quando
estiver lá em cima…
– Quando estiver lá em cima… – continuou Pingue.
– …Permanecerá concentrada e baterá os braços – acrescentou Pongue, como se os dois
clones jogassem uma partida de ténis numa mesa verbal.
– E se alguma coisa me desconcentrar ou se eu parar de bater os braços?
– Cairá – cortou Choo Noori.
– Como no jogo?
– Como no jogo. Game over. Lembre-se de que na realidade só tem uma vida…
– Você não é de dourar a pílula! E quanto a coisas mais práticas?
– Mais práticas? – perguntou Yin Yang.
– Sim, enfim… Sabem… para…
– Ir à casa de banho?
– Isso.
– Afasta um bocadinho o fato de banho e… A sua urina será pulverizada na atmosfera.
– Pulverizada?
– Pulverizada.
Choo Noori ilustrou as suas palavras com um murro no vazio. Providence sobressaltou-se.
– Bom, estava a pensar em levar um pouco de água e algo para comer numa mochila –
confessou ela. – A viagem vai ser longa. Vou precisar de forças e de energia.
– Será que não percebeu que é importante que vá o mais leve possível? Preceitos um, dois e
três. Ora esta, agora vem-me falar de levar uma mochila! Além disso, eu bem conheço as
mulheres. Começa por ser um saco só para uma garrafa de água e um biscoito e, num piscar de
olhos, enchem-no com maquilhagem, algodão, pastilhas elásticas, compressas, um telemóvel e
pensos rápidos.
Que horror!, pensou Providence. Como poderia Choo Noori conhecer tão bem o universo
feminino? Teria tido outra vida antes de ser monge? Teria também ele vendido o seu Ferrari?
Providence corou de vergonha.
– Tem razão. Não se fala mais da mochila!
– Já que estamos nisso, não quer também um serviço de catering (pronunciou catering
como Catherine)? – quis saber, mordaz, o instrutor com rosto de granito. – Como nos aviões.
Alguma vez viu um pássaro de mochila? Eu, nunca! Encontrará tudo aquilo de que precisa em
terra. Só terá de pousar e servir-se. Quanto a bebidas, bastará beber as nuvens.
– As nuvens?
– Sim, é muito bom – confirmou Pingue. – É água em suspensão na atmosfera…
– …É muito pura – completou Pongue. – Ainda não foi contaminada pelas imundícies da
Terra.
– Vocês já beberam água das nuvens?
Os dois homens hesitaram.
– Nunca bebeu água da chuva? – perguntaram em coro.
– Água da chuva? Sim, quando era pequena.
– E ainda cá está para contar a história! – exclamou Yin Yang. – Bom, a água da nuvem é
isso.
– Um último conselho: nunca se aproxime das nuvens de tempestade – anunciou o Monge
superior com gravidade. – Dentro delas, há blocos de gelo que giram a uma velocidade louca,
como numa gigantesca máquina de lavar. Fazem buracos enormes na fuselagem dos aviões.
Portanto, imagine-se os estragos que causariam no corpo humano. Teria morte imediata. A
força no interior dessas nuvens é equivalente à potência de duas bombas atómicas. Fuja delas.
Acima de tudo, não se sobrestime. No Tibete, veja lá, temos uma série de teorias filosóficas
para tudo e para nada, mas ninguém nos ensina a domar nuvens, o que é uma pena.
– Como conseguirei reconhecer essas famosas nuvens?
– É fácil… – retorquiu Pingue.
– …Parecem chapéus de cozinheiro – acrescentou Pongue.
– Ou enormes couves-flores, se estiver mais familiarizada com legumes do que com toucas
– julgou por bem precisar o Monge superior.
Providence sorriu e olhou para o relógio, tentando assinalar aos monges que deveria partir.
– Obrigada pela vossa hospitalidade e por tudo o que fizeram por mim. Nunca esquecerei
este belo encontro.
Pousou a mão com ternura no ombro do Monge superior.
– A senhora também nos ensinou muito acerca de si e do mundo – retorquiu-lhe ele por
seu turno. – Continuando sempre apressada, estaria a cair em erro. Mas errar é humano. É por
isso que existem borrachas nas extremidades dos lápis de carvão. O mundo lá fora gira
demasiado depressa, não há tempo para parar e apreciar a beleza, desfrutar dos pores do sol e
do amor que inunda os olhos de todas as crianças. O mundo é um bebé que quer voar antes de
aprender a andar. Não me refiro a si, mas tudo passa tão depressa. A internet e isso… Ainda
mal acabou de ser difundida, e já a informação se tornou caduca. Morre-se antes de se nascer.
Aqui, aprende-se a usufruir do belo. Não podemos pilotar aviões de caça sem antes sabermos
arrastar carrinhos de mão.
Providence sabia agora de onde provinha o gosto de Mestre Bué por metáforas falantes.
– Esta manhã – continuou ele –, foi visitar o Mestre Supremo em Barbès, a norte de Paris, e
depois veio até aqui. Tanto tempo perdido nos transportes públicos. Tanto tempo aqui passado
a meditar e a aprender a voar numa Wii. Não duvidou uma única vez. A dor assola-lhe o
coração, a sua filha está moribunda e a senhora só pensa em ir buscá-la e salvá-la. No entanto,
passou um pouco desta jornada tão especial connosco. Tentei inculcar-lhe a ideia de que o
tempo se ganha. Que é preciso dar tempo ao tempo, como tão brilhantemente cantava Didier
Barbelivien. Ou seria Julio Iglesias? Já não faço ideia.
Providence sobressaltou-se. Afinal de contas, os monges sempre conheciam Julio Iglesias.
– Já que fala nisso, queria perguntar-lhe algo. Há pouco, no dojo, enquanto esperava pelo
mestre Choo, pareceu-me ouvir o Pauvre Diable em mandarim. Estarei enganada?
– Tem um ouvido fino, minha jovem senhora. É o Mestre e 54 (que mede 55, mas que
encolhemos para não o confundirem comigo) quem se encarrega da programação musical do
mosteiro, uma espécie de DJ, de Laurent Garnier, mas com gostos mais canónicos…
– Mais canónicos?
– Sim, poder-se-ia dizer que Julio Iglesias é o mais asiático de todos os vossos cantores
europeus. Ele compreende de facto a nossa maneira de pensar e ensina os preceitos que
seguimos diariamente. Julgo que existe uma canção do Julio Iglesias para cada momento difícil
na vida de um homem e de uma mulher. Esse hidalgo, mais do que estar bronzeado o ano
inteiro, continua a ter resposta para todas as questões da vida, e as suas letras são de uma
clarividência espantosa. Só os títulos… Le monde est fou, le monde est beaux, Il faut toujours un
perdant, J’ai oublié de vivre…10 Nem Confúcio se teria expressado melhor. Tal como Júlio
Verne e Júlio César, Julio Iglesias é um visionário, pelo que me parece que todos os Júlios o são.
Providence não conseguia acreditar no que estava a ouvir. Acabara de encontrar
extraterrestres que construíam os caboucos da sua filosofia a partir de letras românticas de um
cantor de variedades de outros tempos.
– Além disso – retomou o monge –, o nosso lema é: «Quando não estão a matar o marido,
os Louva-o-tricô ouvem Julio Iglesias.»
– Sim, pude já apreciar esse vosso gosto pronunciado pelos adágios cómicos: «Não se pilota
um avião de caça sem antes se saber empurrar um carrinho de mão», etc.
– Hum… Voltando ao que lhe estava a dizer antes de a conversa ter tergiversado na
variedade espanhola – continuou o velho monge –, a Providence nasceu com o dom de voar.
Tem-no no coração. Nasceu com essa insustentável leveza. A insustentável leveza das carteiras
apaixonadas.
– A insustentável leveza das carteiras apaixonadas? – repetiu Providence, surpreendida por
descobrir que os monges de Versalhes, para além de jogarem na Wii e ouvirem Julio Iglesias,
liam Kundera.
– Sim, porque a sua história com essa menina é uma história de amor. A Providence é uma
mulher apaixonada (as suas referências culturais eram edificantes; eis que agora citava Mireille
Mathieu, enfim, Barbra Streisand). Esta história é sobre o reencontro de duas mulheres para
quem o tempo corre a mil à hora. São as duas apressadas, mas não pelas mesmas razões. A
senhora é como o almirante Oswaldo Kerroda; confunde mosquitos com ilhas. A sua filha,
essa, é apressada, mas não tem culpa. É a doença que está na base disso. E foi a ironia do
destino que vos lançou nos braços uma da outra. Porque, por vezes, o destino é malicioso. É,
portanto, necessário que as duas aprendam a viver ao mesmo ritmo, com a mesma batida de
coração. Todo este tempo que julgou ter perdido foi tempo ganho, Providence. Vai permitir-
lhe empreender a viagem mais maravilhosa da sua vida. Aproveite cada segundo no ar. Quando
estiver bem lá em cima, cheire as nuvens, respire-as, leve o seu tempo. Sinta a fragrância do ar,
do céu, da chuva. Têm o perfume do Paraíso.
O monge retirou um pequeno objeto da túnica e depositou-lho na mão. Depois, fechou-a
num punho.
– Leve isto consigo e dê uma gota à Zahera. É um poderoso «nuvicida». Não sei se a minha
beberagem funciona. Nunca a experimentei em ninguém doente. Porém, se funcionar, uma só
gota bastará.
O Monge superior baixou a cabeça em sinal de respeito. Depois, por ordem crescente de
altura, o Mestre e 30, o Mestre e 40, o Mestre e 50 e o Mestre e 55 saudaram-na.
– Por detrás desses seus modos de sargento e do seu rosto de granito, o senhor é um
querido, Choo Noori – disse ela, fazendo uma vénia diante do homem de pedra.
O instrutor sorriu-lhe.
– Nunca os esquecerei – acrescentou ela, dirigindo-se a todos – e voltarei em breve para os
visitar. Bons trabalhos manuais, meus queridos louva-o-tricô!
– Venha apresentar-nos a Zahera, porque vai conseguir trazê-la – declarou, confiante, o
Monge superior.
A baixa estatura dos monges apelava à ternura, e Providence não era indiferente a isso. O
formato porta-chaves constituía um convite a arrastá-los consigo para todo o lado. Eles ter-lhe-
iam fornecido a sabedoria e a paciência que tantas vezes lhe faltavam. Que bom seria poder
andar sempre com um monge tibetano no bolso para usar em caso de urgência, depressão, falta
de fé ou de confiança em si.
Alguns minutos depois, esperançada no seu novo dom e na poção «nuvicida», a jovem
carteira precipitou-se rumo à boca do comboio em direção a Orly, a cabeça já nas nuvens e os
pés no alcatrão.

10 O mundo é louco, o mundo é belo, É preciso sempre um perdedor, Esqueci-me de viver. (N. da T.)
TERCEIRA PARTE

O dia em que a minha carteira


se tornou tão famosa como a Gioconda
As últimas palavras do Monge superior haviam mergulhado Providence num profundo
acesso de nostalgia. Sentada numa carruagem que sacolejava tanto quanto uma diligência de
um western, o olhar perdido nas trevas escancaradas do túnel, a jovem mulher relembrava os
conselhos que ele lhe dera. «A fragrância das nuvens, da chuva, do céu… O perfume do
Paraíso. Leve o seu tempo para desfrutar de tudo isto.»
Na sua juventude, antes de se tornar carteira, Providence trabalhara como nariz por uns
tempos. Imaginou a expressão que faria a polícia em Orly caso tivesse escrito nariz no espaço
reservado à profissão da ficha que preenchera. Fez isto com os pés, teria ela decerto dito. Pôs
nariz na rúbrica profissão. Será que espalhou a sua bela anatomia pelas restantes secções?
Sim, Providence fora nariz de uma grande marca de desodorizantes para homem, enfim,
«snifadora de axilas», até o diretor-geral soltar o último fôlego e a empresa se afundar na
bancarrota. O pobre industrial morrera de riso enquanto assistia ao filme Um peixe chamado
Wanda, engrossando, desse modo, as fileiras da lista das mortes mais estúpidas da história,
junto de Adolphe Frédéric, rei da Suécia, que morreu após ter repetido catorze vezes a
sobremesa, e Barba Ruiva, que decidiu ir ao banho sem tirar a armadura. Porque o patrão dela
morrera mesmo de riso. Uma paragem cardíaca, uma morte original para quem fora toda a
vida conhecido precisamente por não ter qualquer originalidade.
Contudo, o dom de Providence nunca desaparecera (exceto nos largos minutos em que,
nessa manhã, andara com o saco do lixo no braço, confundindo-o com a mala). Ao fim de dois
anos a exercer aquele belo ofício, espantava-se ainda com o facto de um mesmo desodorizante
libertar odores tão diferentes de acordo com a axila em que era pulverizado. Enfim, talvez se
tratasse de um mal necessário. Se todos tivéssemos o mesmo odor, as feromonas, tão
importantes no jogo de sedução, deixariam de cumprir o seu papel, o que poderia ter
consequências dramáticas para a espécie humana. No pior dos cenários, as pessoas deixariam
de se sentir atraídas umas pelas outras, não mais se reproduzindo, pelo que as civilizações
acabariam por colapsar. No melhor dos casos, deixaríamos de conseguir distinguir uma
mulher, um camião do lixo e um pedaço de queijo munster. Talvez isso viesse beneficiar os
monges da Humilde Casta dos Louva-o-tricô, que haviam feito do negócio têxtil à base de
queijo o seu ganha-pão, mas, para o resto do mundo, seria uma catástrofe olfativa sem
precedentes. Conscientes dessas implicações vitais, os laboratórios empenhavam-se, portanto,
em elaborar incessantemente produtos que, transcendendo e sublimando os odores pessoais,
não os anulavam.
Providence tinha catalogado todos os aromas com que se deparara no decurso da sua breve
carreira passada sob as axilas dos homens. O homem branco, por exemplo, libertava um odor
de erva molhada; o homem negro soltava um aroma semelhante ao do cabedal e ao da casca de
árvore; o homem asiático, esse, cheirava à escuma do oceano e a limão; o homem indiano
emanava uma fragrância de especiarias.
Era bem prático, aliás, no momento de avaliar um potencial parceiro. Cheirar era a
primeira coisa que a jovem mulher fazia ao conhecer um homem. Cheirava-lhe a pele do rosto
e do pescoço. Os macacos é que a sabiam toda. Era assim que ficavam a conhecer os seus
inimigos e reconheciam um companheiro fiel no grupo. Aprende-se mais acerca de um
indivíduo pelo cheiro que liberta do que pelas palavras que diz.
Relembrou uma conversa que tivera com Zahera acerca dessa mesma questão.
– A que cheiro eu? – perguntara a menina.
– Cheiras a especiarias – mentira Providence.
Na verdade, cheirava a medicamentos, ao Ventilan e a xarope para a tosse.
– E tu? A que é que cheiras?
Certo dia, espicaçada pela curiosidade de quem passava o tempo a cheirar os outros, a
jovem mulher decidiu imergir o nariz nas suas axilas.
– A carteira francesa cheira à floresta de Fontainebleau, de manhã cedo, bem antes de o
orvalho aparecer, quando as folhas do carvalho e do pinheiro ainda não se ornaram com os
seus colares de pérolas de água… Não, agora a sério, as minhas axilas cheiram a algodão e
poliéster, mas isso é quando tenho um camiseiro posto! Caso contrário, os franceses cheiram a
queijo e a alho.
Detestava de tal forma o odor a alho que não raras vezes essa aversão lhe valera ser
confundida com uma vampira.
Ora, a vampira encontrava-se naquele momento na linha 2, que cheirava mais a suor do
que o alho e o queijo fermentado (embora…), rumo a Sul.
Uma das vantagens de ter um olfato superdesenvolvido era poder reconhecer as estações de
metro pelo seu odor bem peculiar. Tal como uma impressão digital, todas elas tinham
características odoríferas únicas. Assim sendo, a Nation cheirava a croissants quentes; a Gare-
de-Lyon, a mijo; a Concorde, a pombo sujo; a Châtelet-les-Halles, a café. Providence chegara à
conclusão de que Paris tinha mais estações com odores repugnantes do que agradáveis. Se
algum dia fosse presidente da Câmara da capital, começaria por perfumar as estações, a cada
uma caberia uma fragrância de uma flor diferente. A sua estação cheirava a Sonasol e limão, o
que era normal, porque, sempre que entrava no metro de manhã para ir trabalhar, avistava a
senhora da limpeza que por ali andava a lavar o chão. Às terças, quintas e domingos, cheirava a
peixe (a estação, não a senhora), porque eram dias de mercado. Aos sábados, também lhe
cheirava a arroz cru por esse ser o dia dos casamentos.
Providence trabalhava num bairro popular de Orly. Aquando das suas rondas, gostava de
parar alguns minutos perto do parque infantil. Nos dias em que a distribuição lhe corria bem,
chegava ali cerca das onze horas, aproveitando para se sentar um pouco e comer uma maçã
bem vermelha. Aquilo de que mais gostava naquele sítio era a amálgama cultural e as cores que
aquelas crianças traziam estampadas no rosto. Ali, negros brincavam com loirinhos,
magrebinos, asiáticos e judeus exibindo a sua kipa na cabeça e os tzitzit à cintura. Aquele
pequeno mundo vivia em harmonia. As crianças eram tão inocentes que estavam longe de
imaginar que os pais se detestavam e lutavam entre si pelos quatro cantos do mundo. Elas
brincavam, indiferentes a isso. Partilhavam a bicicleta, o balde e a pá, e construíam castelos em
conjunto. Davam-nos uma bela lição de vida. O Paraíso deveria parecer-se com aquilo. O tal
Paraíso cuja fragrância o Monge superior lhe pedira para inspirar a plenos pulmões.
Cerrou as mãos em torno do objeto que este lhe confiara, mas não com muita força, para
não partir a pequena garrafa que continha o líquido cor de âmbar, quiçá capaz, com uma só
gota, de curar Zahera. Guardá-la-ia como à própria vida. Pensando nisto, enfiou-a nas cuecas.
Ela poderia ter descolado de qualquer lugar. De uma varanda, de um terraço, de um
telhado, até do passeio. Contudo, agora que se preparava para se lançar na viagem, agora que o
seu voo era iminente, um medo cada vez mais opressivo começou a dar-lhe a volta ao
estômago.
Providence relembrou o Game over do vídeo. Não se voava como um pássaro, não o sendo,
sem se correr riscos. Talvez viesse a pagar com a vida a vaidade de um dia ter querido tocar nos
céus. Os monges haviam-lhe dito que estava preparada. Porém, afinal, de que é que isso valia?
Eram marginais. Ora, ela tinha verdadeiro horror a depositar a sua vida nas mãos de marginais.
A jovem mulher achou, portanto, mais prudente voltar-se para um profissional de aviação.
Conhecia um controlador aéreo em Orly. O seu insólito pedido pasmá-lo-ia de certeza e talvez
a considerasse louca – era um risco que teria de correr –, mas não poderia recusar-se a ajudá-la
a levar a bom termo a sua missão, porque ela era o seu carteiro. E nunca se recusa ajuda ao
nosso carteiro. É bom que não o façamos. Caso contrário, ele pode deixar de nos trazer boas
notícias, enfiar as nossas cartas numa outra caixa, abrir e deixar bem à vista de todos a
mensagem discreta de uma subscrição daquela famosa revista pornográfica que escondemos da
nossa mulher há vários anos ou ainda atrasar a entrega dos sapatos Zalando da companheira
em questão, o que não a faria decerto «gritar de prazer», como anuncia o slogan da marca. Bem,
o controlador não era casado, mas não se encontrava em posição de lhe recusar o pedido. Mais
a mais, não lhe parecia homem disso.
Era um tal de Léo Machin. Um belo nome para um belo antilhano, de uma grande doçura
e, ao mesmo tempo, de uma grande força. Fora, pelo menos, aquilo que sentira certa vez
quando se aproximara para lhe dar a assinar uma encomenda. Ele cheirava a honestidade, a
rigor e ao sabão Marseille. Era um aspersor de hormonas, um fogo de artifício de feromonas
que lhe provocara arrepios dessa primeira vez. Não se cruzavam amiúde, mas só o via a ele em
casa. Na verdade, era um belo rapaz celibatário. E, portanto, mais fácil de seduzir.
Pedir-lhe-ia permissão para descolar de Orly. Não queria ser perseguida por aviões de caça
a intimá-la a aterrar ou capazes de a abater em pleno voo. Num aeroporto, estaria à vista de
todos e poderiam vir em seu auxílio se lhe acontecesse algo na descolagem. Aquilo ia ao
encontro do preceito do Mestre Bué, que defendia que havia que tentar, na medida do possível,
manter os poderes no mais absoluto segredo. Contudo, Providence ultrapassara essa «medida
do possível» havia já muito tempo; na verdade, desde que aquela história de loucos começara.
Além disso, Léo dar-lhe-ia de certeza bons conselhos lá para cima, porque os dos monges
pareciam-lhe um pouco fantasistas.
Regresso a Orly, disse ela.
Quando chegou ao aeroporto, Providence apercebeu-se de que a situação estava bem pior
do que quando ela partira. Centenas de turistas e de homens de negócios enraivecidos haviam
feito os comissários de bordo reféns e exigiam soluções imediatas. Outros, sentados ou deitados
pelo chão, observavam o espetáculo com um olhar vítreo. Polvilhe-se tudo aquilo com o choro
das crianças e obter-se-á uma versão moderna de A Balsa da Medusa, de Géricault.
Recordando-se, de súbito, do preceito número três de Choo Noori, Providence lançou-se à
procura de um biquíni antes de se dirigir para a torre de controlo. Percorreu as lojas duty free
do terminal, viu inúmeras secções de tabaco, de perfumes e de bebidas alcoólicas, mas nada de
roupa de praia. Estava já à procura de soluções alternativas, tais como confecionar uma peça a
partir das embalagens de diversos volumes de tabaco, quando topou com um pequeno stand de
venda de fatos de banho.
Os biquínis estavam a ficar cada vez mais pequenos e mais caros. Se tinham começado por
ser vendidos em caixas de fósforos, hoje em dia poderiam muitíssimo bem ser comercializados
em minúsculos cálices. Contudo, até a simples ideia lhe parecia pirosa, pelo menos tão pirosa
como a taça da Volta a França. A TAÇA, A TAÇA!, ouviu gritar, mas o Ranger do Texas
asiático não se encontrava já junto dela.
Providence escolheu um biquíni com um estampado às flores. Dir-se-ia que o fizera ela
mesma a partir dos cortinados do quarto da sua avó. No entanto, tinha, pelo menos, a
vantagem de ser leve. Enfiou-se num provador, despiu-se e experimentou-o.
Olhou para o seu reflexo por uns instantes e achou-se bonita. Apesar de uma dieta
desequilibrada e de uma patente falta de prática desportiva, ostentava um corpo de sonho que
regra geral fazia voltar várias cabeças na rua. Providence possuía uma excelente genética,
repleta de contrastes. Era magra, mas adivinhavam-se-lhe debaixo dos pulôveres justos,
quando os vestia, uns belos seios redondos e firmes. Arvorava uma cintura fina de fazer inveja
a uma vespa e tinha umas belas nádegas carnudas, que lhe haviam valido diversas alcunhas e
tinham alimentado muitas fantasias nos clubes de fãs masculinos que surgiam por todo o lado
onde ela passasse. Aquele corpo era o mais natural do mundo. Tinha-o desde que nascera. Era
de fabrico. Não precisava de fazer desporto para o manter ou salientar os músculos. A sua
energia, o seu trabalho e o seu temperamento elétrico, que não a deixava ficar muito tempo
quieta, impediam-na de ganhar o mais pequeno quilo que fosse. Podia comer o que quisesse,
quando quisesse, sem se preocupar minimamente com a linha, que se mantinha impecável.
Talvez aquilo fosse obra do seu sexto dedo, cuja utilidade nunca encontrara.
Providence voltou a vestir-se e foi pagar o biquíni à caixa, tendo o cuidado de deixar de fora
das calças de ganga e da t-shirt as duas etiquetas sobre as quais se encontrava o código de
barras. Aquela atitude destabilizou a vendedora, mas isso nada foi quando comparado com o
que se passaria dali a alguns minutos.
De seguida, arrumou as suas coisas no primeiro depósito de bagagens com código que
encontrou, ficando apenas com o biquíni, a garrafinha de «nuvicida» e uma nota de cinquenta
euros.
Subitamente, como que por magia, ou como se ela tivesse cegado a turbamulta com o
aparelho com que Will Smith apaga a memória dos seres humanos em Men in Black, os atrasos,
os cancelamentos, os aviões, a nuvem de cinza, a ira desapareceram por instantes dos espíritos
de todos. Acima de tudo, dos masculinos. Em alguns segundos, Providence tornara-se o único
polo de interesse do aeroporto e todas as câmaras de vigilância se voltaram para ela. E para as
suas belas nádegas floridas.
– E eis que chegamos ao momento em que a carteira desembarca em fato de banho na
minha torre de controlo. Deu decerto o meu nome para passar pela segurança. Embora,
conhecendo os guardas… A esta hora, o serviço de limpeza ainda deve estar a enxugar os litros
de baba que aqueles dois deixaram cair ao vê-la aproximar-se. Bom, não estava armada. Isso é
certo. Não trazia qualquer bomba consigo. A bomba era ela!
– Finalmente, chegamos à parte interessante! – exclamou o cabeleireiro, esfregando as
mãos. – Ao fim de vinte e três capítulos… Estava a começar a achar a história longa.
– Porquê? Não lhe interessou nada do que lhe contei até aqui?
– Sim, sim, mas o que quero mesmo saber é se essa senhora sempre voa ou não.
– Não quer saber do que aconteceu à Zahera?
– A menina?
– Vejo que pelo menos prestou atenção ao mínimo dos mínimos.
– Antes de mais, fale-me do voo, seja simpático. Estou a trabalhar e não tenho o dia todo.
– Quando pudesse, deveria fazer uma visita ao templo tibetano de Versalhes. Se
conseguiram curar a impaciência da Providence, julgo que o conseguirão ajudar. Além disso,
ainda não acabou de me cortar o cabelo e não tem mais nenhum cliente para além de mim.
– Isso não é desculpa.
– E é desculpa dizer-lhe que esta é a mais bela história que lhe contaram?
No preciso momento em que pedia ao controlador aéreo autorização para descolar de Orly,
Providence apercebeu-se da insensatez do que acabava de dizer. Gente havia sido internada por
muito menos. Afinal de contas, talvez devesse ter lá ficado, no asilo de alienados do mosteiro
de Versalhes, e ali acabar a sua vida na mais absoluta quietude, a tricotar pequenas lãs de queijo
e a contar os pontos das partidas de petanca com tomates verdes. No entanto, não se deixou
abalar, engoliu o seu orgulho, assumiu as suas palavras até ao fim e aguardou por uma resposta
do homem.
Ela não surgiu.
– Não quero perturbar o tráfego, senhor controlador. Gostaria apenas que me encarasse
como mais um avião. Não voaria a grande altitude, pelo que a nuvem de cinzas não me afetaria.
Não há problema se tiver de pagar as taxas do aeroporto. Tome.
Providence estendeu ao rapaz uma nota de cinquenta euros que apertava dentro do punho
esquerdo.
Considerá-la mais um avião não me parece grande problema, pensou Léo. Esta rapariga é
um verdadeiro avião!
– Não sei se é suficiente, mas é tudo quanto tenho – acrescentou ela.
Como o controlador não se mexesse, ela esboçou a sua mais bonita expressão de tristeza e
disse como se chamava, para ganhar contornos mais humanos. Vira aquilo num filme
americano, no qual uma mãe não parava de repetir aos media o nome da sua filha raptada para
que o criminoso a visse como um ser humano e não um objeto. Providence demonstrava,
assim, que era bem mais do que uma simples carteira com um biquíni às flores.
O homem emanava um odor de grande bondade e, ainda e sempre, de sabão Marseille.
Como parecia recetivo, contou-lhe a sua história. Desde o episódio da apendicite em
Marraquexe até àquele dia. Sem omitir qualquer pormenor da fabulosa aventura.
– Ela está a morrer, Léo – acabou ela por dizer. E uma fileira de lágrimas nacaradas como
mil conchas correu-lhe pelo rosto. – É a minha filha. É tudo o que tenho no mundo.
O controlador pensou para com os seus botões que a jovem mulher tinha um coração do
tamanho de um reator de um Airbus A320 (a cada um as suas referências). Fez menção de lho
dizer, mas ela não o teria compreendido, ou talvez não o entendesse como um elogio. É bem
verdade que um turborreator de Airbus nada tem de romântico ou de poético. Exceto para ele,
que via naquela obra-prima da tecnologia mecânica a união perfeita entre a fragilidade (um
simples frango congelado poderia destruir-lhe as pás) e a força (o poder dos gases conseguia
elevar um avião de várias toneladas).
Léo estava cético. Naturalmente, nem por um segundo acreditou que a carteira fosse capaz
de voar. Por definição, o ser humano não podia voar pelos seus próprios meios. Tratava-se de
uma lei essencial da física, e Léo acreditava mais nesta lei do que em qualquer outra coisa do
mundo. Era a sua profissão, a sua religião. Era engenheiro do controlo de navegação aérea, um
indivíduo das ciências, o género de homem que acredita em coisas sólidas, não em quimeras.
Porém, algo lhe dizia que estava prestes a mudar de partido, porque, por outro lado, aquela
mulher exercia sobre ele um certo fascínio. Fascínio e charme. Um charme irresistível. Para
começar, tinha a expressão de tristeza mais bonita que vira na vida. E depois as pernas, a
cintura fina, a pele branca ligeiramente bronzeada, os braços miúdos e uns pulsos minúsculos
não o deixavam indiferente. Sim, os seus pulsos ossudos, de poucos centímetros. Pulsos
perfeitos, em suma. Se tivesse cedido à tentação, teria agarrado ali mesmo numa régua para se
certificar de que eram os mais pequenos que vira até então. Porque prometera a si próprio que
a mulher da sua vida deteria o recorde mundial, o título supremo dos pulsos pequenos. E que
seria assim que a reconheceria. Uma mania engraçada que lhe valera amiúde o sarcasmo dos
pares. Vivemos numa sociedade em que a fantasia com peitos grandes é mais aceite do que o
gosto por pulsos magros. Enfim, vendo os da jovem mulher que se postava diante de si, julgou
que finalmente encontrara aquele ser perfeito que sempre procurara e com o qual desejava
viver o pedaço de existência que ainda lhe restava.
Como poderia ela ter tanta força de vontade e tanto amor a ponto de se achar capaz de voar
nos céus? Aquilo fascinava-o. Aquela inocência vinda de outro mundo. Que belo corpo. E que
bela moral.
Decidiu dar-lhe uma hipótese. Apenas porque estava curioso para ver o que ela faria uma
vez na pista. Bem vistas as coisas, não se podia dizer que estivesse cheio de trabalho. Os aviões
permaneciam colados ao chão e o aeroporto encontrava-se fechado. Sempre era melhor do que
esperar que o tempo passasse, sentado numa cadeira. Além disso, a companhia daquela mulher
era muitíssimo agradável. Ao vê-la, o coração palpitava-lhe no peito. Ora, aquela palpitação em
particular era benigna e agradável.
Ficou sensibilizado com o facto de ela o ter tratado pelo nome. Pensou no seu trabalho, na
reação dos seus superiores, talvez até numa ida a conselho disciplinar por ter recebido aquela
mulher na torre e a ter acompanhado à pista.
O mundo girava a uma velocidade louca.
A sua cabeça também.
Por instantes, reviu-se em criança no Panteão, em Paris, com o seu pai. Estás perante o
único indicador do ponto fixo do universo, havia-lhe ele dito com um sorriso, mostrando-lhe o
pêndulo de Foucault, que se balançava na extremidade de um cabo, sobre o vazio. Vivemos
num mundo móvel, no qual nada é permanente, nada é eterno. Tudo muda à nossa volta, tudo
muda dentro de nós, tudo corre tão depressa. Se conseguires encontrar o teu ponto fixo no
meio do caos, nunca o largues. Ele ajudar-te-á nos momentos de mudança e de dúvida, quando
destruírem perto de ti todos os teus pontos de referência, todas as tuas casas e hábitos. Eu, eu
encontrei-o na tua mamã. Ela é a minha estabilidade, a minha constância, a minha
imutabilidade. Ela é o meu pêndulo de Foucault.
Então, Léo decidiu que a partir daquele dia Providence seria o ponto fixo do seu universo.
Para ponto fixo, começava mal, visto que o ponto fixo iria fazer as malas, partir em viagem
e cravar dois mil quilómetros entre os dois.
Léo acabava de dar permissão a Providence para descolar.
Estava em pulgas para a ver ir ter com a filha. Estava sobretudo em pulgas para ver com os
seus próprios olhos aquela mulher de biquíni voejar rumo às nuvens, embora não acreditasse
nisso nem por um segundo. Ela lançara-se a ele e beijara-o na face, perto dos lábios, abraçando-
o com força. Léo tinha uma pele doce. Como era bonita aquela mistura de cores nos seus
braços… Uma gota de leite num pedaço de cabedal negro oleado e cintilante. Obrigada,
dissera-lhe ela com o coração e os belos olhos cor de mel, após o que ficara novamente séria e
lhe perguntara quais os procedimentos a seguir.
O jovem voltara a pôr o seu headset de controlador aéreo e ouvira as ondas. Pronunciara
algumas palavras em inglês para alertar os pilotos estrangeiros ainda alinhados no início da
pista desde o encerramento do aeroporto e de seguida voltara-se na direção de Providence
sorrindo.
– Já está. O caminho está livre. Não voe demasiado alto. A temperatura baixa com a
altitude, e a Providence não está vestida em conformidade. Além disso, lembre-se de que,
quanto mais alto sobe, menos oxigénio tem à sua disposição. Rapidamente se aperceberá disso.
Vou acompanhá-la até à pista.
Porque se daria ao trabalho de lhe transmitir semelhantes conselhos? Ela nunca conseguiria
erguer-se um milímetro que fosse do asfalto e eis que ele se lhe dirigia como se previsse que ela
viesse a alcançar a altitude de cruzeiro de trinta mil pés de um vulgar voo comercial.
– Sabia que o senhor seria um excelente conselheiro – retorquiu ela com um sorriso sedutor
e encantador.
Desceram uma escada em espiral semelhante às dos faróis junto ao mar e pouco depois
chegaram às pistas de descolagem, que se revelaram, coincidência das coincidências, também
de aterragem. Atrás das grandes baías envidraçadas do terminal, reuniram-se alguns basbaques,
que observavam a cena, intrigados.
– Boa sorte – disse o controlador aéreo.
E, sem mais delongas, levada pela insustentável leveza das carteiras apaixonadas,
Providence levantou voo.
– Alto aí, está a gozar comigo? Há uma hora que anda a perder tempo em pormenores sem
qualquer importância e, quando chegamos finalmente à parte que me interessa, o voo da
Providence Dupois, despacha o assunto num segundo: «E, sem mais delongas, levada pela
insustentável blá, blá, blá, Providence levantou voo.» Acha que me vou contentar com isso?
A fim de otimizar a ascensão de Providence e de a poupar a um esforço inútil, Léo tivera a
ideia de utilizar a potência do reator de um avião para aquecer o ar e provocar a elevação das
pequenas moléculas que deveriam arrastar consigo o corpo da jovem mulher. Tratava-se do
princípio do aeróstato, com um toque de fantasia e de ficção científica. Contudo, caso
funcionasse, aquele procedimento ajudá-la-ia decerto a galgar os primeiros metros (e ele
poderia aspirar ao prémio Nobel ou à admissão num hospital psiquiátrico). Providence
aproveitaria, então, para começar a agitar os braços e empreender a maravilhosa viagem.
Tê-lo-ia ela hipnotizado?
Nunca se imaginara a participar da loucura alheia. Contudo, era guiado por uma força na
qual a razão não entrava em jogo. Uma força que lhe nascia das regiões mais remotas do
coração. Uma força a que chamamos «amor» quando não queremos que seja conhecida como
«loucura». Apesar de a lógica de Léo lhe dizer que estava prestes a assistir a um estrondoso
fracasso e que Providence não se elevaria nem um milímetro daquela pista escaldante de
asfalto, o seu coração imaginava-a a elevar-se bem alto nos céus.
Enfim, logo se veria. Ela tinha um ar tão determinado…
Pelo headset, o controlador entrou em contato com o nariz do avião e falou com o piloto da
Lufthansa. De seguida, encaminhou Providence até junto do reator esquerdo, colocando-a a
uma distância prudente, e voltou a estabelecer ligação com o piloto a fim de controlar a
manobra.
As pás do motor puseram-se a girar. De início, lentamente, e depois cada vez mais depressa.
Embora cético em relação ao resultado da experiência, Léo iria até ao fim. Sob risco de passar
por idiota aos olhos dos pilotos. Fez alguns gestos à jovem mulher, tentando informá-la de que
tudo estava a correr bem, ante o olhar intrigado do alemão, que, tendo em conta o facto de os
aviões ainda não se encontrarem dotados de retrovisores, nada via da cena irreal a acontecer
atrás das suas asas.
Uma corrente de ar quente agitou o cabelo curto de Providence e fez estremecer o seu
corpo frágil. Alguns segundos depois, a jovem carteira foi propulsada pelos ares, ela e o seu
biquíni às flores, qual fatia de pão de forma tostado a saltar da torradeira.
Situação: o céu, mais comummente chamado «atmosfera» (França)
Quis-ó-metro: 2105 quilómetros

Quando abriu os olhos, a jovem carteira encontrava-se no céu, a mais de uma centena de
metros do chão. Abaixo, estendia-se o imenso aeroporto e os seus aviões colados ao solo, como
numa maqueta de arquiteto. As pessoas tinham-se encaminhado para a pista e observavam-na,
a cabeça voltada para cima, a mão em pala sobre os olhos. Deveriam estar tão pasmados como
ela, isso é certo. Ouvia-se um vago murmúrio, como se a multidão a aclamasse.
Já estava, conseguira.
O Mestre Bué e o Monge superior tinham razão. Providence conseguia voar. Tinha esse
dom. Sempre o tivera.
Era inacreditável.
Em terra, informados da missão de Providence por Léo, que a comunicara pelos altifalantes
dos terminais, os viajantes haviam posto de parte as suas preocupações corriqueiras, os seus
voos cancelados, as suas reuniões ou o primeiro dia de férias para apoiarem a causa daquela
mãe que, levada pelo amor, ganhara asas, tentando reunir-se à filha que a esperava no outro
lado do mar. Tratava-se de uma mensagem de amor tão bonita que, diante dela, deixaram de
existir nacionalidades, religiões, mas antes um povo, uma raça, a raça humana. Com ela. O ser
humano é o único ser capaz de realizar sonhos movido apenas pela força da vontade, é o único
ser, aliás, que sonha. Porque, excetuando num romance de George Orwell, será que os animais
o fazem mesmo?
Providence lobrigava Léo, lá em baixo, muito lá em baixo, a despedir-se com gestos largos.
Feliz, a carteira agitou os braços com mais vigor e ascendeu outros tantos metros, tendo bem
presentes as palavras do controlador. Não subir demasiado. O frio e a escassez de ar
esperavam-na ao virar de uma nuvem.
Pouco depois, o aeroporto desapareceu e grandes espaços verdes e amarelos invadiram a
paisagem, um imenso quadrado de tecido tão sarapintado como um tapete de casa de banho do
IKEA, que se estendia a seus pés e lhe indicava o caminho a seguir. Não trouxera consigo uma
bússola, mas sabia instintivamente para onde se dirigir. As mães sabem essas coisas.
Veio-lhe ao espírito uma canção de Jacques Brel:

Ce fut la première fleur


Et la première fille
La première gentille
Et la première peur
Je volais je le jure
Je jure que je volais
Mon coeur ouvrait les bras.11

O cantor belga parecia tê-la escrito para ela.


Para aquele dia.
Para aquele momento.
Em breve, a jovem carteira alcançou a primeira nuvem e nadou rumo a ela porque não se
assemelhava em nada a um chapéu de cozinheiro ou a uma couve-flor. Tratava-se apenas de
uma grande bola de algodão vaporoso. Mergulhou nela, deslizando entre os seus filamentos e,
no momento em que chegou ao núcleo, a água de gotas congeladas que a compunha rebentou-
lhe na cara e nos braços nus qual vaporizador gigante. Que sensação! E que fragrância! O
Monge superior tinha razão. Era maravilhoso cheirar uma nuvem. Mais um aroma para o seu
repertório olfativo! O odor do Paraíso. Não era todos os dias que nos deparávamos com aquele.
Suspensa no ar, Providence executava movimentos de bruços, como se se encontrasse na
piscina de Tourelles, onde costumava ir nadar em criança, ou como costumava fazer também
em sonhos. Nadava em pleno céu. Mas aquilo era tão melhor do que no seu sonho!
Um pássaro passou junto dela, assobiando-lhe ao ouvido. Intrigado por ver um humano ali,
acompanhou-a ao longo de alguns metros antes de voltar a desaparecer no céu para informar
os pares daquele incrível encontro.
Em criança, Providence era constantemente chamada à atenção pelos professores, que lhe
diziam que andava sempre com a cabeça nas nuvens. E eis que, naquele dia, estava com os pés
nas nuvens.
Mantém-te concentrada, disse para consigo. Pensa na taça da Volta a França.
De súbito, na terceira nuvem à esquerda, foi assaltada pela dúvida.
Encontrava-se ainda no início da viagem, mas imaginava-se a voar mais alguns instantes e
depois, morta de cansaço, a cair qual bigorna direta à terra. Não estava num desenho animado
em que a personagem caminhava no vazio e só caía a pique no momento em que se apercebia
da falta de chão sob os seus passos. Na realidade, ela cairia do céu como uma fatia de pão com
manteiga. Como no jogo Deixa Cair a Fatia de Pão que organizava, de tempos a tempos, à hora
do lanche, com Zahera.
Consistia no seguinte: barrar uma fatia de pão com manteiga ou doce, estender o braço e só
então largar. O objetivo do jogo? Que caísse do lado não barrado. Providence voltava a ser
criança ao passo que Zahera, mais conscienciosa, tomava nota das estatísticas. Por exemplo, em
vinte ensaios, a fatia caíra dezasseis vezes no chão com a face barrada; três com a face lisa; e
numa ocasião ficara colada à mão. Amiúde, alertada pelas gargalhadas das outras doentes, a
senhora da limpeza entrava na cozinha furiosa e, vendo todo o doce do frasco pelo chão,
lançava-se às culpadas e ameaçava-as com a esfregona antes que elas lhe pudessem explicar que
aquilo se tratava de uma experiência científica importantíssima e que estava em jogo o destino
do universo. A senhora da limpeza, aparentemente mais preocupada com o destino dos seus
ladrilhos do que com o do universo, expulsava-as da cozinha, praguejando em árabe. De volta
ao dormitório, a menina anotava os resultados no seu caderno e retirava as devidas conclusões.

Postulado 1:
Uma vez largada, a fatia de pão cai sempre.

Postulado 2:
A fatia de pão cai quase sempre do lado barrado. E, visto que a cultura é como o doce de
fruta, quanto menos se tem, mais se ostenta, então, não é falso dizer-se que a fatia de pão cai
sempre do lado da cultura (apesar de isto não querer dizer nada).

Postulado 3:
Se, excecionalmente, a fatia de pão cair do lado não barrado, é porque não se barrou o lado
certo.

Providence voltou à realidade.


Precisava de se concentrar. Assim a haviam aconselhado os monges. Nada de Game over
autorizado naquela vida.
A viagem parecia estar a correr bem até então. Mas como seria o regresso? Perguntava-se
como voltariam as duas. Porque decerto não deixariam que o avião com a assistência médica
que ela contratara descolasse rumo a França.
Como poderia ela transportar Zahera nos braços? Nunca poderiam voar juntas. Era
demasiado peso. Além disso, a menina já tinha uma nuvem no peito. Suportaria nadar entre
elas?
Providence verteu algumas lágrimas.
A vários milhares de quilómetros dali, o meteorologista captou aquela precipitação lacrimal
no seu computador. Uma bela tonalidade azul-esverdeada invadiu-lhe o modelo higrométrico.
Era como se, pela primeira vez na história do céu, chovesse acima das nuvens.

11 Foi a primeira flor/E a primeira rapariga/A primeira gentil/E o primeiro temor/Eu voava, juro-o/Juro que voava/O meu
coração abria os braços. (N. da T.)
François Hollande decidiu apanhar o metro naquela tarde. Tratava-se de um meio de
transporte de que nunca se servia. Para já, porque trabalhava onde vivia, nos Campos Elísios,
um pouco como os merceeiros árabes, os donos de restaurantes chineses ou os gerentes dos
saloons nos westerns americanos, que dormiam no andar de cima. Depois, porque se tratava de
um incrível quebra-cabeças de planificação para o seu serviço de segurança, que nunca o
deixava fazê-lo. Enfim, que o desaconselhava muitíssimo, porque não se impede um presidente
da República de agir conforme queira, no caso presente, de apanhar o metro, a menos que se
deseje uma reforma antecipada.
Eis o motivo pelo qual, daquela vez, o seu serviço de escolta não o conseguiu demover de se
enfiar nas entranhas do metro parisiense. Contudo, o chefe de Estado não escolhera claramente
o dia certo para o fazer, visto que um conselheiro chegou quase de imediato para lhe anunciar
– o telemóvel não tinha rede naquela gruta do século XXI – que um acontecimento sem
precedentes estava a transtornar o mundo: por amor à filha, uma mulher voava.
– Ai, não, isto não me pode estar a acontecer. Tanto amor aos filhos só me lembra a história
da mãe de família que roubava os hambúrgueres do supermercado para alimentar os filhinhos
esfaimados. Não me vão refazer o golpe de 2007! Despachem-me a tipa, como fizeram com a
primeira, como fez o Sarko!
– Mas como, se ela anda por aí a esvoaçar pelos céus, senhor presidente?
O senhor Hollande foi sacudido por um risinho semelhante a um cacarejo de galinha. A sua
corte esforçou-se por imitá-lo, pelo que um cacarejo geral percorreu a composição do metro,
composta por 99,9 por cento de agentes da polícia e 0,1 por cento de civis, a saber, uma
senhora quinquagenária, espremida entre dois mastodontes e que fora forçada a assinar um
contrato de confidencialidade, no qual se comprometia a esquecer ali mesmo todas as palavras,
por muito engraçadas que fossem, do presidente.
– Ela voa como um pássaro, senhor.
– Como um pássaro? Que interessante! A LPN12 está ao corrente?
– Não, senhor.
– Certo. E o INAC?
– Não, senhor.
– Ainda melhor. E os Serviços Secretos?
– Não, senhor.
– Não esperava menos de si. Bom, nesse caso, todos para o Charles-de-Gaulle.
– A mulher partiu de Orly.
– Muito bem, nesse caso, todos para Orly!
– Senhor, o aeroporto de Orly encontra-se encerrado.
– Muito bem, nesse caso, todos para o Charles-de-Gaulle!
– Senhor, todos os aeroportos se encontram encerrados. Não leu a circular desta manhã
com o ponto de situação?
– Se se está a referir ao enorme dossiê vermelho com cerca de uma centena de páginas e de
carácter urgente que me trouxeram esta manhã, pelas onze horas, não. Tal como o Pompidou,
não leio um ponto de situação com mais de uma frase; como sabe, nesse caso, haverá bem mais
do que um ponto.
– Da próxima vez, envio telegramas – murmurou o conselheiro.
– Desculpe?
– Nada, senhor presidente. Estava a dizer que tem toda a razão. Vou pessoalmente
certificar-me de que os próximos pontos de situação não excedem uma frase. Com todo o
rigor, esta poderá é ter várias orações, se me permite.
– E, já que estamos a falar disso, nada de dossiês vermelhos. Nunca os abro. Assustam-me.
Podem explodir-me na cara a qualquer momento. Compreendido? Bom, voltemos aos
aeroportos.
– Todos encerrados, senhor.
– Nenhum aeroporto francês está encerrado para o presidente dos franceses.
– Uma gigantesca nuvem de cinzas impede os aviões de descolarem. Eis o que constava na
circular desta manhã.
– Como vê, poderia ter resumido isso numa só frase: Uma-gigantesca-nuvem-de-cinzas-
impede-os-aviões-de-descolarem. Não é mais complicado do que isso. Bom, pois fique sabendo
que nuvem alguma poderá impedir o avião do presidente dos franceses de descolar!
Subiram rapidamente até à superfície, e uma escolta motorizada e com sirenes conduziu o
presidente até Orly, onde o esperava uma agente bigoduda do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras para lhe fazer o ponto de situação.
– Bom dia, senhor – disse o presidente –, ponha-me ao corrente das novidades.
– Senhor presidente, eu não sou um homem – retorquiu a agente.
– Isso é consigo, meu caro – reforçou o chefe dos franceses, que não queria intrometer-se
na vida privada do funcionário. – Pedi-lhe que me pusesse ao corrente das novidades, não que
me relatasse os seus problemas de identidade sexual. Apesar de ter gostado muito do que fez no
Festival Eurovisão da Canção…
O bigode da mulher estremeceu de raiva.
– A voadora acaba de atravessar a fronteira espanhola, senhor.
– O quê? Já está na terra dos comedores de paella! Vamos, já perdi demasiado tempo. Leve-
me até ao Air France One! E depressa!

12 Liga para a Proteção da Natureza. (N. da T.)


– Gosto muito do Hollande – disse o cabeleireiro.
– Eu, nem por isso. Mas, enfim, prefiro-o ao outro François.
– O François Mitterrand?
– Sim, o Mitterrand. É uma personagem que nunca me agradou; era demasiado frio e rígido
para o meu gosto.
– Sim, tem razão, demasiado frio e rígido. E nem lhe conto desde que morreu…
Situação: acima dos Pirenéus (França-Espanha)
Quis-ó-metro: 1473 quilómetros

As nuvens nadam como envelopes gigantes, como cartas que as estações enviariam umas às
outras, disse, certo dia, o poeta albanês Ismaïl Kadaré. Uma carteira não teria escrito melhor.
Como era lindo o mundo visto de cima. Tratava-se de uma sensação diferente da de
apanhar um avião, porque, até então, ainda não tinham inventado as aeronaves com pisos de
vidro, como o dos barcos apanha-turistas de Marselha, o que teria sido maravilhoso. E, mesmo
assim, os passageiros não poderiam desfrutar daquela doce sensação de frescura e humidade
que nos acaricia a cara, nem da liberdade total, nem, por fim, do odor. O odor do Paraíso.
Providence era senhora dos seus movimentos e do seu rumo, mestre da altitude a que desejava
voar.
Reparou nos marceneiros instalando cata-ventos nos cumes das catedrais, avistou os
limpadores de janelas a descansarem, refastelados sobre os telhados de cristal. Era incrível tudo
o que se via cair das varandas. Jovens raparigas em lágrimas, alpinistas amadores, uma caterva
de personagens saídas de uma canção de Higelin. Em poucas horas, a jovem carteira sobrevoou
as principais cidades francesas e atravessou a gigantesca cadeia montanhosa que separava o seu
país de Espanha. Como que por magia, o tapete que se desenrolava a seus pés mudara.
Tornara-se mais amarelo, mais seco, menos verde. A terra árida ia ficando cada vez mais
sedenta à medida que se ia descendo de latitudes.
Providence parara por duas vezes para beber um pouco e recuperar forças. Porque não lhe
bastava abrir a boca dentro de uma nuvem para saciar a sede. Mais valia tentar beber água saída
de um vaporizador a cinco metros. Teria precisado de horas só para encher um copo. Decidira,
portanto, descer à terra antes de alcançar os Pirenéus, num lugar pejado de rios, lembrando
veios nas rochas da montanha. De seguida, não sentira qualquer dificuldade em ascender
novamente aos céus.
Ao olhar para a superfície da Terra, avistava, por vezes, longas colunas humanas, tão longas
como colónias de formigas. Aparentemente, seguiam viagem lá em baixo. Confirmara-o ao
cruzar-se com um balão, perto de Madrid. Ora aí estava, os aeróstatos eram livres de ir e vir
pelos céus! Um meio de transporte de que não se lembrara. As quatro pessoas a bordo haviam
aproximado dela a barquinha, oferecendo-lhe alguns alimentos para petiscar. Uma banana,
bolos feitos por «fãs» que lhe queriam transmitir toda a sua amizade e agradecer aquela lição de
vida tão bela e importante. É como se voássemos todos consigo nas nuvens, lia-se numa pequena
nota inserida no tupperware. É a nossa Sininho! E o jornalista a bordo, munido de uma câmara
e de um microfone, confirmou-lhe que, em baixo, na Terra, já a chamavam «a fada da 4L
amarela» (porque trabalhava nos Correios).
A fada da 4L amarela. Em tempos normais, uma fada só tinha duas asas. Ela tinha quatro.
O nome não soava nada mal.
E aquela notoriedade…
Num instante, Providence tornara-se tão famosa como a Mona Lisa. Tão famosa como
todas as atrizes de cinema francês e americano: Sophie Morceaux, Juliette Brioche, Audrey
Toutou, Marion Cotillon, Angelina Patrèsjolie, Natalie Portemalle e mesmo Penelope Creuse13.
Porém, o mais impressionante naquilo tudo era o facto de o mundo ter feito eco da façanha
de Providence e de um gigantesco sentimento de amor ter submergido o planeta. Por instantes,
as guerras e os conflitos haviam cessado; por instantes, a batida cardíaca do ódio silenciara-se.
«Heal the world, make it a better place», assim tinha cantado tantas vezes Michael Jackson. E
agora já cá não estava para o ver. Nem Nelson Mandela, aliás. Nem Martin Luther King, nem
Gandhi, nem Madre Teresa. Triste ironia do destino, todos aqueles que haviam em tempos
lutado pela paz no mundo já não o habitam. Os sírios pousaram as armas nos sacos de areia e
puseram as mãos em pala sobre os olhos, perscrutando o céu. Não poderiam ver a francesa
porque esta se encontrava demasiado para Oeste. Mas tinham parado o combate. Umas tréguas
súbitas e inesperadas, como quando um casal de candeias às avessas topa por mero acaso com
um filme romântico na televisão e acaba por se refastelar no sofá, as mãos entrelaçadas,
olvidando num segundo semanas de quezílias. Vá lá, e que tal esquecermos tudo isto?, propôs
um palestiniano a um israelita, enquanto lhe encostava uma arma automática ao rosto. Um
pouco por todo o lado, famílias desavindas reconciliaram-se, pais desertores regressaram aos
lares, mães destroçadas voltaram aos contentores de lixo para buscar os recém-nascidos que
haviam abandonado.
De modo que se podia mudar o mundo.
Quando não nos propúnhamos a fazê-lo.
Providence levara o lixo certa manhã e, de caminho, salvara o universo.
E antes que todas as televisões do planeta tivessem anunciado a boa-nova em jeito de
breaking news, já a situação voltara ao normal. Aquilo durara tão-só alguns minutos. Três.
Depois − o tempo de o mundo acordar daquela hipnose, voltar os seus assuntos corriqueiros, o
tempo de um anjo passar−, o palestiniano puxou o gatilho. Nesse preciso momento, um branco
matou um negro na Alemanha; um negro, dois brancos na África do Sul; um jovem
desequilibrado esteve na origem de um massacre numa universidade americana, usando a
arma que lhe tinha sido oferecida aquando da abertura de uma conta bancária; um grupo de
lenhadores clandestinos matou cinco membros da tribo amazónica Awá; um iraniano
assassinou um iraquiano; um iraquiano matou um iraniano; um paquistanês lançou ácido
sulfúrico à cara da mulher que tinha olhado para outro paquistanês; um brasileiro matou uma
idosa ao tentar puxar-lhe a mala; um terrorista da Frente al-Nusra assassinou doze civis e feriu
outros quarenta e três num ataque-suicida num mercado de Damasco; e um peruano
depressivo saltou de um prédio de oito andares, sem largar o poncho e a flauta-de-pã,
cilindrando, no final do trajeto, dois peões que não tinham culpa de nada.
O mundo voltara ao normal.
Mas nunca se poderia apagar aqueles três minutos de paz total durante os quais nem uma
morte tinha sido registada. Nem mesmo de causas naturais. Os idosos e os doentes
aguentaram, cerrando os dentes, como quando se retém um espirro para não se acordar uma
criança.
E a proeza da jovem carteira não tivera apenas consequências no espírito e no coração
desses homens e mulheres que povoam o nosso belo mundo, mas também nos corpos, esses
pedaços de carne que fazem de nós mais humanos, vulneráveis, e que passeamos para todo o
lado. Porque não é exagerado declarar, e a imprensa internacional não se coibira de o fazer, que
neste dia, nos quatro cantos do globo14, inúmeros foram os que, após terem vislumbrado na
televisão Providence voar para se juntar à filha, se curaram de doenças. Este do seu
cancrozinho, aquele da sua leucemiazinha, aquele outro do seu coraçãozinho partido.
E, de seguida, também nesse campo, tudo voltara ao normal.
Alheia a isto, Providence agarrava-se com uma mão à barquinha do aeróstato e agitava o
outro braço para equilibrar as forças, como os ciclistas que se apoiam ao carro do seu
patrocinador. Respondia ao jornalista sorrindo, num misto de esforço e diplomacia. Mestre
Bué estaria decerto louco de raiva diante do seu televisor barato, naquele apartamento
escaldante em Barbès ou na sua grande propriedade do 16º bairro, se é que esta alguma vez
existira. Estaria a dobrar a língua. Mas perceberia o motivo pelo qual a sua discípula optara por
revelar ao mundo inteiro o seu dom. Porque era por uma boa causa, não para limpar as janelas
do arranha-céus mais alto do Dubai.
A aventura da jovem mulher tornara-se o centro de todas as atenções, um pouco como a
Volta a França, mesmo apesar de ela ter, havia muito tempo já, atravessado a fronteira.
Ganharia a horrenda taça. E Choo Noori ficaria orgulhoso dela.
Pouco depois, o aeróstato afastara-se (ou terá sido Providence quem se afastou?), e a
carteira recuperara o seu cantinho da paz, a sua nova casa. Aquelas nuvens eram agora o seu lar
e agitava novamente os braços, revigorada.
Sempre que os membros lhe começavam a ancilosar, pensava em Zahera, e a dor tornava-se
mais suportável. Cada segundo que passava aproximava-a da filha, cada batida de braços, cada
cidade sobrevoada, cada rio, cada nuvem atravessada. Era incrível estar ali. Mágico. Tinha a
impressão de sonhar, mas as sensações eram bem reais.
De repente, foi arrancada aos seus pensamentos por um ruído surdo, imponente. Um avião
azul e branco aproximava-se. Letras grandes estendiam-se ao longo da fuselagem: UNITED
STATES OF AMERICA. Imobilizara-se ao seu nível, lembrando aqueles filmes de piratas, nos
quais os barcos dos flibusteiros abordam os outros para combater. O avião estava tão próximo
dela que Providence conseguiu ver pelas janelas do cockpit os pilotos a mascarem pastilha
elástica. No oceano, teria nadado na companhia de golfinhos; nos ares, nadava entre aeróstatos
e o Air Force One! Quando todos os outros aparelhos se encontravam pregados ao solo, só um
avião estava autorizado a adejar nos céus, aquele que transportava a bordo o presidente dos
Estados Unidos.
Como não estava a grande altitude, a porta do aparelho presidencial abrira-se sem que
ninguém fosse aspirado qual ostra, como nos filmes de ação. Dois homens de smoking
enlaçaram Providence pela cintura e puxaram-na. A jovem francesa deslizara pela abertura, e,
sem que lhe perguntassem nada, dera consigo com uma palhinha numa mão e um copo de
whisky com dois cubos de gelo na outra.
Eis como a insignificante carteira da periferia Sul de Paris se vira diante do homem mais
poderoso do mundo. Depois de Mestre Bué, claro.

13 Os nomes das atrizes foram alterados e correspondem a brincadeiras diversas, assim sendo, numa tradução à letra, e
conforme constam no original, os nomes significariam em português: Sophie Bocados, Juliette Brioche, Audrey Tutu, Marion
Saiote, Angelina Nãotãobonita, Natalie Porta-bagagens e Penelope Fútil. (N. da T.)
14Eu sei, eu sei, um globo não tem cantos, uma vez que se trata de uma esfera. O meu editor já mo havia assinalado no Faquir,
mas gosto bastante de insistir. (N. do A.)
Apesar do seu imenso poder, Obama era um homem simples. Como muita gente, mal
chegava a casa (ou ao seu avião, o que ia dar no mesmo), trocava os sapatos envernizados pelos
confortáveis chinelos vermelhos com o desenho de Homer Simpson. Foi, portanto, assim
vestido com as cores da nação, fato azul-marinho, gravata branca e pantufas encarnadas, que o
homem de Estado recebeu a jovem francesa, com um sorriso rasgado nos lábios.
– My Dear Providence, I jumped right away in my Jumbo the very moment I…
Uma loira de dentes brancos aparecera como que por magia a seu lado e começara a
traduzir.
– Minha cara Providence, saltei para o meu Jumbo no segundo em que ouvi falar do seu
feito. Neste preciso momento, deveria estar a caminho da Grécia para a abertura dos Jogos
Olímpicos, nomeadamente para a modalidade de lançamento de caroços de cereja, na qual a
equipa francesa, disseram-me, é favorita. É verdade que o equipamento é tricotado à base de
roquefort? Sabendo que os franceses não cheiram lá muito bem… (Isto, pediu para não
traduzir, mas não pude evitar.) Enfim, pois, queria vê-la voar com os meus próprios olhos. Esta
sua proeza é bela e meritória. Fantástica, aliás. Como diria Neil Armstrong, «é uma pequena
batida de braços para o homem, enfim, a mulher, mas uma grande batida para a humanidade».
Pena que seja uma francesa a consegui-lo antes de qualquer outro. (Isto também me pediu para
não traduzir, mas é mais forte do que eu.) Felicito-a, em nome dos Estados Unidos da América,
pelo seu primeiro voo! Condecoro-a com a medalha americana da Paz. Qual a relação entre a
paz e o seu feito? Nenhuma, mas é a única medalha que me resta. Tenho os armazéns cheios
delas. Não consigo despachá-las.
– Suponho que também lhe tenha pedido para não traduzir isto.
– Não, porquê?
–…
Barack Obama tirara um pequeno pedaço de tecido azul e branco em forma de estrela do
estojo que lhe estendia uma outra loira com dentes brancos, surgida, também ela, como que
por artes mágicas, e pregara-a à parte de cima do biquíni de Providence. De seguida, beijara-a
com emoção nas faces.
– Thank you – retorquiu a jovem francesa, honrada e inquieta com a possibilidade de
aquele peso extra poder vir a perturbar-lhe o voo.
Os dois homens de smoking preto dos Serviços Secretos voltaram a agarrá-la com firmeza e
escoltaram-na até à porta do avião. Daí, lançaram-na no vazio, desejando-lhe boa viagem antes
mesmo de ela poder gritar Gerónimoooo.
Providence precisou de alguns segundos para reencontrar o ritmo de cruzeiro. Quando o
conseguiu, eis que se deparou de novo com um ruído surdo perto de si. Um outro avião, desta
volta branco, com a inscrição république française na fuselagem, voava a seu lado à semelhança
do que fizera, alguns minutos antes, o bólide americano. Os aeroportos não estão fechados para
todos, pensara a jovem mulher.
A porta da frente da aeronave abriu, e duas mãos possantes agarraram-na. Antes de poder
dizer ufa, Providence deu consigo diante de François Hollande, chefe dos franceses.
– Sou o primeiro? – perguntara-lhe sem quaisquer preâmbulos.
– Sim, senhor presidente – mentira Providence.
– Que bom – suspirou, aliviado. – Até antes do Obama?
– Até antes do Obama.
– Fixe. Sabe, saltei para o meu Air France One assim que me puseram ao corrente.
– Não duvido, senhor presidente.
Se ela fosse presidente, haveria bastante tempo que também teria saltado para o Air France
One, mas para ir buscar a filha. Enfim, a plebe tinha de se contentar com aprender a voar
agitando os braços qual frango num jogo de consola inventado por génios.
Ao contrário do seu homólogo americano, Hollande felicitara-a sem a ajuda de uma
intérprete loira com dentes brancos e condecorara-a com a medalha de Mérito. Upa, um
pequeno floco de tecido azul pregado ao biquíni.
– Obrigada, senhor presidente, sinto-me honrada.
– Que medalha americana é esta?
– Aonde?
– Ora, aqui, no sutiã!
– Ah, isto!
– Parece uma medalha americana da Paz! Mas disse-me que eu tinha sido o primeiro!
Parecia mais perdido do que Adão no Dia da Mãe.
– Oh, mas é o primeiro.
– E então, como explica essa sacana dessa medalha americana nas mamas?
Quando o presidente se enervava, tinha uma lastimável propensão para a vulgaridade.
Vendo a situação a azedar, o conselheiro aproximou-se e acalmou-o com palavras sábias.
– Queira desculpar-me, menina Dupois. Ando um pouco nervoso ultimamente. Tenha
paciência… É que em breve a minha taxa de popularidade estará mais deflacionada do que o
peso argentino.
De seguida, sorriu e beijou Providence.
Antes que aquela Mary Poppins dos Correios pudesse pronunciar
«Supercalifragilisticexpialidocious» (ou «anticonstitucionalmente»), uns grandes braços
agarraram-na pela cintura, reencaminhando-a para as nuvens, o coração cheio de orgulho e o
biquíni mais pesado. Nunca saberia o que o conselheiro havia dito ao presidente para o
acalmar. Segredo de Estado.
E, a propósito de conselheiros, de presidentes e de segredos de Estado, o cortejo político
continuou. No céu, assistiu-se a um verdadeiro bailado de Boeing e de Airbus oficiais. A nata da
nata dos Estados do mundo inteiro não queria passar ao lado da «mulher que voa». Cada um
fazia questão de lhe dar um aperto de mão e mais uma condecoração. Rajoy, o presidente do
governo espanhol e a sua medalha de chocolate, devido à crise económica; Putin (um
passaporte em nome da jovem mulher nas mãos, não fosse ela vir a sentir-se atraída pela
nacionalidade russa) e a chanceler alemã, curiosa de ver de perto aquele belo fato de banho às
flores e, eventualmente, saber se poderia encontrá-lo em tamanho grande. O universo achava
aquilo extraordinário. E era. Com um golpe de asa, Providence transformara-se numa fada em
socorro da filha.
Só quando se encontrou a sós a jovem francesa se apercebeu de que conhecera os grandes
deste mundo. Obama, que cheirava a dentífrico; Putin, que cheirava a notas; e Hollande, a
queijo e alho, como bom francês que era. Tinha agora a sensação de que se tratavam de velhos
amigos.
Mas não partira só com os odores.
O biquíni estava mais carregado de estrelas do que o equipamento de um miúdo de dez
anos inscrito numa escola de esqui de Chamonix. Teria tanta coisa para contar a Zahera mal se
reencontrassem, isto se ela não estivesse já ao corrente pela internet. Oxalá fosse esse o caso.
Compreenderia melhor a sua demora. Ainda nesse dia começara a ser mãe, e já a desiludia.
Que vergonha!
Pouco depois, a jovem mulher avistou água. Reflexos prateados. Milhões de búzios
nacarados. Alguns quilómetros entre dois pedaços de terra. Bom sinal, um estreito. O de
Gibraltar. Já não estava muito longe.
O Sol continuava a brilhar e descia lentamente. Guiando-a qual fiel companheiro, não lhe
queimara as asas como a Ícaro.
O chão reapareceu de repente. Estava em Marrocos. A terra prometida. Iniciara a descida
como se fosse, ela própria, um avião. Imaginou o aviso. Arrume os tabuleiros e ponha os
assentos em posição vertical. Dentro de alguns minutos, sobrevoaria Marraquexe. Um pouco a
Leste encontrar-se-ia o hospital, um grande prédio branco perdido no meio de um enorme
tapete amarelo, entre o deserto e as montanhas.
Porém, enquanto descia até à superfície da Terra, viu surgir diante de si a silhueta de um
misterioso objeto.
Tremeu.
Muda de rumo, disse para consigo. Muda de rumo, depressa!
Os monges tinham toda a razão; aquilo assemelhava-se, de facto, a um chapéu de
cozinheiro e, em simultâneo, a uma grande couve-flor.
Tudo aquilo era bonito de mais para ser verdade.
Portanto, no atabalhoamento para mudar de rumo e evitar o cúmulo-nimbo ameaçador, a
nuvem das duas bombas nucleares, a nuvem-máquina-de-lavar, Providence engolfou-se numa
bolsa de vento que a aspirou em direção a um cume ameaçador de uma montanha que se
aproximava dela a uma velocidade vertiginosa. No esqui, é quando vemos o pinheiro mesmo
diante de nós que acabamos com o rabo no chão. No céu, acontece a mesma coisa.
Carregada de medalhas, qual veterano de guerra no 14 de Julho, ou um ditador sul-
americano em atividade, foi lançada para baixo e não conseguiu controlar o voo. A vaidade
levara a melhor.
Qual vaga que atira o corpo de um nadador de encontro a uma encosta escarpada, a
corrente de ar propulsou a nossa carteira rumo ao chão com uma força terrível. Providence
transformara-se numa boneca de trapos dócil e vulnerável nas mãos dos elementos. Demasiado
frágil para conseguir resistir a uma semelhante queda, caiu no topo da primeira árvore que por
ali passava assobiando.
QUARTA PARTE

Fim de ronda montada num dromedário


A alguns quilómetros dali, Zahera travava uma luta encarniçada contra uma outra nuvem.
Prisioneira de tubos de plástico, as suas correntes, a menina parecia dormir pacificamente num
caixão de vidro. Posta num coma artificial pelos médicos que lhe procuravam aliviar o
sofrimento, esperava um transplante que decerto não aconteceria. Era o mais provável. Que
aquela espera permanecesse vã e que Zahera se fosse apagando lentamente. Que a sua
respiração fosse abrandando pouco a pouco até se extinguir.
Dali a algumas horas, não mais existiria. Não mais encheria a ala do hospital com as suas
gargalhadas, a sua juventude, a sua vitalidade. Não mais brincaria, não mais encheria cadernos
com casos incríveis acerca do mundo. Não mais encheria a cabeça de sonhos e de ambições, os
olhos de estrelas, o coração de amor. Encheria apenas um vazio. Encheria apenas uma caixa de
madeira com algumas dezenas de centímetros num pequeno canto de terra no deserto.
Encheria apenas de uma dor inconsolável a sua nova mãe. Desapareceria à mesma velocidade
com que se aparece numa polaroide ou à dos comboios que nos afastam do cais onde se
encontram aqueles que tanto amamos. Zahera habitaria apenas as lembranças dos outros. Nem
sequer habitaria o seu corpo.
Dentro em breve, aquela princesinha de olhos negros seria brutalmente privada do
envelope carnal que lhe fora reservado à nascença e apenas por alguns anos. Dentro em breve,
seria privada daquela alma que a fizera amar, sonhar, detestar, ter medo, ter fome ao longo de
todo aquele tempo, daquela alma que a levara a ser tudo o que era. Que a fizera humana. Essa
bela raça a que pertencemos, nós, os habitantes do mundo. Nós, esses seres engraçados de
todas as cores, com braços, pernas, rostos lisos ou enrugados, cabeças peludas e ventres mais ou
menos planos, sexos pendentes, olhos secos ou húmidos, em bico ou bem grandes e abertos, e
com corações que palpitam.
Aquele corpo nunca conheceria os beijos e as mãos de um homem apaixonado, o prazer, o
orgasmo, a velhice. Tratava-se de uma obra incompleta.
Fazemos filhos para que se tornem fortes, grandes, invencíveis, para que nos suplantem,
para os vermos crescer, para que tenham uma vida longa e bela, e eis que depois morrem, ao
cabo de um punhado de anos, e antes de nós. Nove meses para vir ao mundo e um segundo
para o deixar. Dentro em breve, o contrato de vida a termo certo de Zahera terminaria e ela
deveria abandonar o seu lugar no mundo. Lavar-se-iam os seus lençóis, bater-se-ia um pouco o
colchão e preparar-se-ia a cama para uma nova paciente, como se nada se houvesse passado,
como se ela nunca tivesse existido. A vida ali seguiria o seu curso, sem ela. Era injusto
desaparecer assim, sem rasto. Até o mais insignificante caracol deixa algo atrás de si, embora
seja um longo e viscoso fio de baba.
– Quando olho para ela, vejo a minha filhinha – disse um dos médicos que estavam à sua
cabeceira. – Agora só queria fazer uma coisa: ir para casa, abraçá-la e dizer-lhe que a amo.
Aproveitar cada momento com ela.
Os dois homens viram as pálpebras da menina tremer.
Contemplando-a ali, deitada naquela cama, nunca teriam imaginado que ela pudesse estar
tão longe, nos seus sonhos, já a caminho da China, num comboio a todo o vapor.

***

Zahera abriu a sua mochila. Só trouxera consigo uma maçã verde, uma garrafa de água e
um pacote de dez cornos de gazela que roubara da cozinha do hospital. Parcos mantimentos
para uma viagem tão longa. Porém, procuraria reabastecer-se na primeira ocasião que lhe
surgisse. Era uma lutadora («as Zaheras lutam, com todas as suas forças, em prol da felicidade e
do bem da humanidade»). Embora não fosse bonito roubar, por vezes, a felicidade da
humanidade justificava o roubo de uma maçã. De certeza que Alá, o seu criador, não lhe
apontaria algo tão insignificante.
A menina limpou o fruto com as mãos e deu-lhe uma valente dentada. O sumo açucarado
espalhou-se-lhe nos lábios, deixando-os cobertos de um verniz brilhante. Como lhe sabia bem
comer! Saíra sorrateiramente do hospital, sem fazer barulho e sem nada na barriga, mal o
estabelecimento caíra numa noite profunda. Esperara que toda a gente adormecesse para
deslizar pé ante pé até à cozinha.
Era a primeira vez que saía de lá. A primeira vez que se sentia livre de ir aonde lhe desse na
gana.
Para sua grande surpresa, o Expresso do Oriente, o mítico comboio cuja existência
descobrira por mero acaso nas suas pesquisas na net e cuja estética e maquinaria tanto
admirava, esperava-a no fim do trilho de pedras que separava o hospital da estrada principal,
serpenteando entre as dunas do deserto. Em parte alguma lera ela que o comboio passava por
ali, por aquele canto do mundo, mas não procurou saber mais, com medo de o afugentar. Bem
vistas as coisas, tanto melhor. Entrou, portanto, e instalou-se num compartimento onde só se
encontrava um velho senhor de aspeto asiático e com um extravagante chapéu de coco
degustando uma sopa através de uma palhinha, enfiada dentro de uma caixa de cartão. O
comboio arrancou logo de seguida num silêncio sepulcral e afastou-se do lugar funesto.
Naquele momento, Zahera mastigava a sua maçã verde enquanto o homem continuava a
sorver lentamente a sopa. Feliz sintonia de barrigas cheias ou em vias de se encher. Enquanto o
peito se esvaziava. Sim, porque a menina se apercebeu de que a nuvem já não a incomodava.
Respirava, naquele instante, de forma normal. O sibilo breve e profundo de Darth Vader
deixara-a, por fim. Aquele sibilo terrível de além-túmulo partira. A nuvem acabara por lhe
libertar as entranhas qual bernardo-eremita a sua concha.
Reparou pelo canto do olho que o homem sentado à sua frente a observava por cima dos
óculos e da sua palhinha. Apercebendo-se de que acabara de lhe chamar a atenção, este pousou
delicadamente a caixa de cartão no assento a seu lado, limpou os cantos dos lábios com um
lenço de seda branca que tirara de um bolso secreto do seu fato de tweed e sorriu-lhe:
– Aonde vais tu assim sozinha?
A menina hesitou. Não perdia nada em revelar-lhe o seu destino.
– Vou ver as estrelas.
– E julgas que este comboio é o melhor meio de lá chegares? – perguntou o homem,
divertido. – Não seria um foguetão bem mais útil nesse teu estranho propósito?
Para grande surpresa de Zahera, o asiático falava árabe. Um árabe cuidado, sem sotaque.
– Não, vou visitar o sítio onde se fabricam as estrelas.
– Ah… Uma empresa de estrelas? Muito bem, muito bem… E onde é isso ao certo?
– Chama-se A Fábrica das Estrelas e é na China – retorquiu a marroquina, pasmada com a
ignorância do adulto.
– É um belo país, a China. Não se fabrica estrelas, mas fazem-se rapazes como eu.
– O senhor é chinês?
– Não se nota? – perguntou o homem, tirando os óculos e evidenciando ainda mais os seus
olhos rasgados antes de lhe piscar um deles. – Caso ainda duvides…
Estendeu uma mão aberta a Zahera. Na palma, podia ler-se uma inscrição gravada na pele.
– Made in China – leu Zahera.
– Significa «Fabricado na China».
– Eu sei – retorquiu a menina, esquecendo-se de lhe contar a história de Rachid e de lhe
mostrar o pedaço de estrela que transportava consigo, cuidadosamente embrulhado numa
meia.
– É um belo país, a China, mas levas muito pouca bagagem para um sítio tão distante. Tens,
ao menos, dinheiro?
– Não, apenas uma garrafa de água e uns quantos cornos de gazela.
O velho abanou a cabeça lentamente. Saberia ao menos o que era um corno de gazela?
Enfiou uma mão trémula numa pasta de couro pousada a seu lado e retirou uma folha de papel,
estendendo-lha.
– Toma, isto deverá ajudar-te na viagem. É um desenho que fiz há muitos anos quando
ainda sabia desenhar… Sou um artista conhecido e apreciado no meu país. Diz que sou eu o
autor e devem dar-te um bom dinheiro por ele.
A menina voltou a folha uma vez, duas vezes, mas estava completamente vazia.
– É o quê? – perguntou ela, intrigada.
– Ora essa, não vês? É o mar sem barcos.
– Ah…
Não querendo parecer mal-educada, Zahera remexeu na mochila e tirou um caderno, de
onde arrancou uma página que fingira escolher cuidadosamente. De seguida, estendeu-a ao
homem, oferecendo-lhe um desenho seu em troca. O asiático observou o rosto e o verso com
vivo interesse. Os dois lados encontravam-se tão brancos como a neve.
– É o quê? – perguntou, intrigado.
– É o céu sem nuvens – retorquiu a menina com um sorriso malicioso. – Eu não sou
conhecida. Isso não deve valer grande coisa, mas é um céu sem nuvens… O que, sabe, é muito
para mim…
Naquele momento, uma voz anunciou que o comboio acabava de entrar na gare de Pequim.
Haviam decorrido apenas cinco minutos desde que tinham abandonado o deserto marroquino,
mas aquilo não parecia chocar ninguém. Zahera atirou a mochila por cima do ombro e
despediu-se do homem, que a saudou erguendo um pouco o chapéu.
Ao sair do comboio, apercebeu-se de que não chegara a perguntar o nome ao
desconhecido, pelo que não poderia, portanto, ganhar um único yuan com a venda do seu
desenho. A página em branco mais cara do mundo.
A China assemelhava-se a todas as fotos que vira na internet. Pequim era uma cidade
apressada, com cores vivas e uma fragrância de especiarias no ar. Para além do país das estrelas,
era o país das bicicletas. Zahera encontrou uma sem cadeado, verde cromada, encostada a uma
rede de arame ao fundo de um pátio, deixou um corno de gazela em seu lugar, em jeito de
compensação, e enfiou-se no trânsito com a habilidade de um autóctone.
Em breve, o betão dava lugar aos arrozais húmidos e verdes. A fábrica distava dali tão-só
alguns quilómetros, que ela percorreu em dez voltas dos pedais. Nem mais, nem menos.
Contara-as. Para lá chegar, não precisara de guia, mapa ou GPS, como se fizesse aquele trajeto
todas as manhãs e todas as tardes.
Uma vez diante do imenso edifício, que reconheceu imediatamente como sendo A Fábrica
das Estrelas, pousou a bicicleta no chão e entrou num passo estugado. Ali, centenas de chineses,
afadigados a esculpir, com grandes golpes de cinzel, bolas perfeitas a partir de um material não
identificado cinzento-escuro, voltaram-se e saudaram-na em uníssono. Apressaram-se a trazer-
lhe um tradutor de francês-chinês para lhe mostrar a linha de produção. Grandes veículos
pesados, vindos de um caminho secreto, vertiam constantemente toneladas de minerais numa
imensa bacia. De seguida, uma tenaz de ferro partia tudo aquilo e um tapete rolante
transportava a matéria-prima rumo às diversas secções. Os trabalhadores esculpiam, então, as
bolas perfeitas, posteriormente revestidas de um produto químico que emitia radiações
luminosas na obscuridade. «A cor da luz é a A786, estilo farol de carro», precisou o tradutor,
sorrindo. Aliás, ali, toda a gente sorria. Os chineses trabalhavam muito. Trabalhavam que nem
mouros. E, sem se queixarem, burilavam a pedra ao longo do dia, sempre a sorrir, felizes com a
sua sorte naquele país maravilhoso.
Como prometera a si mesma que faria, Zahera agradeceu-lhes o facto de à noite
iluminarem o céu do seu deserto tão longínquo. Iluminarem o povo dela. E ofereceu ao que
julgou ser o chefe dos chineses o desenho do velho da sopa. «O mar sem barcos», disse, mas o
chefe não parecia conhecer. «Que importa! Esse desenho vale milhões», acrescentou. Então, o
homem fez-lhe uma humilde vénia e enfiou a folha em branco no enorme bolso da sua túnica
negra como se se tratasse de um tesouro.
Continuaram a visita.
Na penúltima secção, imprimia-se, com um carimbo e um golpe seco de martelo, o famoso
Made in China que levara a menina até ali. Contudo, a última etapa era, de longe, a mais
interessante, pois tratava-se de propulsar as bolas luminosas para todos os cantos do universo.
De modo a que pudesse ver aquilo mais de perto, o tradutor convidou Zahera a entrar, uma
estrela nos braços, num dos canhões gigantes apontados para o céu. E, em menos tempo do que
leva a escrevê-lo ou a sonhá-lo, a menina deu consigo no espaço, flutuando com um astro nos
braços.
Nem teve tempo de admirar o espetáculo do planeta azul ao longe. Uma mão agarrou-a por
detrás e tragou-a para dentro do que lhe pareceu ser a Estação Espacial Internacional. Enfiada
num piscar de olhos no fato de astronauta, ei-la a dar cambalhotas num lugar sem gravidade, o
único no universo onde os seus totós apontavam para cima em jeito de Pipi das Meias-Altas.
Zahera olhou pelo vidro embaciado de um forno. Nunca vira um soufflé tão alto. Depois,
reparou num homem de fato cor de laranja a partir dois ovos num tacho, retirando-lhes a
gema, e a batê-los. Sem o menor esforço e em alguns segundos, estavam em castelo. Uma ilha
vaporosa transbordou do recipiente qual chapéu alto.
– O ramadão só começa amanhã – disse o homem com um olhar malicioso, flutuando em
direção a Zahera. – Estou a tentar comer tudo o que consigo.
– Quem é o senhor?
– Ora, sou o Ahmed Ben Boughouiche, o primeiro pasteleiro-marroquinauta. Tu deves ser
a Zahera, se não me engano, a primeira veterinária-marroquinauta.
– Sim, isso mesmo. Também se respeita o ramadão no espaço?
– Naturalmente – retorquiu o homem, dando uma cambalhota.
Foi buscar O Ramadão Espacial para Totós, um pequeno livro preto e amarelo com cerca de
vinte páginas, que se encontrava numa prateleira.
– Estás a ver este livrinho? Mudou-me a vida – disse ele. – Tornou-se o meu melhor amigo
no espaço.
– Ai, sim?
– Há que dizer que nunca teria imaginado que um dia me perguntaria, à hora da oração,
para que lado estaria Meca… vista do espaço.
–…
– Além disso, alguma vez tentaste ajoelhar-te num lugar sem gravidade?
O homem puxou alguns cabelos para trás, revelando uma antiga cicatriz.
– A minha cabeça conhece todos os cantos de ferro desta lata de conservas – continuou ele.
– Isto só para se ver que este livro é bem necessário. O meu melhor amigo no espaço, bem te
digo.
– E será que eu também me poderei tornar a sua melhor amiga no espaço? – perguntou
Zahera.
– Isso só depende de ti.
– De mim?
– De ti e da tua nuvem. Claro que és bem-vinda e podes ficar o tempo que quiseres nesta
estação espacial. Mas, aqui entre nós, preferia que lutasses, Zahera, que vencesses essa nuvem
dentro de ti e saísses do coma.

***

Nesse preciso momento, a trezentos e cinquenta quilómetros abaixo deles, num pequeno
hospital marroquino, uma máquina apitou longamente junto da menina adormecida,
sobressaltando os dois médicos à sua cabeceira e espalhando pelos corredores e pelo mundo os
indícios de um presságio funesto.
Situação: algures entre o deserto e o céu (Marrocos)
Quis-ó-metro: 15 quilómetros

Um odor a alho arrancou Providence da sua letargia, levando-a a tremer as narinas até ao
limite do suportável. Era mais forte do que ela. Aquela fragrância perniciosa, que tanto
abominava, infestava-lhe o mais pequeno poro de pele, acordando-a de imediato. Uma tina de
água não teria tido melhor resultado.
O seu primeiro reflexo foi verificar se trazia ainda consigo, presa entre o biquíni e a pele, a
pequena garrafinha que o Monge superior lhe havia dado. Tentou mexer-se, mas a mão
permaneceu imóvel, prisioneira de uma força invisível. A jovem mulher pensou que talvez
tivesse partido alguma coisa aquando da queda, que talvez tivesse deslocado um ombro, mas
logo se apercebeu de que estava paralisada por uma corda. Fora amarrada, as mãos atrás das
costas, a uma estaca enterrada no chão. Fechou os olhos e reabriu-os, assim dissipando a fina
película de líquido lacrimal que lhe obstruía a vista. Não, não estava a sonhar. Encontrava-se,
de facto, no cume de uma bela montanha, a Lua ainda não se havia erguido e… fora raptada
por berberes.
– Berberes!
– Chleuhs – achou por bem precisar o homem sentado diante dela, lançando-lhe um hálito
de dromedário à cara. – O nosso povo estende-se do Alto Atlas até à planície do Souss.
O apurado olfato da jovem mulher informou-a de que as últimas coisas que o selvagem
levara à boca tinham sido um carneiro guisado com ervas e pimentos, com um travo de limão,
tâmaras, um chá de menta e… um cu de cabra… É incrível como se fica a conhecer uma pessoa
só de a cheirar.
– Shleuhs15? – repetiu Providence, pasmada.
Achou que os alemães tinham mudado muito desde a Segunda Guerra Mundial.
– Sim, Chleuhs – ecoou o homem com o seu sotaque francês de cortar à faca. Enfim, com
um punhal berbere. Um punhal chleuh.
Atrás dele, erguiam-se algumas tendas em pele, mas só ali estavam os dois. A situação não
era muito divertida.
– Porque é que estou amarrada? – gritou a francesa, puxando os atilhos, o que fez com que
estes a apertassem ainda mais.
O homem passeou o dedo pela barba de três dias e molhou o lábio superior com um trejeito
sonoro da língua.
– Por estas bandas é raro verem-se moças tão bonitas…
E, pronto, eis que depois de uma apendicite, acabava de dar consigo na segunda situação
que mais temia na vida: um rapto. Antes de cada viagem, que empreendia em geral sozinha, os
seus amigos tinham o deplorável hábito de a alertar para todos esses «ladrões de mulheres» que
atuavam impunemente nos países bárbaros e selvagens que Providence tinha a inconsciência
de visitar. Na Tailândia e na Arábia, havia que evitar os provadores de roupa das grandes lojas,
porque era aí que os raptores se escondiam com um algodão imbuído em clorofórmio para
adormecerem as vítimas antes de as trancarem numa caixa e aumentarem as estatísticas das
redes de tráfico de brancas. Em Marrocos, era as montanhas que se deveria evitar percorrer
sem companhia, devido a esses saqueadores do deserto que apanhavam, violavam e vendiam as
vítimas ao primeiro viajante com que se cruzassem em troca de um número de camelos
proporcional à beleza das ditas ou inversamente proporcional ao seu carácter (quanto mais
tivessem, mais baratas ficavam). Toda a gente sabe que os mercados de escravos estão cheios de
louras de saltos altos que tiveram a infeliz ideia de ir fazer um chichi atrás de um arbusto,
aquando de uma paragem do autocarro a caminho de Ouarzazate.
Providence acabara de cair na antecâmara do inferno, num desses campos perdidos no
nada, onde os homens, tristemente sós, babam ao ver o cu imundo das cabras. Nem ousava
imaginar o que acontecia quando se cruzavam com uma bela mulher, como ela, perdida no
deserto em biquíni.
– O que é que fez à minha garrafinha? – perguntou ela para desviar a atenção do velho
pervertido que a comia com os olhos.
– A garrafinha?
– Sim, a que estava aqui.
Foi enquanto indicava com um movimento do queixo a parte de baixo do biquíni, ao nível
da minúscula cicatriz da cirurgia que fizera para retirar o apêndice, que Providence se deu
conta de que aquele não era o melhor meio de desviar a atenção do selvagem. De passagem,
apercebeu-se de que já não tinha nenhuma condecoração de todas as que os chefes de Estado
lhe haviam pregado à parte de cima do biquíni. Provavelmente, haviam-se soltado na queda. E
as que não se tinham desacolchetado teriam acabado nos bolsos em pele de camelo daqueles
ladrões do deserto, fascinados com tudo o que brilha.
– Esqueça a garrafinha. Está sozinho aqui?
Eis que se lhe dirigia como a um novo amigo do Facebook. Dentro de alguns minutos,
falar-lhe-ia do tempo e talvez do preço da gasolina, os dois temas de conversa prediletos dos
franceses.
– Andava a caçar com os outros, mas o teu odor atraiu-me, minha bela gazela. Pode-se
dizer que encontrei o jantar antes de toda a gente…
O homem pousou uma mão no ombro de Providence e, com a outra, começou a baixar-lhe
a alça da parte de cima do biquíni. A jovem mulher agitou-se para todos os lados, tentando
livrar-se do toque do chleuh, mas a corda estava bem amarrada e o fulano tinha um pulso
firme. Providence tentou voar, mas o rabo não se elevou um único milímetro do chão
poeirento no qual estava sentado. Seria uma questão de concentração? Teria que ver com o
facto de os braços estarem amarrados? Precisaria de muito mais força para arrastar consigo a
estaca firmemente enterrada na terra. Além disso, nem valia a pena gritar por socorro. Se não
servia de nada em pleno dia, no metro a abarrotar em Paris, quanto mais no deserto… Era caso
para se dizer que estava já tudo perdido.
Os olhos do homem brilharam mal descobriu um seio da bela gazela. Enfiou-o todo na sua
mão de dedos ásperos e gretados e sopesou-o por alguns instantes, satisfeito com o tamanho e
o peso. Satisfeito com a textura e o calor. Só pensava numa coisa, em metê-lo todo na boca.
Inclinou-se, aproximando-se.
Para grande surpresa de Providence, não era o selvagem que soltava aquele insuportável
odor a alho. Ela identificava claramente, na melodia de aromas que a pele do indivíduo
libertava, traços de excrementos, queijo, pimenta, toros queimados e paixão de cabra. Um
pouco de tudo, mas nada de alho.
– Acho que vou ficar de quatro – disse ele, sorrindo.
E caiu duro, não de amor mas devido a uma pancada na cabeça, sobre a jovem mulher.

15
Trata-se de um termo pejorativo aplicado aos alemães e/ou ao que vinha da Alemanha, durante e no pós-Segunda Guerra
Mundial. (N. da T.)
Atrás do selvagem do deserto que acabava de se afundar a seus pés, encontrava-se um outro
homem.
Um homem que não era nem selvagem nem do deserto.
Um homem a quem ela levara inúmeras vezes o correio.
O homem que estava na base da palpitação que sentia no seu coraçãozinho.
Léo encontrava-se de pé, vencedor e grande, um prato de carneiro guisado nas mãos.
– E vai uma dose de carneiro guisado para o senhor – exclamou qual empregado de café
parisiense.
De seguida, deixou cair no chão o recipiente de cerâmica com o qual acabara de bater no
marroquino.
– Acho que este aqui está mesmo de quatro.
– Sim, pelo menos por uma boa meia hora – precisou o controlador aéreo, acocorando-se
diante de Providence e ajeitando-lhe pudicamente a alça do sutiã.
Passou para trás dela e soltou os atilhos.
– Que é que estás a fazer, Léo? – perguntou ela, pasmada, tratando-o pela primeira vez por
tu.
Bem vistas as coisas, ele acabara de lhe salvar a vida, pelo que tinham avançado um patamar
na intimidade.
Ora, tal como acontecera quando ela o tratara pela primeira vez por Léo, o rapaz sentiu-se
percorrido por um doce arrepio de prazer.
– É verdade, isso? – quis saber o cabeleireiro, o rosto atravessado por um enorme ponto de
interrogação. – Mas que caneco é que fazia você ali? Que caneco fazia você naquele momento
em pleno deserto marroquino?
Léo hesitou.
– Foi precisamente isso que a Zahera me perguntou. Bom, embora por outras palavras.
– A Zahera?
– Sim, a menina que a Providence ia buscar.
– Eu sei quem é a Zahera. Há já uma hora que me está a falar dela. Mas para que é que a
menina é também para aqui chamada?
– Na verdade, o senhor é a segunda pessoa a quem conto tudo isto. A primeira foi a Zahera.
– Ah, e depois?
Face ao olhar carregado de reprovação do velho, hesitei.
– E depois nada – acabei por dizer.
– Nesse caso, voltemos a contar carneiros, enfim, cabras. (Aqueles tipos divertem-se
mesmo com cabras? Esboçou uma careta de repugnância.) Que fazia então você no deserto?
– Deveria tê-lo explicado antes, mas não queria estragar o efeito surpresa.
– Não me apetecem artifícios teatrais, senhor Truc16…
– … Chamo-me Machin – cortei.
– Quero a verdade. Já lho disse. A verdade e apenas a verdade, nada mais do que a verdade.
– Bom, estava lá e pronto.
– Como assim, «estava lá e pronto»? A dois mil quilómetros de Orly!
– Fui até lá de avião.
– Mas todos os aviões se encontravam em terra.
– Nem todos. Lembre-se das aeronaves dos chefes de Estado.
– Meteu-se no Air France One?
– Não, não.
– Então, no Air Force One? Com o Obama?
– Não!
– Não me diga que estava no do Putin!
– Stop! Podia fazer-me o obséquio de parar? Isto não é uma adivinha! Não entrei em
nenhum desses aparelhos. Viajei no meu avião. Um pequeno e velhote bimotor Cessna, que
comprei depois de ter conseguido a licença de piloto privado. Por norma, pego nele aos fins de
semana ou durante as férias e vou dar uma volta pelos ares para esquecer os problemas. É
inacreditável como lá em cima pomos de lado as tricas do quotidiano. Nem imagino o que terá
sentido a Providence ao nadar livremente entre as nuvens. Deve ser fantástico.
O velho homem bateu com a palma da mão na testa como se se tivesse acabado de lembrar
de algo importante.
– Se tinha um avião, porque é que não levou a Providence até Marrocos?
– Porque até àquele momento estávamos ainda na realidade. Quero dizer, na realidade
palpável. Não acreditava nem por um segundo que aquela jovem mulher se pudesse elevar nos
ares só à força de braços. Ora, ponha-se lá no meu lugar.
– É só dizer. Mas também trocamos de salário…
– Uma rapariga entra-me pela torre e pede-me para a levar até Marrocos, e eu respondo-
lhe: «Está bem, está bem, sem qualquer problema. Deixe-me só ir ali buscar as chaves do
avião.» Sejamos realistas, só por dois segundos. Estava fora de questão infringir a lei e ignorar
uma interdição de voo no espaço aéreo.
– E no entanto foi isso que fez…
– O caso ganhou toda uma nova dimensão no momento em que vi com os meus próprios
olhos a Providence elevar-se nos céus. Fui o espetador privilegiado daquele acontecimento
incrível. E posso dizer-lhe que não havia fios, gruas ou efeitos especiais. Não estávamos num
filme. A Providence voava mesmo nos céus que nem um pássaro. Um pássaro desastrado, devo
confessar. Uma galinha, até. Foi então que algo na minha mente saltou. Deixou de haver lei,
interdições, superiores hierárquicos. Não havia mais nada. Aquela história tinha-se tornado
demasiado importante para que ficasse ali, de braços cruzados. Estava a assistir em direto a um
episódio único da evolução do homem. Lembre-se das palavras do Obama: «é uma pequena
batida de braços para o homem, enfim, a mulher, mas uma grande batida para a humanidade.»
Tem noção de que um ser humano voava pela primeira vez? E aquilo estava a passar-se ali,
diante de mim. Bom, para ser mais preciso, acima de mim. Mal me passou o assombro, e
quando vi que a Providence mais não era do que um pontinho escuro lá em cima no céu, o
meu coração voltou à carga e tive medo de a perder. Tive medo de que aquela fosse a última vez
que a via. Foi nesse momento que me apercebi de que estava apaixonado. Numa questão de
segundos. Como um miúdo. Portanto, sem me questionar, fui buscar o Cessna ao parque e
descolei. Sem pedir permissão ou avisar quem quer que fosse. Assumiria todas as
consequências. De certa maneira, estava protegido pela enormidade daquele acontecimento.
Segui a minha pequena nadadora de nuvens à distância. Convenci-me de que talvez viesse a
precisar de mim e que, caso lhe acontecesse alguma coisa, estaria por perto, pronto para
intervir. Bem vistas as coisas, os ciclistas têm sempre uma viatura de abastecimento por perto,
os navegadores também. Vi tudo daquela incrível viagem. O aeróstato, o vaivém de aviões
presidenciais. Tudo. Pouco antes de chegar aos Pirenéus, aproveitei a descida da Providence a
terra para efetuar, também eu, uma escala técnica. Aquela velha máquina tem autonomia para
realizar a viagem de uma assentada, mas o reservatório não estava cheio quando parti. Nunca
viajo para tão longe! De seguida, voltei a pôr-me a caminho. Sabia qual o destino da minha
carteira e nesse dia não havia mais ninguém para além dela nos céus, pelo que não me foi nada
difícil reencontrá-la alguns quilómetros adiante. Além disso, com todas as medalhas que
levava, brilhava como um sol, enquanto o seu corpo esvoaçava! Tudo correu bem até termos
topado com uma tempestade sobre Marrocos. Quando vi a Providence ser engolida pela
nuvem, acelerei em seu auxílio e nem me dei conta da ventania a chegar.

16 Truc, à semelhança de Machin, significa coisa. (N. da T.)


Léo precisou de alguns minutos para recobrar os sentidos e se relembrar do que fazia ali,
aos comandos daquela carlinga fumegante, no seu Cessna 421C com o nariz esmagado nas
areias de uma montanha.
Reviu as últimas imagens antes do acidente. Providence a ser impelida por uma nuvem de
tempestade e a tombar pesadamente rumo ao chão. Olhara em volta mas nem um traço da
jovem mulher. Teria decerto caído alguns quilómetros mais à frente. Com medo de que o avião
explodisse, soltara-se dos escombros e saíra do cockpit. As suas roupas encontravam-se
rasgadas e tingidas de sangue, mas não partira nada. Era um milagre. Perdido no deserto
marroquino, a milhares de quilómetros de casa, as duas hélices do bólide desfeitas, imaginara-
se a ser importunado, de um momento para o outro, por um menino lourinho com ares de
imperador que lhe pediria para lhe desenhar uma ovelha.
Contudo, foi um pequeno marroquino moreno com trajes esfarrapados de pastor e
sandálias quem se aproximou dele. A versão árabe do Principezinho.
– Chamo-me Qatada, sou da tribo chleuh número 436 – dissera o rapaz, surpreendido por
ver um preto aparecer do nada naquelas paragens. – Vens do vale do Drá como todos os
descendentes de escravos que habitam as regiões do sul de Marrocos?
– Nem por isso. Chamo-me Léo e sou controlador aéreo em Paris.
Qatada observara-o sem compreender bem o que ele lhe dizia.
– Não percebi o que querias dizer, mas não há vergonha nenhuma em ser-se descendente
de escravos. Não há rei que não tenha um escravo entre os seus antepassados nem escravo que
não tenha tido um rei entre os seus.
– Bonita fórmula, essa, meu rapaz, mas, sabes, o meu bisavô foi inspetor fiscal em Pointe-à-
Pitre e o meu avô, vendedor de chouriços. Só eram escravos das suas mulheres! Um par de
tiranas, as minhas avós!
O rapaz parecia mais perdido do que um pinguim nas Antilhas.
– Ando a caçar – dissera, numa tentativa de voltar a terrenos mais familiares. – Afastei-me
dos adultos para seguir a pista de um souffli.
Dizendo isto, brandiu o seu longo cajado de caça.
– Um soufflé?
– Sim. Fugiu por aqui. Tenho medo de que levante voo.
De facto, era um risco que se corria com os soufflés. Quanto mais cresciam e inchavam,
mais probabilidades havia de voarem.
– E que fazes tu aqui? – perguntara-lhe o rapaz.
– Eu… Por acaso não viste uma mulher, não?
– Uma mulher?
– Sim, são como nós, mas não têm bigode – explicara o francês, que nunca se cruzara com a
agente de Orly. – Uma mulher branca, de cabelos morenos e muito curtos… em biquíni.
– Não vale a pena estar a descrever-ma. Não há mulheres por estas paragens. O que é um
biquíni?
– Um fato de banho para mulher.
– O que é um fato de banho?
– Ora bem… Vou dizer, para simplificar, que ela está quase nua. Sabes o que é estar nu,
certo?
– Uma mulher nua? Se houver uma mulher nua por estas bandas, não vai escapar ao
Aksim! – exclamou a criança a rir-se. – Ele sente-as a quilómetros de distância. É a elas e às
cabras!
Tinha dentes bonitos e uma covinha engraçada na bochecha direita.
– Tudo isso é encantador… e onde podemos nós encontrar esse tal Maxime que cheira as
mulheres e as cabras a quilómetros de distância?
– O Aksim? É ele quem fica de vigia ao campo. É um preguiçoso que não caça nada. O papá
diz que ele é um «parasita». Como um piolho. Vai encontrá-lo de certeza atrás destas árvores,
ali.
O rapaz apontara para um conjunto de árvores secas. Depois, não querendo perder mais
tempo, despedira-se antes de desaparecer nas dunas à caça do seu soufflé.
Eis como Léo chegara ao campo chleuh e salvara Providence, dando um novo préstimo ao
prato de carneiro guisado que encontrara numa das tendas.
Pela segunda vez na vida, a jovem beijara o belo controlador aéreo. Mas daquela vez nos
lábios. Olhara-o intensamente, como se os seus olhos fossem uma máquina fotográfica e ela
quisesse imortalizar aquele momento para sempre. No peito, o seu coração bateu todos os
recordes de velocidade olímpica. «O meu herói», murmurou ela, apesar de aquilo ser um pouco
piegas, apesar de lhe lembrar uma deixa de um filme lamechas. Mas aquilo não era um filme.
Era a sua vida. Um momento único que havia que aproveitar, classificar no seu álbum de
momentos únicos. Depois, prisioneira daquele agradável abraço, deixou-o beijá-la com uma
ternura infinita, submergida por aquele odor de bondade e sabão Marseille. E pelos terríveis
eflúvios de alho que não a deixariam mais e a perseguiriam aonde quer que fosse.
A garrafinha com o «nuvicida» partira-se em mil pedaços e a poção de vida fora bebida pela
terra sedenta do deserto. Talvez o precioso líquido não tivesse tido qualquer efeito em Zahera.
Talvez a tivesse curado. Ninguém o saberia. No embate, alguns pedaços de vidro haviam-se
alojado profundamente na pele de Providence, junto da cicatriz da operação ao apêndice.
As hipóteses de salvar Zahera diminuíam.
Tal como o dia, que sabiamente se punha. Dali a uma hora, a Lua elevar-se-ia no céu e
Providence não teria cumprido a sua promessa.
Estava exausta, sentada no chão poeirento do cume de uma montanha nos confins de
Marrocos. Ela, que ainda naquela manhã saíra do seu belo bairro nos subúrbios parisienses e
apanhara o metro para ir até ao aeroporto. Como era estranha, a vida! Olhou em redor e só viu
areia e rocha. Precisava de se pôr de novo a caminho. Nunca estivera tão perto e tão longe em
simultâneo. Quase conseguia sentir Zahera a respirar no vale. Então, no momento em que
ponderava deixar-se rebolar até lá abaixo como um vulgar saco de legumes, ouviu vozes, um
rumor trazido pelo vento. Vozes de homens a falarem árabe. Aproximavam-se a rir.
Providence sobressaltou-se e olhou para Léo que, armado em Robinson Crusoé, fabricava uma
lança a partir de um pedaço de madeira, a alguns metros dela. Alertado pelo barulho, agachou-
se atrás de um arbusto, qual animal selvagem.
Se fosse a tribo de Aksim, estavam perdidos. Lesionados nos respetivos acidentes, de avião e
de queda das nuvens, Léo e Providence não poderiam lutar durante muito tempo. Seriam alvo
de uma vingança impiedosa por parte do velho árabe com hálito de dromedário, que não
hesitaria em matar a jovem francesa como paga pelo seu gesto. E não se ficaria por um prato de
carneiro guisado.
Pouco depois, apareceram dez homens montados em dromedários, com jelabas e turbantes
(os homens, não os dromedários). A vegetação dispersa não lhes permitia esconderem-se
muito tempo, sobretudo do olhar de homens entendidos há milénios na arte da caça.
Assim, mal viram diante deles aquela bonita europeia em biquíni acompanhada de um
nómada do vale de Drá vestido à europeu, agachado e armado com uma lança, os nómadas
julgaram estar a ser vítimas de uma miragem, como as que aconteciam amiúde no deserto.
Aquelas malditas alucinações que os levavam a confundir bexigas com dunas ensolaradas e
oásis com lanternas. A menos que fosse o contrário.
O primeiro ergueu a mão e ladrou qualquer coisa. A caravana parou. Providence passou em
revista toda a tropa, tentando identificar o velho asqueroso do Aksim. Mas não o encontrou.
Léo também não encontrara a criança, Qatada. Havia, portanto, uma ténue esperança de não se
tratar da mesma tribo. Apesar de não deverem existir trinta e seis naquelas paragens (havia
quinhentas e quarenta e seis…).
Eis como Providence e Leo conheceram, aliviados, a imponente tribo chleuh número 508.
Informados do que se passara com a 436, os homens quiseram ir acertar contas com
aqueles selvagens que atacavam os turistas e degradavam a sua imagem de marca. Não era,
portanto, de estranhar que nos filmes americanos os caricaturassem como perversos acéfalos e
primitivos.
– Conheço bem esse malandro do Aksim, esse filho da mãe! – cuspiu Lahsen, o chefe do
clã.
Providence gostava do nome daquele valoroso chefe. Dir-se-ia o de um autor sueco de
policiais.
– Terei o maior prazer em lhe tratar da saúde de uma vez por todas.
Contudo, a jovem carteira dissuadiu-o de tal propósito. Não por sentir qualquer forma de
compaixão pelo seu agressor (poder-se-ia falar de síndrome de Stakhalam? A versão
marroquina de Stockholm?), mas antes porque o tempo corria contra eles. Precisava de chegar
à cabeceira de Zahera o mais rapidamente possível.
Lahsen disse que estava fora de questão deixá-los no deserto e nas montanhas, propondo
que ele e os seus homens os acompanhassem até à entrada da cidade. Queria reabilitar o seu
povo, belo, digno, poderoso e orgulhoso, aos olhos dos dois franceses. Não poderia deixá-los
partir com aquela imagem que lhes haviam transmitido dos chleuhs. Bateu palmas e cobriram
Providence com uma jelaba com adornos cosidos a fio de ouro para a proteger do vento fresco
que se começava a levantar. O homem tinha uns ombros vigorosos e os olhos negros como
carvão, a pele bronzeada e as mãos de alguém instruído. Se não fosse um habitante do deserto,
seria monitor de esqui.
– Espero que não faça generalizações – disse o chefe do clã. – Nem todos os chleuhs são
pervertidos como o Aksim.
– Sabe, há parvos em todo o lado – respondeu Providence. – Nos Correios, é a mesma
coisa.
– Na torre de controlo de Orly, também é assim. Há umas quantas pessoas muito porreiras
e o chefe de torre é um verdadeiro idiota!
Lahsen não conhecia nem os Correios nem a torre de controlo de Orly, mas entendeu o que
queriam dizer. Com aquele encontro, a honra dos seus estava a salvo.
– Façamo-nos ao caminho! – disse, batendo de novo palmas.
O Sol punha-se nesse preciso momento, dando a sensação de que obedecia às ordens do
homem.
Eis como Léo e Providence se encontraram montados nas costas corcovadas de dois
dromedários, trotando no deserto rumo ao hospital. Era a primeira vez que o faziam, mas até se
estavam a safar bem.
– Tudo isto é incrível. Ainda não consigo acreditar – disse o controlador aéreo, em cima do
seu herbívoro oscilante enquanto passavam pelo cadáver do seu pequeno avião. – Vieste até
aqui a voar… é uma história de loucos! Tens de me contar como é que aprendeste a… a fazer
isso…
– E se te dissesse que foi graças a um pirata chinês, um senegalês fã de sanduíches de
estação de serviço e dois ou três monges de Versalhes?
– Então, sim, tens mesmo de me contar isso! De qualquer forma, alcançaste o teu objetivo,
Providence. Podes estar orgulhosa de ti. Eu cá estou. Além disso, mostraste-me a vida de um
outro prisma. Não sei que consequências tudo isto irá ter para ti agora. Nem para mim
(imaginou o raspanete que lhe daria o chefe mal regressasse). Mas, se for preciso proteger-te
com unhas e dentes dos sábios dispostos a tudo para te capturar e fechar num laboratório, eu
sou o homem para ti.
– Terei alcançado o meu objetivo quando tiver a Zahera nos braços e sairmos as duas deste
lugar fabuloso, é certo, mas infernal, rumo a Paris.
E, sim, és o homem para mim, quis ela acrescentar, mas a timidez impediu-a. Limitou-se a
sorrir-lhe. Alcandorado no seu dromedário, Léo parecia um senhor do deserto. Baltasar. Um
belo rei mago dos tempos modernos, com um polo Lacoste e calças de ganga. Ele devolveu-lhe
o sorriso. O sol pôs-se no seu olhar.
Situação: Hospital Al Afrah (Marrocos)
Quis-ó-metro: 10 metros

A primeira pessoa com que Providence se deparou ao abrir a porta da ala feminina foi um
homem. Rachid, o fisioterapeuta. Era o único tolerado naquela zona porque, em criança, levara
com uma tabuinha de pregos entre as pernas, aquando de uma rixa, transformando-se de facto
num remake vivo e moderno dos eunucos dos palácios d’As Mil e Uma Noites.
A Léo, a esse, fora dada a escolha entre ficar no rés do chão ou ir para o segundo piso. O
francês preferira sentar-se num velho sofá com as molas desconjuntadas no átrio de entrada,
em baixo, no qual adormecera ao cabo de alguns minutos, alheio ao drama que acontecia nesse
preciso momento no primeiro piso.
– Onde está ela? – perguntou, inquieta, a jovem francesa, que não via Zahera na sua cama.
– Providence, preciso de te dizer uma coisa. Queres sentar-te? Um copo de água? Estás com
mau ar. De onde saíste tu? Caramba, cheira imenso a alho!
– Não, não quero sentar-me e, sim, cheira a alho – respondeu com dificuldade a carteira,
que não estava habituada a tratar de mais do que uma questão ao mesmo tempo.
É verdade que já não estava fresca. Tratava-se do fim da ronda. Além disso, havia aquela
jelaba de homem, num tecido grosseiro e sujo, que cheirava a dromedário. E aquele maldito
odor a alho, de que não se conseguia livrar desde que acordara da queda.
– Estás a assustar-me, Rachid. Onde está a Zahera?
– Ela teve uma crise. Uma crise grave.
Providence cerrou os punhos.
– Grave a que ponto?
– Grave a ponto de estar em coma… Não te vou esconder que os médicos se mostram
pessimistas quanto às probabilidades de ela sobreviver. Este coma artificial serve para a aliviar
da dor. Foram eles que a colocaram à espera de…
– À espera de quê? – instou-o a francesa.
– À espera de um transplante.
– E?
– E agora esperamos. Esperamos que alguém morra…
– Ou que a Zahera morra…
O mundo ruiu em volta de Providence. As paredes cinzentas do hospital explodiram e os
vidros das janelas estalaram em mil pedaços, como se se encontrassem sob um ataque de
obuses de morteiros. O céu desabou, arrastando na queda o andar dos homens, em cima deles.
Providence deixou-se cair numa cama.
A sua filha. A sua filhinha estava a partir. Não esperara por ela. Adormecera sem a mãe ao
lado, sozinha num mundo que nunca lhe oferecera o que quer que fosse. Sozinha no silêncio
daquele vale junto das montanhas e do deserto. Sozinha e longe de tudo. Sozinha e longe dela.
Providence acabara de adotar uma menina morta, nada-morta. Uma pequena princesa, da
qual só levaria os despojos para França. Despojada, sim, daquela centelha de vida. Da próxima
vez que a tomasse nos braços, seria para embalar uma criança morta. Depois, regressaria ao seu
país com um corpo que choraria até ao fim dos seus dias. Um corpinho numa pequena caixa
não maior do que uma caixa de sapatos, que ela iria visitar aos domingos num cemitério sem
vida, cinzento, como aquele hospital onde ela vivera. Fechá-la-iam numa caixa com a sua
nuvem. Uma tempestade numa lata de conserva. Eis ao que se resumiria, em definitivo, a
existência da sua filha.
Os olhos da jovem mulher encheram-se de enormes lágrimas salgadas que a queimaram
por dentro e por fora. Olhou para o seu corpo sujo, as suas roupas sujas e malcheirosas, as suas
unhas pretas e partidas. Sentia-se como que delapidada e conspurcada. Uma morta-viva, a
cabeça e os ossos em papa. Um rolo compressor acabara de lhe passar por cima. Milhares de
Aksims acabavam de a violar em cima dos calhaus do deserto. Sentia uma dor viva entre as
pernas e nas costas.
Tratava-se da síndrome da ambulância que desliga a luz rotativa e a sirene porque é tarde
de mais, porque já não há mais urgência. E o silêncio dessa ambulância ecoava-lhe nos ouvidos.
Culpou-se por não ter vindo mais cedo, por ter perdido tempo no aeroporto, em casa do
maldito Bué e depois no mosteiro. Culpou aquele maldito vulcão que decidira cuspir a sua
peçonha na véspera. Ao fim de doze mil anos de inatividade. Como poderia alguém ser tão
azarado? Como era possível?
Providence deu um murro no colchão. Um murro que concentrava toda a sua ira e que só
fez tremer muito ao de leve o lençol. Num silêncio sepulcral. Já não tinha mais força. A senhora
que dormia naquela cama pousou-lhe uma mão no ombro. Também Rachid se permitira
tomar-lhe o braço. Contudo, nada poderia diminuir aquela dor que acabara de lhe cair em
cima como um piano de cauda atirado do quinto andar e que lhe massacrava o corpo, o
coração, a alma, tudo o que fazia dela um ser vivo, uma pessoa. Providence tornara-se um
objeto, incapaz de pensar, uma pedra, um calhau do deserto. O seu corpo não era capaz do
mais pequeno movimento. Daí a poucos segundos, o seu coração deixaria inclusive de ser
capaz de bater e os seus pulmões de respirar. Assistia impotente, qual espetadora, à sua
transformação progressiva num calhau.
Não gerara aquela menina e, no entanto, sentia uma dor aguda e insuportável no fundo das
entranhas, atrás do estômago e entre as pernas. Perdera o seu bebé. A dor dilacerava-lhe as
tripas e o abdómen. Viu-se a morrer ali, enovelada naquela cama desconhecida, no meio do
deserto, a milhares de quilómetros de casa, a milhares de quilómetros das estrelas e a uns
metros da filha.
Num último arrebatamento de vida, levou as mãos ao ventre e, através do tecido grosso da
jelaba, sentiu pequenos pedaços de vidro da garrafinha incrustados na cicatriz que resultara da
extração do apêndice.
A voz do Monge superior ecoou-lhe aos ouvidos. Não sei se a minha beberagem funciona.
Nunca a experimentei em ninguém doente. Porém, se funcionar, uma só gota bastará.
Uma só gota bastará.
Uma só gota bastará…
Providence saltou da cama como se um homem invisível lhe tivesse pespegado um valente
pontapé no rabo. Agarrou Rachid pelos braços e cravou os seus olhos cor de mel nos dele. O
homem conhecia-lhe bem aquele olhar. Era o olhar da sua Providence. Forte, determinada,
lutadora. Estrelas brilhavam-lhe nos olhos húmidos e davam-nos a sensação de que nada era
impossível.
– Temos de tentar uma coisa, Rachid! – exclamou ela qual morto que volta à vida. – Se
calhar vais achar isto uma loucura, mas temos de tentar.
O fisioterapeuta perguntou-se do que estaria a francesa a falar. Tentar o quê? Já não havia
nada a tentar. A menina estava em coma. Só lhes restava esperar. Esperar que ela acordasse.
Talvez. Ou que alguém quisesse morrer para lhe oferecer os pulmões.
– Preciso que expliques ao cirurgião que é possível que eu tenha um antídoto capaz de
salvar a Zahera.
– Um antídoto? Providence, tenho a perfeita noção de que estás a sofrer, mas bem sabes
que não há antídoto para a muco…
– Rachid, não te posso contar agora tudo o que me aconteceu hoje, mas preciso que
acredites em mim. Preciso que confies em mim de olhos fechados e que vás avisar um
cirurgião. Tenho pedaços de vidro na pele, os restos de uma garrafinha que se partiu e que
continha um elixir destinado a curar a Zahera.
Dizendo isto, a jovem francesa levantou a jelaba e mostrou a cicatriz. Um odor a alho
invadiu-lhe de repente os seios perinasais.
Alheio a tais obnubilações olfativas, Rachid começou por reparar que ela trazia um bonito
biquíni às flores. Depois, que ela tinha umas belas pernas e uma bonita cintura, fina e
musculada. Apesar da gravidade da situação, aquilo que lhe estava a acontecer naquele
momento ultrapassava em larga medida tudo o que alguma vez pudesse ter imaginado nos seus
mais arrojados sonhos eróticos. Se uma tabuinha de pregos não lhe tivesse levado o que fazia
dele homem, tê-la-ia… Enfim, nunca teria conhecido a bela francesa porque nunca teria
trabalhado na ala feminina.
– Ouve, Providence, não estou a perceber patavina – disse ele, recompondo-se. – Uma
garrafinha? Um elixir? Não estamos no filme da Disney A Espada Era a Lei, não és o mago
Merlin!
Ela perdera a cabeça, estava a viajar na maionese.
– Isso sei eu bem, vê lá tu! Nos contos de fadas, as meninas não passam a vida inteira
fechadas num hospital remeloso e não morrem asfixiadas num sofrimento atroz devido a uma
maldita doença!
Rachid baixou os olhos, incomodado.
– Providence…
– Só peço que me retirem estes pedaços de vidro, que extraiam um pouco do líquido que
eles possam conter e que o injetem na Zahera. Mais nada. Uma gota bastará. Que têm vocês a
perder? Que é que isso vos custa?
– Tens a certeza de que vá resultar?
– Não. Mas julgas que o Pasteur a tinha quando testou a sua vacina?
O fisioterapeuta mordeu o lábio e depois ergueu de novo os olhos para ela.
– Vou ver o que posso fazer.
– És um anjo!
Providence tomou-o nos braços e estreitou-o com força de encontro a si. Eflúvios de menta
e de flor de laranjeira assaltaram-lhe as narinas. Rachid cheirava bastante a humanidade e a
massa de pão fresco.
– E pronto – concluí eu.
– Pronto, o quê?
– Bom, a história terminou.
– Como assim, a história terminou? Nem sequer me disse se ela se safava.
– A Zahera?
– Claro que sim, a Zahera. Quem mais poderia ser?
– Ah, a Zahera, sim. Ela safa-se – retorqui eu, o olhar perdido no vazio.
Senti os meus punhos cerrarem-se involuntariamente e os olhos encherem-se-me de
lágrimas. Tentava conter aquela cólera e a imensa tristeza bem enterrada em mim.
– Porque é que está a fazer essa cara?
–…
– Há alguma coisa que não esteja bem?
– O que acabei de lhe contar, bom, é a história tal qual a contei à Zahera – acabei eu por
encontrar forças para responder.
Fiz uma pausa e aproveitei para engolir em seco.
– Tudo isto é o que contei à Zahera… para lhe justificar a ausência da sua mamã.
– A ausência da Providence? Que é que quer dizer com isso? – perguntou o cabeleireiro
assaltado por uma terrível dúvida.
Inspirei fundo e expirei profundamente.
– No filme, quem morre nem sempre é aquele que julgávamos estar condenado. Por vezes,
as pessoas saudáveis partem antes das doentes, pelo que há que aproveitar a vida, cada
segundo, cada instante…
– Quem morreu? – perguntou-me o cabeleireiro. – Agora, perdi-me.
– Não lhe disse toda a verdade.
– Em relação ao quê? Ao pirata chinês? Ao Pingue e ao Pongue? À extraordinária viagem
da Providence pelas nuvens? Ao violador de cabras? Ao homem mais poderoso à face da Terra
que come sanduíches seladas a vácuo? Para dizer a verdade, estou um pouco cético quanto a
este último.
– Em relação a tudo.
O cabeleireiro não queria acreditar.
– Não estou a perceber. E quem é que morreu?
Eu também não queria acreditar. Estava a dois passos de confessar o terrível segredo que
me consumia as entranhas desde aquela amanhã. O momento por que tanto esperara havia
finalmente chegado.
– Inventei tudo para proteger a menina – disse, ignorando a pergunta dele.
Uma violenta dor sacudiu-me o ventre, como se tivesse recebido o uppercut mais potente
de Mike Tyson. Ergui a cabeça e olhei para o meu interlocutor olhos nos olhos. Ele merecia que
lhe contasse a história assim.
– Se entrei no seu salão, não foi para cortar o cabelo – continuei. – Precisava de contar a
alguém aquilo que não me deixa dormir há mais de um ano, aquilo que me atormenta, a causa
dos piores pesadelos da minha vida. Porque os piores pesadelos são os que se tem de olhos
abertos, em pleno dia, aqueles que nos espiam ao virar de cada esquina, que se imiscuem no
nosso espírito enquanto comemos, enquanto lemos, enquanto conversamos com amigos,
enquanto trabalhamos. Sim, esses são os que nunca nos largam.
– Está a assustar-me…
– Não me interrompa, se faz favor. Vou tentar dizer-lhe as coisas tal como me vêm ao
espírito. É muito doloroso para mim. Imaginei tantas vezes este momento que se tornou uma
obsessão. Imaginei-o a si tantas vezes, imaginei este salão de cabeleireiro, imaginei este dia.
Sabe, precisava de desabafar com alguém, mas não com qualquer um. Com alguém que
também tivesse sido tocado por esta tragédia. Com alguém que se preocupasse com a minha
infelicidade, que a partilhasse, embora nunca pudesse vir a tornar-se meu amigo. Porque sei
que dentro de alguns instantes vou ser a pessoa que mais detesta à face da Terra. E estou
disposto a pagar o preço. Preciso de lhe explicar os meus atos. Para que não seja assaltado para
o resto da sua vida por esta pergunta: porque é que o controlador aéreo permitiu que aquele
avião descolasse quando uma nuvem de cinzas ameaçava o céu francês? Porque é que foi contra
as medidas de segurança tomadas pelo Instituto Nacional de Aviação Civil e porque é que nesse
dia só autorizou a descolagem de um avião, precisamente aquele onde viajava o meu irmão?
O cabeleireiro começou a compreender. Um rolo compressor de dez toneladas acabara de
lhe passar lentamente por cima. Um rolo compressor que levou o seu tempo para lhe esmagar
as pernas, o peito e a cabeça.
– Levei seis meses para encontrar o rasto a um parente de uma vítima do Royal Air Maroc
AT643 – continuei eu – e outros seis para me decidir a vê-lo. O seu irmão Paul estava nesse
voo. Conforme me disse, mal aqui me sentei, viajava de férias para um lugar ao sol. Umas férias
curtas que ele estava longe de imaginar que se fossem tornar tão longas. Férias intermináveis.
Nessa manhã, o Boeing 737-800 descolou rumo a Marraquexe às 06h50, com apenas cinco
minutos de atraso. As condições meteorológicas estavam perfeitas. Um pouco de vento
cruzado, mas nada de muito perigoso. O avião descolou da pista 24, sem mais nada a apontar.
Começa a compreender, não é? Se autorizei essa descolagem, é porque a Providence se
encontrava a bordo… Era suposto que fosse ao lado dela. Namorávamos há já algum tempo e
estávamos loucamente apaixonados um pelo outro. A Zahera tornou-se uma história a dois, a
três, a nossa batalha para a trazermos para França. Chamaram-me no último momento para ir
trabalhar por causa daquela estúpida nuvem de cinzas. O chefe de torre previa um dia
desastroso e não tinha efetivos suficientes. A maioria estava no estrangeiro, de férias, não
podendo ir trabalhar. Não quis saber do repatriamento da Zahera nem do que significava para
mim acompanhar a Providence nessa manhã. «O trabalho está à frente da vida privada», disse-
me. «A menos que queira fazer uma cruz em cima da sua carreira.» Como lhe disse, o meu
chefe é um verdadeiro idiota. Enfim, lá expliquei à Providence que tinha de ir sozinha e que eu
trataria de apanhar um avião mal as coisas acalmassem. Ninguém previa um dia de loucos.
Providence precisava de ir ter com a filha. O hospital tinha-nos avisado uns dias antes que a
menina se encontrava em estado crítico. Não podíamos perder mais tempo. Ela nunca se teria
perdoado caso não estivesse lá, caso a Zahera tivesse… Enfim, compreende… Eis porque dei
luz verde ao piloto, apesar das instruções. Eis porque foi o único voo que descolou de Orly
nesse dia. Nunca pensei que… De facto, julguei que passaria por entre os pingos de chuva, que
o risco fora sobrestimado. Contudo, aprendi à minha custa, e à custa da mulher da minha vida,
que não se tenta domar as nuvens sem se pagar o devido preço. Na escola de controladores
aéreos, em Toulouse, aprende-se a domar aviões. Mas nada nos prepara para as nuvens, as
invisíveis ou as de cinza. Lamento profundamente que o seu irmão se encontrasse naquele
avião. Como sabe, despenhou-se pouco antes de chegar a Menara, o aeroporto de Marraquexe.
Descobriram, de seguida, que partículas de cinza haviam sido aspiradas pelos reatores, decerto
no céu francês. Fui eu quem matou a Providence… e o Paul…
–…
– Doravante, só vivo para a Zahera. Ela foi-me confiada enquanto oficializo tudo isto.
Embora nos conheçamos há pouco tempo, considero-a minha filha. O amor que a Providence
tinha por ela era tal que de certa forma passou para mim. A Providence tinha um amor
contagiante. Vou fazer de tudo para que a menina se torne um dia a primeira veterinária-
astronauta do mundo. Aliás, até já comecei a dar-lhe formação. Bom, pelo menos no que
respeita à parte aerospacial, diga-se. Sou uma nulidade com animais… Já ficaria feliz se ela se
tornasse apenas astronauta… Vamos começar com uma pequena viagem à China, embora ela
já tenha percebido que não são os chineses quem fabrica as estrelas. Mas faz questão de lá ir.
Porque esse país sempre a fascinou. Encontrei-a nos cuidados intensivos dois dias após o
drama. Os médicos haviam-na colocado num coma artificial para a pouparem ao sofrimento e
esperando que ela se extinguisse. Não tinham qualquer esperança. Ao saber da morte da
Providence, tomei logo as medidas necessárias para que elas fossem transferidas as duas para o
hospital internacional de Rabat, um novo estabelecimento com tecnologia de ponta, os
melhores aparelhos e os melhores médicos. Não tem nada a invejar aos franceses. Enquanto era
viva, a Providence dera indicações para que lhe extraíssem os pulmões caso algo acontecesse.
Caso algo assim acontecesse. Os médicos transplantaram os pulmões da Providence na filha.
Uma estreia em Marrocos. Explicaram-me que tiveram de cortar uma parte dos órgãos para
que coubessem no peito de Zahera, muito mais pequeno. É complexo instalar órgãos de adulto
no corpo de uma criança. Hoje em dia, fazem coisas incríveis. Foi uma sorte ter escolhido
lugares na última fila do avião. Leva mais tempo a sair do aparelho à chegada, mas é o local
mais seguro. Um hábito que tenho. Graças a isso, o corpo não estava muito maltratado. Os
pulmões da Providence, eis tudo o que me resta dela, no pequeno peito da Zahera. A respiração
da Providence. A primeira coisa que a pequenina fez ao acordar foi perguntar-me onde estava a
sua mamã. Se eu me encontrava ali, a Providence teria de andar por perto. Não consegui
contar-lhe a verdade. Já era difícil dizer-lhe que não a poderia voltar a ver, que ela morrera,
partira para o paraíso das mamãs e que àquela hora talvez estivesse a jogar cartas com a sua
outra mamã, a que a dera à luz. Então, antes mesmo de me aperceber disso, comecei a inventar.
O encontro com o distribuidor de panfletos, no seu fato-macaco cor de laranja, o feiticeiro
senegalês… Os olhos dela brilhavam tanto que não pude voltar atrás. Inventei toda esta
história, frase por frase, como quem desenrola um novelo de lã, sem saber para onde vai. Pensei
que lhe seria mais fácil aceitar isto. Aceitar que não voltaria a ver a sua mamã. Inventei toda
aquela história dos monges, do voo pelas nuvens, dos berberes. Terminei dizendo-lhe que a
mamã dela não sobrevivera à operação para lhe extraírem os pedaços da garrafinha de vidro do
corpo, que o alho entrara nela e a matara, porque era alérgica. Disse sei lá o quê. Sei que é um
pouco infantil, mas a Zahera é, afinal de contas, uma criança. E, depois, queria que ela tivesse
orgulho na sua mamã, mesmo que a verdade a deixasse, também, orgulhosa. Mas achava aquela
morte estúpida, uma morte para nada. Um acidente de avião. Queria que ela guardasse uma
recordação indestrutível dela.
Calei-me. Não sabia que mais dizer. Não havia mais nada a dizer. Pensava, acima de tudo,
que o velho se iria levantar enraivecido, pegar na tesoura e espetar-ma no coração. Em vez
disso, permaneceu imóvel, os olhos pousados no espelho diante de si. Parecia estar a braços
com uma violenta tempestade interior com a potência de duas bombas atómicas.
– Não me diga que acreditou na história que acabei de lhe contar! – disse por fim, lavando,
em parte, as mãos daquilo. – O voo da Providence, os monges a jogarem à petanca com
tomates verdes, o vaivém de aviões presidenciais no céu… Bom, parece-me tudo um pouco de
mais…
– Para ser sincero, a partida de petanca não me pareceu muito credível – ironizou o
cabeleireiro, voltando o olhar para a janela.
– E, no entanto, preveni-o.
– Preveniu-me?
– Sim, na epígrafe do livro, pus a citação de Boris Vian. O leitor pode confirmar.
– Que citação?
– Esta história é totalmente verdadeira, visto que a inventei de uma ponta à outra.
– Lamento, mas nunca leio as epígrafes.
– Ah, pois, mas devia.
– Fora de brincadeiras, a morte de um ente querido faz-nos acreditar em qualquer coisa.
Repare nas viúvas desconsoladas e, contudo, inteligentes que se deixam levar e seduzir pelo
primeiro charlatão que lhes prometer entrar em contacto com o defunto. Se inventou toda esta
história para a Zahera, porque é que ouvi falar dela, quero dizer, da mulher que voava? Na
altura, li vários artigos sobre o assunto.
– A fada da 4L amarela, fui eu que a inventei de uma ponta à outra. Tive de o fazer. Sabia
que a Zahera faria pesquisas na internet acerca do assunto; sabia que ela procuraria entender.
Ora, se tal acontecimento se tivesse de facto produzido, teria de aparecer na net. Então,
encontrei um site especializado em motores de busca. Classificam sites na internet,
desclassificam outros, segundo se pretenda que tenham mais ou menos visibilidade. Escrevi
vários artigos com a minha versão, uma versão ligeira e romanceada, e postei-os. Ainda me
recordo do dia em que a Zahera me mostrou orgulhosa um dos artigos que eu escrevera.
Vinham-me as lágrimas aos olhos. Estava convencida de que a mãe era uma fada, a Sininho
que o mundo inteiro aclamara aquando da sua viagem pelas nuvens. Tal como outrora
acreditara que as estrelas eram fabricadas na China. É linda, a infância.
– Estou a ver – limitou-se a retorquir o homem.
– Eu sei que me culpa. Eu próprio me culpo. Sou responsável pela morte de cento e sessenta
e duas pessoas, entre elas o amor da minha vida. Nunca poderei recuperar. Jamais. Vivo com
isto todos os dias. Penso nisto de cada vez que me olho ao espelho, na montra de uma loja.
Tirei uma pequena medalha do bolso. A medalha de Mérito, com que a minha mulher fora
condecorada a título póstumo.
– Sobre isto, não menti. Ela foi condecorada. Não lha colocaram na parte de cima de um
biquíni. Pousaram-na, isso sim, numa almofadinha sobre o caixão. Mas teve-a.
O cabeleireiro levantou-se. Contornou a minha cadeira, aproximou-se da bancada de vidro
junto ao espelho e pegou na tesoura. Pronto, iria vingar-se do homem que lhe matara o irmão.
Um ano depois, poderia finalmente fazer o luto. Soltar toda aquela raiva, aquela frustração que
o deve ter consumido aos poucos.
Mas, para minha grande surpresa, mergulhou as mãos na minha cabeleira encaracolada e
retomou o seu trabalho como se nada fosse.
– Sabe, há uma coisa que se chama a Navalha de Ockham – disse ele. – E não é um truque
de cabeleireiro (vi que estava com os olhos vermelhos e que tremia que nem varas verdes, como
se também ele contivesse a explosão de uma grande cólera e de uma grande tristeza). Isto
significa que entre as duas explicações, pego na mais plausível, e pronto.
– Estou a ver.
– Não creio, senhor Truc. Agora, é a sua vez de me ouvir e de não me interromper. A vida
ensinou-me que a vingança de nada serve. Que é tão inútil quanto um lápis de cor branca. As
coisas são como são. O meu irmão partiu. E nada o pode trazer de volta. Nem desculpas, nem
explicações, nem lesões. É uma lei da natureza. Nem mesmo matá-lo a si o traria de volta.
Penso que já está a pagar caro pela sua opção. A morte de tantas pessoas numa consciência
deve ser uma bagagem pesada para ombros tão jovens. Sabe, se calhar vou espantá-lo, mas não
acredito nem por um segundo na sua história do despenhamento.
– Do despenhamento?
– O avião que se despenha com a Providence e o meu irmão a bordo. O acidente causado
pelas cinzas do vulcão. Creio que nesse dia a Providence aprendeu a voar e conseguiu lá chegar.
Talvez o senhor pense que toda a gente tem um espírito tacanho, que todos somos incrédulos e
céticos. Homens de pouca fé. Como o senhor. Engenheiros incapazes de sonhar, incapazes de
acreditar em coisas que não respondam a uma lógica, que não respondam às leis da física. Não
acha que também eu preciso de ser bem tratado? Poupado, como a Zahera? Eu cá acredito no
seu pirata de fato-macaco cor de laranja, no seu chinês senegalês que come iogurtes do Lidl,
nos monges da fábrica da Renault que jogam à petanca com tomates verdes. Acredito nisso
tudo. Porque me faz bem acreditar. Apesar de saber que é falso, que não passa de imaginação.
Como aqueles milhões de pessoas que acreditam num deus que nunca viram e que nunca fez
nada por elas. E creio também no facto de a Providence ter movido montanhas para se reunir à
filha, ter conseguido domar nuvens, ter aprendido a voar. Porque isso me dá força. A força para
andar para diante. Quando me descreveu a viagem, tive a sensação de estar com ela nas nuvens.
De certa maneira, o senhor ensinou-me a voar. Sonhou e eu sonhei consigo. É isso que nos
distingue dos animais, senhor Bidule17. É que nós, os humanos, sonhamos.
O homem pousou a tesoura na bancada de vidro e tirou de uma gaveta um pequeno pincel,
com o qual me limpou a nuca e a cara.
– A sua história é bela, mas não tem um fim – acrescentou. – A Providence entra no bloco
operatório para lhe retirarem os pedaços da garrafinha que se encontravam incrustados na
pele, certo? E depois o quê? Não pode ficar por aqui.
– Já lhe disse que a Providence morre…
– Erro crasso, meu jovem. A heroína nunca morre, já o deveria saber. Nos bons livros e nos
bons filmes, as histórias terminam sempre bem. As pessoas que batalham na vida precisam de
histórias com final feliz. Todos temos necessidade de esperança, sabe. O meu irmão Paul não
teria gostado que isto terminasse assim. Se ainda estivesse connosco, di-lo-ia, com a sua voz
grossa e aquele belo sorriso que nunca lhe abandonava os lábios. Vou contar-lhe o verdadeiro
fim desta história, eu, senhor Chose18…
– Machin.
– Bom, senhor Bidule, feche os olhos. Vamos regressar a Marrocos.

17 Bidule tem o mesmo significado de Truc, coisa. (N. da T.)

18 Chose significa coisa, coiso, algo cujo nome não nos ocorre. (N. da T)
A primeira palavra que Providence ouviu ao abrir os olhos (e os ouvidos) foi uma palavra
engraçada. Peixes-gatos. Mas, antes que tivesse tempo de se perguntar o que aquilo poderia
querer dizer, uma pontada aguda deu sinal de si no flanco direito.
A luz, que a cegava, não tardou a atenuar-se, e ela constatou que estava numa ala hospitalar,
com um grande penso ao nível da virilha, sob uma bata de papel azul. Tinha a desagradável
sensação de já ter vivido aquilo antes. Por alguns segundos, temeu que tudo por que passara
desde a primeira vez que ali chegara com uma apendicite mais não tivesse sido do que o fruto
de um longo sonho comatoso. A sua história de amor com Zahera, todas aquelas idas e voltas,
o processo de adoção que conseguira finalmente ganhar, a sua extraordinária aventura nas
nuvens. O coração pôs-se-lhe a bater descompassado no peito qual camelo a galope. Não, não
poderia ter voltado atrás assim. Procurou com o olhar algo que a pudesse confortar. Qualquer
coisa nova. Qualquer coisa que não fizesse parte das memórias dos dois últimos anos.
Na cama ao lado, encontrava-se Zahera, os olhos abertos, observando-a sem nada dizer.
Sentado a seus pés, avistou Rachid, que lhe sorria.
Rachid?
Na sua lembrança, era Leila quem estava junto da menina no momento em que acordava
pela primeira vez naquela ala hospitalar. Não tinha, portanto, sonhado. O dia de loucos, os
monges, o voo, a sua fabulosa viagem, os chleuhs e até Aksim, que teria preferido esquecer e
cuja mão ainda sentia a envolver-lhe o seio direito. E Léo, também. Sobretudo, Léo.
– Minha querida – exclamou Providence, pequenas lágrimas ao canto do olho, antes de se
lhe soltarem de repente pelas faces brancas. – Estou tão feliz de te ver. Se soubesses…
O destino juntara-as de novo: mãe e filha.
– Parece que tiveste outra apendicite – brincou Zahera, apontando para o curativo de
Providence, que se via à transparência sob a bata.
A jovem francesa soluçou. Um sorriso num gemido.
– Disse-te que, por ti, se fosse preciso, estava disposta a ter todas as apendicites do
mundo…
– A nuvem foi-se embora, mamã – retorquiu a menina, séria.
– Sente-lo?
– É precisamente isso. Já não a sinto. Tenho a sensação de que alguém levantou a almofada
que me comprimiam em cima da boca.
Providence estendeu a mão a Zahera. A sua menina. Era a primeira vez que a via sem
máscara, tranquila, serena, sem garrafa de oxigénio. Respirava normalmente. O som de um
suspiro, silencioso. Majestoso. Também estava sem meias e o pé saía dos lençóis. A francesa
nunca prestara atenção àquilo. Contou de novo os dedos do pé da filha. Era uma mania sua.
Havia mesmo seis. Seis dedos no pé esquerdo.
– Olha que engraçado! Nunca tinha reparado que tens seis dedos no pé.
A menina olhou-a incomodada e ajeitou o lençol.
–…
– Ora esta – disse Rachid. – Também nunca tinha reparado! É incrível!
E toda a gente olhou para os lençóis. Zahera esforçara-se ao longo de toda a sua vida por
esconder aquilo dos que a rodeavam e eis que o seu segredo inconfessável surgia exposto à luz
do dia. Detestava o seu pé por causa daquilo. Tratava-se de uma anomalia, uma malformação.
Algo que a distinguia ainda mais dos outros. Além disso, mostrar os pés, sejam eles normais ou
não, é revelar a parte mais feia do corpo aos outros. Talvez fosse levar a intimidade um pouco
longe de mais.
– Tens isso nos dois pés?
– Só no pé esquerdo – respondeu a menina.
– Não acredito! Eu cá tenho isso no pé direito! – exclamou Providence destapando o dito.
– Ora esta! – gritou Rachid, sem acreditar no que via. – Também tu?!
Leila, que acabava de chegar, desatou a rir-se, escondendo, como sempre, os seus grandes
dentes brancos atrás da manga da camisola. A menina também soltou uma gargalhada, feliz
por saber que, afinal de contas, não era tão diferente assim. O pé direito de Providence, o pé
esquerdo de Zahera. Completavam-se uma à outra.
– Encontrei agora uma explicação para o meu sexto dedo do pé – lançou a francesa. – É
porque fomos as duas moldadas a partir do mesmo bloco de barro! Se com isto ainda disserem
que não sou tua mãe…
Toda a gente se riu, e a felicidade invadiu a ala e as pacientes.
– Seria engraçado descobrir qual a probabilidade de duas pessoas com seis dedos dos pés se
encontrarem – pensou Rachid em voz alta.
Providence reparou que aquele pernicioso odor a alho, que a perseguira desde o deserto,
desaparecera. Suspirou, feliz, sem mais se questionar acerca de tal assunto.
– Vês? Cumpri a minha promessa – disse ela a Zahera. A Lua deveria estar a aparecer de
um momento para o outro.
– Mamã, há já muito que a Lua surgiu no céu – respondeu a astrónoma em potência,
apontando para a janela.
Estava escuro lá fora.
Providence sentiu um arrepio percorrê-la. Que bom era ouvir aquela palavra! Mamã.
– Sabes, primeiro pensei que te tinhas esquecido de mim. Esperei por ti. Todo o dia. Era um
dia importante para mim.
– Eu sei, minha querida. Para mim também. É imperdoável. Deveria ter estado cá logo de
manhã, como te prometi. Aliás, deveria ter chegado muito antes. Muito, muito antes. Mas,
sabes?, as mamãs telecomandadas por vezes avariam-se…
– Se já não te tivesse, pedir-te-ia pelo Natal. O Léo contou-me tudo enquanto estavas a
dormir.
As pálpebras de Providence tremeram.
– O que é que ele te contou?
– Tudo. A tua corrida contra o tempo em Paris, para encontrares ajuda. O mestre chinês
africano. Os monges engraçados. E depois a tua fabulosa viagem nas nuvens. Aprendeste a voar
só para cumprires uma promessa. Estavas exausta e voaste até aqui, por mim. Para me vires
buscar quando nem um avião descolava. Ele disse-me que te elevaste tanto nas alturas que, se
tivesses querido, podias ter arrancado as estrelas. Não as minhas estrelas fosforescentes – e
apontou para o teto –, mas as verdadeiras. As estrelas Made in China, aquelas que eu dantes
acreditava que eram os chineses a propulsar para o espaço para nossa grande felicidade. Tenho
tanto orgulho em ter uma mamã como tu. Senti-me amada quando ele me contou tudo isto.
Nos meus sonhos, as fadas voam num Renault amarelo. Diz-me lá, achas que um dia posso dar
uma volta no teu carro bananizado dos Correios?
– Queres dizer vandalizado, certo?
– Não, BA-NA-NI-ZA-DO – repetiu Zahera – porque é da cor da banana!
Providence sorriu. Uma expressão radiante acabava de lhe pousar no rosto qual borboleta,
como se alguém tivesse acabado de mudar o canal na televisão com um toque no telecomando,
passando de um filme trágico para uma comédia.
Uma enfermeira aproximou-se dela.
– Providence, os médicos estão loucos. Não sabem explicar o que aconteceu, mas a verdade
é que funcionou. Querem saber o que é e de onde vem.
A marroquina explicou que, alguns segundos depois de o cirurgião ter dado a beber a
Zahera uma gota do produto retirado dos pedaços de vidro alojados na pele da francesa, um fio
de nuvem surgiu ao fundo da garganta da menina. Subiu lentamente até à glote, lembrando
uma ténia. Só tiveram de o agarrar com uma pinça. Uma simples pinça de depilar. Nada de
aspirador, nada de rede de borboletas nem de cana de pesca. Uma simples pinça para extrair do
peito de uma criança uma nuvem do tamanho da torre Eiffel. Uma nuvem com trezentos e
vinte e quatro metros.
Tudo aquilo ultrapassava o entendimento. O voo nas nuvens. Agora, o antídoto. Havia já
muito tempo que ela deixara de se questionar.
– É um potente «nuvicida»! – respondeu tão-só a jovem carteira. – Foi um amigo que mo
deu. Um homem muito poderoso que se reconverteu no têxtil de queijo.
– Um «nuvicida»? Têxtil de queijo?
– Um «nuvicida» é como um inseticida, mas concebido para matar nuvens. Quanto ao
têxtil de queijo, bom, como o nome indica, são roupas de queijo de cabra da Saboia.
– Como é óbvio – acrescentou Rachid, como se fosse evidente a ideia de roupas feitas de
queijo de cabra da Saboia…
O fisioterapeuta pensou que Providence enlouquecera. Aliás, quantas vezes não pensara já
ele isso mesmo desde que a conhecera!
– Ah, isso, cá matar, não mata só nuvens. Tresandava a alho no bloco operatório que nem
te passa pela cabeça! Esse teu «nuvicida» era um verdadeiro concentrado de alho.
– Ah, então, era isso… – murmurou a jovem carteira, perdida nos seus pensamentos.
O odor que a perseguira até ao hospital mais não era do que o precioso líquido cor de
âmbar que a garrafinha continha e que se partira de encontro à sua pele. Ironia do destino. O
que para ela constituía um veneno fora o antídoto que lhe curara a filha.
– Pobre Léo! – exclamou de súbito Providence.
– O quê? Foi o queijo de cabra da Saboia que te levou a lembrar dele? – brincou Rachid, não
muito simpático.
E os cinco desataram a rir-se.
– Para um bocadinho. Ele ainda está à minha espera lá em baixo, naquele sofá
desengonçado? Que horas são?
– Nove da noite – respondeu Rachid. – Mas não te preocupes. Trataram bem dele. Jantou e,
neste momento, está a dar uma palestra magistral de controlo aéreo no piso dos homens. É
fascinante, aquele trabalho! Ele é um verdadeiro maestro dos céus. Na verdade, sabias que um
controlador aéreo é responsável por mais vidas num só dia de trabalho do que um médico ao
longo de toda a sua carreira? Alucinante.
Providence pensou que se contentaria se ele fosse responsável por apenas duas. A sua e a de
Zahera. Pediu a Rachid para avisar Léo de que ela o esperava na zona mista, em baixo, na
receção. De seguida, despediu-se das enfermeiras e da filha.
Mal viu o seu belo controlador aéreo, sentiu-se devorada pelo desejo de que ele a tomasse
nos braços e a beijasse, ali mesmo, mas não se toleravam tais manifestações de amor. Portanto,
ela limitou-se a sorrir. No seu coração, havia a filha, mas também existia lugar para um
homem. Um grande homem. O coração é um enorme armário onde guardamos todos aqueles
que amamos, para os termos sempre connosco e os passearmos para todo o lado na vida. Um
pouco como a planta verde de Léon, o Profissional, ou aqueles monges tibetanos do tamanho de
porta-chaves. Sim, havia lugar para aquele homem excecional, que acreditara nela e lhe
permitira aquele sonho. Um herói. Um companheiro de vida para ela, um pai para Zahera.
De seguida, não aguentando mais, e como se estivessem sós no mundo, os dois amantes
enlaçaram-se, ali, no átrio daquele hospital remeloso entre o deserto e as estrelas.
– Gosta? – perguntou-me o cabeleireiro, arrancando-me do meu devaneio.
– Se ao menos o que acabou de me contar se tivesse passado… Daria tudo para que fosse
verdade.
– O mais importante é aquilo em que acredita. Seja verdade ou não. Por vezes, a crença é
mais forte do que a realidade. Além disso, há que aceitar a vida tal como ela é. Com as suas
belezas e o seu maior defeito.
– O seu maior defeito?
– A morte. Porque a morte faz parte da vida. Temos tendência para nos esquecermos dela.
Já que falamos nisso, continuemos a sonhar por mais um pouco – disse o cabeleireiro enquanto
uma lágrima redonda me corria pela face. – Imagine. Passaram-se alguns dias. Encontramo-
nos na sala de cerimónias da câmara municipal no 18º bairro de Paris. O senhor está lá. O meu
irmão Paul também. A Zahera encontra-se sentada na primeira fila, ao lado da Leila e do
Rachid, que viajaram expressamente para a ocasião. De pé, junto de si, a Providence está
resplandecente. O sorriso dela ilumina a sala. O presidente da junta ajeita o lenço tricolor e
depois aclara a voz. Tem um olhar afável, paternal, e dá uns ares de Gérard Depardieu.
«Léo Albert Frédéric Oscar Bidule…», começa ele.
«É Machin, senhor presidente», corta você.
«Ah, sim, desculpe. Léo Albert Frédéric Oscar Machin, aceita casar-se com Providence Éva
Rose Antoinette Dupois aqui presente?»
«Sim, aceito.»
«Providence Éva Rose Antoinette Dupois, aceita casar-se com Léo Albert Frédéric Oscar
Truc…»
«É Machin, senhor presidente», interrompe desta vez Providence.
«Tem razão, mas não consigo compreender. Estou, realmente, confuso. Providence Éva
Rose Antoinette Dupois, aceita casar-se com Léo Albert Frédéric Oscar Machin aqui presente?
E consequentemente ficar com o terrível apelido dele?»
«Sim, aceito», responde Providence sorrindo da piada do presidente.
«Em nome da lei, declaro-vos marido e mulher.»
Agradecimentos

Agradeço a Adeline, a filha extraterrestre, cujos conselhos esclarecidos foram tantas estrelas
de plástico fosforescente. Agradeço a Angélique por me ter feito bater à porta certa. Agradeço a
Dominique por a ter aberto, e sem o qual o meu faquir e os meus sonhos de escritor ficariam
para sempre trancados no fundo do meu armário IKEA…

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