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PERIGOSAS NACIONAIS

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Ao meu amor, Luis Fernando, que sempre


me apoia em tudo. Até nas ideias mais
mirabolantes.

E à Jojozinha (Joana Almeida Prado), a


leitora beta mais linda do Universo. Obrigada
por embarcar comigo nessa aventura. Ter
você ao meu lado, tornou tudo muito mais
divertido.

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“Mesmo que eu lhe faça uma jaula, não


poderei aprisioná-la — a esta selvagem e bela
criatura! Se eu rasgasse e destruísse a leve prisão
que a tranca, meu castigo seria deixar a cativa
livre. Posso conquistar a casa, mas a moradora
escaparia para o céu antes que eu pudesse me
considerar dono da sua morada. E é você, espírito
— com a vontade e a energia, a virtude e a pureza
— é a você que eu quero, não apenas a carne
frágil”.

Jane Eyre, Charlotte Brönte

Querida Charlotte,

Como gostaria de lhe dizer que você é,


simplesmente, extraordinária. Mas, infelizmente,
não nascemos na mesma época da história humana.
Peço ao querido Deus que lhe entregue essa
mensagem ou que nossos espíritos se encontrem
algum dia.

Sua fã de verdade, Miriam

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Prefácio

O que me fez passar mais de uma semana com


“A ESPOSA DO REI” foi, mais do que o convite
para o prefácio, a curiosidade sobre a busca pelo
“buraco de minhoca”. O “de repente” se deu
quando li o primeiro parágrafo. O primeiro contato
com a obra é tão importante quanto o resumo da
contracapa, ao menos, ao meu entender.
E, M. Okuno me surpreendeu com sua anedota
sobre “o contar essa história” ou “quase
enlouquecer”. Me perguntei: “será que ela ainda se
considera sã?”.
Pois, depois de passar perto de duas semanas
com essa mocinha chamada Lin e vivenciar
algumas reviravoltas dentro de uma escrita fluída,
generosa e que tem lá suas referências de literatura
norte-americana, constatei: alguém que cria um
mundo novo, e o descreve com tanta delicadeza,
não perdeu a sanidade.
Nasce uma escritora para mexer com o
inconsciente e as fantasias de quem ainda não
encarou a vida adulta de frente, ou, quem sabe,
encarou e encara, mas prefere um refúgio seguro
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num mundo distante, com personagens leves e que


nos fazem viajar sem culpa, sabendo a hora de
voltar. Essa leitura é para quem quer imaginar e
sentir tudo o que essa protagonista, eu diria, um
tanto quanto rebelde, sente. Ela faz um esforço
absurdo para que sejamos parte de sua vida, e
quando estamos nos sentindo a própria
personagem, ela se despede. E deixa saudades.
A ESPOSA DO REI é um encontro precioso
de fantasia e ficção, pois ambas têm lá suas
diferenças e M. Okuno as une brilhantemente. Boa
leitura.

Lucas Felix
(autor do livro AS LEMBRAÇAS QUE NÃO
QUERO ESQUECER)

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Contents
Os dois céus
O garoto mudo
Trezentos e sessenta graus
Aprendizado
Sabedoria Animal
Dívida
Lei de Murphy
Mundo Azul
Hallelujah
Pastel
Som Angelical
Nahina
Nunca diga nunca
Inimiga
Joia da Rainha
Último Sorriso
Segredo
Culpados
Corpo Gelado
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​Por sua conta e risco


A Caverna dos Morcegos
Por que você me deixou?
O Tesouro de Yonah
CAPITULO EXTRA
Milagre do Universo

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Os dois céus

É melhor começar a contar a minha fantástica,


para não dizer esdrúxula, história antes que os
detalhes mais interessantes comecem a se perder na
longa linha do tempo ou entre as várias fileiras de
arquivos da minha memória, que já nem é tão boa
assim. Antes de eu mesma começar a duvidar que
algum cérebro minimamente saudável possa
processá-la. Antes que nem eu queira mais tocar no
assunto, afinal, meus leitores podem achar que
enlouqueci.
Acho que tudo começou quando eu morri, e a
morte é sim o pior dia da vida de alguém. E você
pode estar pensando, como uma pessoa passa de
cadáver à esposa de um rei? Caro amigo, essa é
uma história que vale a pena se contada, e eu sugiro
que você se sente, pois o que vou lhe dizer, até para
os mais simplórios, é, como eu disse, inacreditável.
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Na primavera de 2017, se havia alguém feliz


nesse universo era eu. Havia acabado de realizar a
viagem mais incrível da minha, até então, vida.
Passeio, inclusive, que me custou um tempo
juntando um trocado e vários finais de semana
vendo o “repeteco” de meus filmes favoritos na TV
a cabo, porque sair custa dinheiro, principalmente
com os amigos, e estes são recordistas em escolher
o lugar mais caro.
Desde criança eu nutria a vontade de conhecer
Londres, a capital de um país, o qual teima em
manter o tipo de governo mais antigo do mundo, a
monarquia. Ver o palácio da rainha, ainda que de
longe, só para se ter certeza de que existe mesmo,
bem como os castelos medievais e as construções
históricas de uma época, capaz de fazer o coração
mergulhar em sonhos recheados de príncipes e
cavaleiros, no fundo, era quase como testemunhar
minha imaginação, já bem fértil, virar realidade.
Quando cresci, juntei o dinheiro necessário e
me aventurei como mochileira, agora mais com a
intenção de conhecer um pouco do mundo que me
certificar se príncipes, no sentido romântico do
termo, são ou foram reais em algum momento da
história humana.
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Há muito eu já havia deixado de querer um


príncipe, que dirá um rei. E Londres era exatamente
como pensei, a beleza sobrevivente ao tempo,
embora o palácio de Buckingham não fosse nem
um pingo parecido com o da Disney. Era
basicamente um retângulo.
No meu dia fatídico, embarquei num voo no
aeroporto de Heathrow, de volta para a casa depois
de quarenta dias de pura liberdade e diversão, os
quais fizeram meus finais de semana de pipoca e
suco de caju valerem muito a pena. Apesar da
tristeza por ver minhas curtas férias chegarem ao
fim, eu estava ansiosa por regressar.
Voltar à minha rotina, aos meus desenhos, ao
meu piano velho, às minhas séries, principalmente
Sherlock, e aos meus livros, embora soubesse que
um terrível TCC estava no meu futuro
relativamente imediato.
Eu odiava sentar nas poltronas do meio. Você
sempre se sente deslocado entre duas pessoas
desconhecidas, sem saber ao certo se deveria puxar
um assunto ou fingir que não estão ali. Pelo menos
sentado na janela, você tem a opção de olhar o
clima e a paisagem celeste, e no corredor pode ver
o movimento dos comissários, mas, no meio, não
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tem sequer para onde olhar.


Decidi pegar meu livro favorito da vez, de sir
Arthur Conan Doyle, e abri-lo com a remota
esperança do tempo passar mais depressa. Além
disso, tinha de afugentar o nervosismo, por saber
que dentro de alguns minutos não teria o precioso
chão sob meus pés. Essa noção precisava,
urgentemente, tomar seu rumo para bem longe da
minha mente.
Viajar era bom, voar nem tanto.
Depois da tensão da decolagem, consegui
relaxar um pouco. No ar, quando o avião estabiliza,
dá até para fingir que se está em terra firme. O
tempo estava tão bom que me peguei rezando para,
ao chegar em casa, continuasse do mesmo jeito. O
voo ainda levaria várias horas, decidi, então,
mergulhar fundo nas excentricidades de meu
detetive favorito, contadas em linhas escritas há
mais de cem anos. E, bem no meio da solução de
um caso, acabei por adormecer. Enquanto vagava
nas profundezas de meus sonhos, em um lugar onde
a tranquilidade parece atingir a pele, como uma
brisa noturna suave após um dia de calor, a imagem
dele voltou a assombrar meus devaneios.
Na maior parte do tempo, quando estou
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consciente, simplesmente não penso naquele garoto


que conheci aos catorze anos. Apenas quando deixo
meu inconsciente emergir calmo, é que a imagem
dele ressurge involuntariamente. Só nesses
momentos lembro-me daquele olhar, maravilhado
com cada coisa minúscula que eu mostrava.
Planando entre imagens e sonhos, as
lembranças do rosto lindo e inocente se esvaem
quando outra visão se forma, a do brilho das
pequenas pedras da pulseira que ele me deu, um dia
antes de partir. Pedras que, quando criança, eu
sempre punha em direção à luz porque me
maravilhava vislumbrar o brilho colorido. Recordei
do primeiro dia em que ele conseguiu me dizer o
próprio nome, Dáian, e de como o ensinei a falar a
minha língua. Era engraçado vê-lo tentando se
comunicar.
Em meio a essas suaves memórias, um
estrondo me fez acordar em um sobressalto. Ao
abrir os olhos, percebi os olhares preocupados dos
passageiros e a agitação dos tripulantes. Tentei
olhar um pouco pela janela e aquele tempo aberto
havia desaparecido como por encanto. Os clarões
dos raios e o estrondo dos trovões a seguir
pareciam o prelúdio do Ragnarok, e o pânico
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começou a se espalhar pela aeronave ao ter início a


terrível turbulência.
Não sei se consigo entrar em mais detalhes
dessa parte da história. Passar pela queda de uma
aeronave é o maior medo que um ser humano deve,
deveras, sentir, pelo menos aqueles com um pingo
de amor à vida.
Tudo que consigo descrever é que quando a
agitação começou, instintivamente segurei firme a
pulseira que Dáian havia me dado. Ela nunca saia
do meu braço e, conscientemente, convenci-me de
que era porque eu já havia me habituado a ela.
Pensei nos meus pais, nos meus amigos e em
tudo que eu amava fazer e, provavelmente, não
voltaria a ter outra oportunidade. Pensei nas várias
músicas que eu gostaria de ouvir no Youtube e,
depois, dedilhá-las em meu velho piano. Além
disso, não tinha acabado meu portfólio de desenhos
nem montado minha clínica. Até meu filme tão
esperado, Liga da Justiça, cuja estreia seria em
novembro, passou pela minha cabeça.
Dar adeus à vida é algo extremamente
doloroso, quando se tem algum tempo para se
conscientizar da iminência da morte. Tirei minha
pulseira e pus dentro do sutiã, sem saber bem o
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motivo e, pode parecer incrível, mas, apesar de ter


ouvido muito choro naquela aeronave, não chorei.
E ali estava eu, com meus joelhos envoltos em
meus braços e uma máscara de oxigênio abraçando
minha cabeça. Fiquei abaixada como mandavam as
instruções de segurança.
Logo em seguida, senti o avião desacelerando
um pouco até bater na água, bem mais suave do que
havia imaginado. Talvez o piloto ainda tivesse
tentado alguma última manobra desesperada.
E depois disso, em algum lugar no meio do
Atlântico, aquele monstro de liga de alumínio e
fibra de vidro começou a afundar. Fiz de tudo para
não olhar ao redor. Não queria ver as pessoas. Não
queria que fossem as últimas imagens que meus
olhos contemplariam.
Permaneci abaixada até ouvir a
movimentação desesperada de alguns tripulantes
nas saídas de emergência.
— Deus! Essa maldita porta não quer abrir —
ouvi alguém esbravejar.
Levantei tremendo, tentando não olhar em
torno, contudo não pude deixar de notar tão poucas
pessoas usando, como eu, as últimas forças,
agarrando-se a um fio de esperança, o qual, de tão
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tênue, até uma formiga poderia rompê-lo.


Apenas lembro de meu cérebro dizendo várias
e várias vezes às minhas cambaleantes pernas para
continuarem andando e desviando dos obstáculos
em direção às portas. Embora o treinamento dos
comissários seja para garantirem a sobrevivência
dos passageiros primeiro, percebi que, quando o
portão da morte se abre e a gravidade extrema de
seu grande buraco negro começa a sugar tudo, é
cada um por si.
Não sei ao certo como consegui passar pela
porta de emergência. Apenas acabei sentindo um
alívio ignorante por mergulhar na água gelada do
oceano. Ignorante porque não era grande vantagem
nadar num mar agitado, no meio do nada, sobre
aqueles que ainda se encontravam na aeronave ou
aqueles que jamais sairiam dela.
Quando consegui raciocinar um pouco, notei
que, muito provavelmente, minha atitude somente
tivesse adiando o inevitável e, cedo ou tarde, minha
alma cederia a força gravitacional do outro mundo.
Também me senti a mais idiota das criaturas por
esquecer de uma das regras básicas de segurança, a
de trazer o assento do avião, o qual todo mundo
sabe que flutua na água.
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Tentei olhar em volta, encontrar outras


pessoas, mas tudo parecia tão confuso, como
acontece em um sonho no qual, pouco antes de se
despertar, as coisas começam a ficar desconexas e
bizarras e, assim, a mente entende tratar-se de um
sonho e desperta. No entanto, por mais que eu
quisesse, não havia como acordar daquilo.
Depois de alguns minutos, meus braços e
pernas estavam exaustos como se tivessem nadado
por horas. A força do mar abaixo de mim tornou-se
tão forte, provavelmente por causa da aeronave
moribunda, e senti ser impossível resistir. Tive a
sensação de ser puxada cada vez mais para o fundo.
Então, decidi abrir meus olhos. Queria aproveitar
meu derradeiro fôlego para tentar ver alguma
última imagem do planeta, que havia sido meu lar
por vinte e quatro curtos anos.
Ao abrir meus olhos, já imersa no oceano,
olhei para baixo e vi uma imensidão clara, um céu
tão nítido e vívido como o de uma tarde ensolarada.
Aquela imagem só parecia inacreditável porque
havia uma lâmina de água entre meus olhos e ela.
Meu cérebro começou a entrar em curto, para
mim o que deveria ser o fundo do oceano na
verdade era a superfície? Levantei a cabeça no
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sentido o qual meu senso de direção ainda dizia ser


a superfície e, inacreditavelmente, vislumbrei outro
céu, mas esse era escuro e cheio de nuvens
carregadas com lampejos flamejantes de raios.
Talvez a loucura visite aquele que está prestes
a morrer, mas, acredite ou não, meus olhos viam
nitidamente dois céus, e eu já não sabia em direção
a qual deles devia nadar se quisesse me salvar.
O céu tranquilo de fim de tarde parecia bem
mais atraente, mas meus braços já ardiam tanto,
como se eu tivesse levado uma surra em um
octógono de MMA. Finalmente, fechei os olhos e
deixei meu corpo ser sugado em direção àquele céu
estranho, pois ali, talvez, fosse a porta do paraíso.
Àquela altura, já não importava. Deixei minha
mente afundar com o meu corpo e a última imagem
de que me lembrei, ainda que meu consciente
quisesse negar a todo custo, foi a dele — Dáian.

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O garoto mudo

A lembrança de Dáian acabou fazendo


emergir todas aquelas memórias da minha infância,
inclusive aquelas enterradas tão fundo, como as
lágrimas que escorreram do meu rosto e caíram na
terra quente, descendo até as profundezas de algum
lençol freático.
Nem o brilho da pulseira conseguia me
consolar. Uma vez li, em algum lugar, que as mãos
que dizem adeus são pássaros que vão morrendo
lentamente. Mas, e quando o adeus é tão repentino
e você nem vê as mãos daquele que está partindo?
Minha família tem uma propriedade perto de
uma área de preservação ambiental, no interior do
estado. Quando eu era pequena, todas as férias
íamos para lá. Eu sempre almejava, nas férias
seguintes, um irmãozinho para levar e, assim, por
vários anos, criei essa expectativa até acabar
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perdendo de vez a esperança.


Meus pais são aquilo que podemos chamar de
“casal bem-sucedido”. Eles se conheceram na
faculdade de engenharia e, após terminarem a
graduação, montaram uma empresa bem rentável.
Contudo, meu pai detesta ostentar, e temos, por
isso, levado uma vida relativamente simples. Meu
pai tem outra regra, nunca transmitir a mim a lição
de que as coisas são fáceis. Por isso, se quero algo,
tenho de batalhar para ter.
O sucesso profissional dos meus pais custa-
lhes muito tempo e energia mental. Não que eu
esteja reclamando da maravilhosa vida com a qual
fui abençoada, mas, em razão da opção deles pela
profissão, eu ficava um pouco solitária na maior
parte do ano.
Por isso, eu esperava tanto pelas férias no
sítio. Nas férias escolares dos meus catorze anos,
meus pais estavam trabalhando num projeto de um
arranha-céu comercial de quarenta andares e,
acabaram levando trabalho para casa, aliás,
TRABALHO PARA AS FÉRIAS!
Fiquei tão desapontada! No segundo dia de
nossa chegada ao sítio, saí cedo, batendo os pés e
com um bico quilométrico. Fui com essa cara
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amarrada até a cachoeira, na qual tínhamos nos


divertido tanto em anos anteriores. Quando cheguei
e vi ainda em pé o castelinho de pedras que, no ano
anterior, havíamos começado a construir, acabei
deixando escapar as lágrimas que eu estava
contendo o caminho todo.
Mais tarde, com o coração mais leve, limpei
os olhos e levantei a cabeça. Bem na minha frente
estava um garoto, olhando para mim como se eu
fosse alguma coisa de outro mundo. Ele era um
pouco mais velho, uns dois anos talvez, com um
cabelo castanho chocolate, os olhos cor de
caramelo e a pele levemente bronzeada. Ele
estendeu a mão e me deu uma flor, daquelas
bonitas que cresciam bem perto da cachoeira.
— Obrigada — respondi, tentando esconder
meu rosto atrás da minha franja.
Ele ouviu meu agradecimento, mas não disse
nada nem expressou reação alguma, simplesmente
passou por mim e continuou pulando as pedras em
direção as trepadeiras de primaveras. Quando
percebi que ele ia tocar nos galhos, corri e segurei o
braço dele.
— Não faça isso! — repreendi.
Ele olhou para mim sem entender. Então,
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levantei as flores com cuidado e mostrei-lhe os


espinhos pontiagudos existentes nos galhos. Ao
olhar os ferrões, o garoto arregalou os grandes
olhos castanhos caramelados. As roupas dele
pareciam uma mistura curiosa de moda moderna e
moda retrô.
— Essa foi por pouco — concluí, sorrindo.
Ele deu um sorriso meio tímido, como se
entendesse que estava prestes a fazer uma tolice.
Entretanto, não tirava aquela expressão confusa do
rosto.
— Qual o seu nome? — perguntei meio
acanhada.
Sem dizer nada, ele ficou olhando de um lado
para o outro, igualzinho a quem fica constrangido
de admitir que não entendeu alguma coisa.
Será que ele é mudo ou surdo ou os dois? —
pensei.
Continuei esperando uma resposta, mas ele só
ficou parado sem dizer nada.
Surdo ele não é, definitivamente. Porque
tenho certeza de que ele ouviu quando eu disse
para não pôr a mão na flor.
Acabei me convencendo de que ele era mudo.
E o pior, eu não fazia a menor ideia de como me
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comunicar com alguém assim. Ensaiei alguns


gestos os quais eu pensava serem típicos da
linguagem de sinais, no entanto, ele também não
entendia.
Tá bom! Então, eu era péssima com sinais.
Apontei em direção à cerejeira a alguns passos
dali, já que ele gostava de flores. Ele pareceu
entender meu convite e, então, caminhamos um
pouco até chegar àquela árvore gigante, que parecia
um enorme algodão doce de flores.
Nunca me esquecerei da cara que ele fez
quando a viu. Se eu tivesse mostrado um
Playstation 3, e na época era o videogame top dos
tops, ele não teria ficado tão maravilhado.
Então, comecei a falar com ele sobre tudo.
Mostrei-lhe plantas, pedras, a água, o projeto de
casa na árvore, que pelo jeito nunca deixaria de ser
projeto, como não deixou mesmo, e falei de tudo de
que gostava. Ele ouvia atentamente, às vezes sorria,
às vezes ficava surpreso, mas aquela ponta de
indagação não saía de seu semblante, tampouco do
olhar. No fim da tarde, despedi-me dele com uma
dorzinha no coração.
Por que será que Deus fez o tempo tão rebelde
assim, sempre fazendo o contrário do que a gente
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quer?
No dia seguinte, levantei cedinho e corri para
ver se o garoto mudo estava na cachoeira e, para
minha surpresa, ele estava lá sentadinho onde
havíamos nos encontrado.
Quando cheguei, ele se levantou e sorriu.
Parecia estar esperando por mim e,
inesperadamente, meu coração acelerou de alegria.
Comecei a falar igual a uma matraca quebrada. Ele
parecia achar graça. Peguei um canário tão
bonitinho e coloquei nas mãos dele.
— Esse pássaro tem um canto tão bonito —
continuei matracando.
— Pa... passa... pássaro — ele disse.
O meu espanto deve ter ficado nítido porque
ele acabou arregalando os olhos de volta para mim.
Então, ele não era mudo como eu havia pensado.
Ah... algumas coisas começaram a fazer sentido.
Ele é só estrangeiro! Menos mal.
Acabei rindo da minha idiotice por achar
que o garoto era mudo.
Começamos a nos encontrar todos os dias, e
ficávamos juntos desde de manhã até o sol quase se
pôr. A cada dia ele aprendia mais. Até enfim,
alguns dias depois de termos nos conhecido, ele
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falou com a dicção ainda enrolada:


— Eu me chamo Dáian, e você?
— Everlin — respondi com o rosto queimando
de tão vermelho.
Falar sem parar sobre coisas triviais era
simples, fácil. Afinal, não há envolvimento nisso.
Mas dizer algo pessoal, e ainda a palavra que lhe
individualiza entre todos os demais, era
embaraçoso. Passar os dias com ele, fez meus
instintos femininos despertarem precocemente.
Para ele, talvez, não houvesse nenhuma diferença
entre mim e um animal de estimação. Mas eu
acabei caindo nas armadilhas do meu sexo frágil, e
já o achava lindo, o menino mais lindo que eu havia
visto. Ele era lindo, de fato, mas, com aquela idade,
não era para eu perceber isso.
— Pode me chamar só de Lin — falei,
esforçando-me para não gaguejar.
Ao ouvir meu apelido, ele acabou abrindo um
sorriso feliz e inocente. Ele era diferente. Não
falava de jogos de fliperama nem de quadrinhos,
tampouco de desenhos animados. Gostava de
aprender e, principalmente, da natureza. Lembro-
me de um dia levar meu MP3 player, com todas
minhas músicas favoritas. Naquela época eu já
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tinha pelo menos cem CDs, os quais ainda conservo


na minha coleção atual. E no MP3 havia várias
músicas de vários cantores e os meus preferidos:
Brian Mcknight, N’Sync, Michael Jackson, Thalia
e muitos outros. Coloquei a faixa três do álbum
American Town, do Five for Fighting umas das
minhas músicas prediletas até hoje, o fone sobre
seus ouvidos e apertei o play. Ele deu um
sobressalto na sequência.
— O que é isso? Igual mágica — comentou.
— Parece mágico — corrigi.
Ele balançou a cabeça como se não tivesse
entendido bem a diferença, aliás como se não
tivesse entendido nada.
Será que ele vem de um país tão pobre que
ainda não tem mp3? Ou na cultura não tem esses
tipos de músicas?
Ele não parecia pobre, bem como não
lembrava nenhuma etnia específica. Acabei
achando melhor não perguntar sobre seu país de
origem, pois não quis dar a falsa impressão de
preconceito ou algo assim. Ele poderia se ofender.
Emprestei meu MP3 player a ele, que o levou no
fim da tarde, como se tivesse carregando um
diamante de um quilo.
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Com o passar dos dias, percebi o quanto ele


aprendia rápido. Em pouco tempo, já estava falando
muito bem minha língua e, por isso, decidi ensiná-
lo a ler também e, palavra por palavra, ele foi
evoluindo. Em troca, ele começou a me contar
histórias de reis e cavaleiros antigos da terra dele e,
para mim, pareciam mais contos de fadas.
Entretanto, suas histórias acabaram alimentando
minha imaginação, já bem fértil, por sinal.
O dia mais engraçado foi aquele em que o
ensinei a andar de bicicleta. Quando aprendeu, ele
andava nela tão feliz, como se estivesse sobre a
oitava maravilha do mundo. Peguei minha bike e
ele a do meu pai, e fugimos para cidade. Andamos
pelas pacatas ruas daquela cidadezinha, mas Dáian
olhava tudo como se estivéssemos numa grande
metrópole.
— Que cheiro delicioso — afirmou, caçando
com o nariz a origem do aroma.
— Vem dali — eu respondi.
Era uma barraquinha de pastel, cujo cheiro do
de queijo estava viajando na velocidade da luz.
— Você quer um?
— O que se precisa fazer para ter um? —
perguntou-me visivelmente interessado.
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— Ter dinheiro — avisei.


— Dinheiro?
Tenho certeza de que ele sabe o que é
dinheiro, ele não entendeu a palavra — pensei.
— Dinheiro, aquilo que se usa para trocar por
coisas — tentei explicar do jeito mais simples que
consegui.
— Ah... isto?
Ele tirou do bolso várias moedas douradas.
Olhei espantada e tentei cobrir as mãos dele com as
minhas.
— Guarda isso, tá doido de tirar um negócio
desse do bolso bem aqui.
— É suficiente?
— Deixe, eu cuido disso — ofereci, fazendo-o
guardar as moedas.
Comprei os pastéis e o observei comer. Dáian
mastigava com tanto gosto, e puxava o queijo se
divertindo, como se tivesse comendo uma iguaria
daquelas bem caras de restaurantes chiques.
— Vai dizer que você nunca comeu um
pastel? — indaguei com a intenção de “tirar onda”
com a cara dele.
Ele tentou dizer um “não” com a boca cheia, e
acabou saindo como um ruído esquisito.
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— Não precisa falar com a boca cheia, pode


balançar a cabeça e eu entendo — falei sorrindo.
— Como assim balançar a cabeça? — ele
disse assim tão logo engoliu.
— Ah, você sabe... Faça assim.
Balancei a cabeça de um lado para outro.
— O que isso significa?
Nossa, achei que os gestos de “sim” e “não”
fossem universais — divaguei.
— Significa que você quer dizer não. E se
você fizer assim — balancei a cabeça para cima e
para baixo — quer dizer sim, entendeu?
Ele balançou a cabeça para cima e para baixo.
Tinha entendido direitinho.
Quando voltávamos para casa, fiquei curiosa
sobre as moedas.
— Essas moedas são de ouro de verdade?
— Por que? Existe ouro de mentira?
— Onde as conseguiu? — indaguei.
— Peguei do cofre do meu pai.
Ele tinha várias moedas de ouro no bolso, e
não sabia o que era um MP3 player. Sei lá, tem
cada um no mundo — pensei.
Dáian e eu nos dávamos tão bem que parecia
natural estarmos juntos. Meus pais ficaram
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concentrados totalmente no projeto do arranha-céu


e nem me dei conta disso. Surpreendia-me
querendo não voltar para casa e o final de cada dia
era doloroso, porque o momento de ir embora de
vez estava cada vez mais perto.
Numa manhã, quando estávamos na cachoeira,
como sempre, nos sentamos sobre as pedras, um de
frente para o outro, com os pés sob a água.
Comecei a contar a história do meu livro favorito e,
de repente, senti os pés dele tocando os meus de
uma maneira diferente, uma difícil de explicar.
De um jeito suave, carinhoso e, ao mesmo
tempo, ousado e dominador. Eu não fazia a menor
ideia de como ele conseguia fazer algo assim.
Como ele conseguia tocar alguém assim,
transformando um toque tão básico em algo tão
desestruturador. Em algo capaz de descontrolar
totalmente os sentimentos. Meu coração disparou e
minhas mãos ficaram geladas como pedra.
Continuei olhando para o rio e ele continuava
acariciando meus pés com os dele daquela forma
que arrepiava até o último pelo do meu corpo.
Levantei o olhar bem devagar e percebi seu olhar
fixo em mim. Acabei desviando o rosto de uma
forma bem brusca, um gesto irracional e mais óbvio
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impossível. O olhar dele era direto, como se


quisesse deixar claro que o carinho era
completamente intencional. Tive a sensação de que
o verdadeiro objetivo dele era saber o efeito de seu
toque sobre mim.
— Lin, com quem você vai se casar? — ele
soltou a pergunta tão espontaneamente como se
fosse a pergunta mais natural do mundo.
— E.. E.. Eu não sei — gaguejei.
Dáian levantou-se e sentou-se bem ao meu
lado, invadindo o meu espaço pessoal.
— Como não sabe? Só faltam dois anos, já
devia ir pensando, não acha?
— Dois anos para quê? — inquiri, tentando
não gaguejar.
— Ora para você ter idade para se casar.
— Ninguém se casa aos dezesseis —
mencionei sorrindo.
— Quanto tempo demora para as mulheres
deste país casarem? — ele perguntou meio
intrigado.
— Puxa, eu sei lá, aos trinta, eu acho.
— Tudo isso! — exclamou — vai demorar
muito.
— Ah, algumas se casam antes, eu acho —
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disse meio sem jeito.


— E você?
— Eu... bem... acho que depois de me formar
e montar a minha clínica.
— O que é uma clínica?
— Ah, é um lugar onde se cura as pessoas. No
meu caso os animais.
— E por que não pode ter sua clínica agora?
Eu ri. Não aguentei. Ele continuou sério.
— Por que preciso estudar muito antes, não se
pode curar animais sem ter o conhecimento.
— Hum... — expressou fazendo um bico de
quem não gostou muito da notícia.
Depois disso, ficamos um tempo em silêncio.
Meu coração estava tão frenético e descompassado.
Eu precisava desesperadamente não deixar ele
perceber minha agitação de jeito nenhum. Tentei
decifrar o seu estado emocional, mas não consegui.
Ele parecia calmo, contudo apertava forte uma
pedra lisa, a qual havia retirado da água antes da
conversa, e a segurava em uma das mãos desde
então. Não soube entender se era porque estava
nervoso, impaciente ou não havia gostado nadinha
das minhas respostas.
Ele levantou e atirou a pedra na água.
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Pelo jeito podia ser as três coisas juntas —


pensei depois.
— Por que neste país esposas não podem ser
só esposas?
— O que quer dizer?
Ele se ajoelhou na minha frente, entrando na
água rasa. Pegou um dos meus pés com uma das
mãos e começou a deslizar as pontas dos dedos por
minha perna, indo do joelho até o pé. Meu coração
já estava quase em colapso desde o início da
conversa, mas, naquele momento, minha respiração
também começou a ficar ofegante, como se eu
tivesse me afogando no imenso oceano de oxigênio
que temos no planeta.
— Um marido pode querer a esposa só para si
— disse enquanto me acariciava daquele jeito
delicado e estranho.
O pior era que aquele carinho, por mais
diferente que fosse, despertava, das profundezas,
um instinto enterrado no recôndito de mim. Um
que, naquele momento da minha vida, ainda
deveria permanecer adormecido. Um que, graças a
Deus, nunca mais veio à tona, pelo menos até o
meu trágico dia.
Quando pensei que meu emocional
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desenfreado ia me fazer ter um treco, recolhi as


pernas, retirando meu pé das mãos dele. Ele ficou
me olhando diretamente, surpreso e desapontado.
Depois desviou o olhar para a pedra na qual eu
estava sentada. Uma ideia parecia martelar em sua
mente.
— Você já tem outro pretendente? — quis
saber fitando-me direto de um jeito ousado,
resoluto e quase zangado.
— Eu só tenho catorze anos, nunca conversei
tanto com um garoto na vida — mencionei sem
pensar.
Ele deu um sorriso aliviado.
O cabelo dele, à luz do dia, ficava com uma
cor marrom clara semelhante a uma calda de
chocolate ao leite, daquelas bem cremosas que se
derramam sobre um bolo recém-saído do forno. A
pele dele era tão macia, mesmo que as nuvens
fossem mesmo de algodão, ou até de seda, não
seriam não gostosas ao toque. Sem falar no
perfume que exalava.
Como um garoto aparentando ter pouco mais
de quinze anos podia ser tão perfumado?
Ele se sentou bem ao meu lado novamente.
— Por um minuto fiquei preocupado —
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explicou, chegando muito perto e me fazendo sentir


a sua respiração leve em meu ombro e descendo
pelas minhas costas, eriçando até o último pelo da
minha nuca.
Levantei assustada e ele me olhou sem
entender.
— E.. e... eu preciso ir — declarei, começando
a correr em seguida.
Minha mente ficou em branco e nem me
preocupei de parecer uma idiota saindo daquele
jeito. Aquele sentimento era tão grande e tão
terrivelmente incontrolável. Eu não fazia não a
menor ideia de como lidar com aquilo. Estava,
simplesmente, consumindo-me por dentro. Era
como se eu não fosse mais suficiente em mim
mesma, e minha tristeza ou minha felicidade
dependessem inteiramente de um único gesto dele.
Era assustador.
Tudo o que consegui fazer foi correr sem parar
em direção à minha casa. Precisava,
desesperadamente, sair de perto dele, antes daquele
tumulto de sentimentos verter em lágrimas e, se
isso acontece, eu queria estar bem longe de Dáian.
Então é assim que se sente quando se está
apaixonada? Isso é uma droga — pensei.
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Até naquela época eu já sabia disso.


Entrei em casa correndo e só ouvi de relance
minha mãe dizer:
— Chegou cedo. Aconteceu alguma coisa?
— Não... nada não. Lembrei que vai passar
um filme — desconversei.
Abri a porta do quarto e me joguei sobre a
cama, nos braços do meu travesseiro. Estava
evitando chorar a todo custo. Minha mãe podia ter
a ideia de vir me ver, e eu teria de inventar uma
explicação, e uma muito boa. Tentei respirar um
pouco, pensar claramente.
Como vou encará-lo amanhã? Será que eu
não devia ir mais?
Só de pensar nisso, já me faltava o ar de novo.
Sem vê-lo, nem pensar. Eu ainda divagava nesses
pensamentos, quando ouvi o barulho de algo
batendo na janela. Abri o vidro e, para minha
surpresa e, também, para acabar de vez com o
pouco da força que sobravam em minhas pernas,
Dáian estava do lado de fora.
— Lin, por que você veio para casa? O dia
ainda está longe de acabar.
Não consegui responder à pergunta, enquanto
o olhava e repetia para a minha mente, com a
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remota esperança de que ela transmitisse a


mensagem ao resto do meu corpo:
Por favor, não chore.
Como minha resposta não vinha, percebi que
Dáian começou a ficar aflito.
— Por favor, Lin. Se a ofendi em alguma
coisa, peço desculpas. Mas, eu não aceito ficar sem
você agora. Meu coração ficou cheio de expectativa
de passar o dia com você. Essa esperança foi você
mesma quem me deu.
Ao ouvi-lo dizer aquilo, meus olhos já não me
obedeceram mais e as lágrimas começaram a correr
livres. Ele se aproximou da janela correndo, e
passou os braços pela abertura, abraçando-me.
— Me desculpe — foi tudo o que consegui
dizer.
Sentindo o corpo dele perto do meu, pude
notar uma coisa. O coração dele estava batendo tão
disparado quanto o meu. Nesse instante, senti
minhas pernas recuperarem alguma força, e meu
cérebro voltou a funcionar.
— Não chore, Lin. Não chore, por favor. Ver
você chorar assim, me parte ao meio.
Tentei secar meu rosto com as mãos, e ele se
afastou um pouco de mim. Parecia irritado.
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— Por que você não quer que eu seja o seu


pretendente? O que você não gosta em mim? O que
falta? Fale...
Comecei a rir. Embora tenha sido espontânea
a minha reação, ele continuava sério.
Em seguida, o sorriso em meu rosto foi tão
grande quanto a felicidade que estava sentindo. Ele
queria ser meu pretendente. Eu nem acreditava. E
estava tão desapontado, achando que eu não o
queria. O pior era a carinha de zangado dele. Ela o
deixava muito mais bonito. Ele era lindo, não
importava de que ângulo eu olhasse. Sem pensar
muito, toquei o rosto dele, e ele olhou diretamente
para mim, com aquela íris cor de caramelo,
magnífica.
— Não falta nada, nadinha mesmo —
respondi.
Ele abriu um sorriso maior que o meu, maior
que o próprio sol. E, então, ficamos ali nos olhando
por alguns minutos, feito bobos. Naquela hora
aprendi a maior das lições, o amor pode lhe levar
do inferno ao céu em questão de segundos. Fração
de segundo, eu diria. E pior, também tem o poder
de fazer você trilhar o caminho inverso, com a
mesma velocidade.
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Depois disso, passamos uma tarde


maravilhosa juntos. Uma das mais incríveis da
minha vida. Não falamos mais sobre casamento ou
namoro. Só desfrutamos da companhia um do
outro, falando sobre tudo que amávamos. As
histórias dele não faziam muito sentido para mim,
mas me convenci de que o motivo era a diferença
de cultura.
Estávamos juntos como sempre, entretanto era
completamente diferente. Nosso sentimento ficava
evidente em qualquer coisinha que fazíamos.
Naquele dia, o sol se pôs, e eu não fui embora nem
ele. Ficamos deitados sob a cerejeira, olhando as
estrelas, como se não quiséssemos nos despedir.
Quando voltei para casa, levei a maior bronca da
minha vida, no entanto, tinha valido a pena.
No dia seguinte, Dáian estava na cachoeira,
como sempre. Ele veio até mim com um sorriso e
uma empolgação tão grande e genuína que acabei
ficando um pouco sem graça.
— Vem Lin, quero testar uma coisa.
Ele me pegou pela mão e me puxou até a
cerejeira.
— Sente e feche os olhos — pediu com um
sorriso travesso.
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Franzi a testa e arqueei as sobrancelhas.


— Anda... e não vale olhar.
Obedeci. Sentei ao pé daquela árvore
maravilhosa e cheirosa, com a brisa levando meus
cabelos e Dáian sentado atrás de mim. Ele pegou
meus cabelos e começou a alisá-los. Conforme ele
acariciava, seus dedos iam deslizando entre fios e
mechas, passando pelo pescoço, ao pé da cabeça e
percorrendo por todos os cantos nos quais os fios
cresciam livres. Às vezes, ele fechava a mão
pressionando levemente e, às vezes, apenas as
pontas de seus dedos passeavam pela raiz dos meus
cabelos.
— Ah... isso é tão bom — confessei,
colocando as mãos na boca em seguida.
Não acredito que falei isso em voz alta... —
pensei, desejando um buraco onde pudesse me
enterrar.
Ele sorriu.
— Essa é a intenção — insinuou, com a
mesma entonação travessa de sempre.
Ele fez aquilo por um bom tempo. De minha
parte, eu me sentia cada vez mais entre nuvens.
Aquilo relaxava até o mais resistente dos músculos.
Na posição em que estávamos, eu não podia ver o
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seu rosto, mas era como se eu pudesse sentir seu


êxtase de me ver tão entregue, tão à mercê de seu
toque, tão em suas mãos. Em seguida, ele começou
a separar as mechas do meu cabelo e a prendê-los
com grampos, até hoje, não sei de onde ele tirou, e
flores de cerejeira.
— Pronto.
Abri os olhos e toquei meu cabelo, percebendo
meu cabelo todo preso de um jeito estranho ao
toque. Quando estava prestes a me levantar, ele me
segurou pelos braços, impedindo-me de prosseguir.
Esperei por alguns instantes para saber se ele
precisava dar algum retoque em sua obra de arte.
Nesse momento, ele encostou o rosto em mim,
bem no final do meu pescoço e início das costas.
Assim que ele tocou minha pele, começou a
inspirar o aroma, como se estivesse cheirando uma
flor incrivelmente perfumada. Corei e estremeci.
— O que está fazendo? — perguntei,
esforçando-me ao máximo para ele não notar o
impacto da atitude sobre mim.
— Eu só precisava sentir o seu cheiro — ele
respondeu, como se fosse a coisa mais óbvia e
normal do mundo.
Por sorte, naquele dia, não havia esquecido
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de usar meu creme de coco com baunilha.


— Não vale desmanchar, tá? Vamos até a
cachoeira ver como ficou — convidou enfim.
Levantei ainda com o rosto ruborizado de
tanta vergonha. Quando me deparei com o meu
reflexo na água transparente, pude ver que ele havia
prendido meus cabelos num penteado lindo. Dera
um belo formato de flores às mechas presas e
colocou as flores das cerejeiras, dando um toque de
natureza. Ficou belíssimo. Eu poderia ser dama de
honra de um casamento facilmente com aquele
penteado, só faltava o vestido. Olhei para ele
encantada com a habilidade.
— Sonhei com você assim essa noite e queria
ver como ficava de verdade.
Sorri. Com o cabelo preso daquela forma,
senti-me mais à altura de ser um par para ele, afinal
a beleza dele, não só superava a minha, pelo menos
na minha humilde opinião, como também era
diferente de algum modo, de um jeito que eu não
sabia explicar. Era como se a cadeia de seres
humanos que deram origem a Dáian tivesse
evoluído de um jeito diferente de todas as demais.
— Só falta uma coisa. Feche os olhos.
— De novo?
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— É. Rápido.
Fechei não conseguindo para de rir e de me
mexer, meus sentimentos estavam acelerados como
num turbilhão, fazendo meu corpo todo se agitar.
— Quieta.
— Desculpa.
De repente, senti algo delicado e frio correndo
pelo meu pulso até minhas mãos. Abri os olhos e
ele virou delicadamente o meu braço, mostrando o
presente acomodado nele. Uma pulseira dourada
com várias pedras brilhantes imbricadas.
— É linda! — exclamei.
Ele correu os dedos por meus braços
levemente, fazendo estremecer até minha última
célula.
— Mas eu não tenho nada para lhe dar.
— Não precisa, ficou perfeita no seu braço
branco, delicado e macio. É viciante tocar a sua
pele.
Eu arregalei os olhos e meu coração disparou.
Como ele conseguia dizer coisas tão embaraçosas
de um jeito tão natural, como se tivesse fazendo um
pedido de um hambúrguer “duplo cheddar bacon”
em uma lanchonete de fast food?
— Ah, tenho algo para te dar sim.
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Tirei meu MP3 player da bolsa e estendi em


sua direção.
— O seu aparelho de música? — indagou
surpreso.
— Para você.
Ele pegou como a um tesouro.
Passamos outro dia maravilhoso juntos.
Entretanto, conforme a tarde foi caindo, senti Dáian
se tornando pensativo e quieto. Quando não pude
mais suportar, quis saber o que o incomodava.
— Dáian, o que foi?
— Eu preciso lhe fazer uma pergunta, mas
estou com medo da sua resposta. E mais medo da
minha reação à sua resposta.
— Como assim?
Ele, com medo de dizer alguma coisa? Era
quase impossível, ele falava tudo o que lhe vinha à
mente.
— Tá bom, lá vai. Mas se a minha reação for
meio irracional, não me odeie por isso. Quando eu
quero uma coisa de verdade, não consigo lidar bem
com a rejeição.
— Tá bem — falei sem entender muito.
— Se eu lhe pedisse para vir comigo, para um
lugar onde você não pudesse mais voltar, você
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viria? — perguntou, virando para não olhar para


mim. Ele parecia mesmo com medo da minha
resposta.
— Sim — consenti facilmente.
Ele virou rapidamente, espantado.
— Sério? Não acredito! — falou pegando
minhas mãos, sorrindo como um menino e
chegando tão perto do meu rosto, que pude sentir
sua respiração até na minha alma.
— Sim, mas não agora — completei.
Ele se afastou e soltou o ar dos pulmões de
uma vez, como se acabasse de levar um balde de
água fria.
— O que quer dizer, Lin?
— Dáian, eu só tenho catorze anos. Meus pais
não estão preparados para me perder com essa
idade. Seria um trauma para eles.
Ele abaixou o olhar, como se sua mente
soubesse que eu tinha razão, mas não pudesse
evitar o conflito interno.
— Eu só irei quando eles puderem me perder
sem muitos efeitos colaterais.
— Lá pelos trinta?
Balancei a cabeça como quem diz: mais ou
menos isso.
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— Vocês demoram muito — ele completou


meio desapontado, mas aliviado por a minha
resposta não ter sido um “não”. Pelo menos era o
que transparecia.
Quando chegamos ao lugar no qual tínhamos
nos despedido todos esses dias, o penteado no meu
cabelo ainda estava intacto. Eu queria muito ficar
mais com Dáian, mas não podia nem sonhar em
levar outra bronca, pois, caso contrário, meus pais
interviriam, e eu não poderia mais sair, talvez pelo
resto da vida.
— Eu preciso mesmo ir — externei, com a
frustração saindo por meus poros.
Ele me olhou um pouco triste e senti que seu
desalento não era só pela minha partida, nem pela
resposta que dei. Tinha algo mais.
— Mais alguma coisa que queira me dizer,
Dáian?
Ele me olhou parecendo querer dizer algo,
mas depois pensou melhor e acabou por ficar em
silêncio.
— Não Lin, está tudo bem — falou por fim,
esboçando um meio sorriso.
— Até amanhã, então.
Ele ficou em silêncio. Sempre me devolvia “o
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até amanhã”, entretanto naquele dia não. Ainda


parecia estar chateado. Acabei não querendo
perturbá-lo.
Tive a leve impressão que o motivo era algo
particular, no entanto, não tive certeza. Quando me
virei para tomar a trilha de casa, ele segurou a
ponta da minha saia, impedindo-me de partir.
Virei para ver se ele havia esquecido de me
dizer alguma coisa. Quando olhei para ele só
lembro dos olhos dele me hipnotizando, os últimos
raios de sol do dia refletindo em seu rosto, do seu
peito meio à mostra pela pequena abertura na
camisa e seu cabelo jogado, balançando com o
vento.
Naquela hora me senti como um besouro
atraído pela luz da lâmpada mais brilhante. Ele era
alto, lindo e perfumado. E, nesse instante, aprendi
outra lição: é possível que alguém se apaixone
novamente pela mesma pessoa.
Meu corpo permaneceu imóvel, só assistindo
ele se aproximar cada vez mais. Contemplando,
como uma mera expectadora, seu rosto chegando
mais e mais perto, até seus lábios tocarem os meus.
Tão logo senti a maciez de seus lábios e o
sabor de seu beijo, eu desejei que aquele momento
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durasse para sempre. Como um gesto tão irracional,


esse de permitir o toque dos lábios de outro ser,
pode ser tão maravilhoso? Pensando nisso, os seres
humanos são estranhos. Os lábios dele não eram só
macios, doces, afetuosos, sensuais, eram muito
mais. A sensação de prazer era, simplesmente,
indescritível.
Como suportei viver catorze anos sem isso?
Como suportaria viver outros oitenta?
Eu o amava. Essa era a verdade.
Os lábios dele deixaram os meus, e, então,
pude entender o que ele disse mais cedo sobre
como algo pode ser dolorosamente viciante. Por
óbvio, eu não diria isso em voz alta do mesmo
modo que ele fizera. Negaria até a morte. As
minhas pernas estavam tão trêmulas, que,
certamente, qualquer ventinho mais forte teria me
feito cair.
— Boa noite, minha Lin — ele disse, saindo
rapidamente em seguida, e seu gesto deixou claro
que, se ele não fizesse isso bruscamente, não
conseguiria ir embora.
— Boa noite — respondi para as costas dele,
já distantes.
Deve ser por isso que todo mundo idolatra o
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primeiro beijo.
Voltei para casa não sei como e dormi também
sem saber como.
No dia seguinte, fui até o nosso ponto de
encontro, mas Dáian não estava lá. Só havia uma
flor sobre a nossa pedra. A mesma flor nascida ao
pé da cachoeira, a qual ele havia me dado no dia de
nosso primeiro encontro. Esperei o dia todo em vão
e acabei por ficar preocupada porque Dáian nunca
deixava de vir. E nos dias que se seguiram, ele
também não veio, por mais que eu o esperasse.
No último dia de férias, meus pais estavam
arrumando tudo para regressarmos e eu continuava
plantada sobre a nossa pedra, esperando.
Quando percebi que não adiantava mais nutrir
nenhuma esperança de que ele retornaria, fui até a
nossa cerejeira. Haviam caído muitas flores e ela já
estava com um aspecto de árvore seca. Só me
lembro de me abaixar ali e abraçar meus próprios
joelhos. Eu nunca chorei tanto.

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Trezentos e sessenta
graus

Tudo de que me lembrava, depois de me


afogar, fora da dor que senti. Meu corpo doía tanto
que parecia que um elefante havia se sentando em
mim, depois de comer ainda para ajudar. Eu queria
abrir os olhos, mas pareciam pregados em minhas
pálpebras. Aos poucos, fui assimilando a linha
branca entre meus cílios e os borrões ao fundo.
Consegui me mexer uns milímetros, mas meu
corpo se recusava a obedecer às ordens da minha
mente. A sede também era insuportável.
Resmunguei um pouco e logo senti a água suave
correndo por meus lábios até minha garganta.
É possível eu estar viva? — esse pensamento
fez meus olhos se encherem de lágrimas.
Ouvi alguém dizer alguma coisa ao fundo, no
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entanto, não consegui compreender uma palavra


sequer. Abri meus olhos com dificuldade e vi uma
bela jovem como minha enfermeira. Tentei
levantar, mas ela me fez deitar novamente, e o
idioma dela soava como um código indecifrável,
pois não era nenhum desses mais usados no mundo,
que a gente aprende a dizer pelo menos “bom dia”
e “obrigado”.
Apontei para a água e, mais uma vez, ela
colocou aquele líquido abençoado entre meus
lábios.
Deus, que delícia!
Voltei a me deitar e comecei a tentar entender
o que havia acontecido, afinal eu só me recordava
daquela água gelada e depois de acordar ali. Todos
os fatos convergiam para uma única explicação: eu
não sabia como nem porquê, mas, de algum modo,
eu havia sobrevivido à queda do avião. Devia estar
em alguma ilhota do Atlântico, por isso não
compreendia o idioma. Talvez algum barco
pesqueiro tivesse passado por lá bem naquela hora
e me resgatado. Após chegar a essa conclusão, os
pensamentos começaram a emergir descoordenados
e velozes como um vendaval.
Quanto tempo eu havia ficado desacordada?
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Meus pais sabem onde estou? Mais alguém


sobreviveu?
Comecei a ficar agitada, mas minha gentil
enfermeira fazia alguns gestos, empurrando-me de
volta para cama, tentando me convencer a
descansar. Minha cabeça estava rodando, então
acabei não aguentando e deitei-me novamente,
esforçando-me para acalmar até cochilar. Quando
acordei novamente, já era noite, pelo menos era o
que parecia. Minha enfermeira continuava ao lado
de minha cama, recostada sobre os próprios braços,
descansando um pouco.
Ela tinha a pele clara e cabelos castanhos
ondulados. Seus olhos também eram castanhos e
bastante gentis. Embora as formas do rosto não
fossem tão harmoniosas e simétricas, isso não
retirava sua beleza. Pelo contrário, parecia
acrescentar um toque exótico às suas feições, numa
beleza fora dos padrões do modismo efêmero.
Inesperadamente, a minha enfermeira acordou
e me flagrou admirando seus traços, fiquei meio
constrangida, já que apesar de sua gentileza, ainda
era uma desconhecida. Entretanto, ela pareceu feliz
por me ver acordar e indicou-me a água, mas
balancei a cabeça de um lado para outro negando,
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mas, ela pegou a água mesmo assim.


Acho que ela não entendeu o gesto de
negativa.
Balancei os braços e, só então, ela
compreendeu que eu não precisava de mais água.
Minha enfermeira se levantou e se dirigiu a algum
lugar, donde voltou com um prato fundo com um
líquido semelhante à sopa. Eu estava sem um pingo
de fome, no entanto provei a excêntrica iguaria.
Embora não fosse ruim, não se encaixou muito com
o meu paladar. Apesar disso, acabei tomando tudo
sem reclamar porque o meu corpo precisava dos
nutrientes. Talvez a falta de apetite fosse a
adrenalina ainda correndo por minhas veias. Tentei
agradecer com um gesto, contudo não sei ao certo
se ela me compreendeu. Reclinei a cabeça sobre a
cabeceira da minha cama e me empenhei com todos
os gestos que pude para dizer a minha enfermeira
para ir se deitar, porque eu já estava bem.
Entretanto, ela insistiu em permanecer ali.
Ainda tem gente boa no mundo, não é? —
pensei.
Quando a gentil garota voltou a dormir,
procurei observar atentamente onde estava. Com
tudo o que havia acontecido, não me ocorrera olhar
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em volta e, após dar uma boa olhada, assimilei que


estava numa espécie de tenda.
Entretanto, os móveis que a guarneciam não
pareciam precários nem portáteis. Reparando com
mais atenção no meu hospital improvisado, a
impressão era como se aquele local fosse a
residência permanente de alguém. O lugar estava
bem equipado e alguns móveis eram estranhos. Na
verdade, o design de todos os móveis era exótico,
entretanto, alguns eram tão diferentes que qualquer
um nem se arriscaria a adivinhar para que serviam.
Apesar de ser noite, não estava tão escuro. O
luar clareava de maneira tão forte que eu diria que
alguém havia completado o tanque de combustível
da lua. O astro devia estar lindo lá fora. Pela
claridade, provavelmente, era noite de algum
fenômeno lunar, como aqueles que chamam de
“super lua”, “lua azul” ou “lua de sangue”. Fiquei
apenas mirando aquele teto sem me reconciliar com
o sono. O aspecto rudimentar daquele lugar
aparentava que um telefone fixo estaria a
quilômetros de distância e, sem dúvida,
desconheciam o que era torre de telefonia celular.
Talvez alguém tivesse um via-satélite.
Pelo amor de Deus, estamos em 2017.
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Na manhã seguinte, acordei e quem estava ao


meu lado não era a minha gentil enfermeira, em seu
lugar havia um rapaz, também bonito, mas do tipo,
como eu diria, rústico. Tinha cabelos dourados,
olhos negros, pele queimada do sol e um rosto,
cujas feições pareciam bem harmoniosas e um
sorriso contido. Ele aparentava ser um homem do
campo, apesar de ser bem jovem. Não que não
existam jovens cuidando do campo, mas, com a
modernidade, parece haver bem menos pessoas
com menos de trinta anos nessa profissão.
Ele tentou falar comigo, no entanto desistiu
tão logo percebeu que eu não entendia nenhuma
palavra. Comecei a gesticular, deixando claro o
meu desejo por um telefone. Entretanto, ele agia
como se não estivesse compreendendo nadinha.
Talvez, mesmo depois de dez anos, eu ainda
continuasse ruim com gestos.
Em seguida, minha enfermeira chegou, eu
pensava nela como enfermeira porque não sabia seu
nome. Ao vê-la, o rapaz se dirigiu à saída e, quando
passou por ela, os dois se entreolharam fixamente,
deixando seus sentimentos tão evidentes, que, num
instante, o ar do recinto mudou por completo.
Pairava nele o nervosismo, a timidez, a insegurança
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e a felicidade, sentimentos típicos de quem está


perdidamente apaixonado. Eu já havia visto esse
filme.
Coitada!
Ela desviou o olhar dele, como se quisesse
evitar que seus olhos revelassem a mensagem
estampada em sua testa, num painel de neon ainda.
Na sequência, veio em minha direção. Depois
olhou novamente para ele, e, por fim, abaixou o
olhar, com aquela expressão sugestiva, sem
disfarçar absolutamente nada do que estava
pensando. Ela nitidamente me achava um possível
perigo.
Mal sabia ela que desse mato não saía mais
coelho.
E só ela parecia não notar o óbvio: ele estava
tão bocó quanto ela.
Quando ele saiu, ela pareceu voltar ao normal.
Veio até mim com um tipo de xícara com um chá.
Pela insistência dela, devia ser medicinal. No
momento em que acabei de tomá-lo, ela levou a
xícara, e eu quis levantar um pouco. Meu corpo
ainda estava dolorido, mas levantei devagar.
Caminhar estava bem difícil.
No meu resgate, com certeza, devem ter me
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reanimado, é a única explicação para eu estar tão


debilitada. Eu quase morri mesmo — pensei
assustada.
Senti um pouco de náusea e acabei me
entregando à cama novamente, acordando quase no
fim da tarde. Ao abrir os olhos, vi que não tinha
ninguém me vigiando e aproveitei para levantar
sorrateiramente. Dei alguns passos mais firmes,
embora ainda estivesse com muita dificuldade para
em equilibrar em pé. Queria respirar um pouco de
ar fresco. Então, caminhei até uma abertura na
tenda, uma espécie de janela e havia um cavalo ali.
Então, era mesmo próximo ao campo. Que
bom, animais emitem um carinho tão revigorante.
Cheguei bem pertinho do lindo animal,
sentindo um enorme pesar por não ter sequer um
torrão de açúcar comigo. Passei meu braço pela
janela e toquei no pelo macio. Ele era lindo.
Enquanto o acariciava, eu o trouxe para mais perto
de mim e acabei notando algo muito estranho.
Onde deveriam estar as narinas não havia nada.
Pensei estar vendo coisas ou confusa em
virtude do meu estado abatido, entretanto, quando o
puxei para mais próximo ainda, pude ver
claramente que, na lateral, entre o tórax e a paleta,
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havia três orifícios, nos quais o ar entrava e saía.


Ele estava respirando por ali.
Fiquei paralisada no mesmo instante, pois
aquilo só seria possível se eu estivesse sonhando.
Era um cavalo como qualquer outro, mas o nariz
estava no lugar errado. A primeira ideia foi a de
que eu havia ficado louca. A segunda ideia foi pior.
Resolvi dar uma olhada no céu e, quando
vislumbrei o cenário, vislumbrei o que seria a visão
mais inesquecível da minha vida. Meu corpo
petrificou até o último fio de cabelo. Achei
sinceramente que eu deveria ter parado na primeira
ideia porque eu estava louca, com certeza.
Quando consegui abandonar o torpor, meu
organismo injetou uma carga pesada de adrenalina,
afetando até o meu cérebro, porque me esqueci
totalmente do meu estado de saúde e corri
procurando um lugar para sair. Entre os vários
compartimentos daquela enorme tenda, os quais a
transformavam quase num labirinto, encontrei a
saída. E, de repente, lá estava eu em um campo
aberto vendo aquele céu de fim de tarde, não
acreditando nem um pouco nas imagens que meus
olhos enviavam a minha mente.
Havia um planeta enorme no céu, o qual não
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se parecia com nenhum dos que eu conhecia,


nenhum daqueles descritos nos livros de ciências.
Devia ser algum “Kepler alguma coisa”, se é que o
telescópio Kepler já tinha captado esse. E não era
só isso. Havia várias luas, espalhadas em qualquer
direção para qual se olhasse.
Eu nunca tinha sentido tanto medo nem
quando o avião caiu. Esse pavor era gelado e fazia
o peito doer, daquele tipo de medo capaz de fazer a
pessoa sofrer um ataque cardíaco, antes mesmo de
se assimilar que a possível ameaça, na verdade, não
é nada demais.
E lá estava eu, girando e olhando para o céu,
um giro de trezentos e sessenta graus. Meu pavor,
finalmente, venceu a adrenalina e comecei a sentir
uma forte náusea. Minhas pernas cederam e acabei
caindo de joelhos, vomitando em seguida. Depois
disso, não vi mais nada.
Quando acordei, estava de volta a minha
costumeira cama com a minha enfermeira mais
preocupada que antes. Olhando aquele quarto, o
qual servira como quarto de hospital desde que
acordei, era como se a visão do céu mais assustador
da minha vida não tivesse passado do um sonho.
Talvez, no meu inconsciente, ainda estivessem
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as imagens do filme Avatar, bem como muitos


outros com efeitos especiais que amava, e estas
induziram meu cérebro, frágil pelo trauma, a
imaginar coisas.
Era a única explicação razoável.
Pensando assim, comecei a me acalmar.
Lembrei-me de uma das lições dos livros do Dr.
Augusto Cury, que eu amava de paixão: “devemos
ser os atores principais no palco da nossa mente e
assumir o controle total do espetáculo”. Claro, eu
devia pensar com um mínimo de racionalidade,
para não deixar minha mente me enganar. Era
simples. Tinha de ser simples.
Minha adorável enfermeira parecia bem
preocupada e tentei gesticular, tranquilizando-a,
apesar de não saber ao certo se consegui. Tentei
teimosamente levantar, mas ela me impedia a todo
custo. Insisti, mesmo com toda relutância.
Queria caminhar até a maldita janela e abri-la
de vez. O que quer estivesse lá fora, eu teria de
encarar, cedo ou tarde. Caminhei até a janela e a
abri, mesmo com a resistência determinada de
minha cuidadora. E, por mais que eu não quisesse,
por mais que implorasse ou por mais que passasse a
vida toda repetindo que não era verdade, aquele
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planeta gigantesco ainda estava lá.


Aquilo era bizarro demais para um cérebro
humano processar, e minha determinação se foi
num instante, tornando inevitável a hiperventilação.
A gentil enfermeira assustou-se com minha
dificuldade para respirar e correu desesperada.
Calma, calma, calma... Tem de haver uma
explicação razoável. Uma que minha mente possa
digerir. Será que eu sobrevivi mesmo àquela
queda?
A ideia de que eu, de fato, estava morta
começou a crescer dentro da minha mente com um
câncer. Toda esperança nutrida de voltar a abraçar
meus pais e de retornar para tudo o que amava
despedaçou-se com um lindo vaso de cristal, dos
mais finos, o qual acabou de despencar de uma
mesa e ninguém pode fazer mais nada para evitar se
estilhaçar no chão.
Como farei para saber se ainda estou viva?
Nesse instante, reparei um punhal sobre uma
mesinha. Andei hesitante até ele, pois, numa
situação como essa, todos os tipos de ideias passam
pela mente humana até as mais autodestrutivas.
Peguei-o e comecei a deslizar a lâmina pela minha
pele. Tudo estava acabado mesmo. Eu nunca mais
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voltaria ao meu lar. Então, retornando a ser o centro


do espetáculo da minha mente, pensei:
Ora, mas no que estou pensando? Nem sei se
estou viva mesmo. Seria muita idiotice uma morta
tentar se matar. E eu não pretendia ficar tachada
por toda eternidade de “a idiota das idiotas”.
Então, levei a lâmina até a palma da minha
mão e passei com força e subitamente para saber o
que acontecia e, para minha surpresa, senti a ligeira
dor do corte e o sangue escorrer por minhas mãos,
pingando no tapete. Logo em seguida, minha
enfermeira chegou acompanhada do jovem do dia
anterior e, ao verem o sangue em minha mão,
começaram a limpá-lo e a tratar do meu ferimento.
Quando tudo já estava sob controle, vi minha
enfermeira retirar todos os objetos pontiagudos do
aposento. Era uma pena eu não falar o seu idioma
para explicar que eu não tentara me matar, pelo
contrário, queria ter certeza de que estava viva.
O jovem loiro evitava tocar em mim a todo o
custo. Com toda certeza ele a amava muito mesmo.
Acabei achando engraçado o jeito dele e ela era
mais engraçada ainda. Eles faziam um belo par,
afinal. Ajeitei-me na cama e olhei para o outro
lado. Eu tinha muito a em que pensar.
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Eu estava viva e agora tinha de decidir qual


seria o plano dali para frente porque, por mais que
o corpo estivesse vivo, a alma já era outra história.
Não queria nem imaginar a dor dos meus pais, e
não havia nenhum jeito de avisá-los. Tão longe de
casa e sem chance nenhuma de voltar.
É... eu tinha muito em que pensar.
Meus cuidadores acabaram me dando um chá
e, toda vez, ao beber eu ficava meio zonza.
Provavelmente era um calmante. Caí no sono outra
vez, dormir acabou se transformando em um
remédio até eficaz. Quando acordei já estava claro
e o dia parecia alto. Sentei na cama devagar e, pela
primeira vez, senti alguma coisa gelada em meu
peito.
Coloquei minhas mãos por baixo do vestido e
as roupas íntimas eram as mesmas do dia do
acidente. Pus a mão dentro do sutiã e retirei a
minha pulseira. Nem acreditei. Pelo menos, eu
tinha algo de casa. Não consegui evitar trazê-la
para junto do meu rosto, acariciando-a, quase como
se fosse um bichinho de estimação.
Em seguida, comecei a raciocinar, da maneira
mais lógica que consegui, no que havia acontecido
comigo. Eu tinha certeza absoluta de uma única
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coisa — eu estava viva. Como isso era possível?


Agora vinham as teorias.
Será que eu estava em coma, em algum lugar?
Descartei logo essa teoria porque senti
claramente, no corpo e na alma, o sangue escorrer
por meu braço e, naquele momento, ainda via, tão
nitidamente quanto uma moeda de ouro reluzindo
ao sol, a ferida na palma da minha mão. Era só
pressioná-la um pouco e voltaria a abrir.
Tá legal, tá legal... Primeiro: entrei numa
aeronave da Air France, A321 com 212
passageiros, voo AF 3600, embarcando no
aeroporto de Heathrow, às doze horas do dia 25 de
setembro de 2017. Segundo: sobrevoamos o
Oceano Atlântico, fomos surpreendidos por uma
tempestade de raios e a aeronave caiu. Terceiro:
eu consegui sair do avião e pulei no mar. Quarto...
quarto... havia uma ponte de Einstein-Rosen bem
no meio do oceano e eu passei por ela.
Não importava de que ângulo eu visse isso,
parecia tão absurdo quanto aquele planeta lá fora,
que insistia em não ir embora só para infernizar
minha vida. Isso não era um filme dos Vingadores,
pelo amor de Deus!
Tá bem. A outra teoria era... era... pegadinha
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do Malandro? Aff...
Talvez a teoria do buraco de minhoca fosse a
menos absurda afinal.
Tá bom. Se eu passei mesmo por uma ponte
dessa e estou em outro planeta, como estou
respirando normalmente? Bebi água e comi da
comida deles?
Eu não queria admitir, mas havia sim uma
explicação científica para isso. Se as condições
para vida são peculiares e o planeta precisar estar
numa zona habitável da galáxia, era lógico que
planetas que abriguem vida sejam semelhantes.
Agradeci por assistir ao Canal H2 tantas vezes na
minha vida.
Após encontrar um motivo, logicamente
explicável, embora mirabolante, só restava decidir
o que faria dali por diante. Com certa vergonha,
confesso que o pensamento de não prolongar meu
sofrimento voltou a assombrar minha mente.
Acredito que seja porque, nesses momentos de
crise extrema, todos os tipos de pensamentos
acabem surgindo. Levantei subitamente da cama e,
dessa vez, a determinação me fez esquecer das
dores que ainda sentia.
Não! Eu nunca fui assim. Eu me recuso a
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desistir sem lutar! Se a ponte me trouxe para cá,


pode muito bem me levar de volta — pensei.
Sentei novamente pensando a respeito disso.
Mesmo que eu a encontrasse e passasse por ela,
provavelmente me levaria para o Atlântico, para o
meio do nada. Depois de refletir por alguns
instantes, resolvi deixar a hesitação de lado. Não
importava como, não importava que levasse a vida
inteira, eu iria encontrar aquela ponte e, ainda que
me levasse para o meio do oceano, eu passaria por
ela. Quando chegasse a minha hora de morrer, eu,
com certeza, morreria em casa.

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Aprendizado

Bem, se eu quisesse passar por tudo aquilo e


alcançar o meu objetivo de encontrar aquele buraco
de minhoca, deveria estar preparada para uma
coisa. A única coisa sem a qual meu plano nunca
daria certo — aprender. Aprender tudo. Mesmo os
assuntos mais triviais poderiam ajudar em algum
momento.
Na Bíblia tem um provérbio que diz que o
homem sábio é forte e o homem de conhecimento
consolida a força. Scientia potentia est. O
conhecimento e a força estão umbilicalmente
conectados. Eu tinha a força. Eu sabia disso. Só
faltava o conhecimento.
Fiz uma lista do que tinha de fazer e anotei
num caderninho que roubei da minha cuidadora.

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Eu havia chegado pela água, logo, isso era


uma pista. Pela lógica, e o universo era lógico sim
(não era Stephen Hawking quem procurava pela
teoria de tudo?), o outro lado da ponte devia
desembocar na água também. Mesmo que estivesse
no oceano deles, provavelmente haveria lendas,
rumores. Era só me misturar e começar a busca. Os
primeiros a revelar alguma pista seriam os meus
salvadores, e era por ali que eu iria começar.
Os dias foram passando e, em todos eles, eu
sempre começava com meu ritual, alongava-me,
recitava meu mantra “ache aquele buraco de
minhoca” e começava a observar como poderia me
misturar entre eles. Comecei com pequenas tarefas,
praticamente apenas auxiliando a minha
enfermeira.
Com o decorrer do tempo, eu ajudava
qualquer um com quem conseguisse contato.
Apesar da vontade desesperada de usar o
caderninho furtado para desenhar, não fiz isso,
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preferi guardá-lo para anotar cada palavra, cada


uma possível de discernir os sons e os transcrevia
no meu idioma do jeito que ouvia.
Enquanto apontava para os objetos, animais e
plantas, minha cuidadora dizia seus nomes, com
toda paciência do mundo. Gradativamente, aprendi
uma palavra aqui e outra ali, para depois juntá-las e
formar frases simples. Por mais que meu consciente
lutasse, não pude deixar de lembrar de Dáian, da
época em que ele aprendia minha língua. Agora
sabia como era ser estrangeira, e, pelo jeito, seria
estrangeira até o fim da vida.
A primeira coisa em meu aprendizado sobre
família que me salvara, foi sua estrutura, a qual era
composta de avô, neta (minha enfermeira) e um
filho adotivo, cujos pais eram muito amigos da
família de minha salvadora e haviam morrido há
algum tempo. Outra coisa foi que os criados da
família eram todos parecidos fisicamente. Não
iguais, apenas parecidos. Estar entre eles causava
um sentimento estranho, como quem chega a uma
tribo indígena e se torna o único diferente dentre
uma multidão de gente semelhante.
Eles não lembravam nenhuma etnia que havia
visto na Terra. Tinham estatura mediana, cabelo e
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olhos pretos intensos, e pele morena. Somente os


membros da família de minha enfermeira possuíam
feições diferentes. Era como se só nós quatro
tivéssemos ido a um país europeu isolado, e
fôssemos os únicos bronzeados num mar de
brancura.
Eles eram o que se pode chamar de nômades
e, por isso, viviam em tendas. Estávamos numa
planície, em campo aberto, e o único caminho para
outro grupo humano era uma trilha, com rastros de
carroças ou carruagens, ou sei lá. A vegetação era
escassa, apesar de o lugar não ser totalmente
deserto. Não me lembro de ter visto uma paisagem
assim na Terra.
Alguns animais eram iguaizinhos aos nossos
enquanto outros apresentavam uma leve diferença.
E havia, também, o grupo das espécies bem
diferentes, as quais despertavam em mim o
interesse em aprender suas fisiologias. Entretanto
era preciso dedicar todo o tempo disponível ao meu
propósito, pois não havia um segundo a perder.
Com o transcorrer dos dias, eu já conseguia
expressar alguma coisa, compreender o que diziam
foi mais rápido.
Minha jovem enfermeira era bem dedicada ao
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trabalho doméstico e cuidava do avô com muita


ternura. Era visível, para ela, ele era um pai. A
família aparentava ser rica naquele contexto, apesar
de não ser o tipo de riqueza ao qual estamos
acostumados na Terra.
A garota não me deixava sozinha nem um
único instante, talvez a minha adaptação fosse o
motivo de sua preocupação. Até que um dia, enfim,
senti a confiança necessária para começar a
entabular uma conversa. Virei para minha
salvadora e perguntei:
— Onde estou?
Ela parecia impressionada com minha rápida
evolução.
— Yonah — ela respondeu.
— O quê? — perguntei sem entender direito.
— Este país se chama Yonah... Em
homenagem a imperatriz que deu origem ao nosso
império — ela completou.
Eu nem quis entrar em detalhes.
Yonah? Era sério isso? Bom, quem podia
julgar. O meu planeta chamava-se Terra. Se bem
que, pelo meu limitado conhecimento, não sabia de
nenhum país na Terra batizado com o nome de
uma pessoa. O povo aqui se apega muito aos
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ancestrais. Entendi.
— Como você se chama? — ela perguntou.
— Meu nome é Everlin. E o seu?
— Joen.
— É um prazer Joen e, a propósito, muito
obrigada por salvar minha vida.
Ela sorriu. Em seguida, notei o rapaz loiro
vindo pela trilha e, em poucos passos, passaria por
nós. Quando Joen o viu se aproximando, derrubou
a cesta de frutas que carregava. Virei o rosto para
ela não perceber a risada que soltei. Depois engoli
o riso e formulei a pergunta da forma mais séria
que consegui:
— E ele como se chama?
— Ah, ele é o Jerrá.
— E quando vai dizer a ele o que sente? —
perguntei, achando-me meio inconveniente por me
envolver numa questão sobre a qual ninguém havia
perguntado minha opinião.
Entretanto, ela havia cuidado de mim todo
esse tempo. E não só dispensado cuidados, mas
também tinha me tratado com carinho, preocupado-
se e me ensinado. Enfim, ela fora muito boa para
mim. Ao ouvir minha pergunta, a face dela ficou
vermelha como um pimentão.
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— Você é vidente? — ela indagou.


Não precisava ser vidente, só ter um cérebro
que funcionasse razoavelmente bem.
Ri do meu próprio pensamento. Quando a vi
sem entender, tentei ficar séria.
— Não, só observei com atenção — respondi,
soltando o sorriso contido.
Ela devolveu o sorriso, no entanto, preferiu
não responder a minha pergunta. Pelo jeito, a
situação era difícil para ela. É complicado para
todos. Enquanto voltávamos para a tenda, fui
tentando extrair todas as informações que podia.
Mesmo as mais insignificantes. Qualquer dado
podia ser importante.
— Como exatamente fui resgatada?
— Os homens do meu avô acharam você
sendo transportada por mercadores de escravos,
enquanto viajavam em busca de provisões. Para
termos coisas como farinha, especiarias, óleo,
tecidos e outras coisas são necessários dois dias de
viagem a cavalo naquela direção — explicou,
apontando para o sul.
Quando ela disse mercadores de escravos,
compreendi algo crucial. Por mais que martelasse
em minha mente a ideia de que o destino havia sido
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ingrato, de algum modo, fui afortunada. Senti


vergonha por pensar que Deus havia me esquecido
na caçamba de alguma galáxia, bem na rabeira do
universo.
— E como sabiam que eu precisava de ajuda?
— Ora, porque você é uma incomum.
Geralmente os incomuns, quando estão nas mãos
de vendedores de escravos, são pessoas
sequestradas.
— O que quer dizer com incomum?
— Nossa, você deve ter vindo de muito longe
mesmo.
Você não faz ideia do quanto — pensei.
— A maioria das pessoas do nosso país são
semelhantes, apenas uma pequena parte é diferente.
— Como assim, diferente?
— Diferente em sua forma física, como cor
dos olhos, da pele, formato do rosto, cor dos
cabelos, coisas assim.
Agora entendi porque todos os empregados
são parecidos, como se fossem da mesma etnia de
um país fechado ao mundo.
— Os diferentes costumam pertencer a alguma
família rica, por isso, quando estão em uma
situação como essa, chamam a atenção. Ainda mais
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alguém como você.


— O que quer dizer com alguém como eu?
— Você tem o tipo mais raro de fisionomia do
país. Eu diria que você é raríssima.
Fiquei pensando por alguns momentos no que
ela acabara de dizer. Eu tinha rosto fino, pele clara
e cabelo castanho marrom. Meus os olhos eram
grandes e, ainda assim, ficava evidente o traço
asiático. Minha mãe era descendente de
canadenses, mas meu pai tinha ascendência
asiática. E eu nem sei de que país, ele nunca falava
sobre isso. Acredito que seja sul-coreana, por causa
do sobrenome Kim. Parece que é bem comum por
lá. Na escola todos me chamavam de japonesa e eu
detestava isso. Só porque minhas notas eram boas e
eu tinha mesmo vontade de aprender, não
significava que isso tinha alguma coisa a ver com
minha árvore genealógica.
— Que planeta é aquele? — questionei,
apontando para o céu.
— Aquele é Konen. Em tributo ao imperador
dos imperadores.
Infelizmente o monstro azul e vermelho
continuava lá, debochando de mim. Era mais fácil
eu ir embora do que ele.
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— Meu avô gostaria de devolvê-la a sua


família, mas como você não falava nosso dialeto,
supomos que veio de muito longe.
— Eu agradeço por me ajudarem. Se eu puder
retribuir de alguma forma...
— Não se preocupe com isso, você já tem
ajudado muito. Apenas sentimos muito por não
podermos devolvê-la.
— Tudo bem. Eu acabarei encontrando o
caminho de casa. Acredite.
Ela abriu para mim um sorriso confiante,
como o de alguém que torce por você de verdade.
Joen, com certeza, era muito meiga. Sem perceber,
me surpreendi desejando que tudo se ajeitasse entre
ela e Jerrá. Ela era do tipo de pessoa que merecia
ter um passaporte vitalício para a felicidade.

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Sabedoria Animal

Das minhas conversas com Joen, consegui


extrair algumas informações e eu anotava tudo no
meu estranho caderninho.

Seria tão bom se na Terra eu aparentasse ser


rica só pelos olhos puxados. E nem eram tão
puxados assim, pelo menos na minha opinião. A
civilização, na qual me encontrava, ainda levaria
séculos, para não dizer milênios, a evoluir ao ponto
em que eu estava acostumada.
Cheguei à conclusão de que, se quisesse
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encontrar a ponte, teria muito a aprender. Eu não


poderia chamar a atenção, deveria me misturar. Isso
implicaria guardar para mim as crenças e
convicções enraizadas pela evolução da minha
espécie. Ainda que minha alma ardesse, não
poderia me insurgir contra nenhum mercador de
escravos, se isso estivesse de acordo com a lei
deles.
Como diz o ditado: “Em Roma, faça como os
romanos”.
Ser o mais imperceptível possível era
prioridade.
Depois de algum tempo, Joen e eu nos
tornamos amigas improváveis, porque, na Terra,
seríamos as últimas a possuir alguma afinidade. Ela
contou que tanto as mulheres quanto os comuns
eram proibidos de aprender a ler, mas seus pais a
haviam ensinado antes de partir. Joen não me disse
como os perdera e achei melhor não perguntar. A
cada vez que se expressa alguma memória por
palavras, você revive toda a experiência.
Ela, gentilmente, começou a me ensinar a ler,
e dei graças a Deus pelo sistema de alfabeto deles
ser parecido com o das principais línguas da Terra,
de origem fenícia, eu acho. Mais uma vez eu
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agradecia ao H2.
Jerrá era, como eu havia pensado, um homem
rústico, de pouca conversa e cuidava muito bem
dos animais. Embora fizesse o plantio com
dedicação, o clima estava longe de cooperar. O
amor dele por Joen era tão evidente. Só ela não
notava. Às vezes, eu tinha a impressão de que ele
se sentia indigno dela, talvez por viver ali como um
filho adotivo.
As poucas vezes em que avistara o avô de
Joen, minha impressão era que se tratava de um
homem bem rigoroso. Administrava seus bens
pessoalmente, apesar de confiar muita coisa a Jerrá,
pois, muito provavelmente, já o via como neto. Isso
significava que, cedo ou tarde, as coisas se
ajeitariam para a Jo.
O avô dela se chamava Abdala ou Abdali,
alguma coisa assim. Acabei me acostumando a
ajudar Jerrá com os animais, contudo, Joen já não
ficava enciumada. Muito provavelmente, ela
percebera o campo de força anti-homens envolta de
mim. Uma vez ela me perguntou se eu não tinha
medo de ficar solteira, respondi-lhe: nasci solteira,
pior que isso, só casando.
Certa amanhã, fui ao curral dos cavalos e
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animais de abate e notei Jerrá bastante preocupado


com alguns deles, pois se recusavam a levantar.
Quando cheguei perto, pude observar os bichinhos
com dificuldade para respirar e sofrendo muito. Por
isso, resolvi improvisar um estetoscópio para
auscultar os pulmões. Só pelo barulho da
respiração, diagnostiquei os pulmões cheios de
secreção, e a inflamação já havia se espalhado.
Reparei nas narinas e, pela cor do fluxo, a infecção
era bacteriana, não havia dúvida. E de uma bactéria
poderosa ainda.
— O que está havendo? — ouvi Joen
perguntar.
— Rápido, coloquem um pano para cobrir a
boca e o nariz. Coloquem luvas também.
— Por que isso? — indagou Jerrá.
— Estão doentes! E a doença é perigosa, além
disso, pode ser contagiosa. Temos de separar os
animais saudáveis dos doentes e tomar toda cautela
ao lidar com eles.
— Só estão cansados — contestou Jerrá.
— Acredite em mim, eles estão muito doentes.
O pior, sem antibióticos, seria difícil curá-los,
para não dizer “impossível”. Jerrá, Joen e eu
passamos a separar os animais e a prendê-los de
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maneira a evitar o contato. Quando eu estava sendo


tratada, percebi que minha amiga só ministrava
ervas medicinais, ou seja, não havia remédios. Não
que remédios naturais não ajudassem, mas uma
infecção bacteriana, pelo meu limitado
conhecimento, só com antibióticos.
— Isso acontece com frequência? — perguntei
a Jerrá.
— É a primeira vez que vejo.
Isso tornava a situação muito pior, porque
significava que os animais não tinham imunidade
alguma. Eu ainda não havia me formado como
veterinária. Faltava o terrível TCC, o qual, muito
provavelmente, nunca faria. Contudo, eu agradecia
pelo fato de eu ter praticamente completado o
último ano porque, naquele momento, era ajudar
com alguma coisa.
Doía-me ver os bichinhos sofrerem daquele
jeito. Corri com Joen até o armário para ver se
havia algo que pudéssemos lhes dar, contudo nada
que fosse nem sequer anti-inflamatório.
Ministramos algumas ervas as quais, segundo a Jo,
serviam como analgésicos, no entanto, eu poderia
estar enganada, mas não seria suficiente.
Ao cair da tarde, demos aos animais uma
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infusão para dormir. Após, permaneci observando


de longe, pois não sabíamos ao certo o que era
aquela infecção, e, quando as horas já haviam
avançado bastante, Joen veio me convencer a ir
dormir.
Pela manhã, o que eu temia aconteceu. Vários
animas tinham morrido, e muitos dos separados já
apresentavam sintomas.
— O que faremos, Lin? — indagou Joen
apreensiva.
— Eu não sei, Jo. A infecção deles é muito
violenta e sem medicação adequada... — expliquei
meio reticente, pois não consegui terminar a
explicação pela total sensação de impotência.
— Como você sabe tudo isso?
— Na minha terra, eu estudava para curar
animais.
— As mulheres podem estudar lá? Deve ser
um lugar bom.
— Tem seus problemas, mas é muito bom sim
— respondi, sentindo meu peito apertar e os olhos
turvarem pelas lágrimas em formação.
Joen segurou a minha mão. De repente,
ouvimos os passos pesados do Sr. Abdala, seguido
por vários servos e por Jerrá. Tão logo se
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aproximou de nós, mirou os animais mortos com


certeza frieza, típica de alguém que precisa tomar
uma decisão, da qual todos dependem.
— O que faremos com os animais mortos,
senhor? — quis saber Jerrá.
— Os de abate leve para o abatedouro, salgue
a carne e coloque no estoque de alimentos dos
criados, os demais enterre.
— Não, não pode fazer isso! — exclamei.
De repente, todos estavam olhando para mim.
E lá se ia meu plano de ser imperceptível. Eu
sempre tenho de abrir a minha boca enorme, né?
— Esses animais, todos eles, devem ser
cremados. A doença os matou em um dia. A carne
está infectada e se der isso para as pessoas
comerem, elas podem ficar doentes.
O avô de Joen se aproximou de mim com um
olhar direto, como quem fita um bichinho dos bem
atrevidos. E eu, que também não sou lá flor que se
cheire nessas horas, não desviei o olhar nem por
um minuto.
— A senhorita é bem-vinda aqui, mas essa
decisão não cabe a você.
— Então, prepare-se para perder, além dos
animais, os empregados, e sei lá mais quem —
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falei, olhando para Joen imediatamente.


Ele hesitou por alguns instantes e depois deve
ter pensado: “bobagem dessa garota”. Incontinente,
saiu resoluto, sem voltar atrás em sua ordem.
— Joen, você precisa convencê-lo a não fazer
isso!
Ela abaixou o olhar sem me encarar, como se
tivesse medo de desobedecer a uma ordem vinda
dele.
— Jerrá — falei suplicando, como quem não
se contenta com a sentença do juiz e apela para o
tribunal.
Ele teve a mesma reação de Joen. Mirei o
chão, tentando pensar num jeito de deter a tragédia.

Quando emitimos um alerta sobre determinada


questão, muitos podem pensar que ficamos felizes
quando o cenário previsto acaba acontecendo.
Algumas pessoas até se alegram, de fato,
proferindo o famoso e triunfante: “não falei?”.
Mas, nas raras vezes que isso acontecia comigo, de
eu prever algum resultado negativo após observar
atentamente o que acontece a minha volta, não me
sentia nem um pouco satisfeita. Muito menos
naquele caso.
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Uns três dias depois da morte dos primeiros


animais, não só havia vários outros enfermos, bem
como muitos empregados também contraíram a
misteriosa doença. O avô de Joen passava por mim
e evitava me olhar nos olhos. Não sei se era porque
estava arrependido ou por achar que eu havia
rogado alguma praga. Ninguém havia morrido
ainda, mas a febre era alta, e não fazíamos a menor
ideia do que fazer para controlá-la.
Eu não permitia que ninguém andasse sem
máscara e sem luvas nem ficasse sem lavar as mãos
por mais de uma hora. Separamos os doentes e dos
sãos, contudo, era questão de tempo até todos
contraírem aquela doença. A dificuldade e a
preocupação por um futuro incerto acabaram
fazendo Jerrá abandonar os obstáculos da sua
mente e a confessar seu amor por Joen. De toda
aquela tragédia, o único alento era ver o quanto
estavam felizes, pelo menos em um aspecto da
vida.
Vê-los juntos no fim do dia era bom. Trazia
alguma esperança, apesar de eu odiar o fato de meu
inconsciente ter trazido à tona memórias, as quais
eu fazia questão de manter enterradas debaixo de
concreto. Já não bastava a queda do avião ter feito
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o favor de me lembrar delas? A pulseira sempre


estava junto a mim e eu, embora não quisesse
admitir, pegava-me olhando para ela e a colocando
sob a luz do sol como antes.
— Que joia é esta, Lin? — perguntou Joen,
quando me apanhou num desses momentos de
nostalgia idiota.
— Nada — respondi escondendo o braço.
— Ah... deixe me ver...
— Mostrei o braço.
— Nossa, uma pulseira de noivado! Você é
noiva?
— Claro que não — respondi sem graça e sem
acreditar.
Ela olhou de um jeito travesso, como se
houvesse descoberto uma verdade sobre mim que
eu mesma ignorava.
— Como sabe que é de noivado? — perguntei,
só por perguntar.
— Ouro e diamantes, com o símbolo de
Yonah do eterno. Só os nobres dos nobres selam
compromisso com uma dessas.
— Ah... isso não são diamantes — repliquei
achando aquilo um absurdo sem tamanho.
— Deixe-me ver.
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Tirei a pulseira e entreguei a ela.


Imediatamente, ela a colocou contra a luz.
— São diamantes sim, com certeza. Meu pai
entendia muito de joias. É bem valiosa, guarde-a
sempre consigo.
Eu não podia crer que andei com ouro e
diamantes no braço todo esse tempo. Pensei em
quantas vezes aquela pulseira ficou jogada entre
meus cadernos.
Talvez, a Jo esteja só exagerando. E, ainda
que ela estivesse certa, não mudaria nada. Eu me
recusaria terminantemente a pensar nele.
Ficamos a noite toda cuidando dos doentes,
entretanto, a febre se negava a ceder. Era mesmo
questão de tempo. Pela manhã, Jerrá também
começou a manifestar os sintomas, e não posso
descrever o desespero de Joen.
Logo agora que estavam tão felizes!
Ela não saía do lado dele nenhum minuto
sequer. Num momento de desespero, ela veio a
mim.
— Lin, por favor, faça alguma coisa. Use seu
conhecimento. Qualquer coisa.
Partia meu coração vê-la chorar, pois a
bondade daquele coração era do tamanho do
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mundo. Ela não merecia aquilo, aliás, nenhum


deles merecia. Permaneci lá parada sem dizer nada.
Já havia lhe explicado sobre a falta dos remédios
certos, ela sabia disso.
Naquele instante, o avô de Joen passou por
nós abaixando o olhar, como um avestruz que
morre de vergonha de pôr a cabeça para fora de seu
buraco. Tenho certeza de que ele ouvira o quão
desesperada Joen estava. Senti uma imensa tristeza
pela Jo e por Jerrá. Tristeza por todos. E ainda
porque o animalzinho, semelhante a um
canguruzinho bem pequeno, o qual eu havia
apelidado de Shrek, ficara doente no dia anterior.
Era o primeiro da espécie dele a contrair a nefasta
bactéria.
Passei pelo cercado para ver como Shrek
estava, desejando egoistamente que ainda estivesse
vivo. Digo que esse pensamento era egoísta porque,
com aquela doença, cada hora a mais, era de puro
sofrimento. Para a minha surpresa, Shrek estava
saltitante, como se nada tivesse acontecido.
Comecei a analisá-lo atentamente a fim de
descobrir a causa de estar tão saudável.
Não podia ter desenvolvido os anticorpos
necessários tão rápido, ontem ele estava bem
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debilitado. Alguma coisa externa lhe fez bem.


Olhei atentamente e, na sua boquinha, tinha
resquícios de que havia comido algo natural, algum
tipo de amora. As manchas vermelhas denunciavam
o aspecto do fruto. Na mesma hora, levantei com
uma nascente de esperança brotando em meu
coração, peguei o irmão sadio de Shrek, já lhe
pedindo mil perdões pelo que eu pretendia fazer,
mas, poderia ser nossa única salvação.
Coloquei o animalzinho junto a outros
doentes, e logo ele ficou fraco. A partir daí fiquei
observando atentamente o seu comportamento.
Após algum tempinho, ele começou a se arrastar
com dificuldade por metros dali, e eu seguia cada
um dos seus passos. Ele rastejou até um pequeno
lago, na borda do qual tinha um arbusto carregado
de frutinhas esquisitas.
Não era um tipo de fruto atraente. Se eu
tivesse visto aquele arbusto em outra situação,
jamais me arriscaria a experimentá-los, entretanto,
o irmãozinho de Shrek devorava como se fosse uma
iguaria deliciosíssima. Depois disso, o pequenino
deitou-se junto à margem e caiu no sono.
Aproveitei para sentar-me e continuar perseverante
em minha observação. Esperei pacientemente e,
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quando ele levantou, já estava bem melhor.


Comecei a arrancar os galhos do arbusto
desesperadamente e, ao terminar, corri para a tenda,
rezando para que, nesse ínterim, ninguém tivesse
morrido.
Cheguei apavorada e procurei por utensílios
na cozinha.
— Lin, onde você estava? — indagou Joen.
— Rápido Jo, não temos tempo, comece a
debulhar as folhas e frutas e amassá-las. Temos de
extrair o sumo.
— Para quê?
— Para dar aos doentes. Vamos rápido.
— Você tem certeza?
— Absoluta.
Ela começou a retirar as folhas e frutos mais
desesperada do que eu. Amassamos e iniciamos a
ministração, começando com Jerrá. Esperamos
várias horas de incerteza, pois ainda que
funcionasse bem animais, poderia ter um longo
caminho ainda até dar resultado em humanos. Em
vez de peregrinar entre os doentes, fiquei com a
Joen e ao lado de Jerrá, porque, se porventura
alguma coisa acontecesse, ela ia precisar do meu
apoio.
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Após uma longa e inquietante espera, a febre


baixou e Jerrá começou a pedir por água. Saí para
ver como estavam os empregados e, vários deles, já
apresentavam boa melhora. Era um milagre. Um
milagre nascido da sabedoria animal. Era
maravilhoso. Joen e eu nos abraçamos e choramos
de alegria. Enfim, o avô dela fez o que eu havia
sugerido, e queimamos toda a carne contaminada,
bem como toda comida, armazenada em contato
com ela. Na verdade, o prejuízo dele foi bem maior
do que se tivesse cremado os animais no início.
Ao que tudo indicava, eles não estavam
acostumados com doenças contagiosas. Após a
eliminação dos agentes contaminados e da
ministração do remédio aos doentes, tudo começou
a voltar ao normal.
Jerrá se recuperou bem e logo retornou ao
campo. Após esse episódio, os empregados
passaram a me olhar com muito respeito, inclusive
o próprio senhor Abdala passou a me encarar com
mais consideração. Contudo, para mim pouco
importava pompa ou reconhecimento. Minha
satisfação era ver todos bem. Senti-me feliz por ter
escolhido a profissão certa, apesar de saber que,
muito provavelmente, eu jamais a exerceria na
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Terra.
— Jerrá e eu começaremos a planejar o
casamento — anunciou Jo, com um sorriso
iluminado como o sol, como dez sóis.
— Fico muito feliz, Jo — felicitei com um
sorriso também iluminado, no fim acabei me
deixando contagiar.
— Logo encontraremos um bom homem para
você. Um que lhe mereça.
— Eu dispenso, aliás, quando você encontrar
um homem desses, avise-me para eu correr para o
outro lado.
Ela riu como uma criança, e acabei rindo
também.
— Por que você é tão contra se apaixonar?
— Nada em especial.
Ela fingiu acreditar.
— Você é muito sábia, Lin. E forte. O homem
que ganhou seu coração deve ser extraordinário.
Fiquei sem resposta, afinal, ela só parecia
ingênua. Eu não fazia a menor ideia do paradeiro
de Dáian. Sabia menos ainda para que país ele
havia regressado. Talvez ele ainda ganhasse algum
prêmio Nobel na vida, afinal o destino é cheio de
reviravoltas. Talvez já estivesse casado, e levando
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os filhos à escola naquele exato momento. Essa


ideia doía, ainda que eu não quisesse admitir.
— Você disse que aquele planeta se chama
Konen? — indaguei, precisando desesperadamente
mudar de assunto.
— É.
— O que tem lá?
— Não sabemos.
Claro. Eles não tinham nem energia elétrica,
como poderiam ter ido para lá?
Isso me fez pensar. E de lá para cá? Será que
ninguém tinha vindo? Será que tem vida lá? Vida
inteligente.
— Nunca ninguém de lá veio para cá?
— Não que eu saiba. A lenda é que no fim da
era passada, a guerra de todas as guerras destruiu os
três irmãos: Konen, Toran e Cosen.
Quando ela terminou de dizer Cosen, apontou
uma das luas. Como eu detestava olhar para cima,
quase nunca reparava no céu, mas agora que ela
mostrava, notei aquele astro, o qual eu pensava ser
uma lua esquisita. Ele era, na verdade, um planeta
destruído.
Senti meu peito gelar. Ter um planeta tão
grande visível no céu, e também outro pedaço de
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um, recém descoberto, desafiava meu


conhecimento sobre gravidade (novamente o H2
entrava em cena), entretanto, aquelas várias luas
pareciam formar uma teia e, de algum modo, tudo
permanecia equilibrado.
Se eu conseguisse voltar para casa e viva para
contar a história, seria um enredo e tanto. Pena que
não estava com o meu celular. Uma foto seria
bacana porque ninguém ia acreditar se eu levasse
apenas um desenho.
— E você sabe o porquê dessa guerra?
— Não. Isso já faz muito tempo. Muitas
gerações já vieram após isso.
Naquela hora eu entendi a razão de tudo ali ser
tão rudimentar. Pelo jeito, viviam em uma realidade
pós-apocalíptica.
Nossa! Isso não se vê todos os dias.

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Dívida

Algum tempo havia passado depois de


enfrentarmos a assustadora doença e o
acampamento, porque para mim mais parecia um
camping que uma casa, já voltara a uma razoável
normalidade. Joen e Jerrá se casariam dentro de
alguns dias. Eu tinha aprendido bastante, e por isso,
cogitava como faria para partir.
Insistia com Joen para acompanhar os servos
na próxima jornada, mas ela continuava relutante
em sua convicção sobre o mundo ser perigoso
demais para mulheres. Mesmo que assim fosse, eu
teria de arriscar em algum momento, afinal eu não
poderia ficar para sempre com eles, apesar de saber
que era o maior desejo da Jo.
Eu ajudava com o vestido de noiva e não pude
evitar a curiosidade de olhar se o corpo da Jo era
inteiramente semelhante ao meu. Eu havia levado
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um baita susto com o cavalo e, para o meu alívio, o


corpo dela era, sim, igualzinho ao meu.
Se ela tivesse alguma coisa diferente, nunca
iria me recuperar do trauma. Melhor deixar as
coisas estranhas para o cinema mesmo. Se é que eu
voltaria a assistir a um filme algum dia.
Por falar em coisas estranhas e filmes, não
pude evitar minha curiosidade sobre as espécies
diferentes existentes no acampamento, e acabei
observando a maioria bem de perto. Havia uns
cangurizinhos, meus prediletos eram Shrek e seu
irmão, o qual passei a chamar de Hope após
superarmos a terrível doença. Além disso, havia um
bicho alto e fino, daqueles que se vê só em desenho
animado, semelhante a um louva-deus, e outros
engraçadinhos similares a dinossaurinhos.
Infelizmente, nenhum baby Groot.
Joen e eu estávamos distraídas confeccionando
o vestido quando chegaram vários homens a
cavalo. Minha bondosa amiga me aconselhou a não
sair, enquanto ela, Jerrá e o avô foram recepcionar
os repentinos visitantes. Não pude deixar de me
esconder num lugar no qual eu conseguiria ouvir a
conversa, sem ser descoberta. Poderia ser algum
aprendizado útil.
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Quando o Sr. Abala soube quem eram,


ordenou a Joen e a Jerrá para voltarem à tenda
imediatamente. Torci para Joen não me encontrar
ali porque, provavelmente, não me deixaria ouvir a
conversa. Não me contentei só em ouvir e acabei
espiando pelo buraco da janela.
Os visitantes estavam bem vestidos, diria
uniformizados, e pareciam algum tipo de oficiais
burocratas ou cobradores de impostos. Um deles
vinha comandando e seria quem Joen classificaria
de incomum, ao passo que os demais pareciam
semelhantes.
— Enfim, nos encontramos Abdali —
pronunciou o comandante num tom não tão
amigável.
— Eu já ia procurar os oficiais reais —
comunicou o avô de Joen com a voz hesitante,
como a de alguém que sabe estar encrencado, bem
encrencado ainda por cima.
Ah... aqueles que estão aí são soldados reais.
Olhei bem mais atenta e muito mais curiosa.
— Nos deu muito trabalho achar você —
discorreu o chefe, andando e olhando o
acampamento como se o avaliasse.
— Recentemente, passei por grandes prejuízos
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por causa de uma doença que se espalhou entre


minha criação e meus servos. Se não fosse a minha
ação rápida de separar os animais doentes e cremar
os mortos, poderia ter se espalhado por toda região,
trazendo danos à Coroa.
Ele só podia estar de brincadeira, né? E uma
de muito mau gosto.
O comandante averiguava ao redor com olhos
de águia. Melhor dizendo, parecia um falcão em
busca de sua presa.
— Sabe quanto tempo levamos para encontrá-
lo? E sabe o tamanho de sua dívida para com o
tesouro real?
Não sei por que isso não era surpresa.
— Pelo que vejo, mesmo com todas as suas
posses, não poderá saldar o débito.
— Eu pagarei, eu juro.
— Chega de promessas, Abdali. Todos sabem
que você vive nesta tenda, partindo de um lugar
para outro para despistar os oficiais do rei.
— Me recuperarei dos prejuízos e pagarei tudo
o que devo, juro a vocês.
— Já ouvimos essa conversa, não há mais
negociação.
— Por favor.
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— Sua neta Abdali. Viemos buscá-la. Ela se


tornará uma das esposas do rei e sua dívida estará
saldada.
— Minha Joen? Não, eu imploro. Ela é tudo o
que tenho.
— Devia ter pensado nisso antes de fugir de
suas obrigações por tanto tempo.
Joen... Eles vão levar a Joen para se casar
com o rei? Meu Deus!
Fiquei estarrecida por alguns instantes. Era
impossível acreditar no que tinha acabado de
escutar. Por toda manhã, ela esteve tão radiante,
aliás, os dois estiveram. Conforme os dias iam
passando, ficavam mais apaixonados. Não era justo
tirar isso deles. Pelo amor de Deus, isso era um
crime. Um crime hediondo. De repente, ouvi um
gemido atrás de mim, ao virar, deparei-me com Jo
paralisada. Ela também ouvira a conversa. Olhei
para o lado e vi, através do tecido, o qual servia
como parede da tenda, uma sombra deslizando e
caindo de joelhos.
Essa não! Jerrá também ouviu.
Os joelhos da Jo também cederam e ela
desabou, assim como seus olhos abriram as
comportas, deixando os rios de lágrimas
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desaguarem desenfreadamente. Corri para abraçá-


la, e ela se agarrou vigorosamente em mim, quase
como se tentasse se apoiar em alguma tábua de
salvação. Jerrá também chorava.
Pobrezinhos.
Aquilo era terrivelmente injusto. Por que
uma inocente teria de pagar pela má administração
do avô? Por uma dívida que não era dela? E como
poderíamos nos insurgir contra isso?
De qualquer perspectiva, não havia solução. O
mundo era deles, as leis eram deles. Quando eu
passeava por Londres, lembro de ter pensado a
mesma coisa. Em um país estrangeiro, você está
sujeito às suas regras. Não importa o quanto se
discorde ou o quanto a lei da natureza seja contra.
Deduzi: o rei é um déspota.
Droga!
— Jerrá — Joen sussurrou.
Ela viu a sombra dele através do tecido, e ele
ainda estava de joelhos. Deveria, com certeza, estar
tão inconsolável quanto ela. Joen buscou a força
necessária de onde não havia mais nada, levantou e
seguiu para fora ao encontro do amado.
Permaneci ali parada, presenciando a sombra
deles, num beijo tão dolorido. Joen estava destinada
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a ser infeliz pelo resto da vida, assim como eu. Não


pude evitar refletir acerca das reviravoltas da vida e
em como o mundo não para de girar. Para o bem ou
para o mal.
O destino era mesmo assim? Como um cubo
mágico que você roda, roda e roda e nunca
consegue colocar as cores em seus devidos lugares?
Será que era desse jeito que as coisas deveriam ser?
Foi aí que tive um insight.
Por que as duas teriam de ser infelizes, se só
uma de nós pudesse ser?
Depois disso, não pensei duas vezes. Coloquei
o capuz de minha capa e saí com o único intuito de
ficar cara a cara com os oficiais. Quando deixei a
tenda, o avô de Joen ainda estava estupefato e os
homens do rei se mantinham implacáveis e
inflexíveis.
Pelo rumo das coisas, as chances de
negociação estavam mesmo esgotadas. Eles não
pareciam satisfeitos com o que faziam, pelo
contrário, deviam, de fato, estar apenas cumprindo
ordens. E mais, acredito que o Sr. Abdala tenha
lhes dado muito trabalho, pois transparecia que a
paciência deles estava por um fio. Entretanto, tudo
aquilo não me importava nem um pouco. Joen não
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tinha culpa, e isso bastava para mim.


Olhei firme para o comandante e falei
espantada com o tamanho da minha determinação:
— Eu vou no lugar dela!
— E quem é você? — indagou o comandante.
— Eu...
Pensei por alguns instantes na resposta. Eu
tinha de dizer algo convincente, algo que me
ligasse à família de Joen, porque, do contrário,
poderia não me aceitar.
— Eu sou filha adotiva do Sr. Abdali —
menti, falando o nome dele corretamente para
evitar suspeitas.
O comandante se aproximou de mim, como se
me avaliasse.
— E sua família?
— Sou órfã — respondi com uma pitada de
dor no peito por dizer uma coisa dessas em voz
alta.
Ele puxou o meu capuz e olhou direto para
mim.
— Ora, ora o que temos aqui. Uma raríssima.
Lancei meu olhar diretamente para ele em
resposta.
— E como exatamente o Abdali a adotou?
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Ele desconfiava mesmo do velho.


— O Sr. Abdali me resgatou de uns
mercadores de escravos. Ajudou-me e, desde então,
vivo aqui. Com a morte de meus pais, sofri uma
série de infortúnios.
— Alguém como você vale muito mais do que
ele deve.
— Então, o seu rei... digo... o nosso rei sairá
lucrando.
O “nosso” saiu arrastado. Deus sabe o quanto
de mim tive de engolir para pronunciá-lo.
— Muito bem, então. Tragam a carruagem —
bradou o oficial real.
Nessa hora meu coração disparou. O que eu
havia feito não podia mais ser desfeito. Jerrá trazia
a Jo apoiada em seus braços. Talvez eles não
soubessem da novidade ainda. Corri e a abracei
com força.
— Seja feliz, minha amiga linda! Espero que
isso pague por tudo o que fez por mim — sussurrei
em seu ouvido.
— Cuide dela — pedi, fitando profundamente
os olhos de Jerrá.
Virei sem olhar mais para eles. Quando se
toma uma decisão com a razão, mas o coração
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ainda está berrando, com todas as suas forças,


desesperado, para ir em sentido contrário, se a
postura do corpo não ajudar a mente, dificilmente
você se manterá firme em seu intento. Naquele
momento, a minha atitude tinha de ser coerente
com meu discurso, se eu quisesse mesmo entrar
naquela carruagem. Ainda que eu tenha escutado a
Jo me chamar, não me virei.
— Não precisa pegar suas coisas, você virá
apenas com a roupa do corpo — avisou o
comandante, cujo olhar era direto, impiedoso.
Esse sim nasceu para ser militar — pensei.
Nem reparei nas demais características dele,
nada significavam para mim. A minha pulseira
estava comigo e eu a esconderia na primeira
oportunidade, mas não na frente deles, evitando,
assim, chamar a atenção. Fora ela, eu não tinha
mais nada além do caderninho, o qual,
possivelmente, não poderia ir buscar nem se eu
quisesse. Teria de conseguir outro quando chegasse
aonde quer que estivessem me levando.
Olhei diretamente para o avô de Joen. Queria
dizer tudo o que eu pensava dele, mas, no fim, o
silêncio foi melhor. O meu olhar já dissera tudo, e
tenho certeza absoluta de que ele entendeu o meu
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recado, porque acabou por desviando o olhar muito


antes de eu desviar o meu. Devia ser um covarde
mesmo.
Continuei caminhando incontinente em
direção a gaiola fechada de madeira quando senti
os braços da Jo se entrelaçarem em volta de mim e
o som de seu pranto atrás de mim. Segurei firme as
mãos dela, tentando transmitir-lhe alguma força, no
entanto, não sei se consegui. Retirei suas mãos sem
dizer nada, mas estou convicta de que nem
precisava, pois meu toque disse tudo. Senti minha
amiga cair de joelhos atrás de mim.
Após isso, entrei na carruagem, e as portas se
fecharam. Sentei-me num dos bancos e não olhei
pela janela. Quando ouvi o oficial bradar: “vamos”,
o efeito da adrenalina em meu corpo se foi, e a
realidade despencou sobre mim, trazendo consigo a
inevitável crise de choro.
Só uma vez em minha vida chorei mais que
naquele dia. Apesar da viagem ser o aprendizado
que eu tanto aguardava, não tive forças para abrir a
janela. É impossível ser forte o tempo todo. Eu me
via, claramente, afundando cada vez mais dentro
daquele mundo, da mesma forma quando se
percebe que, quanto mais se adentra em um rio,
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mais fundo ele fica. E ter a plena noção do quão


difícil será retornar à margem, não importa o
quanto deseje ou se esforce, sob qualquer
perspectiva, é uma situação extremamente
assustadora.
Matava-me ser levada para ser esposa de um
rei que, além de déspota, devia ter crescido como
um principezinho mimado, a quem sempre tudo
fora dado e nunca havia precisado batalhar por
nada. Um sujeito como esse, que subjuga mulheres,
contra quem ninguém se insurge, e todos a sua
volta fazem todas as suas vontades, mesmo as mais
infantis. Devia comer o dia todo, e deixar toda a
sua banha bem à mostra. Ocioso, prepotente e, por
ter de tudo, fazia das pessoas os seus brinquedos.
Eu sentia um fogo me consumindo
internamente só de imaginar o meu destino. Não
me surpreenderia, se, depois de tudo, ainda fosse
um velho careca. Eu não estava retirando a culpa
do velho Abadali. Entretanto, o rei que o obrigasse
a trabalhar duro até saldar sua dívida, e não vir
confiscando as filhas e netas assim.
Que ódio mortal!
Depois de algumas horas naquela carruagem, a
qual balançava tanto como um navio em alto-mar,
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comecei, lentamente, a me acalmar. Curiosamente


me lembrei da trilogia Jogos Vorazes, no cinema
foram quatro filmes. Eu amava tanto essa história,
mas nunca imaginei que um dia entraria em meu
próprio trem. Preferiria mil vezes ir àqueles jogos,
pelo menos eu teria a chance de lutar por minha
vida.
Durante boa parte do trajeto, paramos por
poucas vezes e, nas vezes em que saía daquela
gaiola, vi uma paisagem semiárida, cuja vegetação
era relativamente esparsa, com poucos vilarejos.
Havia muitos “semelhantes” mesmo, fazendo-me
compreender o que a Joen classificara como
“incomum”. Passei a observar veementemente os
cenários, no entanto, não consegui compará-los a
nenhum lugar na Terra. De tudo, extrai uma lição:
ainda que se submeta a condições parecidas, a vida
segue o seu próprio caminho.
Mais algumas horas à frente, paramos em uma
cidade, na qual havia muito mais pessoas e bem
poucos incomuns. Várias crianças paravam atônitas
para me contemplar, como se eu fosse alguma
atração circense. Uma pequenina até pediu para
tocar em meu rosto.
— Foi muito corajoso o que fez por sua amiga
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— comentou o comandante enquanto me entregava


uma garrafa d’água.
Não sei porque a perspicácia dele não me
surpreendeu. Ainda assim, isso não me faria falar
com ele, aceitei a água e me retirei, praticamente
desdenhando. Ao caminhar para a carruagem o
ouvi dizer atrás de mim:
— Já estamos perto, não demorará muito
agora — alertou com uma expressão um pouco
mais gentil.
Abaixei a cabeça num gesto de agradecimento
e entrei. Embora eu não gostasse dele, não
precisava ser mal-educada. Depois de algum
tempo, entramos numa cidade bem maior, com
gente saindo até pelos buracos das fechaduras.
Tudo o que se podia ver eram pessoas transitando
para cá e para lá, com seus cavalos e outros bichos
diferentes. Tirei um pouco o corpo para fora da
carruagem e havia casas até onde a vista conseguia
alcançar.
Demorou um pouco até sairmos daquela
cidade. Andamos mais alguns quilômetros estrada
adentro e nos aproximamos de uma muralha
enorme, cuja extensão me fez congelar até a alma.
Era, sem dúvida, imponente. Mais que isso, era de
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arrepiar. Após atravessarmos a megaestrutura e o


portão, percorremos um longo jardim, no qual o
verde era bem mais abundante.
Paramos em frente a uma porta enorme, onde
vários servos perfilados aguardavam. Quando desci
e eles me viram, todos ficaram paralisados,
estáticos. Um deles, o que parecia ser o chefe,
olhou para o comandante e não se conteve:
— Onde você encontrou uma raridade como
essa?
— Ela veio como pagamento da dívida de
Abdali, a raposa do Norte.
Raposa era exatamente a definição daquele
homem.
— Venha conosco, minha jovem, porque logo
você se tornará uma esposa do rei.
Ele falou aquilo como se fosse me deixar feliz,
como se fosse um prêmio ou uma medalha de ouro
numa olimpíada. Minha vontade era ter dito “não
use expressões pomposas, com essa cara de puxa-
saco, para me jogar em minha cova”. Porque, por
mais enfeitada que fosse, não deixava de ser o que
realmente era — uma tumba.
Mas, no fim, permaneci em silêncio.

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Lei de Murphy

Adentrando no palácio, fui conduzida por


alguns servos a uma espécie de câmara das
mulheres ou alguma coisa assim. Conforme ia
andando por aquele suntuoso palácio, notava vários
tipos de tapeçaria, além de móveis extremamente
luxuosos. E dourado, sobretudo, muito dourado. O
ouro parecia reluzir por toda parte. Quanto mais eu
caminhava, mais aquela imagem do rei, desenhada
em minha mente por todo caminho, ia se
consolidando.
Tenho certeza de que ele é tudo o que
imaginei, e um pouco pior.
Comecei a pensar em que seria mais horrível,
morrer ou passar uma noite com ele.
Morrer, com certeza, seria bem melhor.
Logo depois de entrar nessa sala de mulheres,
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cheguei a outra sala, a qual se assemelhava a uma


espécie de spa, ou algo do tipo, onde havia todos os
tratamentos de beleza possíveis. Eu procurava
vigorosamente por mulheres na mesma situação na
qual eu me encontrava, mas, para o meu desespero,
não vi nenhuma.
Várias criadas vieram e tiraram minhas
roupas. Protegi minha pulseira preciosa. Lembro-
me de uma gentil moça, a qual parecia não ter mais
de quinze anos, vir até mim com vários potes. Para
mim, aquilo eram produtos para cabelo porque ela
veio direto tocando nas minhas madeixas e, naquela
época, minha juba estava num comprimento que
deixaria Sansão no chinelo.
Vou abrir um parêntese para esclarecer o
comprimento gigante dos meus cabelos. Esse fato
nada tinha a ver com eu gostar ou não do visual. Na
verdade, era bem mais fácil mantê-los como eu
costumava usar sempre, um pouco abaixo dos
ombros. O que aconteceu foi: eu havia planejado a
viagem a Londres por tantos meses e a correria não
me permitiu ser nem um pouquinho vaidosa, o que
eu já não era muito mesmo.
Quando minha aventura naquele planeta
começou então, foi bem pior. Praticamente esqueci
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o que era uma hidratação e tinha sérias dúvidas se


isso ainda existia. Baton, se alguém me
apresentasse, eu perguntaria se era de comer.
Enquanto aquela garota alisava meus cabelos,
decidindo o que fazer com eles, viu a pulseira que
eu estava protegendo.
— Se importa? — perguntou ela,
demonstrando interesse em ver a joia de um jeito
delicado, como o de alguém só curioso mesmo.
Ela deu uma olhadela e seu semblante logo
mudou para um de surpresa. Depois voltou-se para
mim com uma expressão de pena.
— Sinto muito — falou por fim, levantando-se
e saindo em seguida.
Não tive nem oportunidade de perguntar o que
ela quis dizer com aquilo, porque logo em seguida
já se amontoaram várias servas, cada uma cuidando
de uma área diferente do meu corpo. Algumas
regiões eu gostaria muito que tivessem
permanecido intocadas. Tentei neutralizar a raiva,
por estarem transformando até minhas partes mais
íntimas, com a reflexão do que dissera aquela
menina.
Seria possível que, para eles, essa pulseira
signifique noivado mesmo.
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Era a única explicação possível. Ela deve ter


concluído que me levaram ao palácio, mesmo
estando noiva e se compadeceu de mim. Mas só ela
pareceu pensar desse modo. Todas as demais me
tratavam como se eu tivesse ganhado na loteria. E o
pior, todas me admiravam como a uma criatura
exposta ao público em um tanque num parque de
diversões. Isso, naturalmente, irritava-me
sobremaneira.
Passei por tantos procedimentos que eu já me
sentia uma paciente, a qual sofreu o pior dos
acidentes e precisava de inúmeras cirurgias. Cada
parte de mim foi modificada em um processo de
horas e horas. Quando me olhei no espelho, nem
consegui me reconhecer. Sei lá o que haviam feito
com a minha pele, mas estava maravilhosa. E a
maquiagem era, simplesmente, fenomenal. Eu teria
comemorado, se estivesse em outras circunstâncias.
Esse pessoal aqui se daria bem na Terra.
Depois fui levada de roupão a outra sala para
me trocar. Quando vi o que estava no manequim,
quase tive um ataque cardíaco. Era, sem
brincadeira, uma roupa dessas como as de
dançarinas de dança do ventre, ou odaliscas, ou sei
lá. Não que eu tenha alguma coisa contra as
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bailarinas dessa dança.


Colocar uma roupa caracterizada e mostrar sua
arte por meio da dança é uma coisa, mas vestir algo
daquele tipo, simplesmente para agradar um idiota,
é outra coisa completamente diferente. Aquilo
deixava, praticamente, todo meu corpo à mostra.
E precisava ser tão chamativo, com tanto
brilho, cheio de bordados e pedrarias? Só pode ser
brincadeira!
Naquele momento, a raiva foi me corroendo
como ácido sulfúrico. Não podia acreditar, eu
estava bem ali, toda emperiquitada e, dentro de
instantes iria vestir uma roupa mais que ousada
para um tirano, gordo, provavelmente careca, e
maníaco por mulheres ter uma... ter uma... ter uma
e... ter uma ere...
A palavra final não saía nem na minha mente.
Se pudesse, eu teria gritado.
Minha vontade era fazer como o Rambo
naquela parte em que chega à sede do comando
com uma metralhadora e destrói todos os
computadores. Depois aponta a arma para cima e
continua atirando até descarregar o pente. Se eu
tivesse uma metralhadora ali, eu teria feito
igualzinho. Ainda que tivesse de responder perante
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o Tribunal Penal Internacional ou, nesse caso,


Interplanetário.
Memórias e brincadeiras à parte, filmes de
ação dos anos 80 era outra de minhas paixões.
Após pensar na cena do Rambo, consegui me
acalmar um pouco. Pensar em algo relativamente
engraçado num momento de tensão extrema era
outro dos meus métodos para me manter no
controle no palco da minha mente. Desde a minha
chegada àquele lugar estranho, todo e qualquer
subterfúgio para manter a sanidade era bem-vindo.
Ao colocar aquela vestimenta, a qual, para
mim, estava mais para fantasia, senti que nem
parecia eu.
Será que vou ter de vestir essa porcaria o
resto da minha vida?
— Quantas esposas tem esse... o rei,
exatamente? — perguntei a uma das servas que
terminava de ajeitar minha roupa.
Tenho de tomar cuidado para meus
pensamentos não escaparem pela minha boca!
Quase chamei o rei de “esse idiota”. Foi por
pouco!
— Setecentas e onze.
— Setecentas e onze! — exclamei, levantando
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a voz, espantada.
— Sim — ela reafirmou, arregalando os olhos
— a senhorita é a septingentésima décima segunda.
— Issssooooooooooo! — comemorei, sem
nem pensar.
Ela me olhou como se eu fosse mais louca do
que ela pensava, mas eu nem liguei. Enfim, uma
boa notícia! Era óbvio, com tantas esposas, uma e
outra acabaria passando despercebida, e era aí que
eu iria me encaixar. Resolvi aquietar minha boca e
meus pensamentos. Já havia extravasado mais do
que meu plano original de ser invisível permitia.
Era melhor voltar a não chamar a atenção, pelo
menos não mais que meus olhos puxados já
chamavam.
Passado um tempinho, fui conduzida ao
odioso harém real. E quando entrei, tive uma
grande surpresa. Havia muitas mulheres é claro,
mas, após dar uma boa olhada, muitas delas eram
lindas. Lindas de verdade. E teve um tempo que
achei Angelina Jolie a mulher mais bonita do
mundo. Mesmo eu, que odiava a ideia de um ser do
sexo oposto se aproximar de mim,
inconscientemente reparava na beleza feminina.
Provavelmente por causa desse instinto bobo do
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nosso gênero, o de nos compararmos. Talvez fosse


isso.
Tem algumas aqui que deixariam a Angelina
lá no pré-sal.
Vi muitos olhos claros. Até negras de olhos
claros, havia várias. Loiras, ruivas, morenas, ruivas
sardentas, negras, pardas, tinha muitas e para todos
os gostos. Não vi nenhuma com traço asiático como
o meu. A maioria com roupas mais decotadas do
que a fantasia que me obrigaram a usar. Observei
muitas de vermelho também. Uma vez vi no
programa Manual do Êxito (olha o canal H2
novamente) que o vermelho é usado para sedução.
A cor da minha roupa era um verde azulado.
Lembrava a cachoeira da propriedade dos meus
pais. Apesar da minha ascendência asiática, graças
a Deus, eu não era um palito. Meus atributos
femininos, ainda mais naquela roupa, não
passariam despercebidos. No entanto, naquela sala,
havia mulheres muito mais chamativas e
avantajadas que eu. Muito embora meu coração
tenha acendido o sinal de alerta porque não se via
nenhum arquétipo oriental como o meu, resolvi
pensar positivamente.
Ora, aqui tem mulheres mais lindas que a
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modelo mais linda da Terra, e parecem doidinhas


para agradar “Sua Majestade” (essa expressão foi
sarcástica, às vezes eu conseguia ser irônica até
nos meus pensamentos). Então, por que cargas
d’água ele iria sequer saber que estou aqui? A
minha ascendência oriental não devia ter todo esse
poder.
Esse pensamento me fez relaxar um pouco.
Continuei caminhando naquele mar de mulheres, e
todas me miravam como se eu fosse uma arqui-
inimiga. Um inseto a ser esmagado na primeira
oportunidade. Mal sabiam elas que, por mim,
podiam devorar o rei todinho, e eu não moveria um
músculo sequer, nem mesmo um músculo da face.
Entretanto, por via das dúvidas, decidi
procurar por um lugar afastado. Um que eu pudesse
ficar sem ser notada. Olhando ao redor, encontrei
uma pequena parede, a qual bloqueava totalmente a
visão de quem entrasse pela porta. Quem ficasse ali
seria imperceptível. Todos os espaços estavam
ocupados, mas, aquele cantinho devia ser evitado a
todo o custo, por isso estava vazio. E, por óbvio,
era ali que eu iria me acomodar. Seria,
praticamente, minha cadeira cativa.
Encostei as palmas das mãos na parede e
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apoiei meu corpo sobre as mãos. Eu tinha ouvido


das criadas que o rei não visitava o harém todos os
dias, então, depois daquela noite (porque eu tive o
azar de chegar ao palácio bem num dia de sua
visita) eu teria um tempo para pensar. Refletir mais
uma vez em qual seria minha estratégia dali por
diante.
Não estava nos meus planos me tornar uma
esposa do rei, e, por isso, eu teria de retraçar todo o
meu esquema. Pelo jeito, desta vez, não havia sido
tão afortunada com ajuda quanto antes, quando fui
para a casa de Joen. Ao meu redor, só vi criaturas
bem pouco amigáveis. Mas não só comigo, elas
pareciam disputar entre si. Esse clima de guerra não
advinha de uma nem de duas, era de quase todas, se
não todas elas.
Elas disputam tanto assim para ficar com esse
cara? Aff...
Desta vez, eu ia ter de contar somente comigo,
pois, ao que tudo indicava, eu não encontraria
nenhuma amiga ali. Passado algum tempo desde o
meu encontro com o que se tornaria o meu lugar
favorito e indisputado, notei o início de um
alvoroço. E isso só podia significar uma coisa: o rei
estava prestes a aparecer. Respirei fundo e me
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acalmei. Não havia motivos para preocupação, ele


não me veria ali.
De repente, o show começou. Coloquei só a
pontinha da minha cabeça para fora da minha
parede protetora e vi um servo entrar primeiro.
Logo em seguida, todas as mulheres se inquietaram
na entrada e nos corredores, num espaço exíguo
para tantas que queriam ficar bem à mostra.
Algumas iam formando uma fileira e, assim, surgiu
uma parede de mulheres entre mim e o corredor.
Isso era ótimo, mais camuflagem.
Retornei ao meu lugar escondido. Por
segurança, seria melhor nem olhar. Deixar que se
ardessem, seria o mais inteligente a fazer. Pelo jeito
eu sobreviveria fácil à noite.
— Recebam o soberano de Yonah, sétimo da
dinastia de Dar, o magnífico, e o rei do florescer
dourado, o nosso rei Sete.
Não acredito, o idiota é anunciado para
entrar no próprio harém?
Tudo o que eu podia fazer era balançar a
cabeça de um lado para o outro. Não podia existir
ser mais otário no Universo. Não quis nem
presenciar a sua entrada. Na verdade, se eu
pudesse, eu não queria vê-lo nunca para poupar
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meus pobres olhos desse gigantesco desprazer.


De onde eu estava, eu não conseguia olhá-lo
diretamente, mas, depois de alguns minutos da sua
exagerada entrada, que de triunfal não tinha nada,
era como se eu sentisse a sua aproximação. Sem
pensar muito, fui abaixando, ainda reclinada na
parede, para atrás do tapume de mulheres, que se
formou ao meu lado, no corredor por onde passaria
o tal rei. Fiquei mirando para o chão, na esperança
de que logo tudo acabaria, era só aguentar firme
mais um pouco.
Inesperadamente, como se meus olhos
estivessem vendo alguma miragem, vi aquele par
de botas, com o aspecto de ser um par hipercaro,
bem a minha frente. E para meu sufoco, eu sabia
exatamente o que aquilo significava.
Eu nem sabia por que isso ainda me
surpreendia. Era claro que, de todos os aviões que
decolam todos os dias no mundo, era o meu que
tinha de cair no mar. E, de todos os aviões que
caem no mar, era o meu que tinha de fazer isso na
boca de uma ponte de “Einstein-Rosen”. E dos
duzentos e doze passageiros que caíram ali, na
entrada da ponte, era eu quem tinha de passar por
ela.
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Sinceramente eu não fazia a menor ideia do


porquê dessas coisas ainda me espantarem. Mas era
óbvio que das setecentas e onze mulheres, ali, além
de mim, era na minha frente que o idiota tinha de
estar. Eu só queria saber no que Edward Aloysius
estava pensando quando inventou sua maldita Lei
de Murphy.
Respirei fundo, disse para mim mesma “você
consegue”, “força na peruca”, e fui levantando, aos
poucos, até estar frente a frente com o rei.
— Qual o seu nome? — ele indagou altivo e
com uma voz grave, olhando para a pulseira em
meu braço sem nem piscar.
Se está em Roma, já sabe... Faça como os
romanos... faça como os romanos... Pelo amor de
Deus... faça como os romanos...
— Everlin — respondi, enfim.
Ele fez uma cara que não soube decifrar, mas
fitava tanto minha pulseira, que resolvi trazê-la
para perto de mim. Não ia deixá-lo tomá-la, nem
que isso custasse a minha vida.
— Ralifax! — chamou o rei.
— Sim, meu Senhor — respondeu o servo.
— Acompanhe-a. Eu escolho essa, hoje!
— Nãoooooo! — esbravejei sem nem
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pestanejar.
Ele voltou-se para mim com um olhar de
curiosidade.
— Não? — inquiriu, como se a minha
negativa fosse a coisa mais estranha ou absurda da
face da Terra deles.
Só faltou me perguntar se eu tinha
enlouquecido.
Parei para pensar alguns instantes em minha
situação, e meu coração disparou. Aquele “não”
provavelmente fora a minha sentença de morte.
Mas... espera um pouco. O que isso
importava? Eu já tinha morrido mesmo.
Virei para ele e soltei.
— Foi isso mesmo que você ouviu. Não!
— E por que não? — ele indagou novamente,
aproximando-se tanto de mim, talvez achando que
a sua estatura imponente ou aqueles peitorais
definidos à mostra pela abertura da camisa
desabotoada fossem me intimidar.
Ainda bem que eu estava de salto, porque só
precisou eu me erguer um pouquinho nas pontas
dos pés para ficar quase cara a cara com ele.
— Porque eu não amo você. Simples assim.
— E por acaso tem alguém que você ame?
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— Não — respondi facilmente, apertando


minha pulseira.
Ele deu uma espécie de sorriso contido, pelo
menos foi o que me pareceu. Depois ficou parado
me olhando como se esperasse para ver minha
próxima reação. E tudo o que eu queria era que ele
saísse com aquele perfume de perto de mim. Seus
olhos se estreitavam de um jeito que eu nunca havia
visto. A impressão que transmitia era a de ser um
exímio estrategista.
Além disso, era bem jovem para ser rei, devia
ser apenas um pouco mais velho que eu. Usava um
sobretudo preto, cuja cauda chegava ao chão, com
um bordado dourado nas mangas e em toda linha
do fecho da blusa. É, e, pelo jeito, ele se exercitava
com frequência também. Aliás, com muita
frequência por sinal.
Depois de me examinar por alguns minutos,
ele começou a se aproximar tanto que pude sentir
sua respiração na minha pele.
Ninguém ensinou a esse idiota que é educado
respeitar a “bolha” alheia?
A sensação em meu coração era a de que ele
fazia isso para ver qual efeito sua proximidade teria
sobre mim. Se ele achava que, com isso, me faria
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retroceder, estava redondamente enganado.


— Amor? O que é isso? Se usa para fazer o
quê? — questionou com aquele meio sorrisinho
sarcástico, próprio de quem canta vitória antes da
hora ou quem conta com o ovo antes da galinha
terminar de botá-lo completamente.
Caro leitor, eu sei perfeitamente que este
último ditado, normalmente, leva outro conjunto de
palavras, entretanto, se eu o expressasse aqui em
sua maneira usual, aposto que seria caçada pela
censura moral.
Estreitei meus olhos mais do que ele estreitava
os dele, assoprei minha franja e olhei firme em seus
olhos, deixando bem claro: por mais que seu corpo
fosse até atlético, por mais que a sua altura
impressionasse qualquer garota mais ingênua, e por
mais rico ou disputado que fosse, jamais eu iria
sequer olhar para ele. Eu preferia morrer a passar
uma noite na mesma cama com ele.
Após deixar nítida a minha postura e ter a
absoluta certeza de que ele havia entendido o meu
recado, por óbvio, eu tinha de arrancar aquele
sorrisinho irônico de seu rosto. Peguei meu salto e
cravei no pé dele, pisando com toda força enquanto
encarava aquela cara de palhaço que ele tinha.
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Embora ele continuasse tentando manter o ar


zombeteiro, conforme fui apertando mais forte, o
riso dele foi se desfazendo em uma careta.
Eu ia morrer, mas iria morrer feliz.
Depois de me satisfazer vendo o sorrisinho
dele se transformar numa dor a qual iria importuná-
lo, pelo menos por algumas horas, retirei meu salto
do seu pé e continuei a encará-lo. Àquela altura, ele
podia acabar comigo do jeito que bem quisesse,
pois eu nem ligaria. Contudo, para minha surpresa,
ele esboçou um meio sorriso triunfante como se me
alertasse “você me aguarde”, retirando-se em
seguida e informando ao tal Ralifax que não
haveria escolha aquela noite.
Tão logo ele sumiu do aposento, senti minhas
pernas cedendo. A adrenalina, a qual, normalmente,
no início da batalha nos deixa eufóricos e
invencíveis, estava perdendo o efeito, fazendo-me
desmoronar. Todas me olhavam como se eu fosse
um E.T. Mal sabiam elas que eu era, de fato, uma
E.T. Naquela multidão de olhares, pude perceber
que muitas já se acreditavam vitoriosas, como se
um possível problema já estivesse resolvido, antes
mesmo de começar.
Ignorei e fui até uma espécie de janela
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enorme, donde pude contemplar a noite plena de


luas, uma das quais me lembrava a do filme E.T. —
O extraterreste. Naquele momento, eu bem que
queria um telefone para ligar para a minha casa. Se
eram minhas últimas horas, eu tinha de, pelo
menos, procurar algo agradável para ver, algo
tranquilizador, e a natureza era muito melhor que
aquele palácio luxuoso feito por homens. Minhas
memórias também seriam melhores companhias
que aquele bando de mulheres e seu pedante rei.

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Mundo Azul

Pensei que não iria conseguir dormir aquela


noite, porém, curiosamente, dormi feito um bebê.
Agora entendia porque tantas pessoas na Terra
pregam o desapego como um caminho para a
felicidade. Na noite anterior, eu havia me
desapegado de tudo e estava pronta para partir da
realidade física sem arrependimentos nem mágoas.
Em meus sonhos, havia visto meus pais felizes. Era
como se eles, de algum modo, tivessem encontrado
dentro de si a força para seguir em frente, mesmo
com a perda de uma filha. Vi meus amigos
comemorando a colação de grau, da qual eu nunca
participaria.
Mas, e daí? O que era um mísero diploma de
veterinária comparado a testemunhar um planeta
fora do sistema solar ao vivo e em cores?
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Fiquei feliz por vê-los se graduandos, embora


minha vida tivesse me levado para outro rumo
diametralmente oposto. E, por incrível que pareça,
também vi Dáian trabalhando em algum tipo de
ajuda humanitária, como os Médicos Sem
Fronteiras, por exemplo. Todos estavam bem, e eu
também estaria. A única coisa que me entristeceu
foi não ter satisfeito o meu desejo de vê-lo
crescido. No sonho, o vi como o tinha visto da
última vez, e como provavelmente o veria para
sempre, um eterno adolescente.
Apesar da noite ter sido maravilhosa, passar o
dia seria um desafio. Eu não conseguia deixar de
pensar, a qualquer momento, meus algozes
apareceriam para me mostrarem o caminho da
guilhotina. Até que, no fim da tarde, eles chegaram.
— Venha conosco, senhora. O rei a mandou
chamar.
Senhora? Eu? Desde quando?
Balancei a cabeça e os segui pelos corredores
do castelo. Depois de andarmos um pouco,
chegamos a um salão, cujo pé direito, de tão alto,
com certeza, faria o som reverberar por metros e
metros. E, ao final, sentado em seu exagerado
trono, estava o rei, acomodado como se estivesse
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esparramado numa confortável poltrona, com as


pernas cruzadas, o cotovelo apoiado no braço do
assento e a cabeça, por sua vez, apoiada no dorso
dos dedos.
Ele me fitava com o mesmo olhar da noite
anterior, como se me avaliasse e se divertisse por
tentar adivinhar qual seria a minha reação para cada
ação dele. Se ele soubesse que eu não estava nem
um pouco interessada em jogar esse joguinho.
— Então, por que está aqui? — perguntou
com uma expressão, a qual eu não soube decifrar.
— Eu...
Assim que comecei minha resposta, parei
imediatamente. Reparei na tapeçaria atrás do trono
e não pude acreditar.
— O que a senhorita ia responder? — indagou
o rei, enquanto o deixava falando sozinho e seguia
sem arredar os olhos nem por um instante daquele
tapete magnífico.
Nele estava estampada uma figura da Terra,
em alto relevo, igual a um quadro, cujas linhas
azuis, representando os oceanos, cintilavam como
se feitas de fios de metal. Ao tocar naquela
imagem, meus olhos inadvertidamente inundaram,
igual um rio na tempestade. Eu deslizava meus
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dedos com carinho sobre aquela imagem do mesmo


modo que alguém, nu há muitos anos, faria se
tocasse um tecido.
— Então, você é mesmo do mundo azul —
deduziu o rei atrás de mim, acertando na mosca.
Virei para ele bruscamente, sem crer no que
ouvira. Ele conhecia meu mundo. Sabia da sua
existência. Ao ver meu rosto, abriu um sorriso
largo.
— Até que, enfim, a senhorita está olhando
para mim — falou, sem abandonar o sorriso.
Pensei em mentir, dizer que eu não era de
onde chamara de mundo azul. No entanto, após
refletir por breves instantes, cheguei à conclusão de
que eu não perderia nada por dizer a verdade.
Afinal, o que ele poderia fazer de pior se soubesse?
— Sim, eu sou do mundo azul — respondi.
Ao ouvir a minha resposta, ele caminhou para
perto de mim um passo de cada vez, como se
estivesse arquitetando a sua fala.
— E... você veio para cá à procura de alguém?
— perguntou e, pela entonação, aguardava
seriamente uma resposta — ou de alguma coisa? —
completou depois de pensar por alguns segundos.
— Não. Eu vim parar aqui por acidente —
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respondi do jeito mais simples e direto possível.


Ele desviou o olhar.
— Você sabe algum jeito de eu voltar para lá?
— questionei com uma expressão um pouco
arrependida pelo encontro da noite anterior, afinal,
ele fora a pessoa que havia me dado a informação
mais valiosa de todas até aquele momento.
Ele não disse uma palavra sequer e abaixou o
olhar como se negasse, voltando ao seu trono.
Também acabei um pouco cabisbaixa com seu
gesto. A esperança nascida um minuto antes se
desfez tão abruptamente quanto havia surgido. Mas
não importava se ele sabia ou não, o bordado a
minha frente era outra prova de que havia uma
ponte de Einstein-Rosen em algum lugar naquele
mundo, e eu iria encontrá-la. Pensar assim me fez
esquecer o problema mais iminente com o qual eu
teria de lidar, a fúria do Rei. Percebi algo crucial,
eu precisava, urgentemente, encontrar um modo de
sair viva daquela encrenca.
O que eu digo para ele esquecer o que houve
ontem?
Tentei pensar em alguma coisa rápido. Fui
andando até ele com uma postura um pouco mais
submissa, afinal teria de ser mais inteligente se
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quisesse voltar para casa. Parei em frente ao rei,


com a cabeça abaixada e os braços atrás de mim,
esperando minha sentença.
Talvez se ele quisesse mesmo me matar, não
teria ficado de conversa fiada. Meu otimismo
chegava a irritar às vezes.
— O que eu faço com você? — ele indagou
retoricamente.
Achei melhor ficar quieta, eu já tinha dito e
feito muito.
Será que se eu perguntasse como estava o pé
dele, as coisas melhorariam?
Dei uma olhadela para baixo e vi o curativo
bem no lugar do pisão.
Droga! Manter a boca fechada ia ser o
melhor mesmo.
Ele levantou e se aproximou de mim, fazendo-
me sentir aquele perfume irritante. Depois ficou
andando em torno, como se me avaliasse.
— Venha comigo — convocou
categoricamente.
Eu o segui e passamos a caminhar lado a lado
pelo castelo até chegarmos a um lugar de onde se
podia ver um enorme pátio abaixo. O que era
bonito nesse ambiente era sua estrutura em dois
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andares, um hall enorme na parte de baixo e os


corredores no andar de cima, como camarotes de
teatro, mas sem as cadeiras. As colunas gigantes e
circulares não eram só lindas, eram espetaculares.
O palácio era todo solene, imponente e,
sinceramente, acredito que eles confundiam ouro
com massa corrida.
— Gostou daqui? — indagou de repente.
— Um pouco exagerado para o meu gosto —
respondi sem pensar.
Àquela altura, achei melhor deixar de lado a
hipocrisia. Em todo o caminho eu havia tentado
decifrá-lo, no entanto, não pude extrair nada de
suas expressões. Ele exalava um ar enigmático,
como se soubesse de algo que eu ainda não havia
captado.
Em alguns momentos, aparentava que tinha
planos para mim, e não me descartaria sem antes
sugar toda e qualquer vantagem que eu pudesse lhe
proporcionar, pelo menos era a única explicação
razoável para eu não ter morrido ainda, bem como
para as feições misteriosas dele.
É... esse cara deve ser do tipo que não dá
ponto sem nó.
— Para o meu também — ele concordou,
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recostando-se numa das muretas.


Normalmente as pessoas não me surpreendem,
mas essa declaração inesperada me fez arquear a
sobrancelha, confesso. Entretanto, isso nada
significava. O fato de ser um pouco diferente do
que eu havia imaginado, nada mudava. Continuava
e sempre continuaria sendo um déspota, cretino.
— Então, como veio parar aqui? — ele
perguntou em um tom que me pareceu
decepcionado.
Ele não podia estar pensando que vim aqui
por vontade própria, né? Deve estar acostumado a
ter tudo mesmo.
— Eu vim como pagamento de uma dívida.
— Dívida de quem? — quis saber, olhando-
me com uma feição entre espantada e curiosa.
— Do Sr. Abdali. Vim no lugar da neta dele.
— E aquela raposa mandou você!!! — falou,
exaltando-se sobremaneira, demonstrando que iria
tomar uma atitude mais radical se eu não o
detivesse.
— Não... não foi assim.
Com minha afirmação, notei ele se acalmando
um pouco.
— Eu vim no lugar dela porque quis.
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Ele fez uma cara tão atenta, como se minha


atitude tivesse aguçado o seu interesse.
— Ela foi boa para mim, estava prestes a se
casar — matei a curiosidade dele.
Esperava que a explicação abrandasse o seu
instinto, mas acabou por colocar mais combustível
num motor já estava trabalhando a todo vapor. Ele
não desviava o olhar de mim.
Só queria que ele dissesse logo qual é a minha
sentença para eu sair dessa agonia.
— Venha — ele disse enfim.
De verdade, a espera me angustiava. E,
enquanto isso, ele caminhava tranquilamente
comigo quase como se fosse meu guia turístico
pelo palácio dourado. Subimos até o que parecia ser
o último andar e saímos para uma espécie de
muralha, de onde se podia ver praticamente toda a
planície do lugar no qual estávamos. Era bonito e,
sob aquele céu exótico, tornava-se mais belo ainda.
Parei e me recostei à beira da muralha de pedra,
contemplando aquele céu, o qual tanto me
reconfortara na noite anterior.
— É lindo, não é? Bem diferente do seu
mundo...
Quando ele mencionou isso, virei assombrada
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em sua direção, e ele notou meu olhar vidrado nele.


— ... creio eu — completou.
Expeli o ar, aprisionado em meus pulmões
pela minha ansiedade, numa respiração pesada e
desapontada.
— É sim — assenti resignada.
— Você está falando bem nossa língua. Há
quanto tempo está aqui?
— Cerca de três meses, eu acho.
Ele olhou para a paisagem e para o céu com
aquela expressão indecifrável e, depois disso,
continuamos o nosso tour até chegarmos a um
aposento enorme e luxuoso. Paramos bem na porta.
Pelo jeito havíamos chegado ao fim da estranha
jornada. No entanto, normalmente, os passeios de
excursão terminam exatamente no início. O fato de
estarmos em um ponto completamente diferente do
castelo, só revelava que a hora do meu veredicto
havia chegado.
— Gostou?
— Tudo aqui é meio exagerado, não é? —
respondi de um jeito mais espontâneo do que
queria.
Ele riu da minha pergunta retórica.
A postura mais amigável dele estava
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derrubando um pouco as minhas barreiras.


Entretanto, como ele era astuto, logicamente, eu
não podia baixar a guarda, senão quisesse perder e,
o mais importante, se quisesse voltar para casa e
em perfeita saúde para contar a história, de
preferência.
— Faremos um acordo, então — propôs.
Virei para ele com os ouvidos atentos, afinal
um acordo era bem melhor que morrer.
— Você será a única de minhas esposas a
desfrutar de um aposento próprio, terá liberdade
para andar pelo palácio para onde quiser e para
fazer o que quiser. E meus criados irão atendê-la
em tudo que desejar.
Eu não podia acreditar na inusitada proposta,
era “bom demais para ser verdade”. Entretanto
como a sabedoria popular já bem diz: “quando a
esmola é demais até o santo desconfia”, fiquei
apreensiva para formular a pergunta que eu
pretendia.
— E em troca? — indaguei pausadamente,
respirando fundo.
Ele deu uma risada triunfante como se tivesse
previsto a pergunta, em seguida, aproximou-se de
mim, e aquele perfume maldito começou a adentrar
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pelas minhas narinas como um entorpecente.


Chegou tão perto a ponto de eu sentir a sua
respiração em meu pescoço enquanto o seu corpo
prensava-me contra uma das metades daquela porta
enorme.
Se ele está pensando que vai me intimidar com
isso, está redondamente enganado. Será que o
“pisão” da noite anterior foi suave demais?
Se ele cogitasse o que eu estava pensando, iria
cair do cavalo. Aquela conversinha mole da última
meia hora não ia me impedir de ver claramente a
realidade. A verdade de quem ele realmente era.
Não retrocedi nem desviei o olhar, continuei
encarando fixamente. Ele, por sua vez, retribuiu
rindo, e eu nem sabia o porquê.
— O dia em que eu chegar ao meu limite,
nada vai me impedir de ter você! — finalizou a
proposta, fitando-me diretamente com um olhar que
parecia devorar-me.
Ao ouvir isso, franzi a testa.
O que será que ele quis dizer com isso?
Ele mal me conhecia. Além disso, tinha aquele
monte de mulheres lindas, não podia estar
desesperado assim para passar uma noite comigo.
Não fazia sentido. No entanto, tinha de haver uma
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explicação lógica para aquela afirmação. Pensei por


alguns instantes, e só me ocorria uma interpretação
razoável.
“O dia em que eu chegar ao meu limite, nada
vai me impedir de ter você” — tradução: “Quando
eu quiser você de verdade, eu vou lhe ter”.
Só podia ser isso. Pensando positivamente
esse acordo era ótimo. Era só eu fazer com que ele
nunca me quisesse e teria total liberdade para
continuar perseguindo meu objetivo. Seria fácil, era
só eu não tomar mais banho nem escovar mais os
dentes. Eu iria para casa como o astronauta Mark
do filme Perdido em Marte, que não tomou banho
por mais um ano até ser resgatado, mas que isso
importava? O personagem usara a ciência como
ferramenta para sair da situação difícil e eu, na vida
real, teria de usar a astúcia.
Raciocinando, desse modo, acabei ficando
radiante. Olhei para ele e aceitei com um sorriso e
ele me mirou de volta com uma expressão, a qual
dizia claramente: “você não faz a menor ideia de
com que está concordando”. Mas eu sabia sim.
Venhamos e convenhamos, até para se
apaixonar é necessário um pouco de incentivo da
outra parte, mal sabia ele o quanto eu era expert em
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fazer os homens desistissem de mim, afinal eu fazia


isso desde os catorze anos. Muito embora, com essa
idade, eu tenha feito sem a menor intenção, e esse
fato só provava o quanto eu era boa nisso.
— Feito então — ele encerrou a questão.
A expressão do seu rosto era clara em dizer:
“vamos ver quanto tempo dura essa convicção”.
Fixou-se em mim por mais alguns minutos com
aquele rosto indecifrável novamente e retirou-se em
seguida. Quando ele saiu, deparei-me com aquele
aposento ao meu dispor sem acreditar no que havia
acabado de me acontecer.
Eu iria poderia perambular livremente pelo
palácio, usaria todos os recursos disponíveis para
alcançar o meu propósito, e tudo o que eu tinha de
fazer era mantê-lo longe mim. Além disso, ficaria
hospedada naquele quarto megaluxuoso. Naquela
situação, era quase como ganhar na loteria.
Sem nem pensar, sai correndo pelo quarto,
gritando:
— Yes... yes... yes...
Pulei na cama e comecei a sapatear em cima
do colchão. Não satisfeita, comecei a dançar e a
cantarolar aquela música que o Marlin e a Dori
cantam depois de escaparem dos tubarões, no filme
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Procurando Nemo.
— Eu não virei jantar, uhuulll... ninguém
virou jantar... tá de dietaaaa...
Tá legal, caro leitor, eu via muito filme.
Depois da musiquinha infantil, cai de joelhos
em cima daquele colchão maravilhoso, arqueando
meu corpo para trás, como se estivesse
comemorando por ter acabado de fazer um gol, e de
placa ainda.
Levantei rindo sozinha quando vi o rei parado,
gargalhando na porta, com os braços cruzados,
como se estivesse se deleitando com o espetáculo
gratuito que acabara de assistir. A minha cara,
naquela hora, deve ter ficado vermelha igual a um
tomate, porque senti até minhas orelhas
queimarem. Fiquei de pé meio constrangida e, a
seguir, caminhei até ele com um sorrisinho
totalmente sem graça. Delicadamente o empurrei
para o corredor.
— Parece que preciso de um pouco de tempo
para me organizar — afirmei com um sorriso mais
confiante que consegui. Uma expressão típica de
quem ainda quer transparecer estar “por cima da
carne-seca”, mas acabou de dar a maior bola fora
da história.
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Em seguida puxei as duas partes da porta, a


qual acabei fechando bem na cara dele.

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Hallelujah

No dia seguinte acordei cedinho para dar uma


boa olhada no palácio. Tudo indicava que estava
bem mais próxima de meu objetivo, e isso me deu
uma injeção de ânimo revigorante. Eu precisava de
outro caderninho urgentemente. Minha incursão
pelos corredores extensos e cheios de curvas
demonstrou ser muito fácil se perder ali, e, pelo
jeito, o rei não havia me mostrado nem dez por
cento daquela floresta de pedra, tapetes, ouro e
luxo, muito, mas muito, luxo.
Meu desejo era ir até a sala do trono para
checar com calma aquela tapeçaria. Ela poderia
conter alguma informação, algum código escondido
ou sei lá. Entretanto, considerei ser melhor levar
esse tipo de pesquisa a diante durante a noite,
assim, evitaria dar de cara com o rei conquistador.

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Ao passear um pouco mais por aquele labirinto sem


fim, notei alguém me seguindo.
Que droga! Acordei cedo justamente para
evitar ao máximo contato com as pessoas.
Tornar-me invisível havia retornado ao status
de prioridade número um. Eu já tinha chamado a
atenção demais e, pesando bem, a fama de ter
pisado no pé do rei, e sobrevivido para perambular,
correria aos quatro ventos. Isso, com certeza, iria
atrapalhar.
Continuei andando rápido e virando por todos
os corredores, mas o meu perseguidor estava longe
de desistir. De repente, encontrei um vão na parede,
onde me enfiei. Quando o enxerido passou por
mim, sem me notar, o surpreendi.
— O que pensa que está fazendo? — indaguei
em tom de repreensão.
O coitado deu um sobressalto de susto e quase
caiu. Não consegui evitar a risada. Quem estava me
seguindo era aquele tal de Ralifax. Olhei bem para
o seu rosto, acabei reconhecendo-o, era o mesmo
servo que havia me recepcionado quando cheguei.
Ele tinha uns trejeitos engraçados.
— A senhora quase me matou de susto —
explicou ofegante com a mão no peito.
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— Não me chame de senhora, meu nome é


Everlin.
— Os deuses me salvem se eu ousar chamar a
esposa do rei por seu nome.
— Eu não sou esposa do rei — afirmei quase
rosnando.
Ele fez uma expressão daquelas que se
costuma fazer quando se diz a famosa expressão
“Jesus me ajude”. Pensando bem, o que ele quis
dizer mesmo foi: “Jesus me ajude porque esta
garota ficou louca”.
— Minha senhora, não diga isso nem em seus
mais íntimos pensamentos — sugeriu com uns
trejeitos muito estranhos.
Ele era muito cômico.
— Digo, repito e volto a dizer, e digo de novo
se for preciso — ratifiquei batendo o pé.
Ele me olhou pasmo como se pensasse: “Essa
garota tem coragem, não tem cérebro, mas tem
coragem”.
— Por que está me seguindo? — disparei em
seguida.
— Sua Majestade ordenou que eu atendesse a
senhora.
— Que me vigiasse você quer dizer.
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Ele me olhou do mesmo modo de Joen quando


havia me perguntado se eu era vidente.
— De modo algum senhora, estou aqui apenas
para servi-la — ele justificou, mas não mentia
muito bem não.
— Certo. Então, vai me servir no que eu
quiser?
— Mas é claro, minha senhora.
— Eu quero um caderno e uma caneta — pedi
com o intuito de testar se eu tinha mesmo alguma
regalia.
— A senhora quer um o quê?
— Caderno, essa coisa que se usa quando se
quer anotar coisas. E caneta, aquilo que se usa para
anotar coisas no caderno — expliquei, só faltando
desenhar.
— Mas a senhora sabe ler e escrever? —
perguntou com uns olhos tão arregalados que me
deixaram irritada na hora.
Estreitei meus olhos e, pelo jeito, ele captou a
mensagem.
— Agorinha mesmo, minha senhora.
Quando ele saiu, empinei um pouco o nariz.
Acabei me sentindo um pouquinho poderosa, mas
isso foi uma bobagem sem tamanho.
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Olha, não é que aquele tosco manteve mesmo


sua palavra!
Continuei perambulando pelo palácio atrás de
alguma cozinha porque àquela altura meu estômago
já havia ultrapassado minhas costas e estava a
ponto de sair sozinho para ver se encontrava algo
mais rápido que a molenga no comando o corpo.
Acabei encontrando uma sala curiosa na qual
haviam várias piscinas, grandes e pequenas. Eu já
havia visto piscina coberta, mas aquele espaço era
suntuoso por demais. De certo modo, assemelhava-
se ao aposento o qual o rei me dera, porém maior e
repleto de piscinas cuja água, de tão branca,
chegava a ser azul. Até ali tinha ouro.
Não havia ninguém se banhando e algumas
delas levavam até quedas d’água como fontes,
provavelmente para massagem. Lembrava um
clube luxuoso em manutenção. O pé direito
também era bem alto. Se eu falasse qualquer coisa
ali ia reverberar até a China deles. Não resisti e
mergulhei a mão na água das que considerei mais
bonitas, algumas eram quentes e outras frias.
Um pouco a frente avistei algo que atiçou a
minha curiosidade. Tratava-se de uma piscina
construída em formato de L e, de onde eu estava, só
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dava para ver uma parte dela. Virei no corredor, no


qual, no canto, havia uma gigantesca coluna
circular de pedra e pude observar, na segunda parte
daquela piscina, em sua extremidade, uma escada
dando acesso à água. Pelo tamanho, a piscina devia
ser bem funda.
Quando me aproximei para pôr a mão na água,
notei alguém nadando.
Um ser sozinho aqui nadando com esse monte
de piscina sem ninguém? Que chato.
Continuei observando, e o estranho atleta
solitário se aproximou da beirada na direção da
escada. Quando ele saiu da água, levei um susto,
quase caindo dura ali mesmo. Era ninguém menos
que o rei, saindo da água do mesmo jeito que havia
sido posto no mundo.
De onde eu estava, para minha sorte (se era de
fato sorte ou azar deixo a critério do caro leitor, na
verdade, leitora, não é?), só pude vê-lo de costas.
Embora eu odiasse admitir e jamais dissesse tal
coisa em voz alta, o porte atlético dele era do nível
de Henry Cavill e Jason Momoa. Não só as
dimensões do corpo, mas a aparência também.
Corri para atrás de uma pilastra, a qual, para minha
infelicidade, não me encobria por completo. E para
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a falta de sorte ser maior ainda, porque mais


azarada que eu só duas de mim, ele olhou por cima
do ombro e me viu escondida ali.
Eu tinha de ir seguindo as piscinas. Não podia
me contentar em ver só uma e dar o fora daqui
logo, né?
Tentei dar meia volta, numa retirada
estratégica.
— Espere aí — chamou, vindo a até mim sem
se cobrir com nada, como se estivesse desfilando
numa de suas roupas luxuosas.
Quando olhei aquilo, e graças a Deus foi tão
de relance que nem deu tempo da masculinidade
dele queimar minha retina, entrei em pânico.
— Pelo amor de Deus, vista alguma coisa! —
ordenei.
Quando vi que ele não retrocederia e se
aproximaria de mim daquele jeito, tirei meu
roupão, ficando só com vestidinho de baixo, e o
arremessei na direção dele, suplicando aos céus que
ele tivesse o bom senso de vestir. Para meu alívio,
ele vestiu a peça e, mesmo sendo grande para mim,
a barra do roupão ficou no joelho dele, e bem
colado ao corpo. Estava até engraçado.
— Está nervosa por quê? — perguntou com
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aquela cara de safado provocador, olhando para


mim de cima com aquele olhar irritante.
— Não estou nervosa — retruquei.
Ele deu um passo em minha direção,
aproximando-se, assenhorando-se completamente
do meu espaço pessoal e, ainda, mirando-me de
cima, com um olhar intenso e um pouco mais sério.
Comecei a ficar agitada, afinal aquela situação era,
no mínimo, constrangedora.
— Viu como está nervosa — ele concluiu
triunfante.
Fiquei sem qualquer argumento diante daquela
situação embaraçosa, e pior, a provocação me fez
agir como idiota.
Depois de respirar um pouco, resolvi cortar o
barato dele.
— Se acha que já demonstrou o que queria,
que tal devolver o meu espaço privativo? Já estou
começando a ficar sem ar aqui — falei, olhando-o
firmemente e decidida.
Ele não retrocedeu.
— Quer dizer que lhe deixo sem ar? —
indagou com aquele meio sorriso pretensioso
insuportável.
— Claro, você fica soltando todo o seu gás
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carbônico em cima de mim — retruquei,


devolvendo o mesmo sorriso torto.
— Admita que me acha atraente.
— Olha, ninguém lhe avisou que as suas
roupas não combinam com essa sua pose? Você
está ridículo.
— Tudo bem então — afirmou, começando a
desamarrar o roupão em seguida, com a nítida
intenção de despi—lo.
— Nãooooo! — berrei.
Ele caiu na gargalhada, enquanto eu
permaneci séria, fazendo aquela cara de quem não
gostou nem um pingo da piada sem graça.
— Você gosta mesmo de brincar com as
pessoas, não é? — falei, reprovando-o
completamente.
— Não — respondeu ainda rindo — só com
você — completou.
Ele me olhou de um jeito que eu não soube
decifrar. Parecia meio bobo, sei lá. Bocó ele já era
mesmo, né?
— Reagindo desse jeito, posso até pensar que
está intocada, e isso me aguçaria ainda mais —
disse enquanto aproximava-se mais de mim, para,
mais uma vez, encostar-me na coluna atrás de nós.
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Pena que saí sem meu salto.


— Eu prefiro morrer — exprimi resoluta, sem
desviar o olhar nem tentar fugir.
Ele me olhou assombrado e retrocedeu alguns
passos, abaixando o olhar na sequência.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, e eu
não sabia se devia ir ou permancer ali até ele
demonstrar alguma reação. Pensei que ele fosse
dizer alguma coisa idiota ou pretensiosa, mas não.
Ficou apenas olhando para o chão, absorto.
É impossível ele ter ficado chateado com o
que eu disse. Ele, com certeza, está pensando em
algo para me vencer. Mal sabe ele com quem está
lidando.
O silêncio só foi quebrado pelo ronco da
minha barriga. Não consegui esconder a cara de
constrangimento.
Que droga, eu tinha acabado de ganhar a
discussão, e minha barriga tinha de dar um fora
desse!
Ele olhou para mim com certa preocupação e
deu um sorriso resignado, estalando os dedos em
seguida. Por incrível que pareça, o rei só estalou os
dedos, naquela sala enorme e vazia, e em menos de
um minuto, dois servos já se apresentaram diante
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de nós.
— Acompanhem a minha esposa até minha
sala de jantar e sirvam-lhe o café da manhã.
— Eu não sou sua esposa — esbravejei.
Os servos me olharam como se me
perguntassem se eu não tinha medo de morrer. O
rei me fitou novamente com aquela expressão que
eu não conseguia interpretar, e isso me deixou com
mais raiva.
— E digam a Ralifax que se ela passar fome
outra vez...
— Sim, meu Senhor — responderam
prontamente os servos, sem deixá-lo terminar a
ameaça.
Todos pareciam ter muito medo dele.
— Não foi culpa dele. Fiz um pedido
complicado que o fizesse me deixar em paz por um
bom tempo — expliquei.
Os servos me olharam ainda mais
assombrados, como se não acreditassem que eu
estivesse defendendo alguém como eles.
O rei abriu um sorriso largo. Era primeira vez
que o via com um sorriso assim. Em seguida, fez
um gesto e os servos me puxaram, indicando-me o
caminho.
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Enquanto andávamos pelos corredores, reparei


numa coisa: todos os servos eram semelhantes. Era
estranho estar entre eles. A sensação era a de ser
um peixe fora d’água. A cultura daquele povo era
completamente diferente dos costumes da Terra,
onde os diferentes são discriminados e rejeitados.
Naquele planeta os diferentes eram admirados e
tratados como realeza. Pelo jeito o Universo devia
ser como uma gangorra, uma hora se está de um
lado dela, nas alturas, e na outra se está do lado
oposto, sentindo o chão.
Atravessamos um corredor do qual emanava
um cheiro delicioso. Então, passei a seguir
instintivamente o meu faro e os servos vinham atrás
de mim explicando que o caminho não era aquele.
Conforme íamos avançando, percebi que aquela
parte do palácio não era tão chique quanto as
demais, e logo chegamos a uma enorme cozinha.
Assim que entrei todos pararam e me olharam
como se eu fosse uma celebridade de Hollywood
entrando em uma lanchonete pequena em um bairro
comum. Uma serva derrubou um prato. Todos eram
semelhantes.
Arrumei um lugarzinho na imensa mesa e
sentei.
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— Pelo amor do Deus dos deuses, minha


senhora, o que está fazendo?
— Estou me sentando para comer essa comida
porque o cheiro está delicioso — esclareci, como se
fosse óbvio.
— Mas a senhora não pode se sentar aqui.
Tem de ir para sala de jantar real.
— Mas qual é a vantagem de ser “Senhora”
aqui se não posso me sentar onde quiser? —
respondi sorrindo para aquele servo, o qual me
devolvia um olhar escandalizado e curioso.
Todos começaram a arrumar tudo em volta de
mim, como se quisessem transformar aquela
cozinha simples, simples perto do resto do palácio,
mas bem equipada e bonita para aquele contexto,
em uma mesa de jantar de nobres.
Desde que havia chegado ao palácio, não tinha
comido direito. Enquanto esperava minha sentença
não tive ânimo para comer. Por isso, naquela hora,
devorei o que me pareceu um dinossauro inteiro.
Os servos se aglomeraram em volta de mim.
Pareciam querer constatar se, de fato, eu era real.
Agora eu conseguia compreender um pouco a
dimensão da minha raridade. Queriam me tocar e
me olhar como se eu fosse uma pintura. Eu não
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estava acostumada com o assédio de celebridade. E,


pelo jeito, não era famosa apenas por minha
aparência, mas as minhas últimas ações também
tinham repercutido mais do que eu imaginava.
— Minha senhora, se o rei descobrir sobre
isso.
— Ele vai fazer o quê? Me matar? Eu já morri,
acredite.
Ele me olhou com uma mistura de espanto,
curiosidade e pena. Em uma situação normal, eu
teria ficado incomodada. Entretanto, naquelas
circunstâncias, talvez eu fosse mesmo digna de
pena. Quando terminei, levantei e agradeci a todos.
Para minha surpresa, fizeram uma cara de que não
queriam que eu fosse embora, mesmo correndo
perigo de receberem alguma punição por eu
permanecer muito ali.
Então é aqui que vou conseguir alguns amigos
— pensei sorrindo.
Ao prosseguir minha peregrinação, os servos,
os quais haviam atendido o rei na sala das piscinas,
vieram atrás de mim. Pareciam com medo de eu
sentir fome outra vez.
— Não se preocupem, agora sei o caminho da
cozinha — esclareci, gesticulando para retornar aos
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seus afazeres.
Quando finalmente voltei a perambular
sozinha, encontrei o maior tesouro de todos. Uma
biblioteca imensa e aparentemente pouco
frequentada, repleta de livros do chão ao alto teto.
Conhecimento, não diria sem fim, mas muito
extenso. Extenso de verdade. Era simplesmente
perfeito. Tinha acabado de encontrar um quartel
general de operações, com uma vasta fonte de
informação. Não pude deixar de me sentir muito
sortuda.
Em algum lugar daquelas prateleiras, deveria
haver um livro com informações referentes ao
mundo azul, da mesma forma como a tapeçaria na
sala do trono. Precisava apenas de paciência para
pesquisar. Eu tinha tempo, paciência e a força para
perseverar. Então era só questão de dias, meses ou
anos para encontrar a ponte. Não importava quanto
tempo levasse, era algo que eu realizar na vida.
Passei todo dia naquela biblioteca. Embora
tivesse dominado a leitura da linguagem mais
moderna deles, a escrita erudita ainda se mostrava
difícil, e teria de aperfeiçoar minha habilidade. Os
ideogramas antigos eram muito complexos. Percebi
que a simbologia em épocas mais remotas era
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intrincada e, com o passar das gerações, foi se


transformando em formas mais simples até a
adoção de uma espécie de alfabeto.
Isso significava que, para ter acesso ao
conhecimento das obras mais antigas, o meu
aprendizado seria mais longo do que imaginara. O
acervo continha tanto livros de capa dura quanto
uma quantia significativa de pergaminhos. Tudo
levava a crer que viviam em uma era pós-
apocalíptica porque se notava muitos documentos
conservados e demasiadamente protegidos, como
para sobreviver a uma catástrofe.
No meu primeiro dia ali, esforcei-me
arduamente para aprender a ler melhor.
Evidentemente não tive a sorte de encontrar algo
sobre a Terra logo de cara. Ao final da tarde,
continuei percorrendo o palácio com a intenção de
descobrir coisas úteis.
— Minha senhora, por Yonah, onde estava?
— perguntou Ralifax arfante.
— Por aí — despistei, recordando sobre Joen
ter mencionado acerca da proibição das mulheres
de estudar.
— Aqui está o que me pediu.
Ele me entregou um caderninho, o qual
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parecia um diário, cujo trabalho da capa dura era


bonito, e uma caneta um pouco mais moderna que
aquela que eu pegara na casa de Joen.
— O rei deu autorização para eu lhe entregar
isso.
— Você teve de pedir para ele? — indaguei
revoltada.
— Mas é claro, minha senhora, são materiais
de estudo. Ele ficou um pouco curioso para saber
por que a senhora precisa disso.
— Não é da conta dele — falei sem conseguir
disfarçar a indignação.
— Minha senhora, Yonah é um dos grandes
desse planeta e nosso rei um soberano dos mais
poderosos e influentes, deveria reconsiderar porque
a senhora parece ter caído na graça do nosso
senhor.
— Ele que engula a graça dele. A seco de
preferência.
— A senhora é mesmo do mundo azul.
— Então, você também já sabe?
— Digamos que nosso rei anda um pouco
diferente desde a sua chegada. A senhora é tão rara
e impetuosa, só podia ser de outro mundo.
— Sabe alguma coisa sobre o mundo azul? —
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indaguei, ignorando todo o resto que ele havia


acabado de dizer.
— Não, minha senhora. Só sabemos que é
uma informação antiga, conhecimento trazido de
outras gerações.
Refleti sobre o dado novo colhido de Ralifax.
Eu ia ter de aprender a escrita antiga deles, se
quisesse saber mais sobre como voltar à Terra. Para
minha sorte, desde pequena, sempre fui autodidata,
só tinha de torcer para que esta habilidade fosse
suficiente e eu não precisasse de professor. Abri o
caderno que Ralifax me trouxe e tive uma surpresa.
Havia uma pequena anotação.

Quando li aquilo, queria picar aquele troço em


pedacinhos. Eu não era esposa dele, quantas vezes
ia ter de repetir? Além disso, ele só poderia estar
brincando.
Meu... meu... Meu e de mais setecentas, né?
Aff...
Decidi não estraçalhar o caderno nem aquela
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página. Há muito tempo aprendi a transformar uma


fraqueza em força. Aquela página me daria a força
necessária para aprender o que quer que fosse para
achar a ponte.
No fim do dia, eu já estava cansada de andar
por aquele infindável labirinto de pedra e ouro, com
a incrível sensação de que não tinha conhecido nem
cinquenta por cento do lugar. Cheguei a uma
passagem no alto da muralha donde o panorama se
estendia de modo mais amplo do que daquela parte
do muro, a qual o rei havia me levado. Aquele
extenso muro fora construído com partes altas e
baixas, e, provavelmente, as primeiras serviam
como escudo, enquanto as outras permitiam obter
uma visão mais acurada caso algum exército
estivesse lá embaixo.
Fiquei ali por algum tempo, admirando absorta
aquela paisagem. Apesar de ter passado o dia todo
me concentrando em um objetivo, no fim do dia era
como se o peso da minha situação caísse sobre mim
e, principalmente, a saudade. Saudade de tudo. Eu
queria tanto um contato com qualquer coisa de
casa. Queria tanto, sei lá, qualquer coisa da Terra,
por mais trivial que fosse. Intuitivamente, acabei
segurando firme a minha pulseira.
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Ao contemplar aquele céu de fim de tarde,


com suas luas, seu planeta e seu meio planeta
reinando soberanos, somada à paisagem terrestre
longínqua no horizonte, tive a certeza do que eu
queria de fato. Desejava muito ouvir uma música,
por isso, lembrei-me de todos os CDs no meu
quarto, com tantas músicas que até perdi as contas.
E ali, não tinha uma sequer, somente um silêncio
tranquilo e tedioso, o qual só era quebrado pelo
barulho do vento, um vento calmo e fresco.
Contudo, queria tanto ouvir música e o único
jeito seria se eu mesma cantasse. Embora a minha
voz não fosse das melhores, também não era
desafinada. Sempre toquei muito melhor que
cantei, mas, como diz o ditado popular: “Quem não
tem cão, caça com gato”.
O vento levava meus cabelos e, naquele
cenário, só havia uma música que eu poderia
cantar. Eu a ouvira várias vezes no filme Shrek,
mas, naquela hora, eu a ouvia em minha mente
cantada pela Meena do filme Sing, vocal de Tori
Kelly. Depois de ouvir todas as notas da introdução
em minha imaginação, comecei:

— Now I've heard there was a secret chord,


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That David played, and it pleased the Lord.


But you don't really care for music, do you?
It goes like this, the fourth, the fifth.
The minor fall, the major lift.
The baffled king composing Hallelujah.
Hallelujah, Hallelujah.
Hallelujah, Halleluuuuujah

Não sei se era o tamanho da saudade ou


aquelas pedras da muralha, reverberando minha voz
de um jeito diferente, mas eu nunca tinha cantado
tão bem. O som estava tão agradável que até me
incentivou a continuar, mas agora um trecho da
versão de Leonard Cohen.

—Your faith was strong, but you needed


proof.
You saw her bathing on the roof.
Her beauty, and the moonlight overthrew you.
She tied you to a kitchen chair,
She broke your throne, and she cut your hair.
And from your lips she drew the Hallelujah.
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Halleluuuuu... hum?

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Antes de terminar a última palavra da canção,


parei de repente. Percebi a presença do rei ao meu
lado, apoiado na parte alta da muralha com os dois
braços cruzados e a cabeça apoiada neles, como um
garoto debruçado na carteira da escola, olhando
para mim com um ar inocente. Parecia encantado.
Ah... droga! Ele tinha de estragar meu
momento. Além de ser um pervertido maluco por
mulheres, ainda é enxerido.
Fiquei sem ter o que dizer por alguns
instantes. Depois, resolvi sair dali e voltar para meu
quarto.
— O que ela quer dizer? — ele perguntou.
— O quê?
— A canção. Quero dizer, a letra fala sobre o
quê?
A pergunta me desestruturou um pouco, até
porque eu não esperava por um interesse como
aquele. Dentre tantas coisas presunçosas e idiotas
que poderia ter dito, saber a história da canção era
bem improvável. No primeiro momento, oscilei
pensando em ignorar e deixá-lo falando sozinho.
Optei por ser educada.
— Fala sobre um rei que se apaixonou por
quem não devia e esse amor acabou se tornando sua
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fraqueza. No fim, quando tudo desmoronou, ele


compôs uma canção para Deus, como se dissesse a
Ele que ainda continuava a ter fé.
O rei ouviu com atenção cada palavra.
— É uma história verdadeira — completei.
Para minha surpresa, ele não disse nada
estúpido tampouco ironizou, preferiu contemplar o
horizonte, enquanto seus cabelos voam livres com a
brisa.
— Um rei também tem fraquezas. Talvez seja
aquele que mais as tem — ele disse por fim.
Na minha opinião, a fraqueza dele eram as
mulheres. No entanto, ele estava tão circunspecto, e
não quis jogar-lhe isso na cara, pelo menos, não
naquele momento. Além disso, havia algo de
nostálgico nele, então achei melhor não começar
uma briga.
— Ah... obrigada pelo caderno.
— Você pretende usá-lo para traçar um plano
para voltar para casa, estou certo?
Olhei para ele sem fala, totalmente surpresa
pela dedução acertada.
Que droga! Ele descobriu que pretendo fugir.
O que ele fará comigo?
Não adiantava tentar mentir àquela altura.
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Eu não ia conseguir. Ele virou para mim com um


olhar sério e penetrante.
— Por que quer tanto ir embora? — indagou
de um jeito revoltado, quase dolorido.
— Eu...
— Posso dar a você o que quiser. Posso cobri-
la de joias, vestidos, ouro, tudo o que deseje. Posso
lhe dar uma coroa, se quiser — afirmou, agarrando-
me pelos braços, antes mesmo de eu terminar o que
ia dizer.
A feição dele era decidida, mas seu toque
suave, muito embora parecesse meio desesperado,
ou sei lá. Não fazia o menor sentido para mim.
— Olha... — comecei me desvencilhando dele
— primeiro, tudo isso pouco me importa...
Quando acabei a primeira parte do meu
discurso, ele deu um pequeno sorriso como se
minha resposta não o tivesse surpreendido nem um
pouquinho.
— ... e segundo, você tem mais de setecentas
esposas, para que quer me comprar desse jeito?
— Usar todas as armas à disposição não é o
mais lógico a se fazer quando alguém deseja vencer
uma batalha? — ele perguntou-me olhando daquele
jeito que eu não sabia interpretar.
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Quando ele fazia aquela cara deixava-me


completamente desnorteada sem saber o que
argumentar. Não sei se estava convencido de que a
beleza dele mexia comigo ou se estava acostumado
a ter sempre tudo o que queria. Talvez levar um
“não” fosse novidade para ele. Ele não poderia
saber de algo que eu não sabia, isso era impossível.
— Se está tão desesperado, devia fazer uma
visita ao seu harém — provoquei, mirando-o
diretamente nos olhos dele enquanto passava por
ele para seguir meu caminho de volta.
— Se prepare — ele disse, fazendo-me voltar
minha atenção para ele — nada me fará parar desta
vez. Então, esta é uma batalha que você não pode
vencer, desista.
Franzi a testa.
— Você não faz a menor ideia de com quem
está lidando — afirmei.
Ele abriu um sorriso tão largo. Só uma vez vi
um sorriso como aquele, uma lembrança que eu
odiava trazer a memória. Aquele sorriso imbecil me
incomodou e eu acabei fugindo para o meu quarto.
A primeira coisa que fiz quando entrei no meu
aposento foi abrir meu caderninho e escrever com
letras garrafais:
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Pastel

Depois daquele fim de tarde, o rei resolveu me


deixar em paz por alguns dias. A agenda bem
apertada dele, para mim, era uma ótima vantagem,
equivalia a ter uma rainha num jogo de xadrez ou
um kin num jogo de shogui. Passei vários dias na
deserta e maravilhosa biblioteca, mas os
ideogramas antigos continuavam indecifráveis e
demandaria um longo tempo de aprendizagem.
Quando não estava imersa nos estudos, andava
pelo palácio pensando que a leitura não seria
suficiente para me levar para casa. Era
imprescindível desenvolver mais habilidades. Em
uma de minhas andanças, deparei-me com um
salão, o qual parecia ser uma área de treinamento.
— Ralifax, o que é aquele salão igual a uma
arena?

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— Aquele espaço é destinado à preparação


da guarda de elite do rei, que é treinada no palácio.
São disciplinados em várias artes marciais.
Artes marciais? Isso pode me ser muito útil —
divaguei, parecendo um emoji pensativo.
Pela manhã, dei a Ralifax alguma incumbência
a fim de afastá-lo. Queria bisbilhotar com calma o
salão de treinamento, antes de ir à biblioteca.
Fiquei encostada num canto observando as
atividades, vendo um dos professores. Era aquele
oficial que me tirou da casa de Joen e me levou ao
palácio.
Todos os cadetes eram semelhantes, só os
mestres eram incomuns. Ao terminar o
treinamento, todos passaram por mim como se eu
fosse portadora de alguma doença contagiosa.
Chamei o oficial, mas ele também não queria falar
comigo. Diante da relutância, corri e bloqueei o seu
caminho.
— Espera aí, quero falar com você.
— Eu não tenho permissão para falar com
uma esposa do rei — informou, querendo passar.
— Não sou esposa de ninguém — esbravejei,
olhando diretamente para ele.
Isso fez com que ele, enfim, olhasse para mim.
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— A senhora é mesmo corajosa — afirmou


esboçando um meio sorriso.
— Qual é o seu nome?
— Lui.
— Eu sou Everlin, muito prazer.
— Em que posso servi-la, senhora Everlin?
— Preciso que me ensine a lutar.
Tão logo acabei meu pedido, o semblante dele
mudou para um com tanto espanto que até me senti
um pouco constrangida.
— A senhora tem noção do que está me
pedindo? Não tenho nem permissão para sequer
falar com a senhora, que dirá treiná-la.
— Por ordem do rei, todos os servos devem
me atender no que eu quiser, e acredito que você
não seja exceção.
Ele fez uma cara de quem não tinha um
contra-argumento. Pelo jeito a promessa do rei era
mesmo verídica, afinal. Lui não era tão atlético
quando o rei, mas também aparentava ser bem
treinado. Ele parecia ser um pouco mais velho,
talvez beirasse os trinta anos.
O rosto revelava uma astúcia adquirida com os
anos de experiência, então, deveria pertencer ao
exército desde muito jovem. Eu o tinha observado
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ensinando e ele revelara-se realmente bom,


sobretudo, quando se tratava de luta com dois
bastões.
— Em toda a história deste país nunca uma
mulher aprendeu a lutar — tentou contra-
argumentar.
— Isso foi antes ou depois do fim do mundo?
Acabei rindo da cara de surpresa de Lui.
— Yonah nasceu depois da catástrofe, isso foi
há muitas gerações — ele aquiesceu por fim.
— Talvez já esteja na hora de mudar —
insinuei com um sorriso confiante.
Ele correspondeu sorrindo. Provavelmente
tenha aprovado a minha determinação, ou eu devo
ter feito uma cara engraçada, vai saber. Ou, talvez,
tenha gostado do desafio de ensinar uma garota
pela primeira vez.
— Muito bem — assentiu — começamos
amanhã cedo, bem cedo, antes de todos os outros
aprendizes.
— Combinado — sorri, balançando a cabeça,
afirmativamente.
Ele fez uma cara de quem não entendeu bem o
gesto afirmativo, mas pareceu ter compreendido
perfeitamente que nada me faria desistir. Ao
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contrário do que imaginei no início, ele pareceu não


duvidar nem um pouco de que eu persistiria até
aprender, e meu pedido não se tratava de um
capricho frívolo.
No dia seguinte, comecei meu treinamento
Jedi. Iniciamos com uma maratona exaustiva de
alongamentos, comigo em menos forma do que
julgara. Meu corpo doía tanto a cada esticada que
me senti igual a uma lata velha enferrujada. Lui ria
da minha situação.
— Lembre-se, você precisa ter total domínio
de si mesma. Cada centímetro do seu corpo deve
responder ao comando mental numa batalha. Pensar
em um movimento e não ser capaz de executá-lo
pode significar sua morte, você entendeu?
— Sim, senhor — ele era meu professor e
merecia o meu respeito.
Sempre fui mais nerd que atleta. Toda vez que
meu corpo reclamava de algum movimento,
pensava em toda pizza e todo chocolate que comi
na vida. Eu não era gorda, pelo menos na minha
opinião. Mas o organismo humano acaba se
acomodando com o ritmo que se dá a ele. Além
disso, eu nunca tinha forçado meu corpo daquele
jeito. Contudo, isso não me faria retroceder em meu
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intento.
Quando fosse viajar em busca da porta de
casa, teria de saber me cuidar num mundo hostil. E,
apesar de Lui não ter dito nada, eu estava convicta
de que ele aceitou treinar porque apreciara a minha
coragem. Essa parecia ser a única razão lógica para
o “sim” dele ter sido mais fácil do que previ. Ou
talvez ele tivesse se compadecido de mim, afinal
ele sabia porque eu estava no palácio.
— Outra lição importante. Você não será
capaz de derrotar um homem em uma disputa de
força física.
Às vezes, a sinceridade dele era irritante.
Ninguém o ensinou que não precisa falar tudo
o que pensa?
— Mas isso não significa que você não será
capaz de vencer a luta — advertiu.
Franzi a testa e arqueei uma sobrancelha.
— Você terá de ser mais inteligente, mais
astuta. Terá de transformar sua desvantagem em
oportunidade. E lembre-se, basta um golpe. Um
golpe e acabe com a luta, não espere para dar um
segundo, porque a oportunidade pode não chegar,
entendeu? — admoestou, seriamente, fitando-me.
— Entendi — falei arquejante.
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— Desestruture, derrube e vença — ministrou


o ensinamento com firmeza.
Balancei a cabeça e, a essa altura, ele já
compreendia meus gestos.
Com o passar dos dias, percebi que meu
mentor tinha toda a razão. Meu cérebro parecia ser
mais rápido que meu corpo, e apesar de imaginar
vários movimentos, não era capaz de realizá-los.
Por isso, para conseguir maior autonomia, resolvi
correr pelo jardim todos os dias junto com uma
exaustiva rotina de alongamentos.
Apesar da dificuldade, cada pequeno
progresso me deixava feliz, embora fosse mais
lento que o desejado. Pelo jeito, eu ia ter de
aprender por insistência ou por osmose, porque eu
não tinha o menor talento natural. Por outro lado, o
aprendizado da leitura progredia um pouco mais
rápido.
— Hoje poderemos ter um treino um pouco
mais longo. Os recrutas da guarda real terão aulas
de hipismo — Lui afirmou como se fosse a melhor
das novidades, uma fofoca superengraçada de uma
pessoa bem famosa.
Para mim, não era uma notícia tão boa assim,
pois significava um treino pesado no meu futuro
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iminente. Aprendi que, quando se trata da arte de


lutar, tudo na teoria parecia fácil, mas na prática, só
com suor e dores, porque as lágrimas não ajudavam
em nada. Não importava o quanto eu tentasse, Lui
sempre tinha um jeito de se defender de meus
golpes e, antes de eu me dar conta, já estava no
chão.
— Foco, Everlin — alertou.
Balancei a cabeça, simbolizando estar pronta
para outra. Firmei minha base na posição e agucei
meus sentidos. Dessa vez, conseguira desviar de
uma sequência de cinco golpes antes de sucumbir
ao meu mestre.
Droga! De cara no chão outra vez. Saco!
Meu professor parecia achar divertida a minha
persistência, olhava-me de uma forma cada vez
mais gentil. Eu ainda estava no chão quando o rei
entrou e vociferou uma palavra que não entendi.
Lui abaixou o olhar e ficou numa posição de
reverência sem erguer a cabeça. Levantei sem saber
se eu tinha de ficar na mesma posição. Entretanto,
resolvi olhar diretamente para o bocó que pensava
que era rei.
Lui levantou um pouco a cabeça e o rei se
aproximou dele, estreitando o olhar e fazendo-o
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abaixar a cabeça em menos de um minuto. Não


satisfeito, Lui retrocedeu alguns passos. Era
estranho vê-lo tão intimidado só por um olhar,
afinal era um exímio lutador. Depois de meu mestre
se afastar, o rei lançou aquele olhar estreito direto
para mim.
Como se isso fosse me intimidar.
Olhei para ele sem desviar meus olhos. O rei
rosnou uma frase incompreensível e todos se
curvaram mais ainda, inclusive Lui, que levantou
um pouco a cabeça e me encarou como se dissesse:
“sinto muito”. Meu sangue ferveu.
— O que pensa que está fazendo? — o rei
indagou enfim.
— Aprendendo, você não viu? — retruquei,
devolvendo o mesmo olhar raivoso.
Tenho certeza de que meu olhar, naquela hora,
tinha muito mais furor que o dele. Entretanto, ele
continuava me mirando com aqueles olhos estreitos
e com aquela cara, dando a entender que eu tinha
cometido um dos sete pecados capitais ou todos
eles juntos. Não aguentei e tive de reagir, claro.
— Escuta aqui, não estou fazendo nada
demais. Só estava aprendendo a me defender, só
isso. Qual o problema? Você prometeu que os
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empregados iriam me atender — despejei


indignada.
O rei veio caminhando em minha direção
lentamente, fazendo-me recuar até me prensar mais
uma vez contra a parede.
— Deixe-me ser claro. Outro homem não toca
em você. Compreendeu agora? —ameaçou quase
encostando o rosto dele no meu.
A hora que ele terminou de dizer aquilo, se eu
fosse um vulcão, tinha, tão certo quanto dois mais
dois são quatro, entrado em erupção. Nem pensei
duas vezes. Agarrei-o pelo braço e sai puxando-o
pela sala, debaixo de todos aqueles olhares
curiosos, inclusive sob o olhar de meu mestre.
Continuei arrastando-o pelos corredores até
chegarmos àquele ambiente de dois andares, com o
pátio lá embaixo. Soltei o braço dele e apontei em
direção ao enorme saguão descoberto.
No gigantesco hall encontravam-se todas as
esposas do rei recebendo os seus tratamentos de
beleza, pois todos os dias desfrutavam de vários
tipos de procedimentos, desde hidratação para os
cabelos até uns mais estranhos para cotovelos,
joelhos, orelhas, unhas, cílios, sobrancelhas, enfim,
tudo que se possa imaginar. Diariamente, naquele
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horário, aquele recinto se transformava


praticamente num spa.
O rei olhou aquilo tão de relance que sua
olhadela não durou um segundo sequer, voltando a
fixar-se em mim.
— E daí? — inquiriu com desdém.
— E daí? — exclamei enraivecida.
Respirei fundo.
— Olha ali, aquela está até sendo massageada
por um homem. Todas aí, praticamente, estão
sendo tocadas por homens.
Esbravejei tão alto que elas acabaram notando
o rei no corredor do andar de cima, deixando-as
ouriçadas, igualzinho a uma sala de cinema repleto
de garotas quando Jacob Black de Crepúsculo tirou
a camisa pela primeira vez.
Ele permanecia impassível diante do alvoroço.
Agarrou-me pelo braço e me prensou contra a
parede pela enésima vez, deixando aquele aroma
maldito invadir o ar. E o pior de tudo, aquele
perfume não era só a fragrância que ele aplicava em
si, mas a soma dela ao cheiro da sua pele.
Certamente ele sabia o quanto aquilo despertava os
instintos femininos.
— Vou dizer outra vez, nenhum homem
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encosta em você, além de mim, entendeu? Eu já dei


instruções para seus tratamentos serem feitos
apenas por mulheres. E acho bom você respeitar
essa regra, senão vou ordenar que lhe deixem sob
minhas vistas o tempo todo! — expôs sem ter a
mínima vergonha na cara.
Estreitei meus olhos na direção dele.
Só podia ser brincadeira, né?
— Isso não é justo, só quero aprender, por
favor — supliquei na esperança de ele não me
impedir de treinar àquela altura.
— Quer aprender? Então, está bem.
Apresente-se amanhã no mesmo horário —
concluiu, libertando-me e saindo em seguida.
Respirei um pouco mais aliviada, pelo menos
ele não iria me atrapalhar. Eu estava evoluindo e
não poderia parar naquele ponto. Quando olhei para
baixo, senti mais de setecentos pares de olhos me
fulminando como se eu fosse um verme. Acho que
nem se todas ali embaixo fossem judias e eu fosse
Hitler, seria tão odiada.
No dia seguinte, no horário de sempre, bem
cedo, apresentei-me na sala de treinamento, mas
estava deserta. Havia só um homem de costas se
alongando. Não era Lui. Ele estava completamente
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dobrado, abraçando as próprias pernas, e tocando o


chão em seguida. O cabelo estava todo coberto por
uma bandana preta.
A flexibilidade dele era incrível assim como a
quantidade de músculos nas costas. Ele fez uma
abertura lateral, como se fosse brincadeira de
criança. Respirei fundo e dei uma tossidinha só
para avisar que já havia chegado. Quando ele se
virou, meu coração acelerou e quase cambaleei.
— Bom dia! Está pronta? — indagou com
aqueles olhos confiantes, ar superior e aquele meio
sorriso que irritava até as profundezas do meu ser.
E lá se ia meu plano de ficar longe dele.
Chequei ao redor para ver se chegava mais
alguém, mas nenhuma alma viva.
— Sua agenda não deveria estar cheia? —
perguntei ao rei, mas sem graça do que gostaria de
transparecer.
— Esse horário, de hoje em diante, está
reservado para eu ensinar artes marciais a minha
esposa — ele retrucou, com uma feição travessa e
cheia de si.
— Que ótimo porque, toda a vez que me
chamar de minha esposa aqui, posso partir sua cara
ao meio — soltei a frase, tentando transmitir o
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mesmo ar confiante.
— Que tal fazermos um acordo? Cada vez que
eu derrubar você, ganho um beijo — falou, olhando
diretamente para mim, como se fosse a proposta
mais séria do planeta, como se eu fosse uma rainha
derrotada e estivesse diante de uma proposta de
rendição.
O problema era, pelo que havia visto,
derrubar-me não representaria nenhuma dificuldade
para ele.
Que raiva! Eu vou derrubá-lo, nem que seja a
última coisa que eu faça!
— Que tal você calar a boca — rebati.
Ele sorriu como um garoto, como seu eu
tivesse elogiado em vez de ofender.
O treinamento dele era pior que o de Lui. Ele
era mil vezes mais habilidoso. Quando estávamos
em posição de luta, o olhar dele era implacável, e
tenho certeza de que a mente dele funcionava a
todo vapor, calculando todos os possíveis
movimentos do oponente. Provavelmente venceria
Lui facilmente.
— Força nas pernas, Lin. Mantenha sua base
firme!
— É Everlin — pronunciei entre dentes.
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Ele fez aquela cara que eu não sabia


interpretar, mas logo retornou ao ar superior de
sempre. Naquela manhã, ele deve ter me derrubado
pelo menos umas cinquenta vezes e levantei as
mesmas cinquentas vezes. Ofegante, cambaleante,
um verdadeiro trapo, mas não deixei de me erguer
uma vez sequer.
— Você tem o olhar, a perseverança e o
espírito de uma verdadeira guerreira — ele
incentivou-me sorrindo.
— Mas é muito difícil — confessei, tentando
trazer o ar para os pulmões.
— A habilidade virá com a prática — ensinou
enquanto me oferecia ajuda para me levantar.
Aceitei o auxílio, engolindo meu orgulho,
porque minhas pernas estavam tão destruídas e não
respondiam aos meus comandos. Entretanto, eu
tinha de admitir, ele era um excelente professor.
— E vê se para de passar perfume até para
treinar, pelo amor de Deus — pedi sem pensar.
— Ah, então, você gosta do meu cheiro? —
ele disse com aquele sorrisinho.
— Claro que não, só me dá dor de cabeça, só
isso — defendi-me, desviando o olhar.
Ele abriu um sorriso tão grande que me
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emudeceu. Aquele sorriso perigoso, do qual eu não


podia fugir como da última vez. Resolvi encarar
como sendo nada mais que uma artimanha de um
Dom Juan, e um dos bem furrecas, diga-se de
passagem.
Meu plano de ficar afastada do rei tinha ido
por água abaixo. A partir daí, eu o via todos os dias
na sala de treinamento. E, com o passar dos dias, eu
ia melhorando e ele parecia maravilhado com meu
progresso. Eu praticava todos os dias sozinha,
dividindo meu tempo entre o treino e a leitura.
Um dia acabamos o treino um pouco mais
tarde, e eu estava faminta. Fui à cozinha, mas,
apesar de a comida deles ser gostosa, queria algo de
casa. Algo familiar. Observei as servas
manuseando trigo, sal, fermento, laticínios, como
queijo e um creme que parecia de leite, além de
gordura animal para frituras. Levantei num estalo,
tive uma epifania. Eu sabia exatamente o que
queria. Tomei um gole de um delicioso e
desconhecido suco para sossegar o estômago, mas
deixando a fome intacta, porque a façanha que eu
pretendia realizar seria a melhor de todas.
— Minha senhora, por tudo o que é mais
sagrado, o que está fazendo?
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— Não é óbvio, Ralifax? Cozinhando! — falei


empolgada.
— Meu Deus, se o rei descobre...
— Deixa de ser medroso, Rali. Senta aí e
observe o que é comida saborosa de verdade —
disse confiante.
Todas as empregadas da cozinha pararam para
ver o que eu estava fazendo. Até Lui chegou à
cozinha, contudo ficou retraído na porta, sei lá
porquê. Certa vez eu tinha feito aquela receita com
meu pai quando era criança, e a vontade era tanta
que todo o passo a passo da receita estava claro em
minha memória.
Logo aquela massa maravilhosa e fina estava
aberta sobre a mesa. Coloquei a gordura para
aquecer, enquanto recheava aquela obra-prima com
o queijo deles e uns temperos maravilhosos.
Embora não fosse nenhuma exímia cozinheira,
tinha alguns truques guardados na manga.
Fechei todos, direitinho. Tinha de ser o
suficiente para o aglomerado de gente que esperava
ansiosamente. Vários olhares me observavam
atentamente, e o de Lui com maior intensidade.
Coloquei minhas obras de arte para fritar e ficaram
tão sequinhas que dava gosto, e muita, mas muita,
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água na boca. Senti o cheiro viajar na velocidade da


luz, igualzinho os que comia quando criança na
barraquinha da Dona Lu, perto da casa de férias de
meus pais.
Droga, por que Dáian tinha de xeretar na
minha mente bem agora! — balancei a cabeça
como se fosse suficiente para espantá-lo.
Quando tirei o primeiro, o pessoal olhou
maravilhado. Ralifax parecia salivar.
— Venha aqui Rali, você será o primeiro
contemplado. Na minha terra, essa iguaria é
chamada de pastel.
Ralifax me olhou como se experimentar aquilo
fosse a ousadia mais pecaminosa da face da Terra
deles. No entanto, estava estampado em seu
semblante o tamanho da vontade de provar.
— Ande, não seja tímido, prove.
Ele sentou-se e não conseguiu resistir ao que,
para ele, parecia uma tentação a qual o faria arder
no mármore do inferno. Ele mordiscou e logo fez
uma cara alegre de quem sente prazer em comer. A
segunda mordida acabou sendo bem grande, e a
boca dele ficou cheia com o queijo derretido.
— Ralifax! — vociferou o rei, adentrando na
cozinha.
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Os servos levantaram e reverenciaram, e Lui


se contraiu também numa mesura. O pobre Ralifax
começou a tossir e abater no peito. Estava
engasgado, coitado. Ele levantou e queria sair
correndo daquele jeito. Eu o segurei.
— Ei, é cruel interromper alguém que come, e
com tanto gosto ainda — falei olhando para o rei.
Ajudei Ralifax até ficar mais calmo. O rei se
aproximou de mim caminhando vagarosamente,
mas com uma ferocidade que deixou todos
encolhidos, menos eu, é claro.
— Qual é o problema agora? — soltei a
pergunta logo.
— Do mesmo jeito que outro homem não
encosta em você, você também não alimenta outro
homem além de mim, será que eu tenho de explicar
tudo? — ameaçou, querendo me fulminar com os
olhos.
A postura séria dele só se desfez aos meus
olhos porque ele mantinha um olho e em mim e o
outro nos pastéis.
— Se você queria um, era só ter dito — falei,
balançando a cabeça, virando-me para continuar
servindo.
Assim que terminei de me virar, o rei me
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abraçou pelas costas. Paralisei por completo.


— Você não tem permissão para servir outro
homem, entendeu? — ele afirmou, cheirando meus
cabelos.
Droga! Eu não consegui ficar sem tomar
banho.
Desvencilhei-me tão logo consegui vencer o
torpor.
— Se vai comer é melhor se sentar — impus,
torcendo para não transparecer nenhum nervosismo
ou constrangimento.
Eu não desceria do meu salto de jeito nenhum.
Ele se sentou com um sorriso de orelha a orelha.
Coloquei uma bandeja grande de pastéis no centro
da mesa. A sorte foi eu ter resolvido fazer bastante
massa. Entretanto, com o rei sentado à mesa, todos
permaneceram retraídos.
— Vamos pessoal, sentem-se, fiz o suficiente
para todos — convidei.
Eu falava como se fossem todos, mas, na
verdade, só Ralifax e Lui eram homens. As garotas
olharam umas para as outras e depois para o rei,
como se não ousassem sequer olhá-lo, que dirá
sentarem-se à mesa com ele e comer da mesma
comida.
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Olhei para o rei Sete.


— Vocês não ouviram sua senhora? Sentem-
se — exortou, com autoridade real.
Aos poucos, elas sentaram-se, embora
visivelmente desconfiadas. Peguei um pastel e
coloquei num prato, dirigindo-me a Lui em
seguida.
— Ralifax — esbravejou o rei.
— Sim, meu senhor.
— Pegue o prato de sua senhora e entregue-o
ao soldado à porta.
— Agora mesmo, meu senhor.
Acabei entregando o prato. Era melhor não
arranjar mais briga, pelo menos naquele momento.
— Everlin — chamou o rei num tom tão suave
que me arrepiou até o último fio de cabelo.
Eu sabia que aquele tom amistoso não podia
ser boa coisa. Virei-me e ele olhou para o assento
ao seu lado, como se me dissesse para eu sentar ali.
Desviei. Por óbvio, eu não sentaria ao lado dele
nem que me pagassem.
— Acho melhor você se sentar aqui porque
senão ordenarei que coloquem a sua cama no meu
quarto, e mesmo que eu não encoste em você, terá
de dormir nele todas as noites — chantageou,
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olhando diretamente para mim, pronto para cumprir


a ameaça.
Resolvi não arriscar, e acabei sentando-me
quietinha ao seu lado. Não sabia dizer se era
impressão minha, mas pareceu Lui abaixar o olhar.
O rei, no entanto, abriu um sorriso enorme e
abocanhou um pastel, parecendo ter certeza
absoluta de que era algo muito saboroso. Ele não
tinha como saber disso. O cheiro devia estar bom
mesmo.
Sete não iria admitir, mas sua expressão era a
de quem não se descontraía assim há muitos anos.
Ali, com todas aquelas empregadas, com as quais
eu falava abertamente, e Ralifax com seus trejeitos
estranhos, o rei parecia estar à vontade. Apenas Lui
continuou a observar tudo à distância.
E, pelo jeito, o rei não saboreava uma comida
há séculos também. Digo saborear de apreciar e
ficar feliz por degustar algo bem gostos. Ele sorria
abertamente e eu podia jurar: ele até se esqueceu de
que era rei. A impressão era a de que ansiava por
um momento assim há não sei quanto tempo.
Em dado momento, ele começou a se divertir
com o queijo derretido dos pastéis, enquanto comia.
Aquilo começou a me incomodar tão
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profundamente que me levantei da mesa. Todos me


olharam, inclusive o rei, como se eu estivesse
sendo uma estraga-prazeres. O único a não me
encarar daquele modo foi Lui, o qual aparentava
estar até feliz pelo fim da festa.
— Gente, já vou, com licença — falei, já
saindo.
Dei alguns passos no corredor e notei o rei
vindo atrás de mim. Tentei me convencer de que
ele não estava me perseguindo, e sim só trilhando o
mesmo trajeto. Fiquei me enganando até virar para
o meu aposento e ele vir atrás.
— E agora o que foi? — indaguei já sem
paciência.
— Decidi que vamos fazer pelo menos uma
refeição juntos. Você escolhe qual será, desjejum,
almoço, café da tarde ou jantar?
— Nem pensar — falei na lata.
— Olha, é melhor você escolher uma, antes
que eu ordene serem todas.
Ah, então é assim que ele vai jogar daqui por
diante. Ele vai fazer eu aceitar uma brasa sob a
ameaça de ter de engolir o fogaréu todo.
Eu ia ter de pensar numa estratégia para sair
desse jogo dele. Infelizmente, não consegui pensar
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em nada naquela hora.


— Desjejum então — disse resignada.
— Fechado.
— Na cozinha.
— Na sala de jantar real.
— Nem vem.
— Eu me saí bem na cozinha, agora vamos
ver como você se sai na sala de jantar do palácio.
— Eu já disse que você é desprezível.
— Eu já disse que você é linda.
— Não me provoque.
— É você quem não deve me provocar,
lembre-se do nosso acordo — lembrou, saindo em
seguida com aquele sorrisinho vitorioso.
Naquela hora eu passei a acreditar que cada
indivíduo no Universo tem mesmo o seu “carma”,
embora a vida passe e você, por algum toque do
destino, acabe não esbarrando nele. E eu, com os
devidos créditos ao Murphy mais uma vez, tinha
encontrado o meu. O desafio consistia em descobrir
um jeito de me livrar dele.

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Som Angelical

Algumas noites depois, resolvi levantar no


meio da madrugada e dar uma olhada na tapeçaria
da sala do trono. Escolhi uma noite na qual as luas
estariam bem brilhantes e o palácio ficaria todo
iluminado. Thomaz Edison podia não saber, mas
sua presença no universo fazia muita falta. Justos
créditos também a Nicola Tesla por sua corrente
alternada, a grande responsável pela energia
elétrica acessível, que chega até minha casa. E uma
verdade universal é: muitos só dão valor a alguma
coisa, quando ela não está por perto.
Cheguei à sala do trono e observei
minuciosamente aquela imagem. Após, toquei-a,
virei-a do avesso, mas em vão. Não consegui
encontrar uma pista sequer. Dei uma espiada
também nas demais tapeçarias, e as imagens
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pareciam contar um pouco da história do país deles,


bem como da terrível guerra entre os planetas.
Combate o qual, pelo jeito, consumiu toda a
tecnologia que já tiveram. Era como se a
civilização deles, em algum momento da história,
tivesse atingido o auge e depois retornado à estaca
zero, começando tudo outra vez.
Não consegui deixar de pensar, talvez, aquele
fosse o destino da Terra, algum dia. A única
informação de casa era mesmo aquela figura
artesanal, a qual não podia ser tão antiga assim,
afinal a primeira imagem da Terra vista do espaço
era de 1949. Expulsei da minha mente qualquer
pensamento no sentido de o tempo também correr
de forma diferente naquele lugar porque, aí sim, eu
iria “pirar”, de verdade.
Minha decepção por não encontrar nada de útil
me levou a ficar perambulando sem rumo pelo
palácio. Entretanto, apesar da desolação, tentei
permanecer firme e não deixei rolar nenhuma
lágrima. Naquele momento, choro não iria ajudar.
O palácio se mostrava particularmente lindo à
noite, iluminado por aquela porção de luas, como
num show de luzes prateadas, entrando pelas
frestas e enormes janelas. A quietude e a
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tranquilidade davam um toque especial àquela


beleza. Era muito mais agradável andar por ele
quando não tinha nenhuma alma viva transitando.
Eu tinha de admitir, o castelo do Rei Sete se
assemelhava bem mais ao da Disney, mas, talvez,
sem todas aquelas torres pontiagudas.
Cheguei a um setor bem próximo ao meu
quarto, mas no qual ainda não tinha estado.
Caminhando um pouco pelos corredores, encontrei
um tesouro que me deixou sem fôlego. Fui até ele
bem devagar com medo de ser uma miragem.
Toquei mais devagar ainda, era magnífico.
Mas o que um piano de cauda estaria fazendo
num lugar como este? — pensei deslumbrada.
Era todo trabalhado e desenhado, cujos
detalhes em alto-relevo eram dourados. Pelo que eu
tinha visto do palácio, com toda certeza, eram de
ouro, ao passo que outros detalhes do instrumento
eram de cristal. Se fosse todo de ouro, como o do
Elvis Presley, não seria tão bonito. Daquele jeito,
parecia uma obra de arte.
Não resisti e levantei a tampa sobre as teclas.
Dedilhei um pouquinho e nunca havia sentido
teclas tão macias. Olhei para baixo e havia todos os
pedais direitinho. Pressionei um dos pedais,
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enquanto tocava uma nota dó e encontrei o sustein


(caro leitor esse tipo de pedal funciona,
basicamente, para prolongar o som da nota).
Aliás, eu também não me lembro de ter ouvido
na vida notas com um som tão suave, apesar de já
ter assistido a concertos de pianistas mundialmente
renomados, não muitos, mas alguns. Não pude
resistir e me acomodei na banqueta. Havia tantas
canções que eu poderia tocar. Até demorei um
pouco para me decidir. Naquele instante, do fundo
do meu coração, surgiu a única melodia para aquele
momento.
Antes que meus dedos começassem a
reproduzir os sons presentes em minha mente, a
canção já se adiantava em minha imaginação, e eu
a ouvia nitidamente, como se estivesse tocando no
meu celular perto de mim, uma das minhas canções
prediletas no mundo. No meu repertório haviam
outras músicas mais complexas e difíceis para
experimentar naquele piano maravilhoso,
entretanto, eu queria aquela.
O vento trouxe um ar fresco e calmo pela
janela, no qual eu podia jurar que havia um cheiro
de oliva doce flutuando. No embalo daquele aroma
sutil, meus dedos começaram a passear pelas teclas,
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quase aveludadas, as notas da introdução da canção


Chances de Five For Fighting, num ritmo um
pouco mais lento. Segui dedilhando a melodia, em
vez de cantá-la, dando um toque meu enquanto
tocava.
Aquele som maravilhoso encheu meus
ouvidos e meu coração, matando um pouco a
saudade de ouvir uma música. Se existe uma coisa
no universo com capacidade de revelar um
pouquinho do que seja o espírito humano,
certamente, é a música. O som de cada nota
reverberava pelo recinto como uma canção de ninar
dos anjos. Diante da beleza do som angelical que se
espalhou pela atmosfera, algumas lágrimas
acabaram por escapar dos meus olhos, rolando pelo
meu rosto e caindo entre meus dedos.
De olhos fechados, até podia me imaginar em
meu quarto, dedilhando meu piano velho. Dei à
musica uma finalização personalizada, correndo
meus dedos por toda extensão daquela fileira de
teclas até acabar nas últimas notas mais agudas.
Quando acabei, respirei profundamente, como se o
som, vibrando pelo ar, pudesse entrar em mim.
Alguns segundos depois ouvi alguém bater palmas.
Abri meus olhos e, quase ao meu lado, estava
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o rei em pé. Nem o notei ali, muito menos quando


se aproximou. Por pouco não caí da banqueta.
Limpei meu rosto rapidamente.
— Pode tocar outra? — pediu, num tom terno.
— Eu já estava indo dormir — respondi meio
seca.
— No seu mundo tem canções lindas mesmo,
não é? — ele continuou meio desapontado.
— Eu não sabia que você ficava acordado até
tarde — tentei desconversar, porque não queria que
me visse naquele momento frágil.
— E não fico. Alguém entrou no meu quarto,
começou a tocar uma música e eu acordei — ele
disse sorrindo.
— Seu quarto? — falei com a voz
entrecortada.
— Sim. Minha cama fica atrás daquele
biombo e daquela cortina.
Assim que ele acabou de dizer, dei uma olhada
mais atenta no recinto gigantesco e percebi que era
mesmo um quarto.
Que droga! Adeus, piano.
— E não devia ter uma porta? — indaguei.
— Toda essa ala é para minhas acomodações
particulares. Ninguém vem aqui a não ser para
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manutenção da limpeza ou quando chamo.


— Quando diz toda essa ala quer dizer...
— Que o seu quarto é um dos meus aposentos
adjacentes. Onde mais eu poderia colocar você?
— Em qualquer lugar, esse palácio é enorme
— retruquei.
— Mas não seria tão divertido — disse com
um sorriso meigo.
Revirei os olhos. Queria mostrar a ele a
diversão, entretanto, aquele não era o melhor
momento. Eu, realmente, estava fragilizada e sem
condições para lhe dar uma lição por mais que a
merecesse. Ele puxou outra banqueta e se sentou, e
eu levantei.
— Você podia me ensinar a tocar um pouco,
não acha? — fez a proposta me olhando com cara
de garotinho chantagista.
— Você tem um piano desses aqui no seu
quarto e não sabe tocar? — indaguei descrente.
Ele balançou a cabeça de um lado para o
outro. Era estranho ele saber o gesto para dizer
“não”. Ninguém mais parecia saber.
— Estou um pouco cansada, então, já vou
indo — tentei mais uma vez encerrar a conversa.
— Eu te ensino a lutar e você me ensina a
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tocar.
Golpe baixo!
Expirei o ar bem irritada. Retornei, sentei-me
na banqueta e comecei a mostrar sequência das
notas da mão direita bem devagar. Ele tentava
repetir, mas, pelo jeito, a noite ia ser longa, pois ele
não tinha a menor coordenação motora.
Quando já estava quase dormindo sobre as
teclas ele me liberou, com a condição de que eu
tocasse uma última música. Eu não ia tocar nada
sentimental com ele ali, então a única música que
consegui pensar foi He’s a Pirate, do filme Piratas
do Caribe.
— Você podia ter tocado algo mais romântico,
não acha?
— Sabe que não me deu vontade.
— Eu sou paciente — ele disse, com aquele
sorrisinho que me dava nos nervos.
Voltei ao meu quarto com uma convicção:
“para ter o piano, ia ter de carregar o aluno de
brinde”.
Onde eu vim amarrar o meu burro, meu
Deus?
No dia seguinte, lá estava eu, dormindo sobre
a mesa real em pleno café da manhã, com aquela
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montanha de comida a minha frente.


— Minha esposa parece não ter tido uma boa
noite de sono — falou o rei com aquele tom
irônico.
— Ha... ha... — soltei o sons no mesmo tom
sarcástico.
— Espero que esteja disposta para o treino.
— Você podia pegar um pouco mais leve hoje,
não é? — falei com um sorrisinho pedinte.
— Depende. O que eu ganho em troca?
— Que tal eu não arrebentar os seus dedos
quando for a minha vez de dar o treino?
Ele abriu aquele sorriso que provocava em
mim a vontade de ficar a quilômetros de distância
dele. Ele era perigoso. O tipo mais perigoso de
homem. Acostumado a seduzir. A encantar. A
enfeitiçar. Talvez fosse por isso que aquele bando
de mulheres estivessem se matando para serem
escolhidas.
— Te espero na sala de treinamento — falei,
jogando o guardanapo em cima da mesa.
Sai batendo os pés.
Após o treinamento, passei por aquele pátio a
céu aberto e percebi que, naquele dia, não havia
sido instalado o spa, e sim uma aula, parecendo
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algum tipo de dança. Uma dança sensual


semelhante a dança do ventre, pelo menos era o que
eu achava, afinal não conhecia bem essa dança.
Nossa, será que o desespero é tanto?
— Devia aprender a dançar.
Respirei fundo. Quando virei, percebi Lui
atrás de mim.
— Ah Lui, é você! — falei sorrindo.
— Esperava outra pessoa? — ele perguntou,
baixando o olhar.
— Não, pelo contrário, estou aliviada que seja
você.
Ele sorriu. O sorriso dele era bonito e
contrastava totalmente com seu jeito sério de
militar.
— Por que diz que eu devia aprender a
dançar? — indaguei arqueando uma sobrancelha.
— A dança é o melhor meio para o domínio
do corpo.
— Tem certeza disso?
— Absoluta.
Olhei para baixo sem muita animação.
Recostei sobre a mureta, apoiada nos cotovelos.
Todo conhecimento poderia ser útil alguma hora,
mesmo aquele.
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Que droga!
— Lui, me diga uma coisa. Que tipo de pessoa
é o rei?
Ele pareceu não gostar da pergunta.
— Um governante inteligente, preocupado
com o povo, um exímio lutador, um bom diplomata
e excelente em estratégias de guerra.
— Você está me descrevendo uma receita de
bolo ou um homem?
O meu ex-professor acabou soltando uma
risada mais aberta.
— Quero saber como ele é como pessoa —
disse também rindo.
— Ah... eu diria que é uma boa pessoa. Em
pouco tempo, já conseguiu retirar a raça dos
comuns, a população carente do país, da extrema
miséria.
Confesso, essa informação me surpreendeu
um pouco.
— E por que tantas mulheres?
— É um costume do nosso povo, o pai dele
tinha mais de mil.
— Hum...
— Isso a incomoda, senhora? — perguntou,
como se não quisesse muito ouvir a resposta.
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— Não.
Lui sorriu. Era até estranho vê-lo sorrindo.
— Todos os homens do seu reino têm muitas
mulheres?
— A senhora é mesmo de longe, não é?
— Mais do que você imagina — respondi,
meio nostálgica.
— Até o nobre mais rico só consegue
sustentar umas três mulheres. Tantas assim, só o
um rei mesmo.
Até nesse mundo mulher é considerada como
despesa. Algumas coisas não mudam, não importa
onde se esteja.
— E por que mulheres valem dinheiro?
— Mulheres são bastante raras no mundo
como um todo. Algumas nações até invadem outras
em busca de mulheres. Quanto mais raras e
habilidosas, mais valiosas.
— Quer dizer que para ele ter setecentas
esposas, deixou pelo menos uns setecentos rapazes
solteiros por aí?
— Algo em torno disso.
Quem diria que existe um planeta onde há
mais homens que mulheres. Conheço algumas
garotas na Terra que, se soubessem disso, iriam
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querer se mudar para cá na mesma hora.


— Por isso às mulheres não é permitido
estudar, principalmente às da raça dos comuns. Isso
evita que as famílias mais pobres caiam na tentação
de venderem suas filhas — Lui continuou.
— Não sei se entendo — falei com um meio
sorriso.
Ele retribuiu com um sorriso inteiro.
Olhando ainda o pátio, percebi uma garota, a
qual não tirava os olhos de mim. Ela tinha uns
olhos verdes assustadores. Se ela fosse da Terra
seria uma atriz ou uma modelo. Linda era pouco
para ela.
— Vou descer lá para ver se aprendo alguma
coisa.
— Boa sorte.
— Obrigada, vou precisar.
E ia mesmo porque, se havia uma coisa na
qual eu era completamente descoordenada, era na
dança. Tentei evitar os olhares curiosos,
desconfiados e raivosos, lançados em minha
direção e acabei por encontrar um lugarzinho
naquele mar de feromônios.
A instrutora continuou a demonstração,
movimentando algumas partes do corpo, as quais,
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sinceramente, não sabia se movimentavam. No


entanto, apesar do empenho da professora e do meu
esforço hercúleo, eu não conseguia reproduzir
nenhum movimento com perfeição. Para dizer a
verdade, a cada movimento que tentava executar,
eu parecia com uma perfeita barata tonta.
Observei Lui rindo de meu desempenho. Olhei
feio e ele acabou deixando o recinto, cobrindo o
rosto para não me deixar perceber a risada que
tentava conter a todo custo. E eu nem podia culpá-
lo, afinal minha performance devia estar muito
engraçada.
A bailarina, que conduzia a aula, era bonita e
extremamente talentosa. Muitas mulheres do harém
também dançavam com maestria e desenvoltura,
sobretudo aquela de olhos verdes, cuja sagacidade
parecia não deixar escapar nenhum detalhe, por
menor que fosse. Eu ainda tentava em vão repetir
os exercícios quando um rebuliço começou e,
imediatamente, entendi o significado daquele
alvoroço feminino.
Essa não!
Olhei de relance para o andar de cima e
percebi a aproximação do rei no corredor, seguido
por servos, escribas e nobres. Fixei-me na
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professora, com a esperança de que a aula


prosseguisse normalmente, mas ela também parou
ao ver o rei e, pela expressão do seu rosto, era
evidente que também ansiava desesperadamente
por se tornar uma esposa do rei.
Que coisa! Será que ela gostaria de trocar de
lugar comigo?
Observei a situação sem olhar diretamente
para o centro das atenções, pois alguma coisa me
dizia: se eu o encarasse muito, o tumulto demoraria
a acabar. Esperei pacientemente, fingindo não
passar de um rápido intervalo e, após alguns
minutos, as garotas voltaram a se posicionar, assim
como a professora.
A aula recomeçou e notei as mulheres, como
também a bailarina guia, esforçando-se muito mais
em seus movimentos, tornando-os cada vez mais
sensuais. Olhei para cima e vi o rei. Pelo jeito, ele
dispensara aquele bando de gente que o rodeava
minutos antes e reclinou-se sobre a mureta, fixando
o olhar bem na minha direção. O pior de tudo era
que quanto mais ele me olhava, mais desastrados
meus movimentos se tornavam, semelhante a
alguém pressionado e constrangido porque outra
pessoa fica observando-o desempenhar uma tarefa.
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Continuei insistindo em me mover ao ritmo da


música, mas o olhar dele não me deixava acertar
um passo sequer. Depois de alguns minutos, Sete
abaixou a cabeça e riu, balançando-a em seguida.
Não aguentei.
— Quer parar! — berrei em direção ao rei no
meio da aula.
Ele levantou a cabeça e olhou para mim.
— Está atrapalhando a minha concentração —
argumentei revoltada.
Sete sorria e balançava a cabeça do mesmo
modo do dia que me deu o aposento. Parecia se
divertir com o espetáculo gratuito.
— Não posso assistir nem mais um pouquinho
mesmo? — negociou ainda sorrindo.
— Não. Faça o favor de procurar o que fazer
— ordenei.
— Se é o que deseja — ele falou enfim,
retirando-se com o riso ainda nos lábios.
Assim que voltei a atenção para aula, todas me
encararam como serpentes para um rato enxerido, o
qual resolveu passar pelo lugar errado, na hora
errada. Saber que, enquanto eu respirasse naquele
planeta, ia ter de lidar com aquele “encosto” metido
a rei, bem como com aquele harém tempestuoso,
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fizeram-me perceber, para o meu desespero, que a


grande verdade era que eu havia amarrado meu
burro em um pé de alface. E em um dos bem
pequenos ainda.
Não podia existir, em todo o Universo, uma
“fria” maior que essa.

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Nahina

Pode parecer incrível, mas a aula de dança


tinha sido mais exaustiva que a de luta. No dia
seguinte, senti meu corpo em frangalhos e
“robotizado”. Eu virava o pescoço como desenho
animado antigo, nos quais os personagens moviam
o tronco todo quando queria olhar para lado.
Eu podia estar errada, mas o dia ia ser
daqueles, porque a dor em meu corpo era tanta e
dava a impressão de que a distância entre porta e a
cama, de metros, se transformara em quilômetros.
Ralifax bateu e entrou, acompanhado de
outras três empregadas. Uma delas eu reconheci na
hora. Ela havia arrumado meus cabelos no dia em
que me trouxeram ao palácio, seu olhar de pena
mantinha-se fresco em minha memória.
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— Minha senhora, o rei ordenou que eu


trouxesse algumas servas responsáveis pelos
tratamentos de suas esposas.
— Sei. O que ele quer dizer com isso? Que
ando feia? Pois ele que ature — comentei feliz
porque até que enfim meu plano de repelir o idiota
estava funcionando.
— Não, minha senhora. O rei percebeu o seu
esforço, e os treinos de luta têm deixado
hematomas, luxações e dores em seu corpo. Sem
contar com a aula de dança ontem. Então, ele
ordenou às criadas para virem massageá-la e ajudá-
la a relaxar. Hoje a senhora não tem treino e
nenhum outro a fazer, além de descansar. Ordens
do rei.
Se eu não estivesse tão alquebrada tinha
mandado ele enfiar as ordens dele onde bem
quisesse. Não sou mulher de pedir arrego e ponto
final. No entanto, os treinos dos últimos dias
deixaram meu corpo bem cansado e o repouso era
bem-vindo.
— Minha senhora, o rei apenas teme que
adoeça.
Meus pensamentos devem ter ficado
estampados em meu rosto para Ralifax tê-lo
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defendido assim.
— Diga ao rei que agradeço, de verdade —
decidi aceitar a trégua.
Muito embora achasse o rei um conquistador
barato, não podia deixar de admitir que, até aquele
momento, ele tinha sido bom para mim. E eu nem
sabia o porquê. Embora ele achasse divertido me
aporrinhar, estava sendo de grande ajuda. Além
disso, em alguns momentos, até eu precisava
engolir um pouco meu gênio.
Quando Ralifax saiu, perguntei os nomes das
meninas, e elas me olharam como se não
acreditassem que eu desejava sabê-los.
— Senhora, nenhuma das esposas do rei
jamais perguntou quem somos.
— Mas não sou uma esposa do rei, sou? Não...
então, vocês não têm motivo para se preocupar.
Elas sorriram.
— Eu sou Janes — apresentou-se a garota que
cuidou dos meus cabelos no primeiro dia.
— Eu sou Carin.
— E eu sou Delaila.
— É um prazer, meninas — falei sorrindo.
— Não era boato que a senhora é diferente.
Até come com os criados — mencionou Janes,
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olhando para as outras como se afirmasse algo


importantíssimo.
— Nós somos todos iguais. Todos temos o
potencial para fazer a diferença a nossa volta. O
que nos diferencia é o quanto de força e de bondade
empregamos para realizar essa transformação.
— A senhora acredita mesmo nisso? — Janes
indagou.
— Com todo o meu coração — respondi,
olhando bem no fundo nos olhos dela.
— Tomara que a senhora se torne mesmo
nossa rainha — manifestou Delaila.
Quando ouvi aquilo, comecei a tossir,
engasgada com minha própria saliva.
— Rainha! Ficaram doidas? — indaguei,
ainda tossindo.
— É o que dizem. Que o nosso rei está tão
apaixonado que faria qualquer coisa que a senhora
lhe pedisse — afirmou Carin.
— Não acreditem em tudo o que dizem. Estou
mais para diversão temporária do rei de vocês...
quero dizer, do nosso...
Ufa! Essa foi por pouco!
— Mas, desde que a senhora chegou, o rei
nem vai mais ao harém real — Janes comentou,
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como quem conta a maior das fofocas.


Franzi a testa. Era verdade. Eu estava tão
distraída com meus planos que nem tinha parado
para pensar profundamente nisso. Desde aquela
primeira noite, com exceção das minhas andanças,
nas quais eu cruzava com o spa das mulheres e,
também, pela aula de dança do dia anterior, quase
não ouvia falar no harém real. Parecia nem existir
mais.
— E mais, uma noite dessas, Nahina deitou-se
nua na cama do rei e ficou esperando por ele —
continuou Janes.
— Quem? — perguntei.
— Nahina.
Pronunciava-se “Narrina”.
— Quem é essa?
— Dizem que ela é a única filha do Tigre do
Leste, o homem mais rico do país. Ela foi uma das
primeiras a querer vir ao palácio para se tornar
esposa do rei. O pai a ofereceu por vontade dela.
Ela veio com a esperança de se tornar a primeira
rainha, desde a própria imperatriz Yonah.
— Como ela é? — perguntei, torcendo para
não ser aquela dos olhos verdes terríveis.
— Muito bonita, cabelos castanhos claros
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longos, olhos verdes intensos — descreveu Carin.


— Seios gigantescos — completei.
Elas assentiram. Para o meu azar, era a
própria.
— Janes, você disse que ela estava na cama
dele? — indaguei intrigada.
Aff... Isso já ia além do cúmulo do desespero.
— Pois é...
— E ela passou a noite lá, suponho —
asseverei quase em tom de indagação.
— Não. Ele a expulsou. E avisou que se
fizesse isso novamente, sem ser chamada, seria
expulsa do palácio e devolvida à família por
insubordinação — Janes respondeu.
— E a senhora o acordou com barulho no
meio da noite, e ele não lhe fez nada — falou
Delaila sorrindo para as companheiras.
Percebi como aquele lugar era mesmo um
palácio real porque as fofocas se espalhavam mais
rápido que um “pum” no elevador.
— Antes tivesse me expulsado por
insubordinação — divaguei.
Elas se entreolharam espantadas.
— Mas, minha senhora, as mulheres do
harém, principalmente Nahina, acreditam que a
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mudança do rei seja por sua causa.


— Por minha causa? E eu o que tenho com
isso?
Agora era só o que me faltava! A “barraca”
do rei não arma, e eu sou a culpada.
— O rei está apaixonado pela senhora,
acredite. Ele nunca agiu assim — asseverou Janes,
como se fosse a melhor notícia do mundo.
— O dia que eu me despir na frente dele vocês
podem me internar porque fiquei louca.
— Senhora, mesmo que tivesse um noivo
antes de vir para cá... — começou Janes, abaixando
o olhar, sem conseguir prosseguir.
— Eu não tinha — respondi, com o mesmo
pesar, afinal Dáian e eu nunca tínhamos sido noivos
e nunca seríamos. Quando estávamos no mesmo
planeta a chance já era menor que um por cento,
agora então, era como na Antártida, abaixo de zero.
Naquele instante bateram na porta.
— Está vestida, minha senhora? — perguntou
Ralifax.
— Sim, entre.
Ralifax entrou com vários servos e muitas
bandejas. Era comida para um batalhão.
— O rei ordenou que vosso desjejum fosse no
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quarto hoje.
Maravilha! Hoje não é só meu dia de
descanso, é meu dia de folga dele! Nem acredito!
Pedi para todos se sentarem no chão e
começamos nosso enorme e delicioso piquenique.
Todos os servos com quem falei na cozinha, ou
mesmo ali nos meus aposentos, eram pessoas
extremamente gentis e humildes. Era muito melhor
ficar na companhia deles que naquele harém, onde,
pelo jeito, só haviam moças ricas.
E isso, mesmo que eu não quisesse admitir, eu
também devia ao rei. Odiava pensar nele como o
responsável por minha vida, naquele mundo, ter se
tornado um pouco melhor. Na casa de Joen eu
também havia sido muito bem tratada, mas no
palácio, minhas chances de encontrar meu lar
estavam bem mais próximas, mais palpáveis. E
meu plano maluco que, com toda certeza, ia
culminar na minha morte, seria mesmo factível.
Eu também sabia que, cedo ou tarde, teria de
pensar na fuga. E, provavelmente, teria de deixar
para trás a pulseira de Dáian como garantia que não
importunariam a Joen. Ou talvez conseguisse ser
expulsa por insubordinação, o que seria
infinitamente melhor.
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— O que acontece aqui? — indagou o rei.


Nem percebi quando ele entrou.
— É um piquenique — expliquei,
desdenhando e abocanhando uma torta que parecia
deliciosa.
— Um o quê?
— Piquenique. Quando as pessoas sentam no
chão e comem juntas. É divertido, devia tentar
algum dia na sua vida — falei, ainda comendo.
Ele ficou olhando para os lados como quem
espera um convite. Vendo aquela expressão de
coitado dele, confesso que um bichinho negro
zumbia no meu ouvido para ignorá-lo e deixá-lo ali
com cara de tonto. Entretanto, todos empregados
olharam para mim como se esperassem uma
atitude.
Droga! Dia de descanso até podia ser, mas
folga dele, era quase como esperar por um
milagre.
— Ou devia tentar hoje, sente-se se quiser —
convidei resignada.
Ele se sentou bem ao meu lado. Com tanto
espaço para escolher, tinha de ser justo aquele. O
rei começou a pegar a comida com tanta felicidade
que parecia estar faminto. Continuei saboreando o
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desjejum como se a escolha de acomodação dele


não tivesse me afetado.
— Saiam, desejo ficar sozinho com sua
senhora — ordenou o rei, depois de algumas
mordidas.
Todos começaram a deixar seus pratos no
chão e se olhavam como se a diversão tivesse
durado pouco.
— Ei, já não te disse que é cruel interromper
alguém que está comendo? Deixe terminarem pelo
menos — falei.
— Se é o que quer — ele disse, com aquele
sorriso detestável.
Carin me olhou como se dissesse: “não falei”.
Olhei de volta como se respondesse: “E daí? Isso
não quer dizer nada”. Continuamos nosso
inusitado café da manhã, e, quando eu já estava até
me esquecendo que o rei nos acompanhava, ele
colocou um pedaço de bolo bem perto da minha
boca, olhando com aquela expressão de quem
deseja que você coma da mão dele. Só faltou ele
fazer aviãozinho.
— Você só pode estar brincando — afirmei
descrente.
— Está uma delícia, devia experimentar esse
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— ele retrucou, sorrindo em seguida como um


garoto num parque de diversão.
De repente, percebi todos os olhares
apreensivos ao nosso redor. Pareciam esperar uma
demonstração pública de afeto, selando nosso
namoro oficial e, assim, alimentariam a expectativa
de eu assumir alguma posição de maior poder. No
entanto, ainda que ficasse grata pela consideração,
eu jamais seria rainha deles. Além disso, tinha
sérias dúvidas se era o que o rei realmente queria.
— Se eu disser que não vou fazer isso, com
que vai me ameaçar? — indaguei.
— Que tal eu passar o dia aqui com você?
Mordi o bolo na hora. Ele abriu aquele sorriso
que arrancava o pior das profundezas de mim,
aquele sorriso travesso de fogo e ternura, que fez
até as empregadas abaixarem a guarda.
Provavelmente eu fosse mesmo a única que
conseguia enxergar o abismo por trás daquele
sorriso. Ele mordeu a fatia logo depois de mim.
Engoli em seco, pois aquilo soara tão íntimo que
me deu nos nervos.
Os empregados sorriram e se olharam
extremamente felizes com a situação. Depois se
retiraram, levando com eles toda aquela felicidade
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cor de rosa, a qual inundava o meu aposento com


uma aura brilhante e um cheiro adocicado. O rei
também continuou mastigando e olhando para mim,
como se tivesse sido picado pelo mesmo mosquito
da felicidade, mosquito que tinha picado todo
mundo, exceto a mim.
— Então... — comecei devagar porque a
pergunta que eu pretendida lhe fazer era delicada e
toda cautela era bem-vinda — ...as esposas que não
se comportam bem são expulsas por
insubordinação? — completei.
O Rei Sete parou de prestar a atenção na
comida e fixou seu olhar em mim.
— Já lhe contaram sobre Nahina? —
perguntou de um jeito sério.
— Comentaram por alto — afirmei,
pronunciando cada palavra devagar, até porque
todo cuidado era pouco, afinal eu não podia deixar
que ele se fechasse.
Preciso arrancar dele o que fará com que me
expulse.
Ele lançou sobre mim um olhar enviesado,
estreitando-o em seguida, o que normalmente não
teria me feito recuar, mas, naquela situação, acabou
fazendo eu desviar meu rosto. Ele continuou me
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encarando, até que não aguentei e o encarei de


volta.
— E o que você deseja saber é como poderá
ser expulsa, e não se ela passou ou não a noite
comigo? — ele despejou, quase esbravejando.
No momento em que ouvi aquilo, engasguei
com o bolo que estava comendo, começando a
tossir e bater no peito. Até meus olhos
lacrimejaram por causa do alimento entalado na
garganta.
— E por que eu ia querer saber dos seus
hábitos íntimos? — indaguei ainda tossindo.
— Não sei, as mulheres normais costumam
sentir ciúme — ele afirmou irritado.
— Ciúme? De você? E ainda nesta vida? —
lancei retoricamente, gargalhando e tossindo.
Ele expeliu o ar como uma chaleira quando a
água chega ao ponto de ebulição. Na sequência,
começou a engatinhar pelo chão na minha direção,
chegando até mim tão rápido, sem dar o menor
tempo de eu levantar ou reagir. Quando percebi, ele
já estava praticamente em cima de mim.
— Não pense que tenho medo de você —
desafiei, apoiando-me em meus cotovelos.
Jamais permitiria o corpo dele sobre o meu
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por completo. Sete continuava a me olhar de um


jeito que eu não sabia decifrar, não era como aquele
ar superior, confiante e sedutor, o qual
normalmente ele costumava exalar. Era diferente.
Parecia impaciente, beirava o desespero. Ele
aproximou o rosto de mim e começou a deslizar a
ponta do nariz por meu pescoço, bem devagar.
— De todas as mulheres do Universo porque
você tinha de ser a mais magnífica, Lin? A mais
forte e mais determinada? A mais cheirosa e ter a
pele mais macia que já toquei? — ele tagarelava
retoricamente.
— Não me chame assim — rosnei,
empurrando-o.
Ele recuou, sentando-se no chão frio.
— Por que você não me deixa ser seu marido?
Por que não me deixa ser, ao menos, seu
pretendente — retrucou.
Ao ouvir a última palavra que saiu de sua
boca, olhei para ele de um jeito brusco, quase feroz.
— O que você disse? — rugi.
— Por que não me deixa ser seu preten...
Antes de ele acabar, coloquei meu dedo sobre
seus lábios, impedindo-o de prosseguir. Levantei,
bufando e pisando firme. Abri a porta do aposento.
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— Saia!
O rei se levantou e passou a me encarar.
— Everlin...
— Nunca mais repita essa palavra perto mim!
Agora saia! — esbravejei.
Ele caminhou em direção a porta, entretanto,
não parecia irado. A impressão era de carregar
algum pesar. Não sabia ao certo se ele havia
enxergado o trauma por trás da minha fúria ou se só
estava curioso. Antes de sair, ele me olhou mais
uma vez.
— Eu odeio essa maldita palavra — confessei
mais calma, agarrada a minha pulseira e sentindo
meu corpo todo tremer.
Sete ainda permaneceu alguns instantes na
porta do aposento com aquela expressão
enigmática. Sua respiração era pesada e
compassada. Comecei a limpar as lágrimas do meu
rosto, as quais acabaram rolando contra minha
vontade quando foram desacorrentadas pelo meu
nervosismo.
Eu devo ser a criatura mais idiota do cosmos
por deixar que uma simples palavra que começa
com “p” destruir todo o meu chão desse jeito.
No entanto, se tinha uma coisa que eu evitava
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ser, a todo custo, era injusta. O rei até poderia ser


um pervertido mulherengo, mas não tinha me
arrastado para o palácio nem tinha culpa por aquela
palavra ter se transformado numa bomba quando
em contato com meus ouvidos.
Ele já ia saindo quando o detive.
— Me desculpe.
— Quem te deu isso deve ter sido muito
importante mesmo — inferiu, mirando minha
pulseira.
Olhei diretamente para ele sem ter o que
argumentar.
— Se você voltasse à sua Terra, voltaria a se
encontrar com ele, o procuraria de algum modo? —
ele quis saber.
— Não — falei sem titubear.
A expressão que ele fez depois de ouvir minha
negativa era mais que enigmática, era quase ilógica.
Até parecia que nas profundezas de seu interior
havia uma arena na qual se digladiavam a
felicidade e a tristeza em forma de gigantes
poderosos, ou sei lá. Mesmo uma ameba acharia
aquilo esdrúxulo demais. Ou o mais provável,
Dáian havia conseguido arrancar alguns parafusos
da minha “caixola”, fazendo com que eu não
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enxergasse mais as coisas importantes.


— Nos vemos mais tarde, então — ele disse,
com uma doçura que me surpreendeu.
— Até mais tarde — cedi.

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Nunca diga nunca

Pouco depois do rei se despedir de mim,


Janes, Carin e Delaila retornaram ao meu quarto e
continuamos a sessão de relaxamento. À noite, eu
já me encontrava renovada e, no dia seguinte,
totalmente pronta para outra. Assim que acabou o
treino, corri para a biblioteca para tentar compensar
a folga do dia anterior. Ao andar pelos corredores
superiores, notei uma porta encoberta por uma
fileira de prateleiras com livros bem antigos.
Destravei a fechadura e passei por ela,
chegando a uma espécie de corredor, o qual ficava
no andar de cima de outro salão. Eu nunca estivera
ali, o que reforçava a minha teoria: eu não conhecia
nem cinquenta por cento do palácio. Escutei
algumas vozes exaltadas e decidi me aproximar
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para ouvir o que diziam. A informação poderia ter


alguma utilidade.
Aproximei-me da beirada até ter uma boa
visão do salão abaixo e me encolhi atrás das
cortinas. De meu esconderijo, vi uma mesa redonda
gigante no centro, bem como várias pessoas
reunidas ali. Pareciam militares e nobres de todos
os tipos. O rei estava posicionado à cabeceira da
mesa e todos permaneciam em pé, analisando um
mapa. Pelo jeito, o assunto era importantíssimo.
— Agentes de Karur estão infiltrados por todo
o reino — informou Lui, apontando para vários
lugares dentro das linhas, as quais, pela lógica,
deviam ser as divisas de Yonah.
— Os exércitos deverão ser enviados para a
passagem de Katar, antes que destruam mais
vilarejos — aconselhou um dos presentes e parecia
ser civil — e não ficarmos procurando fantasmas
infiltrados, isso não passa de boatos — finalizou.
— A destruição dos vilarejos fronteiriços
próximos a essa passagem é um ataque real —
pipocou outra voz.
— Mas o rei Éfer não assumiu a autoria dos
ataques, portanto, não seria prudente atribui-los à
nação de Karur. Podem ser nômades. Um bando
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isolado — considerou outra voz.


O rei continuava calado, estudando o mapa
estendido a sua frente. Eu tinha aprendido em meus
estudos que o planeta deles era basicamente
composto de três nações, e Yonah, o maior dos
países, tinha dimensões continentais. Era muito
grande. Devia ser difícil para o rei manter a
segurança de um território tão extenso. Pelo que eu
tinha entendido, havia uma vasta porção de terra,
além das fronteiras do país, e terras ainda não
habitadas.
Por que outra nação tentaria invadir Yonah?
Não fazia sentido, por qualquer ângulo que se
analisasse a questão. Os outros países também
possuíam boa porção territorial. Quanto maior o
país, mais dispendioso é mantê-lo seguro. Terra por
simples terra não era uma boa estratégia, ainda
mais quando se havia terra inexplorada no planeta.
A única conclusão razoável era: Yonah possuía
alguma riqueza ou recurso desejado. Talvez fosse o
ouro.
— Um grupo de elite irá até a passagem de
Katar para investigar o que está acontecendo,
levando alimento e itens necessários ao
reestabelecimento dos aldeões. Uma tropa do
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exército reforçará as instalações militares na cidade


de Katar. Serão capazes de oferecer uma resposta
rápida caso se trate de um ato de guerra, sem criar
uma tensão desnecessária com a nação vizinha, na
hipótese de o ataque ter vindo de um grupo isolado
— decretou o rei, numa entonação séria que eu
nunca ouvira.
A solução era sensata e todos no salão
pareceram assentir.
— Outro grupo de elite, especializado em
operações discretas, percorrerá o reino em busca de
agentes infiltrados — continuou o rei.
— Mas, meu senhor, isso são só boatos
infundados.
— Não correrei nenhum risco — determinou o
rei.
A postura de Sete era completamente diferente
daquela que eu conhecia. Ele parecia um
comandante implacável, o que era surpreendente,
afinal, não devia ser muito mais velho que eu. E já
era tão respeitado e temido. Coloquei minha cabeça
só um pouquinho para fora das cortinas e, de
repente, Sete olhou para cima. Recuei bruscamente.
Droga será que ele me viu aqui?
Olhei novamente e ele continuava a olhar em
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minha direção, deixando óbvio que eu já tinha sido


pega.
— Há ainda outra questão, meu senhor —
chamou atenção um dos que pareciam civis.
— Qual? — inquiriu o rei, deixando de fitar
em minha direção e detendo seu olhar na plateia.
— Parece que o senhor ainda não escolheu
qual de suas esposas será a mãe do herdeiro —
continuou aquele que dera início à nova pauta.
— Minha Nahina seria a escolha mais
acertada. Vosso filho seria belíssimo — afirmou
outra voz.
Ah... aquele deve ser o tal Tigre do Leste.
Como um pai pode trazer sua filha para ser mais
uma entre setecentas?
— Mas você não soube Inov? Há uma
escolhida sim. Uma preferida, separada de todas as
demais. Uma que anda pelo palácio e dá ordem aos
empregados. Estão dizendo que será erigida a
Rainha de Yonah — despejou outra voz.
— Isso é um ultraje — vociferou o Tigre do
Leste, o tal de Inov.
— Não se esqueça de que minha Kristen
também é uma esposa do rei — pipocou outra voz.
— Vossa Majestade não pode tornar essa
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desconhecida a mãe do futuro rei — soltou outra


voz.
Logo o salão estava alvoroçado.
Mas por que raios eu tinha de estar na pauta
dessa reunião cheia de gente que nem conheço?
— Silêncio! — bradou o rei.
Engoli em seco, pois ele sabia se impor
quando queria. O salão ficou em silêncio quase
imediatamente. Essa sim era a entonação de um
Rei, o qual, com toda certeza, teria matado uma
esposa que tivesse lhe pisado o pé.
— Ainda cabe a mim a escolha de quem será a
mãe de meu filho — lembrou o rei Sete
rispidamente.
Ninguém ousou dar um pio. Até eu me encolhi
onde estava.
— Assim como ainda cabe a mim decidir se
Yonah terá uma rainha — completou.
Todos se curvaram.
Pera aí... Quando ele falou sobre me dar uma
coroa, era a isso a que se referia? Ele já me
ofereceu o posto mesmo! Quis me comprar com ele,
melhor dizendo. Coitado! Gastou a vela com o
defunto errado.
— Minha resposta à sua pergunta Lorde Sifet
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é: trata-se de um assunto que ainda não resolvi e


pronto.
Com aquela afirmação, ficou patente aos
presentes que o rei encerrara a discussão. No
entanto, não havia refletido sobre a
responsabilidade que também assombrava a esposa
de um rei. Ser mãe do herdeiro. Ele não poderia
estar pensando que eu seria essa, né? Afinal, nem
ele podia andar tão fora da “casinha” assim.
E uma curiosidade sobre o mundo alienígena:
não é que eles tinham um método para evitar a
gravidez! Pensando bem, era melhor deixar esse
assunto quieto até na imaginação!
Os presentes começaram a se dispersar,
denotando o término da reunião. Observei a
movimentação e vi o rei olhando para cima, bem na
minha direção, encarando-me. Fugi daquele olhar e
saí de fininho, voltando à biblioteca.
Comecei a procurar por livros referentes à
geografia mundial e geopolítica para me inteirar
sobre as demais nações a fim de me preparar para
quando deixasse o palácio.
— Então é aqui que você se enfia depois do
treino? — perguntou o rei atrás de mim.
Permaneci onde estava sem me virar. Ele se
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aproximou e começou a olhar as anotações no meu


caderninho, bem como os livros abertos sobre a
mesa. A maioria das anotações estava na língua
deles e as mais importantes, na minha língua. O rei
se impressionava a cada página folheada.
— Isso é uma invasão de privacidade, sabia?
— adverti, enquanto tomava-lhe o caderno das
mãos.
— Você está conseguindo ler o erudito? —
inquiriu, pausadamente como se estivesse
preocupado com alguma coisa.
— É difícil, mas vou conseguir. Estou
progredindo — comentei.
Ele mordeu o lábio.
— Você está procurando mesmo uma
passagem de volta, não é? — ele falou enfim, entre
dentes.
— Você tinha alguma dúvida disso? —
respondi, olhando diretamente para ele.
— Por quê? Aqui é tão ruim assim? —
colocou em questão.
— Não se trata de ser ruim ou não. Eu me
recuso a morrer na casa do outros, quero morrer na
minha própria casa — afirmei, encarando-o, sem
pestanejar, sem medo nem arrependimento.
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Ele ficou sem argumento. A maneira como


falava comigo era completamente diferente daquele
imponente que mostrara durante a reunião. Ele
sabia ser feroz quando queria. De repente, tive a
vontade de vê-lo em um combate real. O Rei Sete
devia ser do tipo que colocava os inimigos no chão,
debaixo de seus pés, não restava a menor dúvida
quanto a isso.
— Bem que você podia me dar uma ajudinha
com esses ideogramas eruditos — tentei convencê-
lo fazendo uma cara de cachorrinho pedinte,
carinha que costumava funcionar, às vezes, quando
eu queria algo do meu pai.
Meu pai também era um cara durão. Se
funcionava com ele, algumas vezes, funcionaria
com qualquer um.
— De jeito nenhum — considerou rápida e
asperamente, como quem arranca uma fita grudada
numa parte do corpo repleta de pelos, quanto mais
rápido se faz, menos se sofre.
— Ah, então, aqui tem mesmo alguma
informação que pode me ajudar — deduzi
vitoriosa.
Ele me olhou surpreso, mas, gradativamente,
sua feição foi mudando para a de alguém que
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percebeu estar diante um oponente perigosíssimo, o


qual não deve ser subestimado. E o fogo, por
combater alguém à altura, parecia deixá-lo
sobremaneira entusiasmado.
A perspicácia dele o fez compreender que,
quando dei minha cartada, eu já o tinha derrotado
porque ou ele me ajudaria com os ideogramas
difíceis ou ele me daria a dica se eu estava no
caminho certo. Devolvi-lhe o olhar com a mesma
feição de combate, deixando estampado em meus
lábios o meio sorriso vencedor, afinal era o meu
troféu.
Em seguida, o rei puxou delicadamente uma
cadeira e a colocou bem perto de mim, sentando-se
ao meu lado com as pernas abertas, trazendo-me
para junto de si e encaixando a cadeira onde eu
estava entre as suas pernas. Virei meu rosto na
direção dele, sem desviar. Ele não ia me intimidar
com aquela atitude, se queria agir igual a um
namorado, sofreria as consequências.
Ele aproximou o rosto do meu como se fosse
me beijar. Não recuei.
Se ele se atrever, vai sair daqui com a boca
sangrando.
— Hoje à tarde. Na sala de treinamento — ele
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falou bem devagar, lançando seu desafio.


— Estarei lá — respondi.
Ele saiu abrindo aquele meio sorriso típico de
alguém que já vê a vitória a sua frente, e não dei o
braço a torcer. Entretanto, vencê-lo numa luta ia ser
um desafio demasiado difícil. Ele era mais forte,
mais alto e tinha muito mais tempo de treinamento.
Mesmo assim, eu era teimosa demais para fugir.
Naquele dia, ele poderia me derrubar cem vezes, e
eu levantaria a centésima primeira.
A tarde fui até o salão de treinamento e
Ralifax esperava por mim.
— Ué, onde está o rei?
— Aguardando a senhora em outro salão.
Ralifax me acompanhou até aquele hall a céu
aberto. Sete já estava numa sequência de
aquecimento e, cada movimento que ele fazia,
ficava mais evidente o quanto seus músculos eram
trabalhados. Eu também vestia roupa de
treinamento, com top, calça de batalha e luvas.
Pelos bastões expostos do círculo de luta, a
modalidade seria dois bastões curtos. O rei parecia
sério como se estivesse prestes a enfrentar um
oponente de verdade e não ensinar um aluno.
Ralifax e outros servos se posicionaram nas
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beiradas, aguardando para dar o suporte tão logo


ele ordenasse. Alonguei-me por alguns minutos,
peguei meus bastões, agucei meus sentidos e
começamos o show.
Desta vez, ele apenas me derrubava e eu
levantava. Não havia lições ou repreensões por
meus erros. Embora não me golpeasse como a um
inimigo ou a um homem, também não era
complacente em sua postura. O intuito era eu me
sentir em um campo de batalha mais real, tratava-
se, sobretudo de um bom treinamento, no qual o
mestre se comportava como se eu fosse uma igual.
Como esperado, em pouco tempo, ele já havia
me derrubado mais de cinquenta vezes e eu sempre
levantava. Contudo, devido à seriedade em relação
à luta, demandava um esforço muito maior. Em
determinado momento, as esposas do rei
começaram a se aglomerar nos corredores do andar
de cima, e ficaram apoiadas nas muretas, assistindo
o espetáculo abaixo quase de um camarote.
Ah... esqueci... elas devem ter vindo para o
espaço beleza de sempre, até perceberem estar
ocupado por ninguém menos que o príncipe
encantado delas.
​O rei também parecia ter esquecido que aquele
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espaço era destinado a outra coisa. Ele tinha


escolhido ali em vez da sala de treinamento porque
o tempo estava nublado e o vento fresco era
agradável para um treino tão intenso. A cada vez
que o rei me derrubava, a sua plateia ia ao
histerismo, como se torcesse por algum lutador
famoso. No início, indignei-me por isso, afinal não
era uma luta entre iguais, um combate esportivo.
Era uma luta entre Davi e Golias.
Tenho certeza de que fazem esse estardalhaço
todo na esperança de chamarem a atenção dele!
No entanto, transformei aquele ambiente hostil
em força. Afinal, se elas me achavam uma
oponente a altura de derrubá-lo, senão fosse assim
não precisariam torcer daquele jeito exagerado, eu
não poderia decepcioná-las. Tinha de deixá-las
apreciar uma luta de verdade, nem que fosse só por
uma sequência de golpes.
Quando ele me derrubou, pelo que me pareceu
ser a octogésima vez, senti minhas pernas
cambalearem e o olhar de preocupação dele.
— Descanse um pouco, encerramos por hoje.
— Não, ainda não — falei ofegante.
Ele franziu a testa. Sentei próxima às colunas
com os braços apoiados em meus joelhos, e o rei
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pediu água a Ralifax, que a trouxe numa bandeja


com um copo dourado e uma jarra, a qual tinha um
formato parecido com o de uma garrafa grande. O
rei pegou a jarra e serviu água no copo,
estendendo-o para mim, na sequência. Nesse
momento, pude sentir todos os espíritos de fúria e
ressentimento sendo lançados na minha direção, e o
olhar de Nahina parecia atirar contra mim lâminas
afiadas. Entretanto, para o desespero delas, eu
devolvia uma mirada desafiadora como se dissesse:
“quero ver qual de vocês tem coragem de estar
aqui no meu lugar”.
Respirei fundo, recuperando meu fôlego,
levantei e, em vez de pegar o copo oferecido pelo
rei, peguei a garrafa e comecei a beber a água num
gole só, até não sobrar nada. Quando acabei, bati
levemente a garrafa sobre a bandeja, suspirando de
alívio em seguida.
O rei sorriu e começou a beber a água do
copo, a única que havia sobrado. Dei mais umas
respiradas profundas, enxotando o cansaço, peguei
novamente meus bastões e bati com eles contra o
chão por duas vezes, como um símbolo de que
estava pronta para outra. Sete se posicionou
também.
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Eu tinha de derrubá-lo. Pelo menos uma vez.


Olhei de relance ao redor e deixei todos aqueles
olhos raivosos me darem a força necessária. Muito
rapidamente, consegui ver Lui entre os
espectadores, observando de longe. Lembrei de sua
lição: “Desestruture, derrube e vença”.
Mas como eu ia fazer isso? Pera aí...
desestruturar... preciso fazer algo que o
surpreenda e o obrigue a deixar sua postura por
alguns instantes. Algo que o faça improvisar, aí ele
estará vulnerável, pelo menos até eu encontrar
alguma brecha.
A questão era: como fazer algo que o
surpreendesse? Foi aí que tive outra epifania. Eu
tinha uma vida de experiência em filmes de
Hollywood. Alguma cena, poderia me ajudar a
efetuar um movimento inesperado. Agucei
totalmente meus sentidos e deixei minha mente
buscar entre os vários arquivos de minha memória
imagens de filmes de luta. Alguma lembrança teria
de me servir. Minha concentração e determinação
elevadas à décima potência me fizeram conseguir
desviar de uma sequência de sete golpes dele.
Quando ele se afastou para reaver o fôlego e
tentar a manobra que o levaria a me dominar
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novamente, tentei o movimento mais ousado visto


nos filmes. Escorreguei meu corpo arqueado por
baixo da investida dele, como naquele jogo limbo,
no qual você passa por baixo sem tocar na vara.
Para toda plateia deve ter acontecido tão rápido e
ninguém deve ter sequer notado, mas meu cérebro
estava tão concentrado na batalha que pude ver
claramente a postura do rei se desestruturar por
completo. Ele nunca imaginou aquele movimento.
Consegui! Desestruture.
Em seguida, vi nitidamente a abertura que eu
precisava para conseguir golpear sua estrutura e
não deixei a chance escapar. Lancei o bastão com
toda a força que ainda me restava bem no ponto
fraco da base dele, fazendo com que o rei não
conseguisse evitar a queda.
Derrube!
Naquele momento, era como se a voz de Lui
estivesse em minha mente.
Vença com um único golpe, não espere pelo
segundo porque a chance pode não chegar!
Aproveitei aquela chance como se fosse a
última coisa que realizaria na vida. Quando ele
caiu, tão rápido quanto um raio, fui em sua direção.
Um grito saiu de mim, começando dentro da alma,
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passando pelo coração, pelos pulmões, até escapar


pela boca, como se um inimigo real estivesse a
minha frente, e aquela fração de segundo fosse a
diferença entre a vida e a morte. Só parei meu
bastão, quando ele estava a milímetros do rosto de
Sete. Se eu não tivesse detido minha arma, seria o
golpe da vitória sem dúvida. Meu adversário estava
caído aos meus pés.
E vença!
Eu respirava ofegante, ainda não acreditando
direito na proeza que havia acabado de realizar.
Quando me levantei vi todos aqueles olhares
espantados e o silêncio funesto do recinto soava
como música para meus ouvidos. Entre todas
aquelas imagens confusas, três se sobressaíram: o
sorriso de Lui, o gesto de aprovação de Ralifax e o
olhar perfurante de Nahina.
Quando minha ficha finalmente caiu, não
aguentei.
— Issssoooooooo — comemorei com um
grito.
E sem nem me importar com aquele monte de
olhares fulminantes, comecei a fazer a dancinha da
vitória e a cantarolar:

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— I will never say never! (I will fight)


I will fight till forever! (make it right)
Whenever you knock me down
I will not stay on the ground
Pick it up
Pick it up
Pick it up
Pick it up
And never say never

Eu sabia que Justin Bieber e Jaden Smith, na


canção tema do filme Karatê Kid, não combinavam
nada com a situação.
Mas que isso me importava?
Eu tinha vencido. Vencido um gigante.
Vencido um rei. Podia cantar o que quisesse.
Minha dancinha da vitória deve ter sido das mais
escandalosas porque teve direito a robozinho,
ondinha, andada para trás e até uns passos do
Michael Jackson tentei fazer.
E continuava cantarolando: “pick it up, pick it
up, pick it up” enquanto comemorava uma das mais
árduas vitórias conquistadas na vida. Ainda que
todos me rotulassem como a criatura mais ridícula
do mundo, não me importava nem um pingo.
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Estranhamente, o rei ficou sentado com uma das


pernas estendida e a outra dobrada, apoiando um
dos braços na perna curvada, como se estivesse
fazendo uma pose para uma foto, enquanto olhava
minha dancinha da vitória e ria feito um garoto.
Não satisfeita, comecei a adaptar a letra para o
idioma deles. Eu queira que entendessem o que eu
estava cantando. Até que, na língua alienígena,
ficou ainda um pouco rimada.

— Eu nunca direi nunca! (Eu lutarei)


Eu lutarei para sempre! (Vou deixar tudo
certo)
Sempre que você me derrubar
Eu não ficarei no chão
Levante!
Levante!
Levante!
Levante!
E nunca diga nunca

O rei permitiu que eu extravasasse o quanto


quisesse. Depois de ter me satisfeito por completo,
ele se levantou e abriu um sorriso diferente,
combinando com sua expressão e com o ar que
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irradiava dele. A energia de um mestre. Uma feição


de orgulho. Orgulho de mim. Era até estranho esse
lado dele.
— Muito bem — ele elogiou.
Agradeci, afinal ele era meu professor.
Olhei na direção de Lui também, grata por ele
ter sido o primeiro a me ensinar. Ele pareceu muito
feliz com a minha lembrança. Fiquei sorrindo um
pouco na direção de Lui, não podíamos conversar
muito, mas eu já o via como um amigo. Ele me
devolvia o sorriso, parecendo estar orgulhoso de
mim também. Entretanto, podia ser só uma falsa
impressão, mas, junto com o orgulho, ele transmitia
alguma coisa a mais, uma mensagem que eu não
conseguia decodificar.
O rei olhou na direção dele, depois na minha,
e voltou a olhar para ele, como se avaliasse suas
intenções.
— Ele torceu por você todo o tempo —
explicou com um tom pouco amigável.
— Pelo menos um, nesse mar ansioso para
você quebrar meu pescoço — retruquei sem desviar
o olhar de Lui, afinal era um rosto amigável entre
tantos hostis.
— Você não fez isso comigo para mostrar a
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ele, fez? — indagou com um olhar ameaçador.


— Não. Eu fiz isso para mostra a elas. E
também para tirar esse ar superior da sua fuça —
respondi, agora sorrindo em direção ao rei.
Ele conteve o sorriso. O rei olhou para cima, e
acabei acompanhando o seu olhar em direção a Lui,
que ainda não desviara os olhos de mim nem por
um segundo, parecia hipnotizado.
Voltei-me para o rei e sua expressão estava se
tornando furiosa. Se eu tivesse uma pedrinha ali,
tinha atirado na direção de Lui na esperança de ele
parar de sonhar acordado e, finalmente, percebesse
que o seu comportamento estava prestes a ser mal
interpretado, por ninguém menos que o “Rei dos
Impulsivos”.
Antes que pudesse tomar alguma atitude, Sete
chamou Lui com um gesto. No entanto, meu ex-
professor parecia tão distraído em mim que
demorou alguns instantes até perceber o rei,
chamando-o.
Acorda Lui! Pare de ficar no mundo da lua,
antes que o “carma” aqui entenda tudo errado.
Lui enfim notou o chamado e começou a vir
em nossa direção. O olhar do rei estava tão colérico
enquanto Lui descia as escadas que a aura de tensão
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estava me deixando nervosa.


— Você não achou que a viajada dele nos
próprios pensamentos foi um flerte, achou?
O rei não respondeu a minha pergunta e me
olhou com uma cara de quem não queria conversa
naquela hora.
— Pelo amor de Deus, seja razoável. Ele
estava bem próximo das suas esposas lindas e
cheirosas, e não olhou para nenhuma delas. Por que
acha que ele iria olhar para mim, que estou aqui
toda suada?
Meus cabelos estavam amarrados num rabo de
cavalo e eu podia sentir o suor minando por eles e
escorrendo por todo meu corpo.
— Ralifax.
— Sim, meu senhor — atendeu o servo, vindo
correndo.
— Sua senhora precisa de mais hidratação,
leve-a.
Ralifax me puxou pelo braço e fui
acompanhando alguns passos meio sem entender.
— Pera aí, o que ele vai fazer, Rali?
O servo me olhou como se dissesse: “Só Deus
sabe”.
Quando finalmente Lui chegou ao círculo de
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luta, apanhou os bastões que eu havia usado. Os


dois se posicionaram e, assim que o combate se
iniciou, o rei o derrubou com três golpes, e, em
continuidade, Sete daria o ataque final com o
bastão bem no rosto de Lui, e pela determinação,
não parecia mera ameaça. Não aguentei.
— Sete! — berrei.
O rei deteve seu bastão a milímetros dos olhos
de Lui.
— Olhe para ela desse jeito de novo e perderá
a visão — o rei rosnou.
Desvencilhei-me de Ralifax e corri na direção
dele. O rei levantou-se bruscamente.
— Aproxime-se dele e sofra as consequências
— disse para mim, com aquele olhar implacável.
Sete virou-se para Lui novamente e, diferente
daquela vez em que o rei o surpreendeu me
ensinando, meu ex-professor não desviou o olhar
nem por um instante. Encarando-o. Enfrentando-o.
Qualquer um podia jurar que havia realmente
algum tipo de disputa ali. Talvez fosse um daqueles
momentos no qual os homens precisam definir
quem é o macho alfa do bando.
Criancice, viu!
O rei soltou os bastões, que rolaram pelo chão,
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e deixou o salão intempestivamente. Avaliei se eu


não estava diante da minha chance de ser expulsa,
pois ele havia ameaçado expressamente “sofra as
consequências”.
Mas, e se Lui pagasse o preço também por
uma atitude minha?
Não seria justo ele sofrer só por ter sido meu
amigo e, por isso, acabei achando mais prudente
ficar onde estava. Depois do show, as esposas do
rei se dispersaram e eu fui direto para o banho.
Quando me senti “gente” novamente, acabei
retornando ao meu aposento, exausta. No momento
em que passei pela porta, vi meu quarto todo
revirado, e minhas coisas no chão, quebradas.
Procurei desesperadamente meu caderninho, e,
para minha sorte, estava intacto. O resto estava
tudo destruído, até meus travesseiros. Respirei
profundamente e concentrei-me em me manter
firme, porque, pelo jeito, tinha mesmo arranjado
um inimigo no palácio. E se era guerra o que ele
queria, era guerra que iria ter.

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Inimiga

Remexendo minuciosamente nos itens


quebrados do meu quarto, encontrei uma pedra
pequena, igualzinha àquelas usadas nos adornos das
roupas das esposas do rei, grudada num pedaço de
cetim vermelho. Naquele momento, queria ter o
poder de dedução de Sherlock Holmes para saber
muito mais com aquela simples pista, mas a só
consegui concatenar uma conclusão elementar: a
bagunça havia sido aprontada por uma garota do
harém.
— O que houve aqui? — ouvi o rei perguntar
atrás de mim.
— Você não sabe bater? — indaguei
retrucando.
— Por que preciso bater para entrar em meu
próprio aposento?
Por que eu fui perguntar, meu Deus?

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Bufei.
— Não houve nada, só resolvi redecorar.
Ele cruzou os braços e arqueou uma
sobrancelha, como se me perguntasse se eu o
achava com cara de idiota. Mal sabia ele que eu
realmente achava isso.
— O que está segurando?
Droga, ele achou a minha pista.
Entreguei o pedaço de tecido para ele, que se
enfureceu assim que tocou.
— Só para constar, não tenho nenhuma roupa
como essa aqui.
— Não se preocupe com isso.
— Não estou preocupada. Só peço que não
interfira. Meus inimigos eu derroto sozinha —
admoestei.
Ele sorriu.
— Mas é minha função proteger você — disse
com aquele olhar terno detestável.
— Você podia começar ajudando, então. Que
tal parar de chamar para briga alguém que deu o
azar de ficar fora do ar com a cabeça virada na
minha direção.
— Você é muito devagar. Não percebeu, ele
está apaixonado por você?
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Comecei a rir. Não havia outra reação que


pudesse ter.
Quanta paranoia, Jesus!
— Não me diga que está nutrindo o
sentimento dele — ele inferiu, aproximando-se de
mim com aqueles olhos estreitos, os quais eu
conhecia bem.
— Você vai me expulsar se eu responder que
sim?
— Isso nunca vai acontecer. Desista!
Isso quer dizer que posso fazer o que quiser
que ele nunca vai me expulsar? O que eu fiz para
merecer isso, meu Deus?
— Como posso alimentar algo inexistente —
falei aborrecida após descobrir que ele não iria me
enxotar acontecesse o que acontecesse.
— Por quanto tempo vocês ficaram se vendo
até eu descobrir?
— Meu Deus, você parece ter nascido com o
dom de distorcer as coisas! Ele tinha um
conhecimento que eu queria, era só isso. Você me
viu reclamar alguma vez por ter mudado de
professor?
— Você não percebe mesmo quando um
homem está apaixonado por você, não é?
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— Paixão? O que é isso? Se usa para fazer o


quê? — argumentei com a mesma cara sarcástica
feita por ele no dia em que o conheci.
Ele sorriu de um jeito envergonhado, baixando
a cabeça como se quisesse esconder o rubor.
Depois olhou para mim, com aquele olhar
encantado como se cada resposta que saísse da
minha boca fosse um jogo de palavras fascinante.
Tentei mudar de assunto.
Não era culpa minha se ele tinha resolvido
acumular aquelas mulheres do harém, as quais
pareciam só pensar em futilidades.
— Bom, então a essa altura até você já
compreendeu que o seu showzinho deixou suas
esposas enciumadas e, pelo menos, uma delas não
vai mais com a minha cara. Não que alguma tenha
simpatizado comigo desde o dia em que cheguei —
reclamei de uma vez.
Ele colocou uma das mãos no queixo e andou
pelo quarto pensativo, analisando o pedaço de
tecido.
— Vou mandar alguém vir cuidar disso —
arrematou, retirando-se.
Antes de eu deixar a cama, no dia seguinte, o
rei já estava na porta do meu aposento. Desta vez
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ele bateu. Eu costumava levantar bem cedo e, pelo


jeito, ele cultivava o mesmo hábito, talvez
levantasse até antes de mim.
— Vim ver como passou a noite — ele
afirmou.
— Bem, obrigada — agradeci mais doce,
rendendo-me um pouco à atenção dele, afinal eu
também não podia ser tão renitente a ponto de ser
injusta.
— Hoje não vamos treinar. Faremos algo bem
mais emocionante. Te espero para o café.
Depois do desjejum, acompanhei o rei na parte
externa do palácio, até o curral, onde havia vários
cavalos magníficos, diferentes daqueles que vi na
casa de Joen. Se eu tivesse testemunhado algum
com asas, tinha desmaiado de tanta emoção,
todavia, infelizmente, não vi nenhum. Mesmo
assim, estava maravilhada.
Caminhamos mais um pouco até passarmos
por um box no qual estava um potrinho tão pequeno
que parecia um filhote de pônei. Alguns servos
cercavam-no e percebi o bichinho sofrendo.
Aproximei-me dele e apalpei sua barriga,
constatando o inchaço, provavelmente, por ter
ingerido alguma coisa indevida e estava fazendo
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mal. Atônitos, os criados do estábulo não sabiam


como proceder com o animal. O rei, por sua vez,
limitou-se a se reclinar na entrada do box com os
braços cruzados apenas me observando.
— Preciso que tragam a erva comestível mais
amarga que tiverem.
Os empregados começaram a se olhar e depois
viraram em direção ao rei.
— Vocês ouviram sua senhora, depressa.
Em alguns minutos trouxeram o que eu havia
pedido e, tão logo segurei a planta, coloquei-a em
meu lenço e passei a amassá-la. Só o cheiro já era
bem amargo. Assim que pus na boca do potrinho,
ele sentiu ânsia. Ajudei massageando até expelir
aquilo que lhe provocava o mal. Quase
imediatamente ele se levantou, já dando sinais de
alegria agradecida.
O caro leitor pode achar essa parte da história
um pouco repulsiva, mas posso lhe garantir,
embora existam percalços, não há nada mais
gratificante que o carinho de gratidão de um
animalzinho. Pode não parecer, mas eles sentem
tudo à sua volta.
— Ele é lindo — falei sorrindo meio boba.
— Acho que é a primeira vez que a vejo sorrir
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assim — afirmou o rei, olhando para mim.


— Não está curioso para saber como fiz isso?
— indaguei porque os servos exibiam as mesmas
caras descrentes que Joen e Jerrá, num passado não
muito distante.
— Estou, claro! — pronunciou com aquela
expressão enigmática de sempre.
— Na minha terra eu estudava para curar
animais.
Sete me olhava de um jeito estranho, e não
parecia muito surpreso. Ele devia ter ouvido
histórias do mundo azul, se é que já não tinha visto
alguém de lá. Isso confirmava minha suspeita de
ele saber mais sobre minha terra do que queria me
contar.
Depois disso, o rei me levou para aprender
montaria. Apesar de eu já ter cuidado de cavalos no
estágio da faculdade, cavalgar era a primeira vez.
Estar em cima daquele animal não era só um meio
de se locomover, era uma parceria, na qual um
cuidava do outro. Era incrível.
Com exceção de tocar piano, o Rei Sete
parecia ser bom em tudo o que fazia. Ele cavalgava
de um jeito bastante elegante. Eu diria, se não
fossem as circunstâncias nas quais nos
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conhecemos, bem como aquele harém bizarro, eu


até o teria admirado por ser um estadista tão nobre,
respeitado, habilidoso e preocupado com seu povo,
e tudo isso ainda tão jovem. Fiquei curiosa para
saber o que havia acontecido com seus pais.
Entretanto, não sabia se seria educado perguntar.
O fim do dia chegou tão rápido. Fazia tempo
que eu não aproveitava uma coisa tanto assim, a
ponto de não ver a hora passar daquele jeito.
Voltamos para o palácio quando o sol já estava
quase se pondo.
— O seu nome é Sete mesmo? Como um
número? — indaguei de repente.
Ele riu da minha pergunta.
— Não. Sou conhecido como Sete porque sou
o sétimo da minha linhagem.
— Ah! — exclamei, entendendo sem
entender.
Era estranho ser chamado de um número só
por ser o, sei lá, “tatatataraneto” de alguém.
— E qual é o seu nome, então?
— Um dia vou lhe dizer, mas não hoje.
— Seu nome é tão feio que prefere ser
chamado por um número — brinquei.
Ele sorriu.
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— Se você quiser pensar assim, talvez seja


melhor por enquanto.
Naquela hora, não havia entendido nada, de
verdade. No entanto, resolvi deixar o assunto
quieto. Além disso, fiquei em dúvida se perguntava
a respeito dos seus pais, mas, no fim, optei por me
calar. Embora aquele dia tivesse sido um dos
melhores que tivera em muito tempo, convenci-me
de que não seria interessante nutrir muita
intimidade com o rei, afinal eu iria deixar o castelo
cedo ou tarde. Assim, terminamos o caminho até o
palácio em silêncio.
Sete se despediu de mim, e retornei para meu
quarto. Infelizmente, tive uma surpresa no corredor.
Eu sabia que, em algum momento, ela estaria
diante de mim. Estava recostada no pilar, com os
braços cruzados, um quilo de maquiagem no rosto e
uma roupa tão decotada que, qualquer movimento
em falso, seria nudez na certa. Obviamente, estava
esperando por mim. E se ela achava que iria
encontrar uma pobrezinha, tinha caído do cavalo.
Comigo seria sem anestesia e sem meias palavras.
Se havia uma coisa no mundo da qual eu não tinha
medo, era de cara feia.
— Então, você é a preferida do rei — ela
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disse, fitando-me com aqueles olhos verdes de


Malévola.
— E você é Nahina, eu suponho — enfrentei,
encarando-a com meus olhos castanhos de Everlin
Carter Kim.
— O rei sabe que você pretende fugir? —
chantageou, mostrando-me um pedaço de papel.
Era uma folha do meu caderninho.
— Por que não pergunta isso a ele? —
indaguei, desafiando.
Minha pergunta pareceu derrubá-la de seu
pedestal.
Se era só isso que ela tinha, coitada. Minha
vez!
— Enquanto você pergunta, por que não
aproveita e explica como essa folha foi parar na sua
mão? — provoquei, estreitando meus olhos e
abrindo aquele meio sorriso provocador, que nem
Sete teria feito melhor.
A expressão vitoriosa dela se desfez como um
castelo de cartas atingido por um sopro, ela tinha
lido o recado do rei no início do caderno. Pelo jeito,
enfim, havia caído a ficha dela de com quem estava
lidando. Tudo o que pôde fazer foi me mirar com
seus olhos venenosos. Se ela queria me vencer, ia
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ter de fazer muito, mas muito, melhor que aquilo.


Ainda bem que eu não tinha rasgado aquela
folha. Ufa!
— Você sabe que ele só está brincando com
você, não sabe?
— Sei. E...?
Ela franziu a testa.
— Quando ele se cansar, a colocará de volta
no harém, ou pior — ela retrucou.
— Se sabe disso, com o que está preocupada,
afinal? — falei tentando não perder a paciência
com alguém que parecia ter o QI de um ser
unicelular.
Nahina acabou ficando parada, olhando para
mim com aquela cara de quem não conseguia
formular uma resposta decente. Perdi a paciência.
— Se tem alguém aqui que deve se preocupar
com o pior, não sou eu, afinal, qual de nós duas já
levou uma advertência? — chicoteei sem dó, afinal
ela tinha de levar uma bordoada por ter destruído
meu quarto.
— O que está havendo aqui? — interrompeu o
rei.
Nahina estremeceu. Não sei se de medo ou de
amor. Talvez fosse a junção dos dois.
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Aquilo chegou a me dar náusea, de verdade!


— Pelo amor de Deus, se resolva com sua
esposa porque não tenho paciência, não — falei,
passando a bola para o rei, balançando a cabeça
indignada e prosseguindo pelo corredor.
Quando passei por Sete, ele me segurou pelo
braço.
— Espere aí — ele disse.
— O que foi agora? — questionei, bufando.
— Nahina, retorne ao seu aposento —
ordenou o rei sem tirar os olhos de mim.
— Mas...
O rei apenas virou a cabeça na direção dela
com aqueles olhos raivosos e Nahina assentiu
vencida.
Involuntariamente, acabei olhando na direção
dela e, quando ela já estava a alguns passos de nós,
virou-se para mim, mirando por cima do ombro e
dando um sorrisinho confiante. Ela havia aprontado
ou iria aprontar alguma coisa, disso eu não tinha a
menor dúvida.
— Quero levar você a dois lugares —
convidou-me o rei, quando Nahina se distanciou.
— Agora? — soltei a pergunta sem o menor
entusiasmo.
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— Eu ia fazer isso amanhã, mas não consegui


esperar — ele disse com aquela cara indecifrável.
Concordei e caminhei seguindo Sete pelo
palácio, enquanto ele fazia uma expressão de
satisfação juvenil. Havia esses momentos em que
ele agia como garoto. Chegamos a uma sala onde
estavam guardadas várias armas, organizadas como
se estivessem em exposição em um museu. Armas
de todos os tipos e para todos os gostos. Vi dois
bastões lindos, trabalhados, era até um desperdício
usá-los num combate.
— Quero que escolha uma arma.
Olhei para ele, com uma das sobrancelhas
arqueadas, como se dissesse: “você está certo
disso? Não vou mais garantir a sua segurança”. E
o pior de tudo, ele compreendeu minha mensagem,
porque assim que fiz a minha careta, ele completou:
— Não se preocupe, vou correr o risco.
Acabei rindo.
Queria escolher os bastões, mas o aspecto
decorativo quase não combinava com a finalidade
deles. Acabei escolhendo duas espadas curtas
lindas, que se juntavam e formavam uma só. Era
bem versátil. Serviriam bem ao meu propósito.
— Quero que se proteja, quando eu não puder
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estar por perto — ele informou, deslizando sua mão


sobre a minha, que, por sua vez, estava sobre as
espadas.
Recolhi minha mão.
— Tem mais um lugar que quero lhe mostrar.
Peguei meu presente e o segui. Chegamos a
uma parte do telhado do castelo, de onde se via
muito mais longe que da muralha. Já era noite, mas
tudo estava bem iluminado pelo brilho das luas. Era
lindo. Completamente diferente de qualquer parte
da terra, pelo menos eu nunca soube, nem pelos
canais de variedades, de um lugar na Terra como
aquele.
Quando virei, não acreditei no que vi. Era um
telescópio. Igualzinho ao que meu pai tinha na
nossa casa de férias. Com certeza, alguém tinha
trazido aquilo da Terra.
— Isso veio do mundo azul, estou certa? —
indaguei eufórica.
— Sim.
— Como?
— Como você, talvez.
Poderia ser que barcos e submarinos tenham
atravessado a ponte em algum momento da história.
Provavelmente, havia mais gente da Terra perdida
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por aquele mundão a fora deles. Não aguentei e dei


uma olhada. A buscadora estava completamente
desregulada e tudo ficava embaçado. A sorte era
que meu pai havia me ensinado a regular aquilo
direitinho.
— É incrível ver com isso — ele disse
empolgado.
— Você não viu nada ainda. Veja agora.
— Uaauuuuu. O que você fez? É magnífico —
agora falava já frenético.
Dei uma olhada e, com o telescópio, aquele
planeta gigante era, de fato, maravilhoso. Se a lente
fosse um pouco maior, daria quase para ver alguma
coisa que tivesse por lá. Depois de posicionar o
equipamento corretamente e a visão ficar nítida e
linda, o rei, parecia uma criança, querendo ver
tudo. Embora eu não gostasse de pensar
profundamente sobre isso, Sete era um homem
bastante peculiar. Às vezes, mesmo sem querer, eu
me pegava indagando como era possível que um
único homem demonstrasse tantas faces de si
mesmo.
Talvez, se tivéssemos nos conhecido na Terra
e ele fosse um aluno deslocado, sentado na cadeira
ao lado da minha na faculdade, poderíamos até ter
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sido amigos. Nahina era apaixonada por ele, sem


dúvida. Quantas mais ali deviam ser, se não todas.
Se riscássemos aquele harém do currículo dele,
bem como o fato de recolher mulheres como
pagamento, até que ele daria um bom príncipe
encantado.
— No que está pensando? — ele indagou de
repente.
— Em nada — disfarcei.
— Neste mundo também tem coisas bonitas,
não tem? — perguntou, parecendo ansioso por
minha resposta.
— Tem, claro — respondi indiferente.
— Você não acha que com o tempo poderia se
acostumar e, talvez, ser feliz aqui?
— Não consigo imaginar nada que possa vir a
me prender aqui — expressei minha opinião
enquanto mirava o horizonte.
Sete começou a respirar pesadamente e fechou
o semblante, como se estivesse sentindo uma dor
aguda, igual a alguém apunhalado num lugar bem
sensível. Se ele não fosse quem era, eu poderia
jurar que ficara magoado com o que eu disse.
— Eu sou seu marido, posso prender você
aqui — ele esbravejou enfim.
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— Quantas vezes tenho de dizer que você não


é meu marido — refutei.
O rei veio em minha direção e me segurou
pelos braços, deixando seu corpo bem junto ao
meu, com aquele perfume amaldiçoado entrando
em mim até por minha pele. Parecia desesperado.
— As coisas no seu mundo podem ser
diferentes, mas você está no meu mundo, aqui são
nossas regras. E aqui você é minha esposa! — ele
afirmou, sem desviar o olhar de mim nem por um
segundo sequer.
— Você acha que é para isso que eu ligo?
Regras do meu mundo ou do seu? Que se danem as
regras. O que importa é o que se sente aqui — falei
encostando meu dedo no peito dele, bem no
coração — e aqui — continuei, repousando a mão
sobre meu coração — e aqui, eu não sou sua esposa
— terminei, fixando meus olhos nos dele.
Ele parou e ficou olhando para mim, como se
não esperasse por uma resposta como essa. Ele
parecia saber que eu tinha toda a razão e, por isso,
tivessem lhe fugido as palavras, não fazendo a
menor ideia do que dizer a seguir. Por fim, ele
sorriu.
— E o que eu preciso fazer para que se sinta
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minha esposa aqui? — indagou, colocando sua mão


quente e forte sobre meu coração.
Caro leitor, juro que a minha vontade naquela
hora foi dizer: “nasça de novo, quem sabe, não
custa tentar a sorte”. Entretanto, a expressão dele
enquanto esperava por minha resposta, acabou
fazendo as palavras demorarem a sair de mim.
Minha boca se movia a fim de iniciar uma
nova palavra, mas o som não se formava. Fiquei
apenas encarando aquele olhar singelo e
esperançoso que lançava em minha direção.
— Primeiro, você lá sabe o que se significa a
palavra casamento? — formulei finalmente.
O rei recuou a cabeça e franziu o cenho como
se eu tivesse pedido para explicar a fórmula
matemática mais difícil do mundo. Não sei se a
hesitação dele em responder era porque não
conseguia concatenar uma resposta aceitável ou
porque tinha receio de elaborar uma solução que
não me agradasse.
— Casamento, sabe. Quando um homem e
uma mulher se amam e fazem votos de viverem
juntos pelo resto de suas vidas — expliquei fazendo
questão de enfatizar o número de participantes
envolvidos em um matrimônio.
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A expressão do rosto do rei começou a mudar


e ele abriu um sorriso satisfeito da mesma forma
que alguém faria se tivesse descoberto a solução de
um enigma, o qual o levaria a um baú de tesouro
perdido.
— Então, esse é o problema? Por que não me
disse que era isso que queria desde o início?
Franzi a testa, afinal eu não fazia a menor
ideia do que exatamente ele achava que era o
“problema” ou “o que eu queria desde o início”.
— Vamos resolver isso agora! — ele concluiu
entusiasmado.
— Resolver o que a essa hora? — perguntei.
— Ralifax — ele saiu, chamando.
Corri atrás dele.
— Pelo amor de Deus, o que você vai fazer?
— indaguei, andando atrás dele.
Depois de percorrermos um pouco daqueles
corredores sinuosos, Ralifax veio correndo ao
nosso encontro.
— Desejava me ver, senhor?
— Sim, chame os escribas na sala do trono
imediatamente.
O servo arregalou os olhos, não acreditando
que o rei mandaria chamar quem quer que fosse
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àquela hora da noite.


— Agora mesmo, senhor.
— Espera aí, Rali — interpelei, agarrando-o
pelo braço e soltando-o em seguida quando fui
fulminada por aquele olhar estreito.
— O que exatamente pretende fazer?
— Vou proclamar um édito.
— Com qual propósito? Não que seja da
minha conta que você proclame qualquer lei que
lhe venha à telha, mas tenho um pressentimento de
que desta vez eu sou o centro da confusão —
despejei.
— Ordenarei as mulheres do harém para
retornarem às suas famílias e as que já foram
escolhidas por mim — essa parte ele disse
abaixando a cabeça — terão uma casa confortável e
sustento pelo resto da vida e, se encontrarem
alguém que as ame, estarão livres para se casarem
novamente, se assim desejarem.
Nem consigo descrever a cara que Ralifax fez
ao ouvir aquele discurso. Foi uma expressão de
espanto, misturada com alegria e temperada com
seus trejeitos engraçados. Mais hilário impossível.
— Você ficou louco? — indaguei incrédula.
— Ué, mas não é isso que você quer? —
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indagou, franzindo a testa, sem entender.


— Não!
Ralifax olhou para mim como se implorasse:
“Por tudo que mais ama senhora, não diga isso”.
— Você acabou de dizer que era isso o que
queria — ele retrucou.
— Não! Eu te expliquei o que é um casamento
de verdade, só isso.
Ele ficou olhando para mim com aquele olhar
incógnito, o qual tanto me irritava.
— Não me olhe desse jeito, diga de uma vez o
que é — exaltei com firmeza.
O rei fechou-se e dispensou o servo.
— Pode ir, Ralifax — ordenou, finalmente,
cabisbaixo e quase sussurrando.
O servo suspirou e nos deixou, entristecido.
— Por que você está fazendo isso? —
indaguei sem conseguir conter uma careta de
surpresa.
— A sua lerdeza, às vezes, irrita — comentou,
levantando a cabeça e colocando o seu rosto bem
próximo ao meu, apoiando os braços na parede,
prendendo-me.
Depois de dizer isso, Sete saiu, parecendo
zangado.
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O que havia acabado de acontecer? Um idiota


me chamou de lerda, foi isso mesmo?
Fiquei sem entender. Apanhei meu presente e
voltei para meu quarto pensando. Se desse a louca
nele e, de fato, desfizesse-se do harém por minha
causa, aí sim eu estaria encrencada.
Nem pensar em me tornar a única que ele
considera como esposa aqui.
Não podia deixar acontecer de jeito nenhum.
Não pude deixar de pensar se seria possível ele ir
tão longe assim só por causa de um capricho. Será
que as coisas realmente funcionam como dizem:
“quando se rejeita é aí que a pessoa mais se
interessa?”.
Podia ser que ele realmente me amasse?
Cheguei ao meu quarto gargalhando. Até
parece que eu ia cair nessa. Ele nem me conhecia
direito, como poderia me amar? A verdade era ele
não passar de um garoto mimado, o qual não podia
continuar vivendo e saber que há algo no mundo
que não pode ter. Pensando assim, era melhor eu
deixar o palácio o mais rápido possível. Talvez
chegasse mesmo o dia em que Sete cumprisse o
nosso acordo, nem que fosse para, enfim, ter o que
quer. Isso eu nunca iria permitir.
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Mergulhei fundo em pensamentos, enquanto


me despia e colocava minha camisola. Durante a
noite o palácio ficava sob a luz do luar, e também
por umas lamparinas estranhas, tão brilhantes
quanto lâmpadas modernas. Apaguei a última,
posta sobre um móvel próximo a minha cama, e, no
momento em que puxei o luxuoso lençol, meu
sangue gelou.
Havia um bicho medonho rastejando-se sobre
a minha cama. Parecia algum tipo de cobra, mas
uma diferente, uma do planeta deles. Muito embora
eu estivesse prestes a me formar em veterinária,
tenho de admitir que não gostava muito de
herpetologia. E as cobras da Terra, pelo menos as
que eu já havia visto em livros, eram belíssimas
comparadas àquela. Até parecia que aquela coisa
entendia a situação e estava satisfeita por,
finalmente, conhecer sua adversária.
A primeira ideia que me ocorreu foi gritar e
sair correndo, se eu estivesse na Terra,
possivelmente, teria agido assim. No entanto, eu
não era mais a mesma que deixara o aeroporto em
Londres. Diante de mim estava minha inimiga. E
embora aquilo fosse a coisa mais feia que eu já
tinha visto na vida, e a penumbra, espalhada pelo
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aposento, dificultasse sobremaneira a batalha,


naquele momento, era ela ou eu.
Caminhei lentamente sem perder o contato
visual com a minha adversária até pegar minhas
espadas. A impressão era a de meu algoz também
aguardar o melhor momento para desferir o seu
ataque. Quem de nós fizesse o primeiro movimento
teria de ser certeiro. Decidi manter o sangue frio e
esperar o momento exato.
O réptil se moveu rapidamente para direita, na
tentativa de desviar minha atenção e, em seguida,
repentinamente, saltou em minha direção.
Entretanto, meus sentidos estavam tão afiados
quanto uma katana japonesa e eu, no modo batalha,
já tinha me tornado implacável. Um único golpe de
minhas espadas foi o bastante para separar a cabeça
de minha assassina de seu corpo.
Só precisei de um único movimento para
deixar minha inimiga no chão, subjugada. Foi então
que eu percebi, de fato, eu havia me transformado
em uma guerreira. Quando fiquei vidrada no filme
Mulher Maravilha, nunca imaginei que um dia eu
pareceria com uma. Mas, infelizmente, uma
batalha, nos filmes, é completamente diferente de
uma na vida real. Na realidade os sentimentos se
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intensificam tanto e podem fazer uma pessoa


sensata perder, de fato, o juízo.
Eu sabia muito bem quem estava por trás
daquele bicho, sangrando em meu quarto. Minha
vontade era ir até lá e jogar a bagunça bem em cima
da cama dela. No entanto, não faria isso. Não
naquela hora. Eu tinha acabado de passar de fase no
jogo, e enfrentar a “chefona” teria de ser no
momento certo. Eu tinha certeza absoluta de que
para vencer a guerra, não bastava derrotar. Eu teria
de “causar”.

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Joia da Rainha

Não consegui dormir em minha cama depois


daquela “coisa” ter rastejado por meus lençóis.
Joguei uma espécie de colcha para tampar aquilo e
deitei num dos sofás. Quando o dia clareou, minha
hora havia chegado. Peguei minhas espadas,
posicionando-as em uma, embrulhei no tecido
aquilo que um dia tinha sido minha inimiga e sai
arrastando-a pelo palácio. Era mais pesada do que
parecia.
Vários criados e soldados me viram arrastando
aquilo castelo adentro e ficaram assustados,
provocando quase um corre-corre. Contudo, isso
não me afetava e continuei carregando meu troféu
de batalha até o harém real. Desde o primeiro dia o
palácio, graças a Deus, nunca mais havia voltado
ali. Abri a porta com um chute. Fiquei parada na

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porta enquanto setecentos e onze pares de olhos


furiosos se voltavam para mim. Entretanto, eu
procurava apenas por um. Saí arrastando aquele
troço, com minha espada em uma das mãos no
meio daquele monte de mulheres, as quais abriam
caminho com minha aproximação. E, então, lá
estava ela, provavelmente pensando que eu era um
inseto muito mais difícil de se matar do que
imaginava.
Foi só jogar o corpo da cobra aos pés de
Nahina para confirmar minha suspeita. Todas as
mulheres em volta fizeram uma cara de pavor,
menos ela. Encarava-me como se o movimento que
tivesse feito no jogo tivesse saído pela culatra. Ela
viu a espada que eu empunhava e engoliu em seco.
Dei um meio sorriso. Embora meu presente tenha
sido duas espadas curtas, as quais, quando se
encaixadas, transformavam-se numa espada
igualmente curta, era imponente. Servia para
amedrontar, sem dúvida.
Apontei minha arma para o rosto de Nahina.
Ela tentava se fazer de forte, mas estava tremendo
de medo. Dava para sentir.
— Escute aqui Nahina, você viu muito bem
que eu não tive medo do rei, então, o que a faz
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pensar que teria de você? — rosnei, sem abaixar


minha espada.
— Se você fizer algo contra mim, o rei a
matará — ela retrucou, esforçando-se para não
gaguejar.
— Isso era para me assustar? — falei
provocando.
Ela recuou uns dois passos.
Nesse instante, o rei adentrou no harém,
seguido por Ralifax e seus soldados. Nahina
respirou aliviada.
— Meu senhor, essa louca invadiu vosso
harém nos ameaçando — Nahina começou a
reivindicar a seu favor.
— Silêncio! — impôs o rei.
Por mim ele pode gritar, berrar, espernear, o
quanto quiser. Quero ver ele fazer eu abaixar
minha espada.
— Tragam eles aqui — ordenou, em seguida.
Em poucos minutos, os homens do rei
voltaram, carregando outro homem, o qual nunca
havia visto, e alguém familiar, que fez meu coração
petrificar. Delaila vinha arrastada pelos soldados do
rei, junto com o desconhecido, até serem jogados
aos nossos pés. Ao vê-la, abaixei, aos poucos,
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minha arma, igual a alguém leva uma apunhalada


pelas costas e vai esmorecendo vagarosamente.
Nahina ficou lívida como um fantasma.
— Qual dessas mulheres pagou para que
trouxessem essa Célis ao palácio? — indagou o rei.
— Célis? — perguntei.
— O animal que você abateu — o rei
esclareceu — seu quarto está inundado com o
sangue disso.
Aquela sala enorme estava repleta de pessoas,
mas o silêncio era absoluto, assemelhando-se mais
a um planeta desabitado.
— Respondam por bem, antes que eu os faça
responder por mal — bradou o rei de um jeito que
até eu quis ficar quieta.
Delaila apontou com as mãos trêmulas para
Nahina. Olhei para aquela serva e pensei: em todos
os cantos de Universo deve haver pessoas boas e
más, confiáveis e traiçoeiras. Apesar disso, não me
arrependi de ter sido gentil com ela. Há muito
tempo aprendi que quando a bondade e a gentileza
fazem parte do que se é, elas emanam de você
natural e indistintamente.
Incontinente, Nahina se prostrou aos pés do rei
e começou a implorar por sua vida, este a olhava
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com uma fúria ardente como chamas intensas e


vívidas, a quais nem toda água do oceano seria
capaz de contê-las. Sete era, realmente, mostrava-se
impiedoso quando queria.
Pensando bem eu tinha tido sorte dele ter
achado divertido brincar comigo.
Sete olhou para mim esperando pelo veredicto.
A impressão era a de que ele aguardava para ver se
eu intercederia por Nahina, Delaila e aquele outro
servo e, se eu não o fizesse, o destino deles já
estaria selado.
Não vou dizer que não senti pena de Nahina,
entretanto, eu não tinha a menor vocação para ser
coitada de novela mexicana. Se tem outra coisa que
também aprendi na vida, é que cada um deve trilhar
o caminho que escolheu.
Olhei para Sete em silêncio e ele sorriu,
percebendo que eu não impediria Nahina e seus
comparsas de enfrentarem o destino que semearam.
— Matem-nos — sentenciou o rei, sem nem
pestanejar, virando-se para seguir caminho e
retornar aos seus afazeres.
Ao ouvir o rei, Nahina se desfez em prantos.
Segurei a mão de Sete e ele entrelaçou os
dedos dele nos meus, voltando-se para mim com
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um olhar curioso, desejando saber o que eu queria.


Minha vontade era ter libertado minha mão da dele
na mesma hora. No entanto, seria incompatível com
a idiotice que estava prestes a fazer.
— Banimento está bom — falei baixinho a
fim de não atear mais fogo na fornalha de ódio ao
meu redor.
— O quê? — o rei perguntou.
Eu tinha certeza absoluta de que ele havia
entendido o meu pedido na primeira vez, mas fez
isso para que todos me ouvissem.
— Banimento está bom — repeti em um
volume mais alto.
Sete sorriu como se o furor de minutos atrás
não tivesse passado de uma mera faísca.
— Banimento, então — confirmou em
seguida.
— Do país! — acrescentei.
Acho que devo ter dito isso de um jeito menos
solene, quase engraçado, porque o rei riu tão logo
acabei minha pequena frase. Tentei conter o riso,
afinal aquilo não deixava de ser um julgamento e,
pelo jeito, só o juiz tinha o poder para rir.
— Se voltarem a pôr os pés em Yonah,
perderão suas cabeças — finalizou o rei, fixando-se
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em Nahina e depois nos servos.


Sete soltou minha mão e saiu, sendo seguido
por sua frota de soldados e Ralifax. Eu fiquei.
Queria ver Nahina levantar a cabeça e olhar para
mim, memorizando bem meu rosto porque,
enquanto vivesse, teria de conviver com a ideia de
que devia sua vida a mim.
Acredite em mim, caro leitor, quando digo que
não fiz isso por vingança. Fiz porque existem
algumas pessoas, e não só no planeta Terra, que
não aprendem de outra forma.
Para Delaila não olhei. Ao contrário de
Nahina, queria que ela me esquecesse por
completo, assim como eu a esqueceria. Existem
sentimentos que é melhor não serem cultivados.
Depois de encarar Nahina, dei uma boa olhada
para aquele bando de mulheres em torno, deixando
bem claro o destino que teriam se mais alguma se
atrevesse a tentar algo do gênero. Somente após
estar plenamente satisfeita, deixei o harém,
fechando as portas e deixando-as trancadas com
aquele treco morto. Eu também sabia ser malvada
às vezes, afinal sangue também corre em minhas
veias. Caminhava por aquele imenso corredor,
quando Sete se aproximou de mim, prensando-me
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contra a parede.
— Por que você não me chamou? Eu estava
praticamente ali ao lado — indagou, repreendendo-
me.
— Eu já te disse, meus inimigos eu derroto
sozinha — retruquei, tentando me desvencilhar.
— Você sabia que até o sangue daquilo é
venenoso? — reprovou-me, inspecionando meu
corpo como se quisesse ter certeza de que nenhum
pedacinho daquele bicho asqueroso encostou em
mim.
— Eu estou bem, sério — respondi vencida,
diante da preocupação, que parecia genuína.
Em seguida, Sete me abraçou, e acabei não o
afastando. Apesar de toda força que eu
demonstrava, por dentro eu tremia. E meu corpo
parecia irradiar aquela vibração de pavor, sendo
acalmado pelos braços firmes dele. Àquela altura
eu já devia estar acostumada a sentir medo. Não foi
fácil encarar aqueles planetas no céu.
— Agora preciso mesmo ir, vai ficar bem? —
ele indagou de um jeito tão doce que minhas
palavras rebeldes de costume acabaram por não
serem pronunciadas.
Só fiz um gesto afirmativo, o qual eles
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compreendiam, e sorri. Ele beijou minha testa e


seguiu seu caminho. Resolvi deixar assim.
Quando voltei ao meu quarto, os criados ainda
estavam limpando a bagunça com todo cuidado do
mundo e acabei esperando pelo almoço na
biblioteca. Mais tarde, almocei normalmente na
cozinha com os empregados. Eu não ia tratá-los de
forma diferente só pelo que aconteceu com Delaila.
Janes e Carin me pediram tantas desculpas, como
se elas tivessem feito alguma coisa. Acalmei as
duas, deixando claro que, para mim, a atitude de
uma não era a de todos.
À tarde, decidi não voltar à biblioteca. Andei
por outra parte do palácio, e fiquei recostada sobre
uma mureta na lateral de outro pátio descoberto,
bem na entrada do castelo. Era bonito aquele
pequeno jardim interno.
— A senhora está bem? Ouvi sobre a Célis em
vosso quarto — ouvi atrás de mim.
Quando me virei, percebi que a pergunta vinha
de Lui. Olhei para os lados para ver se a
“encrenca”, a qual pensava ser meu esposo, não
estava por perto.
— É melhor não se aproximar muito, o meu
marido “postiço” pode estar espionando por aí —
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alertei brincando e sorrindo.


Não sei se ele não entendeu a piada, não achou
graça ou não gostou do que eu disse, porque, logo
em seguida, ele abaixou o olhar, com uma
expressão séria e pensativa.
— A senhora por acaso está pensando em se
tornar esposa dele de verdade? — ele indagou,
depois de refletir.
— De jeito nenhum — respondi tão
espontaneamente que acabei sorrindo depois de
dizer.
Lui também sorriu.
— Saiba de uma coisa, quando a hora chegar,
eu a ajudarei a fugir — ele se ofereceu, sem desviar
os olhos de mim.
Meus pensamentos ficaram tão transparentes
que até me surpreendi quando Lui me fitou de volta
como se dissesse: “é claro que sei sobre sua
intenção de fugir”. Entretanto, eu jamais permitiria
isso, sabendo o que o rei seria capaz de fazer com
ele se descobrisse.
— Não posso aceitar. É muito arriscado para
você — arrematei.
— Se a senhora não tem medo, também não
terei — ele argumentou, sorrindo.
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Em seguida, o olhar dele me surpreendeu,


enchendo-me de calafrios até a espinha. Era um
olhar carinhoso e ao mesmo tempo ansioso. Ele
devia estar enfrentando um turbilhão de
sentimentos, porque seu nervosismo conseguiu me
alcançar. E, de repente, estávamos numa daquelas
situações embaraçosas parecendo adolescentes
quando nenhum dos dois consegue prosseguir com
a conversa, e eu nem sabia como havíamos chegado
àquela situação.
Ele mergulhou em uma tensão tímida, e a sua
respiração se tornou ofegante, quase incontrolável.
Ficou até engraçadinha sua expressão juvenil, a
qual acabou por derrubar toda a imagem de militar
durão e insensível. Ele me olhou novamente como
se não conseguisse mais conter dentro de si o
furacão instalado em seu peito. Aquilo ira
extravasar. Eu já tinha visto aqueles sintomas antes.
Essa não!
— Minha senhora, eu...
Lui interrompeu o que ia dizer e ficou mirando
o portão do palácio. Virei curiosa e vi um garoto
montado em um cavalo. Pelo jeito, o pequeno
visitante havia acabado de adentrar no castelo.
— Tizã — gritou Lui em direção ao garoto,
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indo na direção dele.


Ufa! Salva pelo gongo!
Continuei encarando o garoto e acabei
seguindo Lui nem sei porquê. Quando nos
aproximamos, percebi o pequeno banhado pelo
próprio suor. Estava pálido e abatido. Aquilo era,
sem dúvida alguma, febre, e uma bem alta ainda.
No momento em que o garoto viu Lui, tentou sorrir,
mas não conseguiu e desmaiou em cima do cavalo.
Lui disparou em direção ao menino. Pensei se,
porventura, o garoto poderia ter contraído a mesma
doença, a qual se alastrou pelo acampamento de
Joen. Mesmo que não fosse, não seria inteligente
arriscar.
— Não toque nele! — gritei.
Lui parou e virou-se para mim sem entender.
Quando cheguei mais perto, vi que o cavalo
também respirava com dificuldade.
— Essa não, é o que eu temia — diagnostiquei
desesperada.
— Minha senhora, o que é? Ele é meu irmão
— afirmou meu ex-professor já contagiado pelo
meu desespero.
Comecei a tirar a camisa de Lui.
— O que acontece aqui? — vociferou o rei em
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nossa direção, vindo seguido por várias pessoas.


— Fiquem todos aí, não se aproximem! —
bradei.
Todos acabaram acatando minha ordem,
menos uma única pessoa, é claro. Sete se
aproximou de nós furioso.
— Lui, cubra a boa e o nariz com isso — falei
entregando a camisa, e mostrando como fazer
depois de tirar um pedaço da minha roupa e tampar
com ele meu rosto.
Peguei um pedaço de tecido, que parecia um
lençol, nem sei onde e o usei como proteção para
descer o garotinho do animal, envolvendo-o
completamente naquele pano.
— Rápido, arranje um par de luvas — disse
para Lui — e você... — falei ao rei — ...nem pense
em se aproximar sem proteção no rosto e nas mãos.
Minha voz saía um pouco abafada por causa
do tecido em meu rosto, mas audível.
— Ralifax, rápido, precisamos de um quarto
afastado para colocar o garoto — despejei.
O servo parecia entorpecido pela situação.
— Vamos, mexa-se, homem! — ordenei.
Assim que me ouviu, Ralifax começou a se
mover com seus trejeitos desajeitados. Sete cobriu
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o rosto e vestiu luvas.


— Por aqui — indicou o rei.
Antes que acompanhássemos o rei, o cavalo se
ajoelhou, também desmaiando. Entreguei o garoto
ao rei e retirei o pano de meu rosto para que todos
ouvissem em alto e bom som o que eu dizer.
— Esse animal deve ser levado do palácio
imediatamente e quem se aproximar dele deve
cobrir o rosto e usar luvas. Ele deve ficar longe dos
outros animais — vociferei em direção aos
ouvintes.
— Vocês ouviram sua senhora, mexam-se —
mandou o rei.
O rei levou o garotinho para um quarto
pequeno, numa ala afastada, mas próxima do
portão, e o colocou sobre a cama. Retirei o lençol
que o cobria e comecei a examiná-lo. Era, sem
dúvida alguma, aquela mesma doença com a qual
sofremos tempos antes na casa de Joen.
Eu havia passado muito tempo com os doentes
febris para saber de cor e salteado como aquela
doença atacava. Entretanto, pela reação do garoto à
doença, parecia ser bem mais grave. Podia ser uma
variação da bactéria. O pequenino respirava com
muita dificuldade. Não sabia o que era pior, ter a
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consciência de que o menino precisava ser


entubado ou de que a ministração do extrato da
planta milagrosa ia ter de ser intravenosa. Eles não
teriam agulhas de injeção nem seringas. Sentei-me
no chão e pus a mão na cabeça.
Meu Deus, o que eu vou fazer?
— Preciso de um ourives agora, para trabalhar
aqui e rápido — esbravejei.
— Ralifax, você ouviu.
— Sim, meu senhor.
Corri em direção à cozinha, pegando um papel
e uma caneta de um dos escribas que seguiam o rei.
Comecei a desenhar a planta que vi na casa de Joen
no caminho enquanto corria. Sete se prontificara a
ir correndo comigo durante o trajeto e quando
chegamos à cozinha, coloquei meu desenho na
mesa e todos os criados olharam assustados.
— Eu quero isso aqui, e quero rápido —
especifiquei.
— Isso é Joia da Rainha, não é comestível,
minha senhora — avisou uma das criadas.
— Não é para comer, é remédio... depressa...
— falei desesperada.
— Não temos isso aqui, senhora — respondeu
outra criada, apreensiva.
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Levei a mão à cabeça. Estava suando.


— Pois consigam, rápido — concluí
impaciente.
— Tem uma criada no palácio que seca as
folhas de Joia da Rainha e depois as usa para
perfumar o quarto — pipocou outra voz.
— Levem tudo o que ela tiver para o quarto
onde está o menino — interpelou o rei.
Depois disso, comecei a buscar pela cozinha
tudo o que pudesse ajudar. Por sorte, encontrei uns
tubos de couro, usados pelas criadas para canalizar
o vapor em alguns objetos. Ia ter de servir. Peguei
uma bolsa pequena de couro também, algumas
coisas, as quais nem sei para que usavam, com o
intuito de improvisar as válvulas, e tudo o que
utilizavam para fazer curativos.
Voltei correndo para o quarto, pegando uma
luva achada pelo caminho. Devia ser de alguma
garota do harém, mas eu nem me importava. Só
desejava que nesse intervalo o pequenino não
tivesse tido uma parada cardiorrespiratória.
Quando cheguei ao aposento, Lui estava com
seu irmão. Graças ao bom Deus, o menino lutava
para respirar e seu corpo ainda não havia desistido.
Espalhei pelo chão, sobre um lençol, o que eu tinha
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trazido comigo e comecei a improvisar um


respirador.
— Minha senhora, o que eu posso fazer? —
indagou Lui preocupado, se aproximando de mim.
— Saia — impôs o rei a Lui.
Lui se levantou e passou a encará-lo.
— Se tem alguém que não devia estar aqui é
Vossa Majestade, se pegar essa doença, onde
vamos parar? — retrucou Lui, enfrentando-o.
Sete inflamou o olhar em direção ao soldado,
que não recuou.
— Vocês dois querem parar com isso, pelo
amor de Deus — falei enfim.
Eu havia terminado o respirador improvisado,
agora necessitava de alguém para me ajudar a
entubar o menino. Olhei para o rei e depois para
Lui.
— Lui, é melhor você sair — decretei
resoluta.
— Mas, minha senhora...
— O que vamos ter de fazer não é exatamente
bonito de se ver. Ele é seu irmão, talvez você não
suporte.
Lui acabou não compreendendo meus
motivos. Abaixou o olhar como se eu tivesse
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escolhido o rei em vez dele.


Os homens, às vezes, conseguem ser tão
infantis! Senhor!
— Venha Sete, se consegue resmungar, então
consegue ajudar — disparei em seguida.
— O que eu faço, Lin?
— Segure-o com força, e não o deixe se
mexer. O que vou fazer vai doer, então ele vai se
mexer muito, mas, quanto mais se move, mais se
machuca, entendeu?
O rei segurou o menino com firmeza. Se havia
algo não lhe faltava era força, afinal aqueles braços
musculosos tinham de servir para alguma coisa.
Respirei fundo. Não havia tempo para hesitação.
Cada segundo contava. Comecei a entubar a
garganta do menino que, mesmo entorpecido pela
febre, tentava mover-se.
Por sorte, Sete era bastante habilidoso e
segurou o pequenino de forma que o procedimento,
apesar de doloroso, correu da melhor maneira
possível. Ao apertar a bolsa, notei que a respiração
melhorara.
— Senhora, o ourives — informou Ralifax.
— Conte até dez e aperte. Aperte de dez em
dez segundos — instrui ao rei, que assentiu.
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Desenhei o tipo de agulha que queria, e o


ourives começou a trabalhar no projeto
imediatamente. Em seguida, chegaram as criadas
com a planta que chamaram de Joia da Rainha. Era
a mesma que Joen e eu havíamos ministrado nas
pessoas em seu acampamento. Restava saber se
aplicar o extrato daquela planta direto na veia do
garoto traria o resultado esperado. Contudo, na
situação em que o pequeno Tizã se encontrava, não
conseguiria engolir o remédio.
Quando o ourives terminou a agulha, mais
rápido do que eu esperava porque Ralifax não saiu
do pé dele, era hora de improvisar uma seringa, e
isso foi bem mais difícil do que pensei. Entretanto,
contra todas as expectativas, consegui alguma coisa
que ia ter de servir.
Caro leitor, sei que está curioso para saber
como consegui fazer uma seringa, num contexto
em que o plástico estava longe de existir, na
verdade, o difícil foi ter a ideia, fabricá-la nem
tanto. Basicamente, peguei um saquinho de seda
bem reforçado, no formato de um pequeno
retângulo e amarrei à agulha, espremendo o líquido
colocado no recipiente de tecido, na mesma lógica
de um tubo de pasta de dente. Se você acreditou
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que a seringa foi feita de um modo extraordinário,


no estilo da série antiga Macgyver, na qual o herói
construía uma bomba utilizando um fio de cabelo,
um chiclete e um pedaço de borracha, sinto
decepcioná-lo.
Prosseguindo, enlacei o braço do menino e
procurei por uma boa veia, injetando o extrato in
natura da planta na sequência. Sete observava tudo
atentamente.
— Isso irá salvá-lo? — ele indagou.
— Eu espero que sim.
Mais uma vez, o rei me olhou daquela forma
indecifrável, parecia se orgulhar, como se não
conhecesse muitas mulheres habilidosas. Se a
grande maioria das moças ricas do reino fossem
iguais àquelas que ele mantinha em seu harém, era
perfeitamente compreensível me olhar daquele jeito
esquisito. Aliás, pelo que havia visto até aquele
momento, a culpa era toda dele pela cara de trouxa
que ele fazia.
Quem procura só por aparência, não vê
coração, amigo.
— Pode ir, assumo daqui — falei, quando
acabei de aplicar o remédio.
— Eu quero ficar, enquanto você estiver aqui
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— ele retrucou com uma voz doce.


— Lui tem razão, se você ficar doente, onde
vamos parar?
— E outra coisa, desde quando você o chama
pelo nome? — ele perguntou com aquele olhar
estreito, que eu já havia até esquecido.
A situação não combinava muito com uma
cena de ciúme, mas Sete parecia não ligar muito
para decoro ou aparências. Falava o que lhe vinha à
mente, fosse a hora que fosse.
— A noite será longa. Eu só preciso de dois
empregados que revezem comigo para ajudá-lo a
respirar — esclareci, ignorando-lhe a pergunta.
— Eu posso ficar — ele insistiu firmemente.
— Sei que pode, mas essa doença é altamente
contagiosa, como você pode notar.
— Se é contagiosa para mim, também é para
você — ele continuou replicando.
— Mas a médica aqui sou eu.
Foi até estranho dizer isso em voz alta, mas
era exatamente o que havia acontecido. Eu havia
sido promovida à médica.
— Mas é uma esposa do rei acima de tudo. Se
a minha segurança é importante, a sua também é.
— Você nunca perde uma discussão, não é?
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— indaguei com uma nítida intenção retórica.


— Antes de você chegar, eu não perdia
nenhuma mesmo — ele disse com um sorriso tão
largo que deu até para notar através da máscara de
pano.
Acabei sorrindo também. A substância
aplicada diretamente na corrente sanguínea acabou
reagindo de forma bem mais rápida e, pouco
minutos depois que a apliquei, o garoto já
demonstrou sinais visíveis de melhora. No entanto,
eu o encarava de um jeito bem apreensivo. Uma
ideia não parava de martelar na minha mente.
— No que está pensando, Lin?
— Em nada — respondi tentando disfarçar.
— Não esconda coisas de mim — pediu com
um olhar direto e penetrante.
— De onde esse garoto veio? — perguntei.
Sete fez uma expressão espantada como se a
minha pergunta já tivesse dito tudo. Ele era bem
perspicaz. O rei levantou-se inesperadamente.
— O que eu digo para o soldado na porta? —
indagou bufando.
— Que ainda temos de aguardar, mas que
estou otimista.
— Mas que tipo de resposta é essa? — ele
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disse provocando e sorrindo.


— A única que posso dar por enquanto —
falei, devolvendo o sorriso.
A noite foi difícil como eu havia previsto, mas
pela manhã já pudemos retirar o respirador para lá
de improvisado. Foi um grande alívio, saí do quarto
exausta. Lui aguardava deitado no chão frio.
— Minha senhora...
— Está tudo bem agora. Ele está dormindo.
— Posso entrar para vê-lo?
— Só um pouquinho, deixe-o dormir
tranquilo, sim?
Ele assentiu, abraçando-me em seguida.
— Acho melhor você soltá-la, antes que eu
esqueça que seu irmão está doente naquele quarto e
te mate mesmo assim — esbravejou o rei atrás de
nós.
Lui afrouxou os braços em volta de mim a
contragosto e, sem dizer nada, adentrou no quarto.
Sem muita paciência para discutir, apoiei-me na
mureta, deixando a fatiga me vencer. Sete me
segurou, evitando que eu cambaleasse. Tentei me
desvencilhar, mas nem para isso eu tinha força e
acabei cedendo ao abraço dele.
— Deixe de ser teimosa, está cansada.
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Ouvi ele dizer a frase, mas o som parecia estar


tão longe, quase como em um sonho. Depois disso,
tudo de que me lembro foi de ter sido carregada
como se estivesse flutuando, e do perfume, aquele
perfume que, desde que o conheci, era o meu
tormento. Acordei em minha cama e vi que o rei
estava sentado em uma cadeira debruçado sobre
meu leito, com a cabeça apoiada nos braços,
cochilando. A noite dele também não tinha sido das
melhores.
Ali, dormindo tranquilo daquele jeito,
qualquer uma diria que ele não passava de um
garoto inocente, suspirando pela primeira
namorada, com a qual sonha em ter a casa ideal e o
casamento perfeito. Que fica se imaginando em
alguma praia brincando com a esposa, os filhos e
um cachorro.
Quem diria que a imagem dele dormindo não
combina nada com o seu currículo, principalmente
com o histórico.
Da forma como ele estava debruçado, eu não
podia me mover um milímetro sem acordá-lo.
Fiquei sem ter a menor ideia do que fazer. Não que
ele não merecesse ser despertado com uma bela de
uma sacudida bem dada, mas seria cruel acordar
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alguém, parecendo desfrutar de um soninho tão


gostoso. Até mesmo ele. Resolvi ficar olhando para
o seu rosto mais um pouco. Senti um grande alívio
por não ter um canetão por perto. Se eu tivesse um,
com certeza, não ia conseguir conter a vontade de
cometer uma travessura. Pelo menos um bigode, eu
ia acabar fazendo, correndo o risco de ser jogada
numa cela pelo resto dos meus dias ou coisa pior.
Não que eu fosse do tipo de pessoa que perde
o amigo, mas não perde a piada. No entanto,
existem algumas oportunidades na vida que nunca
mais voltam. Por sorte, o rei não me fez esperar
muito. Logo despertou, como quem não resistiu à
vontade de cochilar só por dez minutinhos. Queria
tanto que ele tivesse babado para, pelo menos isso,
eu aproveitar e usar em alguma hora oportuna.
Mas, daquela vez, ele não tinha feito a minha
vontade.
— Você conseguiu descansar um pouco? —
ele indagou com um sorriso.
— Acho que sim. Quanto tempo eu dormi?
— Não muito, talvez umas três horas só.
— Preciso ver como está o garotinho — eu
disse, tentando levantar.
— Ele está bem, não se preocupe.
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— E já sabe alguma coisa sobre a família ou


da situação de onde ele veio?
— O mensageiro ainda não retornou.
Nesse instante, ouvimos a voz de Ralifax na
porta.
— Meu senhor, acabaram de informar, o
animal que trouxe o menino está morto, o que
devemos fazer?
— Entre, Ralifax — ordenou o rei.
O servo adentrou no quarto e fixou seu olhar
em mim, assim como o rei. Pareciam esperar de
mim uma posição.
— O animal tem de ser cremado — avisei,
abaixando o olhar e pensando em como aquela
bactéria, de fato, era poderosa.
— Você ouviu sua senhora — impôs o rei,
também parecendo preocupado com a seriedade do
problema.
— Agora mesmo — obedeceu Ralifax, saindo
na sequência.
Sete e eu nos dirigimos até o quarto no qual
estava hospedado o pequenino. Ainda nem
havíamos chegado ao aposento, quando Lui saiu de
lá desesperado, vindo correndo em nossa direção,
assim que me viu.
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— Minha senhora, por favor...


— Meu rei! — chamou outra voz, ao longe.
Seguimos alguns passos em direção ao novo
chamado para saber o que havia ocorrido, quando
presenciamos atordoados o mensageiro no portão
despencar de cima de sua montaria. O que quer
estivesse acontecendo fora dos muros daquele
palácio, era pior do que se poderia supor.

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Último Sorriso

Depois de examinar aquele homem, fiquei


satisfeita por saber que não precisaria ser entubado
como o menino. No entanto, sua febre alta
reclamava pelo extrato da planta imediatamente.
Resolvi aplicar direto na veia em busca de um
resultado rápido. Na sequência, pedi ao ourives
para confeccionar uma nova agulha, agora curva,
para suturar. O cavaleiro havia aberto um rombo na
testa por causa da queda.
— Minha senhora, minha família — disse Lui,
tão logo consegui ouvi-lo.
— Tizã disse alguma coisa? — perguntei.
— Sim. Praticamente todos na casa de meu pai
estão doentes, até os criados. Eu vou para lá,
imediatamente. Peço que venha comigo.
— De jeito nenhum — interpelou o rei.
— Sete... — comecei, olhando bem nos olhos
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dele, — essa doença é altamente contagiosa, se se


espalhar sem controle sabe quantos podem morrer?
Você ainda quer um país para governar?
— Já sabemos a cura. Outros podem ministrá-
la, não precisa ser você — ele contestou resoluto.
— Mas muitos podem estar como Tizã.
Aquele procedimento só funciona se feito
corretamente — rebati.
Ele bufou sem argumento.
— Nem sei por que estamos discutindo isso.
Eu tenho de salvar as vidas dessas pessoas — falei.
— Ralifax, mande preparar a carruagem real
— ordenou o rei.
— Não preciso de tudo isso.
— Você vai, eu vou. Sem discussão.
— Ficou maluco. Qual parte de “estamos indo
a um lugar cheio de uma doença contagiosa”, você
não entendeu?
— E que parte de “você não sai daqui sem
mim”, você não entendeu? — ele retrucou com
aquele olhar estreito.
Ele deve ter passado duas vezes na fila de
distribuição de teimosia, viu. Aff...
Naquela mesma tarde, já estávamos com tudo
pronto para partir. Fiz uma mala médica com tudo
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o que vi pela frente, tudo que pudesse me ajudar a


improvisar algum instrumento útil. Contudo, havia
um limite até para a minha criatividade. Eu só
desejava não necessitar de nada que não pudesse
construir com os cacarecos postos na mala.
Queria poder dizer, o rei desistiu na última
hora, mas, para a infelicidade geral dos meus
neurônios, ele, novamente, diga-se de passagem,
não fez a minha vontade. Acabamos viajando
juntos na sua luxuosa e morosa carruagem. Eu não
via a hora de chegar, mas Sete parecia bem à
vontade, nem vendo o tempo passar. Lui ia a cavalo
com a escolta. Procurei observar a paisagem para
ver se aprendia alguma coisa com a viagem,
entretanto, não atravessamos nenhuma cidade,
tampouco povoado.
Vi, tão somente, quilômetros de horizonte um
pouco mais verde do que aquele vislumbrado
quando viera da casa de Joen para o palácio. Era até
estranho viajar outra vez.
Várias horas depois, chegamos à casa da
família de Lui, e era bem mais luxuosa do que
havia imaginado. Assim que entramos, não vimos
muitos criados perambulando nem muitas pessoas
circulando. O lugar parecia quase uma cidade
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fantasma. Contive o ímpeto de Lui de sair correndo


à procura de alguém, pedindo para colocar a
máscara e as luvas improvisadas. Eu havia
confeccionado várias delas no caminho.
Quando me certifiquei de que todos estavam
relativamente protegidos da bactéria, saímos em
busca das pessoas, e como temíamos, muitas
estavam acamadas, inclusive os pais e os outros
irmãos de Lui, exceto a mais nova. Comecei a
selecionar os doentes. Os que não tinham uma febre
tão alta, instruí os poucos criados sãos a ministrar
do remédio via oral. Os mais febris, eu aplicava o
extrato direto na corrente sanguínea. A família de
Lui encontrava-se bem debilitada, no entanto, sua
irmãzinha mais nova pulou de alegria ao vê-lo em
casa. Ela era única da família a escapar da doença,
e me peguei pensando se havia alguma razão
especial para sua condição saudável.
Quando a viu, Lui a abraçou com tanto
carinho, sem soltá-la por pelo menos dez minutos.
Não consegui conter o sorriso ao ver a cena.
Parecia um bálsamo naquele oceano de tristeza e
apreensão. Acabei me aproximando deles.
— Não se preocupe, seus pais e irmãos ficarão
bem logo. Tizã também está no palácio se
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recuperando — falei à pequenina.


Ela deixou o abraço de seu irmão e ficou
olhando para mim por alguns minutos e sorriu.
— Você trouxe uma noiva tão diferente, linda
e curandeira também, mano. Sabia que você ia se
casar com melhor garota do país — ela afirmou a
Lui, sorrindo e o abraçando em seguida.
Lui corou e eu também, embora não fizesse a
menor ideia do porquê de eu ter ficado sem graça.
Talvez tenha sido o modo direto com o qual ela
soltou aquela declaração inocente. Entretanto, teve
uma pessoa na sala que não apreciou nadinha da
fala da menina. O rei se aproximou da garotinha.
— Você não acha que a senhorita médica
ficaria muito melhor se fosse esposa do rei? — ele
perguntou com uma cara interesseira.
— Não! O rei já tem um monte de esposas. A
médica tem que ser esposa do meu irmão —
decretou, aconchegando-se nos braços de Lui em
seguida.
Soltei um gargalhada tão alta e o som ecoou
pela sala. Tentei conter o riso depois de perceber
que minha atitude não combinou nem um pouco
com o silêncio sério do recinto. Lui também tentava
conter o riso, o que acabou por deixar seu rosto
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todo vermelho.
Às vezes o raciocínio de uma criança é,
simplesmente, extraordinário.
Sete ficou lá parado sem ter o que dizer.
Derrotado por uma menina, a qual aparentava não
ter mais de cinco anos. Claro, não pude evitar ficar
olhando para a cara de tonto dele com a mão na
boca, na tentativa frustrada de esconder que eu
estava rindo até a alma.
— Quem puxou seus olhos? — a pequeninha
disse olhando para mim.
— Deus, eu acho — respondi sorrindo.
— É bonito — ela elogiou alegre.
— Obrigada.
— Quando meus pais melhorarem, você e meu
irmão vão se casar?
— Yuren! — repreendeu Lui.
— Que tal esquecer um pouco essa história de
casamento — interrompeu o rei.
A pequena Yuren olhou para Sete por alguns
instantes e depois voltou-se para mim.
— Acho que o grandão também quer se casar
com você, mas o meu irmão é mais bonito —
declarou com tanta sinceridade que foi impossível
não ceder ao encanto.
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Gargalhei novamente. Já fazia algum tempo


que eu não ria tanto daquele jeito.
— Mas você não acha seu irmão muito jovem
para se casar? — indaguei ainda rindo, só para ver
a reação dela porque eu não sabia ao certo a idade
de Lui, mas devia estar em torno dos trinta, talvez
um pouco mais jovem do que pensei, tendo em
vista a idade de Yuren.
— Não. Já passou da idade. Papai disse que se
Lui se casar, ele deixará o exército e virá para casa
— ela respondeu abraçando-o novamente.
— Ah, está explicado — falei, olhando para
Lui.
— Senhora, por favor... aqui... — saltou uma
voz ao longe.
— Eu tenho que ir agora — falei acariciando
seus cabelinhos castanhos claros.
— Ela é linda, não a deixe escapar — ouvi
Yuren dizer a Lui assim que saí.
Balancei a cabeça, sorrindo. Eu não convivia
muito com crianças, então até havia esquecido de
como elas podem ser engraçadas e revigorantes.
Nem quis olhar para a cara do rei porque ele era o
único que parecia não estar se divertindo.
Quando todos já estavam medicados, fui até a
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cozinha e comecei a ferver as agulhas que eu


levara. Havia sido um alívio não ter precisado do
respirador.
— Melhor você beber um pouco disto — disse
Lui, estendendo um copo na minha direção.
Parecia um chá.
— Obrigada — falei aceitando.
— Espero que Yuren não a tenha deixado
constrangida, minha senhora.
— Pode cortar essa de minha senhora. Me
chame de Lin — falei sorrindo, afinal eu o via
como amigo.
Lui sorriu. Eu não sabia exatamente o que ele
ia me dizer quando Tizã chegou ao palácio.
Naquela hora acabei achando que seria algo do tipo
“romântico”, mas poderia não ser. Talvez ele só
estivesse com pena da minha situação e, por isso,
ofereceu-se para me ajudar.
— Eu queria muito chamá-la de um jeito tão
íntimo assim, mas seria o mesmo que assinar uma
sentença de morte — ele respondeu, tentando
sorrir.
O pior, ele tinha toda razão.
— Obrigado por ter vindo aqui — continuou
enfim.
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— Não precisa agradecer — eu disse,


balançando a cabeça.
— Para onde pretende fugir? — Lui indagou.
Volvi meus olhos espantada por ele tocar
nesse assunto tão de repente.
— É melhor não falarmos disso agora —
respondi, deixando a cozinha.
— Só me diga para onde.
Voltei-me para ele e o encarei.
— Para o meu mundo.
— Seu mundo? — indagou com uma
expressão confusa.
— Sim. O mundo azul.
Lui arregalou os olhos e fitou-me por alguns
minutos. Parecia assustado demais para saber o que
dizer, acabei por ficar desconfortável diante
daquele silêncio. O meu improvável amigo virou-se
sem dizer nada e acabei deixando a cozinha. Não é
todo dia que alguém descobre estar, por tanto
tempo, em contato com um extraterrestre, não é?
Era melhor ele ficar com os pensamentos dele.
Quando já estava à porta, deparei-me com o rei. Ele
olhou para mim, depois para Lui, que também o
encarou.
— Eu não posso deixar você sozinha cinco
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minutos, sem que o gavião fique te rondando? —


deduziu Sete, com a sobrancelha arqueada na
minha direção.
— Está esquecendo esses instrumentos, Lin —
disse Lui.
Virei na direção dele bruscamente. O surto de
coragem repentina era surpreendente. Ele estava
resoluto.
— Quer morrer, soldado? Embora possua uma
alta patente, ainda posso arrancar a sua cabeça —
disse o rei.
— A senhora me autorizou — informou Lui,
olhando para mim.
Muito esperto.
Sete virou-se para mim indignado como se
quisesse saber se o que o ele dizia era verdade.
— Autorizei mesmo — falei sem rodeios.
— E por que eu não? — indagou o rei
encolerizado.
— Será que é porque faço isso para quem eu
quero? — questionei como se fosse a coisa mais
óbvia no mundo porque, de fato, era a coisa mais
óbvia do mundo.
Lui sorriu. Entretanto notei que o sorriso dele
não exalava apenas satisfação por ter vencido o rei.
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Havia algo mais. Provavelmente, eu ia me


arrepender se tentasse decifrá-lo. Então, decidi
continuar seguindo meu caminho com Sete
resmungando no meu ouvido.
No dia seguinte, muitos doentes já haviam
melhorado. Os irmãos de Lui deixaram a cama e
brincavam alegremente com ele, como se
comemorassem sua vinda para casa, depois de um
longo tempo de espera. Yuren era pura felicidade e
Lui parecia ter um carinho todo especial pela
caçula. Era estranho ver aquele lado de irmão
coruja dele, apesar de ser o mais velho da tropa.
Estava tão concentrada vendo os irmãos
brincando e acabei me lembrando da época em que
eu quis tanto um irmãozinho, o qual, no fim, não
veio. Quando dei por mim, Sete já estava me
segurando pelo braço e me puxando para o outro
lado da casa.
— Já pode me soltar agora — protestei.
— Não acha que já acabamos nosso trabalho
por aqui e podemos voltar? Todos estão
convalescendo e você não é mais necessária — ele
despejou bicudo.
Acabei achando graça do jeito dele.
— Você tem razão. Só a mãe de Lui ainda tem
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um pouco de febre. Assim que a febre dela baixar


de vez, podemos ir. Está bem assim? — concordei
para ver se ele sossegava.
Sete sorriu.
— Direi ao soldado que está dispensado por
um tempo para ficar com a família, já que ele está
tão feliz aqui.
Ele falava de um jeito tão triunfante que o
ataque repentino de bondade não me parecia ser
totalmente altruísta.
Bom. Tanto faz. Aposto que Yuren vai ficar
muito feliz. Então, vamos deixar assim.
Ao cair da tarde, a febre da mãe de Lui cedeu
completamente e ela quis levantar, sendo impedida
por seu marido. Concordei com ele, lembrando
sobre o repouso ser fundamental para a recuperação
completa. Ela assentiu a contragosto. Em pouco
minutos, a cama estava rodeada de crianças e a mãe
de Lui se sentiu revigorada pela companhia dos
filhos. Era uma imagem linda. Suspirei de
felicidade, apesar de saber que, muito
provavelmente, eu não voltaria a abraçar meus pais
daquela maneira.
Comecei a pensar, talvez, meu propósito já
não fosse mais procurar por minha própria
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felicidade, e sim pela dos outros. Aliás, muito


provavelmente, minha felicidade já fugira de mim
quando eu tinha catorze anos. Embora eu tivesse
passado os últimos dez anos negando isso. Depois
de retornar de minhas divagações e observar um
pouco, percebi que Yuren não estava em torno da
cama com os demais. Nem Lui tinha vindo ao
quarto.
— Minha senhora, depressa... — ouvi uma
serva chamar.
Corri para ver o que estava acontecendo e
Yuren vinha nos braços de Lui ensopada pela febre.
Toquei sua testa e senti a temperatura alta demais.
Assim que acabei de tocá-la, a pequenina começou
a convulsionar.
— Meu Deus, minha senhora, o que está
acontecendo? — Lui perguntou aflito.
— Dê ela para mim — pedi.
— Minha senhora... — continuava Lui em
volta de mim.
— É uma convulsão febril — respondi
correndo.
— O que eu faço? — interpelou Lui com a
voz tomada pela angústia.
— Quero água fria, minhas coisas e o extrato
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da planta agora! — berrei a todo volume, fazendo


com que se movessem mais rapidamente.
Com meu brado, todos abandonaram o torpor
e começaram a se mover em busca do que eu havia
pedido. Por minha vez, passei a despir a garotinha
e, em seguida, percebendo que não trariam a água a
tempo, comecei a andar com ela em meus braços à
procura de algo para baixar a temperatura.
Quando vi no jardim uma fonte de água, corri
para lá e comecei a banhar Yuren. Meus braços e
pernas tremiam, mas lutei com todas as forças para
me manter firme. Só parei quando a convulsão
enfim se rendeu. Entretanto, mesmo sem
convulsionar, a febre dela mantinha-se aguda e,
muito embora a água do banho estivesse bem fria,
não havia feito a febre diminuir tanto.
Corri, então, com a menina para o primeiro
quarto disponível e só, então, notei Lui e Sete
gravitando em torno de mim. Peguei minha seringa
improvisada e apliquei o remédio. Contudo, ao
verificar novamente a temperatura, notei o sangue
escorrendo dos ouvidos da pequena.
Não pode ser uma mutação dessa maldita
bactéria. Não, meu Deus! Por favor...
Lui se descontrolou e Sete pediu aos
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empregados para que o retirassem do quarto. Medi


a pulsação e notei o franco declínio. Coloquei
minhas duas mãos em meu rosto, quando senti o
peso da impotência vir sobre meu corpo como uma
rajada de vento gelada e cortante. Yuren abriu os
olhinhos ainda fracos e olhou para mim.
Quando me viu, abriu um sorriso, o qual não
combinava com o rostinho pálido. Depois, suas
pálpebras foram se fechando lentamente como se
estivesse sendo vencida por um sono gostoso, fruto
do cansaço de um dia inteiro de brincadeiras.
Embora seus olhinhos tivessem se fechado por
completo, o sorriso continuou em seus lábios.
Nesse momento, percebi a parada
cardiorrespiratória. Sem duvidar nem por um
instante, abaixei a máscara que eu havia posto na
correria.
— Everlin, não! — interpelou Sete.
— Se eu não fizer nada ela vai morrer! —
esbravejei.
Sem dar ouvidos ao apelo, levantei a cabeça
da pequena Yuren, abri sua boca e coloquei meus
lábios contra os dela, soprando. Depois me levantei
e comecei a fazer a massagem cardíaca. Sete
pareceu ficar sem reação. Nem sei quantas vezes
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repeti o procedimento. Estava obcecada com o


desejo de fazer a menina voltar.
Quando meus braços já não respondiam mais
meus comandos, de tão exauridos, as lágrimas
reprimidas vieram à tona como se uma represa
tivesse se rompido dentro de mim. Comecei a
chorar de um jeito descontrolado. Não importava o
que eu fizesse, estava diante da primeira paciente
que eu havia perdido. Uma menininha linda, alegre
e com toda uma vida pela frente.
Meu corpo estava cedendo à gravidade,
quando senti braços fortes me segurando e, na
sequência, levantando-me como se me fizessem
flutuar. Era uma sensação familiar. Já havia sentido
antes. Contudo, eu chorava tanto, estava tão
inconformada que resolvi não ligar para atritos e
desavenças muito menos para minhas convicções
teimosas. Era hora de ceder um pouco, porque eu
precisava daquilo, daquele aconchego.
Só resolvi aproveitar o perfume maravilhoso
que ele sempre exalava, deitar minha cabeça
naquele ombro largo e o deixar me levar para onde
quisesse. Percebi que Sete sentou-se comigo em
algum lugar. Depois me aninhou em seu peito e
ficou me ninando carinhosamente.
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Posteriormente, senti os lábios dele em minha


testa e nos meus cabelos, bem como a pele do seu
rosto acariciar suavemente o meu. Permiti. Como
eu disse, precisava desesperadamente daquele
conforto porque, testemunhar o último sorriso de
Yuren, havia me despedaçado por completo. Nem
vi o que estava fazendo, só o abracei e fiquei ali
com ele não sei por quanto tempo.

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Segredo

Depois de chorar, praticamente, todo o líquido


do meu corpo, acabei adormecendo no colo do rei.
Quando acordei, a família de Lui já havia feito
todos os preparativos para o enterro da pequena
Yuren. Eu ainda cambaleava, pois meu corpo
estava fraco devido ao forte impacto emocional do
dia anterior.
Andei um pouco pela casa, e logo Sete veio ao
meu encontro. O lugar que, quando chegamos,
parecia uma cidade deserta, agora, estava cheia de
vida e de gente circulando por todos os cantos. O
rei me apoiava pelo caminho e, em seguida,
entregou-me às criadas, ordenando que ajudassem a
me banhar. Após o banho, comi alguma coisa e
senti as minhas forças retornando devagar.
Os pais de Lui me agradeceram formalmente

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pelo empenho dedicado para vencer aquela doença,


mesmo que estivesse estampado em seus nos rostos
o enorme sofrimento pela perda da caçula. Até os
empregados passavam por mim, demonstrando um
enorme respeito. Mal sabiam eles que deviam, na
verdade, agradecer ao Hope e seu irmão Shrek, os
quais estavam a muitos quilômetros de distância
dali, com a Joen e Jerrá.
Prestamos nossas últimas homenagens a
pequena Yuren, e nada parecia consolar Lui. Tudo
aquilo era triste demais, sem dúvida, mas, para o
bem ou para o mal, a dor faz parte de nossas vidas,
e também tem um propósito, assim como todas as
coisas.
Yuren foi sepultada aos pés de uma árvore
magnífica, a qual me lembrava muito a cerejeira da
nossa casa de férias. As plantas podem não falar,
mas, se você prestar bem atenção, elas emitem uma
sensação reconfortante, trazendo-nos à memória a
existência de algo maior que nós. E por isso viver
é, simplesmente, sensacional. Talvez seja esse o
significado da morte: a dimensão do valor da vida.
Todos os presentes ao enterro haviam
retornado à casa de Lui, mas eu ainda permaneci
sentada aos pés daquela árvore linda de flores tão
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perfumadas. Sete sentou-se ao meu lado.


— Você está bem? — ele perguntou.
Balancei a cabeça afirmativamente, porque a
voz não saiu. A essa altura ele já compreendia
meus gestos. Ficamos ali um tempo, sentido a brisa
fresca e olhando aquele horizonte verde e distante.
— Eu devia fazer um penteado em você com
essas flores — propôs, sorrindo e correndo seus
dedos por meus cabelos.
Detive a mão dele de um jeito meio brusco e
levantei-me subitamente. Ele ficou olhando para
mim surpreso com minha reação.
— Nem pense nisso — afirmei apertando forte
minha pulseira inconscientemente.
Ele fixou-se no meu braço, observando
demoradamente o meu gesto involuntário. Depois
passou a me encarar com aquela expressão
indecifrável.
Acabei não querendo conversar mais e
disparei em direção à casa.
— Lin! — bradou o rei.
— Não me chame assim — esbravejei de
volta.
Continuei correndo até chegar à casa da
família de Lui e me enfiei no canto mais escondido
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com o intuito de evitar que Sete me encontrasse.


Não queria ficar perto dele. Pelo menos, não por
enquanto. Em meu momento de fragilidade, eu
aceitara suas carícias, e isso me assustava. Procurei
me distrair, ensinando primeiros socorros a alguns
empregados e apreendendo a função de algumas
ervas medicinais que eu desconhecia.
Após um tempo, comecei a arrumar minhas
coisas, pois, a qualquer minuto, o rei convocaria
nossa retirada. Aproveitei a última oportunidade
para inspecionar o curral dos animas da família de
Lui. Até os animais melhoraram depois da
ministração da medicação e havia vários espécimes
diferentes naquele lugar.
— A senhora está bem? — ouvi uma voz atrás
de mim.
— Então, você me chamou de Lin só para
provocar o rei — falei, adivinhando que a voz era
de Lui.
Ele deu um sorriso tímido no momento em
que o fitei.
— Sou eu quem deve perguntar se você está
bem — soltei, abaixando o olhar.
— Vou ficar.
— Sinto muito. Eu fiz tudo...
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— Eu sei — interrompeu-me.
Nesse instante, chegou um homem a cavalo no
portão. Lui e eu corremos até ele. Era um do tipo
que eles denominavam de “semelhantes”.
— Meu senhor, eu soube de uma mulher, uma
esposa do rei, curando doentes da praga.
— Praga? — indaguei.
— Sim, minha senhora. Já chamam de “o
terror oculto”. A cidade está tomada disso. Dizem
que outros povoados também.
— A cidade é próxima — informou Lui.
— Eu tenho de ir até lá.
Olhei para a casa de Lui. Se eu discutisse isso
com Sete, eu tinha a mais absoluta certeza que
desta vez ele não iria me deixar ir. Ele tinha visto o
risco que corri para tentar salvar Yuren.
— Sem o rei saber, do contrário... —
acrescentei, fixando-me em Lui.
— Ele não vai deixar você ir — completou o
comandante.
Assenti.
— Eu irei com você — asseverou, resoluto.
— Pode ser perigoso.
— Para todo mundo. Eu vou buscar suas
coisas sem que ninguém perceba. Espere aqui.
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Alguns minutos depois, Lui voltou com


minhas coisas, bolsas cheias de provisões, bem
como com a planta milagrosa. Dois servos vieram
para levar o homem já em estado febril.
— Nenhuma palavra, entenderam? — ordenou
Lui aos servos.
— Sim, meu senhor.
Lui e eu partimos em nossos cavalos rumo à
cidade. Meu ex-professor era um exímio cavaleiro
e eu tinha aprendido um pouco. Acabei
agradecendo a Deus pelas aulas de hipismo, graças
a isso não demoramos muito a chegar.
Cavalos são muito mais velozes do que havia
pensado.
Assim que entramos, encontramos a rua
principal totalmente deserta. Não era exatamente
uma cidade, não no meu conceito, mas era um lugar
grande, com muitas casas.
— O que devemos fazer, minha senhora? —
indagou, parecendo não saber por onde começar.
— Primeiro, temos de descobrir quem está
doente e quem não está.
— Entendido.
Resposta típica de um militar.
Lui começou a mobilizar a população a fim de
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organizarmos a triagem. Para aqueles que não


apresentavam os sintomas, ensinei como deveriam
ser feitas as máscaras e as luvas. Em seguida
perguntamos pelas pessoas mais debilitadas. Na
primeira casa a qual visitamos, havia um senhor,
sacudindo uns galhos de árvores sobre o doente.
Ele era do tipo “diferente”.
— O que estão fazendo aqui? Não podem ir
entrando — interpelou aquele senhor.
— O senhor precisa colocar uma máscara
como esta e luvas — expliquei com a maior
paciência do mundo.
— O que uma mulher sabe sobre o que se
precisa ou não fazer? — contra-argumentou aquele
senhor arrogante.
Perdi a paciência.
— Tirem essa cara daqui, pelo amor de Deus.
Aquele homem cuspiu um monte de asneiras
enquanto Lui tentava colocá-lo para fora. Fui até o
doente e constatei seu sofrimento para respirar.
Necessitava ser entubado. Lui nem havia terminado
de tirar o “chato” da casa, quando o chamei de
volta para ajudar. Ele retornou correndo.
— O que eu faço?
Expliquei assim como ao rei no palácio.
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Entretanto, desta vez, não iriamos realizar aquele


procedimento em um garotinho, e sim em um
homem adulto e aparentemente forte.
Provavelmente ia ser bem mais complicado.
— Isso é uma heresia. Essa mulher viola o
corpo dos pacientes — começou a bradar aquele
senhor arrogante.
Firmei minhas mãos e, sobretudo, minha
mente como em uma batalha. Não podia deixar
nenhum mosquito atrapalhar minha concentração
porque a vida de outra pessoa dependia disso.
Quando terminamos de pôr o tubo na garganta do
paciente, outras pessoas se aproximaram para
ajudar, numa demonstração de que a nossa
mobilização estava começando a surtir efeito. Em
seguida, injetei o extrato da planta e dei instruções
aos auxiliares recém-chegados acerca dos cuidados
e procedimentos a serem tomados.
— Vamos Lui, não temos tempo a perder.
Temos de ir à próxima casa.
Começamos a medicar os doentes e a ensinar
os voluntários. A cidade era grande e, pelo jeito,
estava mesmo tomada, assim como estivera a casa
da família de Lui.
— Precisamos de mais Joias da Rainha —
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avisei para Lui.


— Já mandei que procurassem por mais. Essa
planta costuma crescer próximo à água. Por sorte
temos rios nessa região — ele respondeu sorrindo.
Ele nem havia se recuperado da morte da irmã
caçula, mas estava ali ajudando e dando tudo de si.
Lui era forte, tinha uma pele clara e um vasto
cabelo negro, em um perfeito contraste. Seus olhos
também eram de um negro tão profundo como duas
pérolas negras. Ele não era tão belo quanto o rei,
mas também tinha seus encantos. Se fosse um
estudante da minha faculdade, seria um bem
popular.
Quando já tínhamos visitados várias casas,
vimos uma comoção se formar na rua. Aquele
homem encrenqueiro estava fazendo um escândalo
e incitando as pessoas contra nós, contra mim, na
verdade.
— Escutem o que eu digo. Essa mulher está
molestando o corpo dos pacientes. Introduzindo
uma substância estranha e não sabemos o que é —
ele bradava para o aglomerado de pessoas que se
formou no centro do povoado.
— Qual o motivo dessa revolta toda? —
indaguei a Lui.
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— Curandeiros costumam possuir certo status


na cidade e na estrutura do governo. Ele já deve
estar há dias tentando curar alguém sem sucesso.
— Curandeiro? Esse homem não é curandeiro
nem aqui nem na China.
Lui olhou para mim sem entender a piada.
Não tive tempo para explicar. Senti meu
coração se enfurecer de uma maneira que eu já não
podia controlar. Comecei a abrir caminho pela
multidão, até chegar ao centro da confusão.
— Ei, você! — bradei.
Ele se voltou na minha direção.
— Você é tão mesquinho que prefere ver as
pessoas dessa cidade morrerem a perder sua mísera
reputação? Esperneie se quiser. Sente e chore, mas
nada do que você fizer ou disser vai me fazer parar
de ajudar o povo — esbravejei na direção dele e,
provavelmente, a fúria dentro de mim ficou visível
em meu semblante, porque várias pessoas recuaram
só com meu olhar.
Até aquele idiota, que havia provocado toda a
confusão, não conseguia pronunciar uma palavra
sequer. No instante seguinte de eu ter acabado de
desferir minha raiva contra aquele homem, para lá
de “chato”, todos notaram, inclusive eu, uma
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comitiva de cavaleiros bem próxima a nós e, tão


logo reconheci quem os chefiava, senti o peso da
encrenca na qual eu havia me metido.
— Majestade... — cumprimentou o projeto de
curandeiro e, pelo jeito, também era um baita puxa-
saco.
Lui veio até mim e também aguardava ser
convocado a dar explicações. Sete desceu de sua
montaria e, simplesmente, ignorou a chuva de
cortesia forçada que emanava daquele pedante,
vindo direto ao meu encontro.
Respirei fundo.
Assim que ele ficou frente a frente comigo,
retirou o capacete, o qual cobria parcialmente o seu
rosto, e todos se curvaram imediatamente.
— O que está fazendo aqui? — indagou.
— Eu vim ajudar essas pessoas — respondi,
olhando diretamente para ele.
— E quem permitiu?
— Eu sou um ser que raciocina, posso muito
bem me autodeterminar sozinha — rosnei para ele.
— Falaremos disso depois. Por que essa
bagunça? — bradou Sete em direção ao povo
aglomerado.
— Meu senhor — começou o falso curandeiro
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— essa mulher veio aqui e com métodos hereges


está impondo mais sofrimento aos doentes —
finalizou, destilando veneno.
— Refira-se a minha esposa como “essa
mulher” novamente e vai perder sua cabeça —
estrondeou o rei para o projeto curandeiro, com
aquela mesma fúria implacável demonstrada na
reunião, que presenciei às escondidas.
Acabei ficando até com pena do pobre
coitado. Depois de Sete terminar, de tão branco, o
“chato” parecia até transparente.
— Do que precisa? — prontificou-se o rei,
voltando-se para mim.
— De mais pessoas para ajudar e de alguém
que não atrapalhe — falei, olhando para o fantasma
do curandeiro.
— Vocês ouviram — ordenou o rei.
Quando a tarde caiu, muitos pacientes já
apresentavam visível melhora. Fomos em quantas
casas podíamos, mas, ao final do dia, eu estava
exausta e teria de visitar as outras residências
somente no dia seguinte. Consegui um lugar para
tomar um banho e depois me sentei numa poltrona,
a qual encontrei “dando sopa”. Minhas pernas
tremiam de tão cansadas. Lui estendeu um pratinho
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com um lanche em minha direção e um copo de


chá.
— A senhora não comeu nada. Devia comer
um pouco. Recuperar as forças — sugeriu
carinhosamente.
— Obrigada.
Mordi meu lanche.
— Você já foi repreendido? — perguntei.
— Ainda não. Mas receio não escapar ileso
dessa.
— Não se preocupe, falarei com ele.
— Não é comigo que me preocupo, minha
senhora.
— Senhora, o rei está requisitando sua
presença na tenda dele — interpelou um soldado.
— Na tenda dele? — retrucou Lui.
— A senhora é uma esposa do rei, não? O que
tem de estranho? — indagou o soldado surpreso.
Lui cerrou os punhos com tanta força. Parecia
estar se esforçando ao máximo para manter
compostura.
— Está tudo bem, Lui. Ele, provavelmente,
vai reclamar alguma coisa no meu ouvido, mas, no
fim, sabe que essas pessoas precisavam de ajuda —
concluí na tentativa de tranquilizá-lo.
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No entanto, mesmo depois do que eu disse, ele


não pareceu nem um pouco calmo. A tenda de Sete,
para passar uma noite, parecia quase a casa inteira
de Joen. Quando entrei nela, logo notei uma mesa
montada com um jantar completo.
— Mandei preparar para você. Você não
comeu nada ainda — Sete convidou, sorrindo.
Considerei ser melhor não comentar que Lui
havia me trazido um lanche. Naquela hora, o mais
inteligente era deixar a onça quieta. Sentei-me e
comecei a me servir, afinal estômago é como
coração de mãe, sempre cabe mais um pouquinho.
A cama, na qual ele estava sentado, era
gigantesca. Caberia uma família ali e ainda sobraria
espaço.
Para que uma cama tão grande só para uma
noite, no máximo duas? É... um rei tem mesmo suas
regalias.
— Você não vai comer? — indaguei.
— Eu já comi. Saí às pressas à sua procura e,
só depois de te achar, notei que estava faminto —
explicou.
Continuei a refeição sem ter argumento algum.
— Você podia ter pelo menos me consultado.
— Você teria deixado eu vir?
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— Claro que não.


Balancei a cabeça.
— Mas com certeza você teria dado um jeito
de me convencer — completou.
Optei por não discutir, até porque não havia
ferocidade em sua entonação, pelo contrário, então
pensei ser melhor deixar como estava.
— Hoje, você dorme aqui comigo — ele
impôs, batendo levemente os dedos sobre a cama
gigante.
Engasguei com o que estava comendo.
— De jeito nenhum — falei, ainda tossindo.
— É sua punição por sair sem me dizer. Não
se preocupe, não pretendo encostar em você, a não
ser que você queira — propôs com aquele olhar
travesso de sempre.
— Nem em sonho — bufei, levantando-me e
largando minha comida do jeito que estava.
Em seguida, caminhei em direção à porta.
— Acho melhor você aceitar sua punição.
Caso contrário, quando voltarmos ao palácio, verá
suas coisas se mudarem definitivamente para o meu
quarto, assim como você — ele avisou
determinado.
Voltei-me para ele e estreitei o olhar.
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Entretanto, Sete me olhou de volta com uma mirada


firme, e não tive a menor dúvida de que quem sairia
perdendo “nessa” seria eu.
Outra vez ele me fazia escolher: ou a brasa ou
a fornalha.
Engoli em seco. Ele sorriu com aquela
expressão provocativa e triunfante, esbanjando
felicidade acima de tudo.
— Você vai calar a matraca se eu ficar aqui
hoje? — perguntei rispidamente
Ele assentiu com um sorriso enorme. Parecia
uma criança prometendo se comportar para ganhar
um videogame Xbox One X, cujo preço não é só
salgado, é uma salmoura.
— Eu volto mais tarde — falei, saindo
bruscamente, antes de ele reclamar de mais alguma
coisa.
Quando saí, notei que muito mais soldados
haviam chegado para montar guarda em volta da
tenda. Pensando bem, passar a noite ali com ele,
com toda aquela gente em volta, definitivamente,
não ia para lista das melhores noites da minha vida.
A noite ia ser longa.
Eu havia prometido passar a noite, mas não
disse que horas iria voltar. Então, quando acabei
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minha higiene pessoal, fiquei sentada vendo aquele


monte de estrelas no céu, enquanto a cidade ficava
cada vez mais silenciosa. Tive esperança de, no
momento em que eu chegasse à tenda, o rei já ter
embarcado em seu navio dos sonhos. Numa viagem
bem distante de preferência.
Esperei o quanto pude e quando achei que
podia chegar lá de mansinho, quando a luz da tenda
já havia se apagado há um bom tempo, e estava
iluminada só pela luz do luar, fui e entrei na ponta
dos pés.
— Você demorou.
— Ainda acordado? — resmunguei.
— Você achou mesmo que eu conseguiria
dormir sabendo que você viria.
— Não. É óbvio que você não iria fazer a
gentileza de facilitar a minha vida. Nem sei por que
tive a remota esperança.
Sete riu.
— Bom, agora que você chegou, posso me
preparar para dormir.
O rei levantou e começou a desamarrar o
roupão.
— O que pensa que está fazendo?
— Eu gosto de dormir completamente nu.
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— Não se atreva.
— Por que você é tão contra me ver à
vontade? — provocou, deixando o roupão cair até a
metade do corpo, expondo os peitorais torneados.
— Sete, acho bom você colocar de volta esse
roupão e deitar nessa cama minimamente decente.
Caso contrário, você nunca mais me verá no seu
palácio enfeitado. Eu juro! — retorqui com os
olhos em chamas.
Ele olhou para mim de uma forma séria.
Depois acabou abrindo um sorriso largo e
espontâneo.
— Vencido em meu próprio jogo — ele disse
enfim, com aquele sorrisinho maroto.
Agora era eu quem o olhava vitoriosa.
— Só a parte de cima então — retrucou.
— Cubra-se agora.
Ele se recompôs e se deitou. Comecei a
colocar entre nós todo e qualquer travesseiro que eu
via na frente, formando uma barreira.
— Este é o seu lado da cama e este é o meu.
Boa noite! — despedi-me, virando do lado oposto
ao dele.
Ele virou-se para o meu lado, repousando a
cabeça no braço, cujo cotovelo estava apoiado na
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cama. Eu estava de costas para ele, mas sentia seus


olhos vidrados em mim de uma maneira, a qual
deixava até minha alma constrangida.
— Será que dá para você sossegar e ir dormir?
— insisti.
— Alguém que realiza um sonho consegue
dormir?
Resolvi deixá-lo “no vácuo”. Eu tinha a
certeza de que se eu remexesse mais, não ia gostar
nada do que iria encontrar. Quem poderia saber o
que se passava na cabeça de jerico dele?
A tenda estava toda iluminada com aquela luz
prateada do luar. A cama era tão macia, e me fazia
ter a sensação de estar boiando em algum lago
calmo. Seria maravilhoso dormir ali se não fosse a
situação.
Ele desfez aquela posição e deitou-se com o
rosto para cima, mirando o teto da tenda.
Ele não pode estar alimentando a remota
esperança de me seduzir hoje, não é? Nem ele seria
tão estúpido de pensar isso, porque, se ele tentar
alguma coisa, sou capaz de acabar com os “países
baixos” dele, sem dó.
— Me conte um segredo — ele disse de
repente.
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Aquele pedido era tão esdrúxulo que me


desestruturou por inteiro. Até virei para ver o rosto
dele.
— O quê? — perguntei incrédula.
— Me conte um segredo — repetiu, fitando-
me com aquela ternura que eu tinha aprendido a
odiar.
Deitei devagar, apreensiva. O pedido dele
havia me pegado completamente desprevenida.
— Conte um você primeiro — falei com o
intuito de ele desistir de vez e ir dormir.
Sete sorriu e fitou um ponto de luz no tecido
da tenda.
— Meu pai não amava minha mãe. Ele a
escolheu porque era a mais bonita do seu harém.
Ela morreu quando eu nasci e, por isso, não me
lembro dela. Ele não estava lá quando ela se foi.
Nem sei se meu pai um dia soube o que é amar uma
mulher. Meu pior medo, desde garoto, era ter esse
mesmo destino. Viver toda uma vida sem saber o
que é o amor. Não passar de uma casca vazia sem
sentimentos como ele — o rei externou com uma
voz triste e nostálgica.
Depois de ouvir o discurso dele, eu não tinha a
menor ideia do que dizer. Tentei balbuciar alguma
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coisa, mas a minha voz não saía. De todas as coisas


idiotas que poderia ter dito, jamais imaginei que me
contaria algo como aquilo. Eu nunca havia parado
para pensar que ele não teve uma família. Ele
sempre se mostrava tão cheio de si, tão
invulnerável.
— Sua vez — lembrou num tom meigo.
Respirei fundo.
— Sinto saudade da casa de férias dos meus
pais. Lá tem uma cachoeira linda, a qual cai sobre
um lago azul esverdeado. Também tem uma árvore
enorme que chamamos de cerejeira. Nela todas as
folhas são flores, e o perfume flutua no vento,
como um convite. Desde os catorze anos não tive
coragem de voltar lá.
— Casa de férias? — ele indagou.
— É. É um lugar aonde você vai, geralmente
uma vez no ano, para descansar.
Ele ficou olhando para o teto da tenda,
pensativo.
— E por que você não teve coragem de voltar
lá?
— Acho que é porque foi lá que vivi os
melhores dias da minha vida. E também o pior. Eu
quis voltar algumas vezes, mas nunca consegui.
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Pensei que, depois de ouvir aquilo, ele iria me


encher de perguntas, mas não. Ficou simplesmente
olhando aquele ambiente prateado pela luz das luas.
Seus pensamentos pareciam bem longínquos.
— Posso te chamar de Lin? Só agora.
— Você vai sossegar e dormir se eu deixar?
— Vou, prometo.
— Tudo bem, então. Só agora.
— Boa noite, minha Lin.
Eu havia deixado ele me chamar de “Lin”, e
não de “minha Lin”.
— Eu não vou responder à altura só porque
quero que você durma, ouviu? Boa noite —
encerrei a conversa.
Depois disso, ele sossegou mesmo.

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Culpados

Acordei no dia seguinte com a claridade


entrando pelos tecidos da tenda. Há tanto tempo eu
não dormia assim tão bem, sentindo até dificuldade
para levantar. No entanto, ainda restavam várias
casas para visitar antes de considerarmos a cidade
realmente livre daquela praga. Então, não poderia
me dar o luxo de atrasar nem que fosse só por
alguns minutos.
Levantei um pouco e levei um choque ao ver
Sete olhando para mim como se contemplasse uma
pintura. A impressão era a de que ele estava ali me
observando há um certo tempo.
— Você dormiu bem? — quis saber o rei.
— Dormi sim — respondi sem graça, virando-
me na cama para poder levantar.
Nesse instante, Sete me abraçou pelas costas,
encostando seu rosto no meu pescoço. Insisti em
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levantar, mas ele me impediu.


— Só mais um pouquinho. Tem mais uma
coisa que não discutimos ontem — ele disse.
— E o que seria? — perguntei sem saber o
que fazer naquela situação.
Ele respirou bem perto do meu pescoço como
se quisesse encher os pulmões com o ar que ficava
em volta da minha pele.
— Não faça isso — pedi, constrangida.
— Eu só preciso sentir um pouco o seu cheiro.
— O que não discutimos? — perguntei,
tentando mudar o foco da conversa.
— Por que aquele soldado teve de vir com
você? — ele perguntou, respirando fundo.
— Alguém tinha de me mostrar o caminho —
respondi, tentando levantar outra vez.
Entretanto, Sete me puxou e me dominou
sobre a cama, mirando-me com aquele olhar sério e
estreito.
— O que eu vou fazer com ele, então?
Ao ouvir aquilo, o encarei e me ergui um
pouco na tentativa de mostrar que não havia me
subjugado por completo.
— O que quer dizer com isso?
— Ele tem que ser punido por sair com você
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sem minha permissão.


— Você não pode fazer isso, eu saí porque
quis — retruquei.
— Por que se importa? — indagou irritado,
libertando-me com um ar espantado e preocupado.
— Porque você não pode sair por aí punindo
as pessoas por minha causa — soltei-me
aproveitando a chance para, enfim, levantar-me.
— Por que se importa tanto, Lin? — reiterou
arfante, beirando ao desespero.
— Eu já disse. Porque você não pode sair
castigando os outros por uma atitude minha —
afirmei sem lhe desviar o olhar.
— Você não... Você por acaso não...
Sete começou a ficar extremamente ofegante.
Parecia nem conseguir pôr em palavras seus
pensamentos. A pergunta simplesmente não saía
dele. Então, acabou desistindo e sentou-se na cama
olhando para porta da tenda, pensativo. Quando
tentei passar pela porta, o rei levantou-se rápido
como um raio e me abraçou. Fiquei sem saber o
que era pior, deixar ele me abraçar ou empurrá-lo,
mesmo seus nervos estando à flor da pele.
— Você não pode, entendeu? — proibiu,
inseguro.
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— Não posso o quê?


— Se apaixonar por outro — respondeu, por
fim.
Eu não sabia se aquele era o melhor momento
para confrontá-lo. Não era justo o que Sete estava
fazendo. Se fosse qualquer garotinha mais ingênua
acreditaria em sua pose de príncipe encantado
morrendo de amores. Mas, para mim, não fazia o
menor sentido. Será que a rejeição tem mesmo todo
esse poder de fazer um homem ficar descontrolado?
Ainda mais para um acostumado a ter tudo? Ele
chegaria tão longe para conseguir satisfazer um
mero capricho? Ou nem mesmo ele tem
consciência de que cismou comigo por capricho e
acredita me amar de verdade?
Por um lado, eu tinha um trabalho a fazer para
com o povo daquela cidade e não tinha tempo de
ficar ali discutindo relação. Por outro, eu também
estava farta e queria pôr um fim naquilo. Talvez
fosse a hora de dizer a verdade. A terrível verdade
que sempre me consumiu e eu, por todos esses dez
anos, quis, desesperadamente, apagá-la de mim.
Tinha plena consciência de que ia doer admitir.
Pela primeira vez na minha vida, ia doer ser justa.
Mas eu seria mesmo assim.
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— Eu já sou apaixonada por outro — admiti,


olhando fixamente nos olhos dele — Não tem lugar
para mais ninguém dentro de mim e, talvez, nunca
tenha.
Sete recuou alguns passos e me encarou com
aquela expressão enigmática. Quando ele se
comportava daquela maneira, era impossível eu ter
uma remota noção do que estava passando por sua
mente. Nessas horas, era como se uma guerra fosse
travada dentro dele. Era muito estranho.
— Isso é o que veremos — ele reagiu, após
retornar dos pensamentos.
Saí pela porta da tenda e vi Lui acomodado
embaixo de uma árvore, bem em frente a ela. Tão
logo coloquei os pés para fora, ele levantou como
se estivesse há um bom tempo esperando por mim.
O rei também saiu pela porta, vindo atrás de mim,
parando bem na entrada assim como eu.
— Você também vai esfregar a verdade na
cara dele como acabou de fazer comigo? —
provocou.
— Quando e se a hora chegar, é claro que sim
— respondi resoluta.
Se Lui de fato sentia algo por mim, eu jamais
me aproveitaria de um sentimento tão bonito. Olhei
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para Sete e ele parecia rir consigo mesmo.


Vai ver falta um parafuso na cabeça dele e
não na minha.
Caminhei em direção à cidade e Lui veio
correndo ao meu encontro. Sete não nos seguiu.
Depois disso, o comandante passou o dia todo me
ajudando, cabisbaixo e sem dizer nada além do
necessário. No meio da tarde, pudemos comemorar
o êxito de nossos esforços, com a doença,
praticamente, sob controle. Sentei-me para esticar
um pouco as pernas e Lui se sentou ao meu lado. À
essa altura, os cidadãos já começaram a retomar
suas atividades. Até as crianças voltaram às ruas,
brincando despreocupadas.
— Fizemos um bom trabalho — falei
retoricamente.
— A senhora fez um bom trabalho.
— Não foi não, fizemos isso juntos — eu
disse, tocando no ombro dele e balançando.
— Se eu lhe fizer uma pergunta, a senhora não
acharia que é insolência de minha parte? — Lui
indagou.
— Não. Pode perguntar o que quiser —
afirmei, sorrindo.
— Ele tocou na senhora? — perguntou na lata.
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Pensei se aquele dia não era o dia dos


confrontos. No entanto, estava cansada demais para
conversas complicadas.
— Não — limitei-me a responder.
— Por que a senhora cedeu?
— Porque a minha escolha era dormir ontem
ou dormir todas as noites enquanto estiver no
palácio. Na minha ótica, parecia a escolha menos
pior.
Lui sorriu.
— A senhora precisa fugir logo.
— Também pensei isso, mas, por enquanto,
não posso abandonar essa gente.
Lui abriu um sorriso largo novamente.
— Comandante, o rei está requisitando sua
presença — chamou um soldado.
Levantei na mesma hora, juntamente com Lui.
— Minha senhora, o rei deu instruções
específicas para não permitir que a senhora venha
junto.
— Não se preocupe, minha senhora. Eu ficarei
bem — tranquilizou-me Lui.
Essa não!
Não era possível Sete ainda querer lhe aplicar
uma punição. Não era justo! Nunca fui dada a ouvir
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conversa alheia. Entretanto, desta vez, aproveitei


que alguns animais, alocados próximos à tenda do
rei, necessitavam de cuidados, e acabei me
aproximando, até encontrar um lugar estratégico de
onde pudesse ouvir a conversa. Se Sete insistisse
em castigar Lui, eu ia ter de me intrometer.
— Mandou me chamar, majestade?
— Sim. Você sabe muito bem que cometeu
um ato de traição. Se minha esposa pretendia sair
sem me consultar, o seu dever era me comunicar
imediatamente.
Lui permaneceu em silêncio.
— Você sabe muito bem, ainda, que, por esse
ato de traição, posso destituir sua família de seu
título e você do comando do meu exército.
Não!
— Entretanto, não posso olvidar que a
intervenção rápida de minha esposa evitou uma
tragédia maior ao povo desta cidade. Intervenção
que só foi possível graças à sua ajuda.
Ufa!
— Por esta razão, desta vez, deixarei de
aplicar-lhe uma punição, mas que isso não se
repita! Minha esposa pode parecer forte e
independente, e já ficou mais do que claro que não
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pretendo impor a ela nossas leis, mas isso só se


aplica a ela. Para todos os demais deste país, ela é
minha! Minha esposa! Fui claro? — declarou o rei
firmemente.
— O senhor disse bem. Nossas leis não se
aplicam a ela. Ela é de outro mundo.
— Foi ela quem lhe contou isso?
— Foi.
— E você está querendo me desafiar, soldado?
— Por ela... Sim...
Nesse momento, ouvi um barulho. Sete deve
ter levantado da cadeira, apoiando-se na mesa.
— Então, prepare-se para perder — alertou o
rei.
— O senhor devia ser mais justo e lutar como
um homem. De homem para homem e não usar sua
influência como rei para se impor a ela. Deixe ela
decidir.
— No que se refere a ela, não pretendo ser
justo nem nunca pretendi. Eu vou usar todas as
armas, todos os recursos que tenho e tudo o que
puder para conseguir o amor dela.
Ouvi Lui bufar.
— E mais soldado, se tem uma coisa que
minha condição de rei me permite, é o poder para
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tirar você da vista dela para sempre. Faça algo


assim novamente e mando você para a fronteira
mais longínqua de Yonah, onde nunca mais vai se
atrever a pôr os olhos nela, estamos entendidos?
— Não, não estamos. Eu farei o que ela me
mandar. Estarei onde ela quiser que eu esteja. E só
irei para essa fronteira se ela quiser que eu vá.
Ele acabou de dizer que não fará o que o rei
quer, e sim o que eu quero? Foi isso mesmo?
Quem bufou agora foi Sete.
— No entanto, acho essa nossa discussão
completamente inútil. Não percebeu ainda,
majestade? Ela nunca tira aquela joia do braço —
afirmou Lui, e a última frase saiu com a voz
entrecortada.
— E é aí que eu venço.
— O quê?
— Nada. É melhor você ir, antes que eu mude
de ideia. E acho bom você ter cuidado. Lembre-se,
não é só você quem paga por suas imprudências.
Lui ficou em silêncio por alguns instantes e
depois se retirou.
Nem parei para refletir qual seria o significado
daquela conversa. Lui estava a salvo, e era isso que
importava. Alguma coisa me dizia para não me
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meter na “queda de braço” deles.


Por outro lado, eu tinha certeza absoluta de
que Sete não cedia por mero capricho, afinal não
tinha outra explicação razoável para sua
implicância com a minha pessoa. Mas e Lui? Ele
havia acabado de desafiar um rei por minha causa.
Será que Sete tinha razão e ele realmente estava
apaixonado? E não é qualquer paixão, mas uma tão
grandiosa que o fez ser capaz de enfrentar uma
pesada punição, se não a própria morte?
Sem perceber fiquei olhando a minha pulseira.
Lui era tudo o que uma garota gostaria: bonito,
habilidoso, esforçado, bondoso, dedicado, e digno,
acima de tudo. Qualquer garota se sentiria honrada
em ser amada por ele. Qualquer mulher deste
mundo e de todos os outros.
O amor é estranho. De tantas que existem, por
que tinha de ser justo eu? Além disso, se eu fosse
uma garota normal, já teria largado essa joia numa
gaveta, e em uma daquelas com as bugigangas mais
velhas, só para não voltar a me assombrar. Partido
para outra. Provavelmente não existe, nem existirá,
homem melhor que Lui.
Entretanto, ainda assim, eu não poderia. Ainda
que Dáian já nem sequer se lembrasse de um dia ter
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me conhecido. Ainda que, algum dia, ele passasse


por mim e, simplesmente, seguisse o seu caminho
sem nem olhar em minha direção. Ainda que eu
entre mesmo para a história como a garota mais
estúpida do Universo, eu jamais poderia
corresponder ao sentimento de Lui, por maior e
mais bonito que fosse.
Suspirei com pesar. Quem disse que o amor é
justo, não é? O amor não é justo, nem lógico, nem
tem explicação. Sem ter uma razão em específico,
ele acontece ou não acontece, e ponto final. Essa é
a verdade.
— Você sabia que é indelicado ouvir a
conversa alheia?
Eu estava tão imersa em meus próprios
pensamentos que até esqueci de deixar a cena do
crime. Virei para saber por quem eu tinha sido
“pega”. Sete estava com os braços cruzados,
olhando para mim da janela da tenda.
Mas estava fechada agorinha.
Abri um sorriso sem graça. Não foi igual ao
“mico” do aposento, afinal aquele tipo de “mico” a
gente só “paga” uma vez na vida, mas, ainda assim,
a situação tinha lá a sua dose de constrangimento.
— Eu tinha de ter certeza de que você não
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faria nada com ele.


— Ainda acha que vejo coisas?
— Ele ainda não me disse nada.
— E precisa?
— Só o deixe em paz, por favor.
— Se é o que deseja. Posso ficar tranquilo em
relação aos seus sentimentos por ele?
— Claro — falei, tocando minha pulseira.
Acredite, caro leitor, toda vez que eu tocava a
minha pulseira não era premeditado. Quando me
dava conta, já estava fazendo. Se desde o primeiro
momento em que você começou a ler minha
história, percebeu que tenho um parafuso a menos,
agora pode confirmar.
Prosseguindo, naquele momento o bichinho
que eu segurava ficou inquieto para deixar meu
colo. Ele estava doentinho e, provavelmente, doido
para ir até o arbusto de joia da Rainha mais
próximo.
Decidi segui-lo e coletar um pouco mais da
planta milagrosa.
— Lin, já podemos voltar ao palácio, não é?
Assenti.
— Direi ao soldado que está dispensado por
um tempo para ficar com a família. Só por
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segurança — comunicou Sete, com aquele sorriso


traquina.
Balancei a cabeça um lado para o outro.
— Faça como quiser — falei, virando-me e
seguindo meu caminho.
Como havia imaginado, meu amiguinho me
levou até os arbustos da erva medicinal. E, para
minha sorte, eu havia levado dois baldes de
madeira grandes, porque a hora em que terminei,
estavam cheios até a boca.
Quando retornava para a cidade, avistei alguns
homens em volta do principal poço de água do
lugar, cujos rostos estavam cobertos por máscaras e
as mãos por luvas pesadas. No momento em que
me aproximei, flagrei os desconhecidos despejando
alguma coisa lá dentro. Uma espécie de líquido.
— Ei! — chamei.
Eles se voltaram para mim e vieram em minha
direção. Não importava por qual ângulo se
vislumbrasse aquele contexto, era de perigo, e
daquele tipo de encrenca no qual, quando se
percebe, já se está afundado até o pescoço.
Aqueles homens investiram contra mim
decididos a se livrarem da indesejável testemunha.
Nem pensei duas vezes. Retirei a vara, a alça que
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ligava os dois baldes, e a parti em duas em uma de


minhas pernas. Eles se aproximavam devagar,
como se a batalha já estivesse ganha.
No entanto, quando um deles fez o primeiro
ataque, notei a lentidão de seus movimentos.
Comparado a Sete e Lui, aquele cara era uma
verdadeira tartaruga. Consegui desviar-me com
facilidade, e os próximos foram iguaizinhos, cada
um mais devagar e previsível que o outro.
Por mais incrível que possa parecer, foi fácil
dar uma surra em quatro deles com meus bastões
improvisados, inclusive, pude até sentir o maxilar
de um se deslocando. Eu não havia entrado na luta
para brincar e, agora, os idiotas sabiam bem disso.
O quinto e último dos mascarados se acovardou e
resolveu fugir em seu cavalo. Corri até o poço e
olhando, buscando algo estranho. Depois vasculhei
o balde, mas já estava vazio.
— Minha senhora, você está bem? — ouvi Lui
bradar.
Olhei em volta e vi que Lui corria ao meu
encontro junto com alguns homens da cidade. Logo
em seguida, chegou Sete em seu cavalo.
— Lin, você está bem? — quis saber o rei,
correndo em minha direção e me abraçando.
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Assim que me mexi, senti a dor aguda na


perda direita.
— Ai! — exclamei, involuntariamente.
— Eles te machucaram?
— Não. Isso foi da pancada por quebrar a vara
usando a perna.
Na hora, eu nem havia sentido que o impacto
tinha sido tão forte.
— Você ficou doida de enfrentar esses
homens sozinha — repreendeu o rei.
— Já enfrentei adversários mais duros na
queda — falei sorrindo.
— Não é brincadeira, Lin! Nunca mais faça
isso! — repreendeu Sete, abraçando-me
novamente.
Tentei caminhar, mas não consegui deixar de
mancar um pouco. No momento em que o rei ia me
tomar em seus braços, resolvi impedi-lo.
— Quando cheguei eles estavam jogando
alguma coisa na água e usavam máscaras e luvas
pesadas, cobrindo bem o nariz e a boca.
— O que quer dizer, Lin? — indagou o rei.
— Ordene que as pessoas não bebam mais
dessa água porque posso apostar meu braço direito
que é isso que está deixando as pessoas doentes.
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Todos me olharam espantados.


— Mas como a água pode adoecer alguém,
senhora? — desconfiou um dos homens.
— Não sei se consigo explicar isso de um jeito
que vocês entendam, mas acreditem quando digo,
essa água está contaminada e qualquer um que
beber, homem ou animal, ficará doente.
— E como faremos? É nossa única fonte de
água.
— Eu darei um jeito nisso. Vocês ouviram,
selem o poço — ordenou o rei.
Depois disso, Sete me carregou até a cidade.
Quando chegamos à entrada da tenda, chamei por
Lui, a contragosto do rei.
— Sim, minha senhora.
— Venha, entre. Preciso falar com vocês dois.
O rei me colocou sobre uma cadeira.
— Preciso de um papel e uma caneta.
Em seguida, Sete me entregou o que pedi. Eles
tinham “caneta” no sentido literal do termo, mas
servia. Fiz um desenho no papel.
— O homem que fugiu tinha na roupa um
símbolo como este. Isso faz algum sentido para
vocês? — indaguei, mostrando o desenho.
— Karur — reconheceu Sete, pensativo.
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— Os agentes, senhor — interpelou Lui.


— São eles os culpados. Estão envenenando a
nossa água! — completou o rei.
Era a única explicação para estarem usando
luvas e máscaras. Eles sabiam exatamente o que
estava derramando naquele poço. Eu tinha estudado
que Karur era uma nação e fazia divisa com Yonah,
bem ao norte.
Até aqui se usam armas biológicas. Credo!
Guerra é guerra em todo o lugar mesmo.
— Há algum tempo queria lhe perguntar,
senhora. A raposa, então, tinha dito a verdade
quando falou de uma doença, que se espalhou por
aquelas bandas — lembrou Lui.
— Sim. Ele só não falou que ficou lá querendo
o mérito pelo trabalho alheio — esclareci
aborrecida.
Lui sorriu.
— Eles estão espalhando isso por toda nação
— inferiu acertadamente o rei.
— Será necessário enviar equipes vasculhando
as cidades e levando o remédio — concluí.
— Cuide disso — ordenou Sete a Lui.
— Sim — respondeu o comandante, retirando-
se em seguida.
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Na minha mala médica não havia tantas coisas


para luxações e machucados, mas o que eu tinha
trazido teria de ser suficiente. Tratei da minha
perna e insisti para continuar dando assistência para
alguns doentes.
Ao cair tarde, eu retornava à casa, onde
tínhamos instalado um centro de operações
provisório, porque Sete já havia convocado nosso
retorno ao palácio, quando vi um pequenino
chorando.
Aproximei-me e ele começou a correr
assustado. Achei melhor segui-lo.
— Espere, não vou te machucar.
Corri passando por umas vielas e quando achei
que o alcançaria, deparei-me com cerca de doze
homens encapuzados. Era uma armadilha.
— Então, essa é a curandeira que descobriu o
plano — disse um deles em minha direção.
— É uma das esposas do Rei de Yonah e uma
raríssima também. Quem diria? — observou o
outro comparsa.
— Devemos matá-la?
— Não, vamos levá-la à presença de Éfer.
Eu podia ter muitos defeitos, mas ser burra
não era um deles. Minha perna ainda estava
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inchada e estava sem arma nenhuma, então era uma


batalha, a qual eu não venceria. Tudo o que estava
ao meu alcance era me apoderar de uma arma deles
e derrubar quantos pudesse.
Quando o primeiro investiu, consegui retirar
de sua cintura uma arma. Eram dois bastões
conectados por uma corrente, parecendo uma
espécie de nunchaku esquisito. Eu não sabia lidar
com aquilo, mas improvisei. Recordei as lições de
Lui, nas quais ele me dizia que a chave para a
vitória é desequilibrar o inimigo. Agucei meus
sentidos e consegui pôr três no chão. Queria ter
conseguido mais.
No momento em que derrubei o terceiro, os
idiotas perceberam que não ia adiantar avançar um
por um e resolveram investir mais de um de uma
vez.
— Você é dura na queda, não é? — comentou
um deles, soltando em cima de mim um bafo
horroroso.
— E você precisa escovar esses dentes —
vociferei, dando-lhe um golpe com a cabeça.
Acabei quebrando o nariz de outro.
— Segurem-na! — bradou enraivecido.
— Então, é isso! Doze de vocês contra uma
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mulher desarmada e ferida. É esse tipo de luta sem


honra que vocês aprendem no seu país — rosnei em
direção aos meus algozes.
Dito isto, os homens se entreolharam como se
eu tivesse jogado na cara deles uma verdade para lá
de óbvia, a qual, até então, não tinham notado. Em
seguida, o semblante de cada um deles mudou,
como se eu tivesse chutado as “partes baixas” do
ego deles, ferindo, profundamente, suas
masculinidades.
Um deles me agarrou pelo queixo.
— Onde Sete foi arrumar uma mulher como
essa? — falou, ainda me segurando pelo queixo.
Puxei meu rosto.
— Olha só o que ela tem no braço.
Ele agarrou minha mão e olhou para minha
pulseira, salivando.
— Uma joia de ouro cheia de diamantes. Não
devia andar com uma coisa dessas por aí.
— Não se atreva. Nem pense nisso, seu
nojento — esbravejei, tentando me libertar.
No entanto, aquele homem arrancou,
violentamente, a minha pulseira.
— Nãooooo! — bradei, chorando.
Nesse momento, nem consegui captar o que
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aconteceu com aquele agente de Karur. Apenas


percebi que ele voou para longe, como se tivesse
sido atingindo por um golpe extremamente forte.
Quando dei por mim, Sete estava no meio deles,
sozinho, empunhando aquele nunchaku que eu
havia deixado a cair.
Na sequência, o rei começou a enfrentá-los e
lutava de um jeito tão ferino e indômito. Uma
postura inflamada que, para mim, era novidade. Em
menos de um minuto, os cretinos já estavam no
chão. Exceto aquele verme que arrebatara a minha
preciosa pulseira. Não se que milagre havia
acontecido, porque se levantou e fugiu.
Por que será que vaso ruim não quebra? Que
droga!
Assim que o vi escapando, corri em seu
encalço, sendo detida pelo rei.
— Minha pulseira... Ele pegou a minha
pulseira! Tenho de ir atrás dele — eu falava sem
parar, sentindo minhas lágrimas escorrerem por
meu rosto.
— Você está bem, Lin? — perguntava o rei,
abraçando-me.
Eu tentava com todas as forças escapar para
continuar perseguindo aquele que roubara meu
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tesouro.
— Minha pulseira. Eu tenho de pegá-la de
volta! — eu repetia inconsolável.
Sete me chacoalhou e me encarou.
— Lin, você está bem e é isso que importa.
— Não! Eu tenho que recuperar minha
pulseira! — retorqui aos berros.
— Não se preocupe, eu lhe darei outras cem
iguais àquela — disse o rei me abraçando
novamente.
— Não! — refutei, afastando seus braços
abruptamente — você não entende, aquela pulseira
é insubstituível. É tudo o que me resta dele —
completei, já soluçando de tanto chorar.
— Por que você não consegue esquecer isso?
Por que você não consegue olhar para mim? Por
que sofrer tanto por algo que alguém te deu há mais
de dez anos e você não o vê desde então? — Sete
esbravejava desesperado em minha direção.
— Não me lembro de ter dito a você que eu
não o via há mais de dez anos — falei, encarando-
o.
O rei recuou alguns passos, parecia que estava
escolhendo bem as palavras porque, pelo jeito, a
confissão a seguir seria, no mínimo, embaraçosa.
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— Você falou enquanto dormia — esclareceu,


enfim.
Expirei o ar com toda a força. Depois olhei
mais uma vez na direção na qual o agente de Karur
tinha fugido e reparei que, bem ao longe no
horizonte, havia um rio. Eu já sabia bem para onde
aquele ser repugnante tinha ido. Respirei fundo e
estreitei meus olhos. Com certeza, aquilo ainda não
havia acabado. Virei em direção a cidade sabendo
bem o que eu precisava fazer, quando Sete me
segurou novamente.
— Por que você não olha para mim? Por que
não me deixa entrar? O que falta em mim? Fale —
indagava, forçando-me a responder.
— Falta tudo! — despejei mais feroz do que
eu jamais fora e prossegui em meu caminho.

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Corpo Gelado

Confesso que acabei me sentindo mal por


deixar Sete falando sozinho, principalmente depois
de ele ter me salvado daqueles homens. Contudo, a
única coisa em que eu conseguia pensar era: como
faria para recuperar a minha pulseira. Eu nunca
partiria para Terra sem ela no meu braço, onde era
o seu lugar. Muito provavelmente aquela joia iria
para o túmulo comigo.
Adentrei em nosso quartel general interino e
avistei Lui reunido com os soldados, traçando
estratégias de ação. Aproximei-me da mesa sem ser
notada e peguei um pequeno mapa antes de alguém
perceber.
Após, segui para o quarto onde estavam
minhas coisas e o analisei com atenção, marcando
cuidadosamente minha rota. Em seguida, peguei
minha bolsa médica, comida, tendo em vista que
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não sabia ao certo quanto tempo a minha


empreitada iria durar e, por fim, me apoderei de um
punhal e dois bastões de um dos soldados, armas
bem diferentes daquelas usadas para treinamento,
com poder destrutivo muito maior.
Com o equipamento em mãos, sai
discretamente. O sol já tinha partido e as luas
estavam despontando no céu, brilhantes e
colaborando comigo. Montei meu cavalo e parti em
direção ao rio. A melhor estratégia seria segui-lo, já
que eu tinha plena certeza que continuariam
contaminando a água dos povoados circunvizinhos.
Acompanhei o curso d’água noite adentro, até, no
fim da madrugada, quando o sol já estava para
raiar, encontrar o acampamento dos agentes de
Karur.
Espreitei o lugar enquanto o céu clarearava
mais um pouco e constatei que haviam reunidos ali,
pelos menos, uns trinta homens. Reconheci, no ato,
o ladrão. Infelizmente, como eu não tinha mais a
noite para ajudar, fiquei observando e arquitetando
qual seria o melhor meio de agir. Talvez queimar as
tendas fosse minha única chance.
O que eu não daria para ter um pouco de
pólvora aqui.
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Eu me concentrava em um plano quando senti


uma mão tampar minha boca. Saquei meu punhal
de mansinho e o coloquei contra a barriga daquele
que me segurava.
— Esperta — ouvi ele sussurrar.
Era uma voz que eu conhecia muito bem. Bem
até demais. Tirei a mão dele de minha boca e me
virei. Ele estava encapuzado como um ninja.
— Como me encontrou? — perguntei.
— Praticamente segui seu cheiro. Eu sabia que
você não desistiria dessa pulseira, nem que isso te
matasse — afirmou, abaixando a parte debaixo da
máscara.
— Então sabe muito bem que nada me fará
voltar atrás.
— Já estou me acostumando com a sua
teimosia — gracejou, com aquele sorriso peralta.
Sorri.
— Vou ver o melhor ângulo para atacarmos
— continuou.
— Sete — chamei.
— O quê?
— Obrigada.
— Saiba de uma coisa, isso vai lhe custar caro
— avisou, beijando minha bochecha em seguida.
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Corei sem querer.


Sete se afastou alguns passos e passou a
examinar a situação. Em seguida voltou.
— O melhor será pegarmos silenciosamente
os mais afastados e usarmos o elemento surpresa
para os que sobrarem. Você se lembra de onde
acertar para não fazer barulho, não é?
Balancei a cabeça afirmativamente.
— Vamos então. Eu vou pela esquerda e você
pela direita.
Na direita tinha bem menos inimigos, mas ele
era um milhão de vezes mais habilidoso que eu, por
isso, resolvi não discutir. Na verdade, na situação
em que estávamos, ele faria o trabalho e eu só
colaboraria.
Fomos sorrateiramente e acertei o primeiro, o
qual caiu sem dar um pio. Olhei para ver o que Sete
tinha achado da minha performance, e ele sorriu
orgulhoso, afinal eu era sua primeira e única aluna.
Em seguida, o rei derrubou três de uma vez,
tão silenciosamente que quando aqueles caras
percebessem o grupo reduzido, seria tarde demais.
Prosseguimos com o plano dele e conseguimos
vencer pelo menos dez adversários em sigilo. O
restante estava reunido em volta de uma fogueira, e
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só se deram conta do ataque no momento em que já


estavam sendo golpeados. Eu até lutei bem, mas
Sete era terrível. Às vezes eu me perguntava com
quem ele havia aprendido a lutar daquela maneira.
Sempre imaginei os reis escondidos atrás de seus
exércitos, sem jamais entrarem numa batalha direta.
Os reis de verdade, e não aqueles das histórias,
como o rei Arthur.
Nós dois conseguimos derrotar trinta homens.
Ele bem mais do que eu, claro. Quando estavam no
chão, Sete revistou o verme larápio e resgatou a
minha pulseira. Não consigo descrever o meu alívio
por ver meu tesouro nas mãos do rei. Nem disfarcei
a ansiedade para tê-lo de volta em minhas mãos.
Delicadamente, Sete pegou o meu braço e
passou a pulseira por ele, prendendo o fecho. As
lágrimas acabaram correndo em profusão por meu
rosto. Eu parecia uma idiota, mas minha felicidade
era tanta por aquele pedaço de metal que nem
consigo pôr em palavras. Só fiquei lá contemplando
e alisando minha pulseira preciosa.
Olhei para Sete e ele expressava aquela feição
ininteligível novamente. Entretanto, desta vez,
parecia triste. Era como se ele estivesse
desesperado para me tocar, mas não se atrevesse.
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Como se fosse obrigado a deixar eu desfrutar meu


momento com Dáian, embora isso o estivesse
corroendo, como ácido sulfúrico a cem por cento.
Seria possível que ele me amasse mesmo?
Igual a Lui. Ou talvez muito mais.
Impossível. Ele tinha mais de setecentas
mulheres em seu harém, uma mais linda que a
outra. Doidas por ele. Por que se apaixonaria por
alguém como eu? Não havia dúvidas: ele tinha
encucado dessa maneira porque, pela primeira vez,
queria algo que não estava ao seu alcance.
Pensando bem, talvez, esse desespero todo por
mim seja uma lição que o Universo queira dar a
ele.
Levantei a cabeça para agradecer novamente
e, nesse momento, percebi que estava na mira de
um batedor, posicionado em cima do morro,
apontando uma flecha afiada para mim, prestes a
disparar. Não havia como desviar nem como pará-
lo.
O rei não percebera que restava aquele
inimigo num ponto estratégico como um franco
atirador. Bem, pelo jeito eu não morreria em casa,
mas estava com a pulseira de Dáian em meu braço,
e isso já era suficiente para eu morrer feliz.
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A morte parecia uma velha amiga, a qual


vinha me visitar de tempos em tempos. Eu já a
havia enfrentado antes. Não era agora que
lamentaria alguma coisa. Estava grata por ter tido a
oportunidade de ajudar muitas pessoas e, talvez, ter
salvo esse país de uma arma biológica devastadora.
Se eu já havia cumprido meu propósito na
Terra ou nas Terras, então, estava tudo bem.
Acabei me lembrando de uma bela frase que
ouvi no filme O Curioso Caso de Benjamim Button,
quando o capitão do navio rebocador está prestes a
morrer e diz: “quando chega a hora, você deve
aceitar”.
No momento em que o inimigo disparou sua
terrível flecha, tudo o que consegui fazer foi fechar
os olhos. Em fração de segundos, ouvi o barulho do
pedaço de metal e madeira perfurando carne. Som,
o qual era a prova cabal da covardia de alguém.
Entretanto, não senti dor alguma.
Abri ligeiramente meus olhos e vi o covarde
fugindo correndo, bem como Sete parado à minha
frente. Alguns segundos, depois o rei cambaleou e
caiu. A flecha tinha atingido a lateral de seu
abdômen e ele se esforçava para se manter
acordado. Não era possível aquele projétil tê-lo
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atingido, porque quem estava na mira era eu, tinha


certeza absoluta disso. Ele se colocou na frente para
me proteger.
— Por que você fez isso? Você ficou louco?
Você é o rei, essa nação precisa de você muito mais
do que de mim — repreendi desesperada.
— Tudo o que importa é que você está bem e
mais nada — respondeu com a voz fraca.
Verifiquei rapidamente onde a flecha havia
atingido e, para meu alívio, não tinha perfurado
nenhum órgão vital, mas, mesmo assim,
demandava tratamento rápido, além das preces para
que a ponteira não estivesse enferrujada.
— Sete, você não pode desmaiar. Você precisa
levantar. Temos de procurar um lugar para que eu
possa cuidar de você.
Com esforço, ele acenou afirmativamente. Eu
trouxe o cavalo para perto dele e o ajudei a se pôr
em pé. Havia visto uma cabana no caminho, a qual
iria servir de local de emergência. O rei se apoiou
em mim e no animal, caminhando oscilante até que
chegamos à pequena casa. O lugar não parecia
habitado, e sim que alguém o utilizava em curta
temporada de caça ou pesca. Improvisei um
colchão e deitei Sete nele.
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Procurei por coisas úteis ao tratamento e logo


coloquei água para ferver. Sete já estava suando e
com a respiração arquejante. Em seguida, rasguei
sua camisa para examinar minuciosamente a ferida
e me certifiquei de que, apesar de profunda, não
tinha potencial para óbito. Respirei mais aliviada.
— Sete. Sete! — chamei.
Ele balançava a cabeça de um lado para o
outro, tentando não ser vencido pelo próprio corpo,
o qual queria urgentemente desligar.
— Sete — chamei novamente, agora dando
um tapa em seu rosto.
Ele não pode desmaiar em hipótese alguma!
Sete olhou para mim.
— Você não pode desmaiar, está me
entendendo? Você precisa ficar acordado, aconteça
o que acontecer. Me ajude nisso, por favor —
implorei, agora acariciando sua testa.
Ele concordou. Prossegui.
— Sete, não tenho nada aqui para usar como
anestésico. Vai doer, e muito, mas você não pode
se entregar, entendeu?
De um jeito fraco, ele balbuciou que
concordava. Tirei um pedacinho de madeira da
minha bolsa.
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— Morda isso — falei, colocando a madeira


entre seus dentes.
Mexi uns milímetros na flecha e ele gemeu,
mordendo com força a madeira. Eu sabia que
arrancar aquilo rápido, como nos filmes, seria o
jeito mais fácil para ele. Entretanto, eu não podia
correr o risco de aquilo abrir alguma coisa assim
que fosse puxada.
Quando tive a mais absoluta certeza de que, ao
retirar a flecha, não provocaria nenhum novo
ferimento interno, puxei-a depressa. O rei se
contorceu de dor. Partiu meu coração vê-lo daquela
maneira, ainda mais sabendo que ele fez aquilo
para me proteger. Sete dava sinais de que iria
desmaiar.
— Sete não! Você precisa resistir, por favor
— alertei, secando o suor de seu rosto.
Ele assentiu, com aqueles olhos ternos que,
desta vez, não odiei.
— A parte fácil passou. Agora vem a mais
difícil. Sinto muito — falei e me surpreendi com a
doçura de minha própria voz.
A pior parte vinha agora porque eu teria de
suturar aquela abertura sem anestesia alguma.
Improvisei um soro, com um extrato de planta anti-
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inflamatória, e injetei em seu braço, deixando a


bolsinha de couro pendurada no que encontrei.
Àquela altura, eu já tinha ficado perita em
criatividade médica.
— Morda o quanto quiser. Grite, me xingue,
mas não se renda por nada, entendeu?
Sete esboçou um sorriso frágil. Foi o melhor
que conseguiu. A cada ponto dado, o rei mordia a
madeira com força e soltava um grito abafado.
Embora o sofrimento dentro de mim por vê-lo
naquela situação fosse grande, mantive minhas
mãos firmes e fui cuidadosamente dando ponto por
ponto, de forma a deixar a cicatriz o menor
possível. Quando finalmente acabei, Sete estava
banhado em suor. Comecei a limpá-lo, correndo o
pequeno pano por seu corpo. Mesmo que eu não
pudesse mais me apaixonar, não podia negar que a
beleza dele me deixava sem graça.
Se ele havia passado duas vezes na fila de
distribuição de teimosia, na de formosura, então,
deviam ter sido, no mínimo, umas dez.
Lembrei dele me dizendo: “admita que me
acha atraente”. Eu achava, era lógico, afinal de
cega eu não tinha nada. Entretanto, entre achar e
admitir existe uma distância quilométrica, de anos-
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luz, eu diria.
— Posso dormir agora, Lin? — indagou com
uma voz debilitada, quase inaudível.
— Pensei que já estivesse dormindo —
respondi.
— Não, eu queria aproveitar você me tocando
— a voz podia estar falhando, mas o sorriso
travesso estava lá firme e forte.
— Não estava te tocando, só limpando seu
suor — retruquei, um pouco sem jeito.
— Você não me deixa nem sonhar, não é? —
ele rebateu, sorrindo.
Corei.
— Pode dormir, eu deixo — liberei-o, enfim.
Ele ensaiou um sorriso abatido e cerrou os
olhos. Levantei um pouco para buscar mais água e
notei o tempo estava mudando. Nuvens bem
carregadas estavam chegando do Norte e o vento
frio já bagunçava meus cabelos.
Entrei na cabana e comecei a reforçar a
cobertura de algumas janelas, mas não havia
sobrado nenhum material para reforçar a da frente.
Encontrei um pedaço de tecido que ia ter de servir
como cobertor.
Cerca de meia hora depois, a chuva começou e
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fiquei sentada à porta da cabana, admirando a água


caindo e lavando a terra. Desde que eu havia
chegado, ainda não havia visto uma chuva tão forte.
Depois de algumas horas que Sete
adormecera, aproximei-me para trocar o soro
improvisado e o vi tremendo. Verifiquei por baixo
do tecido que lhe servia de cobertor e meu paciente
estava com o corpo gelado. O vento frio invadia a
cabana pela janela da frente e a manta não era
suficiente. O suor dele secava com a friagem, como
quando se sai de uma piscina e o vento frio toca a
pele.
Procurei em vão por alguma coisa que pudesse
reforçar o cobertor. Não havia outro jeito. Deitei ao
seu lado, encostei meu corpo no dele e, em poucos
minutos, ele parou de tremer, suspirando aliviado.
Meu constrangimento só foi vencido pela pena que
senti. Ferido e com frio, era demais num único dia,
para alguém que havia salvado minha vida.
O ruído da tempestade foi amenizando aos
poucos, e acabou se transformando numa chuvinha
suave, cujo som é muito semelhante a uma canção
de ninar. Confesso que há muito tempo não me
sentia tão confortável.
Provavelmente, a última vez que havia me
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sentido assim foi quando recebi as notas dos


exames finais do ano passado e, acabei faxinando a
bagunça de livros do meu quarto. Lembro-me de ter
deitado com o coração tão leve, que minha cama
parecia mais aconchegante que de costume, e o
resultado foi o sono ter durado um domingo inteiro.
Deixei o sonzinho da chuva tranquila, aquela
cama confortável, apesar de improvisada, e aquele
sentimento de aconchego me levarem para um sono
bom e merecido. Somente quando os primeiros
raios da manhã chegaram até o meu rosto,
despertei, e, estranhamente, peguei-me desejando
que eles fossem um sonho e ainda fosse
madrugada.
Aquilo era tão bom. Sabe aquelas manhãs em
que você pensa: “que se exploda o mundo hoje,
quero apenas ficar aqui o dia todo desfrutando
desse conforto?”. Então, era bem isso. Já nem me
lembrava da última vez em que desejei tanto assim
por mais dez minutinhos na cama.
Infelizmente, quando nos tornamos adultos,
aprendemos a deixar o sentimento de realidade
vencer a essas vontades do corpo e somos
obrigados a ceder. Abri meus olhos totalmente
contra minha vontade. Olhei ao redor, ainda
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lutando para abrir minhas pálpebras por completo


e, tão logo me dei conta da minha situação, levantei
metade do meu corpo num sobressalto. Por sua vez,
Sete ainda dormia, mas ele havia envolvido seus
braços em meu corpo, aninhando-me junto a ele.
Será que dormimos abraçadinhos desse jeito a
noite toda?
Se minha cara pudesse cair, ela tinha caído ou
se vivêssemos em um mundo virtual, meu
semblante seria como aquele emoji com a testa
azul, olhos brancos arregalados e as duas mãos no
rosto apertando a boca, como se todo ar da alma
estivesse saindo lentamente de mim, e eu fosse uma
bexiga desinflando, levada pelo vento.
Retirei abruptamente o cobertor arranjado de
minhas pernas e, no momento em que fui levantar,
senti a mão de Sete correndo vagarosamente pelo
meu braço e segurando a minha mão. Em seguida,
ele me puxou para perto de si, tentando me
agasalhar de novo.
— Só mais dez minutinhos — negociou,
suspirando.
— Se já está melhor, precisamos ir. Não é tão
seguro ficar aqui — falei tentando me desprender
dele.
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— Pelo contrário, podíamos ficar aqui para


sempre. Só você e eu, e mais nada — ele retrucou
sorrindo.
— Você é o rei. O que seria da nação? —
rebati acanhada.
— Outro pode muito bem reinar — ele
insistiu, ainda sorrindo.
— Você deve estar com febre para estar
falando bobagens — falei, colocando a mão sobre a
testa dele.
Mas ele não estava febril.
— Por que bobagem? Uma casa simples. Você
e eu juntos enquanto respirarmos nessa terra. Eu
trabalharia duro para não lhe faltar nada e para
fazer de você a esposa mais feliz do mundo —
sugeriu, olhando fixamente nos meus olhos, sem
pestanejar.
Eu não sei bem o porquê, mas não consegui
concatenar uma resposta aceitável para a divagação
dele. O meu silêncio fez Sete voltar a deitar e sorrir
como um garoto.
Será que ele interpretou meu silêncio como
um “talvez”? Não era bem isso não. Apesar de eu
não fazer a menor ideia do porquê as palavras não
se organizarem na minha mente.
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Respirei por alguns minutos e voltei a tomar


as rédeas de mim mesma. Aquela noite maravilhosa
estava confundindo meus sentidos, mas em meu
coração não havia confusão alguma. Toquei minha
pulseira, e agora a resposta certa veio fácil.
— Se você fosse outra pessoa... — ponderei
sem conseguir terminar, levantando em seguida.
O sorriso do rei se desfez numa expressão
enigmática e distante. Se por algum milagre do
destino, ele me amasse de verdade, teria de encarar
a realidade a meu respeito. A verdade que ele
estava careca de saber.
— Você pretende mesmo passar o resto da sua
vida sem amor? — indagou, depois de refletir por
alguns instantes.
— Será que em todos os mundos as pessoas
têm essa concepção? Que a felicidade de alguém
está condicionada a um amor romântico? O mundo
é como um multiverso. Há tantas dimensões que
podem fazer alguém feliz. Existem muitos outros
aspectos da vida que podem, igualmente, trazer
felicidade.
— E vai continuar repetindo isso para si
mesma até se convencer? — disse Sete, encarando-
me.
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— Já estou convencida — rebati, sem nem


piscar.
— Eu não tenho nenhuma chance? —
questionou apreensivo.
— Não, sinto muito — respondi sem hesitar.
— Mas você parecia tão feliz aqui comigo a
noite toda — insistiu com uma feição esperançosa.
— Meu inconsciente até pode se entregar, mas
o meu consciente jamais vai ceder — declarei
resoluta.
— Você amou essa pessoa tanto assim?
Quando ouvi a pergunta de Sete era como se a
força gravitacional de um quasar tivesse me atraído
e me feito cair no profundo abismo da realidade.
Era exatamente isso que havia acontecido comigo.
Eu amei, e ainda amava, alguém profunda e
desesperadamente. Balancei a cabeça consentindo e
me rendendo ao choro. Depois de meu coração
conseguir respirar um pouco mais aliviado, olhei
fixamente para o Sete.
— Entreguei minha alma e não tem mais
como pegá-la de volta — falei sem desviar o olhar
nem por uma fração de segundo.
O rei virou o rosto para o lado, desviando-o de
mim.
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— Eu desisto! — rendeu-se, finalmente.


O rei começou a se levantar com dificuldade
em razão do ferimento. O apoiei, ajudando-o a ficar
de pé. O rosto dele não parecia triste, o que não
combinava nada com seu discurso anterior, afinal
aquela não deveria ser a cara de quem acabou de
levar um fora. Ele me olhou com aquele semblante
misterioso de sempre, mas não mais com aquele ar
de confusão interior. Era um ar sereno. Ele era, de
fato, muito esquisito.
— Everlin, não existe nesse mundo, ou no seu,
e duvido muito que em qualquer outro, uma mulher
como você — afirmou, olhando-me com aqueles
olhos que pareciam chegar até as profundezas de
meu ser.
Ruborizei.
— Obrigado por salvar a minha vida — ele
completou em seguida.
— Sou eu quem deveria dizer isso — falei
sorrindo.
Ele sorriu de volta.
— Vamos para casa? — propôs.
A expressão dele não era a de quem iria me
manter no palácio a todo custo. Estava mais para
uma feição de: “chega por hoje, não é?”. O castelo
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dele podia não ser minha casa no sentido preciso do


termo, mas era uma casa temporária, o que não
deixa de ser uma “casa” afinal de contas.
— Vamos — concordei, deixando escapar um
sorriso aberto.
Naquele momento eu soube, depois deixá-lo
em casa são e salvo, seria a hora de começar a
pensar num jeito de partir.

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​Por sua conta e risco

— Meu senhor, o que aconteceu? — indagou


Ralifax, correndo em nossa direção, ao ver que Sete
mancava um pouco enquanto adentrava em seu
palácio.
Muito embora tivéssemos voltado àquela
cidade a cavalo e, depois, tenhamos seguido de
carruagem até o palácio, os pontos não abriram. A
ferida parecia se curar bem, mas, ainda assim, era
difícil para ele andar normalmente.
— Está tudo bem, Ralifax — informou o rei
sorrindo.
— Minha senhora... — iniciou o servo,
olhando para mim preocupado.
— Tudo bem, Rali. Fiquei calmo. Ele vai
sobreviver — interrompi, sorrindo.
— Me referia à senhora, ao seu estado de
saúde — Ralifax retrucou.
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— Eu estou bem — respondi ainda sorrindo.


— Quais a recomendações, minha senhora?
Em relação ao estado de saúde do rei? — perguntou
o servo.
Sete voltou-se para mim, esperando para ver o
que eu diria.
— Ele precisa de repouso absoluto por alguns
dias. Dê-lhe bastante água e tudo o que quiser
comer. Nada muito salgado nem muito gorduroso.
Mais tarde passo para ver como está a cicatrização
— receitei.
— Sim, minha senhora. Vamos majestade.
O rei olhava para mim de um jeito
completamente diferente. Um que parecia me
atravessar por completo e chegar ao âmago. E eu
não sabia distinguir se ele estava feliz, satisfeito ou
doido.
Talvez ele tenha mesmo se dado por vencido e
esteja admirando a minha coragem. Ou tendo pena
da minha completa falta de noção, afinal qualquer
garota sã adoraria fisgar um rei, e ainda mais um
bonitão.
Depois de me ouvir, o sorriso de Sete se
estendia de orelha a orelha.
Pensando bem, ele ficou doido mesmo.
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Naquele mesmo dia, um pouco mais a tarde,


fui até o quarto do rei examinar o curativo e, para
minha surpresa, ele não tentou despir a camisa,
deixando o peito à mostra como sempre. Ele
simplesmente abriu uma pequena parte da roupa,
suficiente para eu ver o ferimento. Estava ótimo,
graças a Deus. Entretanto, achei sua atitude bem
diferente para os seus padrões.
— Mais uns dias repousando e já poderemos
retirar os pontos — falei.
— Obrigado, doutora — agradeceu, com um
sorriso largo.
Sorri de volta, me retirando em seguida.
— Everlin.
— Sim — respondi, voltando.
— Você poderia tocar um pouco para mim?
Se não for pedir muito, é claro — solicitou com um
semblante tão terno, um que eu ainda não tinha
visto.
Era engraçado como Sete tinha mesmo o dom
de se mostrar de diversas formas diferentes. Ele
sempre me surpreendia com uma nova expressão e
todas sinceras! Isso era o mais incrível, eu tinha de
admitir.
— Claro — respondi um pouco encabulada.
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O instrumento estava posicionado bem mais


próximo da cama. Sentei-me e pensei no que
dedilhar. Uma música romântica definitivamente
não combinaria com a nossa situação, mas também
não queria tocar nada agitado, afinal o rei estava de
repouso. Resolvi tocar algo clássico.
Lembrei de ter visto uma vez no Youtube uma
versão maravilhosa de Canon de Johann Pachelbel,
tocada por George Winston. Cada músico acaba
pondo um pouco de si em sua interpretação.
Lembro-me de que foi uma das versões mais
complexas, e chegar a um resultado até satisfatório,
demandou horas de treino.
Comecei a tocar a canção e a vibração
reverberava pela sala com uma acústica perfeita. O
som era simplesmente magnífico. Duvido que a
sala de concertos da Filarmónica do Elba, em
Hamburgo, seja melhor. Foram quase seis minutos
de uma melodia incrível, a qual até me fez esquecer
onde estava. Só alterei o desfecho, colocando um
toque meu, pois eu sempre pendia para o
romantismo da suavidade.
Quando acabei, notei vários empregados se
amontoando na porta do quarto, espremendo-se
atrás de Ralifax, querendo ouvir a música. E
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ninguém poderia culpá-los. Também tinham o


direito de apreciar aquela acústica divina, qualquer
ser humano tinha esse direito. Todos me olharam
como se quisessem que eu tocasse outra. Inclusive
Ralifax, que parecia disfarçar as lágrimas.
— Ralifax.
— Sim, meu rei.
— Preciso que traga os escribas aqui.
— Agora mesmo, meu senhor.
— Sinto muito. Sei que querem que sua
senhora continue tocando, mas tenho assuntos
urgentes a resolver.
Os servos atenderam, mas alguns não
esconderam a expressão de decepção.
— Antes de partir, posso organizar um
concerto. Nos concertos, geralmente, se toca por
mais de uma hora — propus esperançosa e meio
sem graça.
— Você poderia me deixar sozinho — pediu o
rei, com um olhar entristecido.
— Sim, claro — assenti um pouco
decepcionada, saindo em seguida.
Esse pedido também soou estranho, tendo em
vista a postura que sempre mantinha desde a minha
chegada. Apesar da atitude dele, após nossa
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conversa na cabana, ser completamente oposta à


que normalmente adotava, tentei não ficar triste
nem me sentir culpada.
Eu nunca havia mentido para Sete, nem uma
vez sequer. Sempre fui eu mesma desde o primeiro
dia no palácio. Outra coisa que aprendi é que a
honestidade sempre recompensa, afugentando a
culpa. Então, sem maiores conflitos, senti que o
momento de partir havia chegado. Segui para meu
quarto e comecei a pensar numa estratégia real para
deixar o palácio.
Alguns dias depois, retirei os pontos de Sete e
a cicatriz ficou bem pequena, não era
imperceptível, mas havia sido o melhor que pude
fazer com os recursos limitados à disposição.
Soube que Lui partira com uma tropa de elite,
formada de soldados bem treinados, para levar a
cura da doença e perseguir os agentes de Karur. Ele
era o mais indicado para uma tarefa dessa natureza,
afinal sentira na pele o horror daquela arma
biológica. Entretanto, Sete não pareceu tomar
nenhuma decisão sobre a declaração de guerra.
Ouvi dizer que o exército da nação inimiga era
centenas de vezes maior e o Rei de Yonah
mostrava-se cauteloso quanto ao tema. Pelo que
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entendi, Sete também tinha uma questão pessoal


para resolver antes de pensar no que faria com
Karur.
— Senhora! — Janes chamou na porta.
— Entre.
— A senhora soube o que o rei decretou?
Meu sangue gelou. Será que Sete havia me
libertado enfim?
— Não — falei devagar.
— O rei ordenou que todas as mulheres do
harém fossem devolvidas às suas famílias e aquelas
que já passaram uma noite com Sua Majestade
terão uma casa fora do palácio e sustento pelo resto
da vida, estando livres para contraírem outro
matrimônio se assim quiserem.
— Todas as esposas estão livres? —
questionei surpresa, sem esconder a explosão de
alegria.
— Todas menos uma — contou Janes, como
se fosse a melhor notícia do mundo.
— Deixe-me adivinhar, todas menos eu? —
deduzi, sentindo a raiva invadir o meu peito.
— A senhora será rainha! — comemorou a
serva, exultante.
Meu sangue começou a borbulhar, e logo
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chegou ao ponto de ebulição. Tentei ao máximo


disfarçar meu estado de espírito enquanto Janes, e
depois Carin, arrumavam algumas coisas da
penteadeira, cantarolando felizes. Não queria
descontar nelas a minha frustração, afinal a culpa
não era delas nem de longe. Fiquei olhando pela
janela, meditando.
Ele havia dito que desistiria.
Assim que as servas deixaram o quarto, saí
pelo palácio à procura de Sete. À medida que
caminhava, tentava amenizar minha raiva. O
melhor seria ter uma conversa civilizada.
Ele disse que desistiria, mas não prometeu me
libertar.
Se essa fosse a desculpa dele, eu teria de me
preparar. Qualquer cérebro razoavelmente
inteligente conseguiria ver que a minha liberação
estava implícita na declaração de rendição dele.
Será que é tão difícil assim somar dois mais
dois?
Procurei pelo rei em todos os lugares
prováveis, mas não o encontrei. No momento em
que passei pelos corredores, cujas janelas davam
para a entrada do palácio, reparei na comoção lá
embaixo. Várias carruagens entravam enfileiradas,
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provavelmente já das famílias que haviam


comparecido para buscar as filhas.
Pelo jeito, o decreto já fora editado há vários
dias para que a partida das garotas fosse
programada daquela maneira. Lembrei de Sete ter
pedido a Ralifax que chamasse os escribas em seu
quarto no dia em que chegamos.
Ah... então era isso!
Caminhei mais um pouco e me detive em
frente à janela de onde podia ver as mulheres do
harém se preparando para partir. Eu nunca havia
visto um clima de velório tão grande, já que a
maioria chorava de soluçar.
Não poderia haver um paradoxo maior no
universo que aquela situação. Todas aquelas
mulheres agora eram livres e lamentavam por
deixar a prisão e eu, ainda presa, almejava tanto a
liberdade que sentia meu sangue a ponto de entrar
em estado gasoso. Apoiei meus braços contra a
abertura na enorme janela, e fiquei observando
aquela inusitada cena por um longo tempo.
Transcorrido um tempinho, percebi apenas um
grupinho bem pequeno de garotas sendo separado
da maioria.
A enorme enxurrada de mulheres começou a
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encontrar com suas famílias e a adentrar nas


carruagens. Contudo, o clima de enterro não se
restringia só às garotas, advinha das famílias
também. Balancei a cabeça. Aquilo era bizarro
demais para minha mente processar. Aquele
pequeno grupo, realmente, não iria embora como as
outras. Será que eram as tais “escolhidas”?
Mas não tinha nem dez naquela rodinha!
Fiquei observando por mais um tempo as
garotas indo embora e cheguei à conclusão que, de
fato, aquele grupinho não voltaria para casa. O
engraçado era, de tantas mulheres com estereótipos
diferentes que havia naquele harém, ele escolhera
garotas com um tipo físico parecido: cabelos
castanhos, olhos castanhos, pele clara e um corpo
não exageradamente avantajado. E o pior, meu tipo
físico se enquadrava perfeitamente nesse grupo. O
que aquilo revelava sobre o rei?
Confesso que, ver tão poucas garotas ficando
no palácio, me surpreendeu. Com tantas à sua
disposição, ainda que Sete dormisse com duas por
noite, demoraria quase um ano para repetir a
companhia. Isso não é o sonho de muitos homens?
Além disso, o que significava ele se livrar do
harém daquele jeito. Se havia desistido de mim, o
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mais lógico não era que voltasse a dar atenção à sua


coleção. Bom, a verdade era que eu não
compreendera exatamente o que “eu desisto” dele
queria dizer. Ao término daquela comoção, enfim,
a carruagem real parou e o grupinho das morenas
claras adentrou nela. Não havia dúvida de que elas
eram mesmo as “escolhidas” até porque choravam
mais que todas. Será que elas tinham gostado tanto
assim da experiência? A questão era se isso
mudava em alguma coisa a imagem que eu fazia de
Sete.
Não havia mais harém no palácio. Que coisa!
— Pensativa? — ouvi, chamando minha
atenção.
Eu sabia, cedo ou tarde, acabaria encontrando
quem procurava.
— Posso saber o que significa tudo isso?
— Em breve.
— Eu vou embora e você sabe. Fez isso por
sua conta e risco — informei quase esbravejando.
— Eu sei — ele respondeu com aquele olhar
indecifrável.
— Você não vai me soltar? — rosnei.
— Vou — prometeu, abaixando o olhar.
Meu coração acelerou. Eu não ia precisar
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fugir.
Nem acredito!
Só não explodi de felicidade por causa da
expressão do seu rosto. Ele não parecia deprimido
até soltar aquele “vou”. Pensei ser indelicado da
minha parte comemorar enquanto ele parecia triste,
por isso, fiquei séria.
— Apenas preciso que vá comigo a um lugar
primeiro, pode ser? — ele disse com o olhar tão
distante, e eu podia jurar que os olhos dele
turvaram um pouco.
Eu devia estar ficando louca. Como um
homem daquele porte ia, de repente, ficar com os
olhos cheios lágrimas. Com certeza, eu estava
vendo coisas.
— Tudo bem — assenti.
— Obrigado — ele disse, mirando-me com
aquele olhar penetrante.
— Eu é que agradeço — falei, desviando o
rosto.
Voltei para o meu quarto pensativa. A reação
de Sete não me deixava ficar completamente feliz e
eu não sabia o porquê. Quando cheguei, Ralifax já
estava esperando por mim.
— E aí, Rali? — cumprimentei ainda meio
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cabisbaixa.
— Minha senhora, acredito que o rei já tenha
lhe dito que vão sair.
— Sim, ele disse que ia me levar a um lugar
antes de me liberar.
— Ele disse que iria libertar a senhora! —
exclamou o servo, completamente surpreso.
— Disse. Por que, Rali? — perguntei com o ar
desconfiado.
— Por nada, minha senhora. Começarei a
preparar vossas coisas imediatamente.
A expressão de surpresa de Ralifax colocou
uma pulga atrás da minha orelha. Será que Sete não
tinha a intenção de me libertar? Pensei por alguns
instantes e resolvi expulsar essa dúvida da minha
mente. Afinal, Sete nunca havia mentido para mim.
Ele cumpriu tudo o que prometera.
— Rali, por que precisa preparar minhas
coisas? Onde Sete vai me levar?
— É uma montanha, não fica muito longe do
palácio. Mas acredito que terão de acampar por
uma noite ou duas.
Bom, não adiantava querer apressar as coisas
àquela altura do campeonato. Eu já havia esperado
por tanto tempo para procurar pela ponte que uns
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dias a mais ou a menos não fariam tanta diferença.


O jeito seria aguardar pelas cenas dos
próximos capítulos mesmo.
Dediquei o resto daquele dia às pesquisas na
biblioteca, procurando por alguma coisa que
pudesse ser útil. Eu queria ter pedido ajuda ao rei,
no entanto, o que Ralifax me disse acabou deixando
uma pequena ponta de desconfiança. Melhor seria
não fazer nada que pudesse alterar o ânimo de Sete.
Ao sair do palácio, não teria mais acesso à
informação daquele lugar, então pensei ser melhor
aproveitar cada segundo. Entretanto, talvez um
trabalho de campo desse mais resultados. Acabei
não investigando mais com Ralifax sobre onde o rei
queria me levar ou o porquê da minha presença ser
tão importante.
Talvez seja algum nicho da doença ainda.
Será que a mutação daquela bactéria se espalhou
por algum lugar?
Desejei com todas as forças que não fosse
isso, contudo, eu não via muitas hipóteses nas quais
eu fosse tão necessária em um lugar. Deixei todos
esses pensamentos e considerei ser mais sensato
aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Afinal,
não havia motivo para ter tanta pressa para voltar
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ao Oceano Atlântico. Bastava eu fazer isso ainda


jovem e preparada, porque a jornada não seria nada
fácil. Eu já estava consciente disso.
No dia seguinte, Sete esperava por mim,
juntamente com alguns da guarda de elite, poucas
criadas e Ralifax.
Ué?! Ralifax vai conosco desta vez?
Notei que Sete evitava me olhar e, em relação
a mim, mantinha uma atitude formal e distante. Era
no mínimo cômico que, depois de ter me
infernizado tanto, agora resolvesse simplesmente
me ignorar. Não que isso fosse ruim, mas, sei lá,
era estranho. O comportamento dele me fez crer
que não iríamos na mesma carruagem, por isso, até
me espantei quando ele apontou o seu veículo para
mim.
Durante todo o percurso, não me atrevi a
puxar assunto com o rei. Ele parecia tão distante e
tão tenso, que o clima de apreensão se espalhara
pelo ar da carruagem, chegando até mim como uma
nuvem de poluição.
Além disso, não pronunciou uma palavra
sequer no decorrer do trajeto. Não muito distante
do palácio, chegamos a uma planície da qual se via
claramente uma montanha enorme que, de tão
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linda, parecia um quadro, tendo aquele planeta


gigante no céu de fundo. Apesar de eu já ter me
acostumado um pouco com o céu deles, aquela
imagem ainda me provocava “friozinho” na
barriga.
— Montem acampamento — ordenou o rei,
tão logo saímos do veículo.
Sete seguiu caminho, dando instruções aos
homens da guarda, ignorando-me por completo.
Ele sabe que vou embora assim que voltarmos
e deve estar tentando cortar laços. Se for isso, é
mesmo melhor assim.
Eu não sabia dizer se Sete e eu erámos
amigos. Já havíamos passado por tanta coisa juntos,
inclusive havia lhe contado o maior segredo de meu
coração. Mas eu, sinceramente, não sabia que tipo
de relação tínhamos. Pensando bem, não tínhamos
nem a relação rei e súdita.
Apesar de tudo, eu ficaria um pouco triste por
deixar o palácio. Embora eu não admitisse, Sete era
até um bom homem. Se eu tivesse alguma
expectativa de retornar viva para casa, eu, com
certeza, faria um desenho dele para levar comigo de
recordação. Entretanto, era quase certo que iria para
casa para morrer, então, isso seria sem propósito.
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Ainda que o caro leitor acredite que não


passava de uma enorme tolice de minha parte
escolher ir embora e morrer em vez de jogar todo o
charme, que eu não tinha, diga-se de passagem,
para ser rainha, preferia morrer em paz a viver toda
uma vida fingindo ser feliz. Sete também não
merecia isso, ter, finalmente, uma esposa de
verdade, a primeira de sua vida, cuja alma pertencia
a outro homem.
Retornei de minhas divagações e vi de relance
Ralifax passando por mim.
— Rali, por que precisamos parar aqui se
vamos até a montanha?
— A localização do templo é um dos segredos
mais bem guardados de Yonah. A partir daqui, só
os soldados de extrema confiança irão acompanhá-
los.
— Ele vai me levar a um templo? E para quê?
— O Rei Sete lhe dirá no momento certo,
minha senhora — respondeu o servo, seguindo seu
caminho de modo a evitar que eu fizesse mais
perguntas.
As coisas estavam se tornando cada vez mais
misteriosas. Por que Sete me levaria a um templo,
em uma montanha no meio do nada?
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Fiquei pensando no que o “eu desisto” dele


queria dizer. Porventura ele não iria abdicar do
reinado, iria? Ele havia dito que outro poderia
reinar. Mas se fosse isso, o que eu estaria fazendo
ali? Sete não era uma dessas pessoas que fazem
uma coisa terrivelmente estúpida na frente de outra,
apenas para quem assiste ficar se sentindo culpado
o resto da vida, não é? Achei melhor deixar as
conjecturas de lado e ir até minha tenda.
Depois de me instalar no que seria meu quarto
por aquela noite, Ralifax veio me avisar para me
preparar porque, após a refeição, Sete partiria para
o templo.
— Minha senhora, posso lhe pedir uma coisa?
— indagou Ralifax.
— Claro, Rali. Diga — assenti.
— Quando estiver no templo, tente não julgar
Sua Majestade tão apressadamente.
— E por que eu faria isso? — indaguei sem
entender nadinha.
— Apenas me prometa, minha senhora, por
favor — implorou o servo, colocando suas mãos
geladas contra as minhas.
— O que tem lá, Rali? — perguntei,
encarando-o.
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— Algo terrível, minha senhora. É tudo o que


posso lhe dizer — informou o servo, retirando-se
do alcance de minha saraivada de perguntas.
Bom, o que quer que fosse o enigma do
templo, após o almoço, eu iria descobrir.

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A Caverna dos
Morcegos

Assim que terminamos o almoço, partimos em


direção ao famigerado templo, com pouco mais de
cinco guardas. Desta vez, Ralifax não nos
acompanhou. Sete estava muito estranho e sua
apreensão me incomodava de verdade. Seu olhar
permanecia distante, e se não o conhecesse bem,
diria que estava agonizando com alguma coisa.
Acabei sem saber se devia falar com ele ou
deixá-lo em paz com os próprios pensamentos. O
que fosse o tal templo, devia ser terrível para deixar
Sete naquele estado. O único ponto de interrogação
era o porquê de levarmos tão poucos soldados, se o
desafio era extremo e capaz de deixar Sete fora do
seu normal.

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Alguns quilômetros à frente, deparamo-nos


com uma muralha ao pé da montanha. Um paredão
enorme, o qual abrigaria facilmente um exército em
cima da estrutura. Apenas não sabia ao certo se o
templo era fortificado àquele ponto ou se o lugar
correspondia a algum tipo de refúgio. Até eu,
àquela altura, estava apreensiva. Ralifax havia
colocado um elefante atrás da minha orelha, e não
fazia a menor ideia do porquê daquela empreitada.
O rei não seria tão maldoso de pôr minha
vida em perigo depois de prometer que me
libertaria, não é?
Enxotei esse tipo de pensamento. Sete não era
assim. Ele havia se arriscado por mim, salvo minha
vida, além de ter me tratado com carinho desde o
dia em que cheguei. Eu não tinha nenhum motivo
para duvidar de que ele cumpriria sua promessa.
Desse modo, finalmente tomei coragem para me
aproximar.
— Majestade — chamei.
O rei virou-se para mim tão espantado, afinal
era a primeira vez que eu o chamava daquele jeito.
— Está tudo bem? — indaguei preocupada —
por que não me diz o que está acontecendo?
— Você logo saberá — explicou sem,
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contudo, abandonar o ar de preocupação.


Notei que ele não tirava a mão de um dos
bolsos. Era quase como se ali tivesse algum objeto
religioso, o qual tocava com o intuito de se acalmar
ou para lhe dar forças. Nunca havia visto Sete
daquela maneira. Devia ser algo medonho mesmo,
como dissera Ralifax. Quando atravessamos a
muralha, avistei um portal estupendo que levava ao
interior da montanha. Toda a arquitetura parecia ter
sido construída há muito tempo.
No momento em que adentramos, notei as
inscrições eruditas e, sustentando aquele pé direito
gigantesco, havia duas colunas, cujas bases
possuíam um tipo de dispositivo, o qual, caso fosse
acionado, colocaria o lugar todo a baixo.
Quem deixaria um “botão de destruição” num
lugar enorme como este? Cheio de esculturas e
inscrições antiquíssimas?
Eu podia estar errada, mas aquele lugar já
estava ali antes da guerra dos planetas. Sete
respirava fundo e, a cada passo dado, a tensão
aumentava. Caminhamos um pouco mais montanha
adentro até chegarmos a outro paredão à nossa
esquerda.
O rei parou e ficou observando o chão com um
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olhar longe, perdido em um oceano de


pensamentos. Os soldados fizeram um semicírculo
próximo ao paredão. Comecei a deixar a tensão
voltar a me atazanar, porque o comportamento
deles era extremamente solene.
— Sete, pelo amor de Deus, me diz o que está
acontecendo de uma vez — acabei despejando
sobre ele o meu nervosismo.
O rei indicou o semicírculo com a cabeça,
como se dissesse para eu ir até lá, entretanto, senti
que fez o gesto porque sua voz não iria sair, mesmo
se ele quisesse. Caminhei lentamente sentindo a
inquietação do rei dominá-lo até o último fio de
cabelo, um nervosismo tamanho que estava me
contagiando também. Engoli em seco e firmei meus
pés, afinal fosse o que fosse, iria ter de
testemunhar.
Aproximei-me do paredão e vi uma das coisas
mais inusitadas da minha vida. Era tão curioso que
fiquei mexendo com a cabeça para olhar de vários
ângulos, com a mínima esperança de meu cérebro,
enfim, compreender o que estava diante de mim.
Num primeiro momento, assemelhava-se a
uma pintura, a qual se iniciava no chão do paredão,
indo até um pouco acima de nossas cabeças, como
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uma daquelas pinturas em 3D. Se eu pendesse um


pouco a cabeça para a esquerda, aquela imagem se
transformava em 2D. Se eu voltasse um pouco para
a direita, ela voltava a ser 3D. Era incrível.
A imagem era como paredes de uma caverna,
dando a impressão de que, dentro do paredão, havia
um caminho e, lá na frente, uma abertura, uma
entrada, na qual corria uma queda d’agua como se
fosse uma cortina.
Aquilo era totalmente estranho e magnífico.
Era só voltar com o corpo um pouco para a
esquerda e se via perfeitamente que aquilo não
passava de uma pintura, porque a parede ficava
nitidamente bem definida. O pior, a gravura, de tão
perfeita, parecia verdadeira. Como se, por algum
milagre, dois corpos pudessem ocupar o mesmo
espaço no tempo.
Seria possível ser a quarta dimensão? Ou sei
lá que dimensão.
Atraída por aquele fenômeno, dei mais uns
passos com a intenção de tocá-lo, pois a figura era
muito real e levava-me a crer que havia um
caminho por aquela parede.
Eu já tinha visto muitas coisas bizarras
naquele planeta, mas aquilo tinha superado todas e
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se tornado a número um do ranking. Ao me


aproximar um pouco mais, meu coração quase
parou ao ouvir o som da queda d’água. Aquela
imagem não parecia real, era real.
Meu Deus! Que negócio mais doido.
Quando meu corpo finalmente abandonou a
paralisia, comecei a olhar com curiosidade para
aquele treco. Pelo jeito era algo muito bacana de
ser descoberto. Olhei atentamente para a queda
d’água, imaginando o que aconteceria se eu
colocasse minha mão naquele espaço. Será que
atravessaria? Quando observei mais fixamente,
senti que meu coração pararia de verdade.
Espera um pouco!
Mirei as frestas da queda d’água e pude ver o
céu azul cheio de nuvens brancas, bem como a luz
amarela do sol. Aquele céu que eu conhecia tão
bem quanto a palma da minha mão. Minhas pernas
enterneceram e lutei para permanecer em pé.
Comecei a ficar ofegante e a vasculhar cada canto
daquilo que me pareceu, no início, uma pintura.
Será que eu havia enlouquecido finalmente? O
restinho de sanidade tinha ido para o beleléu?
O que eu via na minha frente era a Terra. Não
havia a menor dúvida! Comecei a ficar eufórica e
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anestesiada ao mesmo tempo. Como se fosse


possível dois extremos conviverem no mesmo
corpo sem provocar um colapso.
Meu Deus! Então, isso aqui é a tal ponte de
Einstein-Rosen? E eu achando que era algo mais
grandioso, com mais energia, soltando faíscas,
talvez, e luzes. Algo mais chamativo.
Nesse momento, não pude mais conter as
lágrimas, emanando de mim como se jorrassem de
alguma fonte. Pus a mão em minha boca e deixei a
emoção emergir quando vi a minha casa tão perto.
Eu iria, enfim, voltar para o meu lar. E viva para
contar a história. Era simplesmente extraordinário!
Mas, espera um pouco...
Eu estava tão maravilhada com o caminho de
casa que nem havia feito o trabalho mental de
“ligar os pontos” sobre a minha situação. E assim
que a “ficha caiu”, explodi.
— Essa passagem estava aqui o tempo todo e
você não me disse? — rugi, com a fúria de um trem
desgovernado, sem conseguir olhar na cara de Sete.
O silêncio que se fez naquele lugar assim que
a minha voz parou de reverberar pareceu se
estender por uma eternidade. Olhei novamente para
aquela imagem e reparei na pequena flor, próxima à
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luz, junto às águas que caíam, e meu corpo todo


estremeceu como seu eu tivesse sido atingida por
uma corrente elétrica de um trilhão de volts.
Eu conhecia aquela flor, conhecia muito bem!
Comecei a devorar cada centímetro do que os meus
olhos estavam vendo, e agora eu não tinha a menor
dúvida de onde aquele lugar ficava. Aquela era a
caverna dos morcegos, situada atrás da cachoeira
da casa de férias da minha família.
— Eu tinha de ter uma chance de tentar
convencer você a ficar. A ficar por mim — o rei
disse finalmente.
Quando ele terminou a sua justificativa, meu
corpo petrificou por completo, e era como se eu
não conseguisse mais encher meus pulmões com ar.
Eu não podia acreditar no que eu havia acabado de
ouvir. Como era possível? Era muito insano para
qualquer mente inteligente. Ele simplesmente
respondeu a minha pergunta no meu idioma.
Meu corpo praticamente não respondia mais
aos meus comandos, então, lentamente, comecei a
mover minha cabeça na direção do rei. Baixei meu
olhar um pouco até as mãos dele, e eu teria
reconhecido aquele objeto aconchegado entre seus
dedos em qualquer parte do universo.
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O meu MP3.
Meus olhos subiram até o seu rosto, e eu senti
como se uma venda tivesse sido arrancada deles. E,
enfim, pela primeira vez, eu o via de verdade.
Isso podia mesmo acontecer? Na vida real?
Era mesmo possível que ele estivesse bem na minha
frente esse tempo todo e eu não tivesse notado?
Que o caminho de duas pessoas se cruze e se cruze
novamente como numa espiral?
Minha visão, agora aguçada, corria por cada
linha do seu rosto. Por cada traço. Por cada curva.
Por cada cor e cada contraste. Os mesmos cabelos
castanhos chocolate. A mesma pele levemente
bronzeada. Os mesmos olhos castanhos caramelo.
A pele da face continuava lisa, como a superfície
de uma seda fina, e os contornos do rosto tornaram-
se mais másculos, mais firmes, assim como todas
as demais partes de si. Todo seu corpo agora era
forte, imponente, protetor, perfeito. Ele havia se
tornado um homem. Um homem incrível.
— Até que enfim você está mesmo olhando
para mim — falou o rei, abrindo, em seguida, um
sorriso tímido.
— Como isso é possível? — indaguei no meu
idioma e com a voz embargada.
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— Sendo possível — respondeu também no


meu idioma.
Ele não desviava os olhos de mim nem por um
instante, mirando-me com aquela expressão que,
até então, eu acreditava ser indecifrável, mas,
agora, era tão transparente quanto cristal. Era o
mesmo semblante de quando éramos só dois
adolescentes descobrindo a vida e o amor. Todos os
momentos que passei com ele, desde que cheguei a
aquele planeta, correram por minha mente,
perfeitamente entrelaçados, como em um filme.
Cada palavra, cada expressão enigmática, cada
atitude, cada olhar, cada provocação, cada meio
sorriso, cada travessura, agora tudo fazia um
terrível sentido.
Ele sabia quem eu era desde o início!
Teria sido tolice da minha parte? Mas como eu
poderia imaginar que o garoto que conheci quando
criança, na Terra, estaria aqui em outro planeta?
Voltei-me para a ponte, a qual não se parecia nem
um pingo com um buraco de minhoca, e entendi
tudo.
Então, era assim que ele ia até lá? Ele não era
estrangeiro, era um extraterreste! Quem poderia
adivinhar? Tudo é tão estupidamente irreal que,
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até com todas as evidências sendo lançadas na


minha cara como tortas em algum programa
humorístico, eu ainda não consigo acreditar.
Voltei a olhá-lo. O que significava tudo
aquilo, afinal? Que eu devia gritar ou bater na cara
dele e dizer: “você me abandonou?”. Ou, talvez,
devesse me atirar em seus braços e seguir alegre e
saltitante para o “felizes para sempre”? Devia
querer ouvir uma explicação? E qual seria?
Então, Everlin, como casar com você iria
demorar muito, eu resolvi vir ao meu planeta e
curtir um pouco o meu harém gigantesco. E
quando você fizesse trinta, eu iria te buscar para
fazer de você a minha figurinha preferida.
Por incrível que pareça, ri do meu próprio
pensamento. Tudo bem, provavelmente, eu
estivesse exagerando. Talvez não tivesse sido
exatamente assim. Talvez houvesse um motivo para
ele ter feito o que fez. Talvez não houvesse. Fixei-
me em seus olhos e senti um pequeno e singelo
sorriso se formando em meus lábios. Eu sabia sim.
Sabia exatamente o que tudo aquilo significava.
Naquele exato momento, um sonho meu se
realizava. E, talvez o maior sonho da minha vida, o
de vê-lo crescido. Vê-lo transformado em um
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homem. Ele era mais do que eu imaginava. Era um


rei, e um excelente rei por sinal.
Que lei o obrigava a ter se despedido de mim
dez anos atrás?
Nenhuma.
Talvez ele não tivesse se entregado tanto
quanto eu em nossa curta paixão, mas isso era
culpa dele?
Não.
Eu havia dado a ele tudo de mim, mas quem
fez isso fui eu. E ninguém além de mim. E se ainda
houvesse alguma consequência maior por isso,
quem arcaria com ela também seria eu. Ele não me
disse sobre essa passagem? E onde estava escrito
que deveria ter dito? Além disso, tive a
oportunidade de vislumbrar outro planeta com
meus próprios olhos, e viveria para contar a
história, o que era o mais emocionante. Tinha
conhecido pessoas maravilhosas, salvado vidas,
aprendido e crescido.
E mais, um ano perdido de faculdade não iria
me matar. Eu poderia encarar a experiência como
trabalho voluntário. Duvido que algum voluntário
na Terra tenha adquirido a mesma bagagem de
conhecimento que eu, nos últimos meses. Pelas
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minhas contas, daria tempo de ir à estreia de Os


Vingadores — Guerra Infinita, ainda que a Liga
tenha mesmo ficado para o Blu-ray.
Assim, não havia nada a lamentar. O mistério
do garoto mudo, enfim, estava resolvido, então para
que nutrir mágoas bobas? A grande verdade era que
eu não podia mudar a atitude alheia, mas apenas a
minha. Não podia mudar os sentimentos de
ninguém, tão somente os meus.
Sorri para ele e pensei se deveria devolver a
pulseira. Após refletir um pouco, cheguei à
conclusão de que aquela joia fora um presente,
então era minha para sempre. Decidi levá-la
comigo, afinal agora ela seria, não só a recordação
do meu primeiro amor, mas também daquele
planeta fantástico, o qual eu tive a oportunidade de
conhecer, muito embora de um jeito bem
inesperado. Resolvi também não pedir nenhuma
explicação sobre o passado. Já não importava.
Meu sorriso foi se desfazendo aos poucos para
uma feição dolorosamente serena. Embora eu
soubesse que a solução de tudo aquilo estava e
sempre estivera, dentro de mim, ninguém disse que
era fácil lidar com sentimentos. Apesar disso, uma
felicidade cheia de paz começou a inundar meu
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coração. E ainda que não fosse aquele tipo de


felicidade eufórica, incontrolável, enfim,
apaixonada, geralmente nascida quando
sentimentos poderosos são correspondidos, não
deixava de ser uma felicidade.
E minha casa estava ali, bem ao meu alcance.
Eu olhava para o rei e não sabia bem o porquê
daquele olhar que me devolvia. Era como se ele
sentisse o turbilhão de emoções se acalmando
dentro de mim. E, à medida que esse processo
acontecia, e meu sorriso dava lugar a uma feição
mais terna e resignada, a respiração dele ficava
ofegante, parecendo que, a qualquer momento,
perderia o controle.
Ele parecia desejar desesperadamente outra
reação de minha parte, ou sei lá. No fim, resolvi
não estender mais aquele momento. A felicidade
conformada costuma ser dolorida em sua essência
e, por isso, não fazia o menor sentido prolongar
aquela situação para além do necessário.
Voltei-me para a passagem e olhei uma última
vez para o rei.
— Te agradeço — disse abrindo, em seguida,
um sorriso conformado e sereno.
Quando virei em direção à ponte, notei a
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respiração do rei tornando-se frenética e, de


relance, vi seus punhos sobremaneira cerrados.
Apressei-me e, no momento em que eu ia pôr o
primeiro pé na caverna dos morcegos, ouvi o seu
brado:
— Segurem-na!
Imediatamente os soldados me agarram,
impedindo-me de atravessar.
— O quê? — indaguei, tentado me soltar
daqueles homens.
Olhei para o rei e ele se virou, voltando para a
entrada da montanha, sem olhar para trás.
— Espera! Você não pode fazer isso! Não! —
vociferei.
O rei continuava seguindo seu caminho
resoluto e, por mais que eu gritasse, não se virava
para mim de jeito nenhum. Continuei me debatendo
e tentando, ferozmente, fugir dos guardas e, quando
vi que seria inútil, reuni as últimas forças que ainda
me restavam. Soltei a minha voz como um trovão e
ouvi o som estridente ecoar por toda montanha,
quando pronunciei uma única palavra:
— Dáiannnnnnn...
Mesmo assim, ele não se virou.

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Por que você me deixou?

Os soldados me levaram de volta a minha


tenda e ficaram vigiando a porta. Eu estava tão
entorpecida pela enxurrada de emoções, e pela
“bomba” detonada, praticamente, em minhas mãos,
que nem tive forças para me insurgir contra o
cativeiro.
Deitei um pouco e chorei muito. Era muita
coisa para um só dia. Ainda faltava muito para
anoitecer, mas, mesmo assim, cochilei por uns
minutos, uma meia hora talvez. Pouco tempo
depois, acordei com as criadas entrando em minha
tenda com instrumentos de banho. Àquela altura eu
já me tornara uma expert em banho improvisado.
Lavei-me afastando qualquer pensamento, pois
precisava manter a mente o mais livre possível.
Naquele momento, seria crucial para poder pensar
em como agir.
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Depois de me banhar, os pensamentos


acumulados voltaram a me atormentar e acabei nem
me vestindo. Apenas coloquei o roupão de seda e
sentei na cama, pensativa.
O que eu ia fazer a partir de agora?
Eu não fazia a menor ideia.
— Minha senhora, posso entrar?
— Sim, Rali. Entre.
Ralifax entrou e parecia muito receoso. Olhei
para ele e, finalmente, entendi o significado de suas
palavras antes de irmos à montanha.
Será que Ralifax sabe da nossa história?
— Sou prisioneira agora? — indaguei, sem me
preocupar em esconder a frustração.
— Minha senhora, sou a última pessoa no
mundo com permissão para se intrometer, mas a
senhora permitiria que eu lhe contasse uma
história?
— Rali, sério, não estou no clima. Me perdoe.
— Por favor.
O olhar de Ralifax era tão decidido e
confortador que não consegui repetir a negativa,
sucumbi, apontando para a cadeira.
Ele se sentou sorrindo.
— É uma história que a senhora precisa saber
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— asseverou.
Voltei-me na direção dele com um pouco mais
de atenção.
— Senhora, a história que quero lhe contar é a
de um jovem príncipe, cuja mãe morreu ao nascer e
passou a ser criado por um preceptor, porque seu
pai, o rei de um grande país, era atarefado demais
para se ocupar de coisas triviais como a sua
educação.
— Certo dia, durante seus exaustivos
estudos, o jovem príncipe ouviu falar de um mundo
longe daqui. Um mundo coberto por águas. Um
mundo onde o verde se estende até onde os olhos
podem alcançar. Um mundo em que o sol brilha
como ouro e uma única lua solitária resplandece
soberana em meio ao manto escuro da noite
estrelada.
— O jovem príncipe ficou encantado com esse
mundo, e durante anos abriu mão de praticamente
todo o seu tempo livre para aprender sobre ele,
admirando cada linha das poucas figuras que dele
existiam. Este príncipe sabia que em seu próprio
mundo havia uma porta, capaz de levá-lo ao mundo
de seus sonhos. Entretanto, a lei de seu pai proibia
terminantemente qualquer um, com conhecimento a
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localização da abertura, passar por ela.


— O príncipe cresceu, tornando-se
eximiamente letrado, um mestre em combate,
perito em estratégias e, acima de tudo, amando o
seu povo, quer fossem comuns ou incomuns. No
entanto, por mais que se esforçasse, não conseguia
arrancar de dentro de si a paixão pelo mundo azul.
Queria que seus olhos vislumbrassem, mesmo por
uma única vez, esse lugar maravilhoso.
— Não podendo mais conter o desejo de
realizar esse sonho, o príncipe desobedeceu à lei de
seu pai e atravessou a ponte dos mundos, querendo
que seus olhos captassem, nem que fosse por
apenas um segundo, o que havia do outro lado.
— Porém, ao pisar naquele mundo, o jovem
príncipe não só descobriu suas belezas, mas
também uma linda jovem, que lhe ensinou
maravilhas além de sua imaginação. Que lhe
mostrou como, do conhecimento, podem nascer
coisas magníficas.
— E o que era para ser um minuto,
transformou-se em um dia. E o que era para ser um
dia, transformou-se em semanas, e quando o
príncipe se deu conta, não queria mais retornar.
Estava perdidamente apaixonado pela bela menina
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do mundo azul. A linda donzela, que havia lhe


mostrado tudo, roubou-lhe o coração e alma. O
príncipe, então, pediu ao ourives do palácio que lhe
fizesse uma joia, igual àquelas as quais os jovens
da nobreza oferecem às suas prometidas, e a deu à
garota, que ansiava ardentemente desposar.
— Por causa dessa moça, o príncipe já não era
o mesmo. Queria ser livre. Queria estar onde ela
estivesse. Mas, no fundo de seu coração, sabia do
compromisso para com seu povo, e que seu país
não poderia mais ficar à mercê do governo elitista
de seu pai. Um governo, o qual desprezava por
completo a raça semelhante.
— O príncipe, então, desejou com todas as
forças que sua amada aceitasse vir com ele, abrindo
mão de seu próprio mundo. Certa noite, o jovem
príncipe retornou ao seu palácio completamente
feliz porque sua amada havia aquiescido em deixar
o próprio mundo e vir com ele para o seu. Embora,
para isso, fosse necessário esperar por vários anos,
porque a linda jovem não estava na idade núbil de
seu país, a felicidade do jovem príncipe era
inabalável e contagiava toda atmosfera do enorme
palácio de pedra, que era o seu lar.
— Mas essa felicidade, lamentavelmente, não
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durou muito. O rei descobriu que o príncipe, não só


havia desobedecido a lei, como também pretendia
trazer uma mulher do outro mundo para ser a futura
rainha de seu país. Temeroso de que esta mulher
pudesse trazer costumes estranhos e,
inconvenientemente, progressistas, ordenou aos
soldados de sua guarda para irem ao encalço do
príncipe, conduzindo-o de volta, por bem ou por
mal.
— Capturado e trazido de volta, por sua
desobediência, o rei o açoitou perante os nobres, os
conselheiros e os comandantes do exército, e o
ameaçou, afirmando que, se mais uma vez
desobedecesse à lei, destruiria para sempre a
montanha que abrigava a passagem.
— Por medo de seu pai cumprir a terrível
ameaça, o jovem príncipe decidiu esperar pelo
momento certo, porque pelas leis de sua nação, aos
vinte anos, tornar-se-ia rei no lugar de seu pai.
— Cerca de três anos depois, o príncipe não
podia mais conter a saudade de sua amada e a
ansiedade por notícias, porque a fúria de seu pai
não lhe permitiu sequer se despedir de sua noiva.
— O príncipe, então, exasperado por notícias,
desobedeceu mais uma vez à lei e atravessou
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novamente a ponte, mas, para o seu maior


desespero, tudo o que encontrou foi uma casa
vazia.
— Determinado a rever seu grande amor, o
príncipe se preparou para retornar ao mundo azul,
no entanto, o pai, ao tomar conhecimento de seu
plano, decretou que montanha da passagem fosse
destruída, contrariando o alerta da maioria dos
conselheiros, que temia que o poder do portal
trouxesse a catástrofe, caso fosse retirado de seu
estado original.
— O jovem príncipe, quase na idade de se
tornar rei, e já influente entre os nobres e as altas
autoridades de seu país, bem como temido e
admirado por seu exército, recorreu ao alto
conselho, e muitos conselheiros o apoiaram,
temendo a vinda de uma tragédia sem precedentes.
— O príncipe, no comando de homens leais,
partiu para a montanha com o intuito de impedir
que o Rei Dardárian utilizasse o sistema de
destruição construído pelos antigos, capaz de pôr a
montanha inteira abaixo.
— O príncipe e o rei, então, travaram uma
terrível batalha pelo destino da passagem, e o rei,
ao perceber que seria vencido por seu filho, correu
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para acionar o mecanismo de destruição da


montanha. Naquele momento, o príncipe percebeu
que só havia uma maneira de detê-lo.
— O príncipe, apesar da profunda dor em seu
coração, retirou o arco encaixado em seu peito e
pegou uma das flechas de sua aljava. Secou suas
lágrimas, para que não obstruíssem sua mira, e
atirou, atingindo o rei no exato momento em que
estava prestes a pôr um fim na montanha.
— O príncipe, ao ver o fim da batalha e
tudo o que havia lhe custado, chorou o choro mais
amargo de sua vida. E, poucos dias após o luto,
tornou-se rei.
— O agora rei retornou várias vezes ao mundo
azul em busca de sua amada, mas a casa
permaneceu vazia e continuou assim por muito
tempo, fazendo com que ele perdesse totalmente a
esperança.
— O jovem rei pensou se deveria sair numa
jornada pelo mundo azul em busca de seu grande
amor, mas onde encontraria, naquela imensidão,
uma única garota? E mais que isso, seu povo
necessitava de seus cuidados e o país de sua
proteção.
— O rei, depois de muito esperar sem sucesso,
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resolveu deixar o mundo azul e, pela insistência dos


líderes e nobres por um novo príncipe, decidiu
tentar deixar para trás o amor, que jamais voltaria a
ver, aderindo, enfim, aos costumes de seu país.
— Depois de alguns anos, e num momento em
que o rei já não tinha a menor esperança de voltar a
amar novamente, uma bela e raríssima jovem
apareceu em seu harém.
— E quando ele a viu, era como se um milagre
do Universo tivesse ocorrido. Um milagre
grandioso o bastante para devolver seu grande amor
perdido. E mesmo sabendo que a jovem não viera à
sua procura, mas, tão somente, por um acidente do
destino, a determinação do rei continuava mais
vívida que nunca.
— E quanto mais se passavam os dias tendo
outra vez sua amada tão perto de si, mais
apaixonado o rei se tornava. Entretanto, ainda que
direcionasse todo o seu esforço para, uma vez mais,
conquistar o coração de sua amada, o rei enfrentava
terríveis derrotas, uma após a outra.
— Até que um dia o rei, enfim, compreendeu
que não haveria outro remédio senão contar-lhe a
verdade, se quisesse ter a mínima chance de que
ela, mais uma vez, o amasse, e aceitasse
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permanecer junto a ele em seu mundo.


— Eu só sei a história até esse ponto. A parte
em que ele conta a verdade, e como ela reagiu ao
saber, ainda não me contaram.
Depois que Ralifax terminou a história foi
como seu eu tivesse perdido a capacidade de falar.
Fiquei apenas olhando para ele, atônita. Os
pensamentos ficaram desconexos, como se as
sinapses tivessem sido interrompidas por um
blackout. Fiquei assim como um objeto inanimado
por vários minutos, até minha psique parar de dar
tilt e voltar a funcionar, igual a um computador
reiniciado pelo botão de reset.
Meu Deus do céu!
— Como você sabe de tudo isso, Rali? —
perguntei pausadamente, forçando minha mente a
funcionar e meus lábios a se moverem.
— Porque eu fui o preceptor que o criou —
respondeu sorrindo.
— Então, você sabia sobre mim?
— É claro que sim. Não pode imaginar como
o mestre Dáian ficou feliz ao vê-la no harém,
senhora. Embora o tenha deixado mancando aquele
dia — afirmou Ralifax, rindo como se visualizasse
novamente a cena em sua mente.
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Quando o tutor do rei terminou de pronunciar


as palavras “mestre Dáian” em voz alta, era como
seu alguém apertasse meu coração com força. Isso
significava que eu não havia sonhado com nada
daquilo. Dáian era mesmo o Rei Sete.
— E agora que a conheço, consigo
compreender por que o mestre Dáian ficou tão
apaixonado — asseverou Ralifax com uma
expressão cheia de ternura.
— Obrigada por me contar, Rali.
— Vou deixá-la com seus pensamentos, minha
senhora. Acredito que tenha muito em que pensar
— disse o tutor, levantando-se, e saindo em
seguida.
Eu confesso, não sabia o que pensar de tudo
aquilo. Só de imaginar quantas vezes odiei Dáian
por ter sumido sem me dizer e, agora, descobrir que
ele sofreu, pelo menos, mil, não, um milhão de
vezes mais que eu, fazia a culpa me consumir por
dentro.
Pobre Dáian. Ninguém em todo o universo
poderá jamais saber a dor de alguém que se vê
obrigado a assassinar o próprio pai.
Caí de joelhos.
De meus olhos brotaram um choro ácido e
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dolorido. Nunca havia sentido tanto peso sobre as


minhas pernas. A consciência de que vivi aqueles
dez anos na pura mediocridade, achando o meu
sofrimento comparado a um oceano, quando na
verdade não passava de uma mísera gota,
transformava-me na pior das criaturas. Eu respirava
tão pesadamente que, mais uma vez, minha mente
ficou em branco, preservando apenas uma palavra.
Dáian.
Levantei num sobressalto. Caminhei a passos
firmes em direção a entrada da tenda e, quando fui
impedida de sair pelos guardas, ordenei:
— Deixem-me sair agora, eu vou ver o rei, ou
sofram as consequências — estreitando meus olhos
logo na sequência.
Senti os soldados tremerem tanto que
acabaram abrindo o caminho.
Corri até a tenda do rei e quando cheguei,
parei bem na porta. Vi, pela abertura, Ralifax com
ele. Resolvi não interromper, contudo também não
tive força para retroceder porque, no fundo, queria
muito ouvir a conversa.
— Mas, meu senhor, se não ia suportar a
decisão dela, por que a testou desse jeito? —
indagou Ralifax com pesar.
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Fez-se alguns minutos de silêncio.


Quando percebi que Dáian não ia responder,
movi minha cabeça para conseguir vê-lo pela
pequena abertura na porta. Assim que meus olhos o
viram, meu coração explodiu, num frenesi
indomável. Nem fazia ideia do quão desesperada
por ele eu estava. Ele estava sentado sobre a cama,
com os braços apoiados nas coxas e a cabeça baixa.
A respiração parecia entrecortada e, quando olhei
mais atentamente, percebi que chorava.
Nem consigo descrever o que senti.
— Deixe-me só, Ralifax — ele solicitou com
voz fraca.
Ralifax veio em direção a porta e me viu. Sem
retroceder, e sem dizer ao rei que eu estava ali, o
tutor passou por mim, olhando-me e sorrindo, como
se a única salvação tivesse, enfim, chegado. Então,
o preceptor prosseguiu em seu caminho nos
deixando, enfim, a sós.

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O Tesouro de Yonah

Dáian não me notou ali na porta de sua tenda.


Continuava chorando baixinho. Ao vê-lo daquela
maneira, sem perceber, tudo o que vivemos voltou
a minha mente, como em um sonho bom,
destruindo, de uma vez por todas, aquele escudo
que eu havia construído envolta de mim. Eu o
amava tanto. Sempre o amei. Na minha ignorância,
achava que havia entregado tudo de mim a ele, mas
a verdade havia sido: ele quem me dera tudo si.
Me peguei pensando que se eu fosse a rainha
má dos contos de fada eu deveria perguntar:
espelho, espelho meu, existe garota mais idiota do
que eu?
Mas já era hora de dar um basta às idiotices
orgulhosas. A única que podia desfazer aquele
sofrimento era eu. Fiquei me perguntando, como eu
faria para fazê-lo voltar a sorrir? Que palavra
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poderia expressar o tamanho do meu amor por ele,


se é que havia alguma? Cheguei à conclusão:
nenhuma frase teria esse poder, por mais
engendrada que fosse. Entrei lentamente na tenda,
sem desviar o olhar nem por um milésimo de
segundo do meu amado. Do meu rei. Do meu
Dáian.
Quando ele percebeu que eu estava na tenda,
levantou-se surpreso. A seguir, permaneceu
olhando para mim sem tentar enxugar as lágrimas,
e seu rosto, mesmo choroso, era lindo, deixando-
me completamente sem fôlego. O corpo então, nem
posso dizer.
Será que ele sempre foi tão bonito assim?
Eu queria, enfim, mostrar-lhe o quanto o
amava, mas não havia vocábulos suficientes. O
olhar dele era tão doce que me enfeitiçava,
fazendo-me desejar me prender cada vez mais em
sua rede. A verdade era, nem se eu dissesse “eu te
amo” um milhão de vezes, seria o bastante. Só
havia uma coisa a fazer que, talvez, pudesse chegar
perto de expressar a emoção que dominava até o
último pedacinho de mim. Que pudesse mostrar-lhe
que eu lhe pertencia de corpo e alma.
Sem pensar, sem hesitar e sem desviar o meu
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olhar daqueles olhos cor de caramelo,


extraordinários, lentamente, comecei a soltar a
faixa do meu robe de seda, sentindo-o cair por meu
corpo bem devagar, deixando-me inteirinha à
mostra. Eu nunca tinha feito algo assim em toda
minha vida. Minha respiração simplesmente arfava
violentamente, à medida que afundava em uma
miscelânea de emoções. Paixão, timidez, euforia,
felicidade, ansiedade, curiosidade, medo, amor,
desejo, tudo solvia como numa mistura química.
Após meu robe cair, Dáian respirou fundo,
inclinando-se um pouco para trás, como se minha
atitude tivesse lhe desestruturado célula por célula.
Ele me mirava e seus olhos pareciam devorar cada
centímetro do meu corpo. Sem a menor pressa, veio
em minha direção, dando um passo de cada vez.
— Como você consegue ser tão linda, Lin? —
disse, compassadamente.
Quanto mais ele me olhava daquele jeito, mais
disparado meu coração ficava.
Só o seu olhar já deixava minha respiração
violenta e meu corpo sensível, indomável. Então...
Como seria quando ele me tocasse? Quando eu o
sentisse? Quando estivéssemos... Meu Deus!!! Eu
ia perder os sentidos, já estava perdendo o controle
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só de imaginar.
— Acho melhor você ir logo, antes que eu
comece a pensar — alertei, completamente
nervosa.
Dáian sorriu de um jeito tão doce e alegre que
parecia que o fantasma da tristeza de um minuto
atrás nunca houvesse lhe assombrado. Bem
devagar, ele deu a volta por mim, abaixou-se,
pegou o meu robe e voltou a vesti-lo em mim. Ele
estava tão perto, que eu sentia sua respiração em
meu pescoço enquanto seu perfume inebriante me
envolvia indo até as entranhas de minha carne.
O tecido tocou minha pele de um jeito
totalmente diferente de quando eu mesma me
vestia. Até aquele simples pedaço de pano, quando
conduzido pelas mãos de Dáian, era capaz de me
fazer estremecer em êxtase.
Assim que ele terminou de me cobrir, senti
seus dedos correndo suavemente pela lateral da
minha coxa, subindo pela cintura, passando pelo
contorno de meu seio, depois pela axila, descendo
por toda a extensão do meu braço, chegando,
enfim, à palma de minha mão, até seus dedos se
entrelaçarem nos meus. Eu já tinha esquecido como
suas estranhas carícias conseguiam arrancar, lá das
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profundezas, meus instintos mais selvagens.


Sua atitude desmantelou completamente
aquela camada de concreto sólido, posta por mim
após enterrar meus sentimentos numa cova
profunda. Não entrava em minha mente como uma
carícia tão singela tinha o poder de fazer me sentir
tão mulher.
A postura dele, assim como seu toque,
perpassando suavemente os dedos pelo contorno do
meu corpo, era semelhante a um inveterado amante
de vinhos, que saboreia prazerosamente a bebida,
simplesmente por admirar o belo líquido na taça,
enquanto desliza a ponta dos dedos pela borda do
cálice.
Como ele conseguia me deixar completamente
em suas mãos, eu nunca saberia dizer.
Ele trouxe seu rosto até meu pescoço e sorveu
o aroma, como se eu fosse a flor mais perfumada
do mundo.
— Acho melhor você ir logo, antes que eu
pare de pensar — alertou, com aquela voz meiga e
ousada, encostando-se levemente em mim e me
deixando sentir o tamanho do desejo que estava
reprimindo.
O que estou fazendo?
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Enfim, percebi a nossa situação, e corei como


um pimentão. Amarrei meu robe e saí correndo,
com a cara queimando de vergonha. Entrei
desvairada em minha tenda, e me joguei na cama,
abraçando o travesseiro com todas as minhas
forças.
Meu Deus! O que eu fiz? Será que ele falou
tantas vezes que eu era sua esposa que já estava
me convencendo? Absorvendo a ideia por osmose?
Fiquei olhando para o teto da tenda sem
acreditar no que estava vivenciando. Há tanto
tempo não me sentia daquela maneira. Como se
meu corpo flutuasse num oceano de felicidade. E
aquele tipo de felicidade, a qual pensei que jamais
voltaria a experimentar. Felicidade apaixonada.
Sem querer, acabei recordado que, há algum tempo,
eu havia dito para Janes, Carin e Delaila que, se um
dia eu me despisse na frente do rei, poderiam em
internar porque estaria louca.
É... Talvez o peixe morra mesmo pela boca.
O amor pode não enlouquecer, mas deixa a
pessoa “sem noção”. Ah, se deixa!
— Minha senhora, posso entrar? — ouvi
Ralifax perguntar.
Nossa, aquele dia estava longo.
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— Sim, Rali, entre.


O tutor entrou em minha tenda e estava
radiante. Sem dúvida alguma, ele amava Dáian.
— O rei solicita a sua presença.
Gelei e mordi meus lábios.
— Ele quer se encontrar com a senhora, em
um lugar especial.
Expirei o ar pela boca como quem quer
dominar o nervosismo. Quando olhei para Ralifax
ele sorriu, ajoelhando-se em seguida.
— Muito obrigado, minha senhora, por
devolver a vida ao meu rei.
— Rali, levanta daí, pelo amor de Deus!
Corri e o abracei.
— Eu é que agradeço, por você ter cuidado
dele — agradeci, colocando a mão de Ralifax sobre
meu rosto — de nós dois, completei.
— — Minha rainha! — exclamou, contendo
as lágrimas e sorrindo.
Sorri. Aquela palavra ainda não se encaixava
muito em mim. Entretanto, ele disse de um jeito tão
afetuoso, e acabei nem me importando.
— Mas o que estamos esperando — convidou
Ralifax se levantando — a senhora tem um
encontro e eu tenho uma surpresa.
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Ralifax bateu palmas e as empregadas


entraram na tenda, carregando diversos apetrechos
e dois embrulhos grandes.
Um dos pacotes era um vestido vermelho,
lindíssimo. Um tom de vermelho que nunca havia
visto. Vermelho rubi, talvez.
O outro embrulho era um estojo grande.
Quando o abri, tinha um conjunto de colar e
brincos, o qual deixariam até a princesa Kate
Middleton sem fala. O design era simples e
imponente ao mesmo tempo. Era maravilhoso.
Parecia de diamantes e rubis. Agora o vestido
vermelho fazia sentido.
— Você não está sugerindo que eu use isto,
não é, Rali?
— O rei encomendou especialmente para a
senhora quando ainda era um príncipe. Estava
guardado na sala de tesouros, juntamente com isto.
Ralifax me mostrou uma coisa que me deixou
boquiaberta.
— Meu CD do Backstreet Boys, Black &
Blue!
Peguei das mãos dele.
— Como isso foi parar aqui? — indaguei
espantada.
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— O rei guarda um monte dessas relíquias


em sua sala de tesouros.
— Ele pegou do meu quarto? — perguntei
emocionada.
— Tudo o que pode — afirmou o servo —
provavelmente deixou o lugar quase vazio —
finalizou.
Lembrei que uma vez meu pai comentou sobre
o furto de algumas coisas da casa de férias, mas
sem muitos prejuízos, exceto... parei...
Ah... não acredito...
Exceto o telescópio. Estava no meu quarto.
Aquele era mesmo o telescópio do meu pai!
Fiquei feito boba olhando aquele CD,
imaginando Dáian carregando as minhas coisas.
Olhei para o vestido vermelho e para as joias.
Embora jamais tivesse sequer sonhado em usar uma
joia tão cara quanto aquela, por Dáian, eu abriria
uma exceção.
— Não vamos deixar o rei esperando
incentivou Ralifax — vamos meninas, façam sua
mágica — finalizou, deixando-me a sós com as
servas.
Elas não demoraram muito para me
transformar. Fizeram uma maquiagem fabulosa,
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mais linda que a de minha primeira noite no harém.


Eu nem me reconhecia. Decerto, nunca estivera tão
bonita em toda a minha vida.
O toque final foi colocar minha pulseira
preciosa. Quando saí da tenda, o sol já estava
relativamente baixo e, em breve, chegaria o
entardecer. Ralifax conduziu-me até uma área com
um pouco mais de vegetação, onde havia uma
árvore antiga e frondosa.
Quando me aproximei, vi Dáian em pé junto à
árvore, esperando-me. Logo que aproximei, ele se
virou e me olhou da cabeça aos pés, embasbacado.
— Ralifax — disse, enfim, compreendendo a
razão da minha mudança de vestuário.
— Você não gostou? — perguntei, sentindo o
pingo gelado da insegurança vindo perturbar o
sossego da minha mente.
— Só se eu fosse um completo idiota —
respondeu, sorrindo.
Comecei a mexer as mãos nervosa. Eu não
fazia a menor ideia do que dizer.
Sobre o que iríamos conversar, meu Deus?
— Se eu fizer uma coisa, você promete não
me odiar?
— Odiar você? Isso seria impossível —
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confessei acanhada.
Dáian abriu um sorriso lindo e radiante.
Depois disso, veio caminhando tão rapidamente em
minha direção que quando me dei conta, já estava
em seus braços e seus lábios já estavam
completamente encaixados nos meus, numa
perfeita simbiose.
Ele me beijava com tanto desejo, como se
estivesse sedento por isso há milênios. E eu, mais
uma vez, senti aquilo que experimentei há dez
anos. Uma sensação que não consigo descrever. E,
finalmente, entendi porque me tornara renitente
quando o assunto era me apaixonar novamente. Em
algum lugar, recôndito de meu ser, perfeitamente
que nenhum homem no universo podia me dar
aquilo, só ele.
Não consegui controlar mais a necessidade, a
qual eu estava contendo há dez longos anos, e
comecei a beijá-lo vorazmente, como se não
houvesse amanhã. Ficamos ali nos beijando nem
sei por quanto tempo e, somente quando estava no
limite do meu fôlego, desgrudei meus lábios dos
dele. Respirei fundo.
— Até que enfim consegui acalmar minha
sede de dez anos — admiti sem pensar e sem saber
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onde me enfiar.
— Mas eu ainda não — afirmou, passando sua
mão pelos cabelos da minha nuca e os segurando
suave e firmemente.
Ele me beijou outra vez, com o mesmo apetite
ávido e, de minha parte, entreguei-me
completamente. Após algum tempo, começamos a
ficar sem fôlego novamente.
— Você me sufoca assim — repreendi, rindo.
— Me desculpe, perdi o controle de mim.
Olhei para ele e fiquei acariciando seus
cabelos. Dáian me tomou em seus braços, como se
eu fosse leve como um papel e se sentou comigo
aninhada ao seu peito, aos pés daquela árvore
gigante e linda.
Deitei minha cabeça em seu ombro.
— Para você ter ido me ver daquele jeito, no
mínimo Ralifax deve ter lhe contado tudo, não é?
— Contou. Eu sinto muito por seu pai —
expressei, levantando a cabeça.
— Eu não queria que você soubesse. Não
quero que sinta nem sequer uma gota de culpa pelo
que aconteceu — asseverou, mirando-me
fixamente.
Beijei sua bochecha.
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— Mas não vamos mais falar disso. Me conte


tudo o que fez nesses dez anos, já abriu sua clínica?
— Já, não te disseram? Eu cobro meio ciclo
yoniano de cobre para cada paciente que curo. Não
dá para comprar nem o miolo de um pãozinho, mas
mesmo assim me dizem: que careira! Você é uma
esposa do rei, não pode estar morta de fome desse
jeito! Aí me trocam por aquele “charlatão
encrenqueiro”, que fica batendo um galho de folhas
velhas cheias de cocô de inseto na cara dos
pacientes.
Dáian riu tanto, mas tanto, e eu fiquei, tão
somente, admirando seu sorriso lindo.
— É tão bom te ver sorrir assim — confessei.
— Você é única que consegue arrancar isso de
mim — admitiu, acanhado.
Eu não queria tocar no assunto que estava me
consumindo, mas, por óbvio, eu não conseguiria
ficar calada por mais tempo.
— Dáian, posso fazer uma pergunta?
— Todas que quiser, meu amor.
Meu coração disparou ainda mais quando
pronunciou o “meu amor”.
— Por que tantas mulheres? — soltei de uma
vez a pergunta bicuda.
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Dáian levantou um pouco o tronco e ficou


olhando para mim admirado e sorridente, enquanto
eu tentava me enterrar sem saber onde.
— Pergunte isso de novo — pediu, alegre.
— Já perguntei — falei, virando-me e
cruzando os braços.
Ele levantou num sobressalto, comigo nos
braços, e passou a me girar, sorrindo feito um
garoto eufórico.
— Eu não acredito nisso, meu Deus, até que
enfim — ele falava enquanto se divertia brincando
daquele jeito.
— Até que enfim, o quê? — indaguei,
soltando uns gritinhos típicos de quem está
morrendo de medo da brincadeira um pouco mais
arriscada.
Se ele continuasse girando daquele jeito,
possivelmente, íamos acabar caindo como duas
crianças.
— Até que enfim essa mulher está com
ciúmes de mim, nem posso acreditar.
Corei e virei para o outro lado quando ele
parou de rodopiar. Ele sentou ainda comigo nos
braços e começou a beijar meu rosto sem parar.
— Você ainda não respondeu a minha
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pergunta — lembrei, não deixando que a


manifestação de afeto dele desviasse a atenção do
impasse que tínhamos ali.
— Você não me deixaria desfrutar um pouco
mais dessa sua carinha enciumada antes de eu
responder, deixaria? — ele indagou, engraçadinho.
Continuei de cara amarrada.
— Como você é linda!
— Vai responder ou não?
Ele sorriu, balançando a cabeça. Parecia
mesmo maravilhado com a minha cena.
— Quando enfim perdi a esperança de você
voltar àquela casa, retornei a Yonah e cedi a
pressão do conselho e dos nobres.
— Isso Ralifax já me falou — asseverei, ainda
não satisfeita.
Ele abriu um sorriso maior ainda.
— Lin, olhe para mim.
Olhei um pouco contrariada.
— Eu sinceramente pensei que nunca mais
veria você. Então, que diferença fazia? Daquele
jeito era até melhor, pelo menos eu não teria de
fingir amor para ninguém. Apesar de, no fundo, eu
preferir ficar sozinho, tinha um compromisso para
com meu povo. Não podia deixar minha nação sem
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rumo no futuro. E se eu encontrasse alguém que me


lembrasse você, mesmo um pouquinho, talvez um
filho preenchesse o vazio que você havia deixado
em mim.
Então, era isso.
Por isso aquele grupinho de morenas claras
como eu. Só Dáian para fazer uma coisa dessas.
Satisfazer uma mulher com uma explicação fofa
para uma situação praticamente inexplicável.
— Satisfeita, meu amor?
— Ainda bem que você se livrou daquele
treco antes de me contar — esbravejei.
Nisso ele foi esperto.
— Como você consegue isso, Lin? Quando
não consigo imaginar você mais bonita, você
consegue ficar, e me surpreender.
Sorri meio tímida, reclinando minha cabeça
em seu ombro. Dáian pegou meu braço no qual
estava minha pulseira, e começou a beijar a joia.
— O que foi? — perguntei, achando curiosa a
sua atitude.
— Só estou dando graças a Deus que fui eu
quem te deu isso. Senão, pobre de mim! Eu não
teria a menor chance.
Eu ri. Vislumbrando aquela joia, a qual esteve
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comigo por todo esse tempo, e refletindo sobre


todas as coisas pelas quais passe, comecei a pensar
que, talvez, o tal Murphy fosse com a minha cara,
afinal.
— Sabe que eu quase tive pena daquele
soldado. Quase. No fundo, quis ser uma mosquinha
para ver você dando um chega para lá nele.
— Que maldoso! — repreendi, sorrindo e
dando um tapa no braço dele.
Dáian encolheu o braço, devolvendo o sorriso.
— Lin, olhe para mim.
Eu o encarei atenta.
— Eu não quero que você ame quem eu era há
dez anos. Quero que ame o meu “eu” de agora. Por
favor!
Como ele consegue isso? Dizer e fazer coisas
que mexem até com a última partícula do que eu
sou. Existe mesmo isso no universo? Se apaixonar
de tal maneira que só uma vida não é suficiente.
Que só tocar não é suficiente. Eu queria entrar
dentro dele se pudesse.
Desfiz minha posição, sentada no colo dele,
transformando-a numa bem mais ousada. Uma que,
se fosse qualquer outro homem, eu jamais teria
feito. Sentei-me em seu colo de modo a ficar bem
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na frente dele, numa postura que fez meu coração


disparar porque, afinal, eu estava de vestido.
Só Dáian para arrancar esse tipo de coisa de
mim.
O rei respirou fundo.
— Eu amo você inteirinho. Quem foi, quem é
e quem virá a ser — falei bem perto de sua boca, já
encostando meus lábios nos dele.
A contragosto deixei os lábios dele, depois de
um beijo demorado.
Por que seres humanos necessitam de ar?
— Queria tanto que esse dia não acabasse —
ele desejou.
Já estava escurecendo.
— É verdade, precisamos ir.
Dáian e eu voltamos ao acampamento de mãos
dadas, e ele me deixou na porta de minha tenda tal
qual um namorado deixa a namorada em casa.
Assim que entrei, ele me seguiu, puxando-me pelo
braço e voltando a dominar meus lábios com os
dele, num beijo desesperado. Era como se aquela
sede arrebatadora que tínhamos um pelo outro
tivesse nos dominado novamente e nossas peles se
tocando fossem insuficientes para saciá-la.
Dáian me tomou pela cintura e me colocou
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sentada em cima da penteadeira enquanto


saboreava meus lábios, alucinado. O toque dele
estava muito mais intenso que aos pés da árvore,
senti o desejo dele de correr suas mãos por todo o
meu corpo.
— Dáian — o chamei entre suspiros.
— O que foi, meu amor? — indagou, sem
parar de deslizar os lábios por meu pescoço.
— É que... é que eu... eu ainda não me sinto...
Ele parou e olhou para mim.
— Ainda não se sente minha esposa? — quis
saber, surpreso.
Balancei a cabeça de um lado para o outro,
negando.
— Ué, cadê aquela mulher ousada que me
mostrou seu corpo todinho algumas horas atrás? A
que deixou meu sangue viril fervendo até agora? —
indagou, trazendo à tona aquela situação por pura
travessura.
Novamente, minha cara quase caiu de
vergonha. Pensei no que eu tinha feito e desejei um
buraco para me enterrar. Nunca imaginei ter
coragem de me despir daquele jeito diante de um
homem.
Aliás, a culpa por aquilo foi toda dele quando
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decidiu jogar no modo “apelão” com aquelas


lágrimas.
Desci da penteadeira.
— Naquela hora eu não estava pensando
direito. A culpa foi sua por não aproveitar.
Dáian riu feito uma criança.
— Ah... pela sua reação quando me viu saindo
daquela piscina, eu devia ter imaginado que, para
você conseguir deixar o roupão cair daquele jeito
tão sensual, não devia estar muito boa da cabeça.
Catei o primeiro travesseiro que vi e taquei
nele. Ele sorria tão gostoso, parecendo se divertir
tanto, como nesses nossos momentos, há muito
tempo.
— A propósito, posso saber por que você não
aproveitou a oportunidade? — perguntei meio
insegura, afinal aquele harém que ele teve estava
transbordando de mulheres muito mais atraentes do
que eu.
— Porque precisava ter certeza de que você
também amava o rei, e não só o Dáian.
Era inacreditável como ele me derretia com as
suas explicações.
— E tem outra coisa — informei.
— O quê?
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— Eu vim para cá de um jeito não muito... não


muito... como posso explicar... De um jeito não
muito convencional, eu diria.
Se bem que ir para outro planeta nunca seria
convencional, não importa de que ângulo se olhe.
— O que quer dizer?
— Que quando eu vim para esse mundo, sofri
um acidente no meu. Um acidente muito grave.
Dáian franziu a testa.
— Por causa disso, meus pais devem estar
pensando que eu morri.
— Deus do céu, Lin.
— Eu tenho de voltar para casa. Preciso dizer
aos meus pais que estou viva e bem.
O rei abaixou a cabeça, pensativo. Toda sua
felicidade parecia ter sumido no instante em que
pronunciei as palavras “voltar” e “casa” na mesma
frase.
— Você que voltar ao seu mundo, então?
— Você podia ir comigo. Vai ser só por um
dia mesmo. Vamos, digo que estou viva e bem aos
meus pais, te apresento, me despeço e voltamos.
— É sério isso, Lin? — indagou já mais
contente, como se a luz tivesse retornado às suas
pupilas.
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— Sim, eu prometi a você que viria, não


prometi?
Ele abriu um sorriso aliviado e, começou a
beijar cada canto do meu rosto.
— E se formos e nos casarmos como vocês
costumam fazer no seu mundo, vai se sentir minha
esposa?
Balancei a cabeça afirmativamente, tão
radiante como se a felicidade escapasse de dentro
de mim, atravessando minha pele e entrando em
contato com a atmosfera do planeta.
— E por que não me disse antes, Lin? — ele
perguntou, puxando-me para perto de si e me
aconchegando em seu peito — de hoje em diante,
tudo o que quiser, é só me pedir — finalizou.
Após aquela afirmação, Dáian ficou pensativo
por alguns instantes.
— Lin, mas você tem certeza de que se
formos, você não vai sentir nem um pouquinho de
vontade de ficar por lá?
— Não. Não se preocupe.
— Mas e se formos e seus pais insistirem para
você ficar com eles?
— Eles não farão isso, não se preocupe.
— Mas e se...
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— Dáian. Eu vou voltar com você! — afirmei


resoluta, tentando tranquilizá-lo.
— Você promete?
— É claro que sim, meu amor.
Quando acabei de dizer as duas últimas
palavras, Dáian me agarrou e me beijou novamente.
— Amanhã vamos, então — prometeu, ainda
suspirando pelo beijo.
— Amanhã nos casamos — falei.
— Sim. Amanhã, você será minha esposa.
Meu Deus, que loucura, eu vou me casar
amanhã! Qualquer autoridade religiosa que se
dispusesse a dizer para mim e para Dáian “eu vos
declaro marido e mulher” já estaria valendo.
— Já escureceu, é melhor eu ir. Mandarei que
lhe tragam o jantar — ele disse.
— Está bem.
— Posso dormir aqui com você, hoje?
Prometo ficar quietinho.
Balancei a cabeça de um lado para o outro,
sorrindo.
— Ah, Lin...
— Nada disso. Amanhã.
— Então, até amanhã — ele respondeu com
um sorriso.
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— Até amanhã.
Tão logo Dáian saiu, senti que cheguei até
minha cama flutuando numa nuvem. Nem percebi o
sono chegando.

Quando a noite já ia alta, acordei com o som


de relinche de cavalos. Levantei metade de meu
corpo num sobressalto. A noite estava bastante
iluminada e, pelas paredes da tenda, via a intensa
movimentação de pessoas em um verdadeiro corre-
corre. Vesti a primeira coisa mais decente que
encontrei e saí pela porta para me inteirar do que
acontecia. O luar iluminava tudo e, claramente,
uma batalha estava sendo travada entre a guarda de
elite de Yonah e uma tropa de cavaleiros
misteriosos, a qual chegara para um ataque
sorrateiro ao nosso acampamento.
As criadas corriam desesperadas porque o
lugar havia se transformado em uma zona de
guerra. Não vi Dáian. Corri e peguei os bastões de
um dos nossos soldados que havia caído e comecei
a lutar junto com a guarda. Entretanto, os inimigos
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que investiram contra nós estavam em maior


número. Comecei a abrir caminho por aquele
alvoroço tentando encontrar Dáian em algum lugar.
Segui por uma passagem mais escondida entre as
tendas e deparei-me com Ralifax encurralado por
dois soldados.
Voei em cima deles, e logo estavam no chão.
— Rali, onde está Dáian?
— Eu não o vi, minha senhora.
— Devem ter atacado o acampamento para
matá-lo, temos de encontrá-lo — falei desesperada.
— Não, minha senhora. Não é o mestre Dáian
que eles querem, e sim a localização do templo.
— Não acredito — rosnei.
Então era isso? Era esse o tesouro de Yonah?
— Então é isso o que tanto querem? Por isso
estavam deixando as pessoas doentes? Por causa
disso queriam invadir esse país? Pela passagem
para o meu mundo! — esbravejei para Ralifax, em
pânico.
O servo nem me respondeu, e eu já havia
estremecido e cedido à gravidade, ficando de
joelhos. Não queria nem pensar no que poderia
acontecer se meu mundo descobrisse a existência
de uma coisa como aquela. Era um verdadeiro
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milagre ainda não terem descoberto. Seria


simplesmente o fim de tudo.
Meu Deus do céu! Eu nem havia pensado
nisso.
— Rali, você precisa me prometer, se alguma
coisa acontecer, vai dizer a Dáian que não podem,
em hipótese alguma, encontrar aquele templo, você
entendeu?
Tirei a minha pulseira e a entreguei a ele.
— Minha senhora...
— Mostre isso para que ele entenda o quanto
isso é importante. Diga que ninguém pode passar.
Que meu mundo não pode descobrir a existência
dessa ponte, de jeito nenhum. Você está
compreendendo o que estou dizendo? Diga que se
tiver de escolher entre mim e o templo, ele precisa
escolher o templo. Pelo bem de tudo o que ele ama,
e o que eu amo.
Ralifax mal tinha acabado de prometer, e já
estávamos cercados. Comecei a enfrentá-los
ferozmente e, quando quatro deles já estavam no
chão, ouvi:
— Largue a arma ou ele morre.
No momento em que virei, o inimigo havia
subjugado Ralifax, colocando um punhal em sua
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garganta.
Soltei os bastões.
— Não, minha senhora. Minha vida não vale a
sua.
— Nunca mais diga isso, Rali. O que seria de
nós sem você — sorri, tentando manter o otimismo,
porque o desespero não iria ajudar em nada.
Um soldado me agarrou pelo braço.
— É ela a curandeira que arruinou nossos
planos. A esposa de Sete.
— Vamos levá-la para Éfer.
Aquele soldado nojento amarrou minhas mãos
e foi me puxando até me jogar numa espécie de
gaiola carruagem. Pelos buracos das barras entrevi
Dáian chegando e pondo todos aqueles cretinos no
chão.
— Leve-a antes que Sete a pegue de volta.
Senti aquela estranha carruagem começar a se
movimentar.
Dáian me viu e veio em minha direção tirando
todos do caminho como se não passassem de
míseros insetos. Entretanto, à medida que Dáian
avançava no encalço de meus carcereiros, a
retaguarda ficava desguarnecida, porque ele, de
longe, era o guerreiro mais poderoso.
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Meu Deus. Se Dáian continuar avançando em


minha direção, os inimigos que ficarem vencerão a
guarda e descobrirão onde fica o templo.
— Ralifax — bradei.
Nesse momento, o servo correu em direção ao
rei e se jogou na frente dele, impedindo-o de
continuar avançando. Ralifax insistia, mas Dáian
parecia não querer ouvi-lo, até o tutor lhe entregar a
minha pulseira. Ainda assim Dáian parecia
relutante. Comecei a apontar em direção à
montanha, rezando para ele me escutar. Ele olhou
para montanha e depois para mim, hesitando e, no
pouco tempo de reflexão, minha cela se distanciou
ainda mais. Vi, então, Dáian, mesmo com aquela
expressão de sofrimento, retornar para conter o
ataque. Não havia outro jeito.
Respirei aliviada. Sentei na minha cela
ambulante, vendo-a se distanciar cada vez mais de
onde estávamos. Eles disseram “Éfer”, portanto,
não havia dúvida de que me levariam para Karur.
Parabéns, Everlin. Agora sim, você está numa
baita encrenca.

Caro Leitor, espero, de todo o coração,


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que este livro tenha lhe feito companhia,


esteja você no metrô, no ônibus, no aeroporto,
no hospital, no seu quarto, naquele domingo
tranquilo e chuvoso, ou em qualquer outro
lugar deste nosso mundo azul.

Vejo você na continuação.

Super Abraço,
M. Okuno

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CAPITULO EXTRA
Ouvindo Say Something, Anthem
Lights

Para Joice @coleçãodajoi


Que me fez aumentar este capítulo de 20
para 60 páginas. Que, mesmo já tendo um
exemplar, fez questão de me prestigiar no dia
do lançamento do livro, porque queria me
conhecer pessoalmente. Que me disse que irá
guardar o livro para sua filhinha o ler quando
chegar a hora. Que acaba de me animar com
sua ansiedade por este capítulo.
Carinhos como estes, são impossíveis de
esquecer!!!

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Milagre do Universo

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À futura geração de reis e súditos de Yonah,


saudações.

Sei perfeitamente que atos formidáveis, como


os do nosso atual soberano, não devem ser
registrados de forma tão apressada. No entanto, a
apreensão pela iminência de uma guerra não me
permite cumprir com as formalidades apropriadas.
E este acontecimento, em particular, deve ser
registrado para posteridade. Embora proceder aos
registros dos feitos do rei não esteja na minha lista
de funções prediletas, coube a mim dar a este
episódio o devido destaque nesses pergaminhos
cheios de façanhas heroicas, e algumas não tão
heroicas, dos soberanos de nossa grande nação.
Relatar aos futuros monarcas de Yonah que, em sua
linhagem, houve um rei, o qual se apaixonou
perdidamente por uma garota de outro planeta.
Contarei isso com o propósito de todos saberem
que milagres acontecem, e ousarei dizer: este fora o
maior de todos.

Ainda aguardávamos a festa do solstício,


quando o comandante Lui partiu em busca de um
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dos vassalos do Rei, um dos mais astutos, por


assim dizer, a Raposa do Norte, cuja a dívida com o
tesouro real já havia alcançado dimensões
astronômicas, para não dizer, absurdas. E eu tinha
sérias dúvidas se aquele homem conseguiria saldar
tamanho débito, mesmo oferecendo todo seu
patrimônio.
O comandante Lui era, sem dúvida, o mais
indicado para a tarefa.
Ainda me lembro de quando foi trazido ao
palácio, ainda menino, para ser tornar membro da
guarda real. Nunca vi um estudante mais
disciplinado e dedicado. Seus méritos logo o
fizeram ascender, muito jovem devo destacar, ao
posto de comandante. Talentoso, inteligente e,
sobretudo, inflexível. Perfeito para cuidar de uma
questão dessa natureza.
Aliás, com o aquele comandante à frente da
missão, muito provavelmente a única salvação da
Raposa seria entregar a própria neta, a qual,
segundo boatos, era uma incomum bem-apessoada.
Seria isso ou a masmorra. Então, eu tinha um forte
pressentimento de que teríamos uma nova esposa
do rei.
Naquele dia, já havia perdido a conta de
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quantos afazeres ainda restavam na minha


“listinha” e, dentre eles, com certeza, ainda teria de
acrescentar: “recepcionar a nova esposa”.
Entretanto, a tarefa mais árdua do dia era:
convencer o mestre Dáian a comparecer ao seu
harém.
Céus, isso sim era trabalho de verdade.
Toda vez de ele proceder à visita, era um
verdadeiro martírio, e um dos mais agonizantes.
Mês após mês, só de pensar que o dia estava
próximo, até meu último fio de cabelo branco
ficava arrepiado. Sirvo atualmente ao Rei Sete e
servi ao rei Seis antes dele, meu pai acompanhou os
Reis Cinco e Seis, antes de mim. No entanto, era o
primeiro soberano de toda a dinastia que tinha de
ser convencido, para não dizer obrigado, a ir ao
harém escolher uma esposa para passar noite.
Após terminar a maioria dos meus afazeres,
fiquei de prontidão na entrada do palácio, e logo vi
a comitiva do comandante adentrar o portão com
uma carruagem. Ele vinha, como pensei, trazendo a
jovem. Quando meus olhos encontraram a menina
que ele trouxera, fiquei estarrecido, a ponto de ter
um ataque apoplético. Era, sem exageros, uma
raríssima tão bela, que chegava a encher os olhos.
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Ela tinha cabelos castanhos lindíssimos,


cheios de brilho e movimento, num comprimento
até quase a sua cintura. Seus olhos, apesar de
“puxadinhos”, eram grandes e destacavam-se
sobremaneira, revelando a cor castanha amendoada
da íris, numa singularidade impressionante. A pele
era uniformemente branca, divina, e a maciez da
cútis notava-se só de se observar.
E apesar do vestido largo e da capa sobre os
ombros, não havia como não perceber aquele corpo
esbelto maravilhoso, o qual deixaria qualquer varão
mais tímido completamente fora de si.
Ao ver aquela jovem, um raio de esperança
acendeu em meu coração, de que, enfim, uma
mulher pudesse encantar o mestre. E resgatá-lo do
abismo no qual se enterrou por causa do seu amor
do passado.
Ao examiná-la melhor, acabei sentindo um
pouco de pena daquela menina, caminhando
cabisbaixa em minha direção, porquanto, pelo jeito,
viera chorando o caminho todo. Ia dar muito
trabalho deixá-la impecável para a noite.
— Onde você encontrou uma raridade como
esta? — indaguei ao comandante, mais com a
intenção de animá-la um pouco porque estava triste
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de dar dó, a pobrezinha.


— Ela veio como pagamento da dívida de
Abdali, a raposa do Norte.
Se havia algo de que aquele homem podia se
vangloriar, era de fazer jus ao título de Raposa.
Nem os trapaceiros mais espertos teriam
conseguido uma façanha como essa, a de mandar
uma raríssima no lugar da própria neta.
Apesar disso, e do clima de velório da jovem,
brotou em mim uma gota de fé de que, por ela ser
uma garota rara, o rei pudesse se animar um pouco,
pois, a cada escolha de esposa, ficava mais evidente
sua procura por alguma parecida com a noiva que
perdera. Mal podia esperar para lhe contar a
novidade.
— Venha conosco, minha jovem, porque logo
você se tornará uma esposa do rei — falei tentando
realçar seu novo status, pois, talvez, ela ainda não
tivesse percebido que seria tratada como realeza
daquele dia em diante.
Entretanto, mesmo com aquele semblante
triste, ela me mirou com um olhar impetuoso e
selvagem. Um olhar em chamas, o qual atiçou a
pequena fagulha de esperança em minha alma,
transformando-a numa labareda fumegante.
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Mestre Dáian pode se encantar com essa,


tenho certeza.
Sua beleza não estava apenas na aparência,
mas também no seu espírito porque senti, só por
aquela mirada firme, o desejo dela de me dilacerar
com palavras. No entanto, permaneceu calada.
Talvez não fosse muito ambiciosa, mas, pelo jeito,
era esperta.
Tão logo a deixei no salão dos tratamentos,
corri até o aposento principal do mestre. Vários
escribas ainda gravitavam em torno dele e, um
olhar de relance, foi o suficiente para perceber o
seu humor por um fio.
— Já chega, estou exausto! Resolveremos as
demais pendências pela manhã — ordenou sem
disfarçar o cansaço, e apertando seus dedos contra
as pálpebras.
— Sim, Majestade — assentiu aquela nuvem
de burocratas, deixando o aposento incontinente.
Resolvi aguardar na porta até ser chamado.
— Não, Ralifax. Você é o último que desejo
ver hoje — reclamou, sabendo bem qual era o
motivo da minha espera.
— Nunca vi um rei necessitar ser lembrado de
que deve ir ao harém — provoquei com a intenção
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de melhorar seu humor, enquanto adentrava no


aposento com muita cautela.
— Ralifax, não estou brincando, não quero ir
hoje.
— Senhor, já há um certo rumor entre a
nobreza que não comparece ao harém com a
frequência dos reis de outrora. E... também... isso
deixa as meninas... — hesitei — ...agitadas, por
assim dizer — completei, por fim.
— O que quer dizer, desembuche logo —
ordenou sem paciência.
— Senhor, é de se esperar de um soberano um
certo nível de... — interrompi, pensando se seria
inteligente prosseguir com meu discurso.
— Um certo nível de que, Ralifax? Termine!
— insistiu, sabendo bem a que eu estava me
referindo.
— Um certo nível de... vigor, senhor —
finalizei encabulado.
— Quer dizer que já estão fofocando sobre
minha virilidade, é isso? — inferiu praticamente
lendo meu pensamento.
— Senhor, é natural a expectativa da nobreza
do rei demonstrar...
— Ai, que falem! Não me importo nem um
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pingo com isso — despejou, interrompendo-me e


jogando-se sobre a cama.
— O senhor sabe muito bem, ainda que seja o
rei, a nação precisa de equilíbrio. A união e o apoio
dos nobres são de vital importância para o manter
ordem, a paz e conquistar o progresso.
— Toda vez que tenho de ir ao harém você me
vem com a mesma ladainha. Como se eu já não
estivesse cansado de saber — desabafou, com o ar
um pouco mais leve.
Mestre Dáian levantou-se da cama contrariado
e se sentou à beirada do leito, apoiando seus braços
sobre as coxas, cabisbaixo. Em seguida, ergueu-se
um pouco e ficou contemplando a porta da sala de
tesouros.
Dentro daquela câmara, na saleta particular, a
qual ordenou que construíssem com uma porta
secreta, guardava suas mais preciosas relíquias.
Nada menos que todos os objetos retirados do
aposento de sua noiva terráquea, pelo menos todos
os que pode carregar.
Não houve uma única vez que não tenha feito
isso, toda as vezes, as quais devia comparecer ao
seu harém e escolher uma de suas esposas para a
noite. Nesses dias, ele sempre se sentava à beirada
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da cama e mirava aquela porta com o ar de


desalento num semblante distante. Para mim era
impossível não sentir pena.
Eu sabia, perfeitamente, que não nutria mais
nenhuma esperança de rever seu grande amor do
mundo azul. Aquela garota, a qual encheu seus
olhos de luz, e depois os tornou opacos, talvez para
sempre. Essa ideia, mesmo tentando enxotá-la de
minha mente com todas as minhas forças,
arrepiava-me até o último calo dos pés.
A ideia do meu garoto jamais tornar a
descobrir o caminho para a felicidade. Caminho,
aliás, que um dia lhe fora tomado de um jeito tão
brutal e desumano. Talvez jamais voltasse a sorrir
do mesmo modo de quando a retornava do mundo
azul, embora eu lhe doasse todo meu esforço.
Mundo amaldiçoado.
Pensando bem, amaldiçoado foi aquele que lhe
trancou as portas do mundo azul, lar da felicidade
ambulante do meu menino, felicidade com nome,
sobrenome e forma de garota.
— Hoje trouxeram-lhe uma nova esposa —
soltei de uma vez a novidade, com a remota
esperança que ficasse ao menos curioso.
— Ralifax, já ordenei para não trazerem mais.
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Pelos céus. Não faz sentido acumular mulheres


aqui. Não para mim — pronunciou, abaixando o
olhar e voltando àquela expressão nostálgica.
— Um novo príncipe poderia encher este
quarto de alegria — afirmei tentando lhe mostrar
uma nova perspectiva.
— Ainda vou esperar mais um pouco.
— Sua nova esposa é uma raríssima — contei,
entusiasmado.
Assim que terminei de mencionar a novidade,
o mestre voltou-se para mim violentamente,
mirando-me com uma expressão que mesclava dor
e fúria.
— Pois levem-na daqui. Eu não quero ver essa
mulher — vociferou resoluto.
— Mas uma vez o senhor me disse... —
hesitei em prosseguir com o que eu pretendia
porque sabia o quanto lhe causava dor mencionar a
jovem do mundo azul — que sua noiva era uma
raríssima. Quem sabe...
— Não, Ralifax — rosnou com a voz dolorida.
— Achei que procurava uma moça parecida
— tentei argumentar.
— Apenas que me lembre. Não quero tornar a
ver outros olhos como aqueles. Eu não vou suportar
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— afirmou, deixando a dor vencer a raiva.


— Talvez o senhor goste desta, por que não
lhe dá uma chance?
— Nós dois sabemos que isso nunca vai
acontecer — proferiu, olhando-me profundamente
com aquela mirada decidida, a qual eu conhecia
desde que nascera.
Mestre Dáian sabia ser cabeça dura quando
queria.
— Sabe... rezo todos os dias para que essa
moça caia em seu harém algum dia —
desconversei.
Ao ouvir meu comentário, ele acabou abrindo
um meio sorriso descrente.
— Agradeço suas boas intenções, meu bom
amigo. Mas está desperdiçando orações com algo
impossível.
— Milagres acontecem, meu senhor. E o
universo é cheio de surpresas. Afinal, é para isso
que as orações servem. O possível, nós mesmos
fazemos.
Enfim, após ouvir o que eu disse, mestre
Dáian abriu um sorriso um pouco mais largo. Em
seguida, arquejou resignado e se estirou novamente
sobre a cama, mirando o teto, pensativo.
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— Vá você lá hoje, pegue qualquer uma e


traga aqui, vai — ordenou sem o menor
entusiasmo, nem ao menos desejo varonil havia em
sua voz ou em sua postura.
— Isso seria, no mínimo, desonroso, senhor
— repliquei.
— Como se eu me importasse — argumentou
ainda relutante.
Suas respostas eram tão ressentidas e
desdenhosas que eu me pegava pensando: se fosse
outro a tentar convencê-lo a cumprir com esta
obrigação, jamais teríamos um príncipe.
De fato, era extraordinário o tamanho do
amor que o mestre carregava consigo.
— Céus, se me abençoares com a dádiva dessa
moça da Terra um dia, por algum milagre do
destino, aparecer nesse harém, juro que lhe
oferecerei um ramo de flores todos os dias, pelo
resto da minha vida — clamei, implorando com as
mãos para o alto.
Quem sabe, se eu fizesse um drama, alguém lá
em cima poderia ouvir e, talvez, sentir pena desse
pobre velho sentimental.
— E eu prometeria todo o meu tesouro e até
minha própria vida se esse pedido fosse realizável,
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Ralifax. Não peça coisas absurdas — resignou-se,


levantando novamente e mirando, da janela, o céu
profundo.
— Sinto muito, mas o senhor precisa ir hoje.
Quer mesmo que eu peça para colocarem a nova
garota em outro lugar, que não o harém? Já a estão
aprontando — insisti, abandonando o mundo dos
sonhos e retornando à dura realidade.
Mestre Dáian bufou e recostou a cabeça em
uma das mãos.
— Deixe colocarem-na lá hoje, mas amanhã
mesmo mandem-na de volta — decretou com uma
frieza que me surpreendeu.
— Sim, meu senhor. Mais à noite, virei para
acompanhá-lo até o harém e fazer o anúncio de sua
entrada.
— Eu já lhe disse um milhão de vezes que não
precisa me anunciar para isso — retorquiu,
tentando me convencer com um olhar já mais doce.
— É claro que preciso! Se eu o anunciar, a sua
boa educação, a qual lhe fora dada por um
preceptor muito dedicado inclusive, impedirá que
saia correndo e deixe de adentrar no recinto, não é?
E, finalmente, consegui que mestre Dáian
sorrisse de um jeito um pouco mais espontâneo. Era
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o máximo que conseguiria e o máximo que eu


arrancaria dele.
— Faça como quiser — assentiu já mais
conformado.
— Mandarei prepararem vosso quarto com
flores e velas aromáticas — insinuei com um meio
sorriso provocador, mas ele bufou.
Mestre Dáian sempre adiava o quanto podia a
visita ao harém e, após passar a noite, nunca
acordava pela manhã ao lado da escolhida.
Levantava-se de madrugada e perambulava pelo
castelo, até se sentar no banco daquele instrumento
musical gigante, o qual insistia em manter em seu
quarto, e dormia, debruçado sobre ele.
Em todas essas noites, eu sempre o acordava e
o colocava sobre o sofá, para que tivesse, ao
menos, um pingo de descanso. E, pelo jeito, aquela
noite não seria diferente.
Mais tarde acompanhei o mestre até o harém e
a cara de poucos amigos ainda não deixara o seu
rosto. Ele nunca desfazia essa expressão em seus
encontros com suas esposas. Uma feição que dizia
claramente “vamos acabar logo com isso”.
Eu tinha certeza absoluta de que o mestre
encerraria as visitas após o nascimento de seu filho.
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Pobres moças.
O rei parecia não dar a mínima enquanto suas
esposas demonstravam uma felicidade descomunal
no dia de sua visita, deixando evidente o quanto
aquele era o dia mais importante de suas vidas.
Pensando bem, a vida tem mesmo dessas coisas: a
sorte de um pode ser o azar do outro.
Assim que entrei no harém, o anunciei
rapidamente não dando o menor tempo de ele
mudar de ideia, afinal tudo o que eu podia fazer era
convencê-lo, mas se ele resolvesse não comparecer
mesmo, não havia poder no mundo capaz de
obrigá-lo.
Como sempre, todas aguardavam sua chegada
ansiosamente, mas o mestre sempre bufava e
demorava uns minutos para adentrar como se
tentasse buscar algum tipo de força ou paciência,
ou sei lá.
O rei adentrou no recinto e logo a atmosfera
no lugar se transformou completamente, inundado
pela alegria e euforia das mais de setecentas
esposas, e cada uma ansiava ardentemente que sua
noite com o mestre, enfim, tivesse chegado.
As garotas fitavam-no com tanto desejo, mas o
mestre, por sua vez, mantinha o olhar perdido, sem
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um horizonte definido. O rei Dardárian, que


antecedeu o atual rei, devorava suas esposas com os
olhos por um longo tempo antes de escolher aquela,
ou aquelas, que devoraria de fato.
Dáian, no entanto, passava pelos corredores
abarrotados de garotas como se nem estivessem ali.
Pior, como se escolher uma delas fosse, tão
somente, fazê-lo derramar mais infelicidade em um
tanque que já estava transbordando.
Será que toda vez ele sente que a escolha é um
ato de infidelidade à sua noiva e, por isso, sofre
tanto? Ou fica se martirizando imaginando que
outro homem pode estar tocando-a, nesse exato
momento, da mesma forma que ele tocará a
felizarda da noite?
Às vezes me pegava pensando que tipo de
garota seria a noiva terráquea do mestre. Ele havia
me dito uma vez que era uma raríssima, cuja
doçura chegava a emocioná-lo. Entretanto, na
época, não quis lhe perguntar mais nada sobre ela,
ainda mais quando tiveram de se separar. Com
certeza, devia ser uma jovem de boa família,
extremamente recata, tímida, serena, graciosa e de
um comportamento impecável.
Mestre Dáian caminhava pelo corredor sem
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saber direito para onde olhar quando parou


repentinamente e ficou olhando para baixo, em um
pequeno vão, formado entre as meninas que se
espremiam no corredor. Permaneceu estático por
alguns instantes, sem mover um fio de cabelo
sequer. Parecia hipnotizado.
Quando me aproximei, percebi ele mirando
fixamente uma jovem, a qual se encontrava
abaixada e reclinada na parede do pilar. Se alguém
tivesse me contado, eu, com a toda certeza, jamais
acreditaria.
Só creio nesse inusitado episódio porque o
testemunhei com meus próprios olhos. E agora
posso dizer a todas as futuras gerações que vivi
para ver a primeira garota, em toda história de
Yonah, que se escondia do rei.
Do lugar em que estávamos, não tínhamos
uma visão tão clara dela. Tudo o que podíamos
reparar era nos cabelos, caindo livres por seu braço.
Apesar disso, o mestre, assim que a viu ali, não
desviava o olhar nem por um segundo daquela
jovem inusitada. Aliás, “esquisita” a definiria bem
melhor.
Sem nem piscar, o mestre foi abrindo caminho
pelas mulheres até se aproximar daquela que
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permanecia abaixada. Quando vislumbrou a joia


que lhe adornava o braço, o rei ficou pálido como
papel. A garota, no entanto, pareceu não perceber a
solenidade do momento, e demorou a notar o
soberano de Yonah diante dela.
Que falta de modos!
Quando a estranha moça percebeu o rei
aguardando, lentamente levantou-se e o encarou.
Naquele momento, compreendi a razão da falta de
decoro. Era ninguém menos que a nova esposa.
— Qual o seu nome? — indagou-lhe o mestre,
com uma urgência que eu nunca notara em sua voz
antes.
— Everlin — ela respondeu, parecendo se
esforçar ao máximo para manter a calma.
Fiquei imaginando quem poderia ser essa
moça porque ao ouvir a voz e o nome que ela
pronunciou, o semblante do mestre mudou para um
que não via há muito tempo. Era como se, por
algum milagre do Universo, o mundo tivesse
voltado a lhe fazer sentido. As cores, regressado
aos cenários ao seu redor. Tivesse, mais uma vez,
percebido que existe vida em torno de si e oxigênio
espalhado pelo ar. E flores nos campos, e milhões
de seres vivos, em suas diferentes formas,
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respirando e se movimentando pelo mundo. Que o


planeta girava em torno de nosso sol e nossas luas
em torno de nós.
Eu o conhecia muito bem para saber que,
naquele exato momento, alguma coisa havia
mudado dentro dele. E aquela felicidade, há muito
esquecida, retornou para inundar sua alma de tal
maneira, que a atmosfera em torno dele mudou por
completo.
Por um instante, ela mirou outro ponto do
salão, e os olhos do mestre correram livres por todo
o seu corpo. Um olhar insaciável, o qual parecia
querer devorar cada parte, cada pedacinho, cada
detalhe da garota diante de si, por menor que fosse.
Nem o pai dele havia olhado com tanto desejo e
desespero para uma mulher. Reparei que ela era
linda assim que desceu da carruagem, mas aquelas
roupas destacavam por demais a sua formosura.
Ele não seria tão imprudente a ponto de
agarrar a moça bem aqui e transformar a
pobrezinha na odiada da vez.
Notei que quando a jovem o encarava, ele
disfarçava o seu interesse. Acabei ficando feliz com
a esdrúxula situação porque, por mais estranha que
fosse, o andar da carruagem revelava que a escolha
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seria fácil aquela noite. Toda vez era um verdadeiro


suplício.
— Ralifax — chamou-me o mestre.
— Sim, meu senhor — atendi.
— Acompanhe-a. Eu escolho essa, hoje!
Graças aos céus!
— Nãoooooo — estrondeou a garota.
Era a segunda vez que aquela jovem fazia meu
coração quase parar num mesmo dia. Depois
daquele surto de loucura, ela pareceu refletir por
alguns instantes e, nesse ínterim, eu rezei com
todas as minhas forças para que se desculpasse com
o mestre. Depois a jovem voltou-se novamente para
o mestre e completou:
— Foi isso mesmo que você ouviu: não!
Pronto. Com esta era a terceira vez eu quase
tive um ataque cardíaco no mesmo dia, e por culpa
da mesma moça.
— E por que não? — indagou o mestre,
aproximando-se tanto da garota, que eu o conhecia
o suficiente para saber o quanto estava perdendo o
controle perto dela.
E ele mandou devolver a menina!
— Porque eu não amo você, simples assim —
ela respondeu com uma ousadia que até eu fiquei
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sem saber o que pensar.


Atrevidinha a bichinha.
— E por acaso tem alguém que você ame? —
perguntou-lhe o mestre e, pela entonação, estava
preocupadíssimo com a resposta.
— Não — disse a jovem, agarrando-se à joia
em seu braço, a qual era sem dúvida um bracelete
de noivado.
O rei pareceu querer mostrar o sorriso aos
quatro ventos, pular de alegria eu diria. Mas, graças
aos céus, se conteve, caso contrário nem sei quanto
tempo levaríamos para controlar o tumulto. Para
mim, sua atitude não fazia o menor sentido, até
porque a situação só era cômica na mente dele.
Em seguida, ele voltou a se aproximar dela
com um olhar tão ardente, que já estava
constrangendo até a mim. Um fogo que eu,
sinceramente, cri já haver se extinguido dentro dele
há muito tempo. E confesso ter ficado aliviado por
ver que não.
Diante daquela cena, novamente rezei para
pelo menos um pingo de sensatez clarear sua
mente, e não se esquecer completamente da
compostura de um nobre, tomando-a ali mesmo,
debaixo de todos aqueles olhares carregados de
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inveja.
— Amor? O que é isso? Se usa para fazer o
que? —disparou, provocando-a.
Pelos Céus!!!! De onde ele tirou isso? Morre
de amores por uma garota, a qual “sabe-se lá” o
que estaria fazendo naquele exato momento.
E a pobre criança à sua frente talvez tenha sido
noiva. Era a única razão plausível para ter chorado
o caminho todo.
Justo por essa ele tinha de se engraçar.
Mas o que realmente importava era que ele,
enfim, parecia feliz e, há muito, eu não o via assim.
Só esse fato já me fazia querer beijar os pés
daquela menina.
Como em um único instante essa garota
conseguiu fasciná-lo dessa forma?
Ele a olhava profundamente com um misto de
alegria, euforia, curiosidade e desejo, que me
deixou todo arrepiado. Se ele a queria tanto, tinha
sorte porque ela estava no lugar certinho. Bem na
palma de sua mão.
Ao que tudo indicava, seria uma noite
agradável para o mestre. E ele não desfrutava de
uma noite dessas há muitos anos. A última vez que
o vi com um brilho como aquele, ele havia acabado
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de retornar do mundo azul. Ainda era um garoto.


Eu divagava nesses pensamentos e, quando
retornei, testemunhei a cena mais inusitada que um
servo poderia presenciar em toda história de
Yonah. Aquela jovem estava com o salto cravado
no pé do rei, enquanto o enfrentava com uma fúria
de alguém que não temia nem mesmo a morte.
O tamanho da coragem daquela jovem era de
impressionar a qualquer um, isso eu tinha de
admitir. Mestre Dáian tentou manter o ar superior,
mas logo sucumbiu a dor e afastou-se. Para meu
espanto, apesar da nítida afronta, não havia nenhum
lastro de furor em seu semblante. Muito pelo
contrário. Olhou para ela encantado e, pelo jeito,
queria continuar atiçando-a, mas a dor do ferimento
o obrigou a entregar a batalha. No entanto, o fogo
em seu olhar dizia claramente que a guerra estava
longe de acabar.
Em seguida, o mestre veio pelo corredor
mancando e sorrindo abobalhado.
— Ralifax, não teremos escolha esta noite —
avisou, com uma alegria radiante.
Desde de quando isso é uma boa notícia, meu
Deus?
Acabei seguindo-o sem entender. Tão logo
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deixamos o harém real, o rei caminhou alguns


passos e depois deteve-se, apoiando-se na parede.
Parecia não ser capaz de prosseguir.
Corri para apoiá-lo, desejando que o ferimento
não fosse tão grave. No instante em que me
aproximei, percebi a respiração do mestre
sobremaneira arquejante e, em seguida, reclinou-se
completamente naquela parede fria, cerrando os
olhos.
— Mestre, o ferimento foi tão feio assim? —
indaguei, apressando-me em socorrê-lo.
Quando ergui meus olhos para encará-lo, coisa
que normalmente não faço tratando-se do rei,
percebi lágrimas escorrendo pelas laterais de seu
rosto.
Pensei se aquele não era o dia de eu realmente
ter um ataque. Era a primeira vez que o via chorar,
em toda sua vida. Nem mesmo quando o pai o
humilhou, açoitando-o, não houve lágrimas em
seus olhos. E ele tinha só dezesseis anos quando
aconteceu.
— Mestre, pelos céus, o que está havendo? O
senhor está bem? Deseja que eu chame os
curandeiros? — perguntei não conseguindo mais
conter a aflição.
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Ao ouvir minha pergunta, ele abriu os olhos e


sorriu. Ria e chorava ao mesmo tempo, e sua
respiração continuava difícil. Era como se houvesse
mergulhado em uma emoção desmedida.
— Senhor! Está me assustando! Pelo amor de
Deus! — insisti já desesperado.
— Milagres existem, meu amigo — declarou
com a voz embargada.
— Eu não o compreendo. Por favor, diga-me o
que está acontecendo de uma vez! — implorei.
O mestre me olhou com uma ternura, a qual
me fez arregalar os olhos. Aquela expressão meiga
que, por dez longos anos, eu nunca mais vira nele.
Uma que pensei jamais ser capaz de expressar
novamente e estivesse completamente enterrada por
baixo de sua feição austera e resignada.
— Obrigado por acreditar, meu amigo.
Acreditar que milagres acontecem — disse,
enquanto lágrimas de emoção continuavam a correr
por sua face iluminada.
— Mestre, não me diga... — comecei, sem
conseguir expressar a hipótese mirabolante, a qual,
por um segundo, passou por minha mente.
A ideia em minha mente foi chocante demais
para pôr em palavras. Mas ele me olhou como se
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confirmasse a suspeita que eu relutava em


acreditar, e, naquele instante, compreendi o
tamanho do milagre que sobreveio à vida no mestre
[e no futuro compreenderia que sobreveio a toda a
nação]. O único grandioso o suficiente para deixá-
lo naquele estado. Um verdadeiro milagre do
Universo.
— E o senhor a reconheceu só pelos cabelos?
— Mas é claro!!!! Reconheceria aqueles
cabelos de fada até no fim do mundo.
— Não posso crer!
Mestre Dáian recobrou um pouco os sentidos,
e a emoção deu lugar a agitação.
— Ordene que a acomodem na parte mais
isolada do harém, próximo à porta lateral.
— Sim, meu senhor. Mas, por que?
Ele abriu aquele sorriso enorme e travesso, o
qual já nem me lembrava. Eu sabia que o amor pela
garota do mundo azul era grande, mas somente
naquele momento me dei conta do quanto.
Vendo aquele olhar apaixonado, um tremor
apavorado começou a tomar conta de mim. Uma
ideia não saía da minha mente: o que seria de meu
mestre se aquela mulher não o correspondesse? Ele
a reconheceu só pelos cabelos, mas ela, com toda
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certeza, não o reconheceu.


— Apenas faça o que eu disse e, depois, venha
ao meu aposento.
— Como quiser. Senhor, e o pé?
— Que pé?
— O vosso, ora qual pé. Não está ferido?
O mestre gargalhou.
— Não se preocupe com isso, só faça o que
ordenei.
— Sim, meu senhor.
Mais tarde, retornei ao aposento do mestre e o
curandeiro terminava de tratar o ferimento. Percebi
que a bichinha o havia machucado sem dó.
Corajosa ela era, sem dúvida. Uma boa qualidade
para uma rainha.
— Ela tem uma “pisadinha” forte, hein, mestre
— comentei em tom de brincadeira.
O rei estirou-se na cama sorrindo como
criança, estava ainda meio abobado. Olhou para o
alto teto do aposento por alguns instantes e, na
sequência, correu a mão por baixo de seus
travesseiros, pegando a pequena caixinha que
trouxera do mundo azul. Era uma caixinha
esquisita, com fios saindo dela, era algum tipo de
dispositivo de música, pelo menos penso que seja.
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Nem consigo descrever a tristeza do mestre


quando aquele estranho aparelho parou de
funcionar. Ele ficou inconsolável por vários dias.
Ele permaneceu olhando para aquela caixinha
por alguns minutos e depois ergueu-se num
sobressalto.
— As mulheres do harém já se recolheram?
— Acredito que ainda não, senhor.
— Já por pode ir — ele disse ao curandeiro.
— Sim, meu rei — respondeu o homem,
retirando-se.
O mestre levantou-se dando um salto
repentino com uma felicidade tão grande que
parecia transformar tudo a sua volta, aquela energia
resplandecente de dez anos atrás, uma que mudava
completamente o ambiente frio daquele palácio.
— Vamos? — convidou.
— O quê? Até o harém? De maneira alguma!
O senhor perdeu a compostura? Se a quer, terá de
trazê-la aqui — repreendi, como se tivéssemos
voltado à época que eu lhe dava lições.
— Ralifax, afinal de contas, eu sou ou não sou
o rei? — indagou retoricamente, com aquele ar
malandrinho.
— É, mas até um soberano tem de saber se
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comportar — exortei.
— Eu não perderei o decoro, prometo. Eu só
quero olhar para ela.
— Não estou bem certo disso, dado o vosso
comportamento no harém hoje. Achei que voaria na
menina ali mesmo.
Ele fez uma careta de quem não conseguia
arranjar um bom argumento. Em seguida, acabou
mirando-me com aquela expressão interesseira,
fazendo aquele gesto de “por favorzinho”, da
mesma foram de quando suplicava para eu encobrir
suas fugas para o mundo azul. Semblante, o qual
ele sabia muito bem que arrancava qualquer coisa
de mim.
— Além disso, as meninas ainda devem estar
perambulando pelo salão.
— Esperamos lá perto então, até dormirem —
argumentou, não escondendo a ansiedade.
— Está bem, mas o senhor vai prometer que
manterá um comportamento digno da realeza.
— Eu prometo — comprometeu-se com
aquele ar de menino levado, fazendo-me perceber
que nas profundezas daquele rei forte ainda vivia
um garoto. O meu garoto.
Fomos, então, até o harém real e o lugar ainda
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estava todo iluminado e agitado com em um


festival ou um baile.
— A vossa atitude deve ter deixado esse
harém em polvoroso, senhor! Essa agitação pode
demorar a se acalmar — comentei, mais com a
intenção de fazê-lo perceber as consequências dos
próprios atos.
Mesmo com meu discurso, o mestre não disse
uma única palavra.
— Mestre? — chamei, voltando-me em sua
direção.
Ele estava olhando a janela totalmente absorto,
como se algo tivesse arrebatado sua atenção por
completo. Quando me aproximei para ver o que
tanto fitava, vi a nova esposa recostada na janela do
harém, admirando o céu e mirando o horizonte,
como se aquela paisagem distante fosse sua única
companhia no mundo.
— Em que será que ela deve estar pensando?
— indagou, sem desviar-se da direção dela.
— A julgar pelo seu comportamento esta
noite, eu diria que está dando “adeus” a este mundo
— respondi em tom de brincadeira.
O rei voltou-se para mim, espantado.
— Eu dei essa impressão? — questionou
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aflito.
— Mestre, ela parece ser uma garota
razoavelmente inteligente para saber que esse é um
dos possíveis destinos de alguém que se atreve a
pisar o pé de um rei — expliquei do jeito mais
simples e direto possível, sem evitar a risada
quando terminei.
— Está enganado, Ralifax. Ela deve ter
percebido que não sou esse tipo de rei — expôs,
tentando se tranquilizar.
— É, talvez — concordei, mais para mantê-lo
calmo, porque ele pareceu não ter gostado nadinha
da piada e, se ele saísse de si, achando que a
menina estava sofrendo, entraria naquele harém
sem se importar com mais nada — e posso saber de
onde o senhor tirou aquilo sobre o amor? —
prossegui, mudando logo de assunto.
— Eu só quis provocá-la um pouco, nem sei
por que. Sei lá, ela estava tão... combativa. Acho
que quis apreciar um pouco mais aquela carinha de
brava. Uma expressão que, naquele tempo, ela não
demonstrou para mim — explicou, nostálgico.
Bom, se aquilo foi um embate, definitivamente,
o mestre estava perdido.
Saldo da noite, dez a zero para a moça!
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Comecei a rir novamente.


— Está rindo de que, agora? — inquiriu.
— De nada, senhor — tentei disfarçar.
Ele fingiu acreditar.
— O senhor tem certeza que essa garota é
mesmo a vossa noiva terráquea?
— Absoluta, meu amigo! Por que a pergunta?
— Por nada, meu senhor. Ela só é um pouco
diferente do que eu havia imaginado.
— Se bem te conheço, você imaginou uma
boneca de porcelana — afirmou o mestre,
balançado a cabeça e com um sorriso que, de tão
largo, chegava a ser contagiante.
— Só desejo uma garota digna do senhor —
expressei já mais sério.
Como pensei, o harém demorou a se aquietar.
Entretanto, mestre Dáian não pareceu se importar
nem um pingo com espera. Ele parecia mesmo
disposto a aguardar o tempo que fosse.
Quando a última luz se apagou, ainda
esperamos por mais tempo, até termos a mais
absoluta certeza de que chegaríamos sem sermos
notados. Adentramos silenciosamente pela porta
lateral e o ambiente, sempre agitado, agora estava
quieto como um sepulcro.
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A pobre menina ainda deve estar acordada e


aflita, por achar que será punida em breve —
pensei, e ainda bem que o mestre não lê
pensamentos — continuei pensando.
Olhei primeiro para me certificar.
Curiosamente, ela dormia tranquilamente,
feito um bebê. Acabei sem saber se aquilo tudo era
bravura ou total falta de noção. Quem conseguiria
dormir daquele jeito depois de der cravado o salto
no pé de um rei?
Voltei-me para o mestre e ele a mirava de uma
maneira tão emocionada, parecia que iria sucumbir
à tempestade de sentimentos. Ele literalmente não
conseguia respirar.
No momento em que foi capaz de se acalmar
um pouco, caminhou em direção a ela, um passo de
cada vez até o leito, no qual ela repousava de
maneira tão singela, sentando-se ao seu lado e
olhando-a como se nunca tivesse visto nada mais
belo no mundo, nos dois mundos que conhecera.
Tenho de confessar que senti uma certa pena
de meu mestre, afinal não era muito convencional,
em toda a nossa história, um rei tão poderoso e
temido quanto ele, totalmente à mercê de uma
única mulher.
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Será que ela tinha consciência de que poderia


fazer com ele o que quisesse? Se havia percebido
quanto poder tinha em suas mãos.
Percebendo nossa situação, desejei com todas
as forças que o coração dela fosse tão nobre quanto
o do mestre. Caso contrário, pobre de nós,
estaríamos perdidos.
O mestre ficou ali, olhando-a completamente
abobalhado por um tempo. Depois começou a
afagar-lhe o rosto, cerrando os olhos enquanto
tocava. Parecia desfrutar de cada segundo de
carícia, como se a pele dela lhe proporcionasse a
sensação mais prazerosa do mundo. Não havia
dúvida de que estava ávido por isso desde aquela
época.
Que feitiço essa menina lançou sobre ele, meu
Deus?
— Ela está tão linda — asseverou de repente
entre suspiros, enquanto deixava seus dedos
correrem pelos cabelos dela, que se espalhavam
livres pelos travesseiros.
Descansando despreocupada daquela maneira,
com um ar inocente, leve e de uma paz invejável,
aos meus olhos, ela parecia uma pintura, e de um
artista extremamente talentoso. Aos olhos do
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mestre, ela devia parecer uma deusa entre mortais,


com toda certeza.
O rei passou a mirar detidamente o rosto dela.
— Só o rosto já está lindo demais — declarou,
enquanto suas mãos desciam pelo lençol, com a
nítida intenção de descobri-la e admirar o resto,
sem dúvida.
Pela minha experiência com as meninas, ela
devia estar usando apenas a camisolinha de seda,
curtinha, a qual as esposas normalmente usavam
nas noites de calor. Pensei em impedi-lo, pois já
demonstrava que estava fora de si só de olhar as
poucas partes descobertas, mas antes de eu dizer
qualquer coisa, ele pareceu recuperar a razão.
— Ela está, simplesmente, perfeita —
ponderou respirando fundo — talvez seja melhor eu
nem olhar o resto porque, pelo que vi hoje, pode ser
que eu quebre a promessa que fiz a você, Ralifax, e
perca completamente a cabeça — completou,
olhando-me com aquele sorriso maroto e retirando
suas mãos do lençol.
— Melhor mesmo, senhor — afirmei,
devolvendo-lhe o sorriso brincalhão.
O mestre sorriu de um jeito tão gostoso.
Menina abençoada!
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Após voltou-se novamente para ela e a


emoção voltou a dominá-lo, correndo novamente os
dedos por seu rosto e deslizando-os até aqueles
lábios deslumbrantes que ela tinha.
Inadvertidamente, aqueles sentimentos
tempestuosos extravasaram e os olhos do mestre
encheram-se de lágrimas, a quais não pareciam de
sofrimento, mas sim ternas e serenas.
Em seguida, o rei debruçou-se sobre cama
sem, contudo, deixar seu corpo encostar no dela e a
beijou apaixonadamente.
Quis dizer-lhe: “senhor, pelo amor de Deus,
prometeu conter-se”, mas não consegui pronunciar
uma palavra sequer. A cena tirou-me totalmente o
fôlego. O sentimento do mestre era tão profundo e
intenso, que conseguiu contagiar até as entranhas
do meu ser, e me peguei rezando para que aquela
moça também o amasse de tal maneira.
O beijo se estendeu por muito mais tempo do
que deveria, para um beijo furtivo. E ele afastou
seus lábios dos dela contrariado. Parecia querer
permanecer beijando a garota a noite toda, embora
corresse o risco de ela acordar, ou pior, acordar
todas as outras centenas de esposas.
Pela graça dos céus, ela não despertou,
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porque, pelo que havia visto da bichinha, não


pensaria duas vezes em fazer algum escândalo e
provocar um alvoroço colossal naquele harém.
Vendo o mestre com aquela expressão de
adolescente, acabei por desejar que seu amor
tivesse alcançado, de algum modo, o seu coração
dela. Não queria nem pensar em vê-lo sofrer uma
segunda vez. Até porque, muito provavelmente,
depois de tudo por que passou, provavelmente, ele
não se recuperaria desse novo trauma.
Logo que o mestre deixou os lábios dela, a
garota encolheu-se apertado com força o bracelete
preso em braço.
Ela não tirou a joia nem para dormir!
Ao observá-la com mais atenção, percebi uma
lágrima correndo por seu rosto. Na sequência, ela
sussurrou com um suspiro longo e dolorido:
— Dáian.
Tão logo ouviu a palavra que a jovem
murmurou, o mestre voltou a se emocionar
sobremaneira.
— Eu estou aqui, meu amor — sussurrou de
volta para ela com a felicidade irradiando dele e
chegando aos céus.
Testemunhando aquela cena, não consegui
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mais conter meus próprios sentimentos e lágrimas


também acabaram por inundar meus olhos. Aquele
suspiro cheio de tristeza da garota descortinou
minha compreensão dos dois e, então, foi como se a
segunda parte daquela obra de arte do destino
tivesse sido revelada a mim, deixando-me
vislumbrar o quadro todo.
Ela o amava tanto quanto ele a amava. E não
era um amor qualquer, e sim um do tipo que
sobrevive às intempéries do tempo e do espaço. Um
que só nasce uma única vez entre bilhões de
estrelas.
Enfim, compreendi porque a moça não o
reconheceu quando o viu.
O rei continuou mirando-a como se, só por
olhá-la, já tivesse tudo. Vendo os dois daquela
maneira, acabei me perdendo em divagações e
fiquei parado sorrindo comigo mesmo.
— Está rindo de que agora, Ralifax? —
indagou o mestre.
— Estou imaginando como será nosso futuro
príncipe. Já pensou se ele nascer com os olhos
claros do senhor e “puxadinhos” como os dela?
Será lindíssimo. Belo e raro — divaguei,
empolgado.
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Quando acabei de discorrer meu devaneio,


voltei a mim e me assustei com a minha indiscrição
porque, muito provavelmente, havia acabado de
dizer algo estúpido ou, no mínimo, imprudente. No
entanto, o mestre pareceu tão feliz com a ideia que
acabei nem me arrependendo. Voltando a
serenidade, estávamos nos estendendo para muito
além do planejado.
— Senhor, é melhor irmos — alertei com
pesar por tirá-lo daquele momento maravilhoso que
estava vivendo.
— Só mais um pouco, Ralifax.
— Senhor, ela não sabe quem é. Se acordar e
vê-lo aqui, poderá se assustar. E o senhor sabe
muito bem como esse harém fica quando está
alvoroçado.
Ele me olhou consternado, como se soubesse
que eu tinha razão, mas seus sentimentos
descontrolados impedissem seu corpo de se mover.
— Amanhã poderão conversar com calma. E o
senhor pretende acomodá-la aqui? — indaguei na
tentativa de resgatá-lo um pouco do mar de
emoções.
— De jeito nenhum!
— Onde a acomodaremos, então?
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— Na minha ala é claro. No aposento mais


próximo ao meu. Troquem toda a mobília. Quero o
quarto novo, arejado, perfumado e o mais
confortável possível.
— Mas está ordenando isso a essa hora da
noite, não conseguiremos aprontar isso para
amanhã de manhã. Só para a tarde.
— Que seja. Quero o aposento perfeito, digno
de uma rainha — decretou.
— Sim, senhor. Agora é melhor a deixarmos
com seus sonhos. Pela felicidade, aposto que está
sonhando com o senhor.
— Assim como sonho com ela já há dez
longos anos — confessou, sem desviar o olhar dela.
— Talvez tenha vindo para procurar pelo
senhor.
Ele voltou-se para mim e, pela surpresa, não
havia pensado na possibilidade.
— Você acha?
— Por que não? Agora vamos, senhor.
Mestre Dáian ainda relutava em se mexer.
— Senhor, o milagre já está feito. Já estão sob
o mesmo teto. Terá de esperar só mais um dia.
— Você tem razão — assentiu, levantando-se,
ainda a contragosto.
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— Vamos, senhor — insisti, puxando-lhe pelo


braço.
Assim que deixamos o harém, o acompanhei
até seu aposento e, pensei ser melhor ainda
aguardar à porta por um tempo para ter a mais
absoluta certeza de que não voltaria ao harém
escondido de mim. Entretanto, para meu alívio, o
mestre manteve a palavra.
No dia seguinte, a pilha gigantesca de tarefas
e, principalmente, a incumbência imprevista de
redecorar do aposento adjacente do mestre, não me
permitiu assisti-lo de perto. No entanto, soube que
ele se mantivera firme, e chamou sua amada
somente no fim da tarde, quando o lugar no qual a
acomodaríamos já estava pronto como pediu.
Levava meu ramo de flores ao templo do céu,
como teria de fazer daquele dia em diante pelo
resto de minha da vida, quando vi o mestre e a
jovem raríssima passeando pelo palácio.
Peguei-me querendo ser um mosquitinho para
saber sobre o que falavam. Entretanto, para minha
surpresa, só de observá-los por alguns minutos,
notei que não aparentavam ser um casal
apaixonado. Meu palpite era que o mestre ainda
não lhe revelara sua identidade.
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Ao retornar do templo, caminhava pelo


corredor quando vi a jovem fechando as portas do
aposento bem na cara do rei. Mesmo após aquele
gesto, o qual, diga-se de passagem, não me pareceu
nem um pouco romântico, ele ficou ainda um
tempo olhando para a porta do quarto sem
conseguir se mexer. Queria deixá-lo com seus
pensamentos, mas não me consegui.
— O senhor está bem, mestre? — acabei
perguntando, quando me aproximei.
— Ela está mais linda do que jamais sonhei,
Ralifax.
— É impressão minha, ou os senhores não me
pareciam um casal?
O mestre mirou-me com um olhar diferente da
noite anterior, um que não escondia nada da
insegurança que estava sentindo.
— Senhor, por que está se torturando? Aquela
joia em torno do braço dela é o símbolo do
compromisso que firmaram. Ela é vossa noiva, por
Deus! Diga-lhe quem é de uma vez. Não a faça
sofrer assim também — o repreendi, mais fazê-lo
perceber quanto tempo estava perdendo por
esconder a verdade.
— Não, Ralifax. Você não viu como ela
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olhava para a figura do planeta dela na sala trono.


Ela tocava aquela imagem com tanto carinho, está
desesperada por voltar, não há dúvida.
— Mas o senhor disse que ela concordou em
vir — lembrei-lhe.
Ele me olhou com aquela expressão
encabulada, da mesma forma que fazia quando me
escondia alguma coisa.
— Ela concordou em vir comigo quando
adulta, mas não sabia exatamente que era para
outro mundo. Provavelmente pensou que fosse para
outro lugar em seu próprio planeta.
— Mas ela sabe que assumiu um compromisso
de noivado com o senhor, não sabe?
— Ela achou linda a joia, mas não pareceu
saber o que significava. Acho que o povo dela não
sela noivado assim.
— Mas o senhor lhe contou que era um
príncipe e que em breve seria rei, não contou?
— Bem, não chegamos a tocar nesse assunto.
— O senhor só disse meias verdades à
menina? Por Deus! — exclamei, reprovando-o — o
senhor passou semanas lá, sobre o que falavam?
— Ela pensaria que eu sou louco, no mínimo,
se eu tivesse dito a verdade, tenho certeza. Eles não
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sabem da existência da passagem, nem deste


mundo.
Uma sensação gélida desceu por minha
garganta indo até extremidades de meu corpo. A
pobre garota não fazia a menor ideia de que para se
unir ao mestre teria de abandonar seu próprio
planeta? E se ela não conseguisse abrir mão de seu
lar de tal maneira, o que seria de meu mestre?
Após refletir por alguns instantes, decidi que
era melhor opinar de forma sincera. Talvez pudesse
ajudá-lo a ver as coisas com mais clareza.
— Senhor, então... talvez não deva... — não
consegui prosseguir ao ver a expressão de
sofrimento em seu rosto.
Estava tão feliz ontem! Meus Deus, e agora?
— Eu a quero, Ralifax. Eu a quero mais que
qualquer coisa — afirmou resoluto e determinado.
— Mas se ela não sabe que terá de abdicar do
próprio mundo... — tentei argumentar, sem,
contudo, conseguir terminar meu raciocínio.
— Tem razão. Talvez se eu disser a ela quem
sou, aquele amor que vivemos não seja suficiente
para mantê-la aqui. Terei de fazer com que se
apaixone por mim novamente. Que me ame tanto a
ponto de não conseguir me deixar.
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— Não era exatamente isso que eu tinha em


mente — expressei, ainda tentando fazê-lo refletir.
Ele voltou-se para mim com aquele olhar
penetrante e implacável, como se não quisesse nem
cogitar a ideia que eu estava, com tanto esforço,
tentando lhe transmitir.
— Senhor, diga a ela quem é. E se não for
suficiente, terá de deixá-la ir — disse por fim,
olhando diretamente para ele, com carinho e pesar
porque eu tinha de trazê-lo de volta à razão.
— Deixá-la ir? Nunca! — esbravejou.
Após, andou alguns passos e reclinou-se na
mureta.
— Quero dizer... — tentou prosseguir.
— Senhor... — comecei ainda com uma
remota esperança de persuadi-lo.
— Eu irei com ela — manifestou,
interrompendo-me.
— Está louco? Sabe quantas almas estão sob
vossa responsabilidade? — inquiri em tom de
repreensão.
O mestre encolheu-se onde estava.
— Eu não posso viver sem ela. Agora tenho a
mais absoluta certeza disso — confessou com a voz
fraca e embargada.
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Olhei para a porta do aposento, considerando


toda a situação por alguns minutos. Após refletir
um pouco cheguei à conclusão de que, talvez,
hospedar-se aqui no palácio e em nosso mundo por
algum tempo não iria causar tanto dano à vida da
moça.
Eu tinha a mais absoluta certeza de que ela
não reconheceria o mestre, de jeito nenhum. Então,
se ele conseguisse o amor dela mais uma vez, seria
duas vezes mais chances de ela concordar em ficar.
E, muito provavelmente, não estava aqui por culpa
do acaso.
Aproximei de meu mestre e reclinei minha
mão sobre seus ombros.
— Então, vamos fazer com que ela ame tanto
esse nosso mundo que não consiga nos deixar —
anunciei, sorrindo.
Ao ouvir meu otimismo, o mestre explodiu em
alegria e me abraçou, como já não fazia muito
tempo. Era simplesmente incrível como o mestre
tinha mesmo o dom de transformar todo o ar a sua
volta, deixando-o leve e alegre. Dom que eu não
testemunhara mais desde o dia de seu retorno com a
notícia de que sua noiva não voltara à casa, a qual
habitava quando se conheceram.
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A felicidade dele era mesmo essa moça. Nada


nem ninguém poderia substituí-la. Muito
provavelmente um filho só chegaria perto disso. E
talvez, tenha sido por isso que alguém lá em cima
tenha se compadecido dos dois e lhes dado esta
nova chance. Ou talvez os dois fossem destinados,
ou só sortudos, vai saber. Ou, eu sou sentimental e
molenga demais. Qualquer outro preceptor teria
batido o pé para fazê-lo agir racionalmente.
Mas o sorriso dele era tão grande.
No fim, acabamos indo juntos até a lateral do
aposento onde ela estava. Na parede, havia
pequenas janelas, as quais davam para o corredor, e
nos permitiam vislumbrar dentro do quarto.
Espiamos por alguns momentos e a jovem brincava
alegremente sobre a cama.
— Peculiar a sua noiva, senhor. Tem certeza
de que esta é a mesmo a futura rainha de Yonah?
— indaguei, afinal aquela jovem era estranha por
demais.
— Quando a conhecer, você entenderá — ele
disse, mirando-a encantado.
— Devo me preocupar com o futuro da nação,
senhor?
O mestre riu.
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— Ela será maior que a própria Yonah —


afirmou, sem desviar o olhar dela.
— Pelo menos mais divertida, com certeza —
comentei.
— Mas ela não me reconheceu, Ralifax. E
também não veio a minha procura. Ela mesma disse
que está aqui por acidente.
— É claro que ela não o reconheceu. Nunca o
reconhecerá — falei categoricamente.
O mestre franziu o cenho, curioso.
— Só de observá-la no harém e dormindo
ontem eu soube, para ela, todos homens, sem
exceção, são transparentes. Assim como as
mulheres são para o senhor. Ela olhava para o
senhor do mesmo modo que olha para suas outras
esposas.
O mestre ouviu atentamente cada palavra. E
depois, abriu um sorriso satisfeito e iluminado.
— Vamos ver se consegue conquistá-la
novamente, senhor. Estou tentado a dizer que não
será uma tarefa fácil.
Ao me ouvir dizer aquilo, os olhos do mestre
se encheram de esperança. Acho que ele aceitou o
desafio.
E que desafio, ouso dizer.
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Sei muito bem que ainda tem muitos feitos do


rei Dáian pendentes de registro. Entretanto, a
exiguidade do espaço neste pergaminho não me
permite um maior avanço. Finalizo, por ora.

Registro de Ralifax, preceptor de Dáian,


sétimo da dinastia de Dar. Ano 3.657 do pós-
guerra.

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