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Dedicado a

todos os sobreviventes de pseudo-relações com pessoas narcisistas;


todos os terapeutas dedicados que se esforçam para amenizar-lhes a dor
pós-traumática;
todos os portadores de narcisismo, no desejo sincero de que busquem sua
cura para seu próprio bem e o bem da humanidade.

1
O MITO DE NARCISO

Segundo o mito grego, Narciso era um belo jovem tespiano por quem a ninfa
Eco se apaixonou. Eco fora privada de fala por Hera, a esposa de Zeus, e só podia
repetir as últimas sílabas das palavras que ouvia. Incapaz de expressar seu amor por
Narciso, foi por este rejeitada e morreu de desgosto, com o coraçao dilacerado. Os
deuses puniram então Narciso por seu tratamento desalmado para com Eco, fazendo-o
apaixonar-se por sua própria imagem. O vidente Tirésias profetizara que Narciso viveria
até ver-se a si mesmo. Um dia, quando se debruçava sobre as àguas cristalinas de uma
fonte, Narciso viu sua própria imagem refletida na àgua. Ficou perdidamente
enamorado de sua imagem e recusou-se a abandonar o local. Morreu de debilidade e
metamorfoseou-se numa flor — o narciso que cresce à beira das fontes e mananciais.

O significativo que Narciso só se apaixonasse por sua imagem depois de ter


rejeitado o amor de Eco. Enamorar-se da própria imagem — isto é, tornar-se narcisista
— é visto no mito como uma forma de punição por ser incapaz de amar. Mas levemos a
lenda um passo mais além. Quem é Eco? Ela poderia ser a nossa própria voz que nos
está sendo devolvida. Assim, se Narciso pudesse dizer “Eu te amo”, Eco repetiria essas
palavras e Narciso sentir-se-ia amado. A incapacidade para dizer essas palavras
identifica o narcisista. Tendo retirado sua libido das pessoas no mundo, os narcisistas
estão condenados a enamorar-se de sua própria imagem — isto é, a dirigir sua libido
para o próprio ego.

Outra possível interpretação é interessante. Ao rejeitar Eco, Narciso rejeitou


também sua própria voz. Ora, a voz é a expressão do ser íntimo da pessoa, o self
corporal, em oposição à aparência superficial da pessoa. A qualidade da voz é
determinada pela ressonância do ar nas passagens e câmaras internas. A palavra
“personalidade” reflete essa ideia. Persona significa que, pelo seu som, pode se
conhecer a pessoa. De acordo com essa interpretação, Narciso negou seu ser interior, em
favor de sua aparência. E essa é uma manobra típica dos narcisistas.

2
Qual é a importância da profecia proferida pelo vidente Tirésias — a de que
Narciso morreria quando visse a si mesmo? Que bases poderiam existir para tal
predição? Acredito que tinha de ser a excepcional beleza de Naiciso. Tal beleza, num
homem ou numa mulher, prova frequentemente ser mais uma maldição do que uma
bênção. O perigo é que a consciência de ter beleza suba à cabeça da pessoa, tornando-a
uma egoísta. Outra possibilidade é que essa beleza desperte paixões violentas de desejo
e inveja em outros, redundando em tragédia. A história e a ficção contém muitos casos
de desfechos infelizes para as vidas de belas pessoas. A história de Cleópatra é uma das
mais conhecidas. Por ser uma pessoa sábia, o vidente compreende esses perigos. –
Narcisismo, Negação do Verdadeiro Self – Alexander Lowen - 1983

Prefácio à edição em língua portuguesa

[Consciência sistêmica...]
3
Dr. Fernando Freitas CS

Parte 1

4
Meu Rei Maravilhoso
Capítulos 1-4

Θ CAPÍTULO 1 – Era uma vez...


o ...E aí ela morreu
o Línguas e artes
o Uma ruiva na minha vida
o Tudo resolvido num quarto de hora
o Conflito: Razão versus emoção
Θ CAPÍTULO 2 – Mudança de planos
o Propostas indecentes
o O fetiche da calcinha
o A viúva negra
o Sem volta
o “Meu cliente merece o melhor de mim.”
Θ CAPÍTULO 3 – Troca de amantes
o Lábios de mel...propósitos de absinto
o Don Juan
o Migalhas de prazer
o “Como amantes, meu rei!”
o Parceiro descartado
o Tempestade num copo d’água
o Ensaio fotográfico sensual
Θ CAPÍTULO 4 – Encenando o script
o “Era apenas uma ideia.”
o Natal e Réveillon
o Economia, privacidade e prazer
o Água mole em pedra dura...

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1
Era uma vez...
“Começos são decisivos porque definem a visão, indicam o processo e influenciam o fim. Nossa
vida é cheia de começos e fins, ambos essenciais para o que ocorre no intervalo. Se o começo não fosse
importante, a gente começaria pelo meio.” - Marcos de Benedicto

...E aí ela morreu

Y ared era um empreendedor, instrutor de idiomas e curso designer por profissão.


Tinha cerca de cinquenta e tantos anos de idade. Porém, feições de um trintão.
Era muito bem conservado por não ter sido dado aos vícios, nem à vida boêmia
tão comum à maior parte dos homens de sua geração.
Um metro e sessenta e sete centímetros de altura. Compleições físicas de
afrodescendente, esguio e com uma vitalidade corporal invejável. Ele não tinha
qualquer quantidade de tecido adiposo em excesso com o qual ter de se preocupar.
Grandes olhos castanhos escuros e cabelos pretos com alguns fios que já haviam
assumido a coloração branca brilhante espalhados por sobre sua grande cabeça. Sua pele
morena bronzeada – como seu pai costumava dizer – cor de jambo - esbanjava saúde e
vigor na sua quinta década de vida.
Usava um par de óculos um tanto ultrapassado – estilo nerd – exibindo
inequivocamente sua condição de intelectual. Amante da leitura, havia aprendido grande
parte das verdades sobre a vida na companhia dos seus livros amigos.
De preferência, sempre estava em roupas sociais ao invés dos usados e abusados
jeans e camisetas casuais de seus colegas de trabalho.
Era reputado entre os camaradas mais íntimos pelos apelidos de peace-maker –
aquele que faz a paz, numa tradução livre. Ou monge Dalai Lama. Cognomes que lhe
foram atribuídos por detestar se envolver em conflitos pessoais de qualquer natureza.
De um modo geral, ascendia rapidamente de posto nas escolas em que chegava
para lecionar em virtude da sua dedicação, proatividade e inteligência emocional em
lidar com os alunos, companheiros de trabalho e com a direção. Sentia-se um pouco
responsável por todo mundo, era a providência da escola.
Ademais, era o tipo de cara conservador. No fundo, tinha uma natureza de
inclinação mais retraída e tímida. Vivia notadamente dentro de sua própria pele. Não
apreciava aglomerações, balbúrdias, conversas fiadas. Para muitos, um cara chato. Um
tanto antissocial. Até certo ponto, um indivíduo a ser evitado.
Mas, em contraste, uma pessoa amigável, empata e altruísta – com uma certa
vocação para salvador da pátria. Uma vez que a amizade fosse estabelecida, se podia
contar com ele para o que desse e viesse.
Vivenciara uma trajetória profissional com muitos desafios, pois começara
jovenzinho a ministrar aulas para sua própria sobrevivência e da família que constituíra
logo ao alvorecer dos seus vinte anos. Sua carreira cheia de obstáculos e dificuldades
tivera início três decênios atrás.
Contudo, em nenhum momento perdera a paz de espírito, sequer mudara seu
modo de agir e sua personalidade permanecera incólume. Soubera vencer todos os
obstáculos que tinham aparecido à sua frente.
Ainda que tivesse passado por infortúnios, traições e dissabores, sem conta, não
guardava mágoas ou ressentimentos.

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Yared tinha um longo histórico profissional de sacrifícios pessoais em busca de
um ideal com um vasto e aguçado conhecimento de linguista, do processo ensino-
aprendizagem, gestão da equipe docente e administração escolar. Sempre sonhara em
desenvolver e oferecer uma metodologia inédita que capacitasse seus alunos a lidar com
suas desafiadoras situações acadêmicas e de trabalho além do domínio do idioma que
estivessem estudando, o que o levou a criar um curso inédito de sucesso absoluto no
mercado durante décadas a fio.
Não obstante, a despeito da sua realização profissional na indústria de ensino de
idiomas, Yared sempre ansiara por conhecer melhor a mente humana, seus problemas,
percalços, desafios, traumas e enfermidades a fim de cooperar para o tratamento e cura
de corpo e espírito do semelhante. Ele sempre aceitara a verdade: “o menos doente deve
ajudar o mais doente!”
Mesmo com seu sucesso nas áreas profissional e familiar, ele sentia que ainda
lhe faltava galgar esse degrau – aquele senso de contribuir para melhorar a sanidade
mental de tantas pessoas quanto possível. Aquele anseio por realizar uma missão maior.
Yared sempre havia se feito a mesma pergunta, por mais de uma vez, no
decorrer da sua vida:
O ser humano nasce com um destino pré-determinado? Existe algum plano de
Deus para sua vida, como pregam os religiosos? Temos uma missão de vida a cumprir,
como dizem os espiritualistas da nova era?

Yared estava amargando um luto há quase oito meses pela perda da esposa. No geral, para ser
mais exato, aquele martírio pessoal já vinha se arrastando por mais de um ano e meio – tempo que lhe
parecia uma eternidade. Isso o forçara a suportar todas as vicissitudes e inconveniências de contínuas
visitas e prolongadas permanências em hospitais, clínicas e laboratórios. Em muitas ocasiões, executara
vários projetos nas alas da enfermaria, ao lado da sua mulher, usando para isso apenas seu sistema
Android num Motorola tristemente ultrapassado.
Despesas médicas constantes e elevadas, na casa de três dígitos, aliadas a uma angústia e
ansiedade mortificadoras passaram a ser suas companheiras inseparáveis.
O peso de toda aquela dinâmica insidiosa o arrastava, dia a dia, semana a semana, mês a mês,
cada vez mais, para uma depressão profunda.

Estivera segurando a mão magérrima da sua esposa no seu último suspiro. Testemunhou ela se
despedir desse mundo enquanto jazia entorpecida à morfina injetada diretamente na veia – aparência
esquálida, olhos encovados, porém ainda cheios de amor, como de costume tinham sido.
Sem mais conseguir se mover, à beira da morte, sobre uma cama de ferro pintada com um frio
branco hospitalar, a senhora Lovingdale piscou o olho direito pela derradeira vez. Aquela fora a única
forma que ela pôde usar para dizer adeus ao seu marido. Sua respiração esvaeceu. Seu batimento cardíaco
despencou para o zero absoluto – pôde-se ouvir o ruído do sinal contínuo do monitor multiparâmetro a
anunciar sua saída desse mundo – sua alma partira em paz!

Em particular, as pessoas que alguma vez tenham assumido o papel de cuidador


de um paciente gravemente enfermo conhecem o sofrimento excruciante envolvido
nesse processo. Acima de tudo, se esse paciente for um familiar. Num grau extremo, se

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a pessoa doente for algum ente querido. E nada é tão atroz como perder alguém que
tiver passado a maior parte da sua vida ao seu lado. É um sofrimento humanamente
inconcebível!
As incertezas da vida e as vicissitudes da existência sempre mais cedo ou mais
tarde batem à nossa porta. Intrometem-se na nossa vida mesmo sem serem convidadas.
Como tal, somos assediados por certas inevitabilidades. O falecimento com seu terrível
golpe parece ser o pior, no entanto! Queiramos ou não, envelhecemos, sofremos perdas
e vivemos à sombra da morte. Essa é uma fatalidade inerente à condição humana – sem
exceção. Ninguém pode salvar ninguém da arrepiante garra da morte, quando na
sepultura, coberto de vermes!
Paradoxalmente, devemos tentar viver feliz num mundo onde a alternativa da
dor e a probabilidade de aflições são possibilidades experienciais reais sempre a nossa
espreita.

“Quem é o acompanhante da Sra. Lovingdale?” – perguntou o médico de maneira precipitada.


Esticando o pescoço rapidamente para espiar para além do balcão, Yared respondeu de pronto:
“Aqui, doutor.”
“Ok! Siga-me até o meu consultório, senhor.” – acrescentou o profissional de saúde numa voz
de comando – quase militar.
Yared havia notado que alguma coisa havia dado errado com os exames da sua esposa. E ficou
olhando para o médico espantado como se tivesse visto assombração.
Em primeiro lugar, a jovenzinha enfermeira, com o braço direito sobre o ombro da senhora
Lovingdale, que caminhava devagar e penosamente, tinha saído da sala de procedimentos levando-a para
a sala de repouso, muito antes do tempo previsto. Em segundo lugar, o médico o chamou num humor
grave e num tom de voz alarmada.
Antes mesmo de se sentar, ele informou o acompanhante com frieza:
“Ela tem um tumor de aproximadamente 3 centímetros e meio no estômago! É obrigatório que
seja operada com emergência!”
Yared puxou para o lado uma pesada cadeira de madeira antiga, estilo colonial. Pressurosamente,
repousou seu corpo trêmulo sobre aquele assento imponente. Estava transtornado com aquela notícia de
morte à vista. Sentiu como se estivesse recebendo um forte soco no estômago. As palavras agourentas do
médico tinham o peso de chumbo. Afinal, era para ser meramente um exame de rotina. Agora, ele previa
um risco de morte para a sua amada esposa.
“Porventura é um cân.. câncer, doutor?” – balbuciou ele com os nervos à flor da pele.
“Eu não tenho dúvida alguma!” – confirmou asperamente o clínico.
“Mas é maligno ou benigno?” – a testa de Yared havia se franzido na horizontal e suas
sobrancelhas estavam levemente erguidas.

O esposo, com as mãos suadas e um calafrio na espinha, esperava desesperadamente ouvir a


última alternativa como resposta. O passado já o havia golpeado com o falecimento precoce de três
cunhadas para aquela mesma enfermidade nefasta. Existia uma síndrome pós-traumática perseguindo
aquela família de geração em geração. Agora, seu coração estava batendo acelerada e
descompassadamente, acossado pelo medo de enfrentar mais um velório, mais um funeral. Dessa vez,
envolvendo sua própria mulher como a vítima. Sofrera um desmesurado impacto emocional e
consequentemente tinha entrado em desespero. Porém, ele sabia que devemos parar de tentar resistir à dor
e à perda, pois são inevitáveis.

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“Este é um tipo de câncer maligno. Ela tem de ser operada o mais rápido possível. Por favor,
tome as medidas necessárias!” – advertiu o médico sem papa na língua. No estilo Super Sincero. O tom
da sua voz foi fatídico.

Aquela informação, numa fração de segundos, causou em Yared uma vertigem e mal estar
indizíveis. Ele ficou deveras assustado, e começou a se perguntar como aquela maldita moléstia poderia
ter acometido sua esposa desavisadamente – logo ela que era bastante atenta à sua saúde e à da sua
família.
Os dois estavam juntos num casamento harmonioso e longevo – por mais de três décadas. A
construção sólida do relacionamento com sua admirável esposa havia sido inteiramente feita em pedaços
e ruíra em questão de minutos!

“Já pedi uma biópsia de emergência para certificar o tamanho e o tipo do tumor.” – comentou
o médico de forma técnica.
“Tudo bem doutor, vou providenciar.” – respondeu-lhe Yared com a voz embargada.

Yared sentiu uma pontada aguda nas têmporas ao ouvir aquela verdade impalatável. Ficou
apático e gélido diante da perspectiva da sua vida conjugal bem-aventurada não poder perdurar por muito
tempo mais. A sentença final parecia ter sido decretada. E quem a teria decretado? As maiores verdades
da vida são as mais desagradáveis de ouvir.
Yared foi invadido por uma dor lancinante. Seu coração pareceu estar sendo transpassado lenta e
repetidamente por um punhal. Uma avalanche de imagens de sua vida pretérita de casado assaltou o seu
cérebro erraticamente. Precisava reorientar seus pensamentos para agir da forma certa.
Quando se recuperou do choque, pediu licença ao médico e caminhou com passos largos até à
área externa da clínica. Buscou mais ar nos pulmões. Respirou fundo. E decidiu procurar um ombro
amigo em que se apoiar. Ligou para o seu irmão.
“Meu irmão, estou inconformado com o que ouvi do médico agorinha mesmo. Acabo de receber
o resultado do exame de Lovingdale. Ela tá com câncer. No estômago. É maligno. Precisa de cirurgia
com emergência!” – informou falando de forma acelerada e nervosa.
Pôde sentir que seu irmão fez uma pausa no outro lado da linha, antes de responder.
“Brother, você tem certeza?” – perguntou o rapaz.
“Sim, tenho. Tenho que encontrar o tratamento certo para minha mulher, meu irmão.”
“Você quer que eu vá até aí? Posso te apanhar na clínica e a gente pode conversar.” – ofereceu
o seu irmão.
“Muito obrigado, brother! Mas tenho de ir pra sala de repouso ficar com ela. Depois vou levá-
la direto pra casa. Mas quero conversar com você ainda hoje. Me dá essa força aí?” – perguntou a ponto
de entrar em desespero.
“Com certeza, brother! Estamos juntos.” – conformou-lhe seu familiar.

Uma das amigas mais próximas de Yared era psicóloga. Ela o aconselhara a
começar a se envolver com algum tipo de atividade pois percebera que ele estava
prestes a ficar gravemente doente da cabeça.
Ao longo de todos os dias, seus pensamentos e pronunciamentos eram voltados
para a perda da esposa. E pelas noites adentro, chorava amargamente, e não havia quem
o consolasse dentre todos que o amavam. Estava esgotado de tanto prantear. Noite após

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noite molhava sua fronha com seu pranto, inundando com lágrimas o lugar do seu
repouso. Seus olhos se mostravam consumidos, envelhecidos por força da tragédia do
traspasse recente.
Depois do diálogo com essa terapeuta, o professor decidiu ministrar um curso de
inglês gratuito. Em resultado disso, escolheu uma comunidade religiosa carente para
esse propósito. E uma terapia ocupacional para sua cura foi iniciada.

“O tempo e o espaço também são muito importantes como referenciais para o terapeuta, que
deve observar o passado, atuar no presente, mas vislumbrar o futuro, a fim de orientar o novo caminho
de possibilidade que se abre.” – Fernando Freitas CS

Os alunos do instrutor de idiomas – animados, inteligentes, ousados e difíceis –


eram apaixonados pelas suas aulas – sempre cheias de atividades dinâmicas e divertidas.
Isso os fazia aprender com muita facilidade. O professor Yared era do tipo de
profissional que defendia o slogan: trabalho que é feito com amor perde metade de seu
tédio e dificuldade.
Em razão disso, ele se motivou a expandir seu ensino. Dessa vez, para os filhos
dos seus estudantes. Planejava desenvolver um programa de inglês infantil – um curso
de English kids.
Como resultado, Yared teve a ideia de ter algumas mascotes como personagens
principais para representar o curso da garotada. Quis fabricar bonecos de mão –
marionetes. Esses seriam uma espécie de atores e atrizes para suas aulas com as
crianças. Soube que uma das suas alunas trabalhava com as artes manuais – era uma
artesã. De tal modo, conversou com ela para ver se poderia fazer os bonecos que
pretendia usar na sala de aula infantil.
Numa conversa pelo aplicativo de mensagens, a moça lhe disse que não era sua
especialidade fazer aquela modalidade de personagem, entretanto. Ainda assim, ela
conhecia uma amiga artífice que era especialista em projetar e fabricar aquele tipo de
peças de arte.

Línguas e Artes

Cinco meses havia transcorrido desde que sua esposa havia passado para seu
descanso eterno. Numa manhã de setembro daquele fatídico ano de 2017, por meio de
uma conversa no aplicativo de troca de mensagens, Yared teve contato com Ani Lorac
pela primeira vez. Observando atentamente a foto do perfil no aplicativo
multiplataforma de mensagens instantâneas, ele depressa percebeu que ela era uma
mulher bonita. Charmosa. E ruiva!

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Yared: Bom dia!
Yared: Meu nome é Yared e sou cliente do boneco.
Yared: Lucy me deu suas informações de contato.
Lorac: Oi, Yared. Bom dia!
Lorac: Ela me deu algumas informações sobre as marionetes.
Yared: Sinta-se à vontade pra fazer qualquer pergunta que possa ter.
Lorac: Eu disse a ela que vou começar a fazê-los na próxima segunda.
Yared: Tudo bem, não tem pressa.
Yared: Por favor, lide diretamente comigo de agora em diante, ok?
Lorac: Tudo bem, Yared.
Yared: Obrigado!

Na realidade, aquela artesã era habilidosa o suficiente para assumir o trabalho de


projetar e fazer os bonecos mascotes que Yared tanto precisava usar em sala de aula.
Partindo desse princípio, ele contratou seu serviço. Preço, condições de pagamento e
data de entrega foram combinados entre cliente e fornecedora.
Após aquele primeiro contato virtual, as coisas iriam moldar o resto da sua vida
bem como as dos que lhe eram próximos.

Uma ruiva na minha vida

O dia para a entrega das marionetes foi combinado por meio de uma conversa
entre o empreendedor de idiomas e a profissional de artes via aplicativo de mensagens.

Lorac: No sábado dia 30 nossa Associação vai realizar mais um evento de arte. Ao invés de entregar suas
peças em mãos, gostaria de levá-las para a exposição. Pode ser?
Yared: Sim, claro. Eu vou!!!
Lorac: Vai ter um concurso. Vamos ver se eu vou ganhar....
Yared: Claro que você vai!
Lorac: Obrigada!
Yared: Meu voto é seu!

Lorac havia se divulgado. Estava se vendendo. Atuara como seu próprio


marchand – “ars longa vita brevis”, afinal! – ela precisava agenciar suas obras de arte
autonomamente, o que teve o pronto apoio e incentivo do homem de negócios do ramo
de idiomas.

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Ao cair da tarde do dia do evento, Yared acompanhado por seu irmão mais novo
e sua namorada seguiram no carro da família para o endereço do festival de arte. Estava
todo contente e motivado com sua nova aquisição – as mascotes dariam vida e alegria às
suas aulas com a meninada.
Nesse estado de boas vibes, partiu para o showroom de artes. Estava indo pegar
seus modelos novinhos em folha e ver com seus próprios olhos a ruivice daquela artista!

O recinto se assemelhava a uma casa senhorial admirável com dois andares.


Bem no estilo colonial. A fachada barroca de cor forte aderente aos demais prédios
numa mescla multicolorida era o destaque daquela construção arquitetônica clássica.
Situava-se na zona alta da enladeirada cidade turística vizinha.
Podia-se ver um leque de pluralidade e variedade de peças de arte, a despeito de
muito diversas entre si, todas reunidas numa disposição bem próxima sobre dezenas de
pequenas mesas de madeira desmontáveis por todos os lados.
Galhos, raízes e troncos de madeira tornaram a ganhar vida nas mãos de artistas
habilidosos, transformando esses galhos em bichos da região, pessoas e instrumentos
musicais. Havia a produção tanto de camponeses em madeira, como também de peças
religiosas e carros de boi. A principal matéria-prima era a madeira umburana, bem
característica da região. Podia-se contemplar carrancas de anjos barrocos alegres e
gordinhos. Havia artista que fizera esculturas humanas, animais e figuras do imaginário.
Produções feitas em raízes e troncos de árvores descartadas. Bonecos de Mamulengo
em madeira também podiam ser admirados. Havia trabalhos maravilhosos por “dar
vida” aos olhos dos bonecos de barro, utilizando o alto-relevo e a pintura.
Ao escanear o interior do salão, de imediato, Yared pôde captar a visão dos seus
bonecos. Estavam trajados e pintados de uma forma admirável. Suas encomendas
artísticas haviam sido dispostas no centro de uma daquelas inúmeras mesas expositoras.
Arrodeadas por outras peças de arte de Ani Lorac, se destacavam pelo brilho e
disposição das cores. Eram verdadeiras obras-primas!
A artista não estava no local naquele momento. Até que... nesse meio tempo,
num intervalo de quinze minutos mais ou menos, os olhos deles se encontraram pela
primeira vez. Finalmente, ele pôde vê-la em carne e osso.
Já à primeira vista, a artesã se apresentou como uma mulher muito bonita e bem
cuidada. Aparentava seus trinta e tantos anos de idade. Um metro e cinquenta e cinco
centímetros de altura. De aparência jovial, do tipo bem com a vida. Era bem atraente.
Rosto bem formado, queixo firme, boca bem desenhada, lábios cheios com um sorriso
cordial e convidativo. Pequenos olhos castanhos espaçados. Seu corpo era mais para o
tipo mignon, muito esbelto, de pernas bem torneadas. Pele sobremodo clara com sardas
salpicadas aqui e ali no rosto e pelo pescoço. Seus cabelos eram vermelhos como uma
brasa incandescente e lhe caíam sobre os ombros como cascatas de cobre.
Tornou-se de imediato evidente para Yared que aqueles cachos cor de âmbar
avermelhado eram obra exclusiva da natureza, e não resultado de qualquer tintura mal
feita num salão de beleza de terceira categoria.
A mulher tinha feições ainda mais formosas do que ele tinha visto na fotografia
de perfil do aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas.
A linda fornecedora se aproximou do seu cliente com um sorriso encantador e
educadamente perguntou:
“Yared?!”
“Lorac?!” – Yared devolveu-lhe a pergunta e o sorriso.
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“Boa noite!” – aquela saudação foi oferecida de uma forma gentil e vibrante.
Trocaram beijinhos nos rostos e se abraçaram.
“Boa noite!” – ele ecoou para a artista, já demonstrando estar embevecido com
aquele encontro e com a primeira impressão que estava tendo da moça de cabelo
acobreado.
Ele pensou:
- Pareceu-me que um fluxo de energia tinha varrido nossos corpos por inteiro.
Ambos tivemos a mesma sensação, sobre a qual conversamos mais tarde.
Ali jazia um mistério – o segredo das raízes. Era notório, por conseguinte, que
havia laços profundos entre as raízes das almas dos dois. Certa ocasião, num de seus
livros da sua vasta biblioteca pessoal, Yared leu e aprendeu: Às vezes, dois amigos
são mais intimamente ligados do que dois irmãos.

Tudo resolvido num quarto de hora

O outro casal – seu irmão e sua namorada – mantinha os olhos atentos e os


ouvidos bem apurados aos episódios em sua volta. Estavam construindo seu próprio
ajuizamento sobre o que estava acontecendo naqueles meros minutos dentro daquele
amplo e agitado resort de arte.
Yared e seus familiares fizeram uma estada de cerca de duas horas no interior do
casarão. Podia-se encontrar comida e bebida disponíveis para que os visitantes
comprassem. A música estava inundando aquele espaço festivo com um ar um tanto
psicodélico.
As pessoas arrumadas casualmente eram alegres, barulhentas e expansivas.
Desfrutavam de divertimentos simples como ouvir músicas em vitrolas antigas, bate-
papos descontraídos e estridentes, e contação de piadas e lorotas em meio a gargalhadas
estrepitosas. Era um povo que, conforme os valores de Yared, poderia ser professado
como de estilo e gosto alternativos, digamos. Na vã guarda da moda, da arte e dos
costumes.
A anfitriã se aproximou perturbadoramente de Yared e chamou os seus
convidados para subir até o piso de cima. Haveria uma apresentação de dança exótica de
uma dupla feminina. Ela cortesmente meneou a cabeça indicando o caminho e os guiou
até as escadas que levavam ao palco no andar superior.
Lorac estava usando um vestido amarelo salpicado de flores vermelhas, verdes e
azuis. Era um tanto curto – ligeiramente acima do joelho. Havia colocado um sutiã
firme e modelador. Essa peça íntima fazia seus seios parecerem duros e arredondados.
Esticando seu braço direito em direção à escadaria, a mulher tomou à dianteira e
Yared a acompanhou logo atrás. A artista de cabelos castanhos avermelhados passou à
frente dos visitantes e começou a escalar com elegância os estreitos e sinuosos degraus.
Eles eram de madeira antiga e extremamente desgastados pelo tempo. Mesmo assim,
por terem sido lustrados para a ocasião, embelezavam a escada em espiral que dava
acesso ao pavilhão superior. A despeito da balbúrdia dos esfuziantes participantes do
evento, podia-se ouvir os golpes dos saltos da anfitriã sobre os degraus emadeirados a
ressoar no ambiente.
A cada passo de Lorac na sua subida, os olhos de Yared aguçavam-se para
acompanhar aquele desfile na passarela em forma de escada. Sem piscar! Estava focado
na altura da barra da saia do vestido da dona. Ficou todo motivado a ver mais daquelas

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pernas torneadas e bronzeadas – as panturrilhas eram salientes e rijas, demonstrando
que a artista frequentava a academia de musculação. Ela transpirava saúde e
exuberância física.
Ao passarem adiante pela soleira da porta de acesso, e uma vez no interior da
sala, preparada adrede para ser o palco da apresentação, pareceu terem cruzado um
portal tempo-espaço. Depararam-se com dúzias e dúzias de pétalas de rosas – nas cores
branca, amarela e vermelha – que haviam sido soltas por todo o assoalho. O piso se
assemelhava a um magnífico tapete persa de fina tecelagem artesanalmente trabalhado.
Estava pronto para receber maciamente os pés nus das dançarinas.
As mulheres estavam bem vestidas e ornamentadas com vestes e acessórios
indianos. Uma música instrumental tipo nova-era ressoava docemente naquele ambiente
transcendental. A iluminação era de penumbra. À luz de velas, por assim dizer. Pairava
uma certa volúpia no ar.
Lorac se sentou de pernas cruzadas bem ao lado de Yared. Seu vestido curto
ascendeu um pouco mais. Aquele movimento deixou à amostra uma porção extra de
suas coxas – tanto quanto as panturrilhas, elas estavam tostadas em comparação com a
cútis do rosto de Lorac. O intelectual de idiomas, como de camarote, não pôde deixar de
contemplar aquele incidente incitante. Afinal, estava sendo oferecido aos seus olhos
com generosidade, com liberalidade. Por que não se deleitar? Pensamentos picantes
tomaram conta da sua mente, de imediato. Como fica sua flor-de-lótus quando ela se
senta nessa posição? Ela também é ruiva lá embaixo?
Depois de instantes, após a performance de dança ter sido saudada com aplausos
entusiasmados, o irmão de Yared disse num tom de brincadeira:
“Eu pensei cá comigo mesmo. Se essa mulher subir primeiro, Yared vai transar
com ela!”

Depois de momentos aprazíveis na companhia da artista, chegara a hora de se


despedir daquele show de artes. A marchand retirou as marionetes de sobre a mesa e as
embalou meticulosamente em sacolas personalizadas ostentando a logomarca da sua
empresa. Juntou alguns dos seus cartões de visita e entregou a encomenda nas mãos do
seu cliente acompanhada de um sorriso afável.
Depois de se despedir de Lorac, Yared seguiu em direção ao automóvel. A
cunhada perguntou na hora com um o sorriso se transformou num riso sonoro,
contagioso:
“A menina solícita não vem jantar com a gente?”
Boquiaberto e mostrando-se um tanto surpreso, ele disse de maneira atrapalhada:
“Como assim? Não, não, claro que não.”
“Ela ainda tá trabalhando na venda das suas bonecas. E além disso, ela é uma
mulher casada.” – afirmou de maneira pouco convincente.
Ambos abriram um largo e sonoro sorriso. Seu irmão acrescentou:
“Cuidado pra que você mesmo não faça uma boneca nela!”
Para ambos, aquela troca de energia se tornara com bastante clareza e de todas as
formas evidente – um flagrante de uma baita atração mútua: linguista-artista.
Eles passaram o resto da noite provocando Yared com piadas e lorotas sobre a
tal garota ruiva solícita.
Depois do jantar, levaram Yared para casa.

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“Quero dizer-lhe uma coisa: entre o homem e a mulher, tudo se decide no primeiro quarto de
hora. É no primeiro quarto de hora que se estabelecem todas as regras. Daí por diante, nada mais se
modifica.” – Bert Hellinger

Conflito: Razão versus emoção

Ao chegar em casa, Yared foi para a cama sem perder tempo. Contudo, não
conseguia se desconectar do evento e relaxar o suficiente para cair no sono. Em vigília,
impossível adormecer, sua mente estava vagando pela cadeia de reminiscências dos
bons momentos que tivera naquela noite. Ele não conseguia fazer outra coisa a não ser
pensar em Ani Lorac. Uma pessoa não esquece algo de que realmente se deseje lembrar.
Aquela frase ficara na sua cabeça:
“Ela não vem jantar com a gente?”
Desde a primeira troca de olhares, ele havia sido atraído magneticamente àquela
ruiva. Ela possuía um certo que em sua maneira de andar, no tom da voz e no modo de
exprimir-se. Decidiu ligar para ela pelo App de mensagens. Enviou-lhe uma mensagem
de boa noite e muito obrigado.
Ani Lorac respondeu imediatamente. Tinha acabado de chegar à casa da sogra.
Yared aproveitou para conferir aquela pergunta que a namorada do seu irmão havia
feito e que não queria calar. Em razão disso, por via das dúvidas, apressadamente, lhe
enviou o seguinte texto com uma carinha de pensativo:
- Era um pouco tarde e você ainda estava trabalhando. Mas pensei em
te convidar pra jantar com a gente.
Para seu assombro sem tamanho, a resposta da artista confirmou a proposta
tentadora que sua cunhada havia feito. Digitou Lorac acrescentando animes com
carinhas de felicidade e meiguice:
- Seria uma ótima ideia, mesmo!!! Preciso conhecer novas pessoas.
Preciso de um pouco de lazer. Da próxima vez, quem sabe?!”
A mente de Yared foi arrastada por um tsunami de pensamentos e sentimentos
contraditórios. Ele estava sucumbindo a uma paixão física avassaladora. Haveria
realmente uma chance de se aproximar daquela dona?
- Essa mulher tá brincando com fogo! – pensou ele sorrindo consigo mesmo.
“Cuidado Yared!” – lhe falou sua voz interior. “Ela é uma senhora casada.
Tem uma família. Você está no seu juízo normal para não se aproximar dela, não
está?”
Para o fim e com o propósito de pacificar suas elucubrações em turbulência, ele
deu uma bronca no seu cérebro:
“Você é viúvo e tem uma vida social e profissional estável. Tem mantido uma
grande família. Tem filhos e netos. E a propósito, você não é mais um adolescente, não
é mesmo?!”
Imediatamente sua mente respondeu com um ressonante: NÃO! Yared estava
sendo carregado e impulsionado por uma força que podia mais do que ele, à qual o lado
racional do seu cérebro relutava em se entregar.
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Nessa altura da vida, não era nenhum aventureiro para largar casa, filha solteira
ainda dependente financeiramente, seu conforto e seu conceito na sociedade, para ir
viver como amante de uma mulher doidivana na instabilidade e no descrédito.
Entretanto, o encontro com Ani Lorac, na livraria, veio reascender-lhe de súbito aquela
necessidade antiga de lar, de vida de família, mesa posta, cama de lençóis limpos.

Aquele raciocínio lógico fora em enorme medida persuasivo para conter seus
sentimentos sobre aquele primeiro encontro com Lorac.
Não obstante, os sentimentos, de maneiras não totalmente compreensíveis, são
fortes o suficiente para insurgir o tempo todo. De forma consistente e persistente! Eles
tomam conta de todo o nosso ser assim que nossa mente controladora descuida apenas
um pouquinho. Como resultado, ela deixa de exercer sua autoridade sobre nós, fazendo
aflorar nossos desejos contidos.
Lorac estava mexendo com sua cabeça. Ele estava caído por ela. A lembrança
constante dela não havia diminuído seu jugo sobre ele. Tinha achado seu aspecto
feminino tão poderoso, tão atraente e tão insinuante que lhe estava sendo difícil
renunciar a ele. Yared estava cerceado pelos limites da carne e do espírito.
Ele teria que afrontar o dilema: tentar conhecer melhor aquela mulher, ou
simplesmente esquecê-la e levar sua vida como se nunca a tivesse visto antes. Assumi-la
seria uma mudança de atitude radical.
Seria sair do seu mundo ordinário, comum, de sempre, o qual estava adaptado
rumo a um novo mundo fantástico, talvez imaginário, onde não se sentiria seguro, nem
no controle de si mesmo. Como poderia seguir seu coração se isso significava que seu
status quo estaria arrostando um iminente perigo?
Que fique claro que aquela última alternativa acabou sendo uma iniciativa
inconcebível para Yared. Seu ímpeto e motivação interiores eram de aproximar-se da
artista de cabelos castanhos avermelhados.
Daí, ele elaborou um plano de ação a fim de conciliar as duas alternativas – no
bom inglês fight or flight – traduzindo: lutar ou fugir!
Estava ansiando ardentemente se achegar a Lorac. Queria saber mais sobre ela.
De uma forma ou de outra, daria um jeito de disfarçar a irrupção vulcânica daquele
desejo. Talvez, tudo pudesse começar com uma possível futura parceria profissional.
O professor ficara dividido entre dois valores de vida muito em desacordo entre
si. Dois caminhos irreconciliáveis a seguir.
Em certa ocasião, Yared lera num dos seus livros preferidos:
“Há muitos caminhos errados, mas somente um correto; e neste
ninguém pode nos guiar exceto Deus.”
Por conseguinte, uma decisão obrigatória e pendente precisava ser tomada. Ele
não tinha como ficar indiferente.
Yared estava plenamente consciente de que agir era responder a estímulos.
Sendo esses de diversas naturezas: morais, econômicos, jurídicos, afetivos... toda ação
exerce um estímulo reclamando uma decisão, uma resposta. A decisão é uma tomada de
posição – por vezes demanda coragem, como intrepidez diante das situações!

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“...alguns valores e parâmetros são melhores que outros. Alguns conduzem a problemas bons
(do tipo fácil e simples de resolver), enquanto outros levam a problemas ruins (do tipo difícil e complexo
de resolver).” – Mark Manson

Seu desejo original e real, imergindo do seu id, era conhecer melhor aquela dona
com grande sexy appeal.
Sentiu-se provocado a ver se, por acaso, ou por iniciativa, poderia conquistá-la
amorosamente para si.
A essa altura, estava inteiramente possuído pela ideia de começar uma paquera
com aquela mulher de cabelo de cobre.

“O papel crucial que a sexualidade desempenha na união dos casais evidencia o primado da
carne sobre o espírito, bem como a sabedoria da carne. Somos tentados a desvalorizar a carne em
comparação com o espírito, como se o que se faz a partir da necessidade física, do desejo e do amor
sexual tivesse menos valor que os benefícios da razão e da moralidade.” – Bert Hellinger

Em última análise e na compreensão final, aquela arquitetada proposta de


parceria profissional era tão-somente um pretexto para se avistar com a artista. Em
última instância, ele precisava ficar de bem com sua cabeça.
Essa ideia era capaz de compensar sua mente disciplinadora. Sem dúvida
nenhuma, ela tinha a ver com o que ele verdadeiramente ansiava por fazer.
Estava tudo acontecendo tão rápido, tão fora de controle que Yared estava bem
ciente de que, se não pusesse freio em seus impulsos, e deixasse as coisas correrem
frouxas, poderia acabar tendo um envolvimento amoroso com Ani Lorac.
Sabia que se fosse encarar seus prazeres mais profundos, as consequências
poderiam ser devastadoras por viver um amor proibido.
Por dias a fio lutou contra aquela dualidade. Aquela neurose. Aquela luta titânica
entre o id e o superego. Pensamento e sentimento. Razão e emoção. Aquele binômio:
lado racional versus lado emocional do seu cérebro se digladiava no seu universo
psíquico.
Ter conhecido aquela mulher de cabelo acobreado lhe colocara diante de uma
nova conjuntura – um desafio.

Inconscientemente, somos movidos por forças desconhecidas que irrompem da


nossa psique. Aquele impulso considerado “negativo” seria o id de Freud? Ou a Yetser
Harah da filosofia judaica? Ou ainda os anarthas da filosofia védica indiana?
De uma forma ou de outra, todos reconhecemos que temos disposições internas
que nosso eu consciente se recusa a aceitar, ou pôr em prática. Esse nosso lado
“bonzinho fingido” seria o ego do psicanalista vienense ou a Yetser Hatov do povo
judeu ou as atividades piedosas védicas?

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Afora essas duas forças a virem cobrar espaço de ação na nossa vida cotidiana,
sofremos o freio ou o controle do superego. Aquela “voz interior” que sopra nos nossos
ouvidos as “regras do bom viver” que papai, mamãe e a professorinha nos ensinaram.
Aquela obrigação que sentimos de ter que ficar sorrindo e parecer feliz.

“Lembro-me de me sentar recatadamente enquanto me tiraram o retrato. Ainda tenho essa foto.
A imagem é: 'Vejam que menina encantadora eu sou’. Meu pai costumava dizer: 'Tudo o que uma moça
tem que fazer é sorrir, e terá tudo o que quiser’. Assim, continuei a vida sorrindo enquanto meu coração
se despedaçava por dentro.” – Alexander Lowen

Enquanto dialogava mais tarde por meio do aplicativo de mensagens, não


podendo mais resistir ao impulso de ver Lorac, Yared marcou um encontro com ela.
Usou o argumento de que tinha um possível acordo comercial para apresentar. A
reunião foi marcada para uma livraria sofisticada e famosa no centro da cidade – um
verdadeiro shopping center do livro.
Interessante o suficiente e digno de nota, ambos estavam reciprocamente
aspirando por se avistarem de novo.
Homem e mulher alimentavam seus próprios interesses e intenções. Entretanto,
compartilhavam uma verdade. Para ser realista, os dois ansiavam por estar juntos mais
uma vez.
Exteriormente, eles estavam definitivamente em desacordo entre si. De tantas
formas. Quanto a tantos princípios e valores. Com relação à forma de encarar a vida e
vivê-la. Suas perspectivas davam a impressão de diferir tão marcadamente como
diferem o óleo da água – os quais também não podem se misturar.
Interiormente, entretanto, ambos possuíam características estritamente análogas
– um traço em comum. Buscavam uma nova experiência de vida. Um relacionamento
que valesse a pena. Cada um a seu próprio modo. Um oásis afetivo. Um amor
verdadeiro, quem sabe?
E eram aquelas semelhanças que estavam atraindo um para o outro como um
potente ímã.
Os corações e as mentes do linguista e da artista estavam vinculados de uma
forma ou de outra.

“... ´o semelhante atrai o semelhante´, essas pessoas se encontram e partilham


do problema mútuo.” – Barbara Ann Brennan
2
Mudança de planos
“...te guardes de uma mulher iníqua e de aspecto macio de uma língua estranha. Não cobices
sua beleza em teu coração, e não te deixes cativar pelo piscar de seus olhos, pois por causa de uma
mulher licenciosa se pode ver o homem em situação de implorar por seu pão...” – Shelomo
Propostas indecentes

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I ndependentemente de toda aquele embaraço, chegara o dia D e a hora H do primeiro
encontro marcado pelo par enamorado.
Por meio de um bate-papo no app de mensagens, Yared ofereceu pagar uma
corrida de táxi para Lorac voltar para casa.
Ela confirmou que, se desse modo fosse, estaria disponível para ficar com ele
por aproximadamente cinco horas. Cinco horas?

Yared: Qual é o melhor horário pra você?


Lorac: Eu pretendo ir ao centro na segunda-feira... pra comprar algum material. Poderíamos nos encontrar
ali perto, tipo no Centro de Artes.
Yared: Onde ficaria melhor pra você?
Lorac: Pra mim é melhor lá.
Yared: Ok!
Lorac: Porque vou fazer uma entrega... lá no Centro de Artes. É ótimo lá, tem várias opções de lugares
pra gente conversar...
Yared: Perfeito!
Lorac: Pode ser de manhã... Chego por volta das 10:00 e vou comprar algumas coisas. Acho que às 11:00
terei terminado, então poderemos nos encontrar.
Lorac: Por lá...
Lorac: Está bom pra você?
Yared: Vamos almoçar juntos?
Lorac: Se for de manhã eu tenho mais tempo... porque à tarde tenho que voltar.
Lorac: Sim, podemos.
Yared: Combinado.
Lorac: Tudo bem então!
Lorac: Combinadíssimo!
Lorac: Até mais!
Yared: Até que horas podemos conversar?
Lorac: Até cerca de 2:30.
Lorac: Porque às 3:00 pretendo voltar pra não ter que pegar um ônibus lotado... e engarrafamentos.
Yared: Podemos discutir metade dos nossos planos!
Lorac: Onde moro o transporte é difícil. Tem ônibus apenas até um determinado horário.
Lorac: Ótimo!
Lorac: Então até breve!
Yared: Qualquer problema, posso arranjar um Uber pra você – não aceito não!
Lorac: Pra você também.
Lorac: Rsrsrsrs!
Lorac: Tudo bem então. De repente, eu poderia até aceitar.
Lorac: Rsrsrsrs!
Lorac: Obrigada!
Lorac: Até mais!
Yared: Eu disse: não vou aceitar não como resposta!
Yared: Boa noite!
Lorac: Rsrsrsrs!
Lorac: Tudo bem!
Yared: Ok!
Lorac: Ótimo!
Lorac: Obrigada!
Yared: Meu prazer!

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Nem de longe aquilo era o que ele havia previsto. Era tempo de sobra para tratar
ideias de trabalho e planos de marketing. Além do mais, se essa chance, por um lado,
reacendera sua expectativa de um flerte com a ruiva, por outro, despertara no seu peito
uma profunda vontade de reviver a vida em família como fora numa época passada.
Ambos estavam cientes de sua autojustificativa para a reunião. Era um
analgésico mental para a dor da culpa.
Para ser realista, em certo sentido, os dois tinham o desejo sincero de estudar um
ao outro melhor. E muito mais profundamente – em todos os detalhes possíveis.
Yared não parava de pensar no compromisso. Seus nervos tinham passado a
semana inteira em incessante, diuturna, insaciável e arguta atividade e sua cabeça
parecia que ia explodir com tantas ideias e elucubrações.

Na tarde do seu primeiro encontro com Yared, Ani Lorac estava usando um
longo vestido preto. Seu cabelo ruivo desalinhado estava preso num coque descuidado,
mas ainda assim charmoso no alto da cabeça, deixando à amostra seu pescoço bem
torneado e com sardas. Yared se viu diante de um par de penetrantes olhos azuis. Ela
estava carregando um par de pesadas sacolas reutilizáveis de algodão bege com vetores
logo reciclagem verdes característicos.
A artesã tinha comprado uma abundância de materiais para seus trabalhos de
arte. A quantidade sem tamanho de itens era bem perceptível pela protuberância e a
projeção de alguns papeis coloridos pelas bocas das sacolas.
Portando-se com todo cavalheirismo e atenções, Yared pegou seus pertences da
sua mão e assumiu o peso das suas compras.
Cumprimentaram-se cordialmente com um polido “boa tarde!”. Beijaram-se nas
faces e caminharam até à praça da alimentação a convite do gentleman.
O linguista e a artista sentaram-se a uma mesa de café e, na maior parte do
tempo, levaram um papo sobre negócios, família, projetos profissionais e muitos outros
assuntos.

O vestido longo que Lorac estava usando tinha um cavado decote em “V” na
parte da frente que se repetia na parte de trás deixando um palmo das costas da moça à
amostra. Ela o havia colocado sem sutiã. Aquilo era com facilidade discernível aos
olhos atentos e libidinosos de Yared.
Ela estava usando uma corrente fina de prata. E algum tipo de joia dependurada
estava aninhada por dentro da roupa. Seguramente, repousava com delicadeza entre seus
bustos.
Os olhos cautelosos e cobiçosos de Yared, vez por outra, fitavam-nos se
esforçando para obter qualquer vislumbre que fosse da beleza desnuda daquela mulher
desconhecida.

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Lorac tinha planos para uma Feira Internacional de Arte que iria acontecer em
breve – num segmento de tempo de poucos meses – talvez três ou quatro. Ela pretendia
aumentar e atualizar suas atividades profissionais, como todo bom empreendedor.
Sentindo seu coração extasiado com admiração pelo empreendedorismo
apresentado pela artesã, Yared mantinha uma atitude solícita de apoio naquele colóquio
que era uma mescla de negócios com um caso amoroso em gestação. Ofereceu-lhe
alguma ajuda, caso ela o quisesse como sócio.
“Você sabe?” – começou ele.
“Tenho algumas economias guardadas para qualquer emergência. Também
para o caso de surgir uma grande oportunidade. E eis que estou diante de uma, e
pretendo mudar meus planos pessoais iniciando um projeto com você.”
“Humm... é mesmo? Como o quê, por exemplo?” – perguntou curiosamente a
artesã.
“Se você não se importar muito eu poderia investir algum valor no evento da
Feira Internacional de Arte. Talvez pudéssemos começar uma parceria de negócios.” –
ofereceu generosamente o coach de idiomas, e apurou seus ouvidos com uma atenção
respeitosa.
Lorac o olhou pensativamente e se pronunciou aquiescendo:
“Bem, nesse caso, acho essa uma excelente ideia. Além disso, você pode
conseguir um grande lucro com seu investimento.”
Com lisonjas apropriadas, ela pareceu fascinada pelo que ele dissera, por algum
motivo que ele não podia imaginar. Yared percebeu perfeitamente que ambos estavam
abrindo as portas para uma aproximação cada vez maior.
“Fechado! Alegra-me saber que você tem interesse. Pode significar a abertura
para grandes oportunidades e bênçãos!” – assentiu ele com um aceno de cabeça e
sorriso largo.
“Tem alguma outra proposta a fazer em prol da minha felicidade financeira,
Yared?” – inquiriu Lorac de forma jocosa.
“Não. Por agora, isso é tudo. Quem sabe no futuro?” – comentou ele
igualmente irônico.

O fetiche da calcinha

Depois de passar algum tempo visitando as elevadas estantes abarrotadas de


livros no andar superior, o curso designer e a artista desceram as onduladas e estilosas
escadas daquela formidável livraria.
Como agradecimento pela gentileza de ter aceito seu convite, Yared tinha
prometido comprar um livro para a pequena filha de Lorac.
No térreo, o reservado professor observava a artesã com atenção. Ele não
conseguia tirar os olhos de cima dela.
Ela andava lenta e elegantemente em meio às estantes a fim de escolher a melhor
opção para sua menina. Movia-se com a graça surpreendente de uma bailarina.

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O empresário linguista, já cheio de desejo, ficou olhando para aquela mulher
com cabelo acobreado. Seus olhos viajaram de cima a baixo no seu corpo. Ela quase
dançando, enquanto caminhava devagar por entre os espaços das estantes de livros, era
uma atração imperdível para os seus olhos.
Mesmo usando um vestido longo e solto, o volume arredondado dos seios e
quadris eram visíveis por baixo daquela peça singular de roupa. Yared estava bem
atento para não perder um segundo sequer daquele desfile cheio de charme e
sensualidade proporcionado pela sua marchand.

O Dalai-lama conquistador tinha algumas particularidades quando o assunto era


flerte de uma nova conquista. Entre essas: ele tentava por todos os meios, tanto quanto
possível e, assim que a ocasião o deixasse, tocar com discrição a pretendente pela
cintura. O roço servia para constatar se ela estava realmente usando uma calcinha.
Como se já não bastasse, ele queria medir o tamanho e a forma da peça íntima
feminina de baixo. Quando possível esperava ser ligeiro e hábil o bastante para bater
aquela meta. Era-lhe uma espécie de desafio.

Depois de alguma pesquisa cuidadosa, Lorac escolheu um livro de inglês para


sua criança. Era uma obra muito interessante e educativa. Nas diversas páginas do livro,
divididas por temas, se tinha imagens fartamente coloridas e um botão logo abaixo. Ao
se acionar esses botões, o livro emitia o som da pronúncia em língua inglesa
correspondente à figura.
O professor elogiou a escolha e lhe disse que seria muito útil para a iniciação da
criança no estudo do novo idioma.
Lorac ficou muito grata. E Yared estava deveras otimista com aquela
aproximação amigável.

Havia-se passado algumas horas desde o início daquele primeiro cordial


encontro. O linguista ainda estava decidido a não perder a chance de tocar o corpo da
artista movido pela curiosidade e pelo desejo.
À medida que Lorac caminhava em direção ao caixa, Yared, já aceso, não
conseguindo se conter, deslizou a sua destra rapidamente pelo lado direito do quadril da
mulher. Ele estava apenas aparentando guiá-la pelo caminho até o caixa.
Aqueles simples cinco ou dez segundos de contato físico foram suficientes para
Yared detectar que Lorac estava usando uma calcinha tamanho M.
As pessoas na região onde eles moravam costumavam zombar ao chamar essas
peças íntimas jocosamente de “calcinhas bem comportadas”.
Conforme o rastreamento do seu radar, Lorac poderia ser levada em conta como
uma dona de casa de boa índole. Esse era o tipo de mulher a ser aceita como uma futura
parceira romântica. Em sua mente, havia uma tremenda quantidade de evidências para
admitir tal profecia.

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A crença da calcinha bem comportada tinha a ver com suas aventuras de
adolescente nos anos 70. Naquela época, ele costumava conversar com meninos mais
velhos sobre as meninas e a vida sexual. Aprendera com esses camaradas de mais idade
que a moral de uma mulher poderia ser medida pelo tamanho da calcinha que ela vestia.
Por um bom tempo, tal ensinamento foi sendo autenticado ao longo dos
relacionamentos amorosos de Yared. Como resultado, ele estava em tudo convencido de
que Lorac era sem a menor dúvida uma mulher para se envolver caso isso pudesse se
tornar cabível.

“Temos um campo de probabilidade, que seriam as escolhas que eu tenho na vida, aquilo que
eu escolho fazer. Como isso vira realidade, vai depender do que “eu” defino de fato fazer. Entretanto,
são os referenciais de vida que vão definir o que você vai fazer. Referenciais são aquilo que está no seu
consciente, e também no seu inconsciente, mas, que delimitam o seu querer, suas escolhas. Eles são
essenciais para que tomemos as decisões.” – Fernando Freitas CS

A viúva negra

O tempo tinha passado rápida e desapercebidamente aos dois enamorados, e já


eram 8 horas da noite – duração limite de cinco horas combinada para aquela primeira
conferência. Antes de ir para casa, Lorac pediu para visitar o toilette. Voltou em dez
minutos, e levaram o derradeiro bate-papo naquele fim da reunião.
Yared aproveitou o ensejo para conferir se Lorac estaria disponível para um
encontro mais reservado. Em determinado momento, perguntou com muita curiosidade:
“Eu estava imaginando se você gostaria de ir ao cinema qualquer dia desse?”
“Sinto muito. Eu não posso fazer isso.
“Ah, é? Não gosta de filmes?” – perguntou o linguista com certa bisbilhotice.
Eu definitivamente não gostaria que meu companheiro fosse flagrado numa sala
de cinema com outra mulher.” – respondeu ela com seriedade.
Esse rebate pegou Yared de surpresa. Ele ainda guardava na mente o comentário
de Lorac sobre sua proposta de jantar fora.
“Seria uma ótima ideia. Preciso conhecer novas pessoas. Preciso de um pouco
de lazer. Da próxima vez, quem sabe?”
Como tal, ingenuamente esperara por uma resposta positiva de sua possível
futura companheira comercial. Ou seria parceira romântica?
No entanto, no fundo, ele estava plenamente ciente de que aquilo era apenas um
toque de sensualidade envolto numa falsa moralidade. Essa última observação da artista
não batia de forma alguma com a resposta sobre um possível jantar a dois.

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Já estavam ultrapassando o limite de tempo de cinco horas previstas quando
Lorac inesperadamente, atirou uma confissão desconcertante diante de Yared.
E num tom de confidência, num segredo só dela e do novo amigo, ela se abriu:
“Às vezes, sinto vontade de ficar viúva!”
Aquela revelação pareceu ser um contrassenso para um primeiro encontro com
um total desconhecido. Uma esposa lhe dizendo que tinha o desejo oculto de que seu
marido morresse era uma atitude muito arriscada e leviana!
No que dizia respeito a Yared, essa era uma observação de todo inusitada. Ele
mais uma vez teve a nítida impressão de que aquela mulher estaria num relacionamento
em enorme medida perturbado. À beira da falência. Prestes ao rompimento. Ela estaria
de todo insatisfeita com seu parceiro atual. Sua vida estava um marasmo e talvez
desejasse fazer uma nova experiência.

Depois de alguns momentos, Yared chamou um táxi como havia apalavrado.


Negociou o valor da corrida e recomendou a passageira aos cuidados do motorista – um
senhorzinho de aproximadamente sessenta e tantos anos e bem educado.
Yared abriu a porta traseira do carro para que Lorac entrasse. Quando ela se
acomodou com suas novas compras, ele se inclinou para lhe oferecer um beijo. A ruiva
decidida e imediatamente virou o rosto na direção oposta. Porém, ele conseguiu beijá-la
na bochecha esquerda, e esboçou um leve sorriso. Ela colocou uma expressão um tanto
séria. Despediram-se e foram para suas casas.

Sem volta

Mais tarde naquela noite, Yared contatou Lorac novamente através do


Messenger. Ela chegara em casa em segurança, e sua filha adorara o presente.
Dera a impressão a Yared de que aquela criança era o único elo de ligação entre
a ruiva e a realidade da vida. A derradeira razão de ela se sentir alguém de verdade.
Sentir que tinha alguma conexão que valesse a pena.
Eles agradeceram um ao outro pelo tempo que tinham passado juntos. Outros
dois assuntos vieram à tona: o toque na cintura que Yared havia passado na artista e um
segundo encontro por vir.

Lorac: Foi muito bom mesmo!


Lorac: Mas eu gostaria de confessar uma coisa.
Yared: Sim.
Lorac: Posso realmente falar?
Yared: Sim.
Lorac: Espero que você não fique triste.
Yared: Não.
Lorac: Mas eu fiquei um pouco envergonhada às vezes quando você...
Lorac: Você me tocou...

24
Lorac: Fiquei envergonhada.
Yared: Desculpe, eu não queria – foi uma coisa de amigos.
Yared: Eu não quis fazer isso.
Yared: Fiquei feliz com sua companhia.
Yared: Senti vontade de te abraçar.
Yared: Foi isso. Eu sinto muito.
Yared: Quando o assunto é entre um homem e uma mulher é sempre uma situação complicada.
Yared: Você sorriu, chorou, se emocionou, confessou assuntos íntimos, então senti uma grande empatia
por você.
Yared: Foi uma coisa de amigos, acredite.
Yared: Eu não tinha outra intenção.
Yared: Fiquei feliz com nossa amizade.
Yared: Eu me sinto muito mal. Na verdade, me sinto horrível.
Yared: Nunca pensei que te causaria algum constrangimento.
Yared: Pensei até agora que aquele tinha sido um bom encontro pra nós dois.
Yared: Mas, eu estava enganado.
Yared: Como tudo é complexo e às vezes sem sentido.
Yared: Deus do céu, Lorac! Eu não sei o que dizer.
Lorac: Yared, adorei conversar com você também. Estávamos muito em sintonia. Foi tudo muito
interessante. Eu não queria que você se sentisse mal.
Lorac: Mas eu fiquei envergonhada por vários motivos. Além de casada, tipo se algum conhecido
aparecesse, tenho certeza que não interpretaria como uma simples amizade.
Yared: Estou extremamente envergonhado.
Lorac: Há coisas que você não pode explicar pelo zap.
Lorac: Mas é bom conversar pessoalmente.
Lorac: Não fique assim.
Lorac: Você foi super legal comigo.
Lorac: Cuidadoso.
Lorac: Vamos nos encontrar pra falar sobre nossa parceria.
Lorac: Então vamos falar sobre tudo pessoalmente.
Yared: Não sei.
Yared: A parceria continua.
Lorac: Sério?
Yared: Mas, eu vou ter dificuldade em olhar pra você novamente.
Yared: Não sei.
Yared: Oh, meu Deus!
Lorac: Uau, Yared!
Lorac: Nada a ver... você ficar assim.
Yared: A vergonha foi a última coisa...
Yared: ... Eu queria causar a você.
Yared: Eu estava tão feliz com tudo.
Yared: Por você.
Lorac: Eu também estava feliz.
Yared: Por sua filha.
Lorac: E no clima pra mais conversa.
Yared: Pelas ideias.
Yared: Projetos possíveis.
Lorac: Já que estou na casa da minha sogra, não posso nem te enviar um áudio.
Lorac: Desculpe te deixar assim... Eu não queria te deixar triste. Nem envergonhado.
Yared: Tudo bem.
Yared: É melhor assim.
Yared: Você foi sincera.
Yared: O erro foi meu.
Lorac: É como eu te disse... às vezes eu falo com rodeios. Outras vezes sou muito direta... não sei usar o
meio termo. Isso é um defeito meu.
Yared: Eu deixei a sensação de ternura que eu estava sentindo no momento ir longe demais.
Yared: Desculpe!
Lorac: Posso ter interpretado mal sua afeição... mas é porque isso nunca aconteceu antes.
Lorac: Sou muito intensa em tudo que faço.
Lorac: E então...

25
Lorac: Isso é tudo o que é preciso.
Yared: Eu também.
Lorac: Eu posso ser incompreendida ou ser o contrário.
Yared: Não, tudo bem.
Yared: Eu te entendo.
Yared: E eu aceito.
Lorac: Eu realmente gostaria de poder falar com você para explicar melhor.
Lorac: E não te deixar assim.
Lorac: Do jeito que você está agora.
Lorac: Se interpretei mal sua afeição... me desculpe também.
Yared: Vou refletir profundamente sobre isso.

Aquela conversa mexeu muito com a cabeça de Yared. Lorac não poderia ser
mais aberta sobre sua intenção de se aproximar dele. E do jeito que ela falava não
parecia ter a ver com uma parceria comercial. Era explicitamente um caso de um
relacionamento romântico à vista.
Além disso, a confissão de Lorac ainda permanecia fixa em seu cérebro.
“Às vezes, tenho vontade de ficar viúva!”
Aquela revelação se somava à de um possível ensejo de jantarem juntos. E agora
havia a possibilidade de um novo encontro para explicação dos fatos que ficaram em
aberto. Todas essas mensagens eram claras para ele. Lorac estava lhe acenando a
possibilidade para um romance entre ambos.
Aquilo, de forma alguma, poderia ser um acidente ou uma mera coincidência.
Afinal, eles se encontraram apenas uma vez. Além disso, ela levava uma vida conjugal
com o outro cara há muito tempo. Eles tinham uma menina para criar. Como é que uma
mulher revelaria um assunto tão reservado a um homem desconhecido no seu primeiro
encontro com ele?
Por mais estranho que possa ter parecido ao julgamento racional de Yared, o seu
lado emocional decidira ignorar qualquer possível resultado doloroso. No entanto,
estava além de toda controvérsia o fato de que qualquer relacionamento com aquela
mulher estaria condenado a uma avalanche de problemas, dificuldades e agruras
próprias. Seria uma experiência arriscada considerada singularmente audaz e perigosa.

E, de modo repentino, contraditoriamente, naquela noite, antes de adormecer,


uma conclusão veio à sua mente: “...se o segundo encontro acontecer, não terá mais
volta.”
Ele estava convencido de que Lorac lhe havia dado um sinal verde. Foi por isso
que ele aceitou aquela mensagem com prazer e boa vontade. Aliás, já estava desejando
tanto a mulher de cabelo cor de âmbar que sentia um aperto no peito.
Passou-se um lapso de tempo não muito prolongado. Talvez mais ou menos dez
dias para que eles marcassem um outro compromisso. A segunda data foi combinada
por meio de dois chats que se mostraram mais íntimos e picantes.

26
Yared: E então que plano você tem em mente?
Yared: Rsrsrsrs.
Lorac: Não sei o que dizer.
Lorac: Sem pensamentos no momento.
Yared: Diga o que quiser.
Lorac: Mas você poderia pensar por mim... e me propor.
Yared: Você quer me ver?
Lorac: Acho que seria interessante... como foi antes.
Lorac: Temos coisas pra conversar.
Yared: Sim.
Yared: De fato.

Yared: Mas, tudo vai ficar bem, acalme-se.


Lorac: Mas eu disse a ele que planejava voltar amanhã... de manhã cedo.
Yared: Se não podemos conversar hoje, podemos conversar outro dia.
Yared: O mais importante é que você não fique estressada.
Lorac: Mas eu gostaria de conversar hoje para não ficar estressada. Rsrsrsrs.
Yared: Sim, eu também. Se você acha que pode, podemos jantar juntos.
Lorac: Se for à noite, como eu chegaria em casa?
Lorac: Você me traria?
Yared: Você pode pegar um Uber de onde estivermos.
Yared: Até o seu apartamento.
Yared: Sem problemas com o horário.
Lorac: Hum... Tudo bem.
Lorac: O final da tarde seria melhor?
Yared: No final da tarde, e teremos a noite também?
Lorac: Sim.
Yared: Um...
Yared: Com uma ruiva tanto tempo?! Rsrsrsrs.
Lorac: Ohhhh, você deve se controlar! Rsrsrsrs.
Yared: Isso é muito irresistível pra mim! Mas vou me esforçar.
Lorac: Pare com isso... Isso me deixa envergonhada.
Yared: Não precisa, estou brincando com você.
Lorac: Vejo você às 5:00hs na Livraria.
Yared: Se você for maquiada e ficar linda como uma daquelas bonecas que você faz, eu não sei.

“Meu cliente merece o melhor de mim.”

De qualquer maneira, chegara o dia marcado para o segundo encontro aguardado


com expectativa por Yared que estava um pouco irrequieto, mas animado. Como ele
pôde verificar por meio de um telefonema, a garota de panturrilhas salientes também
estava deixando transparecer os mesmos sentimentos.
Naquele dia, Lorac mandara alguns trabalhadores consertar sua casa de campo
na parte da tarde. Às 3:00hs, ela pegou um ônibus em direção ao local que eles tinham
combinado. Era o lugar da escolha deles. Era a mesma livraria estilosa.

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O ônibus estava lento e a atrasou por cerca de uma hora. No decorrer da viagem,
Lorac ligou para Yared duas ou três vezes para se desculpar pela demora. Ele pôde
perceber que a marchand estava impaciente e aflita. Então lhe prometeu que estaria
esperando o tempo necessário para vê-la mais uma vez.

Lorac: Eu vou me atrasar. Estou esperando o ônibus. Leva muito tempo.


Lorac: O celular está no silencioso.
Yared: Ok.
Yared: Esperando por você.
Yared: Beijo.
Lorac: Mas eu estarei lá, espero.
Yared: Você quer vir de Uber?
Lorac: Estou no ônibus. O motorista é uma lesma. Mas, já, já eu chego.
Yared: Ok! Tá tranquilo. Não há pressa.

Para ajudar matar o tempo, Yared pegou um livro de uma das fartas estantes e
começou a folhear a capa e a contracapa da obra de Diana Gabaldon – OUTLANDER
– A Viajante do Tempo:

“Ao conhecer Jamie, um jovem guerreiro das Terras Altas, sente-se cada vez mais dividida entre
a fidelidade ao marido e o desejo pelo escocês. Será ela capaz de resistir a uma paixão arrebatadora e
regressar ao presente?”

Poucos minutos depois, ele escutou:


“Oiii!” num sussurro tão suave que mal se fez ouvir a sua voz.
Quando levantou os olhos, Lorac estava bem na sua frente, encostada
casualmente na poltrona onde ele estava sentado.
Agora era uma garota estilo top model. Aquela mulher não parecia a mesma
artesã humildemente vestida do último encontro. Ani Lorac estava usando um vestido
preto. Justo. Estiloso. Curto e sensual. Ostentava um anel graúdo e brilhante no dedo do
meio da mão esquerda. Colocara uma maquiagem sexy. Tinha os lábios perfeitamente
pintados, e sorriu para ele de forma voluptuosa. Yared a observou atentamente. Seus
olhos vasculharam-na mais e mais da cabeça aos pés.
“Oi!” – respondeu ele. “Você está linda. Valeu a pena esperar.” – acrescentou.
“Obrigada. Meu cliente merece o melhor de mim.”
A forma de vestir, falar e agir de Lorac lembrou Yared das atividades das
garotas de programa. Isso era expresso na sua postura corporal, no gestual, na expressão
facial e na voz.
Em realidade, o corpo traduz a alma para o que é visível – como já afirmara
Christian Morgenstern – autor de versos em estilo nonsense.

28
Entretanto, o linguista já estava cativado pela beleza, excentricidade e atitudes
desprendidas, por que não dizer, imprudentes da bela artista.
Parecia que ela estava revisitando seus sonhos de mulher. Aqueles encontros a
estavam colocando mais próxima de seus desejos íntimos. E estava pronta para investir,
pronta para estar linda nos compromissos com o coach de idiomas era indispensável.
Gostar de se maquiar para encantar era algo do qual ela não devia nunca abrir mão.

O casal conversou por algum tempo na praça da alimentação da livraria, e pouco


depois, Lorac convidou Yared para atravessar a rua e caminhar em direção à área
boêmia da cidade. E assim fizeram.
Enquanto se dirigiam ao setor de bares, caminhando pela rua, Yared tentou
segurar na mão esquerda de Lorac.
“Não!” – recusou ela. “Imagina eu andando de mãos dadas por aqui com você?”

Ficou bem claro para o professor, sem dúvida nenhuma, que as mulheres são muito mais
cuidadosas, ardilosas e sutis quando se trata de toda a trama que envolve sedução, conquista e
relacionamentos com o sexo oposto.
Já os homens cometem erros grosseiros e reveladores nas suas aventuras extraconjugais, ou
mesmo nas suas relações afetivas.

Ao chegarem no píer, escolheram um bar temático – anos 70-80-90 – havia


pôsteres das celebridades da época colados em todas as paredes daquele espaço. A
música era os grandes hit parades daquelas décadas fantásticas – era de ouro do rock e
do cinema.
Homem e mulher conversaram e beberam na companhia um do outro durante
um bom tempo. Yared tomou três ou quatro cervejas. Lorac tomou várias caipiroscas –
uma bebida alcoólica doce feita de cachaça e limão. Ficou um tanto embebedada. Ria à
toa. Lançava olhares lascivos em direção ao linguista e tropeçou algumas vezes quando
foi ao toilette.
Deu a impressão de que a mulher estava com muita sede ao pote. Ao voltar do
banheiro, pediu mais uma dose. Soltou o drink goela abaixo com rapidez e sofreguidão.
No decorrer da conversa, o linguista foi tomado por aquela ideia fetiche de
conferir a calcinha da sua paquera. E assim o fez com um toque rápido e suave pela
cintura da artesã, e ainda descendo em alguma medida mais para baixo.
Não é de surpreender que Yared pudesse distinguir que dessa vez Lorac não
estava usando a tal chamada “calcinha bem-comportada”. Essa descoberta colocou seus
instintos em chamas.
De imediato, em sua mente, lhe calhou a ideia de convidá-la para um jantar
dançante. Seria a oportunidade perfeita para tê-la nos seus braços. Tocá-la. Senti-la.
Possivelmente, beijá-la. E quem sabe acaso fazer amor com ela?
Sua excitação já tinha se elevado muitíssimo com o quê percebera com o toque
no quadril da sedutora mulher de preto.

29
No entanto, uma ou duas horas depois, com um movimento rápido, Lorac sacou
seu celular da bolsa e discou para uma amiga. Segundo ela, uma membra da mesma
igreja que frequentava. Pelo bate-papo, deu a impressão de que elas haviam combinado
de se encontrar mais tarde naquela noite.
O coração de Yared desfaleceu à perspectiva de ter que deixar Lorac. Afinal,
eles poderiam ficar mais tempo juntos. De maneira especial, agora que tinham bebido e
seus ânimos estavam altos.
Ele teve o leve pressentimento de que aquilo era um teste – um jogo mental.
Lorac não queria parecer fácil demais. Queria elevar em alguma medida o seu valor
sexual de mercado.
Ela tinha pleno conhecimento de seus objetivos e intenções, e sabia que havia
naquele possível relacionamento uma margem boa de realização para encaixar suas
metas e vontades.
Há coisas que se guardam a sete chaves, mas, uma vez que se tenha ciência
disso, o próximo passo fica mais fácil.
A artista disse que não poderia ficar por mais tempo de forma alguma. Aquela
afirmação veio sem qualquer desculpa ou explicação. Mesmo assim, Yared lhe ofereceu
uma carona de táxi até o local onde ela deveria se encontrar com a amiga. Embarcaram
num táxi e partiram.

Cerca de quarenta e cinco minutos depois, chegaram numa das ladeiras da


cidade vizinha. Lorac saiu do carro. Yared notou que seu vestido apertadíssimo tinha
subido um palmo acima dos joelhos. Um belo par de coxas torneadas e grossas apareceu
para seus olhos atônitos.
“Ei! Lorac” – gritou colocando a cabeça para fora da janela.
“Puxa teu vestido pra baixo. Tua calcinha tá quase aparecendo. As pessoas vão
começar a te azarar?” – acrescentou.
A mulher se virou e olhou em sua direção com um largo sorriso no rosto:
“Sim, meu rei! Você ordena e eu obedeço.”
Essa foi a primeira vez que ela se dirigira ao empreendedor de idiomas por
aquele epíteto. Uma onda de contentamento e orgulho percorreu a mente e o coração de
Yared.
Ele com bochechas arqueadas, olhos arregalados, sobrancelhas levantadas e
marquinhas enrugadas ao redor dos olhos se sentiu especial e um conquistador.
Imediatamente depois, se despediram. Lorac desapareceu por trás de algum
casarão, numa das esquinas das ladeiras da cidade alta, e Yared foi direto para casa.

Por volta das 8:00 da manhã do dia seguinte, Lorac enviou uma mensagem de
texto via WhatsApp. Ela postou uma foto sua em anexo. Deu a impressão de que
apreensiva e esgotada.
Yared perguntou:

30
“Onde você está agora? Não foi pra casa?”
“Não! Ainda estou na casa da minha amiga. Não estou com vontade de voltar
pra casa. E afinal, sei que a briga vai ser grande!”
Yared lhe deu o seguinte conselho:
“Não! Vá pra casa! Você ainda tem um parceiro. Uma filha pequena. E uma
casa pra cuidar. Diga ao seu companheiro que se atrasou. Diga que não pôde voltar
pra casa tarde da noite. Fala que decidiu dormir na casa de uma amiga. Vai ficar tudo
bem.”
Assim fez Lorac. E mais tarde naquele mesmo dia, ela lhe enviou outra
mensagem. Tudo estava sossegado.

No que dizia respeito a Yared, ele não tinha a menor dúvida. Lorac estava
prestes a terminar com seu companheiro. Ficou evidente, por esta razão, que ela estaria
livre para começar um relacionamento amoroso com ele. Aquilo era apenas uma
questão de tempo. Muito pouco tempo por sinal.

31
3
Troca de amantes
“A separação leviana é vivenciada como um crime grave, pelo qual alguém tem de pagar.” –
Bert Hellinger
Lábios de mel...propósitos de absinto

M esmo sem intimidade, mas com muita intensidade Yared e Lorac se


encontraram por quatro ou cinco vezes mais. Almoçavam e jantavam juntos
de vez em quando. Iam para shopping centers. Frequentavam espaços
festivos e dançavam, sempre com seus corpos coladinhos – peito no peito e coxa na
coxa.
Lorac costumava conversar demoradamente sobre a sua vida. Negócios. Seus
relacionamentos frustrados do passado. E seus planos para o futuro.
Com efeito, ambos não sabiam nada um sobre o outro. Da mesma forma não
conheciam nenhum de seus familiares e seu círculo íntimo. Eles eram pessoas em tudo
estranhas entre si. Todas as informações que vinham obtendo sobre suas existências lhes
chegavam mediante as suas próprias narrativas pessoais.

Don Juan

O casal conversava em tempo real via aplicativo de troca de mensagens todos os


dias. Numa frequência de duas ou mais vezes diárias. De maneira geral, de manhã cedo,
e à noite, antes da hora de dormir.
Em certo chat, Yared mencionou a Lorac sobre sua artimanha para conquistar
mulheres mediante intenções e atos. Ele havia intitulado esse seu jeito de se achegar ao
sexo feminino de Técnica 3As.
Só o fato de o professor ter lhe revelado que ele empregava uma certa estratégia
para conquistas amorosas foi suficiente para a artista manifestar uma curiosidade sem
tamanho em saber. Ela insistiu continuamente até ele decidir lhe explicar.
“Bem, - disse Yared. Já que você quer conhecer minhas estratégias de
conquistar mulheres, eu vou te revelar.”
“Mas só se me prometer não espalhar por aí, porque é algo confidencial. Ok?”
– perguntou ele sorrindo.
“Sim, claro, meu rei maravilhoso! Posso lhe prometer com segurança que
nunca vou falar sobre isso com alguém. Será nosso segredo. Pode confiar em mim.” –
lhe assegurou Lorac.
Yared começou a detalhar sua técnica “a la Duan Juan” para os ouvidos atentos
da sua candidata ruiva no outro lado da linha.

32
“A letra “A” é a inicial de abertura. O número “3” representa as três fases da
conquista bem sucedida.” – iniciou o linguista.
“A primeira etapa, ou o primeiro “A” – o “1ª” – é para a “abertura dos
lábios”. Isso significa que o bom conquistador precisa inicialmente fazer com que a
mulher se sinta bem em sua companhia. Sinta-se à vontade. Sinta-se feliz. E sorria
bastante. Esse estado de espírito alegre e descontraído quebra as barreiras
psicológicas da complexa teia mental feminina reprimida pela sociedade patriarcal e
machista em que vivemos.” – continuou.
“Na época da estrita moralidade vitoriana até o riso da mulher era criticado
como falta de pudor. As mulheres daquele tempo desenvolviam um sintoma psicológico
que foi chamado de histeria. Era uma reação anormal à intensa repressão sexual que
lhes era imposta. Freud explica!” – sorriu o linguista.
“Quando o conquistador perceber que sua pretendente já desfruta da sua
companhia por causa do clima solto e divertido, sorrindo livremente com suas
histórias, papos e até piadas, ele sabe que chegou o momento de iniciar a segunda
etapa – o segundo “A”, o “2ª”.” – elaborou ainda mais.
“Essa é a fase em que a mulher irá dar ‘abertura do coração’. Pois, estarão
removidos os empecilhos e as limitações psicológicas que a impedem da proximidade
com o sexo masculino. Ela se encontra pronta e disposta para falar as coisas que
guarda na sua intimidade. Uma verdadeira confiança e amizade se estabelecem entre
ambos. É muito prazeroso compartilhar sentimentos e pensamentos além da
trivialidade do dia-a-dia.” – continuou Yared com sua explicação.
“Agora, depois de superadas as fases 1 e 2, a terceira, qual seja, o terceiro “A”
– o “3ª” – simboliza a ‘abertura das pernas’. Invariavelmente, se o homem conseguir
com habilidade, paciência e acolhimento conduzir a mulher pelas duas primeiras
etapas, terá como prêmio e recompensa a entrega sexual de sua namorada.” – detalhou
ele.
“Daí, existe técnica até para se conquistar uma mulher. Aliás, técnica pode ser
definida como uma melhor maneira de fazer alguma coisa.” – finalizou com um
sorriso.

“Seu pervertido!” – gritou Lorac do outro lado do telefone.


“Seu Don Juan barato!” – vociferou.
“Calma, minha querida!” – pediu Yared.
“Então, eu sou apenas uma experiência? Uma cobaia? Sua próxima presa?” –
disparou ela.
Com um sorriso discreto, ele lhe respondeu:
“Não. Não. Eu já me encontro emocionalmente envolvido com você e percebo
que esse sentimento tem sido recíproco. Algo espontâneo e natural, concorda?”
“Sim, verdade. Eu também estou gostando de você. Sinto-me à vontade pra
conversarmos. Opa! Em que fase estamos mesmo nessa sua tal Técnica 3As? ”

33
“Fase 2ª querida!” – respondeu o linguista com um sorriso alto do outro lado da
linha.
“Mas aí, quer dizer que só me resta o 3ª? ”
“Um...hum...” – respondeu Yared numa gargalhada.

Migalhas de prazer

Era quase Natal daquele ano. Yared tinha uma filha morando em outra cidade.
Ela estava vindo com suas netas para vê-lo nas festas natalinas. Pai e filha marcaram um
encontro em um shopping próximo. Eles se encontrariam. Conversariam. Fariam uma
refeição leve, juntos em família. E o avô compraria alguns presentes de Natal para as
meninas também.
Yared aproveitou a oportunidade para marcar um novo e decisivo bate-papo com
Lorac. Eles se encontrariam no mesmo shopping e sairiam para jantar.
Desse modo, após a celebração doméstica, o casal voltaria a se ver.

Lorac estava esperando por Yared numa das lojas de artigos femininos. Tinha
um lindo vestido preto nas mãos.
Como prometido antes, ele pagou por suas roupas novas. Ela também cuidou de
que suas unhas fossem cuidadosamente manicuradas. Além disso, recebera uma
massagem relaxante nos pés naquele final de tarde. Feito isso, foi ao banheiro trocar de
roupa.
Meia hora mais tarde, a ruiva apareceu para ele com um olhar sedutor. Aquele
vestido preto estava posicionado no meio das pernas. Era apertado. Sua parte superior
era ainda muito mais justa. Os seios de Lorac estavam espremidos na parte de dentro
insinuando seus pequenos mamilos. O perfil dos seus quadris se destacava.
Ela deu uma rápida voltinha para a apreciação do seu admirador. A artista tinha
uma bunda bem definida. Firme e empinada. Aquela visão acendeu os instintos sexuais
de Yared como eles jamais haviam sido despertos antes.

Havia sido quase dois anos inteiros sem ver uma mulher. A interrupção da sexualidade de Yared
se devia ao fato de que a doença de sua falecida esposa, tratamento e luto o tinham mantido totalmente
abstêmio. Por conseguinte, estava com uma acentuada vulnerabilidade nessa área – naquela situação,
migalhas de prazer significavam um banquete para sua libido.
Yared, de forma alguma, tinha sido dado a relações extraconjugais. Sequer tampouco tinha
mantido relacionamentos com amantes no decorrer do seu casamento.
Por exceção, tinha havido alguns raros casos de flerte. Pega-aqui-pega-ali. Amassos e beijos
rápidos com algumas alunas mais oferecidas. Todavia, para seu padrão de princípios e valores ele tinha
sido fiel até que a morte os separe. Literalmente. Como de fato acontecera.

34
Agora, mais do que nunca, lá estava uma mulher só para ele. Bonita. Jovem.
Ruiva. Estava olhando só para ele. Estava vestida só para ele. Estava pronta só para ele.
Estava sensualmente sorrindo só para ele.
Esse fato alvoroçou o sangue em suas veias com uma descara de adrenalina
misturada com dopamina. Quase podia ouvir o TUM-TUM do seu próprio coração
batendo aceleradamente.
Como ele havia imaginado antes – não haveria mais volta a partir dali.

Yared pediu um táxi e eles seguiram para um restaurante dançante e elegante ao


sul da cidade.
Por azar, o motorista – com barba por fazer e vestido em andrajos – era um
homem sem modos e um mau condutor. O veículo era velho e estrepitoso. Os assentos
cheiravam vagamente a tabaco e à gasolina. Resolveram trocar de táxi e pediram que o
cara parasse o carro assim que o tráfego de veículos o deixasse. Estavam bem no setor
boêmio do centro da cidade quando Yared deu-lhe o sinal definitivo de parada.
Ao descerem do carro, Lorac olhou em seu entorno e respirou fundo. A rua
estava empesteada com uma fumaça e um fedor pungente característico. E ela disse:
“A maconha tá solta no ar. Você pode sentir o cheiro disso?”

Yared tinha sido policial tempos atrás. Durante essa época, tinha sido treinado para reconhecer
narcóticos e pessoas viciadas em drogas. Fazia parte do seu trabalho naquela fase da sua vida. Sabia
muito bem, por experiência própria, que a fumaça e o odor vinham dos cigarros de maconha. E sabia
muito bem que os supostos inocentes usuários de drogas eram de fato sócios de traficantes.
Havia largado a carreia de policial a pedido da sua mulher. Sua noiva naquela época. A Sra.
Lovingdale tinha um espírito pacífico. Altruísta. Cordial. Abominava violência e conseguira convencer
seu noivo a fazer a migração de carreira.
Desse modo, Yared pediu afastamento do serviço público. E escolheu se dedicar exclusivamente
à educação como professor de idiomas.
É uma dádiva a capacidade singular do ser humano de escolher sua senda e descobrir um
significado em toda experiência empreendida.

O olhar de alarme que brilhou em seus olhos foi extremamente pronunciado.


Yared ficara demasiadamente incomodado que sua futura companheira também
estivesse bem familiarizada com o assunto das ervas.
Se bem que, o momento não era acertado para se discutir tal tipo de caso. Afinal
de contas, estavam indo para um happy hour. Em qualquer outra ocasião. Quem sabe?

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“Como amantes, meu rei!”

“O vínculo entre parceiros exige que o homem deseje a mulher como mulher e que a mulher
deseje o homem como homem. O vínculo não se estreita completamente quando os parceiros se desejam
por motivos diferentes: por passatempo ou adorno, como provedores, por ser um deles rico ou pobre,
católico ou protestante, judeu ou muçulmano, hindu ou budista; porque um quer conquistar, proteger,
melhorar ou salvar o outro; porque um quer o outro seja, sobretudo, pai ou mãe dos seus filhos.
Parceiros que se juntam com esses objetivos em vista não consolidam uma união capaz de resistir a
crises graves.” – Bert Hellinger

Já no restaurante foram servidos com o prato preferido de Yared – salmão com


salada. O garçom também trouxe cervejas para a mesa. Eles estavam desfrutando de um
magnífico jantar e momento na companhia um do outro.
Yared convidou Lorac para o salão de dança. Dançaram uma. Duas. Três
músicas juntinhos. À queima-roupa. Peito no peito. Coxas nas coxas.
Como a mulher pôde dançar sem a menor dificuldade e com grande prazer
acompanhando muito bem seus passos, ele ficou encantado por ter achado uma boa
dama. Yared era reputado nos arredores como pé-de-valsa: título usado para alguém que
domina a arte da dança.

Não obstante o prazer desfrutado a dois, como Yared percebera, uma


triangulação estava tomando forma. Foi por isso que ele começou uma conversa séria
com Lorac.
Perguntou-lhe:
“Por favor, me fala. Estamos aqui como sócios comerciais ou como um homem
e uma mulher?”
Lorac, fitando o linguista com um olhar mal-intencionado, contrapôs
imediatamente:
“Estamos aqui como amantes meu rei!”
Ela mostrou um sorriso largo ao dizer aquelas palavras. Seu rosto se iluminou
vitoriosamente.
“Falou pouco e disse tudo!” – meneou a cabeça triunfantemente o linguista.
Yared, no entanto, mais cauteloso e racional, lhe disse que não iria embarcar
num relacionamento a três. Respeitava o homem do outro lado. Não queria perturbar a
vida dela. Muito menos a sua própria. Por essa razão, se ela realmente estava prestes a
começar algo com ele, e por nenhum outro motivo, teria que resolver a situação daquele
casamento falido primeiro. Todo o resto seria consequência automática.

36
Parceiro descartado

Era uma manhã de domingo ensolarado e o ar anunciava um quente dia de verão


com calor causticante. Yared estava na casa da sua mãe para almoçar. Seu irmão e sua
namorada também haviam sido convidados para aquela confraternização familiar de
final de semana. Faltando ainda algum tempo para que o almoço fosse servido,
resolveram descer e seguir em direção às areias brancas das praias do seu bairro.
O litoral estava salpicado com guarda-sóis de tamanhos e cores sem conta. As
pessoas se refrescavam como podiam. Bebiam cervejas. Água de coco. Cachaças.
Mergulhavam na água azul celeste daquele mar paradisíaco. Iam para debaixo dos
chuveiros públicos. As crianças corriam alegremente de um lado para o outro com suas
pipas. Suas boias salva-vidas. Seus pets. O comércio estava tão aquecido quanto a
temperatura local. Os camelôs vendiam de tudo que se possa imaginar.
Em determinado momento, o Multilaser G2 de Yared tocou. Lorac estava do
outro lado da linha.
“Já decidi! Vou encarar essa experiência com você! Quero ficar com você. Não
tenho mais condições de manter esse casamento tóxico e doentio. Está me deixando
louca!”
A artista estava nervosa e chorando muito. Yared lhe pediu para se acalmar e ter
certeza da sua intenção, consideração e atitude. Ela falou que era definitivo.
Adicionou:
“Amanhã vou dizer a ele que estamos nos separando. É impossível continuar!
Não quero mais ficar nessa vida infernal!”

“Quando alguém se decide por uma coisa, geralmente precisa abrir mão de outra. A coisa pela
qual se decide é aquilo que é, que se realiza. A coisa de que se abre mão comporta-se, em relação ao que
é e que se realiza, como um não-ser.” - Bert Hellinger.

No dia seguinte, Lorac entrou em contato com Yared por telefone. À tarde, lhe
disse que era realmente o dia em que comunicaria o rompimento. Continuou lhe
enviando mensagens até que finalmente desabafou:
“Está feito! Está acabado! Estou livre pra ser sua, meu rei maravilhoso!”
Yared disse que estava tudo certo. Ela não deveria se dar ao trabalho de se
preocupar com mais nada. No final do dia, tudo ficaria bem.
Agora Lorac era uma mulher livre. Ele poderia vê-la como sua companheira.
Poderia começar um love affair com ela. E o mundo os envolveu pleno de novas
possibilidades.
Yared postou uma música no zap de Lorac em homenagem ao início daquele
romance entre as línguas e as artes.

You’ve Got a Friend

37
When you’re down and troubled
And you need some lovin’ care
And nothin’, nothin’ is goin’ right
Close your eyes and think of me
And soon I will be there
To brighten up even your darkest night
You just call out my name
And you know, wherever I am
I’ll come runnin’
To see you again
Winter, spring, summer or fall
All you need to do is call
And I’ll be there
You’ve got a friend
If the sky above you
Grows dark and full of clouds
And that old north wind begins to blow
Keep your head together
And call my name out loud
Soon you’ll hear me knockin’ at your door
You just call out my name
And you know, wherever I am
I’ll come runnin’, runnin’, yeah, yeah
To see you again
Winter, spring, summer or fall
All you have to do is call
And I’ll be there, yes, I will
Now, ain’t it good to know that you’ve got a friend
When people can be so cold?
They’ll hurt you, yes, and desert you
And take your soul if you let them
Oh, but don’t you let them
You just call out my name
And you know, wherever I am
I’ll come runnin’, runnin’, yeah, yeah
To see you again
Winter, spring, summer or fall
All you have to do is call
And I’ll be there, yes, I will
You’ve got a friend
You’ve got a friend
Ain’t it good to know you’ve got a friend
Ain’t it good to know, ain’t it good to know
Ain’t it good to know
You’ve got a friend
Oh, yeah, now, you’ve got a friend
Yeah baby, you’ve got a friend
Oh, yeah, you’ve got a friend
JAMES TAYLOR

“Você não é produto das circunstâncias, você é produto das suas decisões.” – Viktor Frankl

Tempestade num copo d’água

38
Na quarta-feira, dois dias depois que Lorac terminara com seu companheiro, o
novo par se encontrou num shopping da zona sul abastada da cidade. Ao pôr do sol,
fizeram uma refeição leve. Conversaram um pouco – olho no olho, como um casal
apaixonado. Passearam de mãos dadas contemplando as vitrines.
Yared beijou Ani Lorac pela primeira vez. Foi um beijo romântico e com muita
paixão. A ruiva sentiu o membro ereto roçando sobre sua coxa. Sorriu sorrateiramente e
o arranhou, deslizando as unhas sobre as costas do seu homem.
Dali a instantes, depois de trocarem algumas palavras a mais, partiram para um
hotel costeiro da cidade, que de improviso Yared tinha escolhido através do seu celular.

Chegando ao hotel, e antes de partir diretamente para a transa com a artista, o


linguista a levou para uma grande praça que ficava a alguns quarteirões da hospedaria.
Da mesma forma, essa praça ficava a poucos metros da praia. O local de encontro
público estava lotado de pessoas eufóricas se divertindo com a celebração de um feriado
local.
Lá, Yared foi com Lorac até onde estava havendo a apresentação de uma
ciranda – uma típica dança grupal nordestina. As pessoas dançam se dando as mãos
numa roda que vai e vem. Aproximando-se para dentro do centro do círculo. Afastando-
se para fora do centro do círculo. Oscilando como as ondas do mar. Enquanto ele estava
fora da roda de dança, junto com outras pessoas, batendo palmas ao som da música
rítmica, sua namorada estava dentro dançando alegremente.

Decorridos alguns instantes depois do show de ciranda, seguiram para um


restaurante próximo. Pediram o prato de peixe costumeiro de Yared – salmão
acompanhado de legumes e temperado com manteiga.
O jantar corria perfeitamente bem, quando Lorac ficou extremamente aborrecida
por ter achado uma pequena espinha de peixe perdida na comida. A ruiva ficou muito
nervosa e começou a esbravejar.
A derradeira coisa de que Yared precisava naquele momento era uma confusão
em pleno jantar romântico, e tentou acalmá-la:
“Querida, por favor. Não deixe essa pequena espinha estragar nossa grande
noite que temos pela frente.”
Ela reagiu num azedume:
“Isso é um absurdo! É insuportável. Estamos pagando uma conta cara. Isso
nunca deveria acontecer. Vamos ligar para o gerente e registrar uma reclamação.”
O homem se distingue por meio de seu copo, seu bolso e sua raiva. Por este
motivo, podemos conhecer o caráter das pessoas mediante seu comportamento quando
come, o modo como usa seu dinheiro e observando seu temperamento.
Sem sucesso, o linguista com muito tato fizera esforços tentando desviar a
conversa a fim de evitar qualquer incidente indesejável pouco antes da primeira noite de
amor do par. Afinal, a vida é curta demais para ser desperdiçada com raiva ou angústias.

39
Lorac pediu sem rodeios a Yared que chamasse o gerente à sua mesa. Ele para
tanto o fez para impedir que as coisas se agravassem.
Quando chegou, o gerente tentou soar o mais amigável possível ao explicar o que havia
acontecido. No entanto, Lorac interrompeu sua explicação jogando um monte de
palavras duras contra aquele estabelecimento.
“Sentimos muito, senhora!” Por favor, aceite as nossas desculpas. Vou pedir
outro prato igual para a senhora de graça.” – colocou o funcionário da empresa.
Yared se pronunciou:
“Pelo amor de Deus, Lorac! Pare com isso! Você tá fazendo uma tempestade
num copo d´água! Olha aqui! Relaxe! É claro que o restaurante cometeu uma falha.
Mas o gerente já se desculpou educadamente. Como se já não bastasse, ele nos
ofereceu outro prato de graça ou nosso dinheiro de volta. Isso é o suficiente. Não é?”
A mulher respirou fundo. Deu um suspirou abafado de exasperação. Recuperou
a postura. E disse:
“Ok! Ok! Vamos receber o nosso dinheiro de volta e sair daqui agora mesmo.
Que assim seja! Ainda me sinto muito afrontada. Poderia ter tido um problema de
saúde. Vamos embora!”

A massagem tântrica

Numa de seus inúmeros bate-papos por meio do aplicativo de mensagens, Yared contara a Lorac
que era um massagista tântrico. A marchand ficara muito excitada em saber sobre essa sua aptidão.
Ela lhe fez muitas perguntas sobre o assunto. E o linguista recheou sua explicação com detalhes
lhe contando os tabus. Prazeres. E deleite das clientes. A partir da qual ele percebeu o grande interesse da
sua namorada pelo tema.
“Bem, esse tipo de massagem é mais terapêutico do que qualquer outra coisa.” – começou o
linguista em sua explanação.
“Para a mulher, se chama ‘massagem yoni’ – ou massagem na área genital. Pode-se usar óleos
relaxantes e aromáticos a gosto e escolha da cliente.” – prosseguiu o massagista.
“Essa prática não significa fazer sexo. Não é um coito. Existe técnica e seriedade. Com vistas a
quê? Com o objetivo é fazer com que a mulher relaxe. Descarregue as tensões nervosas acumuladas.
Acima de tudo, se ela tiver vivenciado períodos de anorexia de intimidade prolongada.” – acrescentou
Yared.
“Meu rei!” – exclamou Lorac.
“Você tem tantas habilidades excelentes. Essa me surpreendeu que é uma beleza! Não sabia
nem que existia esse tipo de massagem, muito menos que você soubesse aplicar.”
“Sim, sei. Fiz curso para isso. Já atendi várias clientes. Ficaram satisfeitas, viu?” – disse ele
com um sorriso maroto.
“E elas...? Elas...?” – a cabelo ruivo acobreado já bem agitada iniciou a pergunta que Yared
completou:
“Gozaram? É essa sua pergunta, né?” – indagou ele com uma risada.
A artista deu uma gargalhada surpreendentemente profunda e imoral do outro lado da linha.
“Sim. Algumas sim. Outras não.”
“Algumas com gritos de prazer!” – acrescentou ele rindo.
“Seu tarado safado!” – exclamou a artista. Quase gritando.
“Minha querida Lorac, não seja tão preconceituosa. Esse tratamento nada tem a ver com tara
ou safadeza.” – tentou acalmá-la o massagista.
“Este é um método de cura interior e exterior indiano milenar. Seu objetivo é a liberação de
tensões congestionadas. O massoterapeuta apenas serve de instrumento para o alívio da paciente.” –
explicou mais detalhadamente.
“Sei não, viu?! Tenho muita coisa ainda pra aprender na vida.” – se lamentou ela.
“Vivendo e aprendendo minha querida.” – finalizou Yared sorrindo.

40
Depois de tudo apaziguado no restaurante, o par seguiu para seu quarto no hotel.
Lorac pediu licença e foi até ao toilette. Yared aproveitou sua ausência
momentânea. Tirou a calça comprida e a camisa. Atirou-se na cama, se esticando
relaxadamente de costas sobre aquele leito de casal king size duplo.
Cerca de 30 minutos mais tarde, depois de uma chuveirada quentíssima,
daquelas que deixam os espelhos embaçados por causa do vapor da água extremamente
abrasadora, Lorac voltou devagarzinho para o dormitório da suíte.
Estava vestida num sumaríssimo maiô na estampa plantas do mar com um lindo
detalhe semi transpassado no busto e em tecido de malha resistente e de toque macio.
Trazia na mão direita um pequeno frasquinho de vidro marrom escuro. Os olhos do
coach de idiomas estavam a ponto de saltar para fora das órbitas.
Yared se sentou ereto na cama com um impulso repentino. Ele já havia admirado
os dotes físicos daquela dona arruivada usando roupa. Agora sua forma delineada,
saudável e exuberante se tornara algo que nenhum homem poderia se decepcionar ao
contemplar ao vivo e a cores.
Lorac se aproximou sem pressa da cama. Entregou de maneira delicada o
frasquinho que estava parcialmente oculto na sua mão direita. Deitou na posição de
bruços ao lado do seu massagista. Cruzou os tornozelos no ar, com um brilho malicioso
nos olhos e esboçando um sorriso mal-intencionado, se declarou:
“Estou pronta pra minha primeira massagem yoni, meu rei!”
“Vou lhe dar a melhor massagem que você já teve na vida, sua ruiva gostosa e
tarada!” – respondeu Yared àquele estímulo provocador esboçando um sorriso
libidinoso.
Yared, com o pequeno vidro na mão, tirou a tampa e sentiu o recipiente exalar
um irresistível perfume afrodisíaco à base de essência de ervas. Impresso em letras
maiúsculas destacadamente no rótulo, se lia: ÓLEO PERFUMADO – IDEAL PARA
MASSAGEM RELAXANTE.
Daí em diante, não restou nada mais a fazer. Agora tinha que exercer sua função
de massoterapeuta tântrico com a sua cliente de cabelo vermelho acobreado que estava
deitada sensualmente ao seu lado. A sua disposição.
O massagista deixou cair um fino fio daquele líquido oleoso e aromatizado sobre
as pernas da sua namorada.
Começou a massageá-las suavemente. Deslizou suas mãos pelas rijas
panturrilhas sentindo a musculatura malhada. Concentrou a pressão sobre as solas dos
pés, macias e cor-de-rosa. Deu uma firme compressão no estilo shiatsu. Depois
pressionou ainda mais fortemente. Quando seus dedos subiram até a altura da bunda,
Lorac deixou escapar um grito de prazer bem baixinho, porém audível.
Mais óleo foi derramado sobre as costas da ruiva. Yared deslizava com
suavidade. Depois com mais pressão. Em seguida, com mais força. Lorac soltou um
gemido alto.
Ele soltou o fecho da parte de cima do maiô, deixando os seios completamente
livres e expostos. As auréolas eram rosadas e de círculos perfeitos em torno de bicos
pequenos e eriçados.
Agora, a cliente já estava deitada de costas, com as pernas ligeiramente
entreabertas. O massagista derramou mais do líquido do prazer sobre os seios da artista.
Tomou-os em suas mãos. Acariciou os mamilos que já estavam duros pela excitação

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provocada pelo frescor e perfume do óleo combinados com o contato físico da pegada
do massagista. A mulher soltou um gritinho enquanto se contorcia com aquelas carícias
extasiantes.
Yared escorregou suas mãos pela barriga e pela pélvis da cliente. Ela estava
trêmula e ofegante. Seu corpo se contorcia com o toque macio. Com o toque lento. Com
o toque forte. Com o toque acelerado. Seus olhos se reviravam. Aquele toque abrasava
sua pele e preenchia suas veias de fogo.
Yared baixou seu traje de banho por inteiro, e deixou de fora a púbis da sua
mulher. Quando os primeiros pingos daquele óleo paradisíaco caíram sobre sua região
genital – devidamente depilada para a ocasião – a artista deu um grito alto de tesão.
Rapidamente, o massoterapeuta aproveitou a oportunidade e começou a esfregar
seu clítoris todo lubrificado e perfumado com a mistura do óleo e do mel vaginal. Lorac,
numa sequência de gritos, gozou loucamente.
Aquele foi o primeiro contato físico íntimo do casal.
Ani Lorac teve um orgasmo intenso e ruidoso com aquela massagem yoni que
seu namorado a havia proporcionado com esmero.

Em frações de segundos desavisadamente chegara a alvorada do dia! Os


primeiros raios dourados de luz do sol se intrometiam pela fresta da janela invadindo a
privacidade do quarto dos amantes.
Por fim, Yared pôde ter a resposta definitiva e prazerosa para aquela
interrogação que viera a sua mente no palco de dança do primeiro encontro:
“Ela é ruiva lá em baixo?”
Os raios ruborizados do sol nascente ao incidir sobre a penugem ruiva de Ani
Lorac deram um toque áureo àqueles fios de cobre íntimos da mulher de Yared. Seus
cabelos cacheados e avermelhados cintilavam à luz quente do astro rei.
Foi uma visão magnífica. Uma imagem artística – digna de um belo quadro.
“Estou admirando a beleza do raio do sol sobre sua pélvis cor de cobre. Muito
bonita essa visão!” – disse ele embevecido a sua namorada.
Ela moveu o rosto em sua direção e passou a olhar para ele com olhos
penetrantes. Segundos passados, lhe disse com lascívia na voz:
“Aproveita, meu rei! Desfruta! Sou toda tua agora!”
Yared de fato se sentiu um rei ao lado da sua rainha.

Poucas horas depois, após a lauta refeição do café-da-manhã servido – regrado a


iogurte, sucos naturais, croissants, docinhos, granola, frutas cortadinhas, bacon e ovos
mexidos – os namorados se despediram com um abraço apertado e um demorado beijo.
Ambos foram para suas casas. Para suas rotinas habituais. A vida real os aguardava.
Todavia, suas realidades haviam mudado com aquele encontro. Homem e mulher
estavam agora vinculados. E para sempre.

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“Pela consumação do amor cria-se, entre o homem e a mulher, um vínculo real. Este, por seus
efeitos, é ainda mais forte do que o vínculo real dos filhos aos pais. É absolutamente o mais forte dos
vínculos.” – Bert Hellinger

Ensaio fotográfico sensual

Yared costumava dormir no apartamento da namorada apenas nos fins de


semana – da sexta-feira para o sábado, do sábado para o domingo, e finalmente, do
domingo para a segunda-feira, quando retornava para sua casa. Isso invariavelmente
acontecia quando a filha de Lorac ficava com o ex-companheiro para cumprir a
convivência com ele e a família paterna. Por meio desse arranjo, se encontravam num
intervalo de quinze dias. No entanto, mantinham longas conversas no Messenger e no
telefone. Aqueles foram dias inolvidáveis, em grande parte porque estavam se
conhecendo melhor, e em particular porque, sem dúvida nenhuma, ambos tinham suas
carências e vulnerabilidades afetivas – cada um a seu próprio modo.
Certa vez, o par se demorou quatro horas a fio numa única ligação. Lorac
aproveitou para lhe mandar um ensaio repleto de admiráveis nudes a fim de compensar
seu homem pela ausência de sexo presencial.
Foram ângulos perfeitos. Iluminação acertada. Pareciam fotografias de uma
profissional. Yared pôde perceber que estava com uma mulher libidinosa e belamente
talhada pela natureza.
Nas fotos dos seios, Lorac estava usando aquele cordão delgado de prata que ele
vira no seu pescoço no primeiro encontro e mais nada. O click se assemelhou àquele
bonito retrato vintage de Rose pintado pelo personagem Jack no filme Titanic. Uma
cena cinematográfica que se fixara indelevelmente na mente do linguista pela beleza
poética da pintura em carvão que o personagem produzira da sua amada, igualmente
ruiva – no filme representada pela belíssima atriz Kate Winslet.
As fotos de costa revelaram uma região glútea perfeitamente torneada e com um
leve bronze destacado pela marquinha de um reduzido biquini.
Noutra sequência, para sua extrema excitação e deslumbramento, o instrutor de
idiomas viu que havia uma bolha translúcida reluzente pairando sobre a vulva da artista.
Era uma gota do mel que brotara das suas entranhas. Yared se convencera que Lorac da
mesma forma estava reciprocamente excitada ao fazer aquele ensaio para ele.
Parecia que ele tinha descoberto uma parceira perfeita. Tanto no presencial como
no virtual. Aquela mulher despertava sua libido até a estratosfera.
Era jovem. Bonita. Atraente. Proativa. Ele percebeu que ela era uma excelente
profissional e tinha planos promissores para o futuro. E peculiarmente, ela era ruiva!
Esse era um atributo físico que ele desejava nas mulheres desde que era adolescente.
Esse era um fetiche real e intenso daquele homem.
E lá estava ela. Lorac era sua namorada. Yared estava repleno de energia.
Entusiasmo. Encorajamento. Pronto para encarar a vida novamente. E agora
reabastecido sexualmente de forma integral.

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4
Encenando o script
“Sempre haverá, na sociedade e no mundo em geral, gente mais agressiva do que nós somos,
que encontra um jeito de conseguir o que quer, por bem ou por mal.” – Robert Greene

“Era apenas uma ideia.”

D epois de mais ou menos um mês da primeira noite intensa de amor caliente, o


casal estava tomando o desjejum em seu hotel preferido como de costume,
quando Lorac começou uma conversa sobre as despesas de Yared com seus
encontros. Hotéis. Refeições. E vários demais custos que ele tinha quando o casal se
encontrava.
“Yared, você está gastando muito dinheiro com a gente.” – comentou Lorac.
Ele ergueu a cabeça, franziu a teste e olhou para a namora de soslaio enquanto
comia uma torrada de pão integral com suco de laranja.
“Eu amo tudo isso, mas estava pensando que poderíamos ficar na minha casa.”
- expôs delicadamente.
Agora, Yared olhou fixamente para a ruiva com uma expressão de que estava
estupefato com aquela declaração inesperada.
“Lá poderíamos desfrutar de mais privacidade e estadias mais longas. E
querido, pode ser mais barato para o seu bolso. O que você acha disso?”
Não se deixando levar pelos argumentos da namorada, ele respondeu:
“Minha boneca, parece tentador. Mas estou muito feliz com a maneira como
estamos levando nossas vidas.”
Lorac estreitou os olhos, examinando-o com certa irritação, como aquelas
palavras tivessem colocado uma cunha de separação inesperada entre seus planos e os
planos de Yared.
“Parece que estamos numa lua de mel permanente. Além do mais, não pretendo
iniciar uma união estável nesse momento.” – o linguista rejeitou a sugestão com um
pouco mais de veemência.
A moça sarará com um olhar penetrante era a caricatura da decepção
personificada.

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“É melhor mantermos as coisas desse jeito como estão. Você não concorda?” –
perguntou ele suavemente ao notar a frustração indisfarçável estampada no semblante
da sua mulher.
Medindo as palavras, e sem qualquer bate-boca a mais, ela retorquiu:
“OK. Sem problemas! Era apenas uma ideia. Na verdade, eu amo tudo isso.
Estou encantada com nosso relacionamento, meu rei.”
Deu a impressão de que Lorac não queria ser pegajosa. Não queria encrencas
com Yared. E tudo indicava que os dois queriam viver experiências relaxantes, sem
cobranças e apegos de um casamento.

Natal e Réveillon

A época do maior feriado religioso da cristandade acabara de chegar. Os novos


amantes planejavam ficar juntos na primeira noite de Papai Noel do seu love affair.
Desse modo, agendaram um encontro na véspera de Natal.
Yared fez a ceia na casa da sua mãe e Lorac foi para a casa da família do ex-
companheiro para jantar com eles e deixar sua filha aos cuidados da família paterna. De
tal modo, teriam muito mais tempo juntos e sozinhos.
Pouco depois do jantar, Lorac ligou para ele. Disse que estava indo para o
endereço da sua família.
Quando ela chegou, ele recebeu outra mensagem de texto:
- Cheguei. Tô aqui em baixo. Pode vir.
Yared se despediu dos familiares, beijou a testa da sua mãe, pediu-lhe a bênção e
desceu. Passou pela portaria desejando Feliz Natal para os funcionários de plantão,
passou pela grade dupla de segurança e, sem perder tempo, entrou imediatamente no
carro. Dentro do veículo mergulhou seus lábios nos de Lorac apaixonadamente. E pediu
ao motorista para seguir rumo ao hotel que havia sido reservado para aquela noite
especial.
Ficaram juntos da noite do dia 24 até a noite do dia 25 de dezembro. Fizeram o
checkout no dia seguinte, logo após o café-da-manhã. Depois daqueles momentos
maravilhosos a dois, ambos precisaram voltar para suas próprias casas a fim de assumir
suas responsabilidades e deveres.

Na virada do dia trinta e um de dezembro para o dia primeiro de janeiro, o casal


apaixonado teve outro rendez-vous para o Réveillon. Dessa vez, Lorac foi jantar com a
família de Yared. Conheceu a mãe e demais membros da família pela primeira vez.
Após o jantar compartilhado na confraternização familiar, linguista e artista
foram para as ruas a fim de se reunirem com aquelas pessoas explodindo de alegria e
empolgação. Vestidas com as cores tradicionais para celebrar a chegada do Ano Novo e
começar o ano com pé direito.
O branco representa a paz e é usado com a esperança de se ter um novo ano
harmônico e pacífico.
Dourado é para quem gosta de passar a virada com bastante glamour. A cor
dourada se assemelha um pouco ao amarelo e representa a prosperidade.

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Prata também é usado por quem quer se destacar em meio à multidão do ano
novo. O prateado simboliza inovação e distinção, trazendo, assim, estas energias para o
ciclo que se inicia.
Laranja é para quem busca força e energia para o próximo ano, o laranja é a
escolha certa. A cor forte e marcante carrega o simbolismo enérgico e vibrante.
Amarelo é uma das colorações mais aceites, depois do branco. O amarelo atrai
prosperidade e riqueza. É a opção de quem quer ter mais dinheiro no próximo ano.
Verde é para pessoas que estejam atrás de novas fontes de esperança, podendo
usar esta cor como atrativo. Além disso, ele também é a escolha de quem busca um ano
com mais saúde.
Azul é a cor da serenidade e da harmonia. Passar o Réveillon com tons azulados,
dessa forma, atrai um novo ano sereno e harmônico.
À meia-noite em ponto, houve uma maravilhosa exibição de fogos-de-artifício –
um esplêndido cenário pirotécnico no decorrer de mais de trinta minutos. As pessoas
abraçaram-se, beijaram-se e gritaram para desejar um ano bom e saudável.
Lorac e Yared abraçaram-se com força e partilharam as suas bocas e línguas
naquela tão profunda comoção e agitamento mesmo no meio da rua.
Dormiram no seu hotel costumeiro, localizado numa zona costeira da cidade, a
poucos passos da multidão, em celebração ao primeiro dia do novo ano que estava a
amanhecer.

Economia, privacidade e prazer

Mais uma vez, Lorac teve a ideia de propor que eles se encontrassem em sua
casa em vez de reservar quartos de hotel. Numa conversa do app de mensagens, ela
enviou um texto com uma foto dela de biquini na piscina do condomínio:
- Eu quero você aqui comigo nessa piscina maravilhosa, meu rei!
Recorreu aos mesmos argumentos. Economia de dinheiro. Privacidade. Ficar
mais tempo juntos para o prazer mútuo do casal. Para ela era um argumento muito
sedutor, mas para Yared nem um pouco razoável.
Novamente, o empresário linguista se manteve irredutível e recusou sua oferta.
- Temos as belas praias para explorar. E falando sério, nem gosto de
banho de piscina.
Ela não discutiu e aceitou sua decisão.

Água mole em pedra dura...

“As pessoas são sutis e evasivas, disfarçando suas intenções, fingindo estar a seu lado. Você
precisa de clareza.” – Robert Greene

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Janeiro do Ano Novo chegara. Yared começou a frequentar a igreja de Lorac.
Essas reuniões aconteciam sempre às sextas-feiras à noite. Esse era o dia em que ela
auxiliava com seus serviços.
Numa determinada semana, depois do culto, a artista convidou Yared para
visitar seu apartamento. Dessa vez, sem forças para maior resistência, ele não opusera
objeções em conhecer a moradia da namorada. A sarará ficou radiante de alegria.
Foram a um grande supermercado vizinho à instituição religiosa. O casal fez
uma grande feira. Incluíram vinho. Frutos do mar – camarões e peixes. Um novo jogo
de roupas de cama e toalhas. Velas especiais – aromatizadas e incensos. Flores. Tudo
foi comprado como preparativo para uma extraordinária noite de amor. E assim foi.
Lorac preparou camarões grelhados a alho e óleo. Para abrir a garrafa de vinho
tinto, Yared usou o saca-rolha, que estava sem uso há muito tempo numa gaveta do
armário da cozinha da artista sedutora. Acendeu as velas perfumadas – a luz indireta
deixou o ambiente mais aconchegante. As flores deram um toque romântico na decor. A
trilha sonora foi regida a base de música celta medieval. E eles tiveram o jantar mais
sensual de todos os tempos.
Aquela foi a primeira vez que Yared entrou no apartamento da garota.
Era um espaço pequeno e aprazível, meros 35 metros quadrados. Uma pequena
sala-copa-cozinha americana conjugada, um banheiro e dois quartos. Tinha móveis
minimalistas – uma mesa improvisada com tampo de mármore e pernas de madeira
colonial, um sofá de dois lugares bem surrado, uma estante e rack reaproveitados de um
escritório falido, uma geladeira bem desgastada, um fogão simples e uma máquina de
lavar roupas fora de linha.
O espaço também tinha algumas peças de arte penduradas nas paredes da sala.
Aquarelas pintadas pela própria dona do apartamento, pratos de barro decorados com
pinturas variadas e bonecas de pano sem conta – criações da artista.

Fizeram amor a noite toda, vararam a madrugada e dormiram até bem tarde na
manhã seguinte. Yared sentiu-se como se estivesse no paraíso. Por fim, a felicidade o
atingira depois de dois anos de amargura e falta de uma companhia feminina.
Em sua cabeça, os pensamentos eram de que Lorac estava certa desde o início.
Sua casa era o lugar perfeito para desfrutar de economia, privacidade e prazer.

Um pouco mais tarde, à mesa do café da manhã, Lorac decidiu colocar a questão
financeira em pauta. Ela sabia que não podia esperar o empreendedor de idiomas tomar
a dianteira. A questão financeira era de fundamental importância. E tentou mais uma
vez quebrar o gelo e falar desse assunto com sutileza. Estaria estabelecendo suas
necessidades e expectativas.
“Sabe, o valor que você pode economizar com a gente aqui na minha casa é
muito mais do que eu pago à hipoteca do apartamento e às taxas de condomínio. Se
você pudesse me emprestar esses pagamentos pra esse mês, seria uma grande ajuda,
querido.”
Yared lançou um olhar perscrutador, mas perguntou compreensivamente:
“Quanto você precisa?”

47
“Serão apenas seiscentos reais! Com isso eu posso pagar as duas contas – a
hipoteca e as taxas de condomínio, meu amor!”
“OK! No entanto, para que não receba esse dinheiro de graça, você poderia
fazer duas peças de arte pra mim? Eu gostaria de ter um unicórnio chinês. Seu nome é
Ki-Lin. E também gostaria que você fabricasse um cavalinho de brinquedo pra meu
neto. Tá certo?”
Ela disse, sorrindo:
“Certo! Isso é fácil! Sem problemas!”
Como tal, Yared pagou as duas contas de Lorac em janeiro daquele ano. O
homem apaixonado ficou enlevado por poder ajudar sua companheira.

Noutra oportunidade, numa conversa com sua namorada, Yared ficou sabendo que ela tinha sido
empregada por quatro anos numa empresa de artesanato.
Depois de um acidente de trabalho, quando precisou fazer cirurgia na perna esquerda e se
afastara do serviço por cerca de 45 dias, a artista foi demitida e ingressara com uma ação na justiça
trabalhista.
Ganhou a causa. O valor que lhe deveria ser indenizado foi dividido em 12 vezes. No mês de
dezembro do ano do primeiro encontro com Yared, Lorac havia recebido sua derradeira parcela do
acordo. A partir de então, ficaria sem renda fixa.

Parte 2

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Você sob meu script
Capítulos 5-7

Θ CAPÍTULO 5 – Campanha difamatória


o Repescagem
o Lua de sangue
o Mentira tem pernas curtas
o É uma espécie de vício
Θ CAPÍTULO 6 – Hoovering
o Reconciliação de casal
o Estranhas revelações
o Fingindo o clímax
o Provocando ciúmes
Θ CAPÍTULO 7 – Violência gratuita
o O anel perdido
o O trauma de Beth

5
49
Campanha difamatória
“Quando, num relacionamento, um parceiro dá mais e recebe menos que o outro, o
relacionamento fracassa. Só devo dar ao outro na medida em que ele possa u queira retribuir. Se
ultrapasso essa medida, ele tem que ir embora. Não devo dar-lhe mais do que ele queira ou possa
retribuir. Com isso se estabelece de antemão, um limite para o dar.” – Bert Hellinger
Repescagem

Y ared morava a uma longa distância de Lorac. Sua casa ficava cerca de 30
quilômetros do apartamento da namorada. Era uma longa viagem que levava
aproximadamente entre duas e duas horas e meia de carro.
Por força dos pesados gastos com a saúde da sua esposa, naquela época, ele não
tinha ainda seu carro próprio.
Tinha se desfeito do Celta branco antigo para complementar as despesas médicas
elevadas com medicamentos e acessórios, tais como assento especial, colchão de ar para
descanso da coluna vertebral, meias Kendall para alívio das pernas, colar cervical, etc.
Desta maneira, tinha que pegar o metrô na última estação da linha, que ficava
distante da sua casa em cerca de 300 metros, para viajar aproximadamente 17,2
quilômetros naquele subway brasileiro.
A seguir, completava de ônibus seu trajeto até ao apartamento da sua mulher.
Este segundo percurso tomava em média mais 10 quilômetros. Em acréscimo, ele ainda
tinha uma caminhada de uns 500 metros até finalmente entrar na área do condomínio da
ruiva.
Aquela peregrinação era um tanto penosa e austera. O metrô e o ônibus
costumavam estar superlotados. Havia sempre um exército de vendedores ambulantes
dentro desses coletivos.
Eles usavam técnicas de vendas bem agressivas e com uma algazarra infernal.
Circulavam de cima para baixo do transporte sem parar. Tentavam se equilibrar com o
veículo em movimento num loop frenético e barulhento. Eram gritos. Vozearias. E
insistências inquietantes.
Aqueles coletivos eram verdadeiros mercados públicos ambulantes. Vendiam de
tudo, desde bombons, água mineral, refrigerantes, sanduíches, sucos de frutas, até
planos de saúde, peças de reposição e acessórios para celulares. Yared se sentia assaz
constrangido naqueles trajetos.
Tinha de viajar em pé, do terminal de passageiros inicial até o seu último ponto
de parada. Mas mesmo assim, fazia todo aquele sacrifício e suportava o aborrecimento
com alegria em seu coração. Não era nenhum incômodo insuperável, aliás. A
recompensa do reencontro com sua linda namorada em seguida valia muito a pena.

“Mas um dia sentiu no coração


O feitiço atrativo do amor
A mulata da terra do condor
Dominava uma fera perigosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor...”
Mulher Nova, Bonita e Carinhosa, Faz o Homem Gemer Sem Sentir Dor – Zé Remalho

50
Lua de sangue

A noite de 31 de janeiro de 2018 estava sendo muito aguardada. As pessoas


estavam esperando acontecer um belo, incrível e raro fenômeno da Natureza. Além da
aproximação entre a Terra e o nosso satélite natural – Superlua – a noite seria marcada
ainda pela segunda lua cheia do mês – Lua Azul – e por um eclipse – Lua de Sangue.
Com antecedência, Lorac tinha convidado Yared para ir ao seu apartamento a
fim de irem para a praia. Ela não queria perder aquela atração celestial. Seu namorado
iria vê-la. Juntamente com sua filha iriam até à via costeira apreciar o show. Lá
desfrutariam de uma visão privilegiada daquela exibição da Natureza.

Às primeiras sombras de crepúsculo – horário de rush mais intenso – o ônibus


em que Yared viajava, terrivelmente lotado, se deslocava com muita lerdeza – passo de
tartaruga, lesma sobre rodas.
O itinerário se tornara cansativo, enfadonho e irritante. Seus braços doíam
porque ele tinha de segurar nos ferros com bastante força para não cair por cima dos
demais passageiros nas freadas bruscas. Se é que dava para cair naquela lata de sardinha
motorizada entupida de gente.
Equilibrava-se como podia em meio a dezenas de passageiros. As pessoas
suavam em bicas e suas roupas ficavam coladas ao corpo com o suor abrasador. O mal
cheiro da transpiração excessiva se espalhava pelo veículo penetrando fortemente nas
narinas dos viajantes, causando-lhe náuseas.
Todo mundo ficava nervoso naquelas horas. Irritado. E ansioso para chegar em
casa o quanto antes depois de um dia de trabalho extenuante.
Repentinamente, o Motorola de Yared ganiu alto. Uma vez. Duas vezes. Três
vezes. Com alguma dificuldade, devido à superlotação do coletivo, ele enfiou a mão
com força no bolso direito de trás da calça para pegar o aparelho. O identificador de
chamadas acendeu e piscou um número conhecido. Lorac estava no outro lado da linha.
“Você não vem? Meu rei costumava ser mais pontual!”
Yared tivera uma jornada de trabalho exaustivo naquele dia. Estava muito
esgotado no seu ônibus apinhado de gente.
- Mais pontual, uma ova! – pensou ele.
Em período algum de tempo a tinha visto agir daquele modo, e ali mesmo,
naquela mesma hora reagiu:
“Você não consegue entender que estou pendurado por um braço! Pelo amor de
Deus Lorac, estou sendo esmagado pelos dois lados. Estou tentando chegar até você
com um sacrifício enorme. E você tá menosprezando meus esforços ao invés de
reconhecê-los! Por que?”
Mas ela não quis sequer ouvir. Não falando mais nada, desligou na cara do
namorado.

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Por fim, Yared conseguiu vencer a maratona e adentrou a área comum do
condomínio do apartamento da sua mulher. Ao entrar, seus olhos se depararam com a
ruiva sentada numa das cadeiras de madeira antiga, estilo colonial da mesa com tampo
de mármore que ficava de frente para a porta de entrada. Lorac irrequieta estava
balançando a perna.
Sua namorada lhe lançou um olhar de intensa antipatia e desdém. Falou-lhe com
uma rispidez de incomodar. Entregou-lhe todas as coisas que tinha preparado para o
piquenique daquela noite. Levantou-se e virou a cara como se ele tivesse cheiro ruim.
Em seguida, pegou na mão da filha e caminhou para o elevador, deixando-o um pouco
para trás.
Yared se sentiu desapontado. E uma tristeza indefinida invadiu seu coração.
Todavia, a expectativa de um bom momento a dois era suficiente para ele esquecer
aquela falta de empatia de sua companheira.

Cerca de trinta minutos depois chegaram à praia que estava repleta por uma
multidão incontável de curiosos. Amantes. Cientistas. Quanto às idades, se podia ver –
idosos, jovens, adolescentes e crianças. Famílias inteiras estavam acampando
temporiamente na beira do mar para apreciar o espetáculo anunciado.
Yared se deu conta de que Lorac havia levado poucas coisas para comer e beber.
Eles sem a menor dúvida após uns instantes precisariam de mais desses itens. Foi por
isso que ele foi a um supermercado próximo e comprou um monte de artigos básicos
para aquela ocasião. Refrigerantes. Bolos. Chocolates. E água mineral.
Yared sentiu outra frustração com Lorac. Dessa vez, quando tentou pegar uma
frutinha entre as quais ela trouxera:
“Ei! Essas frutas são minhas! Coma de sua comida!”
“Ah, então é assim, hein?” – exclamou Yared indignado.
“Você tem alguma desordem de múltipla personalidade? Não tem juízo?” –
perguntou ele surpreso e irritado.
Não se dando ao trabalho de responder, Lorac passou uma daquelas frutinhas
para sua filha e mudou de assunto.
O linguista notara que não era uma partilha justa das coisas que o casal havia
reunido para o lazer de todos naquela noite especial.
Por um lado, um detalhe que lhe chamou a atenção foi o quê Lorac havia dito.
Por outro lado, ela tampouco havia se importado com a forma que havia falado. Havia
arrogância. Desprezo. Forte egoísmo e indelicadeza nas suas palavras. Ele se sentiu
subitamente oco por dentro.

A natureza realmente ofereceu uma cena extraordinária. A imagem confluente


dos três fenômenos cósmicos projetada na bela tela de um límpido céu estrelado fora
digna de um Oscar de efeitos especiais.
Terminado o show natural, o casal foi para casa logo em seguida.
De forma similar, Lorac ofereceu a Yared uma confluência de três sessões de
intercurso sexual inesquecíveis.
O empreendedor de idiomas havia contemplado um show no céu. Agora ele
mesmo era o protagonista de um espetáculo na terra. Na cama de Lorac.

52
Dava a impressão de que o céu e o inferno lhe eram oferecidos com certa
regularidade. Quando seu cérebro se sentia inundado de prazer e felicidade, uma onda
de desprazer e tristeza lhe era também ofertada.

Que uma relação abusiva possa causar extensas e terríveis formas de dependência não é uma
novidade ou um mistério. Porém, pensarmos que esse emaranhamento sistêmico se dá única e
exclusivamente através daquilo que foi bom na relação, pode ser um equívoco.
Numa relação abusiva a dependência ou, se preferirmos, o vício, se dá pela dor, e não pelo amor.
Fica mais fácil de entender porque uma pessoa permanece num pseudo-relacionamento desses se
olharmos desse jeito, embora os mecanismos por trás dessa dinâmica doentia possam não ser tão claros à
primeira vista.
Toda relação abusiva é uma dinâmica doentia intensa. Intenso, talvez, nem seja a melhor palavra
para se utilizar. Digamos extrema. Extrema porque, além de levar a terríveis extremos de dependência e
tolerância – essa é outra palavra chave. Isso alude também a um conceito pouco conhecido cunhado pelo
psicanalista Bruno Bettelheim, o de situação extrema.
Para Bettelheim, uma situação extrema é aquela capaz de abalar o psiquismo de tal forma que
impacta sua própria estrutura. E, veja bem, não é qualquer evento traumático que tem este potencial. Para
se ter uma ideia, o psicanalista cunha esse conceito através e para pensar a sua experiência nos campos de
concentração nazistas.
Esta intensidade que vai constituir tal relação como extrema se dá em dois polos: o polo bom,
geralmente sentido e interpretado como amor e presente nos momentos comumente descritos como love-
bombing; e o ruim, que surge nas erupções do parceiro abusivo.
Estas erupções, por si só, são em demasia traumáticas, uma vez que não costumam ter qualquer
previsibilidade, colocando a vítima num estado de constante tensão, já que nunca sabe quando ou o que
pode causar uma explosão dessas.
O mais comum, nos relatos de quem habitou este verdadeiro campo de guerra, é que essas
explosões comecem aos poucos e que aumentem com o passar do tempo.

Desse jeito, aquela contrariedade inesperada, à beira da praia de areia fina e


branca e com a Lua Azul cingida por uma miríade de estrelas cintilantes num céu como
testemunhas, simplesmente se desvanecera como uma bolha de sabão multicolorida
iridescente num dia ensolarado ao mero toque do vento.
Yared, pela primeira vez na vida, passara por uma experiência de montanha-
russa emocional naquele caso amoroso. Havia sido desvalorizado. Criticado. Esnobado.
A atitude egoísta da sua namorada havia lhe golpeado em cheio. Toda aquela
negatividade ficava na parte inferior do “brinquedo” – jogo mental – de Lorac. Muito
sexo e confetes na parte superior.

Mentira tem pernas curtas

Junho era a época do ano para celebrar o dia dos namorados na região onde
Yared morava. Como havia prometido, apresentou Lorac ao dono de uma loja que era
uma combinação de papelaria, serviços de impressão e de venda de sortidos artigos para
presentes.
Esse estabelecimento ficava situado no entorno da sua casa apenas a alguns
metros de distância. Ele pretendia ajudar a ruiva a vender suas peças de arte e faturar

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uma grana extra. E, é certo que ela conseguiu um grande pedido para o dia dos
namorados. Foi contratada para fazer lembranças em forma de pequenos corações para
os casais apaixonados celebrarem seu Valentine´s Day.

No dia combinado para a entrega, Yared não pôde acompanhar Lorac até à loja
do seu amigo. Ainda assim, a ajudou no decorrer de todo o processo de entrega. Passou-
lhe informações de como chegar, e até pagou a conta pré-paga do seu telefone.
Ele tinha de visitar sua filha caçula internada na maternidade. Dessa vez, uma
menininha se tornara o próximo descendente na sua árvore genealógica.
Era uma sexta-feira, logo após o cair da noite. Yared depois de se despedir da
sua namorada, disse que ligaria para ela mais tarde, quando chegasse em casa. Porém,
essa foi a resposta que ele recebeu da sarará:
“Não há necessidade! Vou chegar em casa muito cansada. Eu te ligo a qualquer
hora depois. Confie em mim!”
Por volta das 8:00 da manhã seguinte, Yared chamou Lorac através do seu
Motorola. Ela atendeu o telefone imediatamente. Mas quando a conversa estava apenas
começando, ele pôde ouvir o DIN-DONG da campainha berrando dentro do
apartamento.
Lorac avisou gaguejando:
“É...é minha vizinha. Eu tenho de atender e..e..la agora. M...m...mas te ligo
mais tarde, po...po...de ser?”
Ele respondeu:
“Tá certo! Sem problemas! Podemos conversar mais tarde.”

Chegara o domingo do Valentine´s Day. Yared contagiado por uma alegria


agitada se preparou para ir ao apartamento de Lorac a fim de comemorar o dia dos
namorados. Afinal, seria o primeiro ano juntos naquela data festiva dos corações
enamorados.
Ao abrir a porta, já que tinha suas próprias chaves, pôde ver espalhada por todo a
casa uma miscelânia de objetos que não estivera ali antes. Simplesmente aparecera do
nada.
Havia outro ventilador. Sacolas cheias de revistas e livros. Roupas e acessórios
femininos. Uma mesinha de madeira para canto de sala. Era um monte de objetos que
ele não tinha visto ainda.
Yared apenas imaginou o que poderia ter acontecido. Lorac não seria capaz de
pegar todas aquelas coisas e trazê-las de ônibus sozinha. Certamente teria tido a ajuda
de alguém. E havia uma única hipótese na cabeça do linguista. Seu ex-companheiro!
Yared respirou fundo. Tomou um banho frio e rápido. Jantou alguma coisa
sozinho e foi para o quarto. Lorac estava no banheiro numa chuveirada quente. Quando
entrou logo depois, ele a abordou de pronto:
“De onde vieram todas essas coisas, Lorac?”
Houve um silêncio momentâneo. Lorac virou-se para ele repentinamente.
Engoliu em seco. Com um olhar fixo, estudado, e carregado de uma emoção controlada,
falou:

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“Elas vieram da minha casa de campo. Você sabe que eu tenho outro imóvel
rústico, não sabe?”
Yared retorquiu energicamente:
“Sem essa ladainha, Lorac! Eu sei dessa tal casa! Minha pergunta é – como
você conseguiu trazer todas essas coisas sozinha?”
“Eu fiz isso de ônibus, é claro. Levei várias viagens para terminar!”
Ele mordeu os lábios, e sem acreditar numa só palavra, falou furiosamente:
“Ah, é mesmo? Quer dizer então que você agora tem superpoderes?! É a
própria Mulher Maravilha?!”
“Todas essas coisas que não me deixam mentir Lorac! Você sabe que eu sei que
você pediu a ajuda daquele cara. Que diabos pretende mentindo desse jeito?!”
Ela estava tirando uma calcinha de uma gaveta do guarda-roupa antiquado que
ocupava a parte posterior do quarto de canto a canto.
Arregalou os olhos, se virou, sem pressa, fitou o rosto do namorado
pensativamente, hesitou em busca da palavra certa, e assentiu envergonhada e surpresa
com a perspicácia dele:
“Sim, você tá certo. Pedi a ajuda dele pra buscar tudo isso. Eu precisei!”
“É mesmo? O problema não é que ele tenha te ajudado. Um grande problema
aqui é a mentira que você tentou me fazer engolir goela abaixo! Qualquer coisa, menos
isso. Isso não dá pra aturar!”
Já com lágrimas nos olhos, ela lhe disse com a voz um tanto embargada
buscando admitir honestamente seu equívoco:
“Eu não queria que você ficasse com raiva de mim. Eu não queria incomodar
você, querido!”
Yared interrompeu aquele lenga-lenga e acrescentou sem titubear:
“Pra começo de conversa, vamos pular essa frescura toda de justificativa
esfarrapada. E em segundo lugar, eu prefiro ficar fervendo de raiva e ter a verdade do
que ficar tranquilo e ouvir mentiras. Sempre fale a verdade. Entendeu?”

O Panda da Desilusão – “Se eu pudesse inventar um super-herói, seria o Panda da Desilusão.


Ele teria o superpoder de dizer as pessoas duras verdades sobre si mesmas. Verdades que elas precisam
ouvir, mas não querem aceitar. As maiores verdades da vida são as mais desagradáveis de se ouvir.” –
Mark Manson

Ela, com seu choro mal contido, acenou com a cabeça e respondeu que sim.
Prometeu que aquilo nunca mais iria acontecer outra vez. Desculpou-se dando um forte
abraço em Yared. Ele ficou mais calmo e tranquilo quando ela lhe disse assertivamente:
“É você que eu escolhi, não ele! Eu o deixei pra ficar com você, meu amor! Eu
só precisava do carro dele pra me fazer esse favor.”
“Tomara que você esteja certa, tomara mesmo.” – falou-lhe Yared
esperançosamente.
A mentira não tem pés: a verdade sim. A verdade pode dar a uma pessoa base
firme e estabilidade. Com a verdade, uma pessoa pode por-se de pé e enfrentar o
mundo inteiro!

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“Verdades desagradam. Inverdades agradam. O certo é inconvincente. O convicente é incerto.”
– Confúcio

Ele acabara de passar por sua segunda experiência de montanha-russa emocional


naquele romance. Havia falsidade na parte inferior. E muita exposição de sensualidade
na superior.
Aliás, tinha percebido um nítido caráter interesseiro naquela mulher mestiça de
cabelos crespos e vermelhos – tinha usado o cara para atender uma necessidade sua –
mesmo o tendo descartado para ficar com ele.
Que raio de relacionamento era aquele? Que tipo de personalidade tinha o
playboyzinho que servia àquela mulher incondicionalmente? Que poder especial ela
ainda exercia sobre aquele homem? O que o fazia viajar quilômetros no seu próprio
carro para buscar itens velhos que haviam sido deixados numa casa de campo distante
aparentemente sem recompensa alguma?

A ciência explica o funcionamento do cérebro na formação da adicção a qualquer substância


tóxica.
A dependência química é uma doença do cérebro. Ela acontece porque determinadas substâncias
acionam o sistema de recompensa do cérebro que vai, com o tempo, se interessando somente pela
sensação de prazer provocada pela droga.
O efeito e sensação de recompensa promovido pela liberação de dopamina no núcleo accumbens
desencadeia a neuroplasticidade neuronal e o aprendizado associativo, no qual, o uso da droga é associado
a sensação de prazer e recompensa, que faz com que o indivíduo o uso novamente para repetir aquela
sensação prazerosa.
A tolerância às drogas de abuso é a consequente diminuição dos efeitos de uma dose inicial com
a uso repetitivo e crônico da substância.
A dependência ocorre quando se observa os sinais físicos de abstinência, ou seja, o usuário é
considerado dependente quando, na ausência da droga, demonstra comportamentos alterados, por
exemplo, sudorese e taquicardia, que pode ser anulado pelo fornecimento da substância dependente.
A maior parte das pseudo-relações tóxicas e abusivas submete o cérebro à mesma dinâmica
viciante de qualquer outro entorpecente. As descargas de dopamina na parte superior da montanha-russa
emocional e a liberação dos hormônios da depressão na parte inferior sequestram o cérebro induzindo-o
ao mesmo mecanismo das drogas.

É uma espécie de vício

O relacionamento do casal vinha se deteriorando rapidamente e num tríplice e


notório jeito: desvalorização, culpa e crítica. Aquele desgaste vinha se tornando bem
comum a partir do primeiro incidente. Aquela mudança se tornara inconfundível.
Aberta. Manifesta. O linguista só faltava carregar água no cesto, mas mesmo assim, a
artista se esforçava por tornar a situação terrível para ele. No que tange a manter o
relacionamento amoroso com Ani Lorac, era vão o seu esforço, era fútil sua tentativa.

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“Não há piores inimigos do que aqueles que receberam a maior bondade e então se tornam
crueis. Como o vinagre mais azedo é feito do vinho mais puro e as carnes mais agradáveis se
transormam em humores amargos no estômago; assim o amor mais elevado concedido a amigos, sendo
mal dirigido ou corrompido, transforma-se em ódio mais hostil.” – Abraham Wright

Não obstante, Yared se sentia tão obcecado com os encantos e a conduta sexual
da dona que se lhe tinha tornado dificílimo se separar dela e seguir em frente sozinho.
Parecia que ela o havia amarrado em grilhões de modo que o ferro penetrava sua própria
alma. Toda sua reflexão, por mais racional que fosse, não podia abrir o portão de aço,
arrancar as algemas e o libertar do cativeiro afetivo, no qual se encontrava.
Ele não estava dispondo do equilíbrio necessário para fazer frente e se opor à
influência sedutora daquela mulher, e não havia espaço na mente dele para cogitar a
separação do casal.
Sim, de modo algum é fácil se livrar de um vício, como bem é conhecido na área
terapêutica. Indivíduos adictos são incapazes de largar seus maus hábitos sem uma
ajuda externa.
No fundo, e em última análise, ele sabia que aquele relacionamento
diferentemente do que ele pensara no início, estava fadado ao fracasso. Aquela mulher
havia mudado. Havia se tornado um apático poço cinzento de egocentrismo e
autopiedade. Ou então, ela estava realmente mostrando sua personalidade genuína.
Lorac não conseguia mais fingir ser aquela pessoa de então.
Nos dias iniciais do romance, ela se mostrara o pináculo da delicadeza,
amorosidade, afeição e solicitude. Todas eram qualidades femininas além dos sonhos
mais loucos de Yared. Agora, sob a superfície cintilante, fervilhava um caldeirão de
emoções escusas – ganância, inveja, luxúria, ódio.
Parecia que a pessoa por quem ele tinha se apaixonado já não era a mesma.
Aquela personagem, de forma alguma, existira, quem sabe? Aquela indivídua fora
apenas uma miragem com muita probabilidade.
De qualquer jeito, ela era o que era e não havia nada que ele pudesse fazer a
respeito.
Yared entendeu que Lorac poderia ter percebido que ele havia descoberto sua
verdadeira persona interior. Sua maneira de funcionar por trás da sua fachada externa.
Dava a impressão de que existiam duas personagens numa só – era um caso de dupla ou
de múltiplas personalidades?

“Se indagamos qual era a realidade da personalidade de Mary, devemos responder que a
imagem da boneca dançarina é tão real quanto a imagem da menininha patética. Com efeito, Mary tem
dupla personalidade, uma vez que apresenta duas faces diferentes ao mundo. Uma face é uma máscara,
como a face de uma boneca desprovida de sentimentos. A outra face expressa seus verdadeiros
sentimentos e é, portanto, uma genuína representação do self. A face da boneca reflete uma imagem do
ego, e a face da menininha patética reflete a autoimagem, a imagem do self. Uma face é assumida por
um esforço da vontade, enquanto a outra é uma manifestação espontânea do ser íntimo. Essa divisão da

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personalidade de Mary justificaria o diagnóstico de condição de fronteira. Embora, do ponto de vista de
diagnóstico, Mary fosse vista como personalidade de fronteira, na minha opinião o diagnóstico é menos
importante do que compreender Mary — quem ela é, quem «u rege ser e por que desenvolveu uma
divisão em sua personalidade. A imagem é realmente uma parte do self. É a parte do self que enfrenta o
mundo e assume sua forma através dos aspectos superficiais do corpo (postura, movimento, expressão
facial etc.). Como essa parte do corpo está submetida a controle consciente pela vontade ou ego, ela
pode ser modificada para ajustar-se a uma imagem particular. Podemos falar de um falso self
organizado contra o verdadeiro self, mas prefiro descrever a divisão em termos de uma imagem que
contradiz o self e considerar o distúrbio básico um conflito entre a imagem e o self corporal.” –
Alexander Lowen

Entretanto, agora, em vez de tentar disfarçar sua pessoa real, ela começara um
jogo sutil de agressão passiva, instilando culpa como uma arma secreta. Começou a
agredi-lo. Gostava de lhe contar episódios toscos no que dizia respeito a sua vida
passada. As ações sinistras que tinha praticado antes de conhecê-lo. E tentava por todos
os meios justificar sua conduta desabonadora o tempo todo.
Num número demasiado de vezes tinha sido a vítima nos relacionamentos
frustrados do passado. Todas as pessoas lhe eram censuráveis. Ela era a única sensata.
Todo mundo era vilão e ela a vítima naquele repertório inesgotável de histórias que ela
expunha a Yared.

“Quase todos nós repetimos padrões de comportamento em que somos vítimas porque, como
tais, sempre colhemos um lucrozinho adicional para explicar porque não triunfamos, simulamos ser os
bonzinhos que poderiam tê-lo feito em vida se alguém não tivesse metido os pés pelas mãos.” – Barbara
Ann Brennan

O comportamento impudente e desafiador de Lorac demonstrava que ela estava


confiante o suficiente de que Yared estivesse aprisionado em sua teia amorosa. Apesar
tanto do arsenal de falsidade, distorções, acusação e escárnio como as críticas – cada
palavra era cheia de veneno – que a artista o infligia – tudo sem motivo algum, exceto
ódio puro – o linguista parecia ser incapaz de seguir em frente sem ela.

Era uma certa manhã em meados de fevereiro daquele primeiro ano de uma vida
a dois. O casal tinha acabado de tomar o café da manhã. Lorac, retirara as almofadas do
assento do sofá duplo da sala e se deitara bem no centro do seu apartamento. Vestia um
curtíssimo short de algodão e uma camiseta de seda fina sem sutiã.
De certo, assuntos luxuriosos e nudismo, bem como brincadeiras indecentes e
especulações obscenas eram sempre abordados pela dona de cabelo ruivo acobreado que
tinha inclusive o hábito de andar por dentro de casa como viera ao mundo. Era
diplomada em safadeza, e como verdadeira doutora em luxúria não tinha seu pudor e
comedimento muito em conta. Costumava dizer com palavras irônicas acompanhadas
por um movimento da boca que provocava uma ruga na bochecha:

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“Eu gosto de ficar nua. Gosto de me sentir livre.”
Lorac, abertamente, começou a contar a Yared sobre seu envolvimento com o
vício das drogas. Na maioria das vezes, ela havia feito uso de cannabis. Experimentara
seu primeiro cigarro de maconha já na época da escola, quando adolescente ainda.
Havia fumado cigarros dessa droga na companhia do playboyzinho, na calçada da sua
casa de campo depois de ter largado o sexagenário. E até na fase adulta, com uma certa
amiga e aluna sua de arte chamada Anne. Até mesmo experimentara cocaína! Disse-lhe
que podia discernir entre as ervas de maconha boas e ruins.

“O ser humano é uma criatura muito imitativa. Ele absorve de seu ambiente os valores e
padrões de comportamento daqueles que estão à sua volta, e tende a se ajustar a estes modos.” – Irving
M. Bunim

Sua mulher era uma ex-usuária de drogas. Enquanto aquilo fora algo terrível de
escutar e digerir por parte de Yared, ela podia contar todos os pormenores sem nenhum
traço de constrangimento ou culpa. Falava de uma maneira natural. Sem embaraço. Seu
senso da presença de remorso ou apreensão era inexistente. Os sentimentos e as reações
do seu namorado não tinham qualquer significado para ela. Quem sabe fosse apenas o
lenitivo de contar a verdade a alguma pessoa?
Sua falta de sentimento não a incomoda. Passava perfeitamente bem sem. O
único pensamento em que Yared atinava era:
- Os mortos não têm dor e nada os incomoda. Ela simplesmente havia
se apagado. Parecia que Lorac sabia que estava “morta”.
Certa vez, ela partilhou circunstanciadamente com Yared que tinha comprado
um plano de serviço pós-vida completo que incluía: mortuária com visor e alças,
vestuário padrão (mortalha), jogo de paramentação para câmara ardente, velas, flores
para ornamentação do ataúde, carro fúnebre para remoção e cortejo funerário e jarros
candelabros com flores. Ela tinha feito essa aquisição quando conseguiu seu primeiro
emprego estável no auge dos seus vinte anos!

“Certa vez, num feriado de carnaval, eu tava com meu ex-parceiro num grupo de amigos numa
casa. Alugamos aquele lugar pra o fim de semana. Começamos uma rodada de maconha. Todo mundo
fumou daquele cigarro. Então, um cara colocou um pouco de pó branco em cima da mesa. Todos nós
fomos convidados a cheirar. Eu cheirei três carreiras. Mas fiquei bem. Depois disso, saí da casa sem
rumo. Peguei um frasco de lança-perfume de uma pessoa estranha que encontrei na rua se drogando.
Inalei forte. Quase desmaiei. Meu ex-companheiro me ajudou. Achei que ia morrer!”

Yared ficou completamente espantado com aquela revelação.


O que exatamente significava aquela mudança de comportamento, tão abrupta,
tão inesperada? Sua garota, não somente mostrou um lado sombrio, mas também havia

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sido usuária de drogas. E esse já era outro problema – aquela situação para ele era em
enorme medida grave e irreconciliável.
Não era uma questão de pequena dificuldade processar toda aquela história
sinistra do passado de Lorac, e como dali para frente eles poderiam continuar num
relacionamento equilibrado e sadio. Pairava no horizonte temporal daquele casal uma
separação inevitável por incompatibilidade de valores e princípios. O óleo não se
mistura com a água, já afirma um dito popular.
Com toda essa ruminação mental, Yared se sentiu fatigado, meio desfalecido. E
era o tipo de fadiga que não podia ser curada numa noite de sono. Carecia sentir ar puro
revigorante nos pulmões. Necessitava sorver oxigênio limpo mais profundamente.
Precisava pensar com clareza. Tinha a necessidade mais do que urgente de resgatar sua
capacidade de pensar de dentro do nevoeiro em que se encontrava. A proximidade da
namorada vinha lhe causando uma certa náusea. Uma sensação de constrição no peito.
Uma inexplicada e insidiosa confusão espiritual.
“Vou descer.” – comunicou Yared.
“Aonde você vai?” – perguntou apreensivamente sua mulher.
“Vou dar uma caminhada. Preciso de ar fresco.” – respondeu-lhe ele.
Pediu licença à garota e desceu em direção à área comum do condomínio. Não
usou o elevador. Precisava evitar se encontrar com pessoas por não estar se sentindo
bem e ter que dar explicações que ele mesmo não teria. Por outro lado, seria bem
melhor começar seu exercício aeróbico desde já. Descer cinco lances de degraus seria
sem a menor dúvida após uns instantes um bom começo antes da sua caminhada em
torno dos blocos de apartamento. Com aquilo em mente precisava recuperar o
pensamento racional e decidir sobre o que iria fazer.

Durante sua marchada, conseguindo uma respiração mais saudável, Yared


decidiu dar um tempo àquele relacionamento. No final das contas, havia se tornado
malsão e abusivo. Quase insuportável.
Uma hora depois, quando subiu até Lorac, disse-lhe deliberadamente:
“Eu te amo. Mas, a gente precisa de um tempo! Tô indo pra minha casa. Vou
passar umas duas semanas por lá. Devemos repensar nosso relacionamento. Tudo vai
ficar bem.”
Ela lhe lançou um olhar de reprovação e reagiu:
“Você está me deixando?”
Ele sacudiu a cabeça negativamente:
“Não! Temos estado muito grudados um no outro. Precisamos de algum tempo
pra respirar e refletir.”
Naquele mesmo dia, Yared foi para sua própria casa em que morava com sua
filha solteira.

Havia se passado alguns poucos dias sem que o casal se encontrasse fisicamente.
Todavia, continuavam se falando no telefone e no aplicativo de mensagens.
Num desses chats, Lorac se queixou de dores nas costas e disse a Yared que
estaria indo para o médico. Era uma consulta com um ortopedista. Estava sentindo
fortes dores na coluna vertebral.

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“Dores nas costas, em termos psicológicos, têm sempre a mesma origem e se curam de modo
muito simples: fazendo uma profunda reverência. A quem ela deveria ser feita?” – Bert Hellinger

Na tarde da consulta, Yared foi encontrar sua namorada e chegou na clínica


primeiro do que ela. Lorac chegou depois de alguns momentos. Aproximou-se dele.
Sentou-se ao seu lado e o abraçou.
“Você quer que eu te acompanhe na consulta?” – perguntou ele amorosamente.
“Sim, claro. Por favor, entre comigo.”
“Deixa eu ir primeiro até ao balcão fazer o pagamento.” – disse ele.
No consultório médico, após uma anamnese e alguns exercícios de postura, foi
diagnosticado que Lorac sofria de um certo desvio da coluna vertebral. Iria precisar de
fisioterapia para o alívio das dores e para a correção da espinha.
Foi-lhe prescrito um forte analgésico e relaxante muscular como lenitivo àquele
achaque. Yared recebeu a receita, agradeceu pelo atendimento, pegou na mão de Lorac
e saíram dali sem mais demora.
Caminhando lado a lado, o casal se dirigiu à farmácia mais próxima que ficava
cerca de duzentos metros na mesma calçada da clínica.
Yared percebeu melhor agora como sua namorada estava desleixadamente
vestida – uma calça comprida folgada de um tecido fino, quase transparente, super
colorida, tipo palhaço de circo e uma blusa de algodão verde limão de alcinhas, fina e
curta, que ela estava usando sem sutiã. Cabelo completamente desgrenhado, tipo juba de
leoa, faziam com que parecesse que tinha passado as últimas setenta e duas horas na
cama.
Quem sabe aquele não fosse o – modus vivendi – estilo padrão daquela mulher
de cabelo ruivo acobreado que, nesses poucos dias sem a presença física do seu
namorado na casa, resolvera assumir como sempre fora, sem ter que se esconder por trás
de qualquer tipo de máscara. Sem ter que fingir quem não fora.
Yared comprou o medicamento, e a acompanhou até à parada de ônibus que
ficava no centro da divisão da larga autoestrada que unia a regiões norte e sul da cidade.
Ao tentar beijá-la na despedida, a mulher virou o rosto e se recusou terminantemente a
participar. Desprovido de qualquer alternativa, Yared disse apenas, secamente:
“Até logo. Mantenha-me informado.”
Atravessou a rua e pegou um táxi de volta para casa.

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6
Hoovering
“Se o desejo sexual de um dos parceiros não é correspondido, ele ou ela se vê numa posição
frágil porque o outro tem o poder de rejeitar.” – Bert Hellinger

Reconciliação de casal

H avia se passado meramente quatro ou cinco dias desde que Yared estivera
longe de Lorac depois da consulta médica. Movido pela saudade que sentia da
sua namorada, ligou para ela desejando marcar um novo encontro no hotel em
que costumavam ficar.
“Oi, querida! Vamos nos encontrar? Não posso ficar longe de você por muito
tempo. Estou com saudades dos nossos momentos. E você?” – perguntou o professor
Don Juan com curiosidade.
Houve um breve silêncio. A artista fez uma pausa para ordenar os pensamentos e
lhe respondeu deliberadamente:
“Nossa história ainda não acabou. Ainda guardo você no meu coração! Tenho
igreja amanhã, e depois do culto poderemos nos encontrar. O que acha?”
Ao ouvir aquelas palavras de reconciliação e de esperança, Yared se sentiu
inclinado a propor um novo encontro inesquecível para o casal como sempre havia sido
antes.
Ao que parecia, ambos ansiavam por se rever.

Era fim de tarde da sexta-feira que antecedia à celebração do reinado de Momo.


As ruas, estreitadas pela armação de palanques de shows e quiosques de vendedores
ambulantes, já estavam engarrafadas com motos, carros e gente esfuziante de alegria –
muitas pessoas saindo da cidade para um feriadão mais pacato no interior, outras se
preparando para as horas de folia que teriam em breve com ao pôr do sol.
Era o carnaval com seus mascarados, seus blocos e ranchos, suas fantasias ricas
ou divertidas. As músicas das multiplicadas orquestras, os zé-pereiras, os zabumbas, os
blocos, os ranchos, afoxés com seus tamborins e atabaques.
Lorac precisava ficar na igreja até às 6 da noite para auxiliar com os serviços
eclesiásticos – era locutora dos ensinamentos do fundador daquela religião.
Naquele dia, Yared tinha uma nobre missão extra. Iria levar sua filha mais velha
até à rodoviária.
Sentia-se feliz e abençoado em poder sempre ajudar essa moça. Afinal, ela tinha
sido a principal cuidadora da senhora Lovingdale durante o período em que estivera em
tratamento daquela fatídica moléstia. Ela iria visitar a irmã mais nova e ajudá-la com os
cuidados da bebê recém-nascida.
No apinhado terminal de ônibus – lotado de passageiros ansiosos e barulhentos a
esperar seus transportes para saírem da cidade por força da agitação carnavalesca –
Yared se despediu da sua filha e a orientou sobre os três dias que tinha planejado ficar
ao lado da sua irmã.

62
Puxou-a mais para junto de si, e deu-lhe um abraço apertado por alguns
instantes. Em seguida, beijou o alto da sua cabeça, abençoou-a e se despediu. Entrou no
ônibus e prosseguiu em direção ao hotel escolhido para o compromisso agendado com
aquela branquela com traços genéticos de afrodescendentes.
Seu coração estava com uma pulsação mais rápida. Batia mais intensamente. Era
uma grande expectativa em torno da oportunidade de ver Ani Lorac mais uma vez. Seus
pensamentos, num estado de loop, rememoravam, sem parar, ininterruptamente, toda
aquela carga intensa de sensualidade e erotismo que o casal houvera intercambiado.

Logo ao chegar ao hotel, ele ansiosamente se dirigiu ao balcão da recepção, se


identificou para a recepcionista e fez os check-ins. Logo depois, pegou o elevador e
subiu para o quarto que havia reservado por telefone.
Dentre as opções de suítes disponíveis, Yared reservara o apartamento 403. Ele
amiúde escolhia um quarto com uma sequência numérica cujo valor total fosse sete.

Segundo consta na gematria hebraica, temos: 4+0+3=7. O número sete é tido como o símbolo da
Divindade. O número que expressa perfeição e plenitude. A ciência da gematria ensina que quando duas
coisas existentes possuem o mesmo valor numérico, elas estão associadas indissoluvelmente e partilham
das mesmas qualidades boas ou ruins.

E aquelas eram as qualidades que ele atribuía ao seu relacionamento com Lorac.
Havia encontrado a mulher “perfeita” e estava vivendo o “amor verdadeiro”. O amor
verdadeiro se assemelha a um grão de mostarda. A semente da mostarda é pequena, mas
produz uma árvore grande, e as aves aninham-se nos ramos.
Foi até o banheiro, e tomou uma chuveirada refrescante. Abriu sua pequena
mochila surrada de lona, sacou duas das poucas peças de roupas que havia socado lá
dentro apressadamente e começou a se vestir. Enquanto ainda se trocava, ouviu seu
telefone tocando em cima da mesinha de cabeceira. Era a ruiva. Queria saber se ele já
tinha chegado ao hotel:
“Meu rei, estou chegando daqui a pouco. Estou doida pra te ver de novo. Tô
com saudades do seu abraço, da sua pegada e dos seus beijos. Sem falar daquele
membro marrom maravilhoso que você encaixa na minha caverninha ruiva. O
contraste de cores me deixa louca! Adoro tudo isso. Sinto um tipo de choque elétrico
quando você entra em mim!”
Na sala de espera, para matar o tempo, Yared, por falta de opção, começou a
folhear algumas revistas de moda feminina que estavam espalhadas sobre uma pequena
mesa no canto da parede.
Relanceava os olhos mais ou menos a cada trinta segundos aos ponteiros do
relógio Garneck grande antigo de madeira – tipo cucu – pendurado na parede oposta ao
lounge. Estava na expectativa da chegada iminente da sua parceira.
Lorac ligou para ele mais três ou quatro vezes naquele ínterim. De modo similar,
também parecia apreensiva para revê-lo. Aquele pensamento, com muito mais razão, o
fez se sentir bem-aventurado pela oportunidade de ver sua namorada novamente.

63
A atenção de Yared foi atraída pelas luzes dos faróis de um carro que estacionou
defronte do hotel. Sem dúvida nenhuma, deveria ser sua mulher chegando para aquele
tão esperado momento.
O coach de idiomas se levantou precipitadamente, e conseguiu avistar a
passageira no banco de trás. Realmente, Lorac havia chegado.
Yared jogou a revista de volta sobre a mesinha. Passou com pressa pelo balcão
da recepcionista e seguiu para a área externa da hospedaria.
O professor Don Juan abriu a porta traseira do carro e lançou-se para dentro em
direção à passageira. O rosto de Lorac se iluminou ao vê-lo. Soltou o cinto de segurança
e apressou-se para alcançar o corpo do seu amante. Virou a cabeça ao encontro do roço
tão esperado. Yared a beijou apaixonadamente, comprimindo-a com força contra o
banco traseiro do veículo. Sua namorada retribuiu aquele beijo com ardor. Aquilo
pareceu uma dose de bebida energética injetada diretamente nas suas veias, estimulando
seu metabolismo com taurina – tipo Monster Energy erótico!
Em seguida, Yared pegou a única mala sobre rodas da ruiva, sacou sua carteira e
pagou sua viagem. Quando estava se distanciando do carro rumo à entrada do hotel, ela
pediu melosamente:
“Me abrace por favor, meu rei!”
Daí, Yared já tomado de uma atração desenfreada pela mulher, a envolveu em
seus braços e apertadamente a trouxe contra seu corpo. Permaneceram abraçados por
algum tempo, sem se mover. Pôde até sentir o coração dela batendo em seu peito, o
calor do seu corpo e a firmeza das suas coxas contra as suas. Lorac sentindo seu
membro se enrijecer ao contato físico, o apertou ainda mais para si e vasculhou sua boca
com uma língua quente e ávida por prazer.
Ela estava usando aquele vestido preto, curto, apertado e sensual novamente.
Parecia que o escolhia para circunstâncias românticas especiais. A noite prometia um
festival de amor e intimidade.
Desse modo, passaram pelo balcão para confirmar as informações do check-in e
subiram para o quarto que Yared tinha reservado para aquele encontro.

Estranhas revelações

Fizeram amor durante a noite toda. Fora uma noite de exaltado ímpeto, feérica
noite de prazer. Houve meramente umas poucas interrupções. Para comidas – frutas:
maçãs, peras e uvas. Para bebidas: água mineral e sucos de frutas naturais. Para banhos:
duchas quentes. Para conversas: picantes e íntimas.
No meio de um daqueles diálogos provocantes, Lorac começou a contar algo
deveras esquisito. Aquela narrativa inusitada deixou Yared atordoado. Confuso.
Atônito.
Ela lhe contou que certa vez, depois de uma briga com o ex-companheiro, fora
ajudada por algumas amigas. E que durante a tal conversa, havia chorado copiosamente
e manifestado um desejo camuflado de mudar sua opção sexual.
Assim se expressara, Lorac sem rodeios:
“Agora, entendo porque algumas mulheres mudam de preferência sexual e se
voltam para as meninas. Os homens são criaturas malignas. Nenhum homem vale o
amor de uma mulher!”

64
Aquela revelação o deixou atordoado por um instante. As coisas pareciam ser
mais complicadas do que ele havia concebido antes. Aquelas palavras de Lorac o
levaram a sua própria interpretação dos episódios. Seu profundo senso da presença de
promiscuidade era duplo.
Por um lado, sua namorada parecia nutrir uma espécie de ressentimento
generalizado contra o gênero masculino. Por outro lado, ela havia mostrado um sinal de
bissexualidade. Esse já era outro problema.
Ele estava fantasiando?
E esse relato lésbico não parou com essa primeira revelação.
Lorac lhe disse que começara a se sentir atraída por garotas morenas – perfil
feminino preferido de seu ex-parceiro – desde que ele tinha começado a rejeitá-la e
abandoná-la sozinha quando saia em busca de aventuras com outras mulheres.
Ainda contou que certa vez, na ocasião em que eles estavam passeando por um
ponto turístico da cidade alta, uma linda garota olhara direta e demoradamente nos olhos
dela, ao que ela tinha correspondido.
Esse foi um fato surpreendente e até então ignorado que chegou a mexer com a
cabeça de Yared. Todavia, ele não levara aquilo muito a sério.
Na maioria das vezes, notara que as mulheres tendem a elogiar profusamente a
beleza, a elegância e as qualidades das demais.
Também Lorac confessou que, de forma alguma, tivera uma experiência
homossexual em toda a sua vida.
“Eu nunca fiquei com uma mulher, nem mesmo beijei uma.” – contou-lhe ela
assertivamente.
Ela havia lhe falado aquilo de uma forma tão séria que ele tinha ficado
prontamente persuadido.
Yared estava um tanto encafifado pelo fato de ela ter mostrado uma espécie de
aversão aos homens.
Além do mais, sua namorada havia começado uma campanha de acusações,
culpas e críticas contra ele, independentemente do esforço que ele fizesse para agradá-
la. Logo ele, que a enchia de mimos e excessos de atenção. Um número sem tamanho de
alertas vermelhos havia sido visivelmente disparado bem na sua frente.

“Os aplausos do perverso geralmente denotam alguma maldade e sua crítica implica algo
bom.” – Thomas Watson

Após o contratempo sentido por aquela confissão que lhe fora atirada na cara
sem qualquer preparação, desprovida da menor cerimônia e sem drama, Yared, sem
mais delongas, pôs um fim àquele bate-papo sinistro.
Convidou a artesã para descer e jantar num restaurante próximo que servia seus
clientes em mesas ao ar livre.

65
À medida que comiam, a mulher compartilhou outro assunto surpreendente e
inusitado com o namorado que o deixou absolutamente intrigado. Contou-lhe que havia
sido convidada por uma amiga para ir a uma praia de nudismo num estado vizinho.
Como se já não bastasse, falou que tinha ficado doida com aquela ideia. Disse-lhe que
estava se preparando para ir muito em breve para o tal espaço de naturismo.

Yared tinha estado casado com a mesma mulher por mais de trinta e dois anos ininterruptos.
Ainda que não tenha sido uma união perfeita, ele mantivera um relacionamento estável e sossegado com
sua consorte. Seu casamento lhe havia dado três filhos, todos adultos agora.
O instrutor de idiomas era um homem não dado a grandes aventuras. Mantinha valores e
princípios em sua vida que sempre havia professado um padrão de bons costumes e normas da boa
convivência em sociedade.

Aquela ideia de sua mulher ficar completamente nua diante dos olhos de outras
pessoas era um troço difícil de engolir. Sua mente estava girando de tão confusa.
Aquele assunto tinha azedado completamente o clima do jantar que se tornou um
evento silencioso a partir de então. Yared sentiu um desalento agudo com aquela
revelação que ia de encontro aos seus valores quanto à moralidade e à sexualidade
sadias. Na sua opinião, Lorac pareceu devassa e exibicionista de todas as formas.
“E sabe de uma coisa? É melhor a gente dar essa conversa por acabada.” –
afirmou Yared de maneira decisiva.

“Nosso valores determinam o parâmetro segundo o qual avaliamos as outras pessoas e nós
mesmos.” – Mark Manson

Apesar de sua reação de desaprovação, a mulher esboçou um sorriso desdenhoso


no canto da boca. Sua postura insinuava que sentia certo contentamento com a angústia
perceptível de Yared.
O que mais deixara o homem irritado e frustrado não fora o fato de sua
namorada querer ir a uma praia de nudismo. Foi ela ter desdenhado da sua indignada
reação. Parecia que ela se gratificava com sua inquietude e desprazer.
Nenhuma conversa fluiu mais entre eles depois daquela declaração incomum.
Aquela refeição parecia se arrastar mais do que as demais, então Yared chamou o
garçom. Pagou a conta. E o casal seguiu para o hotel em silêncio e sem trocar carícias –
na política evite-o-toque.
Aquela noite tinha sido desperdiçada. E Lorac negou sexo ao namorado. Virou-
se para o outro lado e deu as costas ao seu amante quando foram para a king size dupla.
Essa foi sua terceira experiência de montanha-russa emocional. Uma correnteza de altos
e baixos de pensamentos e sentimentos conflitantes atravessou sua mente e seu coração.
Havia sido condenado a beber do veneno idealização-desvalorização.

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O fim de semana chegara ao fim. Era hora de o casal retomar suas vidas à parte
um do outro.
Segunda de manhã Yared chamou um táxi via app em seu celular. Assim que o
motorista parou na área de embarque do hotel, Lorac entrou no carro e foi para casa sem
dizer muito.
Yared morava a dois ou três quarteirões da hospedaria. Pegou seu caminho de
volta para casa, pensativo e pesaroso.
O homem apaixonado estava no relacionamento novamente. Mas, o humor que
estava permeando a relação era ambivalente. Tudo era o mesmo. Tudo era diferente.
Tudo estava diretamente em conflito com o princípio de tudo. Era difícil de entender e
explicar.
Sentia vontade de deixar Lorac. Todavia, ao mesmo tempo, sentia que não era
possível realizar tal façanha. Havia uma espécie de grude que o unia àquela mulher.
Ele começou a refletir sobre sua verdade interior. Estava além de toda
controvérsia o fato de que aquele sentimento nem de longe era amor. Possivelmente,
luxúria e sexo fossem o único adesivo que o prendia a ela. Yared tornara-se viciado na
provisão sexual de Lorac.
Podemos assimilar melhor o conceito de verdade, imaginando-a como um
poliedro, a figura geométrica de várias faces. O observador jamais consegue ver todas
as faces do poliedro ao mesmo tempo, não importa a posição que tome. É preciso que
ele se desloque em várias posições para conseguir enxergar todas as faces da figura – ou
da verdade.

Fingindo o clímax

O exercício físico costumeiro de Yared era a caminhada matinal ou vespertina


na extensa área externa do condomínio onde morava com sua namorada. Eram
momentos em que ele conciliava a prática física com a reflexão mediante a qual tanto
fortalecia seu coração antes de entrar nos conflitos do dia, como para fins de
autoavaliação colocava nos pratos da balança suas ações cotidianas.
Ani Lorac preferia sair em sua bike para pedalar ao longo do litoral que ficava
não muito distante do prédio.
Numa certa manhã, depois que tinha terminado suas dez voltas em torno dos
blocos de apartamentos, subiu para tomar banho e começar seu dia de trabalho. Mesmo
antes da pandemia, ele já era um profissional de home office.
Tomou uma ducha fria, trocou de roupa e foi para o quarto do casal pegar alguns
papeis na gaveta da penteadeira retro de madeira – herança da falecida mãe da sua
mulher, onde ela costumava guardar retratos antigos e joias de família.
Inesperadamente, sua atenção se voltou para uma prateleira, fixada na parede do
quarto que dava para a frente do guarda-roupa, onde estavam alguns livros de Lorac.
Talvez uns cinco. Ou seis. Eram volumes de assuntos variados.
Yared ergueu a mão e pegou um. Colocou de volta. Pegou outro. Devolveu à
prateleira. Mais um. Reposiciono-o no exato local onde estava. Até que...se interessou

67
em examinar com mais atenção um deles que lhe despertou a curiosidade mais
intensamente.
A capa estampava a imagem de uma mulher usando sapatos vermelhos de saltos
incrivelmente altos. Tinha um homem aos seus pés numa posição de submissão
completa lhe oferecendo um ramalhete de flores.
O ilustrador não poupara esforços para transmitir a ideia de superioridade do
sexo feminino. O desenho da mulher era em escala bem maior do que a do homem. A
dona, que mais parecia uma meretriz, exibia suas longas e bem torneadas pernas em
meias pretas e cinta-liga. Já a figura masculina fora retratada numa forma humilde –
quase uma figura de Lilliput diante daquela “deusa”.
Ao abrir o livro, Yared percebeu que tinha uma página com a ponta superior
virada para dentro marcando onde a leitura tinha parado da última vez.
Tema daquele subcapítulo: COMO FINGIR UM ORGASMO.
“Caramba!” – gritou ele para si mesmo.
“´Mas aí, existe um manual ensinando à mulher a representar um orgasmo fake
ao seu homem?!” – exclamou de maneira estupefata na sua reflexão à viva voz.
“Porra! Pensava que era uma estratégia exclusiva das prostitutas e garotas de
programa!”
No entanto, lá estava, bem nas suas mãos – o manual da ilusão orgástica
feminina. E aquele exemplar pertencia a sua amada Lorac.
Folheou algumas páginas numa leitura dinâmica. Havia vários trechos
sublinhados com marcador de texto de tinta vermelha. Engoliu em seco. Parou. Sentou-
se na beira da cama e se concentrou na leitura para descobrir os segredos daquele tipo
de farsa do chamado sexo frágil.

Dicas para fingir um orgasmo:


1. Arqueamento das costas – Realmente vale a pena ser dramática quando se finge um orgasmo. Aproveite
os movimentos das ancas — para cima, para baixo ou para os lados. Imagine numa serpentina ao vento.
Pense na maneira como os filmes americanos retratam um orgasmo. O seu homem vai ficar tão
hipnotizado que nem vai pensar que talvez esteja fingindo.
2. Faça beicinho – Os lábios são outro dos seus recursos válidos nesta simulação sexual. Faça beicinho,
semicerre os olhos de forma sensual e agarre no seu cabelo como se fosse uma stripper com uma
ventoinha à frente. Mas não exagere ou ele vai pensar que você está tendo um ataque. 
3. Use as cordas vocais – Uma vez, à noite, um colega de apartamento estava transando com a namorada e
ela fazendo tanto barulho que eu só pude concluir que estaria fingindo. Aquela gritaria programada pode
servir para um homem, mas não convence outra mulher. Um orgasmo fingido é a oportunidade perfeita
para você treinar sua voz de backvocal sexy. Complete sua performance oral com o tom de voz certo e
acrescente alguns “oohs” e “aahs”. 
4. Contorça-se toda – Quando estiver prestes a simular o orgasmo, é importante que ele sinta que o seu
corpo está mesmo atingindo esse pico. Você não pode ficar deitada e quieta à espera que ele
simplesmente acredite em você. Não consigo fazer com que as minhas mãos e pernas tremam como se
tivesse acabado de ter um orgasmo fantástico a sério, mas se você apertar as mamas com força e
dramatismo isso deve ser perfeitamente capaz de o convencer. Os homens curtem isso. 
5. Os momentos finais – Coloque as costas de uma das mãos na testa, para dar mais dramatismo à coisa.
Respire ofegantemente. Você acabou de fingir um orgasmo, você já pode adormecer. Trabalhou bem,
merece descansar.

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Yared ficou boquiaberto, olhando incrédulo para aquele texto, e teve uma
sequência de flashbacks percorrendo sua mente como um filme acelerado sendo
projetado de trás para a frente.
As instruções do livro se assemelhavam quase cem por cento ao comportamento
sexual que sua amante vinha apresentando na cama. Não podia ser uma mera
coincidência. Havia muitos pontos em comum.
De ímpeto, Yared lembrou da primeira transa que tivera com Lorac na noite da
massagem tântrica. Naquela foda, e unicamente naquela vez, ela tinha gozado de uma
forma muito intensa e com gritos.
Ficou em dúvida. Fora fingimento? Ela não tinha sentido prazer verdadeiro?
Fora tudo uma encenação? Um teatro, talvez? Uma cena de filme pornô caseiro? Uma
mentira?
E é certo que depois de um certo tempo na relação, Lorac vinha mostrando uma
certa anorexia de intimidade. Na maior parte das vezes, evitava as preliminares. Pedia a
Yared para ir direto para a penetração. Parecia ter pressa em finalizar o coito.
Seu comportamento se assemelhava àquele ensinado no manual, e logo depois
que eles terminavam o ato sexual, ela se levantava. Ia ao banheiro, e tomava uma
chuveirada. Trocava de roupa e saía do quarto para seus afazeres de rotina.
Faltava conexão com o seu parceiro. Era um liga-desliga mecânico. Automático.
Sem entrega genuína.
Como um relâmpago que havia caído sobre sua cabeça, trazendo-lhe a luz do
esclarecimento, Yared se conscientizou que estava vivendo um pseudo-relacionamento
com aquela companheira. Estava enleado numa rede de equívocos sobre a personalidade
dela.
Buscou com afinco por uma visão mais amadurecida e mais clara da realidade, a
qual lhe desse condição de compreender aquele cenário que se descortinava diante de si.
Necessitava retirar o véu que encobria seus olhos.
Repentinamente, entendeu que nada havia sido real. Tudo era falso. Apenas um
jogo em que ele estava sendo usado. Yared estava envolvido em meio a uma larga teia
de manobras indiretas e sutis perpetrada pela ruiva, tornando difícil perceber suas
manipulações. Até a gozada da sarará tinha sido puro fingimento?! Estava possesso de
ira e de desonra, fora ludibriado.
“Puta merda!” – berrou ele dentro do quarto com rugas entre as sobrancelhas
caídas e lábios apertados.
“Como tenho sido um idiota! Isso é um jogo. Essa narcisista tem planos
escusos. Cai numa arapuca. Ela tem uma agenda, e conquistou minha mente e coração
encobrindo todos os seus atos em cortinas de fumaça.” – continuou ele, levando em
conta o que vira, pensando em voz alta e de maneira furiosa.
Yared estava angustiado, seu espírito desolado e seu coração perturbado por ele
ter se rebelado contra os alertas que havia soado estrondosamente na sua frente ao longo
daquele love affair.
Estava chegando à conclusão de que independentemente do que ele dissesse ou
de como agisse, aquela mulher de modo algum o amara ou viria a amá-lo de verdade.
TRACTRACTC!

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A maçaneta da porta de entrada do apartamento soltou um ruído de metais se
atritando. E esse rangido trouxe Yared de volta à realidade: seu convencimento de que
“as coisas são como são” se fazia necessário.
Era Lorac que tinha chegado das suas pedaladas. Ele rapidamente colocou o
livro de volta na estante e se dirigiu para sua mesa de trabalho. E aquela casa que antes
lhe parecera um paraíso, agora tinha se transformado no seu inferno na Terra.

WHEN A MAN LOVES A WOMAN

When a man loves a woman


Can’t keep his mind on nothin’ else
He’d trade the world
For the good thing he’s found
If she is bad, he can’t see it
She can do no wrong
And turn his back on his best friend
If he puts her down
When a man loves a woman
Spend his very last dime
And trying to hold on to what he needs
He’d give up all his comforts
And sleep out in the rain
If she said that’s the way, it ought to be
When a man loves a woman
I give you everything I’ve got
Trying to hold on to your precious love
And baby baby please don’t treat me bad
When a man loves a woman
Deep down in his soul
She can bring him such misery
If she is playing him for a fool
He’s the last one to know
Loving eyes can never see
Yes when a man loves a woman
I know exactly how he feels
‘Cause baby, baby
When a man loves a woman
When a man loves a woman
When a man loves a woman
When a man, when a man
When a man loves a Woman
MICHAEL BOLTON

Provocando ciúmes

O casal enamorado adorava sair para dançar nas noites de final de semana. Eram
momentos prazerosos regrados a cervejas para Yared, e coquetéis
multicoloridos alcoolizados para Lorac. Apreciavam também frutos do mar
para acompanhar os drinks – camarões fritos no alho e óleo ou agulhinhas grelhadas
com batatas.

70
Certa noite, ao chegarem no seu espaço de happy hour predileto, se sentaram a
uma mesa próxima e em frente à banda que estava tocando e cantando músicas
populares para entreter os clientes da casa.
Num determinado momento, Yared olhou para Lorac que estava fitando o
vocalista do grupo.
“Opa, que exibição de charme é esse? E essa cara? Parece que tá gozando!
Que porra é essa, Lorac!? Na minha frente?!” – reclamou ele indignadamente.
“Nada a ver. Me deixe curtir as músicas que eu amo. Lá vem você com esses
ciúmes exagerados.” – procurou se justificar ela num tom de crítica.
“Nada a ver digo eu. Isso não é curtir, minha querida. Isso é: Você quer transar
comigo depois do show?” – devolveu ele sarcasticamente.
“Que saco, Yared! Você não me deixa me expressar como eu quero.” –
protestou a ruiva.
“Você pode se expressar como quiser, mas ficar dando em cima do cara na
minha frente, não aceito.” - se posicionou decididamente o linguista.
“Caralho! Isso não é liberdade de expressão. É desejo de libertinagem. Não é
assim que a banda toca não minha querida!” - afirmou o homem com os olhos
apertados de irritação e voz entrecortada de revolta.
Lorac, fulminando de raiva, se levantou e foi para o toilette. Passaram-se quinze
minutos e ela não voltou. Mais quinze minutos sem retorno. Mais meia hora e nada.
Yared continuou na mesa bebendo e comendo. Depois de uma hora de ausência,
aquela dona de cabelo de cobre voltou com um sorriso desavergonhado no rosto como
se nada tivesse acontecido.
“Pede mais uma bebida colorida daquela pra mim, meu rei.”
Yared acenou para o garçom e pediu mais uma bebida alcoólica doce para a sua
namorada. E mais uma cerveja estupidamente gelada para ele. Precisava digerir melhor
aquela cena toda.

7
Violência gratuita
“Os narcisistas odeiam se sentir desafiados ou confrontados e qualquer tentativa de conversar
ou mesmo assinalar o seu mau comportamento pode causar uma explosão de fúria. Qualquer ameaça
intencional ou não, ao seu falso eu idealizado, ou seja, a sua auto-imagem de perfeição e superioridade,
pode detonar a sua ira.” – Lucy Rocha

O anel perdido

A ruiva contou a Yared que quando muito jovem, ainda na casa de sua mãe, havia se
envolvido num caso muito violento.
Dessa vez, não com sua irmã adotiva, como era de praxe, porém com a
empregada doméstica da família.

71
Uma certa joia sua fora dada por perdida ou desaparecida, por ela não a ter
achado quando precisou usá-la.
A jovem procurara o anel no seu guarda-roupa na gaveta onde costumeiramente
o colocava depois do uso. Em vão. Sobre os armários. Sem resultado. Na estante de
livros. Sem sucesso.
Em determinado momento, lhe ocorreu que a serviçal deveria ter roubado seu
pertence.
Daí, decidiu resolver aquele problema confrontando sua secretária doméstica
cara a cara.
Certa tarde, depois que a sua mãe havia saído com a sua irmã, e a casa estava
vazia, a patroa chamou a empregada para o interrogatório.
“E aí? Confessa! Foi você que roubou meu anel, não foi? Desembucha sua
ladra safada!” – gritou a cabelo vermelho.
“Não patroa. Eu não peguei nada. Deve tá em algum lugar. A senhora já
procurou com cuidado?” – tentou se proteger a moça.
“Tá me chamando de mentirosa sua escrota?” – berrou a dona da casa
dominada pela raiva.
“Meu Deus! Não, patroa. Perdão, não disse isso. Vamos procurar direitinho?”
– implorou a secreatria do lar já em pranto.
“Nada disso! Vou resolver essa parada do meu jeito! Vou te ferrar!” –
vociferou Lorac ameaçadoramente.
Pouco se lixando com as palavras da doméstica, a sarará foi até a porta da
frente. Trancou-a. Tirou a chave. Jogou-a para dentro da blusa. E partiu para as vias de
fato.
“Quebrei ela toda no pau. Vi o sangue escorrer pela cara dela. Me vinguei
daquela ladra sem-vergonha. Afinal de contas, meu taekendô servia para alguma coisa.
Depois mandei ela ir embora antes que minha mãe chegasse.”

trauma de Beth

Numa de tantas conversas que costumava ter com Yared no que dizia respeito a
sua vida pregressa, Lorac se pôs a narrar um ato de violência que tinha praticado contra
o então parceiro bem na frente da sua filha.

Num determinado feriado da Semana Santa, quando retornavam da casa de


amigos que moravam numa cidade vizinha, um incidente assaz violento aconteceu na
família que Lorac estava tentando manter com seu ex-parceiro.
O cara tinha bebido alguns tragos a mais da conta e vinha dirigindo o carro de
regresso para casa com Lorac e sua filha no banco traseiro.
Pararam num posto de gasolina para reabastecer. Em determinado momento, a
mulher pediu a chave do carro para terminar a viagem. Alegou que ele não tinha mais
condições de fazê-lo.
“Pedi pra ele a chave do carro. Mas, ele não quis me dar. Aquilo me deixou
enfurecida. Perdi o controle de mim mesma.” – contou Lorac para o linguista.

72
“Tirei minha filha pequena do colo. Ela acordou. Botei ela sentada de lado.
Pulei pra o banco da frente.”
“Soquei a cara dele com toda força. Detonei o nariz dele com vários socos.
Aquele cabra safado começou a sangrar. Os óculos dele viraram pedaços.” – contou
ela com certo orgulho e um sorriso sádico característico.
“Tomei a chave do carro e levei minha família pra casa em segurança. Não me
arrependo daquilo não. Ele teve o que mereceu.” – concluiu a mulher triunfalmente.

Yared precisou levar aquela criança que presenciara tamanha violência da mãe contra o pai para
sessões de terapia infantil. A menina tinha distúrbio do sono e acordava nas madrugadas com pesadelos
devido ao trauma por presenciar aquele ataque de fúria gratuito.

73
Parte 3

Mulher insensata
Capítulos 8-12

Θ CAPÍTULO 8 – Lorac e seus dois maridos


o Gargalhada de bruxa
o “Você está destruindo a vida do meu filho!”
o Cosméticos e o carro
o A motorista
Θ CAPÍTULO 9 – A dança do ventre
o Provocando ciúmes
o Festival árabe-cigano
o A dança dos sete véus
Θ CAPÍTULO 10 – Flor de Lótus
o Bebê a bordo
o Meu níver
o A nota fiscal
o O gato de Schröndiger
o O golpe do falso sequestro
o “Se eles nascerem!”
o Desenhos, cartões e maquineta
o “Quero o dinheiro da minha filha!”
Θ CAPÍTULO 11 – Amor verdadeiro
o “Senti-me uma celebridade.”
o A doula
o O advogado
o Ajuda para o enxoval

74
o Plano de parto
o A senha do meu celular

8
Lorac e seus dois maridos
“...mais amarga que a morte é a mulher cujo coração está recheado de armadilhas e redes, e cujas mãos
são como grilhões.” – Cohélet

Gargalhada da bruxa

E ra uma manhã comum de um dia qualquer daquele Anno Domini de 2018. Lorac
estava muito atenta na sua máquina de costura consertando um vestido que ela
mantinha em seu guarda-roupa desde a época em que era adolescente. Yared se
encontrava debruçado sobre seu notebook para finalizar um projeto de trabalho.
A casa estava tranquila e silenciosa. Beth – a filha de Lorac – estava na escola
que ficava a uns dois quarteirões do condomínio. Yared tinha levado a criança para
estudar como costumeiramente fazia.
Podia-se ouvir nitidamente qualquer ruído à parte do barulho do motor da máquina da
estilista.
Nesses dias, a casa tinha um hóspede de sete vidas. Michael como era chamado.
Era um pet demasiadamente levado e esperto. O bichano saltava do sofá da sala para
cima da mesa, e vice-versa. Corria como um doido por dentro do restrito espaço interno
de 35m2 do apartamento. Batia malucamente a cabeça contra a porta da frente da casa.
Pulava para cima da cama do casal. Rodopiava. E voltava a correr, ziguezagueando.
Parecia o motoqueiro dando voltas e mais voltas naquela atração circense chamada de o
Globo da Morte. Eram muitas peripécias ao longo do dia, da tarde e até da noite
também.
Subitamente, o gatinho se embrenhou por debaixo das pernas da sua dona, indo
lamber seus pés. A mulher de imediato, soltou um suspiro ofegante e falou
espalhafatosamente:
“Eu adoro ter dois machos aos meus pés!”
Ato contínuo, Yared ouviu a maior, a mais estridente e fiel reprodução da
gargalhada de uma bruxa que ele jamais havia escutado. Sequer em filmes de
Hollywood! Nunca ouvira um som semelhante de nenhum ser vivo. Aquilo foi
simplesmente escandaloso e patético.
Como assim dois machos? Afinal de contas, Yared era o único homem da casa.
Ela estava colocando os representantes do sexo masculino – o felino e seu homem – no
mesmo nível? Ou?
Bem, o linguista estava muito atarefado naquele momento para tentar decifrar
aquela sinistra explosão de satisfação sádica expressa pela sua parceira em forma de um
riso escalafobético.

75
Todavia, a impressão daquele estridor arrepiante ficou indelevelmente
estampada na sua memória.

“Você está destruindo a vida do meu filho!”

“...as mulheres são perigosas. Os homens em contraposição, representam a vida e a terra.” –


Bert Hellinger

Lorac não perdia ocasião de contar com riqueza de detalhes episódios no que
dizia respeito a sua vida antes de conhecer Yared. E ela não tinha limites ou barreiras
nessas narrativas. Ele não apreciava muito aquelas histórias. Acreditava que as
experiências vividas entre um casal deveriam ficar guardadas a sete chaves.
Conservadas na intimidade dos seus corações. E não eram para ser espalhadas ao vento
sem um motivo verdadeiramente importante e necessário.
Yared pouco, ou quase nunca, narrava sua vivência de outros relacionamentos –
bons ou tóxicos. Respeitava aqueles seus momentos íntimos e a memória das outras
mulheres. Por outro lado, também, se dava bem em bloquear da sua memória coisas
dolorosas e desnecessárias.
Inversamente, a ruiva sentia um certo prazer mórbido em lhe contar os
acontecimentos pretéritos, inclusive com todos os pormenores e colorido emocional.
“Sabe?” – iniciou ela, inquisitivamente.
“Numa fase da minha adolescência, eu tive um namoradinho que não era muito
no meu padrão de beleza masculina, mas ele era legalzinho. Eu me apeguei a ele.”
“Você namorava com o cara sem gostar dele?” – perguntou Yared com
curiosidade e surpresa.
“Eu gostava, mas não era apaixonada não. O cara era uma companhia legal.
Realizava meus desejos. Fazia minhas vontades. Era um babaca. Mas pra mim era bom
ficar com ele.” - foi explicando a sarará cinicamente.
Yared, a essa altura, já delineando traços de perplexidade em seu semblante,
perguntou boquiaberto:
“Tá brincando? Mas isso é ser interesseira, não acha?”
A mulher de cabelos vermelho-dourados comentou sem rodeios ou escrúpulos:
“Eu não queria saber de nada. Só queria alguém pra estar junto de mim, e que
me amasse. Aliás, eu sempre gostei de fazer o quê me desse na telha, sabe?”
Os olhos de Yared aguçaram-se repentinamente:
“Tá, mas por que vocês acabaram o namoro?”
“É o seguinte.” – continuou Lorac enfaticamente.
“A cascavel da mãe dele, certo dia, me chamou pra levar um papo. Já fiquei
cismada com aquele convite, mas fui falar com a peste. E ouvi umas coisas bem
agressivas dela.”
“Agressivas? Como assim? Por que essa tua opinião sobre ela? Explica melhor
isso aí.” – pediu Yared impacientemente.

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“Há pessoas que se apegam à sua opinião não porque seja verdadeira, mas porque é sua.” –
Agostinho

“Ela mandou eu me afastar do filhinho dela, jogando na minha cara palavras


que eu nunca esqueço.” – comentou veementemente Lorac.
“Deixe meu filho em paz! Você está destruindo a vida do meu filho!”
“E aí? O que você fez?”
“Eu escrevi uma carta de despedida pra ele. Fui até a sua casa. Gritei pelo seu
nome. Não entrei. Fiquei do lado de fora no portão. Quando ele chegou, entreguei a
carta sem dizer uma palavra. Dei meia-volta, e fui embora sem nem olhar pra trás.”

Cosméticos e o carro

“Os narcisistas estão mais preocupados com o modo como se apresentam do que com o que
sentem. De fato, eles negam quaisquer sentimentos que contradigam a imagem que procuram apresentar.
Agindo sem sentimento, tendem a ser sedutores e ardilosos, empenhando-se na obtenção de poder e
controle.” – Alexander Lowen

Além da pequena casa de sapé situada numa área afastada da vida urbana que
Lorac havia, por assim dizer, herdado do empresário sexagenário, ela contou que o cara
lhe havia investido em cursos sem conta durante a vigência do casamento.
Começando com aulas para modelo a fim de endireitar sua postura, que era um
pouco corcunda e com andar desengonçado, até formações nas áreas de maquiagem,
beleza, estética, moda e alta costura.
Ela havia prezado pelo seu conhecimento. Não era uma garotinha inocente e
alienada. Era uma jovem mulher que almejava sucesso e, por isso, estava sempre se
informando mais e mais.
Um dia, Yared acessou um blog da época em que sua companheira estava
envolvida com o universo da moda e da maquiagem.
Na seção do perfil e da bio, ele leu sobre os objetivos, gostos, hobbies, estilos
musical e cinematográfico de Lorac. No item filme preferido, lia-se: O DIABO VESTE
PRADA.
Com grande probabilidade, a predileção por aquela película não se devia
meramente ao tema que dizia respeito ao mundo da moda ou a cultura corporativa do
mundo da revista Runway. Yared estava de todo convencido que Miranda Priestly e Ani
Lorac compartilhavam personalidades extremamente afins – ambas com uma face
“diabólica”, dadas à violência psicológica e assédio moral praticados de uma forma ou
de outra.
É evidente, como consequência, que qualquer semelhança da chefe abusiva do
filme com a realidade do comportamento da estilista ruiva não era mera coincidência.

77
Yared tinha percebido que o relacionamento pelo qual alguns homens sacrificar-
se-iam sua vida para ter com uma mulher daquela poderia simplesmente acabar com a
dele.
Sua convivência com o playboyzinho sempre fora conturbada e cheia de idas e
vindas. Numa dessas idas, Lorac aparentemente separada do cara, deu um jeito de
repescar o ex marido para perto de si.
Durante um intervalo de tempo que ela não tinha revelado, esse tal pedófilo
idoso, sem qualquer coisa em troca, de acordo com a versão de Lorac, lhe prestou uma
solícita ajuda para ela assumir a função de representante comercial de uma famosa
empresa de cosméticos e produtos de beleza. Deixou as chaves de um carro nas mãos da
sua ex mulher.
Reza a lenda que o empresário falido frequentava sua casa naqueles dias, e ela
usava seu carro para trabalhar.
Numa conversa, numa dessas visitas, supostamente desinteressadas, o cara lhe
fizera a proposta para que ela engravidasse de uma filha dele e a desse para ele criar!
Essa proposta conseguia ser mais indecente do que aquela do filme, no qual o
casal estava passando por uma crise financeira, e depois que tinham perdido tudo no
jogo em Las Vegas, um milionário misterioso ofereceu uma solução: um milhão de
dólares se ele pudesse dormir com a mulher do cara – PROPOSTA INDECENTE com
Demi Moore e Robert Redford.
Parece, de fato, que a arte imita a vida. E que Hollywood se inspira nas vidas de
pessoas reais para escrever seus roteiros campeões de bilheteria.
Bom, se a ajuda com o carro foi sem o menor lampejo de interesse de alguma
coisa em troca, esse cara devia ter descoberto o método de concepção pelo divino
Espírito Santo.
De acordo com a dona de cabelo ruivo acobreado, ela decidiu entregar as chaves
do carro de volta quando ele fizera um comentário com um tom um tanto erótico sobre
Beth.
No entanto, coincidentemente, ela também contou que foi quando ela havia
desistido das vendas e o playboyzinho já estava para voltar que a ajuda fora dispensada.
O contrato de escambo ou parceria tinha chegado ao fim. Desta maneira, naturalmente,
foi apenas uma questão de troca de parceiros. Lorac e seus múltiplos amantes! Que
espécie de insanidade embutida havia naquele comportamento?

A motorista

“É melhor viver numa terra deserta do que com uma mulher que reclama e resmunga.” – Shelomo

Os fieis adultos da religião professada por Lorac usavam uma espécie de talismã
pendurado no pescoço como sinal da sua fé no fundador e no seu poder de cura
milagrosa.
Da mesma forma, as crianças podiam usar tal amuleto com o consentimento dos
responsáveis e após uma cerimônia que era realizada formalmente diante do altar
daquela instituição religiosa.
Chegara o dia da filhinha de Lorac receber sua suposta proteção divina em forma
de pingente. Tudo tinha sido arranjado e preparado para aquela noite especial e
memorável.

78
Yared, usando seu aplicativo de transporte, solicitou um carro ao chegar a hora
de irem para a igreja. O casal e a criança estavam elegantemente trajados para a ocasião.
Como de costume, Lorac esbanjou beleza, elegância e charme. Escolhera um
vestido com aparência vintage dentre a coleção que mantinha no seu guarda-roupa
desde a época de estilista. Yared estava formalmente vestido numa calça social preta e
uma camisa branca. Já a menininha estava usando um vestido infantil com um belo laço
na cintura e com um diadema branco que sua mãe colocara sobre sua cabeça.
Desceram do apartamento. Caminharam sorridentemente em direção ao carro.
Porém, quando Lorac viu que quem iria conduzir o veículo era uma bonita motorista, de
imediato, reclamou resmungando:
“Quem vai na frente sou eu! Você vai atrás com Beth cuidando dela na
cadeirinha.”
“De jeito nenhum. Você sabe que a menina adora ir com você. E outra, ela se
achega a você e dorme no seu colo. Pode deixar que eu vou na frente como de costume
em todas nossas viagens.”
“Não!” – disse Lorac a ponto de gritar e já com a mão na maçaneta da porta
dianteira.
Yared, se precipitou um pouco, terminou de abrir o carro, e disse decisivamente:
“Pode entrar e ocupar seu lugar junto da sua filha. Eu não vou comer a
motorista aqui na sua frente e da criança!”
Lorac lhe dirigiu um olhar fulminante. Sem dizer mais nada embarcou ocupando
o banco traseiro.
E assim permaneceu olhando pela janela emudecida – sentada ao lado da filha
durante uma hora de percurso sem abrir a boca uma só vez – desde a saída do prédio até
a chegada à igreja. No decorrer de toda a solenidade religiosa. Até chegarem tarde em
casa naquela noite.
Yared, por sua vez, não valorizou aquela falta de comunicação. Tomou banho.
Comeu alguma coisa. E foi para o quarto dormir sem também falar uma palavra sequer.

9
A dança do ventre

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“O meu tratamento de pacientes narcisistas é dirigido no sentido de ajudá-los a estabelecer contato com
seus corpos, a recuperar seus sentimentos suprimidos e a reaver sua humanidade perdida. Tal
abordagem implica trabalhar para reduzir as tensões e a rigidez musculares que refreiam os sentimentos
da pessoa.” – Alexander Lowen

As origens
A dança é universal para o ser humano. É tão crítica para o bem-estar e a identidade coletiva que
as tentativas históricas e contemporâneas dos governos e das igrejas de proibir sua prática acabam
fracassando. As mulheres dançarinas frequentemente suportam o peso dessas tentativas devido aos
códigos culturais relativos ao corpo feminino e ao seu lugar na sociedade. A dança do ventre, uma dança
tradicionalmente feminina, tem resistido a estes desafios através da tenacidade pessoal e das habilidades
de dança das mulheres que a executam. Como o gênero das dançarinas do ventre é tão fundamental para
nossa percepção e recepção da arte, é um tema recorrente nas histórias que conto. Dançarinas do Egito – o
lugar de nascimento da dança do ventre, e da América – onde assumiu um novo tom, apresentam
variedades únicas da dança.
Estas variedades foram desenvolvidas dentro de contextos e forças interligadas: econômicas,
religiosas e corpóreas, cada uma tendo um impacto sobre as relações de gênero locais e sobre o status da
dança.

O contexto sociorreligioso das tradições de dança do Egito


Embora as mulheres dançarinas do Egito pertençam a uma tradição antiga e continuem a ser
importantes em certos contextos cerimoniais, elas se tornaram problemáticas na era moderna. Durante
séculos, a sociedade egípcia tem vacilado entre seu desejo de uma sociedade secular ao estilo ocidental e
um poderoso fundamentalismo religioso ansioso por eliminar todas as influências ocidentais. A própria
dança representa tanto a cultura tradicional quanto a ocidentalização da mesma e, em alguns casos, uma
violação das restrições religiosas. As mulheres dançarinas representam uma expressão corpórea dessas
ansiedades. Elas representam uma matriz de influências: práticas rurais tradicionais, um desejo ocidental
de liberdade e contraforças que buscam o sequestro de mulheres. Dançarinas egípcias foram
alternadamente acolhidas por seu lugar histórico nas celebrações e banidas por sua violação das regras
islâmicas... acolhidas por sua bênção ao comércio teatral e banidas novamente por envergonharem o
estado como portadoras de uma grande tradição e condenadas por representarem a ocidentalização de sua
cultura. Cada uma das restrições mais duras e bem-vindas; cada proibição resultou em menos mulheres
continuando sua herança de dança. Por que as mulheres dançarinas são tão ameaçadoras para a sociedade
egípcia? Uma chave para entender a posição social das mulheres artistas no Norte Islâmico da África é a
rígida divisão de mulheres e homens que os líderes religiosos lutam para impor. As mulheres carregam o
fitna, um estado sexual que requer contenção social e reclusão. No Egito islâmico, os corpos das mulheres
são considerados intrínsecos ou naturalmente sexuais, enquanto os corpos dos homens são considerados
neutros. Ou seja, enquanto o corpo do homem é apropriado para o comércio e a política, bem como para a
sexualidade, o corpo da mulher é sempre sexual. Dançar em público diante de homens estranhos,
revelados, por dinheiro ou remuneração, todos violam o costume e a lei islâmica conservadora. As
mulheres “apropriadas” são “haram” ou sagradas, o que exigiu sua proteção contra influências externas.
Estas atitudes se intensificaram na presença de ocidentais que eram ambos injuriados como infiéis que
nunca deveriam olhar para as mulheres islâmicas, e invejados como uma fonte de sofisticação e poder
moderno.

Parto e dança do ventre


Há algumas evidências de que a dança do ventre foi originalmente criada para ensinar as
mulheres jovens sobre sexo e/ou para preparar as mulheres para o parto, mas continua a ser uma atividade
incontroversa. A etnóloga e intérprete de dança, Carolina “Marrocos” Varga Dinicu, fornece a mais forte
evidência da relação entre o parto e a dança do ventre.
Seu primeiro encontro com a ideia veio em 1961 quando, após assistir à apresentação do
Marrocos, uma mulher saudita lhe contou sua experiência pessoal com o ritual de dança em 1937. Em
1967, Dinicu testemunhou e participou dos ritos de nascimento dançantes de uma Berberwoman em uma
remota aldeia marroquina. Aqui, ela observou a família e a amizade no estilo de dança do ventre local,
Schikhatt, para e com a mãe biológica. Este evento correspondeu às descrições orais que ela havia
recebido e a convenceu da ligação entre a dança do ventre e a procriação. Infelizmente, além de suas
observações, pouco mais temos a confirmar historicamente sua existência. Hoje, as próprias mulheres
ocidentais estão experimentando os benefícios da dança do ventre para facilitar o parto como parte de um
movimento social maior para desenvolver experiências de parto alternado. Alguns ventreiros recriam os

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antigos rituais norte-africanos, como descrito por Dinicubrindo suas irmãs do ventre nos eventos de
nascimento. Outros se apresentam em duches de bebês e casamentos e recepções de casamento de acordo
com as práticas norte-africanas. Muitas mulheres continuam a dançar e se apresentar através de sua
gravidez como um símbolo, talvez, de sua adequação para uma mulher grávida.

Festival árabe-cigano

Yared sempre comentava com sua parceira que adorava a arte da dança do
ventre. Dança surgida no Egito com movimentos ondulatórios e batidos de quadril, em
que as mulheres reverenciavam a fertilidade e celebravam a vida.
Pela beleza dos movimentos. Sensualidade das dançarinas. Ritmo da batida. O
erotismo das roupas das mulheres. E tantos outros detalhes intensamente apreciados
daquela cultura, o empreendedor de idiomas era fã de carteirinha daquele estilo de dança.
Por sua vez, Lorac já havia feito aulas de dança do ventre. Ambos tinham
afinidade pelo tema, sobre o qual gostavam de conversar e assistir vídeos de
apresentação com belas dançarinas.
Aconteceu que surgiu uma oportunidade para Lorac fazer apresentação das suas
obras de arte num festival árabe-cigano que era realizado anualmente por integrantes de
escolas de dança, músicos e associações de artesãos e artistas plásticos. O evento estava
para ser realizado em breve. Através de uma amiga das antigas – do arco-da-velha – a
artesã tinha sido convidada para montar um estande nessa festa.
Lorac conversou com Yared e ele aceitou patrocinar seu espaço de vendas no
festival. A decisão do curso designer alegrou sobremaneira a ruiva pela oportunidade de
marketing e de rever ao vivo as performances de danças árabes e ciganas que seriam
apresentadas durante a exposição.
Na tarde do evento, Lorac já estava com todo seu repertório das melhores e mais
bonitas peças de artesanato pronto para levar para o local da exposição. O casal
juntamente com Beth seguiu rumo ao espaço que ficava situado num casarão numa área
estilosa da cidade.
Eis que ao chegarem ao lugar do evento, foram cortesmente recepcionados pela
anfitriã e conduzidos ao estande onde Lorac deveria expor suas peças de arte.
Yared não somente ajudou na montagem da exposição da sua namorada, mas
também atuou como seu representante comercial. Dava informações aos visitantes sobre
as peças, sobre a artista, e sobre os preços e forma de pagamento.
O linguista estava feliz por poder proporcionar aquela oportunidade a sua
amada.
E além do mais, o evento se mostrara muito legal. Música temática. Mulheres
lindas. Comida deliciosa. Boas bebidas. O investimento estava dando um retorno muito
além do que ele havia esperado.
Chegou o momento da exibição dos números de dança do ventre – o ápice do
show. Houve apresentação não somente solo, mas também em duplas e em grupos.
Tudo de gosto refinadíssimo e performances esmeradas.
Quando terminou o espetáculo musical e os shows de dança, o casal voltou para
seu estande. Aí, Lorac, com uma voz de gatinha manhosa, se aproximou do seu parceiro
e foi falando:
“Meu rei, compra uma roupa de dançarina do ventre pra mim. É linda! Quero
voltar às aulas de dança como te falei. Compra por favor!”

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O professor Don Juan fitou aquele olhar apertado, aquele sorriso pedinte, aquele
cabelo tom de âmbar. Seus olhos cobriram-na de forma lenta da cabeça aos pés daquele
corpo sinuoso e respondeu-lhe maliciosamente:
“Compro! Mas só se você dançar pra mim hoje à noite. Topa?”
Lorac olhou de maneira sedutora para ele, mexeu na sua cascata de cobre e
acenou afirmativamente:
“Danço com todo prazer, meu rei!”
Tudo que Yared queria ouvir para financiar a sensual indumentária árabe-cigana
para sua parceira romântica.

A dança dos sete véus

Em casa, depois que a criança dormira, Lorac após ter permanecido por um
longo tempo numa ducha quente e perfumada à base de 212 Sexy Carolina Herrera Eau
de Parfum, trancou-se no quarto do casal e se demorou por cerca de duas horas, depois
das quais, Yared ouviu numa voz charmosa do outro lado da porta:
“Vem pra cá, meu rei. Tô pronta pra apresentação – vou cumprir minha parte
do acordo.”
Ele que já estava um tanto ansioso por aquele momento. Seguiu sem hesitar para
o dormitório depressa.
Tudo tinha sido preparado esmeradamente pela dançarina ruiva. O recinto estava
na penumbra. À luz de velas aromatizadas. O som de uma música árabe com uma batida
inebriante ecoava no quarto. Lorac estava deslumbrantemente vestida num traje
espetacular. Fora especialmente desenhado para a dança dos sete véus: sobressaia de
lenços de cetim soltos com moedas e guizos com o cós vermelho acompanhado por um
véu de rosto e outro véu de cabeça com testeira. A roupa caíra de forma perfeita no seu
corpo de curvas largas e reentrâncias profundas onde cruzavam-se sombra e luz num
jogo de mistérios.
Um detalhe intrigante lhe chamara a atenção – sua bela dançarina tinha
comprado uma joia. Era uma naja prateada, cujos olhos eram duas incrustações de
pedras de Ágata de Fogo, e estava ostentando uma língua escarlate projetada para fora
da boca. Lorac estava usando aquele acessório em torno da sua cintura delgada. A
cobra-peçonhenta de prata fora posicionada repousando sobre seu umbigo.
Yared ficou momentaneamente tonto naquele ambiente exalando sensualidade
por cada milímetro quadrado. A mescla da luz de penumbra, aroma afrodisíaco, música
sensual e a beleza regrada a kundalini da sua namorada, lhe fizeram ser transportado
para uma “aventura das mil e uma noites” prometendo o maior dos prazeres que um
homem poderia desfrutar aqui na terra.
Sem mais delongas, sentou-se no meio da cama e reclinou-se para trás sobre um
grande e macio travesseiro encostado contra a parede. Como um verdadeiro sultão,
estava pronto para apreciar a apresentação da sua dançatriz preferida de um harém com
uma única mulher – Lorac!
A dançarina do ventre começou a se movimentar ao ritmo daquela batida
cadenciada embriagadora. Seus quadris oscilavam para um lado e para o outro. Seus
braços se moviam para cima e para baixo numa coreografia que se assemelhava ao
passeio de uma serpente sobre a relva.
Numa parada rítmica da melodia oriental, a bailarina tirou sua minúscula
calcinha preta de renda e a atirou em direção ao seu único espectador.
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O coração de Yared parecia querer sair pela boca. Estava com uma ereção
duríssima por baixo da almofada que tinha colocado sobre o colo. Todavia, precisava
esperar a conclusão daquela performance dos deuses antes de qualquer investida mais
arrojada.
A música tocou seu último acorde. Yared se levantou. Tomou Lorac pelos
braços. Apertou-a contra si. Ela soltou um gemido de prazer. Ele a jogou sobre a cama.
Tirou sua única peça de roupa – uma cueca box – e se enroscou na sua serpente
personificada.
Yared colocou a cabelo ruivo acobreado de quatro sobre a cama. Puxou e
segurou possessivamente sua cascata de cobre como se fosse as rédeas de uma potranca
selvagem no cio a ser domesticada. E começou a estocar a dançarina com sofreguidão.
Foram penetradas rápidas e fortes. Seu membro ocupou apertadamente todo o espaço
daquela vagina margeada de pelo âmbar vermelho e já toda lubrificada com o mel
brilhante e delicioso do prazer. Lorac gemia em êxtase. Mexeu seus quadris para
recebê-lo ainda mais fundo e falou:
“Crava, meu rei! Até o talo! Detona!”
O som daquelas palavras impediu Yared de segurar seu gozo por qualquer
segundo a mais. Ele explodiu num jato torrencial do líquido da vida.
Ambos tiveram um orgasmo intenso – pelo menos pela parte dele isso fora real.
Yared ejaculou dentro do corpo da dançarina. Foi uma experiência sexual
inesquecível não somente para Yared – mas quiçá também para Lorac igualmente.

10
Flor de Lótus
“ccccc
Bebê a bordo

U ma bienal do livro estava para acontecer num grande Centro de Convenções da


cidade. Lorac convidara Yared para ir ao evento no final de semana. Convite
irrecusável para aquele rato de biblioteca poliglota. Desta maneira, o encontro
foi acertado entre o casal.
Combinaram ficar hospedados num hotel no litoral de uma bela praia vizinha ao
condomínio da artista. De lá iriam para a feira de livros.
No trajeto até o Centro de Convenções, Lorac começou uma conversa,
anunciando:
“Minha menstruação não veio. Tá atrasada.”
“Você tá grávida?”
“Não sei. Precisamos fazer o teste de farmácia. É rápido e prático.”
“Tudo bem. Quando a gente estiver de volta da bienal, paro numa farmácia e a
gente compra o kit.” – falou Yared.
“Você não tá preocupado com isso?”
“Um...hum... um pouco, mas se você tiver mesmo esperando um bebê, eu posso
encarar essa barra.” – confortou-lhe o Dalai-lama poliglota.

83
“Afinal, seria meu quinto filho. Tenho muita experiência no ramo e posso
assumir nosso bebê do lado material e do lado afetivo. Relaxe e vamos curtir a bienal!”
– complementou ele.
O Centro de Convenções estava entupido de gente e de livros. Livros
maravilhosos que encheram as vistas de Yared. O casal passeou na maior parte do
tempo pelos estandes apreciando os mais recentes lançamentos literários do país.
Compraram três livros – um para ela e outro para ele, além de um exemplar
infantil para Beth.
No regresso para a hospedaria, Yared parou o carro numa pequena farmácia do
bairro, onde estavam hospedados. Dirigiu-se ao balcão de atendimento e perguntou pela
farmacêutica responsável antes de confirmar a compra do kit de teste para gravidez.
“Boa noite! Tenho algumas dúvidas sobre esse produto aqui e gostaria de
perguntar à responsável, pode ser?”
“Claro, senhor. Vou chama-la agora mesmo.” – respondeu a atendente com um
sorriso cordial no rosto.
“Pronto, senhor. Pois não? Posso ajudá-lo?” – inquiriu a farmacêutica com
uma voz polida.
“Minha mulher está com a menstruação atrasada. A gente quer saber se esse
teste é confiável ou não. Poderia nos dizer como funciona?”
“Esse teste deve ser feito a partir do primeiro dia de atraso menstrual. Mas, se
o resultado desse primeiro teste for negativo e a menstruação ainda estiver atrasada,
ou ela tiver sintomas de gravidez deve repeti-lo.”
“Então, funciona mesmo né doutora?”
“Esse kit que o senhor escolheu é o mais confiável e eficiente para diagnosticar
uma gestação em curso, seja ela planejada ou não.”
“Tá legal! Vou levar esse. Obrigado.”
Yared pagou. Voltou para o volante e retornaram para o hotel.
Assim que entraram no quarto, Lorac correu para o banheiro. Depois de um
momento, ela chamou seu parceiro até o toilette.
“Olha aqui! Dois tracinhos vermelhos. Você vai ser pai. O que vamos fazer?”
“Nada! Já fizemos. E tá aí dentro de você. Agora é só esperar nove meses e
receber a encomenda.” – respondeu Yared sorrindo.

Meu níver

O casal fez tanto o exame de sangue como uma ultrassonografia intravaginal.


Não havia dúvida a ser conservada de que havia um bebê a bordo. Lorac e Yared
estavam grávidos. Agora, precisavam se preparar para receber o novo membro daquela
família que estava se constituindo.
A irmã da nascitura ficou deveras feliz, pois agora teria uma outra criança na
casa com quem brincar. O futuro genitor estava todo orgulhoso. Com seus cinquenta e
tantos anos seria pai novamente. Pelo método natural. Sem Viagra! Não poupava
esforços em divulgar as boas novas com os amigos e familiares.
Consultando o resultado da ultrassonografia e a tabela da menstruação, fizeram
as contas. A bebê tinha sido convidada ao som da música árabe e depois da
apresentação da dança do ventre da sua mamãe bailarina.
Era uma menina que ia chegar. Mais uma mulher entre tantas que faziam parte
da vida de Yared. Seria pai agora de cinco – um rapaz e quatro moças. Era avô de
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quatro – um menino e três meninas. E era irmão de duas. Bom, os céus lhe mandavam
muitas mulheres. Por certo ele tinha uma séria lição a aprender em lidar com o sexo
feminino.
Chegara o mês de outubro, ocasião em que Yared comemorava seu aniversário.
Há algum tempo, o pai de Beth já havia convidado a menina para ser dama de honra de
uma cerimônia de casamento de uma certa tia da família. Tudo havia sido combinado
com antecedência.
Numa conversa, o casal havia acertado que no dia do evento, o ex-parceiro de
Lorac a pegaria juntamente com a pequena Beth e as levaria para a casa de seus pais
para se vestirem e se arrumarem para o matrimônio.
Yared havia assentido pacificamente e de bom grado com aquele arranjo. Afinal,
sua mulher estava grávida dele e o cara já estava noutro relacionamento amoroso com
uma vizinha que ele havia reencontrado na rua onde moravam.
Na noite que antecedia o casamento, Yared foi para a casa da sua filha e se
comprometeu a voltar para o apartamento no dia seguinte, um feriado nacional. Eles
iriam passear em família para celebrar o Dia das Crianças.
Eis que cedo de manhã, seu Alcatel tocou três vezes. Era Lorac.
“Parabéns pra você. Nessa data querida. Muitas felicidades. Muitos anos de
vida.”
“Ah, querida, muito obrigado! Gostaria de estar do seu lado nessa data tão
importante, mas...”
“Você sabe que não é possível. Esse compromisso já estava marcado há muito
tempo.” – asseverou ela.
“Não. Eu sei. Só tô expressando meu sentimento. Meu desejo de tê-la do meu
lado nos momentos importantes da nossa vida. Mas, amanhã eu irei te ver.”
“Ok, tudo bem. Agora preciso cuidar cedo das coisas. Tenho que separar minha
roupa e experimentar os sapatos que minha amiga me emprestou para o casamento. A
gente se fala amanhã.”
“Cuide-se na festa, viu? Não beba bebida alcoólica. Você tá esperando nossa
herdeira.”
“Olha aqui Yared. Da minha vida cuido eu! Eu sei o que devo e o que não devo
fazer. E afinal de contas, é o meu lazer.” – Lorac comentou com uma voz carregada de
uma tonalidade ríspida.
“Ok. Ok. Não vamos brigar. Hoje é uma data muito especial pra mim e pra
vocês. Amanhã a gente se vê.” – encerrou a ligação.

A nota fiscal

Ao chegar no apartamento, a atenção de Yared se voltou para uma longa lista de


compra de supermercado que estava sobre o balcão de madeira revestido de fórmica
branca da cozinha – peça de mobília reaproveitada de um escritório falido do
playboyzinho.
A nota fiscal registrava um valor de uns quinhentos e tantos reais – pagos com
um cartão de crédito. Uma quantia um tanto elevado para uma família pequena como a
deles.
Abriu a dispensa. Estava abarrotada com víveres não perecíveis. Abriu a
geladeira – entupida com frutas e verduras, carnes e peixes.

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Certos pensamentos de inquietude e cisma pairaram na mente de Yared. Fez as
contas da tabela menstrual de sua mulher novamente. Buscou uma retrospectiva na sua
memória. Tudo certificava a gravidez de Lorac para a noite da dança do ventre.
Todavia, era algo indefinido. Não era um pensamento lógico. Não era uma
análise ponto a ponto – passo a passo. As questões não só significativas, mas de extrema
valia para a vida contêm mais pontos que jamais poderiam ser processados! Talvez
fosse o que se chama de intuição.
Começou um monólogo consigo mesmo:
“Ah, que se lixe essa tal de intuição! Vou ser pai novamente. Isso que importa.
Vou constituir uma nova família com minha linda ruiva e seremos muito felizes.”
No entanto, tais pensamentos de novo afloravam com certa obstinação causando
uma ansiedade indefinida em Yared. Ele precisava avaliar a situação realisticamente.
Foi por isso que ele resolveu dar uma espiada no celular de Lorac. Foi direto para o
WhatsApp de conversas com o ex-parceiro da mulher. Rolou a janela do aplicativo a
fim de encontrar alguma pista que confirmasse ou negasse suas suspeitas.
Não gostou muito da troca de mensagens que leu. Pareceram muito próximos.
Quase íntimos.
Mesmo tendo sido trocado por Yared, o cara tratava a ex mulher com muito
carinho e prestatividade. Mesmo o linguista tendo ido morar com sua ex parceira e filha
apenas dois meses depois da separação, o playboyzinho se mostrava demasiadamente
solícito com a dona de cabelo acobreado. Parecia, de forma alguma, ter superado o
rompimento.
Que desapego invejável! Que generosidade exemplar! Aquela forma de aceitar
sua relação com a ex mulher por parte do cara era simplesmente enigmática para Yared.
Aquele comportamento ultrapassava a afetividade e a máxima do “amai ao próximo
como a ti mesmo”.
Porém, ele estava aliviado de não ter descoberto nenhuma prova
comprometedora. E para se fazer justiça, não havia nada de concreto que implicasse
infidelidade da parte de Lorac e desabonasse sua conduta como esposa.
Verificou que eles haviam trocado mensagens até pouco antes do raiar do dia, e
que haviam curtido bastante a festa de casamento. Nada comprometedor, todavia.
Fechou o aplicativo e pôs o aparelho de volta sobre a penteadeira.

O gato de Schröndiger

Ainda que tivesse saído da condição de alto risco para uma de risco moderado,
Lorac andava em demasia nervosa e estressada no decurso de toda a gravidez.
Num número demasiado de vezes, Yared ao seu lado, a ajudava a levar uma
gestação tranquila dentro da medida do possível. Presente em todos os exames pré-
natais e consultas, ele de fato estava exercendo sua função paterna desde a concepção da
criança.
Todavia, Michael não entendia muito a situação, e estava até demonstrando
certos ciúmes pois sua dona agora tinha diminuído sua atenção para com ele. Tornou-se
extremamente peralta, e até agressivo com Lorac.
Certa manhã, depois que ele urinou na cama do casal, coisa que jamais tinha
feito, sua dona, descontroladamente, o pegou e o surrou para valer. Descarregou sua
tensão no gato sem culpa.

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Mas, os inocentes pagam pelos pecadores, não é mesmo? Pelo menos assim diz
o provérbio popular. E quem seriam os pecadores naquela história toda?
O casal decidiu doar o bichano para que a paz voltasse a existir naquele reino em
pé de guerra. Fizeram vários contatos. Puseram muitos anúncios. Nenhuma resposta
positiva. Até que... uma velha amiga advogada de certa idade do ex casal, desde longa
data, não opusera objeções em receber o gato para adoção.

Essa advogada mantinha relações particularmente íntimas com a família do pai


de Beth, o tratando quase como filho. Conhecia a vida pessoal de cada um membro
daquele clã. Especialmente do seu playboyzinho protegido, e de seu relacionamento
conturbado com a marchand bailarina. Sabia de todos os pormenores, ou contados pela
mãe do cara, por ele mesmo, ou pela própria Lorac, que sempre tivera a prática de
desabafar assuntos particulares e confidenciais com a patrona envelhecida.
Inclusive, a artesã já havia alugado sua casa de sapé para ela e o motoqueiro
montarem uma ONG na área de artes, a qual, de forma alguma, prosperara.

Combinaram a entrega para um domingo. Ficou acertado que Yared iria para a
casa da sua mãe. Almoçaria com ela e voltaria na parte da tarde. Lorac iria para a casa
da tal amiga no carro do pai de Beth a fim de fazer a entrega do animal.
Três horas depois do almoço, Yared se despediu da sua mãe e pegou um coletivo
de regresso para o lar que estava se esforçando para constituir com Lorac.
Ele havia assumido todas as despesas do imóvel e das contas básicas fixas da
família. Lorac se encontrava impossibilitada de trabalhar em virtude do risco da
gestação. Sua posição naquela célula de núcleo familiar não era apenas de pai da criança
esperada, mas de esposo e dono de casa.
Já adentrando a noitinha, ainda no ônibus, o celular de Yared tocou. Era Lorac
procurando saber que horas ele iria voltar para casa. O linguista disse que já estava perto
da parada final e que iria comprar alguns itens para o jantar.
Assim que chegou em casa, ele foi até a cozinha e descarregou as compras e
enfiou elas em qualquer espaço vazio que conseguiu achar. Em seguida, colocou os
pães, manteiga, queijo e leite sobre a mesa e foi logo perguntando:
“Como foi lá na casa da sua amiga? Michael se adaptou bem?”
“Tudo tranquilo. Agora tô livre daquele sapeca.” – respondeu Lorac mostrando
satisfação e alívio.
Aquele fora um domingo tranquilo e produtivo. Yared tinha pago uma visita
atrasada a sua mãe e Lorac resolvido o problema do gatuno.

O golpe do falso sequestro

Yared assumira as despesas do apartamento de Lorac, desde aquela conversa em


que a artesã não opusera objeções em lhe pagar com peças artísticas em contrapartida
pelo dinheiro para o condomínio e a parcela de financiamento. Daí em diante, com uma

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certa folga financeira, os pais haviam matriculado Beth numa boa escola privada de um
bairro próximo do condomínio.
O suporte financeiro dado pelo empreendedor de idiomas a sua mulher estava
proporcionando algumas vantagens e benefícios para ela e para sua filha. O condomínio
residencial tinha piscina, parque infantil, brinquedoteca e facilidade de acesso. Era uma
morada moderna, limpa, confortável e segura. A pequena casa rústica do campo onde
Lorac morava antes da união estável com Yared nem de longe se comparava a esse
apartamento.
Dessa feita, o dinheiro da pensão paga pelo pai da criança podia ser de todo
usado para lhe proporcionar uma boa educação.
A menina fora matriculada em tempo integral. Ia para suas atividades
educacionais de manhã cedo e voltava à noitinha no transporte escolar.
Numa certa tarde, Lorac recebeu um telefonema do pai de Beth. Haviam ligado
para ele da escola com uma história bem inusitada e preocupante.
Algum estranho telefonara de um celular para a escola dizendo ser o tio Yared.
Disse também que a criança não retornaria para casa na van escolar, mas sim com o tio
Yared.
Por medida de segurança, o funcionário da secretaria deixou a pessoa esperando
na linha. Pegou o telefone fixo e foi checar aquela informação.
Ligou para o pai de Beth e obteve a resposta negativa. Yared não poderia ir
buscar sua filha, tendo em vista que ele ainda não havia sido identificado na diretoria da
escola para esse fim.
O secretário voltou para dar a resposta ao desconhecido que deixara esperando
na linha. Porém, o telefone tinha sido desligado. O cara tinha sumido.
Ao saber desse acontecimento sinistro e perigoso, Yared decidiu ir para a
delegacia com Lorac a fim de preencher um boletim de ocorrência.
“Quem poderia ter feito isso, Lorac? Isso é um crime. Esse filho da puta tá
pondo em risco a vida de uma criança e querendo me ferrar.”
Lorac mordeu os lábios, hesitou um pouco, olhou pensativamente por um
instante para Yared e falou:
“Suspeito do meu ex marido.”
“Ele mora com seu filho no mesmo bairro da escola da minha filha. E me
falaram que ele ficou sabendo que eu estou casada com um cara chamado Yared.”
“Que merda de história é essa, Lorac? Como esse babaca ficou sabendo meu
nome? Como ele ficou sabendo que sou chamado de Tio Yared pela pequena Beth? E
por que você acha que foi ele que se fez passar por mim?” – Yared estava furioso com
tudo aquilo.
Lorac não mostrou nenhuma mudança de expressão à medida que Yared falava.
Estava apática. Nem de longe demonstrou qualquer reação com as palavras do padrasto
da sua filha. Em tudo indiferente ao que fora dito, parecia que a tentativa de sequestro
fora uma cena de uma série policial da Netflix. E era de todo estranho pois era uma
situação da vida real de perigo potencial contra Beth.
Em contraste, o pai da menina, de forma alguma, tomou qualquer atitude mais
enérgica com relação ao que tinha acontecido. Ambos pai e mãe pareciam ter tido
conhecimento de algo sem importância. Estavam omissos naquele sequestro frustrado –
para o bem de todos. Paradoxalmente, o padrasto se mostrou o único preocupado e
proativo. Que mundo louco é esse?
Já na sede da delegacia e perguntada acerca do que tinha algum suspeito para
que a polícia desse início ao inquérito policial, Lorac respondeu:
“Não. Eu não tenho nenhum suspeito.”

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“Fiquem ligados. Sem dúvida nenhuma, esse suspeito queria prejudicar o Sr.
Yared. Essa foi a intenção desse malandro com esse crime.” – explicou o policial.
“A senhora tem certeza que não quer declarar nenhum suspeito? Algum
desafeto?” – desejou saber o agente.
“Não. Não tenho suspeito.” – confirmou mais uma vez a mãe da menina.
Tudo tinha sido tão rápido e confuso, não deixara a Yared tempo para pensar e
realizar por completo aquela trama – um dolo previamente calculado. Haviam usado de
astúcia para com ele. Havia ali a mente do diabo, que não se satisfaz com nada a não ser
a morte. E, por fim, aquele caso foi encerrado sem solução.
Yared levou a situação tão a sério que solicitou uma reunião extraordinária com
a direção da escola. O objetivo era se discutir a segurança dos alunos ao chegar e ao
sair, checagem mais rigorosa dos portadores e a colocação de um dispositivo de
identificação de chamadas na secretaria.
Yared compareceu juntamente com Lorac nesse encontro e participou
ativamente dando opiniões e ideias. Fora policial tempos atrás e sua contribuição foi
bem apreciada por todos os presentes.
Não obstante, aquele crime de modo algum foi desvendado. Restou apenas um
B.O. na gaveta de um agente policial numa agitada delegacia distrital da cidade.

“Se eles nascerem!”

Depois de um final de semana com seu pai na casa da sua madrasta, Beth, não
conseguindo omitir um fato novo que viera a saber, se aproximou timidamente da sua
mãe e de seu tio Yared. Olhou para eles e disse:
“Eu tenho um segredo!”
“Então conta. Vai!” – exigiu a genitora.
A criança sorriu abertamente para eles.
“Patrícia tá grávida. Ela tá esperando gêmeos mamãe.”
“Gêmeos?” – perguntou Yared, esboçando uma fisionomia mista de surpresa e
satisfação.
“Sim, tio Yared. Logo dois. E são dois meninos. Agora eu vou ganhar dois
irmãozinhos.” – Beth complementou animadamente.
Interveio a mãe, ressentida:
“Se eles nascerem!”
A pequena Beth nada entendeu daquele comentário da sua mãe. Yared, porém,
baixou a cabeça num protesto silencioso contra aquele mau agouro.

Desenhos, cartões e maquineta

“Eis o que buscou minha alma, sem encontrar: um homem incorruptível – entre 1.000, pude
encontrar um, mas não uma mulher, entre todas elas.” – Cohélet

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Lorac além de artesã, estilista, maquiadora, costureira e ter um diploma em
Recursos Humanos, também era uma grande desenhista.
Seus traços eram delicados, arredondados, curvilíneos e atrativos – como seu
próprio corpo – por assim dizer. Seu colorido era vivo, brilhante, cheio de vigor e
personalidade – diferentemente dos seus traços de caráter – se faz necessário frisar.
Numa certa manhã, Yared a viu concentrada num desenho de uma mocinha.
Estava de costas para o observador.
Cabelos muito longos. Seus fios negros e retos lhe caiam na altura da cintura.
Era uma gravura um tanto bucólica que retratava alguém em solidão.
A garota, completamente nua, estava imersa em contemplação. Tinha diante de
si a imensidão do azul do mar que se encontrava no longínquo horizonte com o também
azul infinito do firmamento.
“Muito lindo esse seu desenho, querida.” – elogiou o linguista.
“Obrigada. Preciso fazer muitos desses pôsteres. Quero vendê-los. Tô
precisando de dinheiro. Nossa filha ainda não tem nenhuma peça de enxoval. Ela vai
nascer daqui a alguns meses.” – reclamou ela num toque de cobrança.
“Não se preocupe. Nossa menininha terá tudo que precisar. Já pedi para a irmã
dela separar roupas e outros itens de bebê que ela não usa mais. Flor de Lótus vai ter
um rico enxoval.” – colocou o futuro pai assertivamente.
“Ah, onde estavam esses papeis de desenho? Eu nunca os vi antes por aqui.” –
perguntou Yared curioso.
“Caramba, Yared. Você também quer saber de tudo. Tim tim por tim tim.” –
reclamou mais uma vez a ruiva.
“Só fiquei curioso. Mas, não quer dizer, não diga. Tudo bem. Guarde seu
segredo.” – comentou ele esboçando um falso sorriso.

Faltavam poucos meses para a família receber seu novo membro. A futura
mamãe estava bem pesada. Com uns setenta e tantos quilos sua pressão tinha estado
alta, exigindo monitoramento constante. Yared comprara inclusive um aferidor de
pressão sanguínea para esse fim.
Sempre que podia, o dono da casa dava uma mão nas tarefas domésticas
incumbidas a ambos os cônjuges na lida do lar, além de cuidar de Beth. Aprontava seu
café da manhã, e ajudava a trocar o uniforme. Descia com ela para pegar a van escolar.
E fim de tarde quando descia para recebê-la na portaria.
À noite, após uns instantes do jantar, quando a pequena Beth já estava
cambaleando de sono, Yared a colocava para dormir contando suas estórias favoritas.
Invariavelmente, Pinóquio. Yared ficava imaginando se todas as pessoas tivessem a
mesma sina do boneco de madeira, e seus narizes crescessem com cada mentira. Mas
era assim que a vida funcionava na maioria das vezes.
Um dia, há alguns meses passados, no mês de março, Yared já tendo deixado a
criança na escola, entrara no condomínio e estava se dirigindo para o elevador quando
ouviu uma voz:
“Oi. Oi.”
Virou-se e avistou o pai de Beth em cima de uma motocicleta com uma caixa na
mão.
“Bom dia.” – respondeu o linguista.

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“Isso aqui é pra Lorac. Tem dois mil e quinhentos cartões de visita e uma
maquineta pra cartão de crédito e débito.” – explicou o playboyzinho lhe entregando a
encomenda.
“Ela sabe do que se trata?”
“Sim. Sim. Ela me pediu e eu tenho amigos na gráfica. Também sou
representante dessas máquinas. Entrega a ela, por favor.” – pediu o cara.
“Tudo bem, pode deixar. Obrigado.” – se despediu Yared, tomando o elevador e
subindo rumo ao seu apartamento.
Assim que o linguista abriu a porta, sua parceira perguntou apressadamente:
“O que é isso? O que é essa caixa?”
“Adivinha?!” – desafiou Yared.
“Não faço a mínima ideia. Nem posso ver através da caixa.” – justificou ela
furtivamente.
Yared com olhos estreitados e testa franzida foi direto e seco:
“Deixa de ser cínica, Lorac! Me diz aí como você pretende pagar essa máquina
a esse cara?”
A mulher baixou a cabeça, procurou palavras e respondeu:
“Ele facilitou o pagamento pra mim. Vou pagar em doze parcelas. E essa
maquineta vai ser muito útil.”
“Não vejo motivo pra essa ajuda aparentemente sem interesse desse fulano.
Aliás, você não tá trabalhando. Por enquanto não tá vendendo nada.”
“Mas, depois que a bebê nascer eu vou voltar à ativa e vou precisar da
maquineta para facilitar pra meus clientes. E os cartões eu vou guardar para distribuir
depois do parto.”
Yared não conseguindo concentrar o seu olhar e a sua atenção na interlocutora
pensou:
“Que justificativa mais esfarrapada!”
Todavia, para o bem da paz no lar, não pôs mais lenha naquela conversa já
inflamada. Aquilo poderia terminar numa discussão. Afinal das contas, Lorac estava
enfrentando uma gravidez de risco.
Yared não compreendia aquela forma que o playboyzinho ainda tratava sua ex
parceira. Ou era altruísta demais. Ou era desapegado demais. Ou era corno demais – o
típico cuckold dos filmes xvideos.
Porém, aquele era problema do cara. Ele estava focado unicamente em cuidar de
Lorac e deixar as coisas prontas para o parto de Flor de Lótus.
O que alguns cartões de visita e uma maquineta de cartão vendida
parceladamente tinha a ver com sua responsabilidade maior de ser chefe-de-família e
futuro pai?

“Quero o dinheiro da minha filha!”

“Dentro de um sistema existe uma ordem de precedência, de acordo com o início da vinculação
ao sistema. Porém, na sucessão dos sistemas, a família atual tem precedência sobre a anterior.” – Bert
Hellinger

Quando o avançar das semanas de gestação, e a aproximação do momento do


parto rumavam celeremente, Lorac se mostrava mais e mais nervosa. Apreensiva. E por
diversas vezes, até agressiva.

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Yared era um homem experiente no que dizia respeito a ser pai e companheiro
de uma mulher prenha. E ainda não tinha visto uma naquele estado de nervos nas
vésperas de ser mãe. Lorac se encontrava muito irrequieta, e parecia que o feto dava
sinais de agitação.
Sem sombra de dúvida, todo o período pré-parto exige muitíssimo de qualquer
mulher que seja. Todavia ele estava presente quase 24/7 ao lado da sua parceira. Todos
os seus caprichos eram atendidos. Seus desejos de gestante eram uma ordem. As
finanças da casa estavam sob controle. Até o enxoval da bebê já havia chegado. Sua
irmã havia separado os mais novos e melhores artigos dos sobrinhos de Flor de Lótus
para que ela viesse ao mundo com todo conforto possível.
A ser assim, Yared não entendia por inteiro aquele estado de ansiedade extrema.
Consumição. Falta de sossego. Um estresse que beirava o desespero.
Ele estava certo que estava fazendo sua parte. Não de uma forma perfeita, mas se
esforçava e procurava não deixar faltar nada para sua nova família. Não somente do
lado material, mas também do lado afetivo. Não obstante, parecia haver um vazio
insaciável na vida íntima de Lorac.
Um buraco negro emocional que nenhuma quantidade de luz de empatia e amor
no mundo conseguia preencher. Toda emanação positiva em sua direção era dragada e
arrastada para dentro daquela alma faminta de equilíbrio e paz interiores sem surtir
qualquer efeito mensurável.
Esse vazio existencial desperta uma ansiedade e uma neurose por falta de um
sentido de vida. Tem-se por consequência que a cada instante devemos preencher
significativamente a nossa vida.

Algum tempo após o início da gravidez da sua namorada, o pai de Beth


começara a reduzir as generosas contribuições que vinha fazendo para sua filha. A
grana começou a ficar curta, o que irritara Lorac sobremodo.
De quando em quando, ela tinha certos surtos de inveja e soltava uma avalanche
de críticas e insultos contra a madrasta da menina.
“Aquele idiota pensa que pode ir tirando as coisas de Beth só porque vai ter
outros filhos com aquela zinha, lá?” – esbravejou ela numa conversa com Yared.
“Não vou deixar isso acontecer não. Quero o dinheiro da minha filha!” – falou
veementemente, quase gritando.
“Você precisa entender e aceitar que a situação mudou, Lorac. O cara agora tá
tendo despesas extras. A gente vai ter uma menina. Eles lá vão ter dois meninos. São
gêmeos. Gastos dobrados.” – Yared tentou amenizar a situação, na vã esperança de
aplacar a ira da sua mulher para que ela não provocasse um aumento de pressão em si
mesma.
“Olha aqui Yared, eu não quero saber dessa historinha de tirar da minha filha
pra dar aos filhos que ele vai ter. Afinal, a responsabilidade dele é primeiro com Beth.”
– disse ela num tom amargo e rancoroso.
“Lorac, o cara agora vai ser pai novamente. Constituiu outra família. E
ninguém tem grana ilimitada. Seja razoável e aceite a realidade. Beth agora não é mais
a caçula dele. Vêm aí dois bebês.”
“Tô pouco me lixando pros filhos dele. Vou botar ele na justiça. Vai ter que
pagar a pensão alimentícia integral da minha filha. Não abro mão nem de um
centavo.” – declarou a ruiva febrilmente, com a voz trêmula de raiva.
92
Sob tais circunstâncias, Lorac começou a entrar em contato com suas amigas
para contratar um advogado que a representasse e processasse o playboyzinho perante o
direito de família.

11
Amor verdadeiro
“As pessoas que experimentam delírios de grandiosidade se veem como grandes, altamente
realizadas, mais importantes que outras, ou mesmo mágicas. A ilusão pode ser persistente, ou pode
aparecer apenas periodicamente.
Algumas pessoas com ilusões de grandeza também experimentam outras ilusões, tais como o
medo de perseguição ou crenças religiosas incomuns.
Entretanto, uma ilusão de grandeza é mais do que apenas uma autoestima muito alta ou um
senso inflado de auto importância. Ela marca uma desconexão significativa com o mundo real. Uma
pessoa com ilusões de grandeza pode continuar a acreditar na ilusão, apesar das evidências
contraditórias.” – Medical News Today

“Me senti uma celebridade!”

93
Y ared nunca tinha ouvido a palavra doula antes, até sua mulher lhe contar que
desejava ter um parto humanizado e para isso iria precisar da assistência de
uma.
“Uma o quê?” – o linguista cobrou mais esclarecimentos.
“Uma doula, meu rei. É uma parteira moderna, mas muito mais bem preparada
e treinada para ajudar a mulher a parir.” – explicou a mãe de Flor de Lótus.
“A associação vai realizar um encontro de doulas e gestantes essa semana. Eu
vou. Quem sabe eu já não escolha a minha?”
No dia agendado, Yared levou sua bojuda ruiva e lhe prometeu apanhá-la no fim
do evento. Ele, de forma alguma, a deixara viajar de transporte coletivo sozinha. Na
grande maioria das vezes Lorac só andava de carro.

À medida que a palestra para a mulherada se desdobrava, Lorac enviou algumas


mensagens de texto para seu parceiro. Uma acompanhada de uma foto onde ele leu:
“Tô fazendo sucesso!”
A fotografia exibia um rosto radiante de satisfação.
Era o pôr do sol quando o pai apaixonado foi buscar suas duas bonecas. Uma
dentro da outra, como aquela engenhosa peça russa – matrioska. Diminutivo do nome
matrena, que significa matrone ou Maria. Nessa montagem artística, a boneca maior é
chamada Mãe e a menor Semente.
De súbito, ele lembrou a advertência do seu irmão – ou melhor sua profecia:
“Cuidado pra que você mesmo não faça uma boneca nela!”
Bom, como santo de casa não faz milagres e o profeta não é aceito na sua
própria terra, Yared tinha desprezado as palavras do seu irmão, e de fato cumprido a
profecia. Tinha literalmente feito uma boneca na artista como previsto naquela noite no
casarão de arte.
Na viagem de volta, num ônibus, coisa rara de acontecer, Lorac veio
animadamente contando suas proezas no encontro.
“Meu rei, eles perguntaram quem gostaria de contar alguma experiência com
gestação ou parto.”
“Conte mais.” – insistiu ele com curiosidade.
“Eu me levantei e fui até a frente do pessoal. Mal tinha começado a falar. Perdi
o controle e comecei a chorar sem parar. Fui assistida pelo psicólogo que me abraçou
e me confortou.” – contou Lorac com satisfação.
“E aí?” – indagou Yared.
“Todo mundo aplaudiu e passaram o resto da palestra vindo me cumprimentar
e parabenizar. Me senti uma celebridade!” – disse a ruiva euforicamente.
Não era a primeira vez que Lorac havia roubado a cena numa reunião ou evento
social. Sentia um certo prazer em chamar a atenção para si.
Sem mais comentar nada, o casal silenciou e prosseguiu para casa.

A doula

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Um pouco antes do horário do jantar, o interfone soltou um som estridente como
se fosse uma daquelas sirenes de caminhão de bombeiro na corrida desesperada para
alguma ocorrência emergencial.
Lorac atendeu o chamado da portaria e confirmou. Deu autorização para a
pessoa entrar e se dirigir até seu apartamento.
“Quem foi, querida?” – perguntou Yared.
“Ah, é Agatha. Ela é a moça que te falei. A que escolhi pra ser minha doula.”
“Muito bom, então. Finalmente, vou ficar sabendo quem é essa doula e o que
ela faz.” – assentiu Yared balançando afirmativamente a cabeça.
A campainha tocou anunciando a chegada da mulher. Lorac se precipitou até a
porta para receber sua futura cuidadora de parturientes.
“Prazer. Lorac tem falado muito bem a seu respeito. Ficamos interessados em
saber mais acerca do seu trabalho. Vamos conversar. Pegue uma cadeira.” – a recebeu
cortesmente o anfitrião da casa.
“Obrigada. Eu e Lorac somos amigas de longas datas. Tô muito feliz em poder
ajudar vocês a ganharem sua bebê.” – interagiu a doula.
“Pelo que me contou, você tem estado muito estressada e ansiosa, certo
Lorac?” – quis saber Agatha.
“É sim. Ela tá parecendo uma pilha de nervos. E não sei exatamente o porquê,
pois tudo tá correndo muito bem. Ela até saiu da zona de risco de acordo com a
obstetra.” – explicou Yared.
“Então, minha amiga. Relaxa aí. Flor de Lótus vai nascer uma garotinha
saudável e feliz.” – encorajou a moça.
“Agatha, me parece que o problema com o ex dela a tem enervado demais. Ela
fica ligando pra o advogado todos os dias. Tá insegura e muito ansiosa.” – Yared foi
contando o quadro emocional da sua mulher.
“Amiga, amiga. Esse cara nunca gostou de você como companheiro, e nem
como amigo. Acho melhor você cortar contato com ele o quanto for possível.” –
aconselhou a doula, já exercendo sua função de terapeuta de gestante.
“Tá vendo aí, Lorac? Te falei. Esse playboyzinho é atraso de vida. Tá te
perturbando. Deixa a justiça resolver agora. Você já fez sua parte.” – comentou o
futuro papai.
Depois de mais alguns pormenores técnicos sobre a gestação e acertar o valor e a
forma de pagamento, Lorac serviu o jantar. Pai, mãe e madrinha comeram e
conversaram descontraidamente.
Os ponteiros do relógio tinham corrido rápido demais e já eram dez e tanta da
noite. Horário perigoso para se sair andando e pegar um ônibus naqueles arredores.
Yared se prontificou a levar a doula até a parada. Assim, fez. Ao longo do
caminho, Agatha foi contando algumas histórias de doulagem. Contou que sua avó fora
a primeira parteira da família. Aquela iniciativa abrira a senda para tantas outras
mulheres daquele clã.
Finalmente, o ônibus da moça chegou. O veículo parou e os dois se despediram
com uma mudra para o namastê.
Quando Yared entrou em casa, Lorac estava lavando louça na cozinha. Estava
num estado de humor tão contrariado que lhe era impossível disfarçar. Seu rosto, seu
semblante espelhava uma alma cheia de ciúmes, rancores e raiva.
“Que cara é essa, querida?” – perguntou o peace-maker.
“A que eu tenho. Qual é o problema?” – respondeu a grávida com uma voz
agressiva.

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“Santo Deus! O que houve? Tá sentindo alguma dor, enjoo, incômodo ou
alguma outra coisa?” – quis saber Yared.
“Não tenho nada, Yared. Deixa de encher meu saco. Sai daqui. Ah, antes me
diga: foram falando de mim até a parada, né?”
“Hã? Falando de você? Que doidice é essa? Eu, teu parceiro, e tua amiga
doula, falando de você? Acho que você precisa de um banho, uma massagem relaxante
sobre seu corpo e dentro dele também.” – comentou Yared esboçando um sorriso
malicioso.
“Tá bom. Vou pra o banheiro. Termina de lavar a louça pra mim?”
“Claro. Vai lá. E fica bem cheirosa. Prometo que vou caprichar na massagem.”
Quando Lorac saiu do banheiro, Yared já estava esperando por ela no quarto.
Como havia prometido, aplicou duas massagens na dançarina do ventre. Uma externa –
por sobre todo o corpo dela, e outra interna – massageando sua vulva com seu bastão
marrom vigoroso.
Lorac se levantou. Foi até o toilette. Tomou uma chuveirada. Yared pôde sentir
o aroma inebriante do sabonete líquido que ela sempre usava nesses banhos. Aquele
cheiro lhe provocou uma nova e forte ereção. Preparou-se para o segundo tempo
daquele delicioso jogo do sexo.
Ao voltar para o quarto, antes mesmo de vestir sua curtíssima camisola de seda,
e ainda embrulhada na sua felpuda toalha branca, mais parecendo um delicioso
McDonald a ser saborosamente degustado, a sarará perguntou:
“T...t...Tá, não falaram de mim, mas de que modo vocês se despediram
mesmo?” – perguntou ela nervosamente com a voz um tanto acanhada.
Yared brochou na hora. Seu bastão de massagem a base de músculos se
encolheu como uma bexiga que tem seu ar esvaziado.
E não podendo se segurar, soltou uma gargalhada estrepitosa em plena 2:00 da
madrugada. Depois de admirá-la por um instante, virou-se para o outro lado em silêncio
e adormeceu.

O advogado

“Alô! Sim, sou eu.” – disse Lorac ao atender o seu Samsung.


“Preciso entrar com uma ação de pensão alimentícia. Meu ex arrumou outra
mulher. Emprenhou a vadia com gêmeos e está deixando de dar as coisas pra minha
filha.” – explicou ao cara do outro lado da linha.
Depois de alguns detalhes ajustados, Yared falou:
“Deixa eu falar com ele.”
“Aqui é o esposo de Lorac. Meu nome é Yared. Pediria ao senhor que viesse
fazer seu atendimento aqui na nossa casa. Minha mulher tá grávida e tem problemas de
pressão. Pode ser?” – explicou ele.
Por isto, o advogado foi contratado como representante legal para defender os
interesses da pequena Beth.
Yared veio a saber que o patrono da sua esposa não somente era advogado, mas
também era psicólogo. Esse cara atuou nas duas áreas na assistência ao casal.
Quando a audiência estava bem próxima, o advogado, tendo percebido os
ânimos alterados do futuro pai e da futura mãe, aconselhou que tomassem um complexo
ansiolítico homeopático que era preparado numa farmácia de manipulação no centro da
cidade.
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O objetivo era auxiliar o casal a diminuir a ansiedade e o nervosismo à medida
que se aproximava a data da audiência na justiça.
“Sr. Yared, tenho notado a Sra. Lorac muito estressada, nervosa e ansiosa com
o processo em andamento. Arriscaria dizer inclusive que percebi ela um tanto dividida.
Meio hesitante.” – explicou o cara.
Yared, com o seu Motorola preso entre a orelha e seu ombro esquerdos –
ocupado digitando no PC – perguntou:
“Como assim doutor, poderia ser mais claro? Dividida? O que o senhor quis
dizer com isso?”
Já presenciei audiência em que o casal litigante brigou na sala. A mulher se
levantou, tacou um baita tapa na cara do ex parceiro na frente do juiz e saiu chorando
para a área externa do fórum.
“Puta merda! Que cena, hein?” – exclamou Yared.
“Saí da sala. Fui até ela. E fiquei pasmo. Vi um beijo de boca e língua que nem
Hollywood se digna de mostrar.”
“Não preciso dizer mais nada. A audiência terminou ali mesmo. Eu já tinha
recebido minha grana e fui embora.” – finalizou o advogado.

Ajuda para o enxoval

À medida que a trigésima quarta semana de gestação se aproximava, o casal se


empenhava em deixar todos os detalhes ajustados para o dia em que Flor de Lótus
resolvesse respirar nesse mundo aqui fora.
Yared já tinha ido a uma grande loja de móveis e escolheram um belo berço
branco para a bebê. Sua irmã além de ter lhe presenciado com muitas roupas, também
tinha lhe dado um carrinho seminovo, um sling azul e um Moisés.
Os futuros pais já tinham ido conhecer o hospital onde sua filhinha iria nascer, e
Lorac deixara a mala arrumada com todos os itens necessários. Para a recém-nascida,
para ela e para seu marido.
A doula visitava a família uma vez por mês. Aconselhava. Ensinava técnicas de
respiração. Aplicava massagem. Até agulhas de acupuntura Agatha utilizou para
melhorar o estado de saúde da sua paciente.
Certa manhã, Lorac mostrou algumas mensagens de texto que recebera da avó
de Beth.
“Olha aqui, Yared. A avó de Beth acabou de me mandar.”
“A mãe do playboyzinho? O que ela quer com você?”
“Ela tá oferecendo ajuda para o enxoval da nossa bebê.”
“Que coisa estranha é essa? Se a própria neta dela tem necessidade de algumas
coisas, por que raios essa mulher, que nunca se deu bem contigo tá oferecendo ajuda
pra minha filha?” – exasperou-se Yared.
“E eu sei lá! Sempre achei ela meio pirada e putona.”
Seu rosto tinha ficado sério e resoluto. E então, falou em voz alta quase
esbravejando:
“Diga àquela velhota que Flor de Lótus tem pai e não precisa de nada dela”.

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Aquela história da avó de Beth ter oferecido ajuda para o enxoval da nascitura
de modo algum ficou clara para Yared.

Plano de parto

No relacionamento com Lorac, Yared estava vivenciando um vasto espectro de


novas experiências. Uma prova para a sua inteligência emocional. Um teste para sua
paciência. Uma empreitada para os seus apelidos de peace-maker e Dalai Lama.
Depois da doula, ele agora iria aprender a elaborar um plano de parto para sua
companheira. Agatha lhe enviara o modelo via e-mail. Agora, o futuro genitor precisaria
conversar com a parturiente e adaptar segundo constasse nos objetivos, planos e
intenções dela.
Uma das seções desse planejamento exigia que se criasse uma rede de apoio. Ali
ficariam listadas todas as pessoas amigas, familiares e agentes da área de saúde que
pudessem efetivamente prestar assistência à parturiente e a sua família. Suas
informações de contato também deveriam ser adicionadas ao plano.
Em resultado disso, Yared, mesmo a contra gosto, precisou anotar os endereços
e telefones de algumas personas non gratas. O playboyzinho. A mãe do playboyzinho.
O pai do playboyzinho.
Todavia, para o bem da sua matrioska, ele fez o que tinha que ser feito. Depois
de várias reuniões com a futura mamãe, finalmente o plano de parto de Flor de Lótus
ficara pronto.
A linha de ação seria a seguinte: quando Lorac fosse levada para a maternidade,
Yared deveria entrar em contato com o pai de Beth para ficar com ela até sua mãe ter
alta e estar completamente restabelecida.
Também figurava na lista da rede de apoio o nome da irmã adotiva da
parturiente.
Mesmo tendo se passado décadas desde a época dos treinos de taekendô, elas
ainda não se davam bem. Sua comunicação era rara, quase inexistente. As poucas vezes
que tentaram contato foram através de Yared. Ele atuou como mediador. As mágoas,
rancores e ressentimentos do passado ainda estavam bem vivos. Elas viviam o assim
chamado triângulo dramático.

A senha do meu celular

Enfim, se completara o ciclo gestacional. Agora era uma questão de mais dias ou
menos dias. As expectativas do casal estavam elevadíssimas. Sua Flor de Lótus poderia
desabrochar a qualquer momento.
Numa manhã do mês previsto para o nascimento, Yared levou Lorac para a
última consulta de rotina com sua obstetra.
Ao pousar o estetoscópio sobre o peito da sua paciente, a médica olhou
seriamente para Yared e disse:
“Yared, vocês já têm o lugar certo para a bebê nascer?”
“Sim doutora, Temos. Inclusive já levei Lorac pra conhecer o hospital. É
especializado em atendimento da mulher.”

98
“Ela está com a pressão muito alta. Em razão disso, leve sua mulher hoje. E
tudo que não queremos é que se instale um quadro de pré-eclâmpsia. Entendeu?” –
falou gravemente a médica.
“Sim vou levá-la hoje. Vamos pra casa arrumar as malas, almoçamos e
seguiremos para a maternidade.” – assentiu Yared.
“Não, Yared. Você não entendeu direito. Lorac precisa ir agora. Vou preparar
a guia dela.” – esclareceu a obstetra.
Os futuros pais se entreolharam de certa forma assustados diante da gravidade da
orientação que haviam recebido inesperadamente.
A médica encerrou a consulta e entregou o prontuário para Yared. Saíram da
sala e Lorac pediu para ligar para sua doula. Conversaram por alguns segundos, e o
celular foi passado para Yared.
“Oi, Agatha. O que você acha? Devemos seguir daqui diretamente para a
maternidade ou esperar Lorac começar a sentir as contrações?”
“Obedeçam à médica. Leve sua mulher diretamente para o hospital. Vai ficar
tudo bem. Se ela ficar internada, me chame que eu irei de imediato.” – os tranquilizou a
doula.
Ao saírem do consultório da obstetra, Lorac ainda tentou dissuadir Yared a não
ir para a maternidade. Mas seu companheiro era um tanto espartano quanto ao
cumprimento de ordens.
“De jeito nenhum! Vamos agora mesmo para o hospital. Ponto final! Se você
for liberada, te levo de volta pra casa.” – falou ele decididamente.
No caminho para a maternidade, Yared começou a acionar a rede de apoio do
plano de parto. Primeiro da lista: o pai de Beth.
“Alô. Aqui é Yared. Lorac está indo para o hospital. Acreditamos que a irmã de
Beth vá nascer entre hoje e amanhã. Você precisa pegá-la na escola e ficar com ela
alguns dias. Tudo como combinado antes. Ok?”
“Oi. Tudo bem. Pode deixar. Pego ela na largada e fico com ela até Lorac estar
de volta. Sem problemas.”
“Ok. Muito obrigado.” – agradeceu o peace-maker.

Chegaram na maternidade. Dirigiram-se ao balcão de atendimento. Aguardaram


o nome e a sala de Lorac serem exibidos no telão colorido e falante que ficava na frente
dos bancos de espera.
Depois de alguns minutos de expectativa.
“Sra. Lorac, sala 3.” – ecoou o som de uma voz robótica feminina. Mais uma
chamada. Yared pegou na mão direita da sua mulher e a levou para a equipe de triagem.
“Sra. Lorac, sua pressão arterial está bem alta. Vou preencher sua guia de
internamento. Vamos para a sala de medicamento e repouso.”
Havia chegado o dia de Flor de Lótus sair da sua vida intrauterina e vir para o
mundo exterior para respirar com seus próprios pulmões.
“Vou precisar ir em casa pegar a mala com nossas coisas. Volto imediatamente.
Você estará bem. Já está na maternidade aos cuidados da equipe de plantão.” – falou
Yared, tranquilizando sua parceira.
“Tá certo. Não demora. Tá?” – pediu-lhe Lorac.
Yared se inclinou um pouco para frente, beijou a testa da sua parceira e saiu do
quarto.

99
No trajeto para pegar a mala, ele ligou para Agatha. Avisou-a do internamento
da sua paciente. A doula o acalmou acerca da situação e disse que estaria indo para o
hospital assim que terminasse um atendimento. Estava ajudando outra mulher a parir.
Sua nobre missão.
Já tarde da noite, o obstetra plantonista veio até o quarto. Estava com o
prontuário de Lorac na mão. Fez uma auscultação e foi logo falando:
“A senhora não tem condições de ter um parto normal. Vou preparar minha
equipe. Não quero levar a senhora para o bloco cirúrgico numa emergência.” –
explicou ele.
Mirou Yared e perguntou:
“O senhor vai assistir o parto?”
“Sim, vou.”
“Dirija-se à antessala de cirurgia para trocar de roupa e para os
procedimentos de higienização.” – determinou o médico.
Antes de sair, Lorac o chamou e pediu:
“Fique com meu celular. A senha é: AMORVERDADEIRO.”
Yared ficou com o aparelho de sua mulher e saiu do quarto para se preparar para
ver sua filha vir ao mundo.

100
Parte 4

Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará


Capítulos 12-15
Θ CAPÍTULO 12 – Amor incondicional
o “Bem-aventurança espiritual para você!”
o “Amo-te com todas as forças do meu coração!”
Θ CAPÍTULO 13 – Retrato do narcisista
o Narciso, teu espelho quebrou
o Fúria vulcânica
Θ CAPÍTULO 14 – Nada fica oculto
o Fatídico telefonema
o Verdade impalatável
o A máscara que cai
Θ CAPÍTULO 15 – Guerra jurídica
o “Te encontro nos tribunais!”

101
o Ao inimigo, a Lei
o A pandemia

12
Amor incondicional
“O amor também precisa de uma ordem, para que possa se desenvolver. Essa ordem nos é
preestabelecida. Somente quando sabemos algo sobre as ordens do amor é que podemos superar os
obstáculos que, apesar da boa vontade de todos os envolvidos, muitas vezes se colocam no nosso
caminho.” – Bert Hellinger

“Bem-aventurança espiritual para você!”

E xatamente 10:35 da noite. O obstetra anuncia que vai retirar a bebê de dentro do
útero da mãe. Ela agora iria respirar, pela primeira vez, com a força de seus
próprios pulmões.
Yared estava com a câmera do seu Motorola apontada para o centro da mesa de
cirurgia. Estava pronto para registrar o primeiro click da sua filha.
“Olha ela aí!” – falou o médico entusiasmado.
Sem perder tempo, o pai apertou o botão “foto”. Havia um silêncio ensurdecedor
reinando naquela sala. Em razão disso, se ouviu nitidamente o estalido do celular.
O aparelhou gravou a imagem de uma linda bebê. Toda lambuzada pelo líquido
amniótico e enodoada pelos resquícios de placenta, oriundos do seu ex-habitat,
grudados ao longo daquele corpinho, Flor de Lótus foi sacada ao mundo exterior como
um porquinho ensebado.
Momento único e indescritível. Avistou-se um novo ser vindo à luz.
“Deus te abençoe imensamente minha filha! Bem-aventurança espiritual para
você!” – ecoou a oração proferida pelo pai dando as boas-vindas a sua filha.
Flor de Lótus, como estreante da vida, sentiu quão desconfortável é o mundo
aqui fora. E explodiu num forte e audível choro ouvido por todos naquele bloco
cirúrgico. Naquela sala de operações esterilizada. Naquele verdadeiro portal conectando
dois mundos.
Naquele exato momento, se encerrava o ciclo de formação na zona de conforto
uterina da filhinha de Yared. Ela agora surgia para receber um CPF. Receber um nome
oficial no cartório de registro de pessoas naturais. Aumentar a estatística do IBGE.
Começar sua jornada existencial.

102
“Agora o senhor pode sair da sala de cirurgia Sr. Yared.” – orientou a pediatra.
Essa médica havia pesado, medido e embrulhado a recém-nascida num lençol
verde oliva com as insígnias do hospital. Depois a levou até a mãe envolta em cobertas
e anestesiada. O pai registrou o instante – rostos da matrioska bem juntinhos, quase
colados, num instantâneo memorável.
“Vamos primeiro finalizar a cesariana. Depois, deixá-la em observação por
cerca de uma hora. Feito isso, a mãe e a bebê vão para o quarto. Aí o senhor poderá
vê-las e ficar internado junto com elas.” – completou a médica.

Aproximadamente meia hora havia se passado desde a cirurgia. Yared


estava imerso em pensamentos sobre sua paternidade que se dera enquanto cinquentão –
meio século de vida. Quem diria, hein?! Na sua mente, até ontem parecia ser um
adolescente.
Ponderava aquela nova realidade auspiciosa. Porém, não de fato planejada.
Tentava avaliar, fazer o balanço de quais seriam todos os prós e os contra. Os bônus e
os ônus envolvidos com a chegada da bebê – a caçula da família.
Duas décadas já havia se passado desde que sentira a última emoção de ser pai.
E aquela então bebê, tinha presentemente vinte e tantos anos e já lhe dera dois netos.
Agora, mais uma vez, sentia a felicidade, a benção, a honra e o privilégio de
poder ser sócio com o Criador na formação de mais um ser.

Até que... os seus pensamentos foram interrompidos pelo telefone, e o tirou


daquele devaneio reflexivo, daquele sono acordado. O aparelho estremeceu no bolso da
sua calça várias vezes antes que ele o atendesse.
Pensou:
“Quem diabos ligaria a essa hora?”
Olhou para a tela e viu que o identificador de chamadas revelava quem estava do
outro lado da linha tão tarde da noite numa ocasião tão especial e única.
Era a mãe do playboyzinho numa mensagem de texto:
“Olá! Ela já nasceu?”
“Sim. É uma linda menina!” – digitou com satisfação o pai orgulhoso.
“Manda uma foto dela, por favor.” – pediu a mulher.
Yared navegou pelos seus arquivos de fotos recém salvos. Escolheu três
melhores. E postou as fotografias de Flor de Lótus para a velhota intrometida.
“Ela é bonitinha.” – digitou sem graça a avó de Beth. Tendo sua mórbida
curiosidade satisfeita, saiu do aplicativo de mensagens sem dizer mais nada.

“Amo-te com todas as forças do meu coração!”

103
Os pais e a recém-nascida permaneceram internados por mais seis dias. Um
tempo além do usual para o mesmo tipo de parto. É que a mãe ainda apresentava
episódios de pressão arterial elevada, e a equipe médica julgou necessário sua
permanência na maternidade até seu restabelecimento total.
Nesse ínterim, Yared aproveitava ao máximo o tempo, procurando viver
integralmente cada momento naquele hospital, estando focado em conhecer melhor os
seus serviços prestados e, na medida do possível, ajudar com a filhinha recém-nascida.
Até fez um curso relâmpago: Como Dar Banho em Bebês com a enfermeira chefe.
Orgulhosamente telefonou para o irmão e lhe contou que havia tirado nota dez.

“Quem tem um `porque´ enfrenta qualquer `como´. Tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto
uma coisa: a liberdade de escolher sua atitude em qualquer circunstância da vida.” – Viktor Frankl

Por fim, Lorac, Flor de Lótus e Yared receberam alta. Era um belo dia de
domingo e o sol brilhava forte.
Por volta das duas horas da tarde, o pai chamou um Uber para a família regressar
para casa. Embarcaram no carro e partiram para seu lar, doce lar.
“Vá com bastante cuidado meu amigo.” – advertiu Yared.
“Nossa princesa Flor de Lótus tá a bordo. É a sua primeira viagem.” –
acrescentou orgulhosamente.

O apartamento 105 do bloco Pine Tree daquele enorme e superpovoado


condomínio recebia uma moradora a mais. Uma bela flor que havia desabrochado
mesmo no pântano do triângulo dramático dos seus emaranhamentos familiares. Seu
nome não poderia ser mais apropriado – Flor de Lótus.

A flor de lótus é uma planta aquática que floresce sobre a água e uma das curiosidades é que
durante a noite as suas pétalas se fecham e a flor submerge. Com os primeiros raios de sol, a flor de lótus
reaparece sobre a água e abre as suas pétalas novamente.

O efeito borboleta

Aquela bela menininha se tornara uma viçosa e perfumada flor no jardim de


Yared, enquanto que o relacionamento afetivo dos seus pais parecia mais um tórrido

104
deserto, castigado pelos abrasantes dardos da crítica, da desvalorização e da
agressividade.
Yared, muitas vezes, refletia, pensando consigo mesmo:
“Eu posso ter afetado o futuro...não, é certo que eu realmente afetei o futuro.”
Daquela dança dos sete véus, a vida de tantas pessoas tinha sido alterada. Para
ser realista, em certo sentido, o futuro tinha sido mudado. Como enuncia a bela
metáfora chamada de o Efeito Borboleta: “O simples bater de asas de uma borboleta
no Brasil pode ocasionar um tornado na Irlanda.” – país das bruxas e do povo ruivo.
O playboyzinho tinha se libertado da relação tóxica com Lorac, e tinha
encontrado uma parceira mais equilibrada, a qual levava a vida de uma mãe solo com
um filho menor de idade. Essa, por sua vez, se beneficiou com o casamento, saindo da
solidão e dando um padrasto à criança, além de se tornar mãe de dois lindos meninos.
Beth ganhou mais três irmãos além de Flor de Lótus - dois meio-irmãos e um irmão
adotivo, com o qual ela se dava muito bem. Os pais do playboyzinho foram abençoados
com netos gêmeos – agora os caçulas da família – que os encheram de alegria e orgulho.
Yared, por sua vez, teve novamente a felicidade de se tornar pai numa fase da vida já
ultrapassando a meia-idade. E finalmente, Lorac, também recebeu seu bônus. Tornou-se
mãe de sua segunda filha, e muito provavelmente a última, ganhando assim mais uma
oportunidade de exercer sua função materna e desenvolver todas as qualidades inerentes
a ela.
Sim, realmente. Todos eles também afetarão o futuro. Que poder tem a união de
um homem com uma mulher, hein?! A união de um ínfimo espermatozoide com um
minúsculo óvulo pode ter resultados maiores que o conhecido Efeito Borboleta. Não é
de admirar que tantas culturas e tantas religiões protejam sobremaneira o ato sexual e o
revistam com o manto da pureza e santidade.
Em suma, um tornado passa, mas as vidas humanas e seus legados com todas
suas nuances de relacionamentos, feitos, desfeitos, amores, desamores, dores, alegrias,
tristezas, fracassos e sucessos jamais passarão!

À parte da amamentação, o pai ajudava a genitora com todos os cuidados


necessários para o bem-estar da criancinha.
Numa dentre as inúmeras noites em que caminhava com a bebê no braço pelo
corredor do prédio – cantando Hallelujah de Leonard Coher ou If you´re happy and you
know it – para que ela adormecesse, Yared expressou seus mais profundos sentimentos
pela filha. Num tom bem baixinho, suave, quase inaudível, sussurrando apenas para si
mesmo:
“Amo-te com todas as forças do meu coração!”

13

105
Retrato do narcisista
“Os narcisistas apresentam várias combinações de ambição intensa, fantasias de grandeza,
sentimentos de inferioridade e excessiva dependência da admiração e aprovação externas. Também são
características desse quadro a incerteza crônica e a insatisfação consigo mesmos, exploração e
desumanidade conscientes e inconscientes em relação aos outros.” – Otto Kernberg

Narciso, teu espelho quebrou

Já se passara seis meses que Lorac colocara um saco de lixo na cozinha para um
descarte futuro ainda permanecia no mesmo lugar.
Um saco azul. Um recipiente meio translúcido e fino daqueles que se compra na
seção de limpeza doméstica nos supermercados. Estava praticamente entupido até à
boca. Seu conteúdo? Centenas de pedacinhos picotados de fotografias. A cabelo ruivo
acobreado havia rasgado lembranças do seu passado registradas num punhado de álbuns
da época em que fora casada com o pedófilo sexagenário.
Era uma extensa coleção de fotos eróticas que fariam as mais famosas modelos
da Playboy ou da Penthouse morrer de inveja.
Álbum de strip-tease numa praia semideserta. Álbuns de ensaios fotográficos em
casas especialmente alugadas para as sessões de make-up. E sabe Deus mais para o quê.
Álbuns em diversas cidades e motéis diferentes. Encontravam-se fotos, poses e
exibicionismo para todos os gostos, fetiches e taras. Ainda que pudesse ser lido FOTOS
CONFIDENCIAIS na parte superior dos álbuns escrito com uma caligrafia feminina,
melhor título seria GALERIA PARA SWINGERS.
Yared, involuntariamente, havia esbarrado numa sacola dos pertences da
namorada. Aquela parafernália havia sido trazida pelo playboyzinho lá da casa de
campo afastada. A sacola estava tão abarrotada de fotografias que quando foi ao chão,
algumas delas voaram para o lado de fora aterrissando sobre os pés do linguista.
Yared pegou a sacola e deu uma olhada em alguns daqueles álbuns com
surpresa. Todavia, por se tratar da vida privada de uma pessoa num relacionamento
muito antes de o conhecer, ele não valorizara aquela descoberta.
No entanto, achou bem estranho. Um tanto insólito. O cara era um sexagenário.
Ocupava um cargo de autoridade eclesiástica numa igreja conhecida no centro da
cidade.
Com trinta e quatro anos a mais que Lorac poderia aproveitar seu tempo livre
para um lazer mais sadio, ao invés de ficar expondo a exuberância e a beleza do corpo
da sua mulher em fotos fesceninas e licenciosas. Já a tinha para si, por que expô-la
daquela forma tão barata? Ou obtinha algum outro tipo de lucro com aquilo?
Yared lembrou do emblemático escândalo envolvendo um famoso líder religioso
reputado John of God, denunciado e preso por crimes desde estupros de menores,
poligamia, abuso sexual das fieis, charlatanismo, contrabando e tráfico de drogas,
lavagem de dinheiro e porte ilegal de armas. Que ironia!
Por certo que os casais têm seus segredos. Seus momentos confidenciais.
Fantasias sexuais. E alguns até gostam de apimentar sua vida íntima com práticas não
convencionais.
No entanto, aquele sem-fim de fotografias, aquele leque de variedades de lugares
e ensaios, bem como aquela qualidade das imagens insinuavam algo mais do que apenas
uma curtição entre cônjuges.

106
“Em minha opinião, o distúrbio básico na personalidade narcisista é claramente a negação de
sentimento. Eu definiria o narcisista como uma pessoa cujo comportamento não é motivado pelo
sentimento. Mas, ainda assim, subsiste a interrogação: Por que é que alguém opta por negar o
sentimento?” – Alexander Lowen

Fúria vulcânica

“Yared, vai jogar o lixo da casa fora. Não podemos deixar acumular.
Precisamos evitar baratas e ratos.” – exigiu Lorac.
“Não. Não vou. Só jogo o lixo fora agora quando você limpar nossa casa dessa
baixaria picotada. Ponto final! E se livrar desse resto de pornografia picada. Há meses
que você enrola e não se desfaz dessa merda toda.” – esbravejou Yared queimando de
indignação.
“Deixa de ser chato Yared. Já te disse vezes e vezes seguidas que vou levar pra
minha casa de campo e queimar debaixo de uma árvore. Vou fazer um ritual.” –
justificou a bruxinha de cabelo vermelho.
Seu rosto estava sombrio de ódio e perguntou num tom exasperado agora:
“Então você está tentando me irritar até a morte?”
“Ritual porra nenhuma!” – contestou o linguista incomodado.
“Já disse. Só boto a droga desse lixo fora quando você limpar nossa casa dessa
sacanagem picotada. Ponto final!” – retrucou veementemente.
Ao terminar as últimas palavras, Yared presenciou uma súbita e descomunal
transformação nas feições da sua mulher.
De súbito, ele viu com seus próprios olhos uma bela se transformar numa fera
em questão de segundos.
O rosto da mulher ficou completamente avermelhado, transtornado,
transfigurado. Seus olhos mudaram de cor.
Ele testemunhou uma negritude nunca vista antes – nem em Lorac, nem em
ninguém mais. Seu colo ficou escarlate. Ela começou a espumar como um touro
raivoso. Seus punhos se cerraram. Aquilo parecia uma possessão demoníaca.
A ex-usuária de drogas pegou os sacos de lixo da cozinha, com exceção do saco
azul com pedaços dos seus ensaios fotográficos nus, deu um solavanco brutal para
frente e correu em direção ao dormitório do casal. Jogou aquela sujeira toda sobre a
cama. Com um berro arrancado do fundo das entranhas, ameaçou Yared com uma voz
esganiçada:
“Vou te matar! Vou te esfaquear!”
Disparou para o quarto das crianças. Arremessou no chão o quê encontrava pela
frente. Pulou para cima da cama de Beth. Num acesso fervendo de raiva e dor,
esperneava como uma criança numa crise de birra. Suas pernas ficaram balançando
freneticamente no ar enquanto ela socava o colchão com os dois pulsos fechados.
“Meu Deus! Eu tive uma filha com meu inimigo!” – o rogo dessa praga ressoou
dentro daqueles 35 metros quadrados como o barulho ensurdecedor de uma avalanche
de pedras e lama descendo monte abaixo.
“Vou te matar! Vou matar ele! Vou matar todos os homens!”

107
As ameaças de Lorac foram feitas aos brados misturados com engasgos, soluços
e lágrimas. Yared guardou aquela lembrança imperecível nos ouvidos e no coração.
Qual teria sido a mulher raivosa do sistema familiar da ruiva que ela estava
imitando? Era uma raiva reprimida que adotara. Estava atolada até o pescoço numa
dinâmica típica de dupla transferência. Com quem ela estava identificada?
Correu para o banheiro desesperadamente, aos tropeções. Seu movimento foi tão
brusco e descoordenado que bateu com a cabeça na porta. Curvou-se de forma
desajeitada e pegou a pedra de mármore branco de formato irregular que a segurava
como contrapeso. Atirou aquele seixo pesado contra o espelho do armário, espatifando-
o em centenas de estilhaços pontiagudos de todos os tamanhos e formas. Os cacos
cortantes encheram o toilette e alguns foram parar na sala-de-estar, com outros se
enfiando por debaixo do sofá, fogão e geladeira.
Completamente exaurida, sem forças, desenergizada e desorientada, parou de se
debater e sucumbiu numa crise de choro incontrolável.
Yared aguardou cerca de dez minutos. Entrou no quarto, e ao fixar os olhos
atentamente na sua mulher, se compadeceu ao ver aquela mesma bela ruiva dos
primeiros encontros completamente transtornada: primeiro, num monstro colérico de
força descomunal para seu gênero e tamanho, e em instantes depois, decorrente dos
acessos de confusão mental, num farrapo humano emocionalmente surtado.
Foi até à cozinha com o máximo cuidado para não pisar num daqueles
fragmentos cortantes. Colocou um pouco de açúcar num copo d’água e levou até sua
parceira combalida. Lorac verteu um pouco do líquido garganta abaixo. Suspirou
profundamente.
Uma aparência mais humana começou a retornar em seu rosto. Pediu perdão
humildemente com o rosto lavado de lágrimas. Agradeceu. E desabou em soluços
convulsivos como se fosse uma criança desamparada. Lágrimas escorriam como água
de seus olhos.
Um pouco recuperada, começou a narrar:
“Isso já aconteceu comigo antes quando eu tava com o meu ex-marido. Tive
uma crise e quebrei tudo dentro de casa. Ele teve de pedir ajuda. Precisou de dois
homens pra me controlar. Fizeram até oração na minha cabeça. Um deles, o mais
velho e líder do grupo, disse que eu tava possuída.”

Aquele surto de raiva incontida de Lorac expresso numa transformação


avassaladora da sua aparência física e psicológica deixara Yared completamente
pasmado e muito preocupado diante do comportamento da sua mulher.
Afinal de contas, ela havia se transmutado de uma pessoa comum, embora
caprichosa e intragável por vezes, num potencial “serial killer” desde que a
oportunidade para tanto a permitisse.
Ainda que seu coração doesse pela sua mulher, de agora em diante, ele tinha de
estar muito mais atento para qualquer gatilho que pudesse disparar aquele quadro
horrendo de agressividade. Violência verbal. E física. Deveria cuidar também quanto às
providências a ser tomadas para se assegurar de que a integridade física e psicológica da
bebê, a sua própria e a de Lorac fossem preservadas.
Porque o que pareceu naquela ação colérica descontrolada é que Lorac estava
por completo sob o jugo de seus impulsos mais primitivos – perdera seu domínio
próprio. E isso é sempre extremamente perigoso em qualquer circunstância.

108
“Da próxima vez que você enlouquecer daquela maneira, eu vou fotografar ou
filmar para pedir ajuda. Também vou chamar algum vizinho.” – disse Yared a sua
companheira num tom que não admitia oposição.
Lorac ouviu aquela repreensão emudecida – de uma forma que jamais havia
feito antes e que sequer Yared poderia imaginar. Coisa rara ou completamente
inexistente quando se tratava de crítica a algo de errado que tivesse feito. Todavia, não
teve qualquer contra-argumento diante dos fatos que tinha acabado de vivenciar.
Cabisbaixa se retirou da sala. E seguiu quase cambaleando direto para o quarto.
A mulher agora endoidara com certeza; nem ela mesma tinha consciência da
extensão dessa insanidade toda, mas ficou deveras assombrada por não ter ninguém a
quem recorrer para confortá-la.
Ele e ela não conseguiam mais dividir o mesmo espaço, não conseguiam sequer
olhar nos olhos um do outro.

14
Nada fica oculto
“Para tudo existe uma época determinada, e para cada acontecimento há um tempo apropriado
sob os céus:
um tempo para nascer e outro para morrer,
um tempo para plantar e outro para erradicar,
um tempo para exterminar e outro para curar,
um tempo para destruir e outro para construir,
um tempo para chorar e outro para sorrir,
um tempo para lamentar e outro para dançar,
um tempo para jogar pedras e outro para juntá-las,
um tempo para abraçar e outro para se afastar,
um tempo para buscar e outro para abandonar,

109
um tempo para guardar e outro para jogar fora,
um tempo para rasgar e outro para cozer,
um tempo para manter oculto e outro para revelar,
um tempo para amar e outro para odiar,
um tempo para a guerra e outro para a paz.
- Cohélet

Fatídico telefonema

Ainda era bem cedo da manhã, quando o celular de Yared tocou alto.
“Alô! Tudo bem doutor? – falou Yared ao atender seu Motorola.
“Sr. Yared, você está em casa?” – perguntou o advogado do outro lado da linha
com uma voz precipitada.
“Sim, doutor. Algum problema no processo de Lorac? Quer falar com ela?”
“Não. Preciso falar com você. Coisa importante. Mas, não pode ser com você
em casa. Se puder me ligar de volta o mais breve possível, de algum lugar aí perto, tipo
shopping ou galeria?” – pediu um tanto nervoso o patrono de Lorac.
“Sim, vou dar uma saída e te ligo em seguida.” – combinou Yared.
Qual seria o objetivo daquele telefonema? Afinal de contas, Yared não tinha
qualquer ligação mais próxima com o advogado, exceto por estar acompanhando a ação
de pensão alimentícia de Beth.
“Quem foi, meu rei?” – inquiriu curiosamente a sarará.
“Teu advogado.” – respondeu o linguista.
“O que ele queria? Falei com ele ainda ontem, e estamos esperando o pai de
Beth ser intimado. Tem alguma novidade?”
“Não. Nada de novo. Ele só me cobrou a parcela do mês que está atrasada.”
“Já tá cobrando?” – perguntou ela.
“Não, minha querida. Ele só perguntou qual era a minha previsão para o
pagamento. Normal. Tranquilo. O cara é bem-educado.” – explicou Yared.
Com o pretexto de sacar cem reais na máquina de autoatendimento 24hs mais
próxima, Yared disse que iria dar uma saída ficando fora por cerca de trinta minutos ou
uma hora.
Assim que adentrou o shopping, Yared sacou seu telefone do bolso, e apertou a
tecla para retornar à ligação do advogado.
“Olá. Sr. Yared. Não está mais em casa, certo?”
“Não, vim para o shopping mais perto pra gente conversar. Há alguma coisa
que queira me dizer? Do que se trata?” – Yared perguntou a nu.
“Bem, é um assunto delicado e sério. Mas, me sinto na obrigação de lhe falar.
Tenho o senhor em alta estima e consideração. Como homem, penso que é a coisa certa
a fazer.” – o agente do Direito hesitou como se escolhesse as palavras cuidadosamente.
“Ok, mas poderia falar o que é?” – Yared de curioso, passou a se sentir
apreensivo. Um tanto ansioso.
Nesse ponto, o advogado prosseguiu cautelosamente:
“Bemmm, é que...É o seguinte: consta na família do pai de Beth que Flor de
Lótus seria filha dele e não sua.”
De pronto, Yared arqueou as sobrancelhas, abriu bem os olhos e baixou o
queixo, com sua cabeça bem erguida e sentiu com se tivesse sido desfechado um soco
na boca do seu estômago.
Seu plexo solar – parte do organismo sede das emoções – acabara de ter que
lidar com um trauma: evento superlativo que subjuga a capacidade do cérebro de
gerenciar os pensamentos e emoções de algum evento avassalador.

110
“Vá com calma, doutor! Que porra é essa?! De onde saiu essa história toda?” –
Yared perguntou indignadamente.
“Depois da audiência da pensão alimentícia, a advogada da outra parte me
ligou e me contou. Ela é uma amiga muito antiga do ex casal e quase parente da
família dele.” – esclareceu em miúdos o advogado-psicólogo.
“Na minha última visita a sua casa, vi o senhor com uma aparência esquálida.
Muito magro. Com feições de sofrimento. Deprimido. Apresentava sinais graves de
abalo emocional. Identifiquei que eram males da alma. Não esqueça também que sou
da área da saúde mental.” – disse o patrono de Lorac.
Ainda acrescentou instrutivamente:
“Aprendi na faculdade com um certo autor chamado Spurgeon que – o
problema da alma é a alma do problema.”
Yared fora completamente tomado de surpresa diante daquela revelação
gravíssima contra sua mulher. Aquilo envolvia não somente sua dignidade pessoal e
reputação, mas também o patrimônio moral da sua filha recém-nascida estava em jogo.
Ele tremeu só de pensar nas sequelas flagelantes advindas com o espalhamento daquela
notícia. Ele por certo seria publicamente insultado, envergonhado e desonrado.
Por ter prescindido os sinais de alerta – as red flags – que já tinha percebido, por
intuição, agora estava sendo obrigado a aceitar as informações de segunda mão do
advogado.
De imediato, em seu cérebro confuso não sabia o que fazer. Resolveu pensar e
decidir ao longo do caminho de volta para casa.
Precisava de tempo suficiente para silenciar sua mente barulhenta que não
parava de falar acerca do que ele precisava fazer, como fazer e o que estava errado
naquilo tudo.
Porém, uma certeza ele tinha. Seria uma verdade dura demais para encarar.
Nesse momento procurou racionalizar. E a verdade é como o óleo na água, está sempre
em sobreposição. Tem-se por consequência que qualquer que fosse ela, viria à tona.
Também pensou:
- Aquilo não seria uma trama maquiavélica daquela advogada velhaca?
Não era possível que Lorac o tivesse traído e engravidado do playboyzinho nas
suas fuças. Depois jogado toda a droga do lixo para debaixo do tapete, acreditando que
fora um crime perfeito.
Yared se recusava a acreditar que aquela revelação fosse autêntica.
Mas, desconsiderar essa realidade seria o mesmo que dizer que ele estava
alimentando alguma doidice. A multiplicidade das informações recebidas e colhidas no
decorrer daquele relacionamento apontavam para um diagnóstico. Um veredicto. Uma
conclusão final.
Estava a ponto de descobrir toda aquela rede de enganos, pondo a claro todos os
detalhes da farsa, não deixando persistir uma sombra sequer de dúvida.
- E as contas da menstruação, gravidez, ultrassonografia?
Todos os dados apontavam a concepção de Flor de Lótus para a noite da
performance da dança do ventre.
- E agora? Em contraste com isso, como uma pessoa iria inventar toda essa
história do nada?
E tem mais, em alguma parte nos recessos profundos da sua mente pairavam as
perguntas:
- E a ajuda para o enxoval oferecida pela avó de Beth?
- E os desenhos, cartões de visita e maquineta de cartão de crédito e débito?
- E o pedido para ver a foto da recém-nascida na mesma noite do parto?

111
- E aquele excesso de nervosismo, estresse e desmesurado desespero de Lorac
às vésperas de ir para a maternidade?
- E aquela parafernália toda trazida da outra casa para o apartamento?
Como um raio cortando o horizonte depois do barulho ensurdecedor do trovão,
Yared uniu os pontos. Ele estava reunindo todas as coisas em uma. Percebeu
subitamente a teia da realidade. E viu um quadro estarrecedor de robustas evidências
formado bem diante da sua tela mental. Ele não podia jogar tudo no fundo da mente e
relegar ao limbo de assuntos irrelevantes.
Lorac jamais havia se separado de fato do playboyzinho!
Repentinamente se lembrou de um comentário que a pequena Beth havia feito na
mesa do café da manhã certo dia:
“Mamãe tá separada de papai por fora, mas ainda tá casada com ele por
dentro!”
Aquela expressão da criança pareceu uma piada naquele momento. Uma
bobagem infantil. Um certo desejo inconsciente de que seus pais jamais tivessem se
separado. Mas, Yared devia ter em mente que, agora parecia coerente com a realidade.
Lorac vivia uma vida dupla. Manipulava dois homens ao mesmo tempo. A
risada estridente do “gato de Schröndiger” fazia o maior sentido. Sua cabeça estava
começando a zumbir com todas essas suposições.
Isso já se passara antes quando ela atraíra o velho pedófilo novamente quando
precisou dele para começar uma nova carreira. A ruiva precisava manter duas fontes de
suprimento simultaneamente para atender os caprichos infindáveis de sua persona
insaciável.
Uma pergunta que não queria calar:
- E todos esses relacionamentos threesome teriam sido com o conhecimento e a
liberação do empresário falido e ou do motoqueiro movido a marijuana? Esses caras
seriam autênticos cuckold – estilo filme pornô?
Esse parecia ser o modus operandi daquela mulher. Descartava os amantes e os
repescava, a seu bel prazer, à pura mercê das suas necessidades e caprichos – ficavam
de backup para uso em caso de alguma falha do suprimento principal do momento.
Os homens eram meros marionetes em suas mãos – coisas. Exatamente como
aqueles que ela havia fabricado para Yared há dois anos. Novamente a arte imita a vida!
Para ela os homens não tinham vida própria. E seu fatídico destino se resumia a
duas alternativas: ou obedecê-la sem nunca questionar, ou enfrentar a morte – o “gato
de Schröndiger” novamente!
Lembrou da gargalhada da bruxa, e do que a ex-usuária de droga de uma figa
havia dito antes:
“Adoro ter dois machos aos meus pés!”
Lembranças do comportamento na cama também afloraram. – E o manual
ensinando a fingir o orgasmo?
Yared esteve quebrando a cabeça para entender, mas ficara muito na cara que ele
tinha sido usado num dos tantos jogos daquela mulher. Agora era seu dever descobrir
toda a verdade.
Seu descarte estava próximo. A mulher de cabelo ruivo acobreado já estava
repescando o playboyzinho novamente.
Era o mesmo ciclo abusivo se repetindo. Idealização, desvalorização, descarte e
repescagem. De novo, e de novo. Os amantes mudavam, mas a protagonista vilã em
série era sempre a mesma – a ex-usuária de drogas Lorac!
Agora, tinha de se preparar para segurar a barra. Ele estava hesitando entre dois
pensamentos: ou se separar da mulher e amargar mais um luto emocional, dessa vez

112
com uma filhinha à qual se apegara, ou ter que aceitar as ilicitudes de Lorac, perdoá-la e
tentar levar uma vida a dois como se nada tivesse acontecido.
Ele não tinha certeza qual das duas alternativas possíveis era a pior. De um lado,
não adiantava se recusar a acreditar que tudo aquilo era verdade. E que o advogado não
estivesse falando sério. De outro, seu coração se dilacerava apenas em pensar em
romper com Lorac.
De modo óbvio, havia muita coisa passando por sua cabeça. Ele reuniu seus
pensamentos cuidadosamente. Todavia uma coisa era certa – seu relacionamento
amoroso com Ani Lorac havia ido de mau a pior, e a separação entre eles iria acontecer
de qualquer jeito e era inadiável, infelizmente.
Não obstante, aquela decisão deveria ser considerada não como o desejo pessoal
do linguista em sangue frio, mas como seu derradeiro recurso face aos acontecimentos
que o levaram a vivenciar a noite escura da sua alma.
Por fim, Yared tinha se dado conta de que ele fora apenas uma mini peça
naquele maxi mecanismo movimentado por Lorac com suas manipulações, ideias de
grandiosidade, senso de direito absoluto – a tudo e a todos – fantasias de metas
irrealizáveis e falta de empatia.

Verdade impalatável

Yared fez um esforço inaudito para manter a sanidade e o equilíbrio. Precisava


desesperadamente tirar toda aquela história a limpo. Só lhe restou uma saída.
Lembrou dos registros do plano de parto. Ele tinha o contato do playboyzinho na
sua agenda telefônica.
Hesitou um pouco. Refletiu. Mas só havia um meio de descobrir. Resolveu ligar.
E então a pergunta que estava no cerne de suas preocupações. O que é que eu ia fazer se
fosse verdade?
“Vo-cê al-guma vez du-ran-te meu re-la-cio-na-men-to com Lo-rac tran-sou
com ela?” – ele digitou cada sílaba, como se estivesse conversando com alguém
mentalmente incapacitado.
“Só uma vez para entender que não queria ela nunca mais.” – respondeu o cara
do outro lado.
“Onde e quando foi isso?” – desejou ansiosamente saber.
“Certa manhã quando Beth estava na escola. Ela me ligou e disse que vocês
estavam separados e precisava de comida em casa. Fiz a feira e fui levar. Ela me
chamou pra transar. Foi tudo muito rápido e conclusivo.” – explicou detalhadamente o
ex, ou seria atual, ou porventura nunca tinha deixado de ser, parceiro de Lorac?
“E que diabo de história é essa de que Flor de Lótus seria tua filha?”
“Ela insinuou isso no começo e me pedia dinheiro para as despesas com a
criança. Mas, eu não cai nessa. Não rolou nada mais não. Também proibi ela de falar
com minha mãe e com minha advogada.” – complementou o playboyzinho.
Havia secura, mas sinceridade nas suas palavras. Aquele depoimento à queima
roupa, a sangue frio, comprovava tudo que a patrona dele havia dito ao advogado
psicólogo.

113
Ao chegar em casa, Yared se aproximou de Lorac que estava sentada no sofá da
sala com a bebê no colo e, quase esfregando a tela do seu Motorola na cara da mulher,
foi logo falando:
“O que significa essa merda aqui?”
Ainda que Lorac, primeiramente, numa aparente onda de vergonha, tenha
baixado seus olhos, na mesma hora, reagiu e ergueu a cabeça. Seus olhos castanhos
escuros apertados e arrogantes, com letras maiúsculas, encararam o homem sem
pestanejar. Desta vez, todos os fingimentos, todos os jogos, iriam ser colocados de lado.
Cerrou o maxilar com força, determinada a não deixar transparecer nada em suas
feições. Rosto impassível e indecifrável como uma parede. E começou a vociferar num
tom amargo e vingativo de partir para o tudo-ou-nada ou o seja-lá-o-que-Deus-quiser:
“Uma verdade impalatável, meu querido!” – primeiro disparo.
“Você não estava por aqui. Fiz e pronto! E quer saber? Você foi o pior homem
que eu já tive.” – segundo disparo contra o seu atual amante, ou seria futuro ex?
Yared, completamente fora de si, fixou na mulher um olhar feroz e com o dedo
em riste disparou uma rajada de sete tiros:
“Sua vadia! O que você está querendo dizer?”
Diante dessa explosão, Lorac levantou as sobrancelhas, abriu levemente a boca e
arregalou os olhos.
“Você não pode manipular as pessoas como faz com suas bonecas de pano!”
“Queria viver com dois homens ao mesmo tempo?!”
“Eu tinha te falado que não tinha vocação para ser traído!”
“Se você não quisesse mais essa droga de relação era só falar, e a gente
resolvia nossas vidas!”
“Resolvia de outra maneira!”
“Só digo uma coisa, um dia a casa cai, sua ordinária!”
Yared se precipitou em direção à mesa da sala. Pegou o celular de Lorac. Acaso
numa tentativa de conseguir mais provas da traição? A mulher pulou em pé, e mesmo
com a bebê nos braços tomou o aparelho e saiu correndo como uma desvairada pelo
corredor do prédio levando consigo Flor de Lótus.
É complexo descrever com detalhe e minúcia o que adveio em seguida,
principalmente porque acontecera no calor das emoções e logo cedo da manhã, quando
ainda estavam organizando nossa agenda do dia.
Ani Lorac havia se envolvido num emaranhado de mentiras, disfarçando-as com
histórias imaginárias. Uma mentira conduz a outra e antes que ela se desse conta, tinha
ficado enredada em seus próprios embustes.
Ai mesmo, naquela mesma hora, Yared entendeu que estava selado o destino
daquele casal. Daquela família em potencial. Aquela união instável acabara de se
romper por completo. Ou melhor, acabara de se consolidar como um pseudo-
relacionamento. Agora era apenas o clímax do ATO III como nos enredos de cinema.
Por um instante, Yared pensou consigo mesmo:
“Tudo na vida pode ser tirado de você e, geralmente, o será em algum
momento.”
Vestido apenas numa bermuda caseira, numa T-shirt e calçando chinelos, Yared
saiu com sua pasta na mão, completamente desiludido e longe da trilha que pensara
estar seguindo. Havia sido insultado, envergonhado e desonrado.
Rua a fora, andando a esmo, sem saber se seguiria para a direita ou para a
esquerda, sentiu-se desamparado e sem rumo. Tinha cruzado a porta da frente do
apartamento de Lorac. Para dessa vez de modo algum voltar no curso da sua vida.

114
Yared acreditava que era um rico sinal de graça interior quando a caminhada
externa é transformada e quando a impiedade é lançada para longe de nossas ações.
Aqui estava uma experiência passada que seria usada como encorajamento futuro para
não mais realizá-la.
As consequências? Foda-se. Era demasiado tarde para qualquer tipo de
arrependimento. Era tudo ou nada.

“Tomem como princípio que as separações acontecem sem culpa. São, via de regra, inevitáveis.
Quem procura pelo culpado ou pela culpa, em si ou no parceiro, recusa-se a encarar o inevitável.
Procede como se pudesse ter havido uma outra solução, se... E não é verdade. Separações são
consequências de envolvimentos, e cada parceiro está enredado da sua própria maneira.” – Bert
Hellinger

Como na evolução de identificação do perfil do aplicativo de mensagens que


Lorac usava. Passara de Yared-boneco para Yared-rei, depois Yared-marido – última
atualização até onde ele sabia. Agora seria certamente Yared-vilão.
Idealização. Desvalorização. Descarte. Repescagem.
O interminável ciclo abusivo do relacionamento com um narcisista.

“Assim como há uma maldição envolta nas misericórdias do homem perverso, há uma bênção
oculta para o homem justo em suas cruzes, perdas e tristezas.” – C.H. Spurgeon

A máscara que cai

Máscara – persona irreal, falso ego que a pessoa utiliza como mecanismo de defesa para
encobrir as sombras e poder conviver em sociedade.
Sombras – todas as artimanhas, mentiras, farsas e estratégias antiéticas que a pessoa desenvolveu
desde tenra idade para agradar os pais e responsáveis, por eles não a deixarem expressar sua essência:
self.

Viver o falso ego, com máscaras, para camuflar as sombras é deveras


desgastante. Muita energia é empregada para se manter as personas defensivas – que
são, em realidade, nossos inimigos incontritos e dissimulados!
Em contrapartida, a vida se torna insípida, sem cor e sem motivação. A pessoa
está tentando sobreviver em detrimento da sua essência – do seu self – de como
verdadeiramente são.

115
O ponto crítico para o falso ego de Ani Lorac fora atingido. Chegara ao epílogo.
Não era mais possível ocultar suas sombras diante daquele espelho chamado Yared. Sua
máscara caíra.
Esvaíam-se com ela todos os sonhos, planos e projetos de vida que o linguista
estivera construindo ao seu lado. Ou melhor, pensava estar construindo.
Nada fora real. Lorac jamais estivera ao lado dele. Ombro a ombro. A rainha era
falsa. Tampouco existia algum rei. Aquele pseudo-reinado caíra por terra.

“A Consciência que Vela pelos Relacionamentos respeita apenas a qualidade real do vínculo e
a ecologia do dar e receber.” – Bert Hellinger

116
15
Guerra jurídica
“Diante do que é certo, ninguém é livre.” – Bert Hellinger

Te encontro nos tribunais

C om fisionomia abatida e espírito abalado, sem rumo e perdido, Yared se afastou


daquele lugar, que agora, lhe parecia ter sido uma masmorra. E ele se sentia
como tivesse sido um escravo naquele relacionamento malsão.
Por esta razão, estava sem destino e sem lar – era um desabrigado amoroso, se é
que esse termo existe. Havia os sem-teto e os sem-terra – ele era um sem-amor-
verdadeiro. E para não ficar andando em círculos sob o sol escaldante como um idiota,
resolveu ligar para o advogado-psicólogo na tentativa de receber alguma orientação. No
final das contas, partira dele aquela revelação dantesca.
“Alô. Sr. Yared! Tudo bem?” – perguntou o patrono de Lorac do outro lado da
linha.
“Não. Tá uma droga. Aconteceu um desastre. Lorac confessou a traição. Além
disso, foi extremamente agressiva e depreciativa comigo. Numa situação dessa,
esperava um pouco mais de humildade e que ela reconhecesse seu erro.” – respondeu o
linguista.
“Sr. Yared, como lhe disse antes. Notei que sua mulher é uma desequilibrada.
Até onde pude perceber, embora não esteja clinicando no momento, ela é portadora do
TPN.” – explicou.
“TP... TP..., o quê?” – inquiriu Yared nervosamente.
“TPN – Transtorno de Personalidade Narcisista. Um distúrbio mental grave, e
na maioria das vezes incurável.”
“Então, aquela dona além de ex-usuária de drogas é doida também?” –
perguntou Yared.
“Ela é transtornada. É o modo de ser dela. Agora o senhor se tornou seu
inimigo número 1. Nem pense em voltar para aquele apartamento. Ela poderá te
matar.” – concluiu pesadamente o advogado psicólogo.
“Caralho! Ela já me ameaçou mesmo num dos surtos de maluquice dela. Não
volto lá provavelmente nunca mais.”
“Sim, tenha cuidado. Agora procure solucionar as questões pendentes através
da justiça – teste de DNA para averiguação de paternidade, pensão alimentícia, e tudo
mais.”

117
“Obrigado, doutor. Mas, antes de tudo, preciso colocar minhas ideias em
ordem. Vou ficar nesta cidade mesmo. Numa pousada. Preciso repensar minha vida.”
“Certo. Faça isso. Fico a sua disposição para qualquer dúvida ou orientação
que o senhor precisar. Só não posso atuar como seu advogado porque a representei
recentemente.”
“Muito obrigado. O senhor me fez um favorzão” – agradeceu Yared
“Cuide-se. Monte uma rede de apoio formada por pessoas que te amam e
possam te ajudar a superar essa crise. Esteja alerta para reagir à situação conforme
ela se desenvolva. Boa sorte!” – desejou o advogado

Era uma vez o caso de amor de um linguista com uma artista. Ele e ela haviam
criado um falso reino. Sonharam em poder satisfazer seus desejos, ambições e interesses
sem pagar o preço. Haviam construído um ilusório castelo no ar.
Lorac era Yared de saia, e Yared era Lorac de calças – a falsa rainha e o falso rei
haviam gerado uma princesa real. Seus falsos egos se aproximaram, se atraíram na
tentativa de realizar seus verdadeiros eus. No entanto, sem o processo de cura
concluído, tudo havia acabado e, essa tentativa fora vã.
Por consequência desse desconhecimento das suas realidades interiores e de que
estamos todos sempre interligados – não somos seres separados, somos seres
individualizados – não entenderam que jamais poderiam reinar sobre pessoas e
acontecimentos agindo de uma forma egoísta. Insensata. Leviana. Separada do todo.
Entre idealizar algo e realmente alcançar seus frutos vai larga distância.
O tal falso reinado havia sido destruído na guerra contra a Realidade como Ela
É. Agora restava contar seus “mortos” e “feridos” – priorizando o bem-estar e a
felicidade da princesa herdeira que havia nascido daquele pseudo-relacionamento
naquele pseudo-reino. Nada mais importava, para que esclarecer, tirar a limpo, acusar e
lastimar-se?
Yared estava com os olhos turvos de lágrimas, seu espírito perturbado, seu
coração envolto em angústia. Uma tristeza avassaladora tinha se apoderado dele. Isso se
devia ao fato de ter advindo a destruição da sua história de amor com a artista ruiva –
sua sugar baby.
Por vezes, nossas melhores ações resultam em acontecimentos lamentáveis. É
possível nos comportar em absoluta harmonia com as leis do Universo e com a própria
consciência, e ainda assim enfrentarmos dificuldades e tragédias. Estas sempre vêm em
bando. A dor tem uma família numerosa.
Flor de Lótus era a única realidade existente que restara daquela infrutífera
combinação de idiomas e artes.
Agora, o “contato zero” seria uma cerca. Uma cerca serve a duas finalidades. Por
um lado, proteger aquilo que encerra dos elementos externos. Por outro lado, evitar que
aquilo que encerra transborde suas fronteiras. Yared deveria evitar que Lorac agisse
para lhe repescar para o relacionamento mais uma vez. Em contrapartida a isto, ele
deveria se conter e se abster de qualquer aproximação com Lorac.

SUGAR BABY LOVE

118
Sugar baby love, sugar baby love
I didn’t mean to make you blue
Sugar baby love, sugar baby love
I didn’t mean to hurt you
All lovers make
Make the same mistakes
Yes they do
Yes, all lovers make
Make the same mistakes
As me and you
Sugar baby love, sugar baby love
I didn’t mean to make you blue
Sugar baby love, sugar baby love
I didn’t mean to hurt you
People, take my advice
If you love someone
Don’t think twice
Love your baby love, sugar baby love
Love her anyway, love her everyday
THE RUBETTES

A sala pastoral

Sob a tensão dos últimos dias, levando seriamente em conta a orientação do


advogado, Yared buscou não somente uma assistência jurídica, apoio psicológico como
também uma orientação religiosa. Daí a pouco tempo, numa sexta-feira à tarde, depois
de ter se separado da marchand narcisista, ele fez contato com seu irmão para conversar
com o líder eclesiástico no que dizia respeito àquela sua crise existencial.
“Meu irmão, seria possível eu conversar com o pastor da sua igreja nesse
domingo?” – inquiriu Yared num tom de apreensão.
“Oi, brother. Acho muido difícil. Ele tem uma agenda muito apertada. E todas
as entrevistas são marcadas com grande antecedência.” – explicou o rapaz.
“Ah, entendi. Mas, você poderia tentar? Tô realmente precisando dar uma
orientação à minha vida. E nada melhor do que um homem de Deus, né verdade?”
“Verdade, meu querido. Vou tentar.”
“Vou ficar aguardando teu retorno e até mais.” – se despediu afetuosamente
Yared.

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Ao inimigo, a Lei

119
Vinte e sete dias havia transcorrido desde a separação. Yared recebera uma carta
convite da assistência judiciária. Lorac já havia movido o sistema judiciário para ter
acesso à pensão alimentícia da criança.
Sem mesmo tentar um acordo amigável com o pai, que havia lhe enviado uma
proposta, a mulher recorrera à força da justiça.
Um acordo que Yared havia lhe enviado por e-mail foi totalmente recusado de
plano sem nem sequer uma contraproposta.
O dia 27 de novembro daquele ano fora agendado no convite para a tentativa de
conciliação. Yared foi até o escritório público na companhia do seu advogado.
Depois de duas horas de negociação, finalmente um acordo consensual foi
alcançado entre as partes.
No dia estipulado para a assinatura da avença jurídica, o conciliador perguntou
sobre os termos de visita e convivência entre o genitor e a menor para concluir o
documento.
Diferentemente da postura conciliadora de Yared, Lorac criou o maior problema.
Reclamou. Resmungou. Protestou. Ela era o tipo de pessoa que se irritava com as coisas
mais idiotas e triviais. Como se tudo tivesse a obrigação de ser exatamente como ela
queria.
Não quis sequer conversar sobre esse ponto de peso numa lide de direito familiar
envolvendo menor em tenra idade – assegurar o direito de Flor de Lótus de conviver
com o pai dela.
E o mais doido nisso tudo era que a genitora estava assinando em baixo sua
alienação parental e reforçando a versão da velhota advogada concernente à dúvida de
paternidade da bebê.
Yared achou melhor parar a conversa por ali antes que as coisas saíssem do
controle. E informou ao conciliador que, naquele momento, seria prioritário assinar o
acordo de alimentos. Ele ingressaria na justiça posteriormente para ver sua filha.
Por essa maneira, os genitores assinaram o contrato e se dirigiram para o cartório
a fim de reconhecer firmas e tirar cópias autenticadas para cada uma das partes.
Ao terminar a legalização dos documentos, Yared entregou uma cópia para a
mãe da criança. Guardou a sua cópia na pasta.
Caminhou até a porta de saída e se despediu:
“Boa sorte!”
“Obrigada.” – respondeu Lorac saindo do prédio sem olhar para trás.
Acaso, exatamente da mesma maneira que fizera ao entregar a carta de
despedida àquele namorado, a vida do qual ela estava destruindo? Chegara a vez de
Yared.

“Na vida, encontramos pessoas que são más, inquestionavelmente más sem sombra de dúvida.
Quando você descobrir que seu vizinho é iníquo, mantenha-se distante dele. O efeito da associação com
o mal é frequentemente fatal. O que a Mishná está rejeitando é a ingenuidade idealista que se recusa a
crer que existam mesmo pessoas más, e o otimismo ingênuo de que, mesmo se alguns são
momentaneamente iníquos, nós poderemos emendá-los em pouco tempo. Quando a proximidade do mal
afeta você diretamente em sua vida pessoal e emocional, então a discrição é a melhor política: ponha
distância entre você e seu vizinho malvado.” - Irving M. Bunim

A pandemia

120
Em meados de janeiro de 2020 Yared teve um sonho que o perturbou.
Despertou um tanto abalado, se levantou, ligou seu notebook DELL e começou a
digitar:
- Encontrava-me na praia do litoral da nossa cidade. Estava usando
meu uniforme militar. Tinha centenas de homens ao meu comando para
defender nossa capital de uma invasão que estava acontecendo pelo mar.
Avistava uma grande quantidade de submarinos emersos, dos quais
centenas de soldados desembarcavam em botes infláveis se dirigindo para a
cabeça de praia.
De repente... Rat-rat-rat! rá-tá-tá! Nossa trincheira era alvejada por
uma rajada de um fuzil Kalashnikov de assalto de calibre 7,62x39mm –
conhecido como AK-74. Empurrei um dos meus homens para baixo,
fazendo-o mergulhar de cara no buraco que havíamos escavado para nos
proteger, e eu mesmo me joguei como um gato para dentro do fosso feito no
solo cuja profundidade e parapeito servia como abrigo aos nossos
combatentes. Porém, antes do salto, tinha fitado de soslaio o inimigo – era
um soldado chinês! Estava usando um respirador N95 branco, além de estar
armado até os dentes no seu uniforme de combate multi CAM.
Fora um sonho extremamente realístico, com riqueza de detalhes –
colorido, com odores e barulho do alvoroço de uma batalha típica.
Impressionado com o realismo daquele sonho, Yared contou para
dois dos seus irmãos e para um youtuber famoso que fixou o texto na sessão
de comentários.

Onze de março de 2020. A Organização Mundial de Saúde declarara o novo


coronavírus como uma pandemia mundial. A humanidade mergulhou numa crise
sanitária em escala planetária sem precedentes. Milhões de vidas começaram a ser
ceifadas em todos os países.
Em pleno século vinte e um, assistimos nosso planeta recuar no túnel do tempo à
época da Idade Média quando a Peste Negra varreu a Europa dizimando grande parte do
gênero humano de outrora.
Todos os setores humanos foram drasticamente afetados. Inclusive, e
predominantemente, o setor econômico-financeiro. Centenas, por que não dizer
milhares, de companhias viram suas portas fecharem e seus milhares e milhares de
funcionários serem demitidos, perdendo seu poder aquisitivo e tendo a sua
sobrevivência ameaçada.
Estritas medidas de restrição de convivência, como o lockdown, foram impostas
na tentativa de conter o avanço da doença.
Ninguém saía de casa. Ninguém viajava. Uma quantidade incalculável de planos
pessoais, tanto profissionais como acadêmicos ou de turismo foram cancelados.

121
A profissão de Yared inextricavelmente ligada ao turismo, meio universitário e
viagem testemunhou uma queda de noventa e cinco por cento no seu aporte de clientes e
fluxo de caixa.
Os serviços públicos ficaram uma lesma. O acesso passou a ser exclusivamente
virtual. O sistema judiciário passou a atender tão-somente casos considerados de
urgência.
A ação de averiguação de paternidade que Yared havia ingressado ficou travada
porque a clínica conveniada com o tribunal de justiça tinha paralisado suas atividades
por falta de verba.
O linguista teve de esperar pacientemente por quase dois anos. Aguardava a
prova científica concernente ao fato de que seria ou não realmente o pai biológico de
Flor de Lótus.
Durante esses “dois séculos” de espera insidiosa, Yared ficou completamente
afastado da sua filha. Afastamento imposto pela genitora, contra o quê ele não podia se
opor pessoalmente. Frontalmente.
A mulher, após ter o acordo de pensão alimentícia assinado pelo genitor, naquele
mesmo dia em que ele desejara boa sorte e ela havia agradecido, atravessou a rua e foi
até uma delegacia especializada da mulher.
Moveu um processo contra o excompanheiro. Fez uso da famigerada Lei Maria
da Penha criada para proteger as supostas frágeis mulheres contra seus supostos
monstros e agressores homens. A suposta vítima, preencheu três páginas completas com
difamações, calúnias e injúrias.
Envergonhar um semelhante em público mediante uma falsa notícia crime em
sede de uma delegacia. Esta é uma grave e violenta ruptura do pudor nas relações
humanas, tipificada como crime contra a honra no Código Penal.
Mas que crime ele havia cometido para ser tratado daquela maneira?
Levando em conta sobre toda aquela situação, Yared lembrou do que lera num
dos seus livros favoritos:
“A pessoa que se entrega ao hábito da calúnia é um hipócrita vil. A
saúde de tal persona é facilmente julgada por sua língua. Boca imunda,
coração imundo. Alguns caluniam quase com tanta frequência quanto
respiram. Sua língua trama enganos. Este é um tipo de calúnia mais
intencional, em que a pessoa elabora falso testemunho com destreza e
inventa métodos de difamação.”
Ele precisou recorrer a advogados para se defender legalmente. Pois, se ele não
fosse por ele quem o seria? Seria documento a merecer crédito a palavra de uma homem
num caso jurídico contra uma mulher?
Aquilo era apenas o começo da sua via crucis.
Qual é de fato o sexo fragilizado na nossa sociedade supostamente machista?

“Se você quiser encontrar algum mérito numa pessoa, julgue-a como um todo. Você certamente
encontrará alguma característica redentora, alguma realização louvável, algum traço de caráter digno
de elogio.” – Irving M. Bunim

122
“Os homens estão em retirada. São cada vez mais desprezados pelas mulheres;
com isso, aumentam os casos de vício. É um fenônemo absolutamente normal. As
mulheres não podem simplesmente excluir os homens.”
“O papel da vítima é a mais refinada forma de vingança.”

“Na luta pelo poder, quem vence são as vítimas.” - Bert Hellinger

“Usando a falsa bandeira de proteção às mulheres, feministas buscam a desconstrução da


figura masculina.
Numa recente pesquisa, a estatística devidamente comprovou: - homens representam 93% das
fatalidades no trabalho; - 97% das fatalidades em guerras são homens; - 91% das vítimas de assassinato
em 2020 eram homens; - metade dos pais sem nenhum direito de visita ainda sustentam seus filhos; -
homens representam 80% das vítimas de sucídio; - 75% dos desabrigados são homens. O discurso de
que os homens são privilegiados não batem com as estatísticas apresentadas.” – Fernanda Salles

Marco Antonio Heredia Viveros, ex-marido de Maria da Penha, na sinopse do seu livro A VERDADE
NÃO CONTADA NO CASO MARIA DA PENHA, se expressa:
“Havendo sido escandalosamente ludibriados e desrespeitados os pilares da Constituição pátria,
os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a opinião social do país por mais de duas
décadas, através de convenientes fraudes processuais vimos hoje através destes trabalhos, retirar as
mordaças que haviam sido colocadas na boca do autor, tanto pelo poder judiciário e executivo cearenses,
como pelos Meios Sensacionalistas de comunicação, Expressão e Informação em massas alencarinos, e
assim trazer a público os fatos delitos e transgressões chamadas crimes, apresentadas num processo, cuja
única finalidade foi a de forjar e incriminar com falsidades e condenar um inocente. Desta maneira
levamos ao conhecimento dos níveis superiores dos poderes executivo, legislativo e judiciário estaduais e
federais, das pouquíssimas Comissões dos Diretos Humanos, que ainda contam com profissionais de bom
caráter, competentes e de indiscutíveis valores éticos e morais, a verdade que permaneceu escondida e
que trata sobre as razões que concorreram para que um inocente útil e vulnerável fosse sumária e
injustamente condenado e encarcerado como se fosse o pior dos seres humanos por um “Tribunal de
Estado”. Tudo isto promovido através de uma dissimulada encenação dantesca do Ministério Público e
Poder judiciário onde eu residia em conluio com os meios sensacionalistas de comunicação, expressão e
informação em massas, com a Comissão dos Direitos Humanos e da Mulher e com uma perversa e
demoníaca Jezebeth que anos depois por interesses políticos fora transformada de maneira equivocada na
fada madrinha da Lei 11.340. Com certeza as pessoas sentirão satisfação ao conhecer, finalmente esta
dolorosa realidade e quais os fraudadores que as enganaram e manipularam por tantos anos!.
Todas as ilegalidades e imoralidades praticadas pelas autoridades processantes em conluio com
os Meios Sensacionalistas de comunicação, expressão e informação em massas durante a ação penal
0001958267 transitada na 1ª. Vara do Júri da comarca de Fortaleza, vieram a descaracterizar dita ação
penal a convertendo numa GRANDE FARSA!”

“A miséria causada a um bom homem por relatos caluniadores não pode ser concebida por coração
algum exceto aquele que por eles é ferido. Em todo o arsenal de Satanás não há armas piores do que
línguas enganosas. Ter uma reputação pela qual vigiamos com cuidado diário repentinamente

123
esborrifada com as mais sujas aspersões, é doloroso de modo que não se pode descrever; mas quando
homens perversos e enganosos abrem por completo suas bocas, dificilmente podemos ter mais esperança
que outros, de que escaparemos.” – H.C. Spurgeon

Parte 5

Mesmo assim, valeu a pena


Capítulos 16-17

Θ CAPÍTULO 16 – Matemática e amor


o 99,999
o Deixem-me ver minha filha
Θ CAPÍTULO 17 – Somos mortais, afinal
o A lepra
o Em busca da cura
o O terapeuta

124
16
Matemática e amor
“Existe um direito básico da criança a seus pais e a seu grupo familiar. Na Alemanha, este
direito é assegurado por lei: a criança tem o direito de saber quem é seu pai. A mãe precisa revelar à
criança o nome do pai.” – Bert Hellinger

99,9999

“Bom dia! Pois não senhor, posso ajudá-lo?” – perguntou polidamente a moça
do outro lado do balcão de atendimento da clínica. Esse estabelecimento de serviços
médicos estava localizado no interior de um grande shopping center na zona norte da
região metropolitana da cidade.
“Bom dia! Meu nome é Yared. Gostaria de saber se o resultado do meu teste de
DNA já está disponível.” – respondeu o suposto pai apreensivamente.
“Por favor, me passe seu documento de identificação pessoal e o número de
protocolo do exame, senhor.” – solicitou a atendente.
Dois ou três minutos depois, uma mulher alta, esguia e elegante, trajando um
jaleco longo e alvíssimo veio até o balcão, cumprimentou Yared e lhe entregou um
envelope grande, tamanho ofício, lacrado.
“Senhor, aqui está. Muito obrigada pela preferência.” – falou gentilmente a
perita labratorial.
Yared recebeu o envelope, agradeceu e se retirou apressadamente para a área de
circulação do shopping.
Era bem cedo da manhã, as lojas ainda todas fechadas, movimento de pessoas
muito reduzido, se limitando apenas a funcionários que estavam chegando para iniciar
sua jornada de trabalho e pacientes de clínicas e laboratórios que ficavam dentro do
conglomerado de estabelecimentos comerciais.
O suposto pai colocou sua pasta sobre um balcão externo de um quiosque ainda
fechado e abriu o envelope que tinha a informação se ele de fato teria engravidado
Lorac naquela noite da dança-do-ventre.
Puxou quatro folhas de papel A4 meio enegrecidas de tantas letras, números e
tabelas. Passou pelas páginas, rapidamente, tentando localizar onde estava a seção:
resultado. Encontrou, e leu a primeira vez. A segunda. A terceira. Engoliu em seco.
Suspirou e resolveu compartilhar a conclusão do teste com sua mãe. Desta maneira,
abriu os contatos e pressionou em MAMÃE. Mas, não conseguiu contato e resolveu ir
pessoalmente até ela para lhe contar.

Laudo do Teste de Paternidade

125
Material Biológico
Material: Sangue Total Impregnado em Papel de Filtro

Identificaçao dos Periciandos


Mãe: Ani Lorac
Filho(a): Flor de Lótus
Suposto Pai: Yared

Informações Técnicas
A investigação de vínculo genético de filiação por DNA permite inferir com alta probabilidade
se um indivíduo é ou não o pai biológico de outro indivíduo.
Este é baseado no fato de que cada indivíduo possui 23 pares de cromossomos, sendo que para
cada par, um cromossomo é proveniente da mãe e outro do pai biológico.
A maioria das informações genéticas é identica para os diferentes indivíduos da espécie humana
e, por este motivo, somos muito parecidos. No entanto, para algumas informações genéticas existem
pequenas diferenças que são denominadas polimorfismos. O estudo das regiões polimórficas,
denominadas locos, permite avaliar as relações de vínculo genético entre duas pessoas.
O laboratório optou por utilizar o kit comercial GlobalFiler Express PCR Amplification da
Applied Biosystems que analisa um conjunto de locos autossômicos e a amelogenia (marcador sexual).
Este este é realizado pela metodologia da PCR (“Polymerase Chain Reaction”) seguida de eletroforese
capilar fluorescente através do equipamento “AB Phome Genetic Analyzer”.
Cada indivíduo possul dois alelos para cada loco (um proveniente da mãe e outro do pai). O teste
identifica quais são os dois alelos presentes em cada individuo analisado. Partindo do perfil do (a) filho
(a) e assumindo que a mãe é de fato mãe biológica, é possivel identificar qual alelo é proveniente da mãe
e qual obrigatoriamente é provenieme do pai biológico. Com base nestes dados é realizada a análise para
cada um dos locos estudados, gerando um laudo que poderá concluir que:
 Se se a análise para um conjunto de locos, quatro ou mais alelos obrigatórios paternos não
estiverem presentes no suposto pai em questão, a hipótese de vínculo genético é rejeitada com
100% de certeza. Caso isto não ocorra um número maior de locos é analisado. O resultado de
exclusão só é liberado após repetição do procedimento.
 Se em todos os locos estudados, os alelos presentes no (a) filho (a) e não provenientes da mãe
são encontrados no suposto pai em questão, a hipótese de vínculo genético não pode ser
excluída. Isto leva à conclusão de que o suposto pai é de fato, o pai biológico. Além disso, um
cálculo é realizado para determinar a probabilidade de este individuo ser realmente o pai da
criança, ou seja, qual seria a chance de encontrar na população outro indivíduo que apresentasse
o mesmo perfil de alelos compartilhados que do suposto pai. Os cálculos de probabilidade são
baseados nas frequências alélicas da população brasileira, previamente publicadas na literatura.
Ocasionalmente, pode ser detectada inconsistência genética em um único loco (raramente em
dois) do total de locos analisados. Nessa situação, considera-se que houve mutação durante a transmissão
do alelo peterno. Como as taxas de mutação para cada loco são conhecidas, os cálculos dos Índices de
Paternidade para cada loco podem ser ajustados comespondentemente.
A inclusão só é aceita quando a Probabilidade de Paternidade for de no mínimo 99,99%, para
testes entre filho e suposto pai e 99,999 para testes entre mãe, filho e suposto pai, (considerando-se
sempre uma probabilidade a priori de 0.5). Caso isto não ocorra, um número maior de locos é analisado
até a probabilidade adequada ser atingida.
O resultado é apresentado na forma de uma tabela onde para cada loco gênico são descritos os
alelos encontrados na mãe, filho(a) e suposto pai. A última coluna refere-se ao Índice de Patemidade, que
avalia para cada loco, quantas vezes é mais provável que o indivíduo analisado seja o pai biológico em
relação a um homem qualquer na população (é uma razão entre duas hipóteses mutuamente excludentes).
O Índice de Paternidade acumulado é obtido pelo produto dos índices de cada região analisada. No final
existe a conclusão da análise e a Probabilidade de Paternidade.
Circunstâncias especiais:
O exame não pode ser realizado em amostra de sangue quando uma pessoa foi submetida a
transplante de medula óssea. Em casos de transfusão sanguínea recente (há menos de três meses) o
laboratório, quando necessário, poderá solicitar nova coleta de material biológico. Nestes casos poderá ser
coletado outro material, como por exemplo, células epiteliais da boca (“raspado de bochecha”).
Conclusão

126
A partir das frequências destes alelos numa amostra representativa das populações estudadas e da
combinação de alelos nos examinando, verifica-se que o índice de paternidade acumulado é de
18.476.930.88.
Concluímos, portanto, que Yared é o pai biológico de Flor de Lótus com probabilidade de
paternidade de 99,9999 por cento.

A ciência se pronunciou através do teste de DNA acerca da absoluta simetria –


metade-metade, meio-a-meio, 50%-50%, de contribuição genética para cada ser humano
da seguinte forma:

“...cada indivíduo possui 23 pares de cromossomos, sendo que para cada par, um
cromossomo é proveniente da mãe e outro do pai biológico.”

Não deveria também essa simetria se estender a todos os âmbitos dos relacionamentos
entre os gêneros masculino e feminino?

“As mulheres são a metade gêmea dos homens.” – Muhammad

Deixem-me ver minha filha

“Um dos principais problemas na psicoterapia é que muitas mulheres agem como se os homens
e os pais não tivessem direitos. Não são, nem ao menos, levados em conta, como se tudo o que se diz
respeito às crianças fosse um assunto exclusivo das mulheres.” – Bert Hellinger

De posse do resultado do exame de DNA, Yared se apressou em tomar as


devidas providências para ter acesso a sua filha registral, também biológica, fato agora
comprovadamente revelado mediante a ciência.
Havia mais de dois anos que ele se encontrava afastado de Flor de Lótus pela
insensatez e ilicitude da genitora. Agora, com a dúvida dissipada, era tempo para
restauração, restabelecimento da relação pai-filha, cura para as violações perpetradas.
Ele desejou prontamente rever e restabelecer os vínculos afetivos com sua filha a quem
tanto amava.
No mesmo dia, na casa de sua mãe, Yared procurou o advogado de Lorac e lhe
enviou uma mensagem de texto comunicando o resultado do teste:
- Resultado do teste de DNA positivo. Gostaria que o senhor
conversasse com sua cliente para a gente fazer um acordo amigável de
visitas e convivência no rito extrajudicial. Aguardo seu retorno. Obrigado.
Duas horas depois chegou a resposta:

127
- Infelizmente, não tem acordo. Minha cliente mandou o senhor
procurar a justiça se quiser ver sua filha.
Ccc

17
Somos mortais, afinal...
128
“Tanto plebeus como os de fina estirpe, todos juntamente, ricos e pobres em breve se reunirão
na sepultura, na congregação dos mortos, onde todas as diferenças de classe serão obliteradas.” – C. H.
Spurgeon

“Ali jazem os ossos de um orgulhoso monarca, que se ornamentou como um pequeno deus,
ossos misturados às cinzas de seus súditos mais pobres! A morte apoderou-se dele em sua mais elevada
vaidade; acabara de voltar de uma conquista e sua mente soberba foi engolida com o poder e a
grandiosidade que ele possuía, quando uma flecha fatal perfurou seu coração e imediatamente acabou
com todos os seus artifícios e pensamentos em extinção; neste momento o sonho de glória desapareceu e
todo o seu império foi confinado à sepultura.
Ali, um corpo que tanto fora mimado e tão solicitamente atendido, cuja beleza e forma foram
tão tolamente admiradas, agora corpo fétido e pútrido; nada além de insetos o apreciam. Uma mudança
tão profunda causada pela morte. Agora veja, junto a isto, as ingloriosas cinzas de um pobre coitado,
rico e ganancioso, cuja alma estava atrelada a este mundo e abraçou-se em seus tesouros; com que
poderosas agonias e convulsões a morte o separou desta Terra? Como suas mãos se agarraram a seu
ouro! Com que desejos violentos se atou à sua prata! Todos estes fracos e infrutíferos!” - William
Dunlop
A lepra

Y ared estava passando por outra crise existencial. Outra fratura emocional e
psicológica. Outro luto. Outro sofrimento profundo de tristeza e pesar.
O primeiro pelo falecimento da esposa depois de 32 anos de convivência – até que a
morte os separe. Desde o primeiro encontro do casal na celebração do aniversário de
setenta anos do seu sogro até o fatídico dia do falecimento da senhora Lovingdale
naquele leito hospitalar pintado com um frio branco gelo.
O segundo pela perda do vínculo afetivo com Ani Lorac depois de 32 meses.
Desde o primeiro encontro na sofisticada livraria na área boêmia da cidade até o dia que
ouvira a verdade impalatável da boca da ruiva.
Na primeira depressão iniciara uma terapia ocupacional que, por ironia do
destino, o levou a conhecer aquela com quem, e através de quem iria mergulhar na
segunda depressão.
Na segunda iria precisar enfrentar um complexo e longo tratamento médico, que
o levou a buscar as causa profundas da moléstia física num curso de formação em
terapia sistêmica.
Ciclos. Sempre ciclos. O primeiro durara 32 anos numa escala anual – 32
rotações – um ciclo solar. O segundo 32 meses numa escala mensal – 32 translações –
um ciclo lunar. Um se fechando para a abertura de outro num encadeamento que o
estava conduzindo vida a fora.
E essa forma de funciomento do universo atinge a tudo e a todos. Sem princípio
de dias ou fim de anos.
Levamos nove meses para nascer, cumprindo todo o ciclo de desenvolvimento –
desde o momento mágico da fecundação até virmos à luz. Uma bela borboleta antes foi
uma lagarta num casulo preparatório.
Natura non facit saltus – locução latina que significa “a natureza não dá saltos”.
Aforismo de Leibniz cuja interpretação é a seguinte: a natureza não dá origem a gêneros
absolutamente separados uns dos outros; há sempre entre eles elos intermediários.
Yared estivera encerrado no seu casulo, e precisava rompê-lo para levar a cabo
sua tarefa mundial, a qual cada alma herda nesta vida física como um dom que se é
incumbido de dar ao mundo.
Dois anos e seis meses atrás, ele se encontrava completamente identificado com
sua personalidade ainda ingênua e desprovida da maturidade e força necessária para
aceitar a Realidade Como Ela É. Vivia numa zona de conforto negativa, no seu mundo

129
ordinário, no seu status quo de maridão e paizão, a despeito de nutrir no seu íntimo o
desejo de expressar mais livremente sua essência, seu Eu Real, seu Self.
Seu casamento com a senhora Lovingdale havia lhe proporcionado as condições
necessárias para realizar sua tarefa pessoal, na qual temos o propósito de aprender a
expressar uma parte nova da nossa identidade. Porém, ele precisava ampliar sua
consciência, superar seus traumas infantis, suas sombras, tirar suas máscaras e assumir
sua essência, seu Self.
Até certo ponto, o relacionamento relâmpago com a artista Ani Lorac havia lhe
proporcionado a oportunidade de romper com aquele marasmo, aquela estagnação em
que se encontrava, por temer o novo, a aventura e o diferente. Sob certos aspectos, foi-
lhe extremamente útil no sentido que quebrou a casca em que vivia, e o forçou a ter
contato com seu Eu Real. A experiência lhe fora bem dolorosa, mas assaz útil.
Yared percebera que o processo de amadurecimento interior não caminha numa
via linear contínua e progressiva, mas por saltos e revoluções.
Fala-se que o melhor remédio é sempre o amargo. Fora um verdadeiro “salto
quântico” na sua evolução de consciência. Depois do qual ficaram uma grande lição e
uma grande oportunidade.
Uma grande lição de aceitar tanto a Realidade como Ela É como suas leis
fenomenológicas, buscando viver de acordo com elas. Uma grande oportunidade de
exercer sua função paterna novamente. Mas, dessa vez, se tornando uma versão
revisada e ampliada do paizão do Yared antigo.
Resumidamente, em alguns aspectos, ambos os relacionamentos foram
imprescindíveis para sua história de vida. Foram etapas do seu processo evolutivo como
ser humano. As duas tinham servido para ajudá-lo a alcançar sentidos mais precisos
acerca da realidade, e ele estava agora suficientemente instrumentado para desvelar a
natureza das coisas, a Realidade como Ela É e suas verdades.
No que se refere à realidade deste mundo, é inevitável que todos vivenciamos
ciclos de encontros com o tempo. Cada novo circuito na espiral do tempo acaba dando
origem a significativas mudanças e oferece oportunidades renovadas. Um se fechando
para o outro se abrir. Por conseguinte, nossa forma de enxergar aquela realidade é
modificada, ampliada, amadurecida.
Esse fluir do tempo, estava catapultando Yared para realidades mais amplas e
verdadeiras, fazendo-o escapar da prisão do tempo pessoal limitado.
Ademais, nunca é tarde demais para se recomeçar e passar a viver de forma
diferente daquela que vivíamos anteriormente. Ele sentiu que deveria abandonar o velho
homem, como a cobra abandona sua antiga pele!

“O passado não está mais aqui, o futuro ainda não chegou. O presente dura um piscar de olhos
– então que nos preocuparmos? Se, na verdade, só vivemos no presente, então faremos bem em procurar
nossas realizações aqui e agora.” – Ibn Ezra

“Parabéns, irmão Yared pelo seu batismo em nossa congregação. Seja muito
bem-vindo!” – cumprimentou-lhe a irmã batendo com firmeza na sua mão direita, e lhe
dando um apertado abraço fraternal.

130
“Muito obrigado, irmã. Sinto-me muito acolhido e apoiado no seio dessa nova
família que ganhei no convívio com vocês.” – agradeceu Yared.
Aquele abraço fora afetuoso e cordial. Aquelas tapinhas na destra deram-lhe um
sinal de informalidade e...de que algo estava errado naquele seu membro superior
direito.
Yared sentira uma ligeira dor sobre o dorso da mão direita com as batidas da sua
irmã de fé. Não tinha sido tão fortes assim, mas a sensibilidade da pele parecia estar
exacerbada.
Porém, nada a se preocupar. Afinal, era dia de festa, e ele quase nunca estivera
doente ou se importara com seu estado de saúde.
Alguns meses transcorreram depois da solenidade de batismo. A mão
“espancada” pela irmãzinha religiosa apresentava agora uma leve mancha avermelhada
escura, quase roxa, se assemelhando a uma queimadura ou marca de nascença. Yared
continou sem levar em conta aquela sutil alteração no seu corpo, entretanto.
Certo dia foi almoçar na casa de sua mãe, que ao observar seu filho mais
atentamente, comentou:
“Yared, o que é isso na sua mão? Levou alguma queimadura, meu filho?”
“Não minha mãe. Esse troço me apareceu mais ou menos três meses atrás.”
“Me mostre aqui. Deixe-me ver mais de perto. Tô sem meus óculos.” – falou sua
mãe com um tom de preocupação e curiosidade.
“Hummmm... isso tá me parecendo hanseníase. Já foi ao médico?”
“O que, mamãe? Vira essa boca pra lá. E eu lá vou tá com essa doença
horrível?!” – exclamou ele.
“Pois, vá ao médico fazer exames. Não brinque com sua saúde, meu filho.”
“Tá bom. Vou marcar uma consulta, sim. Pode deixar.” – prometeu ele.

“Sr. Yared, por favor, sente-se naquela maca ali. Vou lhe examinar mais
detalhadamente.” – disse a jovem e bonita dermatologista.
“Vou agora fazer o teste de sensibilidade. Dê-me sua mão direita.” – instruiu a
médica.
“O que sente?” – perguntou ela.
“Nada, doutora”
A médica passou um algodão umedecido em álcool sobre algumas marcas
vermelhas arroxicadas, um tanto salientes, como nódulos ou placas que agora tinham se
espalhado da mão direita para os braços, tronco e pernas do paciente. Inclinou a cabeça,
avaliando, examinando-o com atenção.
“E agora?”
“Nadinha.”
“O senhor tem sentido algum formigamento ou dormência?”
“Sim. Tenho sentido formigamento ou dormência na mão direita, ao longo do
braço direito e também nos dois pés.”
“Sr. Yared, o diagnóstico é hanseníase. O senhor sabe de algum caso na
família?” – quis saber a médica na sua anamnese.

131
Sua testa estava franzida, tentando compreender todas as implicações daquele
diagnóstico. Uma expressão de choque e incredulidade espalhou-se pelas suas feições, e
dizer que Yared tinha ficado espantado era o mínimo. Ele olhou para a doutora como se
tivesse visto uma assombração.

“A doença, em si, é um sinal de que você está desequilibrado porque se esqueceu de quem é.
Mensagem direta dirigida a você, diz-lhe não só que você está desequilibrado, mas também lhe mostra
os passos que o levarão de volta ao verdadeiro eu e à saúde. Essa informação é muito específica; basta-
lhe saber chegar a ela.” – Barbara Ann Brennan

“O que, dou...to...ra? Porventura é Le..le...pra?” – inquiriu ele


apreensivamente, estupefado com a informação.
Houve um silêncio momentâneo.
“Esse é um termo ultrapassado, senhor Yared, e cheio de tabus, estigmas e
preconceitos. A Mycobacterium leprae é até uma bactéria boba e fraca. Morre e
desaparece facilmente com a PQT” – explanou a médica de pele.
“PQP, doutora?” – perguntou Yared num tom jocoso e preocupado.
Ele sorriu para a médica e ela esboçou um leve sorriso de volta para
descontração, e lhe explicou:
“PQT – poliquimioterapia, senhor Yared. Um tratamento altamente eficaz. É
meio pelo qual com apenas 72 horas de administração já cessa o efeito de
contaminação da bactéria.” – acrescentou ela.
“Mas, me diga. O senhor sabe de algum caso na família?”
“Não que eu saiba. Nunca ouvi falar dessa doença na nossa família. Acho que
vou ser o primeiro caso. Mas, a senhora tem certeza de que é isso mesmo?” – indagou
o paciente.
“Hum, bem... com o exame clínico tenho 99% de certeza. O senhor precisa fazer
a baciloscopia que é o único meio de a gente fechar os 100%. Vamos fazer?” –
complementou a dermatologista.
Yared percebeu que a dermatologista estava lhe olhando de frente,
questionadora. Ele lhe devolveu o olhar dizendo:
“Eu tô satisfeito com os seus 99% doutora. Me poupe desse 1%, por favor.”
A médica fitou-o diretamente por um instante, depois um leve sorriso iluminou
seu rosto:
“Fique tranquilo. Hoje em dia essa doença já tem cura. É só seguir o
tratamento estritamente. É longo. Dura 12 meses. E a medicação é forte, mas bastante
eficaz que é uma beleza!” – explicou ela.
A médica entregou a guia de exame e desejou boa sorte a seu paciente:
“Tenha a absoluta certeza da cura, senhor Yared!”
Ele lhe agradeceu, se depediu, e deixou a clínica tristonho e preocupado.
Yared tomara consciência pela primeira vez do quanto tinha negligenciado sua
saúde, sem bem-estar pessoal, de quanto tinha deixado de se amar.

132
“Aproveita cinco antes que cinco:
Tua juventude antes que chegue tua senilidade;
tua saúde antes que chegue a enfermidade;
tua riqueza antes que chegue a pobreza (necessidade);
tua desocupação antes que chegue a ocupação;
tua vida antes que chege a morte.” – Muhammad

O derradeiro amargor com diagnóstico de doença grave tinha sido com a


descoberta do câncer da senhora Lovingdale. Agora, Yared, ele mesmo, estava sendo
informado que contraíra uma doença crônica. E esta vinha lhe causando alteração,
diminuição ou perda da sensibilidade térmica, dolorosa, tátil e força muscular,
principalmente em mãos, braços, pés e pernas. Ele temia as incapacidades permanentes
que alguns pacientes desenvolviam ao longo da manifestação dessa enfermidade.

“Existem dificuldades que precisam ser enfrentadas, e o esforço, a luta e a perseverança são de
suma importância para o sucesso em qualquer que seja o empreendimento.
Não é vantajoso lutar contra a escuridão e a adversidade: é muito melhor aumentar a luz, o
bem e o conhecimento.” – Henrique Stiefelmann

Em busca da cura

“O passado não decide todo o destino do homem. O homem não é apenas aquilo que ele é, é
também aquilo que ele decide ser.” – Viktor Frankl

Passados alguns dias do diagnóstico, logo após o alvorecer, Yared se dirigiu ao


Laboratório Central da cidade. Deu seu nome e precisou enfrentar o fardo da longa fila
de espera formada por dezenas de pessoas carentes de semblantes entristecidos e
adoentados.
Via-se claramente o retrato do sofrimento físico e emocional estampado em suas
caras esquálidas, magras, ou inchadas pelos efeitos de suas doenças ou em virtude das
suas vidas desequilibradas ou excessivamente emaranhadas nas teias dos
relacionamentos, quer sejam afetivos, de amizade, profissionais ou de família.
Perdido em pensamentos de preocupação e levando em conta a impotência
humana diante da fenomenologia do universo, foi surpreendido pela voz rouca de um
funcionário daquele setor de exames.
“Senhor? Me mostre sua guia de encaminhamento.” – falou o homem
grosseiramente, quase num tom de comando.
Yared abriu o livro que estava tentando ler, mesmo na situação em que se
encontrava – em pé numa fila abarrotada de enfermos, de madrugada – retirou um papel
com quatro dobras, o abriu e entregou ao funcionário.
“Bem, seu caso será atendido por Sebastian. Ele é o único que trata dessa
doença aqui. Assim que ele chegar, eu lhe aviso e o senhor vai fazer seu exame com
ele.” – explicou o assistente de saúde.

133
“Tá bem, senhor. Eu espero sim.” – a voz de Yared estava destituída de vigor e
determinação como costumava ser antes desse fatídico diagnóstico.
“Venha. Saia da fila. Fique sentado ali naquele banco de espera. Assim que
Sebastian chegar eu lhe encaminho.”
Quando a enfermeira saiu com a senhora Lovingdale da sala de procedimentos
bem antes do esperado e a levou para a sala de repouso, Yared havia antevisto algo de
errado naquele exame de rotina. Agora, ele também estava sendo retirado, tipo
“isolado”, da fila das pessoas com uma “doença comum”.
Num determinado momento, Yared ergueu os olhos e avistou um homem alto,
magro, barba por fazer, uma barriga protuberante caindo por cima do cinto, vestindo um
jaleco um tanto desbotado e surrado pelo uso excessivo. Era a representação
emblemática do funcionário cansado e às vésperas da aposentadoria, cumprindo seus
derradeiros dias de expediente.
O homem olhou em sua direção, e de onde estava, a alguns metros de distância,
lhe dirigiu a palavra, quase aos gritos:
“Senhor Yared?”
Yared meneou a cabeça afirmativamente.
“Senhor Yared, siga-me até minha sala de exames. Eu sou Sebastian o único
especialista em hansen nesse hospital inteiro.” – foi falando o funcionário de aparência
pitoresca.

O homem cruzou a divisória de vidro larga e alta que separava o espaço de


espera do interior do prédio onde estavam localizadas as diversas salas destinadas aos
exames laboratoriais. Yared o seguiu apreensivamente, até Sebastian parar à soleira da
porta, fitá-lo e dizer:
“É aqui. Essa é minha sala. Percebe que não tem ninguém por perto. Eles me
evitam e evitam meus pacientes.”
“É mesmo? Mas, por que?” – perguntou Yared.
“Santo Deus! Isso não é preciso. Essa doença é igual a qualquer outra.” –
protestou o homem.
Adentraram uma pequena sala com apenas uma mesa, uma estante, duas
cadeiras, alguns cartazes bem antigos de advertência de cuidados preventivos contra o
mal de Hanse e um porta lixo.
“Senhor Yared, levante as mangas da sua camisa. Vou coletar sangue e soro
dos lóbulos das suas orelhas e das dobras dos cotovelos.”
Yared lhe obedeceu prontamente. Olhou em volta da sala escassamente
mobiliada. Espiou a estante com portas de vidro que deixavam à amostra lâminas e
bisturis! Um frio correu pela sua espinha.
Seria cortado ou furado para aquele exame. Sempre fora arredio a médicos e
hospitais quando se tratava de cuidados consigo mesmo. Não era nenhum covarde, mas
a perspectiva de estar ali como paciente, e de uma doença grave causava-lhe espanto.
“Senhor Yared, o senhor teve alguma situação de estresse grande ou
perturbação recentemente?” – perguntou o técnico laboratorial, parecendo ler a mente e
o coração do seu paciente.
“Ah, sim, tive. Me separei da minha companheira num processo bem
complicado.” - falou Yared compreendendo imediatamente.
“Bom, tá aí cinquenta por cento da causa de o senhor estar aqui sentado para
esse exame.”
134
“Hein... é mesmo? Como assim?” – perguntou ele num tom de indignação.
“Tenho trinta e cinco anos de experiência nesse tipo de doença, e ainda não vi
um paciente que não tenha tido sua imunidade baixada depois de um grande trauma.”
– acrescentou Sebastian instrutivamente.
“Então, a cabeça influi no corpo?” – perguntou Yared espreitando por mais
informações.
“Certamente, meu querido. Essa doença é edêmica, quer dizer, tá por aí, como
qualquer outra e qualquer pessoa pode pegar.”
“Mas, por que algumas pessoas pegam e outras não?” – Yared inquiriu de
forma investigativa.
“Apenas dez por cento da população desenvolve, e isso quando seu sistema
imunológico fica fraco.”
“Mas, porventura tem cura?” – perguntou com apreensão e curiosidade.
“Sim, com certeza. Pelo que tô vendo seu caso já está meio avançado, mas o
tratamento hoje em dia é bem eficiente.”
Passados cerca de quinze minutos de procedimento, o técnico falou
decididamente:
“Pronto, terminei. Volte daqui a dez dias pra pegar o resultado. Mas lhe digo:
vai ser positivo e daí o senhor começa seu tratamento.”
Yared se levantou da cadeira de ferro, um tanto enferrujada, com uma pintura
branca desgastada e cheia de falhas, agradeceu a Sebastian e se retirou.

De posse do resultado do exame, com índice 4,6, considerado elevado, Yared


passou a frequentar uma policlínica em busca da sua cura física. Todavia, como havia
lhe explicado Sebastian, o gatilho disparado fora de ordem emocional.
Qualquer enfermidade se origina em primeiro lugar no mundo psíquico do
paciente antes de se manifestar no seu corpo. Como estudioso e pesquisador, ele sabia
que precisava de outros procedimentos terapêuticos que iriam auxiliar no seu processo
de recuperação – reabilitação neuropsicológica.
A fim de apressar seu restabelecimento emocional, Yared, além de aderir ao
tratamento convencional e padrão com PQT, como havia lhe informado a bonita
dermatologista, buscou lutar contra aquelas bactérias negativas ativando os probióticos
espirituais existentes em seu organismo. Ele tinha muita força de vontade interior e
determinação. Ansiava por uma vida longa, propícia e apropriada e força, vigor e
capacidade para cumprir a sua missão mundial. Acreditava no poder do esforço e da
resiliência.

De forma semelhante que Yared havia montado a rede de apoio para o plano de
parto de Lorac, ele agora precisava montar a sua própria rede, igualmente. Deste modo,
além de advogados, cercou-se mais estreitamente de seus familiares, amigos, uma
terapêuta transpessoal e passou a frequentar com regularidade a instituição religiosa na
qual havia se batizado e a ter longas conversas esclarecedoras com o pastor responsável.

135
“Quando a circunstância é boa, devemos desfrutá-la; quando não é favorável, devemos
transformá-la; e quando não pode ser transformada, devemos transformar a nós mesmos.” – Viktor
Frankl

Yared iniciara sua jornada para o despertamento a fim de se lembrar quem ele
era – de se recordar da sua essência. Queria sinceramente se capacitar a se tornar uma
pessoa melhor, mais saudável, como consequência, mais útil ao semelhante. Queria
levar a cabo sua missão mundial que tinha ficado para trás no seu afã de satisfazer os
desejos, aspirações, metas, prazeres e vontades do seu falso ego.
Para isso precisava ter a condição colocada num diálogo do poeta romano
Juvenal sobre o que as pessoas deveriam desejar na vida: Mens sana in corpore sano!

“No estado de saúdel, a força vital espiritual autocrática que dinamicamente anima o corpo
material, reina com poder ilimitado e mantém todas as suas partes em admirável atividade harmônica,
nas suas sensações e funções, de maneira que o espírito dotado de razão, que reside em nós, pode
livremente dispor deste instrumento vivo e são para atender os mais altos fins de nossa existência.” –
Samuel Hahnemann

O terapeuta

“Encontrei o significado da minha vida, ajudando os outros a encontrarem o sentido de suas


vidas.” – Viktor Frankl

Havia se passado seis meses desde o início do tratamento com PQT. Yared já
apresentava melhoras significativas. Deixara de sentir o formigamento e a dormência
nos membros superiores e inferiores. E as manchas espalhadas pelo corpo começavam a
desaparecer. Seu organismo biopsíquico estava vencendo a guerra contra aquela
moléstia. Os obstáculos tinham começado a cair, as dificuldades a serem derrubadas.
E ele fazia reflexões contínuas acerca da sua enfermidade.
- Que significa essa doença para mim? Qual é a mensagem que o meu corpo me
transmite?

“Todos criamos doenças no nosso corpo físico. Se olharmos para trás, procurando-lhe a causa
original, veremos que ela tem sempre por base o fato de esquecermos quem somos. Enquanto
acreditamos que precisamos separar-nos para nos individualizar, continuaremos a criar doenças.”

136
“A dor é o mecanismo embutido que nos adverte da necessidade de corrigir uma situação,
dirigindo-nos a atenção para o fato de que algo está erradoe e nos cumpre fazer alguma coisa nesse
sentido. Se não tivermos atentado para nós mesmos antes, se continuamos a ignorar o que sabemos
desejar ou precisar fazer, a dor nos acabará ajudando a fazê-lo. A dor nos ensina a pedir ajuda, e cura e
é, portanto, uma chave para a educação da alma.” – Barbara Ann Brennan

O Promotor Público avaliando as duas exigências fundamentais para concessão


da liminar – medida emergencial para atender o direito da parte autora: perspectiva do
direto pleiteado e risco de dano, caso o mesmo não seja protegido – se pronunciou
favoravelmente à petição inicial de Yared para ter acesso às visitas e convivência com
Flor de Lótus. A juíza acompanhou a manifestação ministerial, e deferiu o pleito.
Lorac, a contragosto, foi obrigada a permitir o pai ver a filha. Descumprimento
de ordem judicial é crime passível de punição severa. No caso em apreço, variando de
multa, advertência, aumento do período de convivência da menor com a parte autora até
a inversão da guarda.
O ex-casal combinou de se encontrar num shopping center na zona norte, mais
próximo da casinha de sapé, onde Lorac estava morando, pois mais uma vez tinha se
mudado do condomínio de apartamentos.
Os encontros para as visitas se davam aos domingos, sempre das três às cinco da
tarde como tinha determinada a douta julgadora.
Além das visitas presenciais, com a ajuda da família, o pai comprou um tablet
Multilaser M7 para que sua filha pudesse vê-lo e eles pudessem reiniciar o processo de
reaproximação e fortalecimento dos vínculos afetivos – como assim se pronunciara o
Promotor Público.
Yared fez um plano de saúde, matriculou Flor de Lótus numa escola particular e
mantinha contato com a genitora via aplicativo de troca de mensagens no exercício da
guarda compartilhada.
Lorac sempre se mostrava arredia, e muitas vezes trazia assuntos passados para
discutir com o ex-companheiro dificultando desnecessariamente aquela reaproximação
conseguida a muito custo, tanto financeiro, quanto emocional e físico.
Mesmo assim, por ironia do destino, a ruiva, numa das conversas no aplicativo
de mensagens, enviou o link de um médico e terapeuta sistêmico. Curioso, Yared foi até
o site no Youtube desse profissional. Para sua surpresa, viu que ele já tinha se inscrito
no canal desde 2012 – sete anos antes de conhecer a marchand.
Ficou maravilhado com um curso de terapia sistêmica oferecido. Conteúdo
programático excelente, detalhista, abordando toda a complexidade da consciência
humana e as técnicas e estratégias para ampliá-la. Decidiu fazer aquele curso. Seus
olhos percorreram a página do site e foram diretamente para o valor do investimento.
Ficou boquiaberto e desanimado ao mesmo tempo: $ 9.477,00!
Ele não dispunha daquela quantia para se matricular. E precisava
desesperadamente daquele conhecimento para ajudar na sua busca do sentido da vida.
Precisava, e ia descobrir um meio de fazê-lo.
Passaram alguns dias. Yared não podia deixar de pensar no curso e como
conseguir a quantia necessária. Até que... lhe ocorreu uma sensação do tipo “arrá!”
Pensou:
- Vou usar minhas habilidades linguísticas. Sou tradutor e intérprete profissional.
E se esse instituto quiser traduzir e legendar todo o seu material para a língua inglesa? E
se eles aceitarem uma proposta de escambo?

137
Sem perder tempo, ato contínuo àquele insight, ele redigiu uma proposta e
enviou no instagram do médico que era o fundador e diretor do instituto.
- Prezado, Dr. Alexander. Meu nome é Yared e sou tradutor e
intérprete profissional. Achei seu curso de consciência sistêmica muito
interessante e importante. Acredito que deveria ser lançado a nível
mundial. O que o senhor acha da ideia de traduzir todo seu material
didático e legendar suas vídeo-aulas para que este conhecimento alcance
uma população exponencialmente maior em todo o planeta Terra. Estou a
sua disposição para conversarmos sobre o assunto. Cordialmente, Yared.
Pronto. Tinha feito a sua parte. Agora ia esperar o universo agir.
Sete dias havia transcorrido, e nenhum retorno da proposta. Absolutamente
determinado a fazer o curso, ele ponderou mais detidamente sobre qual seria o motivo
da ausência de resposta.
Ah! Aquele era um homem deveras ocupado. Uma mensagem de um
desconhecido perdida no meio de centenas de outras tinha escassa chance de ser lida.
Por esta razão, ele teria que pensar numa outra forma de chegar até o chefão. Foi
quando com mais pesquisa identificou o nome de uma moça com o mesmo sobrenome
do médico.
- Então é isso! Essa moça é filha dele. Vou escrever pra ela! – refletiu e
decidiu Yared.
Replicou o texto, mas dessa vez na janelinha de mensagens privadas do
instagram da garota. Três dias depois chegou a resposta tão esperada.
- Olá, Yared. Sou filha do Dr. Alexander. Li sua mensagem e uma
assistente nossa vai entrar em contato com o senhor.
Yared, incontinenti, digitou radiante de contentamento o texto:
- Muito obrigado. Fico feliz com isso. Vou aguardar ela fazer contato.
Que genial! Que ideia formidável! Alguém ou algo tinha lhe soprado aos
ouvidos como conseguir fazer o curso sem envolver pagamento com dinheiro. Sua
mensagem encontrara eco do outro lado. E pelo texto da moça, havia chance da
esperada permuta.
- Yared, meu nome é Greta. Tabalho como administradora do instituto. A
direção ficou muito interessada na sua proposta. Queremos fazer um teste do seu
trabalho. Pode ser? – dizia a mensagem de texto recebida no mesmo dia do contato da
filha do Dr. Alexander.
Não cabendo em si de tanta alegria, o linguista digitou de volta:
- Olá! Muito obrigado pelo contato e interesse na minha proposta. Estou pronto
para fazer o teste. Pode enviar para o meu email: yaredauthor@zohomail.com.
O teste que havia sido combinado para dali a 5 dias no primeiro contato, fora
antecipado por força da euforia e expectativa que a proposta de Yared tinha causado na
direção da empresa.
O instituto estava se preparando para lançar o curso nos Estados Unidos quando
recebeu a mensagem de parceria do linguista. Que coincidência! Ou melhor – que
sincronicidade! Ou então, como seu irmão da igreja, descontraidamente costumava se
referir a esse fenômeno: Jesuscidência!

138
A sincronicidade (do grego “syn”, junto, e “chronos”, tempo) é a designação do psicólogo suíço
Carl Gustav Jung (1875-1961) para um princípio que deveria explicar a relação significativa não causal
de acontecimentos, a “coincidência significativa” de dois ou mais fatos. Se aceita a hipótese, a adoção de
uma função psi – que tornaria possível uma explicação causal – torna-se supérflua. A hipótese foi
desenvolvida por Jung num trabalho conjunto com o físico austríaco Wolfgang Pauli (1900-1958).

Em outubro daquele mesmo ano, descortinava-se um panorama novo e intrigante


diante do linguista poliglota.Yared iniciou o curso em consciência sistêmica para o seu
deleite. A turma era formada por 63 alunos. Todos os matriculados em busca de maiores
conhecimentos. Muitos deles já profissionais da área de saúde mental. Dentre eles,
podia-se encontrar psicólogos, psicanalistas, terapêutas das mais diversas procedências.
Todavia, havia alguns iniciantes neste campo de estudo e tabalho, como Yared.
As aulas aconteciam sempre aos sábados e domingos uma vez por mês, na
modalidade imersão total – das 09:00 às 18:00 – com curtos intervalos apenas para
coffeebreaks, almoço e lanche. Os encontros eram divididos em vídeo-aulas, exercícios
intrapessoais, interpessoais e sistêmicos, onde os alunos interagiam entre si, pondo em
prática o conteúdo teórico recebido nos vídeos ministrados pelo Dr. Alexander. Tudo
era sistematicamente ensinado: ponto sobre ponto, conceito sobre conceito; um pouco
aqui, um pouco ali. Havia muito feedback, troca de ideias, experiências e tira-dúvidas
pelas mentoras e instrutores.
Esse curso além de ser de formação era de modo semelhante uma terapia
propriamente dita, pois nas sessões interpessoais e sistêmicas, os alunos, em
revezamento, tinham a oportunidade de falar e vivenciar constelações sistêmicas como
parte da sua aprendizagem. Ele participava das aulas com avidez e queria a todo custo
aproveitar ao máximo para apreender o quanto lhe fosse possível. Aqueles estudos lhe
proporcionaram benefícios imensos e satisfação continuamente crescente.
Ao longo das aulas, Yared foi tendo sua consciência ampliada. Uma
compreensão mais profunda, interligada, sistêmica dos seus emanharamentos –
problemas e traumas – foram imergindo do subconsciente para sua consciência desperta,
deixando-o a par da verdadeira causa da dor. Era aluno e era paciente ao mesmo tempo.
Muitas vezes nos perdemos nos caminhos da vida, desafiados pelos testes do
nosso destino e sufocados em nossos sofrimentos.” –
Não somente seu trabalho de tradução, mas também de legendagem contribuía
imensamente para a assimilação do conteúdo do curso, pois ele distintamente dos
demais aprendizes, tinha que assistir as vídeo-aulas diversas vezes. Precisava fazer a
transcrição das falas do instrutor, Dr. Alexander, traduzi-las e inserir as legendas. Já os
módulos de estudo dirigido foram lidos inúmeras vezes na busca da melhor versão em
língua inglesa. Sua responsabilidade era imensa. Estaria colocando o programa inteiro
daquele curso na língua franca, a partir da qual seria vertido para todos os demais
idiomas, a nível planetário, num futuro próximo.
Sentiu fortemente no íntimo que sua missão mundial tinha se iniciado. Que
maravilha! Que bênção! Que privilégio poder contribuir com sua humilde habilidade
para um proeza tão significativa para ampliar a consciência dos habitantes dessa nossa
Terra tão sofrida, machucada e palco de toda sorte de insensatez humana.
Havia sido Lorac que tinha lhe passado o link do médico terapeuta, mesmo lhe
sendo hostil e parte adversária nos processos que rolavam na justiça, mesmo tendo lhe
denunciado falsamente, era ela que tinha lhe mostrado o mapa do tesouro!

139
Passados nove meses desde outubro do ano anterior – um tempo de uma
gestação – Yared concluía seu curso, se formando em Analista e Constelador Sistêmico
pelo conceituado instituto do Dr. Alexander. E nascia um novo homem. Seu Self havia
despertado. Começou a idealizar a migração de carreira. Sentiu que suas atividades de
linguistas estavam chegando ao fim. Era o fechamento de um ciclo profissional. Era a
abertura para um outro.

“Não perca a esperança diante da tirania das condições prevalecentes. Momentos de grande
alegria como períodos de desgraças escuras podem ser experimentados com comedimento, pois tudo é
efêmero e transitório. ‘Nossos dias são como a sombra que passa.’ Tanto os júbilos como o sofrimento
bem cedo terão passado.” – Irving M. Bunim

Parte 6

140
Reminiscências, reflexões e amadurecimento
Capítulos 18-22

Θ CAPÍTULO 18 – A dor
Θ “Chegou papai!”
Θ Jardim da infância
Θ Medo e insegurança
Θ A maior dor do mundo
Θ Um novo ser
Θ CAPÍTULO 19 – A cegonha
o A maior invenção da humanidade
o O livro misterioso
Θ CAPÍTULO 20 – Uma língua franca
o Um povo distante com língua estranha
o Meu primeiro livro de inglês
Θ CAPÍTULO 21 – Rito de passagem
o “Se não...pode deixar de ser macho!”
o “Ela é bem gostosa e limpinha!”
o “Tira a roupa e vem pra cima de mim!”
Θ CAPÍTULO 22 – Meu primeiro amor
o “King Kong
o Um homem completo, afinal
Θ CAPÍTULO 23 – “Vou casar com você!”
o Meu primeiro emprego
o Profecia revelada
o Profecia não revelada
Θ CAPÍTULO 24 – Rumo ao novo desafio
o Êxodo
o Meus alunos
o Alunos certos no curso errado
o Minha “Dream School”
o Necessidade e ambição
o Ciência e negócios

141
o Pioneirismo e lucros

142
18
A dor
“Quando a principal interrupção do fluxo de energia vital se verifica mais cedo, se dá o nome
de estrutura esquizoide. Nesse caso, a primeira experiência traumática se registrou antes do nascimento
ou por ocasião dele, ou ainda nos primeiros dias de vida. O trauma costuma se centrar ao redor de
alguma hostilidade recebida diretamente de um pai, como a raiva de um dos pais, o pai que não deseja o
filho, ou ainda o trauma durante o processo de nascimento – como a mãe que se desliga emocionalmente
do filho, fazendo-o se sentir abandonado. A série de eventos dessa natureza é grande; um lgeiro
desligamento entre mãe e filho pode ser muito traumático para um filho, e pode não surtir efeito nenhum
sobre outro. Isso se relaciona com a natureza da alma que chega e com a tarefa que ela escolheu para si
nesta vida.” – Barbara Ann Brennan

“Chegou papai!”

E u tinha mais ou menos uns cinco anos de idade. Era um garotinho feliz lá por
volta do início dos anos 60. Adorava brincar de carrinhos e jogar bola com meu
irmão mais novo no terraço da nossa pequena casa.
Da mesma forma, tenho boas lembranças das brincadeiras com minha irmã.
Éramos muito apegados por causa da proximidade de idade. Ela é apenas um ano mais
nova do que eu. Sou o mais velho de cinco filhos. Portanto, sou o primogênito.
Lembro que nossa casa já tinha televisão naqueles anos. Coisa rara naquela
época. Lembro que a TV só começava a funcionar a partir das 5 da tarde. Mamãe ligava
aquele grande e pesado aparelho que ficava sobre uma peça de mobília da nossa sala e
nos deixava em frente daquele monstrengo esperando as primeiras imagens aparecer.
De repente, surgia um indiozinho e ficava tocando uma música de fundo. Só
isso: um tupi guarani mirim e uma melodia monótona. Aquela inicialização da TV
demorava muito tempo. Uma eternidade para o horizonte temporal de crianças pequenas
de alguns poucos anos de vida.
Porém, a expectativa de assistirmos nossos filmes preferidos – Hércules e
Popeye – compensava a espera de ficarmos com os olhos grudados naquela tela preto e
branco durante vários minutos.
Lembro também que crianças da nossa idade menos afortunadas ficavam se
acotovelando, quase penduradas no nosso portão, tentando enxergar alguma cena
daquele aparelho ainda misterioso.
Minha mãe costumava dar banho nos meus quatro filhos no final da tarde.
Trocava suas roupas. Dava-lhes lanche e nos deixava sentados no terraço esperando
papai chegar. Era quase um ritual, ou melhor, uma rotina com a precisão e o rigor
militares.
Quando nosso pai-herói chegava no carro da polícia era motivo de imensa
alegria. E todos em coro, ao mesmo tempo, simultaneamente e em uníssono gritávamos:
“Chegou papai!” Chegou papai! Chegou papai!”
Ele descia do carro em uniforme de oficial e nos presenteava com um chocolate
Lacta. Uma delícia gastronômica paradisíaca.
Aquele momento era a apoteose, o clímax de todo o dia de brincadeiras,
travessuras e algumas reprimendas por parte da nossa mãe ou da nossa avó materna.
Não lembro de uma felicidade maior do que aquela em todo o curso dano mundo
minha existência.

143
Jardim da infância

Jamais tinha tido qualquer experiência de vida fora do ambiente doméstico.


Minha casa era meu mundo. Meu universo encantado e seguro que meus pais me
proporcionavam.
Chegara a época de nos levar para a escola. Naquele tempo não tinha, maternal,
berçário ou outra opção. A criança ia direto para o jardim da infância.
Então, minha mãe falou para mim e minha irmã que a gente iria estudar numa
escola do bairro. Para mim aquela notícia foi motivo de alegria, pois sempre que nosso
pai ou nossa mãe nos levava para algum lugar, tínhamos bastante diversão e lazer.
Então, que chegasse o esperado primeiro dia de aula!
Assim, de fato e inevitavelmente, chegou o esperado dia da nossa primeira
experiência no ambiente escolar.
Nossa mãe nos vestiu com a farda da escola. Recordo que a minha era uma calça
curta e um camisa de um tecido de cor cáqui e grosso. Tomamos o café da manhã e
seguimos para a tão aguardada novidade.
Durante a caminhada até o educandário, minha mente estava despreocupada e
tranquila. Lembro de sentir o vento fresco da manhã combinado com os raios aquecidos
do sol sobre meu rosto. Estava segurando a mão da minha mãe de um lado e minha
irmãzinha a mão dela do outro.
Para mim seria mais um daqueles passeios super legais que a gente costumava
fazer. Essa tal escola deveria ser um lugar muito bacana. Afinal de contas, mamãe
estava nos levando.
Chegamos. Uma moça muito simpática veio até nós. Fomos apresentados. Era
nossa professora. Minha primeira professora. A escola estava cheia de crianças com
suas mães ao meu lado. Parecia uma festa. Então, aquela deveria ser uma boa
experiência. Era evidente, portanto, que iríamos nos divertir a valer.
Mamãe entrou no estabelecimento. Guiada pela nossa professora nos levou até
um espaço grande. Tinha estantes, cadeiras com uma prancheta na frente e um suporte
na parte de baixo para colocar material. Era nossa sala de aula e nossa carteira escolar.
A professora começou a nos mostrar alguns brinquedos e coleção de lápis de
cor. Leu um trecho de um livro de estória infantil. Pareceu-me uma pessoa legal.
Amistosa e divertida.

Medo e insegurança

De repente, senti falta da minha mãe. Não consegui mais vê-la na sala. Olhei em
todas as direções e não a vi. Comecei a ficar inseguro e com medo. Um desespero foi
tomando conta de mim. Comecei a chorar.
Apesar das palavras confortantes e carinhosas da professora eu não parava de me
derramar em lágrimas. Foi quando minha mãe foi chamada na sala.
Quando a vi, meu coração voltou a calma. Finalmente, lá estava ela. Por que
tinha desaparecido e me deixado naquele lugar estranho sozinho?

144
Mãe e professora conversaram. Não entendi nada, mas pelo tom de voz era sobre
mim e minha não adaptação ao ambiente escolar no primeiro dia de aula.
Para a minha maior felicidade, minha mãe me pegou pela mão e me tirou de lá.
Que alívio! Agora podia respirar tranquilo como sempre tinha sido. Aquela sensação de
aperto no coração e abandono tinha se dissipado.

A maior dor do mundo

No caminho de volta para casa, rindo, lancei um olhar de baixo para cima para
ver o rosto da minha mãe.
Foi uma visão terrível! Os olhos dela pareciam estar cheios de fogo. Jamais tinha
visto ela assim antes. Fiquei sem entender e sem poder decodificar aquele semblante
nunca presenciado anteriormente. Olhei para o chão a fim de lançar para longe de mim
aquele olhar fulminante e esmagador.
De repente, recebi o primeiro golpe na cabeça – um forte cascudo que me fez ir
um pouco para a frente. Depois outro. Mais um. A dor foi intensa. Antes que eu soltasse
o choro, minha mãe começou a me xingar. Não entendia todas as palavras, mas me
lembro de algumas:
“Seu medroso! Vai ficar burro! Não vou deixar você brincar, nem assistir
televisão! Vai ficar de castigo! Você me fez uma grande vergonha hoje!” – esbravejava
ela.
Eu pensei que tinha sido salvo daquele espaço desconhecido e da presença
daquelas pessoas estranhas que tinham sido o motivo do meu primeiro sofrimento.
Todavia, o castigo físico e a violência verbal de quem eu esperava acolhimento e
proteção me infligiram uma dor mil vezes maior do que aquela que tinha sofrido na
escola.
Pela primeira vez tive um sentimento diferente e desconhecido na minha vida. E
em relação a minha própria mãe – MEDO! Minha existência estava sendo ameaçada.
Depois o segundo sentimento diferente, desconhecido e nefasto – ÓDIO!
No segundo dia de aula, por questão de sobrevivência, resolvi suportar a
angústia do afastamento da minha mãe e a insegurança do ambiente escolar, ainda não
adaptado a ele. Aquela tortura, por incrível que pareça, era menos dolorosa do que sentir
mais uma vez a dor dos cascudos sobre minha cabeça e a agressão verbal vindos da
minha genitora.
Aprendi a engolir o choro. Desconectei-me do coração, e me concentrei na
cabeça. De fato me tornei o aluno destaque. Acredito que por duas razões: primeiro eu
agora era mais mental do que sentimental. E segundo, talvez para provar a minha mãe
que ela não iria mais sentir vergonha de mim e que eu não seria burro.
Afinal de contas, eu ainda queria ter acesso ao prazer – para mim na época:
brincar e assistir televisão. Também não desejava mais ficar de castigo. Na minha casa,
consistia em ter que ficar sentado na mesma cadeira. A “sentença condenatória” poderia
ser de alguns minutos ou até horas, dependendo do “delito” cometido.

Um novo ser

145
Realmente, eu sou um homem que tenho vivido 90% com o cérebro e apenas
10% com o coração. Descobri que houve uma interrupção do fluxo de amor com relação
exatamente ao meu primeiro objeto de amor – MINHA MÃE.

19
A cegonha
“xxx
A maior invenção da humanidade

L ivros! Sempre foram minha paixão. Na minha opinião, a maior invenção da


humanidade. Toda a glória e honra a Gutenberg! Pai da imprensa que tirou o
homem do obscurantismo e da ignorância crassa. Numa época em que não havia
qualquer forma de comunicação de massa, sua simples máquina tornou viável levar o
saber a milhões e milhões de seus irmãos. Seus benefícios eram inegáveis!
Foi a invenção desse gênio que possibilitou a impressão da Bíblia pela primeira
vez. Aquela proeza tirou de Roma o monopólio do acesso às escrituras sagradas.

146
Um divisor de águas para o gênero humano – antes e depois do livro. Antes:
ignorância e trevas, Idade Média. Depois: luz e conhecimento, Era do Renascimento.
Não poderia ter havido escolha mais apropriada para esse período da evolução da
humanidade – renascimento.

Desde bem criança, quando aprendi ler, descobrira nos livros uma forma de
acessar verdades que eu não conseguia mediante os adultos. Ou porque sonegavam
informações ou porque não sabiam mesmo. De uma forma ou de outra, a minha
curiosidade insaciável ficava insatisfeita, forçando-me a me tornar um livre pesquisador
desde tenra idade.
Foi num livro que descobri como de fato as crianças vêm ao mundo. Aquela
velha história de cegonhas carregando os bebês pendurados num lençol e os deixando
cair pela chaminé era fake news contada pelas pessoas adultas. Não se sabe para quê e
nem porquê.

O livro misterioso

Naqueles dias a minha mãe estava grávida do seu quinto e último filho. Eu
contava com meus nove anos de idade.
Era muito curioso e vi quando minha mãe chegou das compras certa vez em
casa. Uma barriga enorme, várias sacolas de papelão abarrotadas com artigos para o
bebê na mão direita e um livro grosso de capa azulada com uma cegonha ilustrada na
mão esquerda. De imediato, minha atenção foi direcionada para aquele livro.
“Mamãe deixa eu ver esse livro!”
“Não menino! Deixe de ser intrometido. Esse livro não é para crianças. Saia
daqui! Vá brincar!” – disse ela num tom de voz irritado e autoritário.
Essa atitude teve o efeito contrário sobre mim. Então, me determinei a ter aquele
livro nas suas mãos e descobrir que tipo de segredo de abelha era aquele que era trazido
por uma cegonha num volume com tantas páginas.
O quarto de meus pais ficava no andar de cima. Por diversas vezes, remexi as
gavetas de minha mãe na tentativa de achar o livro cercado de alto grau de mistério.
Nada. Na cômoda. Absolutamente nada.
O livro tinha se evaporado, enterrando-se chão abaixo, ou voltado para o céu no
voo de regresso da cegonha.
Ah... para baixo era impossível pois se assim fosse ele teria ido parar no andar
térreo. Deste modo... só restava uma possibilidade para o paradeiro daquela obra
enigmática. Era ter subido. Mas... e o telhado?
Em determinado momento, os meus olhos se detiveram numa peça de mobília
que estava encostada no canto do quarto – o guarda-roupa.
Arrá! Então era isso! Minha mãe deveria ter escondido aquele segredo em cima
daquele móvel.
Porém, um guarda-roupa antigo era muito alto para uma criancinha de apenas
nove anos alcançar o seu topo. Só passou uma ideia na minha cabeça de menino que
poderia me dar acesso a parte de cima daquela mobília.

147
Eis que elaborei um plano. Esperaria minha mãe sair para as compras mais uma
vez.
Uma ou duas semanas depois, a futura mamãe precisou fazer exames de rotina.
Meu irmãozinho estava prestes a nascer.
Por volta das duas horas da tarde, minha mãe realmente saiu de carro para o
centro da cidade. Pronto! Chegara o momento de desvendar aquele mistério. Eu iria pôr
meu plano em prática.
Peguei uma das cadeiras altas estilo colonial retro da sala de jantar. Com muita
dificuldade, escalando os cinquenta e poucos degraus do térreo até o primeiro andar –
eu havia contado a quantidade de degraus para garantir o sucesso da mina missão de
Indiana Jones mirim, levei a cadeira para o quarto da minha mãe.
Finalmente, consegui chegar no dormitório de meus pais com o andaime
improvisado. Subi na cadeira e comecei a tatear o topo do guarda-roupa.
De repente, minhas mãos toparam com um objeto. Era um livro. Ah, só poderia
ser o tal Códex Sagrado, cuja leitura era terminantemente proibida ao povo menor de
idade.
Peguei o livro e vi a cegonha cara a cara – ou melhor, cara a bico. O pássaro de
fato carregava um bebê enrolado num lençol. Também tinha a imagem de uma chaminé.
Certamente, indicando o lar em que o recém-nascido deveria ser despejado.
Desci da cadeira. Sentei-me na beirada da cama e comecei a folhear. A obra era
ricamente ilustrada com fotos reais de uma mulher grávida. Continuei a avançar nas
páginas até que meus olhos quase pularam para fora das órbitas.
Vi a cabeça de um bebê saindo pela vagina de uma mulher. Aquela fora minha
cena primária – forte demais para uma criança de apenas nove anos de idade no início
da década de 70, filho de um lar conservador.
Passei mais algumas páginas. Sangue cobrindo o bebê. Fixei os olhos na
expressão de dor da mãe. Voltei para a capa e tinha escrito: PARTO SEM DOR!
Que mentiras deslavadas! Cegonhas parteiras não existiam. Parto sem dor uma
ova! A cara da mulher toda suada, cabelo desgrenhado, pernas arreganhadas pra cima e
gritando. Aquilo parecia mais a cena de uma câmara de tortura. Muitos anos depois vim
a compreender perfeitamente porque é chamado de “trabalho” de parto. Dar à luz era
uma empreitada assaz penosa.
Fiquei completamente chocado com as fotografias e a descoberta da realidade de
uma forma nua e crua. Também decepcionado com as enrolações do mundo adulto.
Subi mais uma vez na cadeira e coloquei o livro de volta. Para nunca mais o
abrir novamente. E nunca mais acreditar em adultos de novo.

Com dois meses passados daquele trauma visual, meu irmão caçula nasceu. Eu
já sabia como ele tinha saído da barriga da minha mãe. Agora, precisava descobrir como
ele teria entrado. Mas, isso eu só descobriria quase uma década depois.

148
20

Uma língua franca


“xxx
Um povo distante com língua estranha

E u era um garotinho muito acanhado, mas de uma inteligência fulgurante e um


gosto peculiar por idiomas. Ficção-científica. Cientistas e pesquisa. Disposição
raramente vista em crianças.
Com essa idade, já tinha esboçado meu projeto de uma língua universal. Projeto
que nunca vingou, evidentemente. Todavia, tivera a perspicácia, paciência e forte desejo
de inventar um idioma através do qual todas as pessoas pudessem se comunicar.
Eu ficara frustrado quando num passeio com os meus pais, pegara da estante um
livro infantil que não consegui ler – a obra era magnificamente ilustrada.
Pedi a ajuda do meu pai que sorriu e me disse que aquele livro estava escrito
noutra língua. A língua de um povo que morava noutro continente muito distante.
Como assim? Então existia gente que falava palavras diferentes das minhas e
morava noutra parte do planeta? As crianças de sua idade podiam ler e eu não?

149
Meu primeiro livro de inglês

Tal descoberta favorecida pelo meu pai mexeu com o meu lado “cientista”.
Aquela simples informação foi suficiente para disparar o gatilho da curiosidade
em mim. Fiz com que meu pai comprasse o tal livro infantil americano e o levei
alegremente para casa.
Já sabendo ler, e não sendo capaz de ter acesso ao que estava escrito naquela
obra me foi um desafio sem tamanho.
Estava iniciada a jornada de estudo de inglês que me levaria a me tornar um
linguista profissional no futuro.

De maneira semelhante, tanto quanto a prensa mudara a história da humanidade


– e sua invenção foi um turning point – um ponto de virada – no enredo evolutivo do
planeta, aquele livro americano foi um antes-depois na minha vida.

21
Rito de passagem
“xxx
“Se não... pode deixar de ser macho!”

E ra o início de 1975 – meados da década de 70. Eu iria completar quinze anos de


idade no mês de outubro daquele ano.
Era um adolescente tímido e caseiro. Vivia apenas para estudar e ler livros de
ficção científica – meu gênero predileto para filmes e leitura.
Naquela época, um rapaz cinco anos mais velho do que eu, então, por volta dos
meus vinte e poucos anos morava na casa da minha família de origem.
Esse jovem havia sido contratado para ajudar nos serviços domésticos. Porém,
sua adaptação à nossa família, e essa a ele foi tão grande que era quase filho adotivo da
casa.
Viera de um interior do alto sertão, onde os costumes e valores são bem distintos
da vida da cidade grande.
Devido à proximidade que esse rapaz tinha comigo, foi com ele que aprendi as
primeiras lições sobre a vida sexual com mulheres.
“O homem precisa deixar de ser donzelo aos quinze anos. Não pode passar
disso. Se não pegar a primeira mulher com essa idade, vai ter problemas e pode até
deixar de ser macho.” – ensinou-me esse guru fake da sexologia.
“Sério?” – perguntei-lhe num tom assustado.
“Sim, sério. E aí? A gente vai ou não vai naquele lugar que te falei?” –
perguntou o funcionário adotado.
Titubeando e com a voz embargada, respondi:

150
“Sim, claro. A gente vai. Daqui pra outubro eu vou com você. Eu sou um
homem de verdade e vou te mostrar!”
De fevereiro a outubro daquele ano, vivi um tormento. Um dilema. Um impasse.
E como seria essa tal relação sexual ao vivo e a cores com uma mulher de verdade em
carne e osso? Precisava esperar para descobrir.
Finalmente, o décimo mês do ano chegou. A data do meu aniversário se
aproximava, e aquele seria o mês programado para eu perder minha virgindade. Seria
um presente ou um desastre? Só me restava enfrentar a empreitada e conferir por mim
mesmo.

“Ela é bem gostosa e limpinha.”

“Vou pedir uma cerveja pra gente. Você precisa ficar calmo pra não brochar na
hora H.” – disse o rapaz caipira.
“Pode pedir, eu gosto de cerveja.” – disse isso e baixei minha cabeça, olhando
para o chão. Sinal claro da linguagem não verbal de que estava mentindo.
“Aquela dona ali, tá vendo ela?” – perguntou o matuto.
Com o coração disparado, respirei fundo, engoli com força e assenti:
“Sim, tô vendo. O que tem ela? “
“É a rapariga que vou chamar pra você transar seu tolo. Ela é bem gostosa e
limpinha. Pode ir tranquilo.” – orientou ele.
Com um aceno de mão, como se chama um garçom com o cardápio dos pratos a
comer, o empregado doméstico e meu amigo convidou a meretriz a se aproximar da
gente.
Quando a mulher chegou estava a poucos passos, ele disse:
“Esse cara aqui é meu amigo. É donzelo. Vai ser a primeira vez dele. Faça o
que você sabe. Ok?” – recomendou o coach sexual improvisado.

“Tira a roupa e vem pra cima de mim!”

Aquelas palavras anularam todo o efeito embriagador das cervejas que eu tinha
tomado. Fiquei mais vermelho de vergonha do que aquela luz que iluminava o
ambiente.
“Tira a roupa e vem pra cima de mim!” – disse a mulher logo depois que tinha
se despido e se atirado numa cama de casal que estava mal forrada e aparentemente
suja. Era bem baixinha e quase rente ao chão. Aquela era a única mobília que ficava
grudada no canto de uma parede. Era um minúsculo quarto parcamente iluminado por
uma lâmpada de poucos watts de potência. Que ambiente malsão, física e
psicologicamente, para um debut sexual!
Ali estava eu diante do meu ritual de passagem – chegara o momento de deixar
de ser apenas um garoto escolar para entrar na vida de homem sexualmente ativo.
Era a primeira vez que estava diante de uma mulher nua de verdade. Toda minha
experiência com o corpo feminino havia sido através de revistas pornográficas que
entravam clandestinamente lá em casa por intermédio do meu amigo e quase irmão
adotado.

151
No entanto, no auge da minha puberdade, com hormônios extravasando por
todos os poros, o toque no corpo daquela prostituta deflagrou meus instintos. Penetrei
aquela mulher meio desajeitado. Cheguei ao orgasmo em questão de poucos minutos.
A mulher me empurrou para o lado. Puxou sua única peça de roupa por cima da
cabeça e para baixo do corpo. E estendeu a mão cobrando pelos meus serviços. Abri a
carteira e lhe passei algumas cédulas. Pronto! Eu agora era um homem de verdade.
Saí daquele muquifo com o peito estufado como um pavão. Agora era macho
mesmo!

22
Meu primeiro amor
“xxxxx
King Kong

N as férias escolares de 1977, precisamente no mês de julho, eu iria conhecer minha


primeira namorada.
A moça era irmã da melhor amiga da minha irmã. As duas famílias moravam na
mesma rua, distando apenas duas casas uma da outra. Tanto os pais como as mães das
duas jovens eram amigos e amigas pessoais.
O grande sucesso de bilheteria que estava bombando nos cinemas naqueles dias
era o famoso clássico King Kong numa versão nova com Jessica Lange como a
protagonista. Era um filme repleto de efeitos especiais, os quais eram inéditos para
aqueles anos da década de 70.

O gorila gigante aparecia magnificamente projetado no telão para o suspense e


delírio da plateia espectadora. A bela mocinha aparecia fragilmente desprotegida nas
mãos daquele macaco enorme. Ela aos gritos pedia socorro, porém depois que percebeu
que o animal havia se apaixonado por ela e a protegia da violência e beligerância dos
homens brancos, descansava suspirando, deitada na mão de King Kong.

Na estreia do filme agendada para um dos maiores cinemas da cidade, fui junto
na companhia da minha irmã e da amiga dela. A irmã da amiga também estava na fila
para a compra dos ingressos naquela noite fria e chuvosa de julho.
Kate era uma moça baixinha. Tinha um metro e cinquenta e dois centímetros de
altura. Olhos pretos pequenos. Tinha uma bunda arredondada e um tanto saliente. Era

152
cinco anos mais velha do que eu. Havia acabado o namoro com um cara inflexível e
sério em excesso.
Inesperadamente, Kate se aproximou de mim, me perguntou algo e pegou na
minha mão. Ficamos de mãos coladas uma na outra até chegar a vez de entrarmos na
sala de projeção. E durante todo o filme também.
Senti um misto de ternura e excitação de estar naquele contato físico direto com
a garota. Pois, embora já tivesse tido minha primeira relação sexual e saído do rol de
adolescentes donzelos, ainda não havia embarcado num relacionamento sério ao longo
daqueles meus primeiros quinze anos de vida.
Ao chegarmos na vila onde morávamos, me detive um pouco no terraço da casa
de Kate. Sentamos num balanço e levamos uma boa conversa por cerca de duas ou três
horas.
Quando o pai da moça a chamou, avisando que já estava na hora de entrar, fui
surpreendido por aquela que seria minha primeira namorada.
A moça agarrou o meu queixo e virou o meu rosto para si, me beijando na boca.
Aquele foi o meu primeiro beijo. A sensação foi indescritível porque eu não
tinha parâmetro como referencial com o quê comparar.
Fiquei um pouco tonto. Senti um frio na espinha, e uma tremenda ereção fez
meu membro se projetar sob a calça jeans que estava usando.
Sem falar mais nada um para o outro, me levantei, disse até logo e caminhei para
casa flutuando nas nuvens devido àquela experiência inédita e prazerosa.

Um homem completo, afinal

Senti-me um homem completo agora. Afinal de contas, já tinha tido minha


primeira relação sexual, e, por último, meu primeiro beijo.
Deste modo, eu e Kate vivemos um relacionamento amoroso por quatro anos a
fio.

153
23
“Vou casar com você!”
“xxxx
Meu primeiro emprego

C hegara-se ao início dos anos 80. Estava com meus vinte anos de idade e teria
minha primeira experiência profissional como professor de inglês depois de uma
acirrada concorrência por uma vaga naquele cargo. Por isso estava em enorme
medida empolgado com a oportunidade de ganhar dinheiro fazendo algo que adorava –
o uso da língua inglesa.

Os anos 80

Essa década foi muito marcante. Quem viveu essa época, com certeza, nunca
esquece. Quem ainda não era nascido certamente reconhece a estética dessa fase. Os
cabelos eram ousados, as músicas empolgantes, o cinema, então, trouxe clássicos que
nunca saem de moda.
A década de 80 abrangeu grandes episódios nos mundos esportivo – Olímpiadas
de Moscou, Copa do Mundo na Espanha, etc., no da arte, cinema e TV – séries policiais
ganham notoriedade – Desejo de Matar, As Cores da Violência e Os Selvagens da
Noite, A Família Addams, Alf, o Eteimoso e Capitão Caverna.
E os álbuns de figurinha, uma febre dessa década, reunindo principalmente
crianças e jovens com o objetivo de completar todas as figurinhas.
Na política, a redemocratização do Brasil com o movimento Diretas Já mudou a
vida dos brasileiros de forma profunda.
Ouvir música nos anos 80 não era uma tarefa simples. Além do disco de vinil,
era necessário ter um toca-discos. As playlists eram feitas por meio das gravações de
áudio dos rádios, fazendo com que a qualquer momento surgisse a voz de um locutor.
Ser adolescente nos anos 80 também não era tarefa fácil. As baladas de hoje
eram os bailinhos de anos atrás, que aconteciam nas garagens de algum amigo, sem
bebidas alcoólicas e com hora marcada para voltar para casa.

154
Nada de selfie! Nos anos 80, além de não existirem as famosas selfies, as
câmeras não eram digitais. Você tirava a foto e esperava o filme acabar para revelar
todas e saber se algumas ficou boa.

Profecia revelada

Depois da reunião final com o coordenador para receber as últimas orientações,


recebi a lista dos meus novos alunos que deveriam ser chamados, um por um, para
seguirem para a sala de aula.
Desci as escadas e me dirigi até a área externa do casarão onde a escola estava
instalada. O espaço estava lotado de jovens. Moças e rapazes adolescentes daqueles idos
anos 80s. Barulhentos. Alegres. Brincalhões.
Eu era um professor estreante, e timidamente comecei a ler a lista, nome por
nome. Subitamente, uma garota loira se aproximou pelo meu lado direito. Quase colou
em mim, e disse:
“Ela mandou eu te dizer que você vai casar comigo!”
Dei de ombros para uma atitude tão frívola como aquela. Afinal de contas,
ninguém sai por aí fazendo profecias baratas sobre matrimônio com meu professor de
inglês desconhecido. Logo no primeiro dia de aula?!
E o mais doido nisso tudo é que toda aquela zoeira quase soou como um pedido
de casamento aos meus ouvidos.
Ignorei a menina e continuei lendo minha lista de chamada até o fim. De
Abdnanda a Zózimo. Pronto. Os vinte alunos já tinham sido convocados a subirem para
iniciar o curso naquela manhã ensolarada e quente de sábado de agosto em pleno
começo da famosa década de 80.
A tal moça loira fazia parte da minha turma e subiu junto com os demais alunos.
Rindo. Brincando. Rumo à sala de aula.
Eu mal sabia que teria que exercitar minha paciência ao extremo se desejasse
manter meu emprego naquela escola de idiomas. Por uma única e só razão – a
maluquinha de cabelo loiro estava decidida a me inervar desde o toque da campainha
para o início da aula até o soar do toque de largar.
Sandy era uma peste. Uma Pimentinha em forma de menina. E pior, totalmente
motivada a usar sua sensualidade do frescor dos meus dezoito aninhos para perturbar e
testar os meus princípios morais e o equilíbrio mental. Pareceu que aquela garota tinha
surgido para de fato virar minha vida do avesso.
Nessa época eu fazia faculdade de engenharia. A Pimentinha farejou minha
pista. Passou a me procurar nas salas de aula da universidade. Eu também estava
estudando japonês. A Pimentinha soube. Pegou o endereço, sabe lá Deus onde e com
quem, e certa noite quando cheguei para a aula dei de cara com aquela doidinha
espevitada que tinha se oferecido como noiva durante aquela lista de chamada.

155
“O professor Yared tá aqui na sala dos professores?” – perguntou uma voz
feminina a outra professora que estava sentada na primeira mesa daquele recinto
reservado para o descanso, planejamento e reunião do corpo docente.
Ainda no banheiro, reconheci aquela voz.
“Ah, não!” – suspirei.
Até aqui?” – protestei falando comigo mesmo.
Procurando me esquivar do encontro com Sandy, me demorei mais alguns
segundos, até ouvir:
“Acredito que não. Ele deve estar na sala do coordenador.” – respondeu a
professora.
Ao passar pela entrada da sala, em direção ao corredor, não pude deixar de ouvir
um comentário de minha colega:
“Essa menina loirinha está apaixonada por você, Yared.”

Profecia não revelada

Alguns meses já havia transcorrido desde o início das aulas do primeiro semestre
letivo. A escola havia agendado uma semana de recesso para correção de provas,
planejamento e aulas de reforço para os alunos mais lentos.
Eu estava de férias, de certa forma, e dirigindo o carro do meu pai no litoral da
praia mais badalada da cidade e com uma garota no assento do lado – Sandy.

No ano seguinte, estava na maternidade para visitar minha primeira filhinha


recém-nascida, cujo nome lhe dera em homenagem à protagonista do filme russo
GUERRA E PAZ!
Depois que a notícia da gravidez me foi dada à queima-roupa, movido pelo meu
senso de valores morais, descartei de imediato qualquer tipo de solução assassina.
Tranquilizei Sandy. Prometi-lhe que assumiria o bebê que estava a caminho.
Disse-lhe que me casaria com ela pelo rito religioso apenas. Essa exclusividade
pelo matrimônio unicamente na igreja se dava pelo fato eu ter como objetivo
profissional um concurso que proibia o ingresso de candidatos legalmente casados.
Consequentemente, numa manhã de sábado, estava eu cruzando a soleira de uma
das inúmeras igrejas da cidade enladeirada.
De braços dados com minha mãe, com apenas vinte e dois anos dava,
lentamente, os passos sobre aquele tapete vermelho para assumir uma responsabilidade
para a qual não estava preparado. Porém, tinha a coragem e o brio suficientes para
encarar o desafio.
Aquele casamento durou apenas dois anos. A imaturidade de ambos os cônjuges
combinada com a dura realidade dos problemas de uma vida a dois com uma filha

156
pequena esgarçaram o tênue fio que nos mantinha como um casal quase de
adolescentes.
A mesma voz que inspirara Sandy a me dizer no primeiro dia de aula:
“Ela mandou eu te dizer que você vai casar comigo!” esquecera de falar a
segunda parte da profecia:
“E vocês vão se separar tão rápida e levianamente como se casaram!”

157
24
Rumo a um novo desafio
“xxxx
Êxodo

158
L á se vão trinta e dois anos [1988-2022] desde que eu havia tido a primeira ideia
de um curso de inglês específico para atender às necessidades dos meus alunos –
que se viam numa sala de aula de inglês geral por falta de opção – até ao
momento que decidi escrever um manual sobre o curso.
Para mim, o ano de 1988 fora de extremo valor e significado em virtude de
dois episódios que estavam no cerne da minha vida. O início de uma nova vida
familiar e a mudança de residência por motivo profissional. Saí da minha cidade
natal, onde nascera e me criara, e fui me estabelecer em outro estado mais ao norte.
Fatos que me levaram a enfrentar grandes desafios pessoais na época.
Primeiro, trabalhar numa instituição de ensino de inglês tradicional em tempo
integral, assumindo dez turmas de níveis variados com uma intensa carga-horária de
trabalho. Meu colega escocês que havia sido contratado na mesma seleção de
candidatos desistiu com apenas três meses de aulas. Outros colegas professores
disseram que eu chegaria ao final do semestre completamente “acabado”. Hoje o
termo usado seria síndrome de burnout.
Segundo, estava iniciando a vida de casado com minha esposa Mrs.
Lovingdale. Ambos sem experiência na condução da vida doméstica com meus
próprios desafios, dificuldades, mas prazeres e satisfações de formar um novo
núcleo familiar.
Terceiro, o casal estava prestes a começar uma nova vida distante dos
familiares, do aconchego dos amigos, dos lugares conhecidos e de outras
peculiaridades da nossa amada cidade natal.

Meus alunos

No exercício da minha profissão, enquanto professor, sempre tinha procurado


me aproximar dos meus alunos além da mera prática didática. Conversava com eles
procurando saber como estavam assimilando o conteúdo das aulas, suas dificuldades,
dúvidas e objetivos com o estudo da língua inglesa. 
Foi quando me chamou a atenção o fato de que a maioria desses aprendizes
adultos se sentia um tanto deslocada em turmas mistas com adolescentes e às vezes
em grupos extremamente heterogêneos com relação às suas metas profissionais e
desejos pessoais. Partindo desse princípio, sendo, entendi que eles estavam naquela
escola e naquelas turmas por falta absoluta de opção.
  Com essas insatisfações anotadas, comecei um processo de pesquisa com meus
alunos, no qual descobri posteriormente, ao estudar o assunto do ensino de inglês
específico, se chamar need assessment/need analysis (avaliação ou análise de
necessidades).

Nossas vidas podem ser marcadas por impressões indeléveis pelo convívio com certas pessoas,
ao visitarmos determinados lugares, ouvirmos algum tipo de música, assistirmos um certo filme ou
lermos algum livro especial. Bem, eu sempre fora apaixonado por leitura, e os livros tinham estado
permanentemente em minha companhia. 

159
Na época em que estava trabalhando a ideia do meu curso ESP e como seria possível fundar uma
escola a partir do zero absoluto de recursos financeiros, também estava concluindo a leitura do
livro MADE IN JAPAN de Akio Morita, o grande empresário fundador da SONY – um dos maiores
impérios da indústria de aparelhos tecnológicos do Japão. Fiquei extremamente impactado com as
informações que o autor apresentou sobre como surgiu essa gigantesca empresa nipônica. 
Um fato que sobremaneira me causou um certo assombro foi que Akio descobrira, quase
involuntariamente, que as pessoas estavam dispostas a investir em um serviço ou produto desde que este
lhe seja necessário ou faça parte de sua ambição pessoal. Os pré-requisitos de necessidade e ambição
são vitais para qualquer tipo de investimento, quer seja de energia, tempo ou dinheiro. Assim, me
convenci que se eu conseguisse conceber, desenvolver, estruturar e implementar um curso ESP, e o
lançasse no mercado, esse negócio estaria fadado a ser um grande sucesso empresarial – o meu curso
ESP atenderia aos critérios de necessidade e ambição pessoais daqueles alunos “mal-colocados” nas
salas de aula de inglês geral. Essa constatação do empresário japonês me encheu de entusiasmo e
determinação para continuar minha pesquisa sobre a abordagem instrumental visando à fundação de
uma escola de inglês que o oferecesse a um público necessitado e ambicioso.

 Alunos certos no curso errado

Compreendi bem a situação – eles estavam num curso de inglês geral [GE],
quando, para ser realista, desejavam, e com muito mais razãocura, precisavam estar
num curso de inglês para fins específicos [ESP]. Era o caso dos alunos certos na “sala
de aula errada”, fazendo o “curso errado”.
Entretanto, como colocá-los na sala de aula certa e no curso certo? Essa era a
pergunta de um milhão de dólares. Esse questionamento me levou a encetar um
processo de pesquisa e estudo que resultou no meu incipiente curso ESP.
Naquela época, a abordagem ESP estava apenas começando no seio das
universidades do meu país. Tudo era novo e ainda um tanto desconhecido no meio
acadêmico, e completamente alienígena nas escolas particulares de ensino de
idiomas.
Percebi nesse contexto uma grande necessidade no mercado (um nicho) de
ensino-aprendizagem de inglês – uma escola que oferecesse cursos ESP. Tive a
convicção interior de que uma escola dessa seria um sucesso absoluto no setor, pois
iria atingir dois grandes objetivos. 
Primeiro, atenderia às necessidades daqueles alunos misplaced  (colocados
erradamente), ajudando-os imensamente a atingir suas metas de estudo – leitura de
bibliografia acadêmica em língua inglesa, e dos profissionais – qualificando-os a
atuar nos meus ambientes de trabalho com eficiência e resultados produtivos.

160
 Minha “Dream School”

Passei vários meses pensando em como fazer essa proeza vir a acontecer, porque
esse tal curso ESP não existia e eu não tinha os menores recursos tanto de tempo –
dava aulas em tempo integral e a família tinha crescido; como financeiros para fundar
essa escola dos sonhos – pois todo meu dinheiro era empregado na manutenção da
família.
Por este motivo, teria que solucionar esse meu desafio pessoal de escassez do
binômio tempo-dinheiro, caso desejasse realmente vir a materializar o projeto da
escola de cursos ESP. Teria que desenvolver um curso ESP e fundar uma escola de
inglês para ministrá-lo, ambos a partir do zero absoluto! E isso sem parar de
trabalhar e sem descuidar das minhas obrigações de pai e chefe-de-família!!
Passei alguns meses daquele ano de 1988 buscando informações sobre o que se
chamava na época apenas de inglês técnico, quando, quase por coincidência, descobri
numa estante de livros e materiais de recursos para aulas da escola onde ensinava um
livreto branco e magrinho chamado The ESPecialist . O achado dessa revista foi um
divisor de águas para a solução do meu primeiro desafio, qual seja, o
desenvolvimento de um curso ESP. Li todos os volumes que encontrei disponíveis
nas estantes da escola. Essa revista científica foi minha bússola e guia para a criação
do meu ESP Course.

 
 Necessidade e Ambição

Ah! Finalmente descobrira que existiam outros profissionais preocupados em


atender ao binômio necessidade-ambição dos alunos. Aprendi muito com o estudo
daqueles artigos. Embora o The ESPecialist não apresentasse um material didático
pronto para ser usado em sala de aula, ele apresentava a fundamentação teórica que
embasava o ensino-aprendizagem da língua inglesa com uma abordagem instrumental.
Era tudo que eu precisava!

Ciência e negócios

Agora, de posse das diretrizes científicas para um curso ESP, o primeiro


desafio – o projeto e desenvolvimento do meu ESP Course estavam garantidos.
Precisava de um plano – uma linha de ação – para fundar a escola que iria
ministrar o tal ESP Course para o público particular. Esse era meu segundo e maior
desafio porque estudar, conceber e finalizar o curso me demandavam apenas
dedicação, concentração e perseverança – recursos imateriais. Mas, como fundar uma
escola sem dinheiro algum – recurso material? 
Novamente, a experiência de Akio Morita iria me inspirar. Ele havia
juntamente com um grupo de amigos engenheiros iniciado o projeto da SONY, logo
após a Segunda Guerra Mundial, num Japão em tudo arrasado e ocupado e sem as
mínimas condições financeiras. Então, pensei e decidi:
“Se eles puderam eu também vou poder – me resta apenas formar minha
própria equipe!”
161
E para tal, comecei a fazer uma busca pelos sócios que iriam me ajudar a
realizar o projeto da escola dos meus sonhos. Conversava com os colegas de
trabalho, fazia-lhes perguntas, estudava suas necessidades e ambições procurando
identificar as pessoas certas.
Depois de alguns meses de “investigação”, já estava realizando as primeiras
reuniões para a fundação da empresa.
“Nós três estávamos radiantes com a ideia de termos nossa própria escola
de inglês. Éramos todos unicamente professores e mal ganhávamos para a
subsistência. A escola de inglês era a meta dos meus dois sócios. A minha era o
meu ESP Course!” – declarei certa vez numa entrevista. 

Pioneirismo e lucros

Nossa escola foi a pioneira no lançamento de um curso de inglês específico


para estudantes universitários e profissionais de diversas áreas. Como eu havia
vislumbrado – um negócio altamente lucrativo por atender às necessidades e
ambições dos alunos, e de maneira semelhante, ao livro-caixa da nossa empresa.
O público alvo respondia de imediato às propagandas que lançávamos sobre o
ESP Course. Uma  modalidade de ensino completamente nova no cenário das escolas
de inglês particulares.
Um  certo aluno meu, satisfeito e empolgado com suas aulas do curso, se
aproximou de nós e  disse:
“Esse curso é o carro chefe dessa escola!”
Tudo que eu precisava ouvir como  felicitação por ter vencido os dois grandes
desafios na minha carreira profissional.
Ao longo daqueles trinta anos, o meu ESP Course fora ministrado a mais de
3.000 alunos, habilitando-os a ler bibliografia em língua inglesa, a ser aprovado em
teste de proficiência para mestrado, doutorado e vestibulares, a atuar de forma mais
eficiente no meu ambiente de trabalho e acessar informações em inglês na Internet.
Três décadas já se passaram! E embora tenha havido algum progresso no setor
editorial, porque já se pode achar alguns livros voltados para essa metodologia
instrumental, não é fácil encontrar escolas oferecendo cursos ESP no mercado
privado.
Muita pesquisa ainda precisa ser empreendida e ainda há um grande espaço
no mercado para ser explorado. Yared acreditava que o ensino de idiomas com a
abordagem instrumental era apenas um “bebê de 40 anos de idade”!

162
Parte 7

Anamnese
Capítulos 25-31

Θ CAPÍTULO 25 – Adoção leviana


o Meu mundo caiu
o Senhora do destino
o Taenkendô
Θ CAPÍTULO 26 – Primeira adicção
o Férias escolares
o “O jumento esperto e o leite de perereca
Θ CAPÍTULO 27– Minha virgindade de graça
o Transei com um cara da rua
o Compromisso? Casar?
Θ CAPÍTULO 28 – Um bolo de chocolate
o Idoso mal casado
163
o Pontapé na bunda
o Casamento estéril
Θ CAPÍTULO 29 – Quebrei a porta do carro dele
o Tinder fracassado
o Briga provocada
Θ CAPÍTULO 30 – Uma filha para minha solidão
o Depressão e isolamento
o Gravidez para minha gravidade
Θ CAPÍTULO 31 – Inferno astral
o Meus porquês da vida
o Existe solução?

25
Adoção leviana
“A adoção é uma coisa perigosa. Quem a faz sem uma razão de força maior paga caro por ela,
com seu próprio filho ou com seu parceiro.” – Bert Hellinger

Meu mundo caiu

A o entrar na fase adulta, de uma forma um tanto traumatizante, Lorac tomou


conhecimento que havia sido adotada desde o tempo de recém-nascida. A
confirmação daquela verdade a deixara num estado de ansiedade, instabilidade
emocional e tristeza extrema.
Iniciou uma busca ferrenha a fim de descobrir a verdade. A melhor pista que lhe
deram foi de uma antiga vizinha de sua mãe, quando moravam numa pequena vila de
casas num bairro carente da zona norte da cidade.
Foi essa mulher que revelou os fatos de uma forma sobremodo detalhista e
contundente.
“Sua mãe até veio aqui me perguntar se eu queria ficar com você ainda recém-
nascida. Mas, eu não tinha condições financeiras e meu marido também não
concordou. Aí, ela ficou com você e te criou.” – essa foi a narrativa reveladora da
mulher.
Conversando com Yared, num dos inúmeros colóquios que o casal mantinha,
tarde da noite, por causa da insônia de Lorac, ela se abriu com ele:
“Meu mundo caiu quando descobri que toda a minha vida tinha sido uma farsa.
Uma mentira. Uma ilusão. Eu não era quem eu pensava ser. Minha mãe me adotou e
seu companheiro jamais quis me reconhecer como filha. Não tenho nome de pai na
minha certidão de nascimento.”

164
Senhora do destino

A mãe adotiva de Lorac era enfermeira e trabalhava num grande e movimentado


hospital. Precisava tirar seguidos plantões. Dava um jeito de sobreviver a cada dia. Não
tinha recursos para se sustentar. Fazia o possível e o impossível para pagar as despesas
com uma filha que tivera com um médico famoso da cidade. Quando sua filha biológica
já estava com sete anos, a esposa do médico engravidou. Foi então, que a enfermeira
apareceu com a bebê Lorac em casa para apresentar ao seu parceiro.

Senhora do Destino foi uma telenovela brasileira produzida pela maior companhia televisiva do
país e parece ter baseado seu enredo na história da adoção da criança ruiva. Mais um caso de “a arte imita
a vida”!
“Nazaré, uma prostituta do bordel de Madame Berthe, deseja se casar com o amante José
Carlos e mudar de vida. Assim, ela finge ser enfermeira e estar grávida, pois acredita que a gravidez é a
única maneira de separá-lo da esposa e da filha. Como ficou estéril após 5 abortos sucessivos, inventou
que estava grávida para forçar José Carlos a assumir a criança. No local abandonado, Nazaré diz a
Maria do Carmo que seu nome é Lourdes e promete tomar conta das crianças enquanto Maria do Carmo
leva Reginaldo, que em meio à confusão havia sido ferido, ao hospital. Ao ficar sozinha com a caçula de
dois meses Lindalva em seus braços, Nazaré vislumbra a chance de concretizar seu plano e sequestra a
menina. Ela arma uma farsa e finge que deu à luz a criança, sensibilizando o amante, que larga a esposa
e a filha para ficar com ela.”

Independente das circunstâncias que podem ter rodeado essa adoção, ela tirou da
mãe e também do pai os seus direitos e deveres sobre a criança. Porém, ninguém tem
culpa disso. Não se podia censurá-la. Não existem culpados. Só existem pessoas
emanranhadas, cada qual à sua maneira.
O homem não gostou nada da ideia. Rejeitou a menina desde o início e jamais a
reconheceu como filha, ou sequer a registrou.
A pequena Lorac além de ter sido arrancada do seu contexto familiar de origem
foi criada sem pai, teve uma família adotiva em que a mãe mal podia cuidar dela pela
carga intensiva de trabalho, e convivia com uma irmã mais velha, com quem não se
dava bem, pois ficara extremamente enciumada com a chegada de uma outra menina em
sua casa.
Além da rejeição, aquele médico praticava todo tipo de abuso psicológico contra
a criança. Insultava-a com palavras negativas. Degradantes. Humilhantes. Dizia-lhe que
ela jamais seria alguém na vida. Não daria para nada de bom. Seria uma pessoa infeliz,
irremediavelmente. A menina adotada estava fadada a ter uma vida de raiva, desamparo
e desespero.

“Um terapeuta que não discirna a dor em seus pacientes, que não perceba o seu medo e ignore
a intensidade da luta que travam para conservarem sua sanidade, numa situação familiar suscetível de

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levá-los à loucura, não poderá ajudar eficazmente os pacientes a resolverem o distúrbio narcisista.” –
Alexander Lowen

Lorac fazia aquelas revelações, que fora um sem-número delas, chorando


convulsivamente. Yared precisava interromper a narrativa para acolhê-la nos braços.
Buscava água para amenizar o soluço. A taquicardia. A sudorese excessiva.
Frequentemente, depois do acolhimento, ele a cobria com um lençol e adormeciam nos
braços um do outro, os rostos colados.
Aos poucos, com bastante clareza, foi ficando evidente para Yared que a sua
amada tivera péssimas fases de vida. Infância. Adolescência. E início de juventude.
Devem ter sido experiências muito conturbadas. Traumáticas. Abusivas.
Um sentimento de compaixão pela sua mulher invadiu o coração do linguista.
Como ajudá-la com toda aquela negatividade permeando a relação deles?

Taenkendô

Lorac contou-lhe que, ainda adolescente, começou a treinar taekendô. Foi o


recurso, a alternativa, a saída que ela encontrou naquela época para enfrentar sua irmã
adotiva mais velha. Pois, as discussões, de um modo geral, chegavam as vias de fato.
Havia sido erguido um muro de ódio e inimizade, de imperdoável
incompreensão, intransponível de rancor, entre a filha biológica e a filha adotiva.
Contou ao seu namorado que quando conseguiu dominar as primeiras técnicas
dessa arte marcial, foi capaz de virar o jogo e começar a se vingar e bater na outra moça
da família.
A rivalidade e a animosidade entre elas eram tão intensas que a ruiva costumava
dormir com uma faca na mão para se defender caso sua irmã tentasse atacá-la na calada
da noite, invadindo seu quarto.
Pai inexistente. Algum irmão homem em falta. Mãe quase ausente. Irmã
beligerante. Que referencial de família de origem tivera aquela mulher?

“A chave para a terapia é a compreensão. Sem compreensão, nenhuma abordagem ou técnica


terapêutica é significativa ou eficaz em nível profundo. Somente com compreensão é possível oferecer
real ajuda. Todos os pacientes buscam desesperadamente alguém que os compreenda. Quando crianças,
não foram compreendidos por seus pais; não foram vistos como indivíduos dotados de sentimentos nem
tratados com respeito por sua condição humana.” – Alexander Lowen

166
26
Primeira adicção
“O vício é portanto a vingança contra a mãe, pelo fato de tê-la impedido de tomar algo do pai.”
– Bert Hellinger
Férias escolares

A mãe de Lorac tinha algumas pessoas conhecidas nativas de uma região interiorana
não muito distante de onde morava.
Num certo período de férias escolares, Lorac ainda adolescente, foi mandada
para a casa desse pessoal amigo.
A temporada de recesso planejada fora de apenas uma semana. Todavia, se
passou a primeira semana e ela não voltou. Passou-se a segunda. A terceira. A quarta. A
ruiva, esquecida ou não, ficou um mês inteiro na residência desses conhecidos.
Teve experiências únicas e marcantes. Decidiu compartilhar duas delas com
Yared.

O jumento esperto e o leite de perereca

“No começo eu tinha medo de montar, mas depois peguei jeito e adorava
cavalgar no jumento que essa família de amigos tinha em seu quintal.” – Lorac
começou a narrativa de suas vivências naquele interior.
“Fiz longas e velozes disparadas no lombo daquele bicho. Era divertido e
excitante.” – acrescentou ela.
“Certa vez me perdi, mas o jumento era esperto demais. Sabia o caminho de
volta. E me levou para casa. Foi muito legal.” – contou ela com satisfação.

A vida no campo era simples. Sem muitas opções de diversão e regrada por
hábitos e costumes um tanto diferentes da vida na cidade grande.
Uma dessas diferenças e excentricidades era o consumo de aguardente por parte
de todos. Era uma bebida para aquecer no tempo frio. Liberada inclusive para os muito
jovens que ingeriam uma cachaça absurda como se fosse um suco de fruta.
A primeira experiência de Lorac com a cachaça foi terrível.

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“Senti um queimor na garganta e no estômago ao engolir aquele líquido forte.”
– contou ela.
“Fiquei muito tonta. Quase desmaiei. Fui levada as pressas para o banheiro
que ficava nos fundos da casa.” – Lorac narrava aquela aventura com certo prazer
estampado no rosto.
“Vomitei tudo. Quase boto as tripas pra fora! Mas, como continuei bebendo
com o apoio de outros jovens da família e moradores locais, fui me acostumando ao
consumo daquela porcaria.” – disse ela.
Resultado? Peguei vício na bebida. Precisava beber todas as noites na
companhia dos meus amigos.” – concluiu a ruiva.
Quando Lorac voltou para casa das férias sentia a compulsão de beber. Isso se
devia ao fato de ter se viciado no sertão. Assim sendo, saiu devorando todas as garrafas
de bebida alcoólica que encontrava na coleção da sua casa. Os recipientes estavam
arrumados sobre as prateleiras da cristaleira da sala de estar.
Para disfarçar e enganar sua mãe, e não ter sua adicção interrompida, Lorac abria
várias garrafas. Bebia um pouco de uma. Colocava a tampa e botava a garrafa de volta.
Bebia um pouco de outra. Tampava e punha o recipiente no lugar. Sob tais
circunstâncias, ia ingerindo cachaça de garrafa em garrafa. Até que… porém, esse
truque não vingou por muito tempo. Sua mãe farejou a armação, afinal. E além de lhe
dar uma surra, fez desaparecer todos os exemplares da coleção de bebidas que tinha em
casa.

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27
Minha virgindade de graça
“xxx

Transei com um cara da rua

A
inda na puberdade, Lorac deixou de brincar de bonecas para brincar de jogos
sexuais com um personagem real escolhido aleatoriamente pela aparência
física sem qualquer vínculo afetivo com o rapaz.
“Aos dezesseis anos decidi perder minha virgindade. Quis saber o que era o
sexo numa experiência pra valer.” – contou Lorac a Yared numa das conversas íntimas
do casal.
“E como foi? Sua primeira experiência foi com seu namorado?” – perguntou
ele.
Lorac esboçou um sorriso e respondeu:
“Não. Não. Eu não tinha namorado naquela época.” – respondeu ela.”
“E aí?” – inquiriu o linguista curiosamente.
A cabelo ruivo acobreado continuou narrando seu debut na vida sexual:
“Eu escolhi um cara dentre meus colegas da rua. Certo dia, me aproximei dele
e disse que achava ele um tesão e que queria transar com ele.”
“Putz! Simples assim?” – perguntou Yared.
“Sim. Simples assim. Ele ficou meio enrolado na hora. Mas eu era bonita, bem
feita e ruiva. Eu sabia que ele ia topar. Tinha certeza que ele não era gay. – falou
diretamente a mulher.
“Por favor, me poupe dos detalhes.

“Embora a história de Dorian Gray seja ficção, é válida a ideia de que uma pessoa pode
apresentar uma aparência física que contradiz o estado interior de seu ser. Impressiona-me certos
indivíduos narcisistas parecerem muito mais jovens do que são. Eles possuem até feições e compleições
suaves que não demonstram quaisquer traços de preocupação ou conflito. Essas pessoas não permitem
que a vida as toque — especificamente, não deixam que os acontecimentos íntimos da existência atinjam
a superfície de suas mentes ou a superfície de seus corpos. Isto constitui uma negação do sentimento.
Mas os seres humanos não estão imunes à vida e, nesses casos, o envelhecimento ocorre internamente.
Enfim, como no caso de Dorian Gray, a dor e a fealdade rompem a negação, e a pessoa parece
envelhecer da noite para o dia.
Em certa medida, entretanto, todos somos como Dorian Gray. Com frequência, ficamos
surpresos, até chocados, quando examinamos nosso rosto num espelho. Somos aturdidos pelas marcas
da idade que vemos, pela tristeza em nossos olhos, pela dor em nossa expressão. Não esperávamos ver-
nos assim. Nos olhos da mente, vemo-nos como jovens, a pele lisa e uma expressão descuidada. Tal como
Dorian Gray, não queremos enfrentar a realidade de nossas vidas. Essa discrepância entre o modo como
aparentamos e o modo como nos vemos também se estende ao corpo, o qual nos deveria ser mais visível

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do que o rosto. Fechamos os olhos para a falta de harmonia em partes do nosso corpo e para a falta de
graça em nossos movimentos. As roupas ajudam-nos a ocultar essa realidade de nós próprios e dos
outros e permitem-nos formar um quadro de nossos corpos que está muito longe da realidade.
Somos ensinados desde muito cedo a encobrir os nossos sentimentos e a usar uma máscara para
o mundo. A lição que me foi dada quando criança foi esta: “Sorria, e o mundo sorrirá para você; chore,
e chorará sozinho.” Vimos como Ann foi ensinada a arrogar uma fisionomia “feliz”. – Alexander
Lowen

Compromisso? Casar?

Mas e aí, vocês ficaram namorando depois?” – indagou o linguista.


“Não. Depois de uns dois meses de transa, eu o procurei e disse que tudo tinha
acabado. O cara ficou decepcionado. Disse que ia falar com minha mãe pra me
assumir. Compromisso. Casar. Essas coisas.” – continuou narrando Lorac.
Yared, achando-a uma tola metida à sabichona, ganjenta, cheia de birras e
caprichos, perguntou:
“E você? Como reagiu àquela proposta?”
A bailarina narcisista continuou:
“Disse a ele que não se preocupasse com essa onda de casamento. Falei que
não precisava falar com minha mãe. Da minha parte, ela jamais ia ficar sabendo. Ele
deveria seguir com a vida dele e eu ia seguir com a minha. E tudo acabou ali naquela
conversa.”
“Você não sente nenhum arrependimento por isso?” – perguntou curiosamente
o linguista.
“Arrependimento?” – a palavra e o tom obviamente a pegaram de surpresa.
“Arrependimento pelo quê?” – questionou secamente a artista.

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28
Um bolo de chocolate
“Procurarão se misturar por meio de casamentos, mas não se ligarão um ao outro,
assim como o ferro não se mistura com o barro.” – Daniel 2:43

Idoso mal casado

D epois de romper o relacionamento com seu namoradinho playboy, Lorac saiu a


procura de emprego.
As coisas não eram fáceis no lar da sua família de origem. Sua mãe enfermeira
mal ganhava para pagar as contas básicas. Por outro lado, seu suposto padrasto que
nunca a tinha assumido como filha, não contribuía em nada para as despesas da jovem
ruiva.
Então, a moça conseguiu uma vaga numa empresa de vendas de planos de saúde,
como atendente do call center.
Era mais uma entre tantas mulheres sentadas com o telefone pendurado na
orelha tentando convencer clientes em potencial a fechar o pacote dos planos
oferecidos.
Não obstante, nem tanto como as outras. Lorac sabia se expressar, era forte,
persuasiva, sabia argumentar bem, era bonita e ruiva. Esses dotes físicos faziam toda a
diferença, sobretudo aos olhos do dono da companhia. Um pré-idoso – trinta e quatro
anos mais velho do que ela.
O camarada já colecionava uma longa lista de mulheres divorciadas e processos
na justiça, além de ter nas costas uma penca de filhos para pagar pensão alimentícia.
Lorac era proativa, charmosa, inteligente e... muito ambiciosa. Em contraposição
a essas qualidades positivas estava na pior.

Pontapé na bunda

O playboyzinho a havia aplicado um golpe. Pegara toda sua reserva financeira


da poupança emprestada com a história de que iria comprar uma motocicleta nova para
eles passearem e viajarem. Era um filhinho-do-papai. Um gigolô. Um porra-louca.
Resultado? Deu um pontapé na bunda da lutadora de taenkendô, desapareceu
com a grana, se arranjou com outra garota loira e deixou Lorac ferrada. Ela ficara
estressada, neurótica e odiando a si mesma. Ficou se sentindo o cocô da égua do
bandido.
Égua? Mas o dito popular não fala de cavalo? É fala, mas no que diz respeito a
vida da sarará tudo parecia ter polaridade inversa!
Sim, égua! Literalmente. O babaca ancião havia comprado uma égua de grande
porte para atender aos caprichos da sua namorada excêntrica de cabelo de cobre e tê-la
sempre na cama quando desejasse satisfazer sua adicção sexual que nem quatro esposas
e outras tantas amantes conseguiam aplacar. O mundo é uma doideira mesmo!

171
O amor é cego?

Num curto segmento de tempo, a ruivinha de apenas 22 primaveras, no pleno


florescer da vida, estava sendo desposada perante a lei, conforme o rito civil, com o
chefe da empresa onde trabalhava. Um senhor de 58 anos de idade – trinta e quatro anos
mais velho do que ela- ela, uma sugar baby – Ele, um sugar daddy. Como dizem: o
amor é cego.
Havia avaliado e descoberto o que desejava naquele relacionamento. Havia
cavado bem fundo e achado o seu sentido de vida quando visto a partir de alguma coisa
que lhe daria prazer, muito prazer.
Porém, uma pergunta pairava no ar.

“Que raio de amor é esse que uniria pelo contrato matrimonial oficial uma quase
adolescente ainda com um quase sexagenário? Ela na posição social de humilde
funcionária da companhia e ele dono de tal empreendimento?”
Bom, deixemos a própria vida responder essa pergunta retórica, porque – a
semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória.

Empresa Titanic
“O acaso age em nosso benefício ou dano segundo leis cujos segredos não podemos – não
devemos – adivinhar.” – Bert Hellinger

Logo após transcorrido o primeiro ano de vida marital, a empresa do cara foi à
falência. Afundou como o Titanic, levando a falsa Rose e o falso Jack para o fundo da
região abissal financeira!
Literalmente, quase foram parar na sarjeta. Precisaram ir morar na residência da
mãe do pedófilo sexagenário para poder sobreviver.
De repente, o ex empresário, pouco se lixando para a esposa, desaparece de
cena. Deixa a lutadora de taenkendô sozinha.
Por que? Ele tinha recebido parte de uma herança de uma suposta tia falecida e
talvez não tenha desejado dar o trabalho a parceira de contar o dinheiro!
E o mais doido nisso tudo, talvez, fosse o fato de o cara ser líder religioso de
uma famosa congregação cristã e manter uma vida dupla. Para os membros da igreja era
o exemplar e fiel esposo cumpridor dos mandamentos. Na intimidade com a cabelo
ruivo acobreado era o depravado e pervertido que a levava para praias desertas para
fazer strip-tease e ensaios de nus artísticos, e enchê-la de DST por transar com
prostitutas.
Que ironia! Lobo sob pele de cordeiro à espreita de comer tantas ovelhinhas
quanto possível. Literalmente!
Quando o lobo lambe a ovelha, ele está se preparando para molhar os dentes
com sangue. Todavia, só existem enganadores porque existem pessoas que desejam ser
enganadas.
O casamento precoce de Lorac satisfez-lhe a necessidade de um homem que
cuidasse dela, uma vez que nunca tivera realmente um pai.

172
Não é incomum mulheres que buscam um relacionamento com pessoas mais
velhas e bem sucedidas que as possibilitem conhecer o melhor do mundo, através de
viagens, presentes, ajudas profissionais e mentoria – são as chamadas sugar babies.
Essa expressão é antiga e foi criada nos Estados Unidos no início do século
passado para definir um relacionamento entre um homem mais velho com dinheiro – o
“daddy”, “papai” – e uma jovem – a sugar baby.
Ao atingir o estado de desespero total, devido à penúria intensa e irremediável, o
casal formado pela adolescente e pelo sexagenário mudou de religião. Sentiam-se
humilhados pela opressão, pela adversidade e pelo sofrimento. Daí, resolveram vender o
único carro usadão que tinham – um modelo 1.0 de linhas quadradas que podia também
ser abastecido com álcool – e o ofereceram como sacrifício no altar da igreja, na
tentativa vã, e com o pensamento mágico de reverter milagrosamente sua má sorte.

“Os bens mal adquiridos esvaem-se de mau modo.” – Cícero

Algumas pessoas supõem que podem comprar os favores divinos ao doar o


máximo de dinheiro possível. O Soberano do Universo, independentemente do nome
que lhe dermos, não pode ser manipulado ou comprado.

“Permita-lhe apresentar uma estranha definição do desespero. Eu costumo afirmar que o


desespero pode ser definido nos termos de uma equação matemática.
D=S–S
Quer dizer: o desespero é igual a sofrimento sem o sentido.” – Viktor Frankl

Desafortunadamente, ficaram ainda mais detonados do que estavam. Seus


esforços mal direcionados se perderam no vazio. Nenhum milagre aconteceu. Ficaram à
beira da estrada, andando a pé. Quando a esmola é grande demais, o cego deve
desconfiar. A vida do casal falido estava chafurdando na mais absoluta merda!
Depois de um certo tempo, o golpista tarado reapareceu. Para compensar um
pouco suas ações ilícitas, e como forma de indenização à mulher, comprou um ínfimo
terreno financiado num loteamento perdido numa outra cidade afastada do centro
urbano.
Uma pequena casa campesina foi precariamente construída e ele a deixou aos
cuidados de Lorac. Pelo menos, não tinha sido perda total!

Casamento estéril

173
Fora um casamento de sete anos. O número mágico da gematria hebraica
novamente. Fora um relacionamento conturbado tanto na área financeira – por um lado,
com falência, dívidas, perdas materiais e penúria, como na área afetiva, por outro – com
traições de ambas as partes.
Fora uma vida frívola e totalmente descompromissada com as responsabilidades
do lar. Estilo do oba-oba, à la HAKUNA MATATA – não há problemas, “está tudo
ótimo”, os seus problemas você deve esquecer. Isso é viver, é aprender. Os céticos ou
hereges vivem só para os prazeres físicos.
Viveram de acordo com os sofistas: “o homem é a medida de todas as coisas” –
relegando a santidade da vida e reduzindo tudo ao plano material e físico.
O idoso falso religioso conduzia a vida negando que o Criador do Universo
interferisse nos assuntos dos homens, ou que os comandasse. Negava o princípio da
Providência, de que o Todo-Poderoso regula os acontecimentos e destinos de acordo
com leis estritas e justas de recompensa e castigo.
Lorac vivera numa casinha inacabada durante os sete anos que haviam decorrido
naquele casamento. Nunca tivera, de fato, uma casa completamente terminada e
mobiliada que pudesse chamar de sua. Em seus anos de criança e adolescência,
conhecera a confusão e violência na casa materna. E qual era sua casa verdadeira agora?
Com efeito, nenhuma delas.
Ademais, fora uma relação estéril. Lorac jamais engravidara do velho pedófilo.
A única coisa que o pervertido religioso conseguiu despejar na genitália dela além de
sêmen infértil foram DSTs que ele trazia para a intimidade do lar das inúmeras transas
com prostitutas.
Não houve a benção de um descendente. Mas, para quê mesmo? Para herdar
dores, sofrimentos e dívidas?
Bom, a providência divina resolvera da forma dela, e não cabe a ninguém julgar.
Nada podia ser feito em relação àquilo. Vida que segue!
De forma alguma constituíram uma família, latu sensu. Tão somente viveram
como um homem e uma mulher em codependência: ele se utilizando dos dotes físicos
da ruiva para satisfazer seus apetites sexuais desenfreados, e ela se apoiando numa
suposta e sonhada segurança financeira que jamais aconteceu. Viveram aos trancos e
barrancos. Entre idas e vindas.
Tentando desesperadamente fugir da sua realidade de vida de escassez de bens
materiais com sua família adotiva e depois de ter sido traída e trocada por outra garota
ainda mais bonita do que ela, Lorac pensou em lançar para longe de si as penúrias
financeiras com um casamento de conveniência. Porém mergulhou noutro triângulo
dramático ainda mais insidioso.

“A felicidade está em resolver problemas, repare que a palavra-chave é “resolver”. Se você


evita os problemas ou acha que não tem nenhum, está no caminho da infelicidade.” – Mark Manson

No sétimo ano – “ano sabático” – Lorac decidiu se divorciar do cara. Ele não
aceitou a separação. Chegando a arrenegar o dia em que unira sua sorte à do boêmio, ela
ingressou na justiça com uma ação de divórcio, sendo bem-sucedida no pleito.

174
“Quando a sentença do divórcio saiu, fiquei tão feliz que fiz um bolo de
chocolate para comemorar. Comi e bebi numa celebração solo na minha casinha de
sapé.” – contou Lorac a Yared num tom de voz e fisionomia de satisfação e alívio.

29

175
Quebrei a porta do carro dele
“Seus olhos não servem de nada se seu cérebro é cego.” – Ricardo Rodriguez

Tinder fracassado

L orac estava separada. Livre para tentar uma nova experiência amorosa. Havia se
passado apenas seis meses depois da sentença do divórcio ter transitado em
julgado – termo juridiquês para significar que não cabe mais recurso algum. A
coisa estava decidida e sacramentada.
A bailarina narcisista antes havia precipitada e irrefletidamente decidido perder a
virgindade num momento qualquer da sua puberdade, com um cara qualquer da rua.
Havia também se envolvido amorosamente com seu chefe – um homem muitíssimo
mais velho do que ela, casando com o cara para fugir da penúria financeira e dos
conflitos na sua família adotiva de origem. Agora, resolvera tentar a sorte grande
fazendo o login num site de relacionamentos para enfrentar a solidão afetiva ou a sua
abstinência sexual, ou ambas. Sem dúvida nenhuma, Lorac nutria obsessivamente
expectativas pouco realistas para ser feliz.

Narcisistas vivem eternamente uma “ilusão”. Narcisistas, no afã de se libertarem, acabam presos
aos outros para sempre.
O narcisista sofreu a terrível situação do descaso, desvalia, abandono e abuso quando criança.
Acabou tendo uma cisão de personalidade. Nesta cisão, ela, incorporando a desvalia externa, culpou a
criança (ela própria) pela sua situação. Sua mente se dividiu entre aquela criança (que tinha necessidades
emocionais) e que foi culpada pelos abusos, abandonos e a outra criança que ela “constituiu”. Podemos
dizer que ela “matou o seu ID”.
Esta criança “constituída” é formada pela criança (com um “ego” não formado) e pelo seu fiel
escudeiro (um superego severo), um guardião.
Este é o modo que esta criança conseguiu para sobreviver. Isolou, aniquilou sua verdadeira
criança interior. Adotou um “guardião” que lhe ajudou a sobreviver. Ela é indissociável deste guardião,
ela confia e obedece a este guardião. Este conjunto resultante é o “falso ego” do narcisista. É com este
falso ego que o narcisista se relaciona com o mundo. É com ele que você conversa quando fala com o
narcisista.
Então, para sobreviver, o narcisista atua com este falso ego. Obedece ao “guardião” e juntos
decidiram: não sentir amor, não ter sentimentos para os demais (não ser fraco), só o que EU quero é que
importa (egoísmo exacerbado).
Inclusive, parecer forte, nobre, simpática, trabalhadora, humilde, bonita, vítima e quaisquer
outras características que, a depender do grupo em o narcisista se encontre tenha algum valor.
É por este arranjo da cabeça do narcisista que ele depende dos outros. Porque ele não sabe quem
ele é. Assim, ele (orientando pelo seu guardião) sempre estará hiper vigilante e dependente do exterior
para que lhe digam que ele tem poder, ele tem controle, ele é bonito, ele tem valor, etc.
Então é o “falso ego” que é o responsável por isso. O narcisista, como não tem possibilidade de
se validar (sua criança foi anulada), precisa de validação externa e como o filtro/ajuda do guardião sempre
precisará e se guiará por isso.
Só se libertaria se pudesse libertar sua criança interior que está ferida de morte. Mas para isso
precisaria olhar para dentro de si. E sabemos que isso não acontece.

“Estava sozinha, triste e meio deprimida. Me senti liberada. Livre, leve e solta
para amar de novo. Entrei num site de relacionamentos e fiz minha inscrição. Fiz um

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ensaio fotográfico caprichado e publiquei. Choveu pretendentes. Meus olhos foram
muito seletivos e escolhi o mais bonito e com situação financeira boa.” – falou a ex-
usuária de drogas para o linguista numa certa conversa que tiveram.
“Ele era militar. Tinha corpo atlético, alto e forte. Também ganhava bem e
tinha um baita carro. Namoramos por apenas seis meses. O cara queria me fazer de
prostituta. Prometeu alugar uma quitinete no centro da cidade para eu ficar com ele
em encontros nos finais de semana.”

“Embora Mary reconhecesse a fragilidade do seu senso do self (ficava facilmente deprimida,
era derrotada por qualquer sentimento forte), não estava preparada para renunciar à sua imagem.
Sentia o poder nela contido — um poder sobre os homens. Já tendo passado dos 35 anos, Mary se
comportava mais como uma menina do que como mulher. O que atraía os homens, e os fazia até
apaixonarem-se por ela, era uma bonequinha graciosa e abertamente sedutora. Quando se desenvolvia
um relacionamento, Mary tornava-se completamente dependente do homem. Oscilava entre a menininha
patética, que necessitava de desvelos e proteção, e a boneca-dançarina, sedutora, a quem os homens
queriam.” – Alexander Lowen

Briga provocada

“Certa noite, quando a gente voltava de uma balada, no percurso, comecei a


provocar uma briga propositalmente. Quando o semáforo ficou vermelho para o carro
dele, eu soltei um palavrão. Abri a porta. Pulei para fora e bati a porta com tanta força
que empenou aquela porcaria! Bem feito! Ele merecia.” – complementou Lorac.
Lá rolava pelo esgoto abaixo mais um relacionamento amoroso da bailarina
narcisista.
As novas tecnologias, que possibilitaram uma comunicação instantânea e
globalizada, infelizmente têm revelado seu potencial destrutivo para semear mentiras,
enganar e extorquir pessoas.

30
Uma filha para minha solidão
“Nenhum filho é capaz de preencher o vazio e a necessidade emocional do pai ou da mãe.” –
Bert Hellinger

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Depressão e isolamento

L orac, após descobrir ter sido adotada, entrou num estado de depressão profunda.
Foi uma realidade dura demais para ela absorver – uma verdade impalatável,
daquelas que transformam inteiramente nossa vida – havendo um antes e depois,
o chamado divisor-de-águas, fechamento de um ciclo e início de outro. Ou como o
pessoal de roteiro de cinema de Hollywood chama – Turning point – ponto de virada –
ou o expert Eric Edson intitulou: Stunning Surprise – Surpresa Assombrosa.
Ponto de virada é o episódio inesperado e sem volta quando a vida ordinária do
personagem principal, o protagonista ou heroi, independente do seu gênero, sai do seu
status quo, da sua zona de conforto e o lança num novo mundo, repleto de desafios,
obstáculos e problemas que deverão ser vencidos para que o protagonista cresça, evolua,
amadureça.
Ela estava sozinha e em isolamento. Tinha se separado do sexagenário pedófilo e
seu relacionamento relâmpago com o cara do Tinder também tinha fracassado. Nenhum
desses laços tivera a força do amor. Nunca um relacionamento a fizera sentir a vida
plena e luminosa. Foi quando se reencontrou, surpreendentemente por acaso, com
alguém do seu passado, depois de aproximadamente sete anos e tantos meses.
Enquanto Lorac estava num barzinho do bairro onde morava – aquela casinha de
sapé – um rapaz se aproximou e lhe abordou:
“Boa tarde, moça. Tudo bem? Você já percebeu esse seu sinal no canto da
boca?”
“Oi, boa tarde. Sim, por que a pergunta?”
“Sou médico. Sou cirurgião. Na próxima semana, estaremos num mutirão
comunitário – tudo de graça – para cirurgias plásticas e reparadoras. Seria muito bom
você aparecer por lá. A sua tez é muito clara. Aqui é uma área de praia. Tem muito sol.
Outra coisa, a incidência de câncer de pele tá ficando muito alta.” – explicou o rapaz.
“Sério? Você acha que isso pode ser um tumor?”
“Compareça ao hospital e faremos os exames necessários. Mas é sempre bom
prevenir do que remediar.”
“Tá certo, eu vou lá mesmo. Me passa teu nome e endereço aí, por favor.”
O rapaz buscou a carteira no bolso, sacou um cartão de visita e o entregou à
ruiva que o olhava com uma dose de curiosidade, e agora com uma certa apreensão.
“Fique tranquila. É uma cirurgia super rápida, indolor. Você fica na sala de
repouso por algumas horas e vai pra casa, ainda mais bonita e sem correr riscos
desnecessários de um diagnóstico inesperado. Ok?”
“Pra ficar mais bonita eu vou logo na segunda-feira. Pode deixar.” Comentou
Lorac esboçando um sorriso maroto.

Lorac estava repousando na ala da enfermaria feminina, quando, de repente,


avistou um perfil masculino que ela, mesmo de costa, reconheceu. O visitante estava
junto à cama de uma outra moça em convalescença.
“Oi, quanto tempo?! Você por aqui? O que houve, tá doente?” – perguntou ele
à mulher que tinha traído e aplicado um golpe de estelionato.
“Oi. Sete anos e oito meses mais precisamente. Tô bem, foi uma cirurgia
simples. Amanhã tô de alta. E você?”
“Vim visitar essa minha amiga. Ela também tá bem.”

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O cara se virou para a amiga novamente e disse:
“Tivemos uma história de amor muito bonita, não foi Lorac?”
“Namoramos sim, mas que foi uma história de amor bonita tá longe de ser
verdade.”
Depois de algumas outras trocas de palavras, o playboyzinho pegou o número do
telefone de Lorac, se despediu de ambas as pacientes e se retirou da sala.
Passados alguns dias daquele reencontro supresa, eles estavam namorando
novamente.

Gravidez para minha gravidade


Lorac tinha sido aconselhada a se mudar daquela casa localizada num lugar
distante de tudo e de todos – tão ermo que não era atendido pelo serviço de correios,
nem tão pouco chegava táxi ou tinha parada de ônibus nas proximidades. A fim de sair
daquele lugarejo, se precisava caminhar cerca de três quilômetros. Pegar uma van até a
parada de ônibus mais perto, e só depois, seguir no coletivo para o destino almejado na
região metropolitana da cidade.
Morar mais perto da civilização seria útil para ela se recuperar do estado
depressivo em que se encontrava. Eis que, ela com a ajuda do motoqueiro estelionatário
alugou uma casa num subúrbio da zona norte, e foram morar juntos.
Numa certa conversa que ela tinha tido com Yared, ele perguntou:
“Por que depois de tudo que esse cara te fez, você voltou com ele?”
“Voltei porque estava decidida a botar pra foder nele!” – declarou a mulher
com uma voz embargada e o rosto encrespado de raiva.
“Eu tinha decidido gerar alguém que fosse do meu sangue, meu descendente de
verdade, da minha família, porque eu estava absolutamente sozinha no mundo. Minha
depressão tinha uma certa gravidade – estava ameaçando minha sanidade mental. Ele
era o parceiro da vez, daí engravidei dele. Fiquei esperando a Beth.” – completou ela.

31

Inferno astral
“Contudo, Erich não podia ser totalmente despido de sentimento. Se o fosse, não teria vindo
consultar-me a respeito de sua situação. Ele sabia que algo estava errado e, no entanto, negava qualquer
sentimento sobre isso; sabia que devia mudar, mas desenvolvera poderosas defesas para proteger-se. É
impossfvel atacar tais defesas, a menos que se entenda completamente sua função e, mesmo assim,
somente com a cooperação do paciente. Por que erguera Erich defesas tão poderosas contra o
sentimento? Por que se enterrada num túmulo caracterológico? De que tinha realmente medo?” –
Alexander Lowen

Meus porquês da vida

179
Quanto a sentimentos interiores negativos

“Por que NÃO consigo DESCANSAR A MINHA MENTE e os meus pensamentos?”


R.

“Por que será que NÃO posso VIVER EM PAZ comigo mesmo e estar em paz com as
pessoas ao meu redor?”
R. “ ‘Morte de ego’ que a isso se chama. Eu tenho que matar aquilo que eu acho que sou. Só que
eu não sou isso. E a pior é que você acha que você é aquilo. Tem algumas pessoas, que à vezes, precisam
matar o ego, e elas se matam. É engraçado, não é se matar. É matar essa casca, essa prisão que você
carrega. Essa fantasia de personagem que você inventou. Você tem que matar isso porque isso está te
matando. Tem pessoas que acham: ‘isso sou eu’. Nao. É o que você criou para sobreviver.Agora está na
hora de jogar essa fantasia no lixo.” – Fernando Freitas CS

“Por que é que SOU tão ANSIOSA?”


R.

“Por que é que TENHO tantos PENSAMENTOS NEGATIVOS?”


R. “A imaginação é a metade da doença, a tranquilidade é a metade do remédio e a paciência é o
começo da cura.” – Ibn Sina
“Outras pessoas assumem tantas responsabilidades que não são suas, muitas vezes por um
desequilíbrio na dinâmica familiar, que se sentem responsáveis até por acontecimentos banais, do dia a
dia. Com isso, essas pessoas se afundam e não conseguem ver outra solução, a não ser um caminho sem
volta.
São tantas as causas desses pensamentos negativos que é necessário um aprofundamento muito
maior em cada caso individual.” – Fernando Freitas CS

“Por que NÃO CONSIGO RELAXAR?”


R. “xxxx - Dr. Ferdando Freitas CS

“Por que NÃO me sinto SATISFEITA COMIGO MESMO E COM OS OUTROS?”


R. “O desejo de ter mais experiências positivas é, em si, uma experiência negativa. E,
paradoxalmente, a aceitação da experiência negativa é, em si, uma experiência positiva. Desejar
sentimentos positivos é um sentimento negativo; aceitar os sentimentos negativos é um sentimento
positivo. É a isso que o filósofo Alan Watts se refere como “lei do esforço invertido”: a ideia de que
quanto mais tentamos nos sentir bem o tempo todo, mais insatisfeitos facamos, pois a busca por alguma
coisa só reforça o fato de que não a temos. Quanto mais você se desespera para ser rico, mais pobre e
indigno se sente, seja qual for sua renda. Quanto mais você se desespera para ser bonito e desejado,
mais feio se considera, seja qual for sua aparência. Quanto mais você se desespera para ser feliz e
amado, mais sozinho e aflito fica, não importa com quem esteja. Quanto mais espiritualizado quer ser,
mais egocêntrico e superficial se torna no processo.” – Mark Manson

“Porque é que eu NÃO ME ACEITO como eu gostaria de ser/como sou realmente?”


R. “Eu não trabalho com a máscara, eu trabalho com a realidade que está por trás da máscara.” –
Fernando Freitas CS

“Por que NÃO consigo AMAR E ACEITAR-ME como sou?”


R. “A doença fundamental que se me deparou em todas as pessoas com as quais já trabalhei é o
ódio de si mesmas. O ódio de si mesmo, na minha opinião, é a doença interior básica de todos nós, mas a
maneira exta com que esse ódio e não aceitação do eu se manifestam transparece nas diferentes
estruturas de caráter.
À proporção que nos obrigamos a compreender nossa dinâmica num nível diário, aprendemos a
nos aceitar por esse processo. Podemos nos amar incondicionalmente, ainda que vejamos nossas
deficiências? Podemos nos perdoar quando metemos os pés pelas mãos? Podemos, depois de haver
criado uma confusão, nos levantar e dizer: “Bem, preciso aprender a lição que essa enrascada me dá.”

180
“Sou um homem de Deus.” “Eu me realinho com a luz e continuarei enfrentando tudo o que tenho de
enfrentar a fim de reencontrar meu caminho para o meu Deus interior e para o meu lar.” - Barbara
Ann Brennan

“Por que não é que NÃO consigo SENTIR A VERDADEIRA FELICIDADE?”


R. “Na análise sistêmica, o primeiro mundo que cerca o indivíduo é o útero e, nesse lugar, o
indivíduo começa a se relacionar com a vida. Podemos dizer que o útero representa a vida. Entretanto, o
útero é dinâmico, pois utiliza-se da circulação sanguínea para levar energia ao novo Ser e, dependendo
de como isso funciona, ele vai perceber a relação com a vida de diferentes formas. Por exemplo, se a
gravidez da mãe for tranquila, sem atropelos, essa energia vai chegar de forma eficiente, e a
relação/interação com esse Ser será harmônica. Mas se infelizmente houver algum problema, esse fluxo
de energia será comprometido e isso irá gerar diferentes interações desse Ser com o útero, e isso
certamente influenciará na percepção de mundo que aquele indivíduo vai formar.” – Fernando Freitas
CS

Quanto ao amor e à sexualidade

“Por que NÃO consigo verdadeiramente SENTIR O AMOR?”


R.
“Por que é que penso que NÃO AMO realmente AS PESSOAS à minha volta (e
familiares)?”
“Por que NÃO posso me entregar realmente ao AMOR VERDADEIRO?”
R.

Quanto às relações intrapessoais e interpessoais

“Por que NÃO consigo manter laços de AMIZADES DURADOURAS?”


R. “A Estrutura Esquizoide – No processo terapêutico, depois que o cliente pára de tentar ser
bonzinho para o terapeuta e põe-se a trabalhar, a primeira camada da personalidade que se encontra é
a parte recriminativa, às vezes chamada de máscara, que diz: `Eu o rejeitarei antes que você me rejeite.
´” – Barbara Ann Brennan

“Por que é que eu TENHO RAIVA DAS PESSOAS E DA VIDA?”


R. “A raiva muitas vezes funciona como um substituto da dor pela perda. A raiva também funciona
como defesa contra o amor. Em vez de expressar meu amor, fico com raiva das pessoas que amo. Essa
raiva surge na infância, em consequência da interrupção de um movimento afetivo. Fico com raiva de
alguém porque lhe fiz mal, mas não quero reconhecer isso. Com essa raiva, eu me defendo das
consequências dessa culpa e a empurro para a outra pessoa. Alguém me dá tantas coisas grandes e boas,
que não consigo retribuir. Isso é realmente difícil de suportar. Então me volto contra o doador e suas
dádivas, ficando zangado com ele.” – Bert Hellinger

“Por que SOU tão CRÍTICA em relação A MIM E AOS OUTROS?”


R.

“Por que é que PROCURO SER INDEPENDENTE DAS PESSOAS?”


R.

181
“Porque é que TENHO TÃO BAIXA AUTO-ESTIMA?”
R. “Quando há compreensão de si mesmo, o que vem do mundo externo é consequência.” –
Fernando Freitas CS

“Porque é que às vezes DUVIDO DAS COISAS/PESSOAS/DA MINHA FÉ/QUE AS


COISAS PODEM E VÃO MUDAR?”
R. “As rodas da carruagem giram, mas seus eixos não; as hélices do moinho se movem com o
vento, mas o moinho não; a Terra é carregada ao redor de sua órbita, mas seu centro é fixo.” – G.S.
Bowes

“Por que é que NÃO posso MANTER RELAÇÕES SAUDÁVEIS com as pessoas?”
R.
“Por que é que NÃO posso sentir a plena GRATIDÃO pela minha vida/ainda que eu
saiba que tenho tudo pelo qual devo estar grata?”
R.
“Por que SOU tão AGRESSIVA e por vezes tão INSENSÍVEL e CRUEL para
comigo e para os outros?”
R. “E muitas resoluções desequilibradas na fase adulta, são fruto dessa criança que se impõe no
lugar do adulto, nas atitudes e na tomada de decisões.” – Fernando Freitas CS

“Por que é que SOU tão INDECISA?”


R.

“Por que é que SOU tão INSEGURA?”


R.
“Porque é que persigo a PERFEIÇÃO EM TUDO/EM MIM E NAS OUTRAS
PESSOAS?”
R.

Quanto à fé e à religião

“Será que ACREDITO realmente no DEUS Supremo?”


R.

“Fui mesmo uma PESSOA TÃO MÁ assim no passado?”


R.

“É por isso que PAGO um MAU CARMA durante esta vida?”


R. “Algumas pessoas são assaltadas por um sentimento de culpa que chega a um ponto em que a
pessoa não consegue mais carregar aquele peso. Julgando-se culpada, ela precisa de uma punição. Essa
é a dinâmica julgamento, culpa, punição.” – Fernando Freitas CS

Quanto à família de origem

“Por que fui ABANDONADA pelos meus PAIS BIOLÓGICOS?”

182
R. “Cria-se o caráter oral quando o desenvolvimento normal é interrompido na fase oral do
crescimento. A causa disso é o abandono. Na infância, a pessoa perdeu a mãe, pela morte, pela doença
ou pelo afastamento. A mãe deu-se para o filho, mas não se deu o suficiente. Muitas vezes ela “fingiu”
dar-se – ou deu-se a despeito de si mesma. – Barbara Ann Brennan

“Por que razão fui ADOTADA por uma família ´DOENTIA` ?”


R.

“Por que é que NÃO fui aceita pela minha MEIA-IRMÃ E PELO SEU SUPOSTO
PAI?”
R.

“Por que é que NÃO tenho sequer um PADRASTO na minha certidão de


nascimento?”
R. “Existe uma característica do ser humano, que nós temos uma demora enorme para nos
tornarmos adultos. Então, por isso precisou estruturar a família, casal, família, essas coisas não é que
nasceu do nada. Não. É uma necessidade dos novos seres. Eles precisam de anos de cuidados. O que
acontece é que assim que o bebê nasce, ele vai para um outro útero. Sim, é um outro útero, que útero? A
casa é o útero paterno. Dentro desse útero, o bebê vai se transformar num ser humano adulto. A hora
que ele vira um adulto, ele não cabe mais nessa casa, ou não deveria mais caber, ele nasce para a vida.
Vá embora para a vida assim, você está pronto, você é capaz. Siga. Bata assas e voe. Siga o seu destino,
siga sua jornada. Isso é o parto paterno. No parto paterno o que acontece? Existe um corte do cordão
umbilical, que corte? Agora você está por sua conta, siga, você já aprendeu conosco o que deve fazer no
mundo aí fora, e agora você é livre. Olha que interessante, você é livre, bata as asas e voa. Pegue todos
os referenciais que você aprendeu e vá.” – Fernando Freitas CS

Quanto à profissão

“Por que NÃO posso ser bem sucedida na PROFISSÃO?”


R.

Quanto à morte

“Por que tenho tanto medo da morte/e de perder as pessoas que “amo”?”
R. “Todos nós, em algum momento, tomamos conhecimento da inevitabilidade da própria morte.
Como somos capazes de imaginar versões alternativas da realidade, também somos a única espécie que
consegue imaginar uma realidade da qual não fazemos parte. Essa percepção causa o que Becker chama
de “pavor da morte”, uma profunda ansiedade existencial que serve de base para tudo que pensameos e
fazemos.
O segundo ponto de Becker começa com a premissa de que temos dois “eus”. O primeiro é o eu
físico – aquele que come, dorme, ronca e faz cocô. O segundo é o eu conceitual – a nossa identidade, ou
a forma como nos vemos.
O argumento de Becker é o seguinte: todos sabemos que o eu físico vai acabar morrendo e que
a morte é inevitável, e essa inevitabilidade – em algum nível inconsciente – nos mata de medo. Portanto,
para compensar o medo da inevitável perda do eu físico, tentamos construir um eu conceitual, que viverá
para sempre. É por isso que as pessoas se esforçam tanto para colocar seu nome em prédios, estátuas e
lombadas de livros. É por isso que nos sentimos impelidos a dedicar tanto tempo aos outros,
especialmente às crianças, na esperança de que a nossa influência – nosso eu conceitual – dure muito
mais que o físico; na esperança de que seremos lembrados, reverenciados e idolatrados muito depois que
o nosso eu físico deixar de existir.”

183
Becker chamou esses esforços de nossos “projetos de imortalidade”, aqueles que permitem que
o eu conceitual continue vivo muito depois da nossa morte física.” – Mark Manson

Existe solução?
“Seja com terror de consciência ou pragas no corpo, de um jeito ou de outro Ele arrancará
deles espólios para si, como sempre o fez com todos os perseguidores do Seu povo.” – John Trapp

“Quem são os meus antepassados e ancestrais? Eu preciso saber!”


R. “As crianças encontram a punição dos pecados de seus pais e são elas mesmas, geralmente, os
meios de tais punições. Não podemos, contudo, fingir explicar a justiça desta maldição, ainda que
creiamos plenamente nela.” – C. H. Spurgeon

“O que é que posso fazer para me melhorar como pessoa? Preciso de respostas!”
R. “ ‘Morte de ego’ que a isso se chama. Eu tenho que matar aquilo que eu acho que sou. Só que
eu não sou isso. E a pior é que você acha que você e aquilo. Tem algumas pessoas, que à vezes, precisam
matar o ego, e elas se matam. É engraçado, não é se matar. É matar essa casca, essa prisão que você
carrega. Essa fantasia de personagem que você inventou. Você tem que matar isso porque isso está te
matando. Tem pessoas que acham: ‘isso sou eu’. Nao. É o que você criou para sobreviver.Agora está na
hora de jogar essa fantasia no lixo.” – Fernando Freitas CS

“E o que farei com tudo isto depois de conseguir as respostas?”


R.

184
Parte 8

Epílogo

185
Visões de tempo
“...o tempo é um ciclo em espiral, no qual certas coordenadas são as mesmas de antes, enquanto outras
são diferentes. Do mesmo modo como podemos visitar de novo um mesmo local no espaço, sem que
tropecemos com os seres que éramos anteriormente, assim também, a cada ano, estamos expostos a
locais de tempo equivalentes.” – Matis Weinberg

ccc

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Chegamos ao finalxxxxxxxxxxxxx

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