Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
Este artigo pretende esclarecer e tecer decorrências que concernem à relação entre
teologia pública e direitos humanos, tendo como perspectiva hermenêutica os conceitos de
memória e reconhecimento em Paul Ricoeur, que o autor trata de forma específica em
Percursos do reconhecimento (2004). Fatos como o regime de segregação racial (1948-
1994) na África do Sul e a ditadura militar-civil no Brasil (1964-1985) não repousam apenas
em narrativas históricas, mas são circunstâncias que marcam a memória pessoal e coletiva,
repercutindo no tecido social que forma uma sociedade, uma nação, um país e, em última
instância, a humanidade. O apartheid sul-africano e a ditadura brasileira repousam sobre
outros tantos acontecimentos, do passado e do presente, que demarcam uma teimosia humana
em produzir mecanismos de cerceamento e de violência contra quem não tem reconhecida a
sua condição de ‘ele/a é um/a como nós’. O/a Outro/a ingressa na categoria do não-ser e,
portanto, se lhe destitui o direito de ser ele/ela, roubasse-lhe a humanidade. Mais do que
trazer à lembrança acontecimentos, fazer memória (coletiva e individual) é percorrer os
meandros da narratividade que permite tecer os fios da justiça, da reconciliação e também da
celebração. Como tarefa e esperança, o reconhecimento está na ordem da inclusão, da
cidadania, da participação, da democracia. Os direitos humanos não se reduzem ao âmbito
do jurídico, assim como não é suficiente uma declaração universal ou uma carta magna que
dê caráter pétreo aos direitos fundamentais. Garantir que efetivamente cada pessoa seja
acolhida e bem-quista na sociedade é uma tarefa que deve ser constantemente renovada. A
defesa efetiva e a fundamentação argumentativa dos direitos humanos são tarefas que cabem
também à teologia, sendo parceira de outros esforços convergentes.
Abstract
This article intends to clarify and weaving derivations that concern the relationship
between the public theology and the human rights, taking as hermeneutic perspective the
memory and the recognition concepts, which are present in thought of Paul Ricoeur, and of
specific shape in his 'The Course of Recognition' book (2004). Events as the apartheid (1948-
1994) in South Africa and the military-civilian dictatorship in Brazil (1964-1985) do not
recline only in historical narratives, but are circumstances that make the personal and
collective memory, reflecting the social tissue that forms a society, a nation, a country and,
ultimately, the humanity. The South African apartheid and the Brazilian dictatorship rest on
2
so many events, both past and present, that demark a human stubbornness in producing
mechanisms of retrenchment and of violence against whom is not recognized his/her
condition of ‘ he/she is like one of us’. The Other (Alterity) enters in the non-being category
and, therefore, it deposes his/her the right to be he/she, stoles his/her humanity. More than
bring past events for memory, remembering (collective and individual) is to go through the
intricacies of narrative that allows weave the threads of justice, reconciliation and the
celebration. As task and hope, the recognition is in the order of inclusion, citizenship,
participation, democracy. Human rights cannot reduced to the scope of the legal, as well as
a universal declaration or a Constitution that gives stony character of fundamental rights is
not enough. Effectively ensure that each person is welcomed and well accepted in society is
a task that must be constantly renewed. The effective defense and argumentative foundation
of human rights are tasks that fit also to theology, being partner of other convergent efforts.
Introdução
1
CÉSAIRE, Aimé. Notebook of a return to the native land. Midletown: Wesleyan University, 2013. p. 49.
2
MADLINGOZI, Tshepo. A ‘meia verdade africana’. IHU On-Line, São Lepoldo, n. 475, 19 out. 2015. p. 10.
3
“O propósito da liberdade”, diz Nelson Mandela, “é criá-la para os outros”.4 Ora, não
será esse também um dos propósitos do quefazer teológico? Então, “porque tive fome, e
deste-me de comer; tive sede, e deste-me de beber” (Mt 25,35), não será também este o
sentido de uma memória eucarística, comunhão com Aquele/a que clama pelo
reconhecimento da dignidade do/a Outro/a? Não ressoa, nesse mesmo grito, a luta dos povos
indígenas, negros, mulheres, juventudes, crianças, LGBTs...? Por outro lado, qual seria o
sentido de se falar em nome Deus quando se impõe fardos de injustiça, exploração,
indiferença, sofrimento? Qual seria a palavra que se pode haurir do evangelho diante de
massacres sem sentido tal como ocorreu, por exemplo, na cidade norte-americana de
Orlando, em junho de 2016, numa boate LGBT, um dia depois do assassinato da jovem
cantora Christina Grimmie? Enfim, o que a teologia tem a dizer sobre os contínuos apartheids
pelo mundo a fora, os visíveis e invisíveis muros da intolerância, da violência impingida
contra tantos rostos?
3
SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe. Rio de Janeiro: LeYa, 2016. p. 45.
4
MANDELA, Nelson. Conversas que eu tive comigo. Rio de Janeiro, Rocco, 2010. p. 256.
4
5
CAVALCANTE, Ronaldo; SINNER, Rudolf von (Orgs.). Teologia Pública em debate. São Leopoldo: Sinodal
/ EST, 2011. p. 05.
5
direitos humanos (segunda secção) desde sua implicação pública (terceira secção) e, por fim,
da interpelação propriamente teológica (quarta secção). Em última instância, a partir deste
percurso, trata-se de explicitar o reconhecimento público enquanto capacidade do humano
que age pelo bem comum ou como expressão da hospitalidade que manifesta gratidão e
serviço. Denota-se, então, a sabedoria do amor a serviço da vida que palmilha a práxis de
uma teologia pública a serviço dos direitos humanos, que é o aspecto a ser salientado nesta
tarefa reflexiva. À luz do evangelho que é memória do Deus da vida, o teológico que
interpela, é também indagado pela realidade que clama por dignidade. Se Deus fosse um
ativista dos direitos humanos, numa provocação de Boaventura de Souza Santos,6 na partilha
do pão e do vinho, em que Jesus se dá a reconhecer como memória – “fazei isto em minha
memória” (Lc 22.19), talvez se encontre um aperitivo de como o seria. Memória que se torna
eucaristia (do grego εὐχαριστία, reconhecimento, ação de graças), alimento que dignifica a
vida, sabedoria do Amor que se revela no amor ao próximo. Eis a memória da Boa Nova: “o
Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-
me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a
liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4.18).
6
SANTOS, Boaventura de Souza. If God were a human rights activist. Stanford: Stanford University. 2015.
7
Cf. RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007. p. 41-86.
6
Não obstante, a memória não é apenas uma recordação que opera na trilha da
imaginação. Ela diz respeito à vivência do sujeito (pessoal ou coletivo) que dá sentido e
testemunha a presença de uma ausência que repercute no aqui e agora e, em última instância,
abre a promessa de uma presença no futuro. Aqui se coloca um enigma, tal como na promessa
de Jesus que se torna memória na comunhão (Lc 22.19; 24.30-31), uma realidade em parte já
presente, mas ainda muito por se realizar. Antes de ser puramente uma relação entre memória
pessoal e memória coletiva, há uma memória em que a marca do/a Outro/a se faz
proximidade. É nessa interação que nos é dada a condição de memória desde o receber um
nome próprio, um nome que nos introduz não apenas a uma linha de filiação, mas também a
um referencial a partir do qual se deposita uma vida inteira, incluindo as fragilidades de uma
memória impedida e manipulada. O ingresso da memória, na esfera pública ou no mundo da
vida, não se identifica com uma condição solitária, muito menos solipsista, “mas se reveste
de uma forma comunitária”, em que o “regime do viver juntos” decifra a experiência da
própria memória bem como das expectativas que se abrem. “O mundo dos predecessores e
dos sucessores estendem nas duas direções do passado e do futuro, da memória e da
expectativa, esses traços notáveis do viver juntos decifrados primeiro no fenômeno de
contemporaneidade”.8
Debruçar-se sobre teologia e direitos humanos, implica pensar uma relação que não
é tão pacífica como pode parecer à primeira vista. Por um lado, a teologia não aparece como
um discurso neutro, pois ela se insere num contexto histórico, social, numa comunidade de
fé que vive suas congruências e incongruências. Do mesmo modo, quando uma teologia se
distancia da realidade ou prescinde de uma leitura hermenêutica adequada entre caminhada
de fé e reflexão, assume o risco de se tornar discurso insonso ou mesmo suporte ideológico
de dinâmicas opressivas. Tal preocupação deve manter acesa a atenção na discussão aqui
proposta. De modo que a discussão se centra sobre o conteúdo que subjaz à visão teológica
e que implica diretamente a questão dos direitos humanos. A problemática não é recente, pois
a defesa dos direitos humanos se fez, muitas vezes, à revelia ou mesmo contra determinadas
práticas religiosas e visões teológicas, sobretudo quando estas são causas de obliteração do/a
Outro/a. Daí que a crítica teológica deve ser também uma crítica do próprio teológico.
8
RICOEUR, 2007, p. 140.
7
Por outro lado, cabe indagar pela narrativa (ou narrativas) que engendra a
compreensão de direitos humanos, sobretudo em sua concepção tornada hegemônica a partir
da Declaração Universal adotada pela Organização das Nações Unidas em 1948. Muito se
fala em direitos humanos, convenções e tratados são estabelecidos. Entretanto, a dignidade
humana continua sendo pisoteada. De modo que convém questionar, por exemplo, a própria
ideia de universalidade, presente na Declaração, e sua relação com os ideais ocidentais, sendo
esta uma racionalidade produzida, em certa medida, pela mesma modernidade colonialista
que se impõe como portadora de uma suposta missão civilizadora. Então, a partir dos/as
desterrados/as do mundo, que estão à margem do pensamento oficial, convém suspeitar da
concepção hegemônica de direitos humanos, não apenas do seu alcance, mas suas
condicionantes que implicam em possíveis exclusões.
9
ANZALDÚA, Gloria. Bordelands. La frontera the new mestiza. 4. ed. San Francisco: Aunt Lute Books, 2012,
p. 35.
8
O se fazer próximo do/a Outro/a, como memória de uma outra humanidade possível,
explicita, em última instância, a demanda ética que Ricoeur designa como “política da justa
memoria”.10 A memória não é apenas um objeto de história, mas também experiência vivida
por sujeitos e comunidades históricas. O reconhecimento público da justa memória supõe
recepção, reconhecimento e reconstrução hermenêutica do testemunho dos fatos e vivências
que marcam essa experiência. Assim, por exemplo, uma comissão da verdade, memória e
justiça, tal como foi instalada no Brasil, que procura narrar a experiência vivida por
sobreviventes da ditadura civil-militar de 1964 a 1985, pode convocar o testemunho público
ao dever de não esquecer, justiça esta que os tribunais em geral não alcançam.
Nesse sentido, cabe uma referência ao instrumento da anistia, aliás, expressão esta
que tem proximidade semântica com o termo amnésia. Em todo caso, a anistia pretende
alcançar a paz civil mediante a suspensão das ações judiciais relacionados às contendas
políticas. No entanto, no caso do Brasil, a Lei da Anistia de 1979, promulgada ainda em pleno
regime ditatorial, deve ser questionada quanto à sua vertente conservadora que implica
impunidade e esquecimento em relação aos crimes de tortura e assassinato promovidos por
agentes do Estado. Com efeito, como diz Ricoeur, “a recusa à justa memória promove o
apagamento dos crimes suscetíveis de proteger o futuro das faltas do passado”.11 Ou seja, as
feridas não se curam e os crimes se repetem. Ora, a reconciliação não significa apagamento
da memória, mas a assunção de uma responsabilidade ética para com as vítimas. Como indica
Rogério Ivano, “é neste momento, de ‘prioridade moral’ do dever de memória a quem sofreu
derrotas e humilhações que se impõe as regras históricas e sociais que tencionam a memória
coletiva, ou as memórias coletivas que se debatem por justiça”.12
10
RICOEUR, 2007, p. 17.
11
RICOEUR, 2007, p. 462.
12
IVANO, Rogério. Memória e esquecimento: argumentos de Paul Ricoeur. In: ANAIS. II Congresso
Internacional de História. Ponta Grossa: UNICENTRO, 2015.
9
dimensão civil como à política.13 Se a justiça dos tribunais não consegue atender à essa justa
memória, a evocação daqueles/as que tombaram sob o peso da tirania e da indiferença,
continua soando como uma responsabilidade ética.
A memória que reconcilia não é conveniente com a injustiça, mas também não é
arrogante nem guarda ressentimento, pois alimenta-se da memória do amor que transforma.
Assim é que, na utopia da comunhão, memória viva do pão e do vinho que se tornam corpo
e sangue, caminha a utopia de um outro mundo possível. Que a teologia possa ser uma
palavra de resgate dessa memória, é uma forma de reafirmar que, no compromisso da Igreja
Povo de Deus, está também a perseverança, a luta por “uma democracia que trará mudanças
reais e tangíveis à vida das classes trabalhadoras, dos pobres, dos desempregados, dos sem-
terra”.14 A partilha do pão e do vinho (comunhão), frutos do trabalho, torna-se eucaristia,
percurso de reconhecimento e ação de graças.
13
Cf. LEAL, Rogério Gesta. A memória como direito fundamental civil e político: qual é o caminho do Brasil?
In. _____ (org.). Verdade, memória e justiça. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2012, p. 08.
14
MANDELA, 2010, p. 319.
15
RICOEUR, 2006, p. 30.
10
Quando isso não ocorre, tal como se observa em muitas situações de injustiça,
obstaculiza-se o florescimento do reconhecimento mútuo, inclusive esvazia-se o conteúdo da
própria ideia e prática de democracia, impedindo que todas as pessoas possam, de fato,
constituírem-se agentes da coletividade. Daí que, por exemplo, na América Latina,
reconhecidamente umas das regiões mais desiguais do planeta, apresentam-se processos
democráticos bastante frágeis, inclusive em termos de organização do Estado, em que
governos legitimamente instituídos, via eleições diretas, são destituídos pelas elites
16
RICOEUR, Paul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006, p. 85.
17
RICOEUR, 2006, p. 147.
11
econômicas, tal como pode ser observado em Honduras, Paraguai e Brasil, na história mais
recente.
Ora, locais onde florescem realidades de injustiça, não há também estados de paz.
Citando o economista indiano Amartya Sen, Ricoeur destaca que “são as diferentes
liberdades positivas que existem em um Estado democrático, inclusive a liberdade de realizar
eleições regulares, o exercício de uma imprensa livre e a liberdade da palavra sem censura,
que encarnam a verdadeira força responsável pela eliminação da fome”.18 De fato, de acordo
com o próprio Sen, a possibilidade de se alçar à condição de cidadania, com um mínimo de
democracia política e social, para que o sujeito possa dizer a sua palavra e sentir-se
socialmente seguro, é também indicativo de superação dos mecanismos que geram fome e
miséria.19 Por isso, as ações afirmativas ou as políticas públicas de inserção dos excluídos,
mediante implantação de projetos de educação e cultura, além de mexerem com as estruturas
que geram pobreza, elas podem resgatar e impulsionar a cidadania, a emancipação, o desejo
de agir e interferir nos rumos da própria sociedade.20 Nesse mesmo processo, induz-se maior
intensidade nas lutas engendradas principalmente por mulheres, quando são elas as principais
receptoras das ações afirmativas. Ou seja, entende-se que o combate da miséria, via políticas
públicas de inclusão, propicia processos de libertação e superação de dinâmicas opressivas,
como a cultura patriarcal.21
18
RICOEUR, 2006, p. 157.
19
Cf. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2000. p. 217.
20
Cf. PAIVA, Angela Randolpho (org.). Ação afirmativa em questão: Brasil, Estados Unidos, África do Sul e
França. Rio de Janeiro: Pallas. 2013.
21
Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA (FAO).
Superação da fome e da pobreza rural: iniciativas brasileiras. Brasília: FAO, 2016. p. 153.
12
há também a celebração que evoca a boa nova que liberta, resgata, reconcilia o sentido do
humano, acolhendo a realidade e a utopia da vida como dom e serviço.
Isso fica mais claro quando o percurso ricoeuriano abre para a ideia do
reconhecimento mútuo. A mutualidade não significa um procedimento de redução, seja para
o lado do polo ego seja para o lado do polo alter. A relação face a face fissura a estratégia
das essencialidades em que “a alteridade de outrem não é perceptiva, sob o risco de deixar
sua diferença ser absorvida no império da ideia da totalidade, desdobrada pelas ideais de ser
das ontologias. É no modo ético da interpelação que o eu é chamado à responsabilidade pela
voz do outro.”22 O ponto de partida não é a ontologia, mas a ética ou, se preferirmos, a
sensibilidade solidária, sentido esse que o Estado hobbesiano e o Estado de direito hegeliano
não dão conta, embora Ricoeur extraia, desses últimos, considerações de pertinência mínimas
à ideia de reconhecimento, mesmo que em sua forma negativa. “A motivação não ética não
pode de modo algum ir mais longe no mimetismo da motivação ética que sustentaria a
definição do direito, nos jusnaturalistas, pela ‘qualidade moral da pessoa’.”23
22
RICOEUR, 2006, p. 271.
23
RICOEUR, 2007, p. 182.
24
RICOEUR, 2007, p. 202.
25
RICOEUR, 2006, p. 211.
13
26
RICOEUR, 2006, p. 212.
27
RICOEUR, 2006, p. 216.
28
RICOEUR, 2006, p. 218.
29
RICOEUR, 2006, p. 229.
14
pelo qual ela trata suas minorias, inclusive aquelas que não partilham as definições públicas
do bem, e acima de tudo pelos direitos que ela concede a todos os seus membros’”. 30
Nessa noção de estima social, recoloca-se a justa memória que solicita o ‘eis-me
aqui!’, abrindo espaço à justiça social, à solidariedade. Em sentido ético, trata-se de uma
responsabilidade infinita. Desse ponto de vista, diz Ricoeur, “as relações dos homens entre
si não deixam de incluir as relações do homem com a natureza, assim com os mortos,
guardiães do olhar sobre o passado”.31 Então, a partir dessa referência, abre-se o
reconhecimento pelos nossos que já não estão entre nós, bem como da nossa relação com a
natureza e, pode-se acrescentar, dos nossos outros não-humanos, os animais, que também
solicitam nossa estima, cuidado e respeito, tal como apontam Luiz Carlos Susin e Gilmar
Zampieri, na proposição de uma “teologia da libertação animal”.32
30
RICOEUR, 2006, p. 230.
31
RICOEUR, 2006, p. 218.
32
Cf. SUSIN, Luiz Carlos; ZAMPIERI. A vida dos outros. São Paulo: Paulinas. 2015.
33
RICOEUR, 2006, p. 268.
34
RICOEUR, 2006, p. 262.
15
35
RICOEUR, 2006, p. 160.
36
MIGNOLO, Walter. Local histories. Global designs. Princeton: Princeton University Press, 2000. p. 311.
16
Tenha-se em conta também que “a ideia de que a razão está sempre com a maioria
fundamenta-se em um pressuposto filosófico transcendental, ao aceitar como dogma a
existência de uma consciência coletiva que se identifica com o Bem e a Justiça”.38 De modo
que, como denuncia Rancière, sob tal pressuposto há um discurso ideológico apropriado aos
interesses de uma elite que transforma a democracia em um “eufemismo que designa um
sistema de dominação que não se quer chamar pelo nome”.39 Isso significa dizer que a
democracia não coincide necessariamente com a ideia de governo da maioria, quando se trata,
na verdade, de uma maioria conformada aos interesses de uma minoria econômica e política.
Não obstante, a resistência se faz necessária. Dela nasce como conquista, não como
concessão, o reconhecimento dos direitos humanos. E essa luta é constante. Assim é que,
37
BAPTISTA, Fernando Pavan. O direito das minorias na democracia participativa. Prisma Jurídico, São
Paulo, n. 02, 2003. p. 196.
38
BATPTISTA, 2003, p. 198.
39
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 112.
40
SANTOS, Boaventura de Souza. Reinventar a democracia. 2. ed. Lisboa: Gradativa, 2002. p. 09.
17
Por outro lado, com Ricoeur, cabe refletir a própria ideia de luta e perguntar se é
possível considerar o processo de reconhecimento numa outra forma que não seja pela ideia
do embate e do conflito. Ou seja, trata-se de perguntar se não é possível outra maneira que
não a ideia de luta, no processo por reconhecimento, e que permitiria superar a ideia de
disputa ou mesmo de violência que precisa ser resolvida sob o peso da balança e da espada
da justiça. Aliás, tenha-se em conta que, por omissão ou mesmo por ação, os tribunais
também se tornam fontes de injustiça. De modo que “a alternativa à ideia de luta no processo
de reconhecimento mútuo tem de ser procurada nas experiências pacificas de reconhecimento
mútuo, que se baseiam em mediações simbólicas subtraídas tanto da ordem jurídica como da
ordem das trocas mercantis”.42
41
Cf. SANTOS, 2015, p. 61.
42
RICOEUR, 2006, p. 233.
18
das lutas pelo reconhecimento não é ilusória”.43 Podemos chamar isso de utopia ou de sonho
de um outro mundo possível que engendra os passos do possível.
Os estados de paz evocam a ideia do amor. No entanto, é preciso ter em conta que,
em nossa cultura, tais estados de paz estão ligados tanto à ideia grega de philia (amizade, em
Aristóteles) ou eros (amor, em Platão) como ágape (amor, em sentido semita e cristão). Ora,
o conceito de ágape parece afastar de antemão a ideia de um reconhecimento mútuo, na
medida que se coloca como serviço ou dom oferecido, sem requerer o recíproco. Ricoeur,
então, questiona se não há o perigo de apagar os traços interpessoais da mutualidade que,
aqui, difere-se da ideia reciprocidade. Diferença esta que não é acidental, mas implica a
própria resposta à questão ali suscitada. No caso, o autor reserva “o termo ‘mutualidade’ para
as trocas entre indivíduos e o termo ‘reciprocidade’ para as relações sistemáticas em que
vínculos de mutualidade não constituiriam senão uma das ‘figuras elementares’ da
reciprocidade”.44
O reconhecimento como gratidão não é uma imposição, um dever estoico, nem uma
mera caridade, embora esta, como diz Ricoeur, seja necessária para atender situações em que
a justiça distributiva e redistributiva não consegue atender. “Não há nada a ser dito contra
esses empreendimentos e essas instituições caritativas, cuja necessidade é evidente e que é
43
RICOEUR, 2006, p; 232.
44
RICOEUR, 2006, p; 246.
45
RICOEUR, 2006, p. 255.
19
preciso vincular claramente a uma concepção ampliada da justiça”. 46 Mas a festa que nasce
do dom, da partilha, parece escapar da moralização caritativa, porque é da ordem da
gratuidade. As práticas do dom, tal como na solenidade do gesto de perdão, encontram a
memória da celebração. Aqui, Ricoeur tem em mente o gesto do chanceler alemão Willy
Brandt (1913-1992), que se ajoelha aos pés do memorial de Varsóvia dedicado às vítimas do
holocausto. Tal gesto, que lembra tantos outros, não se institucionaliza, mas evoca a memória
de um estado de paz.
46
RICOEUR, 2006, p. 257.
47
RICOEUR, 2006, p. 257.
48
RICOEUR, 2006, p. 257.
49
RICOEUR, 2006, p. 255.
50
RICOEUR, 2006, p. 257.
20
Com efeito, vale notar com Mandela, que “a decadência moral de algumas
comunidades em várias partes do mundo se sobressai entre outras pelo uso do nome de Deus
para justificar a manutenção de ações que são condenadas pelo mundo inteiro como crimes
contra humanidade”.52 Talvez, para esse tipo de teologia, como antídoto, há a memória do
evangelho que reporta à imagem de Jesus entrando no pátio do templo e de lá, encontrando
os vendilhões, enxota-os e vira as mesas. Ora, é justamente contra a classe religiosa que Jesus
parece mais se enfurecer. Nesse sentido, aporta-se à memória do evangelho, em que há a
denúncia contra as armas ideológicas da morte.53 De fato, faz-se mister rejeitar e denunciar
“com veemência a corrupção, a iniquidade, a impunidade e o ataque ao Estado Democrático
de Direito. Esses desvios fazem com que o pão não esteja na mesa do pobre, e deixem os
enfermos e os órfãos desamparados”.54 Em suma, dizer-se cristão e não lutar pelos direitos
humanos é uma contradição.
51
SANTOS, 2015, p. 79.
52
MANDELA, 2010, p. 376.
53
Cf. HINKELAMMERT, Franz. As armas ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas. 1983.
54
MISSÃO NA ÍNTEGRA Manifesto de Evangélicos pelo Estado de Direito. Disponível em:
http://www.gospex.com.br/2016/03/manifesto-de-evangelicos-pelo-estado-de-direito-iniciativa-do-missao-na-
integra/; Acesso em: 07. jun. 2016.
21
Por outro lado, na consideração aos direitos humanos, também implica um olhar de
criticidade, no sentido de que pode haver ali também contradições ou insuficiências. Com
Kathlen Oliveira, entende-se que “os direitos humanos não são verdades axiomáticas e nem
verdades absolutas”. 55 Assim, por exemplo, entende-se que a Declaração da ONU de 1948 e
mesmo as convenções posteriores (sobre descriminação racial e contra mulheres, violência
contra crianças, direito do povos indígenas, dentre outras resoluções), expressam um
contexto, uma história, uma concepção epistemológica, enfim, narrativas que refletem, em
certa medida, às expectativas da própria modernidade que se desenvolve a partir da ideia de
civilização ocidental. Isso significa dizer que a concepção de direitos humanos também tem
sua face hegemônica. Fato é que, de acordo com Boaventura Santos, “não há dúvida hoje
sobre a global hegemonia dos direitos humanos como um discurso da dignidade humana.
Entretanto, tal hegemonia apresenta uma perturbadora realidade. Uma grande maioria dos
habitantes do mundo não são sujeitos de direitos humanos”.56 Em geral, grande parte da
população é mais objeto de discussão do que propriamente sujeito de direito humano.
55
OLIVEIRA, Kathlen Luana de. Por uma política da convivência. Passo Fundo: IFIBE, 2011. p. 75.
56
SANTOS, 2015, p. 01.
22
Tenha-se em conta que uma declaração, tal como propõe a ONU, não é um tratado e
não tem peso de lei. A Declaração é apresentada como uma espécie de incitação e respaldo
para que as diferentes sociedades possam assumir os direitos humanos enquanto parâmetro
para a suas organizações, tanto em nível global como local. Consequentemente, é fato de que
a Declaração se constitui num elemento impulsionador, tendo em conta que muitos países,
inclusive o Brasil, pós ditadura civil-militar (1964-1985), e a África do Sul, pós apartheid
(1948-1994), assume os direitos humanos em suas constituições, impulsionando processos
democráticos. Não obstante, repetem-se as cenas de injustiça, de opressão, de violência, de
tortura, inclusive em nome dos próprios direitos humanos.
57
Nesse contexto, incluem-se a Declaração dos Direitos da Inglaterra (1689) e a Carta dos Direitos dos Estados
Unidos (1791). Importante mencionar também a Revolução Haitiana (1791-1804), um símbolo de libertação
negra e de luta contra o colonialismo, cujo evento não é destacado pela narrativa hegemônica da história dos
direitos humanos. Sobre esse tema, ver JAMES, Cyril L. R. Os Jacobinos negros: Toussaint L1Ouverture e a
Revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo. 2010.
58
OLIVEIRA, 2011, p. 75.
59
NYAMNJOH, Francis. Xenophobia at odds with SA ‘rhetoric of inclusivity and human rights’. Disponível
em: <http://www.nyamnjoh.com/>; Acesso em: 21 abr. 2016.
23
descriminação contra mulheres, cujos índices estão dentre os mais altos do mundo. 60 Do
mesmo modo, trabalhadores que lutam por melhorias salariais e condições de trabalho, são
duramente reprimidos, tal como no massacre de Marikana (2012), em que a polícia abre fogo
contra mineiros em greve, mantando mais de trinta manifestantes.
Enquanto isso, no Brasil, a memória daqueles e daquelas que tombaram sob correntes
e coturnos, ainda espera por uma sociedade que reconheça, em suas entranhas, a
responsabilidade por tanta injustiça e dor que foram causadas, para que a casa grande, a elite
brasileira, mantivesse seus privilégios. Ao mesmo tempo, propaga-se uma onda reacionária,
contendo inclusive sinais de fascismo. Um de seus ingredientes é justamente a presença de
uma mentalidade teocrática que, de forma articulada ou não, tem se constituído num forte
obstáculo ao avanço de políticas públicas de promoção e reconhecimento de direitos
humanos. Sob uma suposta defesa da honra familiar e da moralidade divina, coloca-se em
xeque a laicidade do Estado, promovendo-se um modus operandi que perpetua práticas de
opressão e morte. As referências à religião e a Deus nos discursos políticos colocam em
questão a complexa relação entre fé e domínio público, em que a defesa do Estado laico é
uma condição para que as diferenças possam encontrar respaldo e um ambiente de
convivência respeitosa.
É certo que a dimensão da fé pode e deve contribuir para uma sociedade melhor e
mais justa, mas, por outro lado, uma religiosidade descontextualizada e sem uma
hermenêutica adequada, em geral, torna-se fonte de mais violência e sofrimento, na medida
em que se conserva, subjacente, um fundamentalismo próprio das sociedades patriarcais, em
que o homem (branco) se apresenta como referência de poder. Daí também a importância da
teologia pública, enquanto ciência da manifestação da fé, que pode e deve mobilizar esforços
para recuperar ou reforçar seu locus comunitário, tendo como horizonte a luta por justiça,
solidariedade, dignidade, libertação. Uma teologia que emana do evangelho da vida,
certamente, emerge como um antídoto contra teologias necrófilas, inquisitórias e
intimamente comprometidas com os interesses dos poderosos.
60
RAPE CRISIS. Rapa in South Africa. Disponível em: <http://rapecrisis.org.za/about-rape/>; Acesso em: 13.
Jun. 2016.
24
À guisa de conclusão
61
LADY GAGA. “(Thank you Father Duffell for a beautiful homily) as always and lunch at my pop's restaurant.
(I was so moved today when you said. ‘The Eucharist is not a prize for the perfect but the food that God gives
us.’) - Father Duffell, Blessed Sacrament Church Nourishment.” 9 maio 2016. Tweet.
25
ecológica que inclui a defesa da dignidade da vida animal. A memória da luta pelos direitos
humanos nos coloca diante de uma condição de permanente vigília. Nesse sentido, a defesa
dos direitos humanos significa lutar contra todo tipo de violência e descriminação racial e de
gênero. Significa também lutar contra as chagas do trabalho escravo, da miséria e do
cerceamento à alimentação básica. É lutar pelo fim da tortura e aplicação de penas cruéis e
degradantes a todo ser humano. Defender os direitos humanos significa lutar pelo direito da
criança e juventude, pelo direito dos povos indígenas e minorias. Não se pode perder de vista
também a condição ecológica e a relação com os animais não humanos, a vida de nossos
outros que solicita nosso cuidado, respeito à sua dignidade.62 Aqui, a reflexão deve ter
continuidade.
Falando sobre seus sonhos e projetos, Mandela dizia que eles não estavam no cárcere
que, por quase três décadas, o aprisionara, mas nos seres humanos, na sabedoria coletiva que
luta por justiça e igualdade social. “Sou mais do que nunca influenciado pela convicção de
que a igualdade social é a única base da felicidade humana [...] É em torno dessas questões
que evoluem meus pensamentos.” Trata-se de uma convicção alimentada, continua Mandela,
pela “nova geração que declara guerra total contra todas as formas de crueldade, contra
qualquer ordem social que mantém privilégios econômicos para uma minoria e condena a
maioria da população à pobreza e às doenças, ao analfabetismo e à série de males que
acompanham uma sociedade estratificada”.63 A mística que semeia a semente da esperança,
empapa a luta cotidiana de quem cultiva sonhos de um outro mundo possível, que é também
memória da eucaristia. Então, como canta o poeta,
Se somos todos irmãos / Se todos somos amigos / Basta um pedaço de chão / Para
a vitória do trigo / Basta um pedaço de terra / Para a semente ser pão / Enquanto a
fome faz guerra / A paz espera no chão.64
REFERÊNCIAS
A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1989.
62
SUSIN; ZAMPIERI, 2015.
63
MANDELA, 2010, p. 181.
64
LEDESMA, Dante Ramon. A vitória do trigo. In: Dante Ramon Ledesma Duplo: 20 anos. Ao Vivo. Porto
Alegre: USA Discos. 2008. Compact Disc, Disco 2, faixa 5.
26