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TEOLOGIA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS: MEMÓRIA E


RECONHECIMENTO

PUBLIC THEOLOGY AND HUMAN RIGHTS: MEMORY AND RECOGNITION

Resumo
Este artigo pretende esclarecer e tecer decorrências que concernem à relação entre
teologia pública e direitos humanos, tendo como perspectiva hermenêutica os conceitos de
memória e reconhecimento em Paul Ricoeur, que o autor trata de forma específica em
Percursos do reconhecimento (2004). Fatos como o regime de segregação racial (1948-
1994) na África do Sul e a ditadura militar-civil no Brasil (1964-1985) não repousam apenas
em narrativas históricas, mas são circunstâncias que marcam a memória pessoal e coletiva,
repercutindo no tecido social que forma uma sociedade, uma nação, um país e, em última
instância, a humanidade. O apartheid sul-africano e a ditadura brasileira repousam sobre
outros tantos acontecimentos, do passado e do presente, que demarcam uma teimosia humana
em produzir mecanismos de cerceamento e de violência contra quem não tem reconhecida a
sua condição de ‘ele/a é um/a como nós’. O/a Outro/a ingressa na categoria do não-ser e,
portanto, se lhe destitui o direito de ser ele/ela, roubasse-lhe a humanidade. Mais do que
trazer à lembrança acontecimentos, fazer memória (coletiva e individual) é percorrer os
meandros da narratividade que permite tecer os fios da justiça, da reconciliação e também da
celebração. Como tarefa e esperança, o reconhecimento está na ordem da inclusão, da
cidadania, da participação, da democracia. Os direitos humanos não se reduzem ao âmbito
do jurídico, assim como não é suficiente uma declaração universal ou uma carta magna que
dê caráter pétreo aos direitos fundamentais. Garantir que efetivamente cada pessoa seja
acolhida e bem-quista na sociedade é uma tarefa que deve ser constantemente renovada. A
defesa efetiva e a fundamentação argumentativa dos direitos humanos são tarefas que cabem
também à teologia, sendo parceira de outros esforços convergentes.

Palavras-chave: Teologia Pública. Direitos Humanos. Memória. Reconhecimento.

Abstract

This article intends to clarify and weaving derivations that concern the relationship
between the public theology and the human rights, taking as hermeneutic perspective the
memory and the recognition concepts, which are present in thought of Paul Ricoeur, and of
specific shape in his 'The Course of Recognition' book (2004). Events as the apartheid (1948-
1994) in South Africa and the military-civilian dictatorship in Brazil (1964-1985) do not
recline only in historical narratives, but are circumstances that make the personal and
collective memory, reflecting the social tissue that forms a society, a nation, a country and,
ultimately, the humanity. The South African apartheid and the Brazilian dictatorship rest on
2

so many events, both past and present, that demark a human stubbornness in producing
mechanisms of retrenchment and of violence against whom is not recognized his/her
condition of ‘ he/she is like one of us’. The Other (Alterity) enters in the non-being category
and, therefore, it deposes his/her the right to be he/she, stoles his/her humanity. More than
bring past events for memory, remembering (collective and individual) is to go through the
intricacies of narrative that allows weave the threads of justice, reconciliation and the
celebration. As task and hope, the recognition is in the order of inclusion, citizenship,
participation, democracy. Human rights cannot reduced to the scope of the legal, as well as
a universal declaration or a Constitution that gives stony character of fundamental rights is
not enough. Effectively ensure that each person is welcomed and well accepted in society is
a task that must be constantly renewed. The effective defense and argumentative foundation
of human rights are tasks that fit also to theology, being partner of other convergent efforts.

Keywords: Public Theology. Human Rights. Memory. Recoghition.

Introdução

Considerando que a tarefa humana só começou


E o ser humano ainda deve superar
Todas as interdições presas nos recôndidos de suas paixões
E nenhuma raça tem o monopólio da beleza, da inteligência, da força
Há espaço para todos na convocação.1

Fatos como o regime de segregação racial (1948-1994) na África do Sul e a ditadura


militar-civil (1964-1985) no Brasil, dentre outros do gênero, não repousam apenas em
narrativas históricas, mas são circunstâncias que marcam a memória pessoal e coletiva,
repercutem no tecido social, na humanidade como um todo. Nos dois países que tomo como
referência para essa discussão, sobre direitos humanos e teologia pública, instalaram-se
comissões, as ditas comissões da verdade e reconciliação, para apurar seus respectivos fatos,
reconhecer e resgatar a memória das vítimas, implicar processos de justiça. Ora, não obstante
aos seus esforços, como no caso da África do Sul, o resultado permanece limitado, no dizer
de Tshepo Madlingozi, jurista sul-africano, segundo o qual “as comissões são os produtos de
justiça transicional. A justiça transicional é um produto tanto de comprometimentos da elite
como da pressão dos países poderosos do Ocidente e suas agências intergovernamentais”.2

1
CÉSAIRE, Aimé. Notebook of a return to the native land. Midletown: Wesleyan University, 2013. p. 49.
2
MADLINGOZI, Tshepo. A ‘meia verdade africana’. IHU On-Line, São Lepoldo, n. 475, 19 out. 2015. p. 10.
3

Restringindo-se a acordos individuais e de elites, a ideia de reconciliação não implicou em


mudança radical da sociedade em sua estrutura colonialista e marcadamente desigual.

O horizonte da vivência de uma democracia, de forma mais plena, não é uma


realidade que se pode observar em países como da África do Sul e do Brasil. No caso
brasileiro, denota-se ausência de uma cultura democrática, quando muito limitada ao voto
em eleições, na medida em que as mesmas elites econômicas continuam controlando a
atividade política, inclusive a ideia de memória. Assim é que a anistia de 1979, no contexto
do golpe de 1964, “foi mais uma ‘anistia do esquecimento’, no mesmo sentido da queima
dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e quem
obedecemos”. 3 O apartheid sul-africano e a ditadura brasileira repousam sobre outros tantos
acontecimentos, do passado e do presente, que demarcam uma teimosia humana – ou do
inumano – em produzir mecanismos de cerceamento, de violência contra quem não tem
reconhecida a sua condição de ‘ele/a é um/a como nós’. De modo que o/a Outro/a ingressa
na categoria daquele/a que não é, roubasse-lhe a humanidade, arrancasse-lhe a dignidade.

“O propósito da liberdade”, diz Nelson Mandela, “é criá-la para os outros”.4 Ora, não
será esse também um dos propósitos do quefazer teológico? Então, “porque tive fome, e
deste-me de comer; tive sede, e deste-me de beber” (Mt 25,35), não será também este o
sentido de uma memória eucarística, comunhão com Aquele/a que clama pelo
reconhecimento da dignidade do/a Outro/a? Não ressoa, nesse mesmo grito, a luta dos povos
indígenas, negros, mulheres, juventudes, crianças, LGBTs...? Por outro lado, qual seria o
sentido de se falar em nome Deus quando se impõe fardos de injustiça, exploração,
indiferença, sofrimento? Qual seria a palavra que se pode haurir do evangelho diante de
massacres sem sentido tal como ocorreu, por exemplo, na cidade norte-americana de
Orlando, em junho de 2016, numa boate LGBT, um dia depois do assassinato da jovem
cantora Christina Grimmie? Enfim, o que a teologia tem a dizer sobre os contínuos apartheids
pelo mundo a fora, os visíveis e invisíveis muros da intolerância, da violência impingida
contra tantos rostos?

3
SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe. Rio de Janeiro: LeYa, 2016. p. 45.
4
MANDELA, Nelson. Conversas que eu tive comigo. Rio de Janeiro, Rocco, 2010. p. 256.
4

A defesa argumentativa e efetiva dos direitos humanos interpela à teologia pública,


para que possa ser ainda mais parceira com outros esforços convergentes. A luta por um
mundo mais justo e solidário, de respeito pelas diferenças e, consequentemente, um mundo
de paz, implica também o quefazer teológico. Desde já, esse é o escopo que anima a tecitura
deste texto que tematiza a interface entre direitos humanos e teologia pública. De forma
específica, o âmbito reflexivo é a própria teologia pública, na linha que propõem Ronaldo
Cavalcante e Rudolf von Sinner, em que o teológico, que reflete e fala sobre a intelecção da
fé – “falar humano de Deus à luz da Palavra humanamente transmitida de Deus” –, possui
também “um sentido horizontal; ocupa-se, pois, do mundo dos homens e mulheres, uma vez
que está gestada exatamente aí. Insere-se nas humanidades”.5

A construção da cidadania, de um mundo mais justo e solidário, diz respeito também


à coisa da intelecção da fé. Atravessar os mares do poder que cerceia a vida solicita mais do
que convenções, boas intenções. A fraternidade e a sensibilidade solidária, expressões de
uma justiça que não cabe muitas vezes nos tribunais, toca à memória de uma outra
humanidade possível. Aqui se trata de reconhecer a memória da fraternidade que semeia
esperança: “Fazei isto em minha memória” (Lc 22.19). Esta é a memória eucarística vivida
também pelos discípulos de Emaús que reconhecem, na partilha do pão e do vinho, a
companhia de Jesus (Lc 24.13-35).

Por esse caminho, a memória e o reconhecimento suscitam um pensar sobre a relação


entre teologia pública e direitos humanos. Com efeito, tanto o conceito de memória como o
de reconhecimento estão implicados na obra de Paul Ricoeur (1913-2005), sobretudo em A
Memória, a história, o esquecimento (1992) e Percurso do reconhecimento (2004), como
partes de um movimento fenomenológico-espiral. O percurso se amplia por vezes de forma
intrincada, mas se mantém fiel à narrativa do humano que recupera e explicita a realidade
intersubjetiva como lugar e sentido da solicitude ética.

O interesse aqui não é tanto pela estrutura conjuntural do pensamento de Ricoeur,


mas pelas noções nucleares de memória e reconhecimento que suscitam a política da justa
memória, que será objeto de análise na primeira secção, e o percurso do reconhecimento dos

5
CAVALCANTE, Ronaldo; SINNER, Rudolf von (Orgs.). Teologia Pública em debate. São Leopoldo: Sinodal
/ EST, 2011. p. 05.
5

direitos humanos (segunda secção) desde sua implicação pública (terceira secção) e, por fim,
da interpelação propriamente teológica (quarta secção). Em última instância, a partir deste
percurso, trata-se de explicitar o reconhecimento público enquanto capacidade do humano
que age pelo bem comum ou como expressão da hospitalidade que manifesta gratidão e
serviço. Denota-se, então, a sabedoria do amor a serviço da vida que palmilha a práxis de
uma teologia pública a serviço dos direitos humanos, que é o aspecto a ser salientado nesta
tarefa reflexiva. À luz do evangelho que é memória do Deus da vida, o teológico que
interpela, é também indagado pela realidade que clama por dignidade. Se Deus fosse um
ativista dos direitos humanos, numa provocação de Boaventura de Souza Santos,6 na partilha
do pão e do vinho, em que Jesus se dá a reconhecer como memória – “fazei isto em minha
memória” (Lc 22.19), talvez se encontre um aperitivo de como o seria. Memória que se torna
eucaristia (do grego εὐχαριστία, reconhecimento, ação de graças), alimento que dignifica a
vida, sabedoria do Amor que se revela no amor ao próximo. Eis a memória da Boa Nova: “o
Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-
me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a
liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4.18).

1 Política da justa memória

Em A Memória, a história, o esquecimento, Ricoeur dá uma ampla atenção ao


conceito de memória, que perpassa por diversos momentos nevrálgicos.7 O primeiro diz
respeito à memória enquanto objeto de análise, em que a pergunta é pelo o quê?. A memória
(do grego mnèmè ou anmnèsis) é a busca de uma recordação, a imagem de uma coisa ou de
um acontecimento ausente. Ou seja, a memória designa a presença ou o espírito de uma
imagem de algo que já não está, mas esteve presente. A marca do cinzel como na escultura
do Moisés, de Miquelangelo, indica que um dia o escultor esteve ali e que, agora não estando,
está a sua lembrança no sinal deixado. Então, a memória surge como uma narrativa que liga
aos eventos do passado, constituindo-se em importante matriz para epistemologia histórica.

6
SANTOS, Boaventura de Souza. If God were a human rights activist. Stanford: Stanford University. 2015.
7
Cf. RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007. p. 41-86.
6

Não obstante, a memória não é apenas uma recordação que opera na trilha da
imaginação. Ela diz respeito à vivência do sujeito (pessoal ou coletivo) que dá sentido e
testemunha a presença de uma ausência que repercute no aqui e agora e, em última instância,
abre a promessa de uma presença no futuro. Aqui se coloca um enigma, tal como na promessa
de Jesus que se torna memória na comunhão (Lc 22.19; 24.30-31), uma realidade em parte já
presente, mas ainda muito por se realizar. Antes de ser puramente uma relação entre memória
pessoal e memória coletiva, há uma memória em que a marca do/a Outro/a se faz
proximidade. É nessa interação que nos é dada a condição de memória desde o receber um
nome próprio, um nome que nos introduz não apenas a uma linha de filiação, mas também a
um referencial a partir do qual se deposita uma vida inteira, incluindo as fragilidades de uma
memória impedida e manipulada. O ingresso da memória, na esfera pública ou no mundo da
vida, não se identifica com uma condição solitária, muito menos solipsista, “mas se reveste
de uma forma comunitária”, em que o “regime do viver juntos” decifra a experiência da
própria memória bem como das expectativas que se abrem. “O mundo dos predecessores e
dos sucessores estendem nas duas direções do passado e do futuro, da memória e da
expectativa, esses traços notáveis do viver juntos decifrados primeiro no fenômeno de
contemporaneidade”.8

Debruçar-se sobre teologia e direitos humanos, implica pensar uma relação que não
é tão pacífica como pode parecer à primeira vista. Por um lado, a teologia não aparece como
um discurso neutro, pois ela se insere num contexto histórico, social, numa comunidade de
fé que vive suas congruências e incongruências. Do mesmo modo, quando uma teologia se
distancia da realidade ou prescinde de uma leitura hermenêutica adequada entre caminhada
de fé e reflexão, assume o risco de se tornar discurso insonso ou mesmo suporte ideológico
de dinâmicas opressivas. Tal preocupação deve manter acesa a atenção na discussão aqui
proposta. De modo que a discussão se centra sobre o conteúdo que subjaz à visão teológica
e que implica diretamente a questão dos direitos humanos. A problemática não é recente, pois
a defesa dos direitos humanos se fez, muitas vezes, à revelia ou mesmo contra determinadas
práticas religiosas e visões teológicas, sobretudo quando estas são causas de obliteração do/a
Outro/a. Daí que a crítica teológica deve ser também uma crítica do próprio teológico.

8
RICOEUR, 2007, p. 140.
7

Por outro lado, cabe indagar pela narrativa (ou narrativas) que engendra a
compreensão de direitos humanos, sobretudo em sua concepção tornada hegemônica a partir
da Declaração Universal adotada pela Organização das Nações Unidas em 1948. Muito se
fala em direitos humanos, convenções e tratados são estabelecidos. Entretanto, a dignidade
humana continua sendo pisoteada. De modo que convém questionar, por exemplo, a própria
ideia de universalidade, presente na Declaração, e sua relação com os ideais ocidentais, sendo
esta uma racionalidade produzida, em certa medida, pela mesma modernidade colonialista
que se impõe como portadora de uma suposta missão civilizadora. Então, a partir dos/as
desterrados/as do mundo, que estão à margem do pensamento oficial, convém suspeitar da
concepção hegemônica de direitos humanos, não apenas do seu alcance, mas suas
condicionantes que implicam em possíveis exclusões.

A partir de uma experiência de fronteira, manifesta-se a memória testemunhal como


a de Gloria Anzaldúa (1942-2004), pensadora feminista, lésbica e chicana (norte-americana
de origem mexicana), que permite dizer que o reconhecimento dos direitos humanos deve
fissurar os muros, atravessar os limites (boderlands) da mera legalidade que teima em não
ver o/ Outro/a que solicita passagem, hospitalidade. Isso porque, cruzando as águas do Rio
Grande, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, por onde não há pontes para uma
travessia segura, clama “a encharcada, a mulher sem documento, [que] é duplamente
ameaçada [...]. Não apenas por ela ter de lutar contra a violência sexual, mas como toda
mulher, ela está presa por uma sensação de desamparo físico”. Ali, numa fronteira
conflagrada e obliterada, “como uma refugiada”, Anzaldúa “sai da segurança e da intimidade
familiar para se aventurar no desconhecido e terreno perigoso”. No entanto, “esta é a sua
casa, esta fina borda de arame farpado”.9 Ora, a partir dessa experiência que encarna uma
pluralidade de sentidos, a narrativa dos direitos humanos comporta clamores que são de
múltiplas vozes e, ao mesmo tempo, tênues, porque manifestam fragilidades à deriva, que
estão em busca de outras terras para viver. Rostos de mulheres e homens, de meninos e
meninas, arranhados e desfigurados pelas cancelas e muros da indiferença, da xenofobia, da
misogenia, do “tô nem aí” para você, “porque eu sou mais eu”.

9
ANZALDÚA, Gloria. Bordelands. La frontera the new mestiza. 4. ed. San Francisco: Aunt Lute Books, 2012,
p. 35.
8

O se fazer próximo do/a Outro/a, como memória de uma outra humanidade possível,
explicita, em última instância, a demanda ética que Ricoeur designa como “política da justa
memoria”.10 A memória não é apenas um objeto de história, mas também experiência vivida
por sujeitos e comunidades históricas. O reconhecimento público da justa memória supõe
recepção, reconhecimento e reconstrução hermenêutica do testemunho dos fatos e vivências
que marcam essa experiência. Assim, por exemplo, uma comissão da verdade, memória e
justiça, tal como foi instalada no Brasil, que procura narrar a experiência vivida por
sobreviventes da ditadura civil-militar de 1964 a 1985, pode convocar o testemunho público
ao dever de não esquecer, justiça esta que os tribunais em geral não alcançam.

Nesse sentido, cabe uma referência ao instrumento da anistia, aliás, expressão esta
que tem proximidade semântica com o termo amnésia. Em todo caso, a anistia pretende
alcançar a paz civil mediante a suspensão das ações judiciais relacionados às contendas
políticas. No entanto, no caso do Brasil, a Lei da Anistia de 1979, promulgada ainda em pleno
regime ditatorial, deve ser questionada quanto à sua vertente conservadora que implica
impunidade e esquecimento em relação aos crimes de tortura e assassinato promovidos por
agentes do Estado. Com efeito, como diz Ricoeur, “a recusa à justa memória promove o
apagamento dos crimes suscetíveis de proteger o futuro das faltas do passado”.11 Ou seja, as
feridas não se curam e os crimes se repetem. Ora, a reconciliação não significa apagamento
da memória, mas a assunção de uma responsabilidade ética para com as vítimas. Como indica
Rogério Ivano, “é neste momento, de ‘prioridade moral’ do dever de memória a quem sofreu
derrotas e humilhações que se impõe as regras históricas e sociais que tencionam a memória
coletiva, ou as memórias coletivas que se debatem por justiça”.12

A evocação da memória não significa vingança, mas um testemunho, um recurso dos


que lutam por justiça. Por isso, uma memória que motiva a transformação, a construção de
um outro mundo possível, uma sociedade mais justa e solidária. Há, aqui, um direito
fundamental que, no dizer de outro jurista, Rogério Leal, implica o reconhecimento tanto da

10
RICOEUR, 2007, p. 17.
11
RICOEUR, 2007, p. 462.
12
IVANO, Rogério. Memória e esquecimento: argumentos de Paul Ricoeur. In: ANAIS. II Congresso
Internacional de História. Ponta Grossa: UNICENTRO, 2015.
9

dimensão civil como à política.13 Se a justiça dos tribunais não consegue atender à essa justa
memória, a evocação daqueles/as que tombaram sob o peso da tirania e da indiferença,
continua soando como uma responsabilidade ética.

A memória que reconcilia não é conveniente com a injustiça, mas também não é
arrogante nem guarda ressentimento, pois alimenta-se da memória do amor que transforma.
Assim é que, na utopia da comunhão, memória viva do pão e do vinho que se tornam corpo
e sangue, caminha a utopia de um outro mundo possível. Que a teologia possa ser uma
palavra de resgate dessa memória, é uma forma de reafirmar que, no compromisso da Igreja
Povo de Deus, está também a perseverança, a luta por “uma democracia que trará mudanças
reais e tangíveis à vida das classes trabalhadoras, dos pobres, dos desempregados, dos sem-
terra”.14 A partilha do pão e do vinho (comunhão), frutos do trabalho, torna-se eucaristia,
percurso de reconhecimento e ação de graças.

2 Direitos humanos: um percurso de reconhecimento

Ainda acompanhando os escritos de Ricoeur, ingressamos agora no percurso do


reconhecimento. Como indica o prefixo ‘re’, o vocábulo ‘reconhecimento’ (do latim,
recognescere) implica que, antes de conhecer, já sou afetado por algo ou alguém que me
antecede. O reconhecimento não se reduz ao processo de cognição. O mundo da mera
representação é rompido, dando lugar à relação de sentido que se abre para o desconhecido.
Se na voz ativa, o emprego do verbo reconhecer “parece estar ligado a operações intelectuais
que carregam a marca de uma iniciativa da mente”, na voz passiva, a razão de sentido é o
caminho que afeta a sensibilidade e que “[...] a progressão ao longo desse eixo será marcada
por uma libertação crescente do conceito de reconhecimento em relação ao de
conhecimento”.15

A partir dessa trajetória, a noção de reconhecimento comporta a ideia de sensibilidade


em que o reconhecimento mútuo coloca em movimento a própria identidade (ipseidade), a

13
Cf. LEAL, Rogério Gesta. A memória como direito fundamental civil e político: qual é o caminho do Brasil?
In. _____ (org.). Verdade, memória e justiça. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2012, p. 08.
14
MANDELA, 2010, p. 319.
15
RICOEUR, 2006, p. 30.
10

partir da qual o ‘eu’ se reconhece sujeito em relação – intersubjetividade. Minha sensibilidade


é tocada, provocada pela alteridade. Então, eu reconheço, aceito e considero essa
antecedência. Não obstante, ao mesmo tempo em que há uma manifestação de um(a) Outro(a)
que me aborda em minha própria passividade, há também uma provocação ou convocação
para um responder. E essa resposta pode advir com um ‘sim’, ‘eu estou aqui’, mas também
pode ser um ‘não’, uma negação, ou mesmo implicar indiferença. Tudo isso é possível. Mas,
não tenho como fugir de uma resposta, mesmo que negativa. Nesses termos, coloca-se o
sentido de uma responsabilidade ética, de modo que o reconhecer-se a si mesmo se dá a partir
da presença do/a Outro/a. O ser reconhecido explicita “o reconhecimento de si”, processo
que “permanecerá não apenas inacabado, mas permanecerá na verdade o reconhecimento
mútuo”.16

O reconhecimento da responsabilidade denota a fenomenologia do humano que se


manifesta capaz, agente de sua condição, e abre o plano da consciência reflexiva, da
ipseidade. O ser humano capaz atesta a possibilidade do se dizer enquanto sujeito da própria
narrativa. Mas a transição entre o reconhecimento de si e o reconhecimento mútuo ocorre
enquanto coletividade na capacidade e prática social, porque, em última instância, a
capacidade de ser e agir prospera nessa interação. De modo que “as modalidades de
reconhecimento são profundamente transformadas: sob os vocábulos apreciação e aprovação,
o reconhecimento cede espaço a formas de justificação ético-jurídicas que colocam em causa
a ideia de justiça social [...]”.17

Quando isso não ocorre, tal como se observa em muitas situações de injustiça,
obstaculiza-se o florescimento do reconhecimento mútuo, inclusive esvazia-se o conteúdo da
própria ideia e prática de democracia, impedindo que todas as pessoas possam, de fato,
constituírem-se agentes da coletividade. Daí que, por exemplo, na América Latina,
reconhecidamente umas das regiões mais desiguais do planeta, apresentam-se processos
democráticos bastante frágeis, inclusive em termos de organização do Estado, em que
governos legitimamente instituídos, via eleições diretas, são destituídos pelas elites

16
RICOEUR, Paul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006, p. 85.
17
RICOEUR, 2006, p. 147.
11

econômicas, tal como pode ser observado em Honduras, Paraguai e Brasil, na história mais
recente.

Ora, locais onde florescem realidades de injustiça, não há também estados de paz.
Citando o economista indiano Amartya Sen, Ricoeur destaca que “são as diferentes
liberdades positivas que existem em um Estado democrático, inclusive a liberdade de realizar
eleições regulares, o exercício de uma imprensa livre e a liberdade da palavra sem censura,
que encarnam a verdadeira força responsável pela eliminação da fome”.18 De fato, de acordo
com o próprio Sen, a possibilidade de se alçar à condição de cidadania, com um mínimo de
democracia política e social, para que o sujeito possa dizer a sua palavra e sentir-se
socialmente seguro, é também indicativo de superação dos mecanismos que geram fome e
miséria.19 Por isso, as ações afirmativas ou as políticas públicas de inserção dos excluídos,
mediante implantação de projetos de educação e cultura, além de mexerem com as estruturas
que geram pobreza, elas podem resgatar e impulsionar a cidadania, a emancipação, o desejo
de agir e interferir nos rumos da própria sociedade.20 Nesse mesmo processo, induz-se maior
intensidade nas lutas engendradas principalmente por mulheres, quando são elas as principais
receptoras das ações afirmativas. Ou seja, entende-se que o combate da miséria, via políticas
públicas de inclusão, propicia processos de libertação e superação de dinâmicas opressivas,
como a cultura patriarcal.21

A possibilidade de dizer a própria palavra, narrar-se, participar dos rumos de seu


grupo social, da comunidade e da sociedade como um todo condiz com o reconhecimento da
própria capacidade de ser sujeito em interação com o/a Outro/a. O sujeito se reconhece e
reconhece o/a Outro/a como agente social desse processo. O reconhecer recupera o
testemunho da memória que designa historicidade, temporalidade, travessia, encontro. Certo,
como vimos na seção anterior, fazer memória é, por um lado, referir ao testemunho profético
que denuncia a barbárie, o esquecimento, a negação do/a Outro/a. Mas, como justa memória,

18
RICOEUR, 2006, p. 157.
19
Cf. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2000. p. 217.
20
Cf. PAIVA, Angela Randolpho (org.). Ação afirmativa em questão: Brasil, Estados Unidos, África do Sul e
França. Rio de Janeiro: Pallas. 2013.
21
Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA (FAO).
Superação da fome e da pobreza rural: iniciativas brasileiras. Brasília: FAO, 2016. p. 153.
12

há também a celebração que evoca a boa nova que liberta, resgata, reconcilia o sentido do
humano, acolhendo a realidade e a utopia da vida como dom e serviço.

Isso fica mais claro quando o percurso ricoeuriano abre para a ideia do
reconhecimento mútuo. A mutualidade não significa um procedimento de redução, seja para
o lado do polo ego seja para o lado do polo alter. A relação face a face fissura a estratégia
das essencialidades em que “a alteridade de outrem não é perceptiva, sob o risco de deixar
sua diferença ser absorvida no império da ideia da totalidade, desdobrada pelas ideais de ser
das ontologias. É no modo ético da interpelação que o eu é chamado à responsabilidade pela
voz do outro.”22 O ponto de partida não é a ontologia, mas a ética ou, se preferirmos, a
sensibilidade solidária, sentido esse que o Estado hobbesiano e o Estado de direito hegeliano
não dão conta, embora Ricoeur extraia, desses últimos, considerações de pertinência mínimas
à ideia de reconhecimento, mesmo que em sua forma negativa. “A motivação não ética não
pode de modo algum ir mais longe no mimetismo da motivação ética que sustentaria a
definição do direito, nos jusnaturalistas, pela ‘qualidade moral da pessoa’.”23

A trajetória hegeliana de apagamento do reconhecimento da alteridade, não


impossibilita a tentativa de Ricoeur reatualizar a proposição de Hegel quando este enseja “o
caráter insuperável da pluralidade humana nas transações intersubjetivas, quer se trate de luta
ou de algo diferente da luta”.24 Nessa perspectiva, a proposta ricoeuriana, que segue de perto
a obra Luta por reconhecimento (1996), de Axel Honneth, apresenta três modelos de
reconhecimento que estão interconectados. O primeiro é o horizonte do amor, em que implica
laços afetivos (erótico, amizade, família) e de atendimento às necessidades básicas do viver
(economia).

O segundo é o reconhecimento no plano jurídico, em que há um duplo objetivo:


“outrem e a norma; no que diz respeito à norma, o reconhecimento significa [...] considerar
válido, admitir a validade; no que diz respeito à pessoa, reconhecer é identificar cada pessoa
enquanto livre e igual a toda outra pessoa”.25 Aqui, Ricoeur destaca que o reconhecimento
jurídico permite considerar o “reconhecimento de si em termos de capacidade [...] as novas

22
RICOEUR, 2006, p. 271.
23
RICOEUR, 2007, p. 182.
24
RICOEUR, 2007, p. 202.
25
RICOEUR, 2006, p. 211.
13

capacidades provenientes da conjunção entre a validade universal da norma e a singularidade


das pessoas”.26 Aqui é interessante observar que a ampliação ou o enriquecimento da
capacidade do sujeito, no sentido de ser agente, responde às constantes lutas pela afirmação
e ampliação da própria noção de direitos humanos, nos quais acoplam-se direitos civis,
direitos políticos e direitos sociais.

A estima social, que é o terceiro modelo de reconhecimento mútuo, confere a


condição segundo a qual “a ‘vida ética’ se revela irredutível às relações jurídicas. O conceito
de estima social distingue-se do respeito de si, assim como este do conceito de confiança em
si no plano afetivo”.27 Nessa ordem de reconhecimento, coloca-se “à identidade moral e
política uma significação diferenciada que não se deixa reduzir à prática argumentativa
recomendada por uma ética do discurso”.28 A estima pública, colocada na ordem do
reconhecimento, evidencia a grandeza do bem comum ou da horizontalidade do viver-junto
como expectativa para a vivência de estados de paz, em que a autoestima, a confiança em si
mesmo e o respeito se singularizam na dignidade de cada pessoa.

A consideração de que cada pessoa é bem-vinda, independentemente de suas


contingências, seja de ordem racial, sexual, religiosa ou cultural, significa dizer que o
reconhecimento mútuo não abole o/a Outro/a em sua alteridade. Toca-se, aqui, no problema
das minorias, em que o ser reconhecido enquanto sujeito de direito significa justamente
colocar em questão “a afirmação de um pretenso potencial humano universal sendo ela
própria considerada a simples expressão de uma cultura hegemônica, a do homem branco,
do sexo masculino, em seu apogeu na era das Luzes”. 29 De modo que a “política do
reconhecimento”, conceito que Ricoeur herda de Charles Taylor, solicita uma estima social
que não coaduna com as tiranias universalizadas, sob as quais as diferenças são apagadas ou
ignoradas. Doravante, em sentido político, em que inclusive a economia deve estar a serviço
do bem comum, “dir-se-á que uma sociedade liberal ‘se singulariza enquanto tal pelo modo

26
RICOEUR, 2006, p. 212.
27
RICOEUR, 2006, p. 216.
28
RICOEUR, 2006, p. 218.
29
RICOEUR, 2006, p. 229.
14

pelo qual ela trata suas minorias, inclusive aquelas que não partilham as definições públicas
do bem, e acima de tudo pelos direitos que ela concede a todos os seus membros’”. 30

Nessa noção de estima social, recoloca-se a justa memória que solicita o ‘eis-me
aqui!’, abrindo espaço à justiça social, à solidariedade. Em sentido ético, trata-se de uma
responsabilidade infinita. Desse ponto de vista, diz Ricoeur, “as relações dos homens entre
si não deixam de incluir as relações do homem com a natureza, assim com os mortos,
guardiães do olhar sobre o passado”.31 Então, a partir dessa referência, abre-se o
reconhecimento pelos nossos que já não estão entre nós, bem como da nossa relação com a
natureza e, pode-se acrescentar, dos nossos outros não-humanos, os animais, que também
solicitam nossa estima, cuidado e respeito, tal como apontam Luiz Carlos Susin e Gilmar
Zampieri, na proposição de uma “teologia da libertação animal”.32

Sintetizando o percurso realizado até aqui, entende-se que o estatuto linguístico do


reconhecer guarda uma polissemia de significados: conhecer novamente; verificar; admitir;
aceitar; confessar... Para além da semântica, o reconhecimento aponta para um percurso que
se dá a partir da relação entre identidade ou ipseidade, que expressa o se reconhecer a si
mesmo, o dizer a sua palavra, a capacidade de agir, e alteridade, o reconhecimento do/a
(pelo/a) Outro/a. Esse é um percurso que revela o desejo de reconhecimento mútuo, porque
“o que diz respeito à identidade pessoal também faz vibrar toda a tela de nossas relações com
outrem”.33 No reconhecer o/a Outro/a, eu também me reconheço, uma identidade em
movimento, aberta para seus constantes possíveis, porque o sentido do humano é o próprio
humanizar-se com o/a Outro/a. “Ser reconhecido, se isso alguma vez ocorre, seria para cada
pessoa receber a garantia plena de sua identidade graças ao reconhecimento por outrem de
seu império de capacidades”.34 E capacidade, aqui, significa o humano capaz de se dizer
(fazer) no exercício da intersubjetividade, humanidade que se faz mais humana no encontro
com o/a Outro/a.

30
RICOEUR, 2006, p. 230.
31
RICOEUR, 2006, p. 218.
32
Cf. SUSIN, Luiz Carlos; ZAMPIERI. A vida dos outros. São Paulo: Paulinas. 2015.
33
RICOEUR, 2006, p. 268.
34
RICOEUR, 2006, p. 262.
15

3 Reconhecimento público e a questão da reciprocidade

A partir das considerações pontuais sobre o reconhecimento mútuo, acima indicadas,


que evolvem as dimensões do afetivo, jurídico e estima social, Ricoeur implica o
reconhecimento público. Este é o reconhecimento que possibilita a realização do sujeito
enquanto agente de sua condição no seio da própria sociedade. “É no nível do alicerce
antropológico da ideia de poder de agir, de agency, que opera a avaliação de nossas
capacidades, subterraneamente ligada à ideia de bem viver. É belo e bom poder agir”.35 Cada
sujeito é merecedor desse reconhecimento porque diz respeito à sua dignidade. Entretanto, o
reconhecimento não se faz sem pluralidade, alteridade, ação recíproca, mutualidade e,
também, conflitualidade, em uma expressão, democracia.

O reconhecimento público implica o critério da justiça social como uma mediação


que se faz inclusive pelas instâncias políticas e jurídicas, embora sejam estas muitas vezes
insuficientes e contraditórias. A justiça social procede da interação entre sujeitos que se
reconhecem mutuamente, face a face. De modo que aqui convém frisar, mais uma vez, que a
democracia também é um direito humano fundamental e que se amplia na medida em que a
esfera pública é inclusiva e receptiva da diferença em sua alteridade. É o reconhecimento
do/a Outro/a como um direito que se amplia e que não coincide com a pretensão hegemônica
e excludente. Como diz Mignolo, denota-se “a diversidade como um projeto universal, o qual
significa que pessoas e comunidades tem o direito de ser diferente precisamente porque ‘nós’
somos iguais”.36

Daí o sentido da democracia como um contínuo e plural percurso que é de


reconhecimento mútuo, que vai muito além da simples tolerância à diferença. A ideia de
pluralidade e de alteridade repercute um longo caminho em busca do/a Outro/a. A
democracia não é uma mera concessão, mas uma conquista e, como tal, um direito básico,
no sentido de que muito mais do que expressar uma vontade majoritária e meramente
representativa, há de que se garantir, como aponta Baptista, que “a sobrevivência, a liberdade
e o bem-estar de todos os indivíduos, quer estejam, ou não, representados nas diversas

35
RICOEUR, 2006, p. 160.
36
MIGNOLO, Walter. Local histories. Global designs. Princeton: Princeton University Press, 2000. p. 311.
16

categorias de poder. É preciso encontrar instrumentos que protejam as minorias e promovam


uma convivência saudável entre as diversas facções sociais”. 37

Tenha-se em conta também que “a ideia de que a razão está sempre com a maioria
fundamenta-se em um pressuposto filosófico transcendental, ao aceitar como dogma a
existência de uma consciência coletiva que se identifica com o Bem e a Justiça”.38 De modo
que, como denuncia Rancière, sob tal pressuposto há um discurso ideológico apropriado aos
interesses de uma elite que transforma a democracia em um “eufemismo que designa um
sistema de dominação que não se quer chamar pelo nome”.39 Isso significa dizer que a
democracia não coincide necessariamente com a ideia de governo da maioria, quando se trata,
na verdade, de uma maioria conformada aos interesses de uma minoria econômica e política.

Do mesmo modo, tenha-se em conta que a narrativa moderna do contrato social,


enquanto racionalidade democrática, permanece limitada, pois não consegue produzir um
lastro de inclusão e cidadania a partir das periferias e dos excluídos. Quando a ideia de
democracia é racionalizada aos moldes do mercado, sobretudo sob o prisma do capital
financeiro e da cultura de consumo, processa-se um caminho de inversão ou retração da
própria democracia enquanto ideia de cidadania, inclusão e justiça social, solidariedade,
emancipação. Hoje, diz Boaventura Santos, “não só perde sentido a luta pelo bem comum
como parece perder sentido a luta por definições alternativas ao bem comum”. 40 Tal condição
favorece ao desenvolvimento de um fascismo contemporâneo, que se caracteriza pelo
apartheid social. Então, estar excluído significa ser descartado, criminalizado. É não ser
reconhecido como cidadão ou, no termo utilizado por Ricoeur, ser reconhecido como agente.
Ora, o fascismo atual mais virulento, como aponta Boaventura Santos, é o fascismo
financeiro que impõe a lógica de uma economia de cassino para o mundo inteiro. Qualquer
intervenção democrática deve ser rechaçada ou, no máximo, maquiada.

Não obstante, a resistência se faz necessária. Dela nasce como conquista, não como
concessão, o reconhecimento dos direitos humanos. E essa luta é constante. Assim é que,

37
BAPTISTA, Fernando Pavan. O direito das minorias na democracia participativa. Prisma Jurídico, São
Paulo, n. 02, 2003. p. 196.
38
BATPTISTA, 2003, p. 198.
39
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 112.
40
SANTOS, Boaventura de Souza. Reinventar a democracia. 2. ed. Lisboa: Gradativa, 2002. p. 09.
17

diante da atual interdição à democracia, cabe reconhecer o direito à resistência protagonizada


por múltiplos movimentos contra-hegemônicos, como à resistência estudantil de 2016 que
ocupou escolas e universidades brasileiras, para lutar pelo direito à educação pública gratuita
e de qualidade. Ali, a luta é por um direito que a sociedade neoliberal teima em tolher. Do
mesmo modo, a resistência é pelo direito à democracia, expressão da dignidade do sujeito
humano em sociedade. E a ampliação do direito à democracia, que deve almejar todos os
âmbitos da vida social, da interação humana, expressa o que Boaventura Santos chama de
ecologia do conhecimento.41 Nesse sentido, a democracia é um valor dialógico que possibilita
abrir novas possibilidades de encontro e reconhecimento do/a Outro/a que se manifesta a
partir de seus inéditos.

Por outro lado, com Ricoeur, cabe refletir a própria ideia de luta e perguntar se é
possível considerar o processo de reconhecimento numa outra forma que não seja pela ideia
do embate e do conflito. Ou seja, trata-se de perguntar se não é possível outra maneira que
não a ideia de luta, no processo por reconhecimento, e que permitiria superar a ideia de
disputa ou mesmo de violência que precisa ser resolvida sob o peso da balança e da espada
da justiça. Aliás, tenha-se em conta que, por omissão ou mesmo por ação, os tribunais
também se tornam fontes de injustiça. De modo que “a alternativa à ideia de luta no processo
de reconhecimento mútuo tem de ser procurada nas experiências pacificas de reconhecimento
mútuo, que se baseiam em mediações simbólicas subtraídas tanto da ordem jurídica como da
ordem das trocas mercantis”.42

Em última instância, questionar os limites das mediações institucionais e das próprias


lutas não significa negar a luta sobretudo no campo dos direitos humanos. Ou seja, a luta pelo
reconhecimento deve ser colocada no campo da ação possível e necessária. Por outro lado,
para além desses limites, o desafio é pensar o reconhecimento mútuo como uma força de
irradiação e de irrigação do próprio percurso do reconhecer que se alarga. Isso implica
superar ou abrir fissuras nas fronteiras que se estabelecem. À essa adoção de perspectiva, que
difere da simples luta por reconhecimento de direito, Ricoeur denomina de estado de paz. “A
certeza que acompanha os estados de paz oferece uma confirmação de que a motivação moral

41
Cf. SANTOS, 2015, p. 61.
42
RICOEUR, 2006, p. 233.
18

das lutas pelo reconhecimento não é ilusória”.43 Podemos chamar isso de utopia ou de sonho
de um outro mundo possível que engendra os passos do possível.

Os estados de paz evocam a ideia do amor. No entanto, é preciso ter em conta que,
em nossa cultura, tais estados de paz estão ligados tanto à ideia grega de philia (amizade, em
Aristóteles) ou eros (amor, em Platão) como ágape (amor, em sentido semita e cristão). Ora,
o conceito de ágape parece afastar de antemão a ideia de um reconhecimento mútuo, na
medida que se coloca como serviço ou dom oferecido, sem requerer o recíproco. Ricoeur,
então, questiona se não há o perigo de apagar os traços interpessoais da mutualidade que,
aqui, difere-se da ideia reciprocidade. Diferença esta que não é acidental, mas implica a
própria resposta à questão ali suscitada. No caso, o autor reserva “o termo ‘mutualidade’ para
as trocas entre indivíduos e o termo ‘reciprocidade’ para as relações sistemáticas em que
vínculos de mutualidade não constituiriam senão uma das ‘figuras elementares’ da
reciprocidade”.44

A mutualidade não significa apagamento das diferenças. Mas indica que o


reconhecimento mútuo solicita outros recursos e que, na perspectiva do amor (ágape), pode
ser sinalizado pela percepção do reconhecimento como gratidão. Então, a gratidão, como
movimento de retribuição à dádiva, “alivia o peso da obrigação de retribuir e a orienta rumo
a uma generosidade igual à que suscitou o dom inicial”.45 Traça-se, aqui, o reconhecer de
uma ética da gratidão ou mesmo de uma ética da celebração, da festa. Em suma, em termos
de uma ética da alteridade, é a amor a serviço do amor.

4 Teologia pública como possibilidade do reconhecimento: a memória da celebração

O reconhecimento como gratidão não é uma imposição, um dever estoico, nem uma
mera caridade, embora esta, como diz Ricoeur, seja necessária para atender situações em que
a justiça distributiva e redistributiva não consegue atender. “Não há nada a ser dito contra
esses empreendimentos e essas instituições caritativas, cuja necessidade é evidente e que é

43
RICOEUR, 2006, p; 232.
44
RICOEUR, 2006, p; 246.
45
RICOEUR, 2006, p. 255.
19

preciso vincular claramente a uma concepção ampliada da justiça”. 46 Mas a festa que nasce
do dom, da partilha, parece escapar da moralização caritativa, porque é da ordem da
gratuidade. As práticas do dom, tal como na solenidade do gesto de perdão, encontram a
memória da celebração. Aqui, Ricoeur tem em mente o gesto do chanceler alemão Willy
Brandt (1913-1992), que se ajoelha aos pés do memorial de Varsóvia dedicado às vítimas do
holocausto. Tal gesto, que lembra tantos outros, não se institucionaliza, mas evoca a memória
de um estado de paz.

Além de evidenciar os limites da justiça de reciprocidade, o gesto de Brandt questiona


os paradigmas da política e do direito, inclusive no plano pós-nacional e internacional. Como
motivação, “esses gestos desencadeiam uma onda de irradiação e de irrigação que, de modo
secreto e indireto, contribui para o avanço da história rumo a estados de paz”.47 Abre-se um
espaço de esperança, em que as diferenças se reconhecem parceiras de uma mesma
humanidade. No mesmo elã espiritual, de gestos de perdão, está o caráter festivo da troca
que, no dizer de Ricoeur, “pode estar nos rituais da arte de amar, em suas formas eróticas,
amicais e societais [...]. Além disso o festivo do dom é, no plano gestual, o que é aliás no
plano verbal”. Ou seja, pela ágape, a obra do amor se manifesta também como eros e philia.
De modo que a experiência viva do dom “se une assim ao conjunto das fórmulas que gosto
de colocar sob o patrocínio do gramatical do optativo, esse modo que não é nem descritivo
nem normativo”.48

Certo, os gestos que indicam o reconhecimento como dom ou gratuidade, na prática,


parecem que não são muito comuns. De modo que permanece o confronto da “experiência
viva do dom com a luta pelo reconhecimento e com a incerteza de sua realização em um ser-
reconhecido efetivo”.49 Isso significa admitir que “a experiência do dom, além de seu caráter
simbólico, indireto, raro, até mesmo excepcional, é inseparável de sua carga de conflitos
potenciais ligada à tensão criadora entre generosidade e obrigação”.50 Esse é o sentido da
própria utopia, a proposição de um horizonte ideal, que, não obstante às suas aporias, provoca

46
RICOEUR, 2006, p. 257.
47
RICOEUR, 2006, p. 257.
48
RICOEUR, 2006, p. 257.
49
RICOEUR, 2006, p. 255.
50
RICOEUR, 2006, p. 257.
20

a experiência da vivência de pequenos gestos de gratuidade. A luta pelo reconhecimento


suscita passos do possível.

O reconhecimento como gratidão motiva também o reconhecimento político. A


celebração é também a ação que move passos da caminhada, do viver que se torna eucaristia.
Deus conosco, na comunidade que celebra a páscoa da libertação, que motiva o percurso da
luta e da resistência. Por exemplo, como percebe Boaventura Santos, há uma mística nas
comunidades eclesiais de base (CEBs), no Movimento dos Sem Terra, na organização da
juventude estudantil..., em que “canções e cantos têm sido historicamente uma presença
muito forte nas lutas de resistência e libertação como uma forma de reunir forças para vencer
o desespero e ganhar coragem para lutar contra os opressores formidáveis”. 51 Quiçá não seja
esse reconhecimento de proximidade também uma interpelação e também uma denúncia
contra aqueles que ousam dizer ‘Senhor, Senhor’, a partir do chauvinismo religioso, para
atacar a democracia, impor tribunais de exceção, desprezar o/a Outro/a sob o peso da
intolerância, da misoginia, da homofobia, do preconceito, da exploração, da violência...

Com efeito, vale notar com Mandela, que “a decadência moral de algumas
comunidades em várias partes do mundo se sobressai entre outras pelo uso do nome de Deus
para justificar a manutenção de ações que são condenadas pelo mundo inteiro como crimes
contra humanidade”.52 Talvez, para esse tipo de teologia, como antídoto, há a memória do
evangelho que reporta à imagem de Jesus entrando no pátio do templo e de lá, encontrando
os vendilhões, enxota-os e vira as mesas. Ora, é justamente contra a classe religiosa que Jesus
parece mais se enfurecer. Nesse sentido, aporta-se à memória do evangelho, em que há a
denúncia contra as armas ideológicas da morte.53 De fato, faz-se mister rejeitar e denunciar
“com veemência a corrupção, a iniquidade, a impunidade e o ataque ao Estado Democrático
de Direito. Esses desvios fazem com que o pão não esteja na mesa do pobre, e deixem os
enfermos e os órfãos desamparados”.54 Em suma, dizer-se cristão e não lutar pelos direitos
humanos é uma contradição.

51
SANTOS, 2015, p. 79.
52
MANDELA, 2010, p. 376.
53
Cf. HINKELAMMERT, Franz. As armas ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas. 1983.
54
MISSÃO NA ÍNTEGRA Manifesto de Evangélicos pelo Estado de Direito. Disponível em:
http://www.gospex.com.br/2016/03/manifesto-de-evangelicos-pelo-estado-de-direito-iniciativa-do-missao-na-
integra/; Acesso em: 07. jun. 2016.
21

A crítica e a autocrítica teológica assumem um papel crucial, no sentido de auxiliar a


comunidade de fé a discernir sua caminhada, enquanto participante dessa mesma realidade
humana, com suas congruências e incongruências. A história dos direitos humanos
testemunha que sua consolidação resulta também à revelia ou contra determinadas
concepções religiosas e teológicas, sob as quais se encontram práticas inquisitórias,
escravagistas, discriminatórias, misóginas, de ataque à dignidade da vida. De modo que, a
partir de uma perspectiva do evangelho da vida, da palavra que liberta, cabe também à
teologia pública ajudar a esclarecer tais discursos que, em nome de uma suposta
religiosidade, geram ou apoiam situações de violência e sofrimento.

Por outro lado, na consideração aos direitos humanos, também implica um olhar de
criticidade, no sentido de que pode haver ali também contradições ou insuficiências. Com
Kathlen Oliveira, entende-se que “os direitos humanos não são verdades axiomáticas e nem
verdades absolutas”. 55 Assim, por exemplo, entende-se que a Declaração da ONU de 1948 e
mesmo as convenções posteriores (sobre descriminação racial e contra mulheres, violência
contra crianças, direito do povos indígenas, dentre outras resoluções), expressam um
contexto, uma história, uma concepção epistemológica, enfim, narrativas que refletem, em
certa medida, às expectativas da própria modernidade que se desenvolve a partir da ideia de
civilização ocidental. Isso significa dizer que a concepção de direitos humanos também tem
sua face hegemônica. Fato é que, de acordo com Boaventura Santos, “não há dúvida hoje
sobre a global hegemonia dos direitos humanos como um discurso da dignidade humana.
Entretanto, tal hegemonia apresenta uma perturbadora realidade. Uma grande maioria dos
habitantes do mundo não são sujeitos de direitos humanos”.56 Em geral, grande parte da
população é mais objeto de discussão do que propriamente sujeito de direito humano.

Essa referência crítica de modo algum pretende invalidar a importância e o alcance


da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Apenas que a defesa da dignidade humana
e da vida como um todo – veja-se, por exemplo, a questão dos animais – deve incluir outras
perspectivas que a declaração não abarca e, como tem demostrado a história, pode ter avanços
e também retrocessos. Retomando a questão da historicidade, a narrativa dos direitos

55
OLIVEIRA, Kathlen Luana de. Por uma política da convivência. Passo Fundo: IFIBE, 2011. p. 75.
56
SANTOS, 2015, p. 01.
22

humanos diz respeito a uma diversidade de experiências da convivência humana,


testemunhando itinerários de uma permanente interpelação e construção social. Desde o
Cilindro de Ciro, rei da Pérsia, século VI a.C., que passa pela Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789)57 e chega à Declaração da ONU de 1948, registram-se tortuosos
itinerários, a partir dos quais se constata, de acordo com Oliveira, que “os direitos humanos
são experiências que foram consolidas em ‘testemunhos documentais de lutas descomunais
que mobilizaram contingentes humanos por sua libertação’.”58

Tenha-se em conta que uma declaração, tal como propõe a ONU, não é um tratado e
não tem peso de lei. A Declaração é apresentada como uma espécie de incitação e respaldo
para que as diferentes sociedades possam assumir os direitos humanos enquanto parâmetro
para a suas organizações, tanto em nível global como local. Consequentemente, é fato de que
a Declaração se constitui num elemento impulsionador, tendo em conta que muitos países,
inclusive o Brasil, pós ditadura civil-militar (1964-1985), e a África do Sul, pós apartheid
(1948-1994), assume os direitos humanos em suas constituições, impulsionando processos
democráticos. Não obstante, repetem-se as cenas de injustiça, de opressão, de violência, de
tortura, inclusive em nome dos próprios direitos humanos.

Na África do Sul, o antropólogo Francis Nyamnjoh denuncia que em diversas regiões


do país, como Duban e KwaZulu-Natal, tem ocorrido uma erupção xenofóbica contra
populações não nativas que vão desde insultos, destruição de casas, pilhagem de lojas,
expulsão, assassinatos. Situações de racismo também continuam, não obstante à declaração
do fim do apartheid e do estabelecimento de uma constituição democrática (1994). Enquanto
isso, segundo Nyamnjoh, a retórica da inclusão e dos direitos humanos, adotada pelas
autoridades públicas, não tem conseguido combater as práticas de exclusão de
amakwerekwere, termo usado por nativos para designar africanos estrangeiros.59 Também na
África do Sul, conforme a ONG Rape Crisis, crescem as situações de rapto, violência e

57
Nesse contexto, incluem-se a Declaração dos Direitos da Inglaterra (1689) e a Carta dos Direitos dos Estados
Unidos (1791). Importante mencionar também a Revolução Haitiana (1791-1804), um símbolo de libertação
negra e de luta contra o colonialismo, cujo evento não é destacado pela narrativa hegemônica da história dos
direitos humanos. Sobre esse tema, ver JAMES, Cyril L. R. Os Jacobinos negros: Toussaint L1Ouverture e a
Revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo. 2010.
58
OLIVEIRA, 2011, p. 75.
59
NYAMNJOH, Francis. Xenophobia at odds with SA ‘rhetoric of inclusivity and human rights’. Disponível
em: <http://www.nyamnjoh.com/>; Acesso em: 21 abr. 2016.
23

descriminação contra mulheres, cujos índices estão dentre os mais altos do mundo. 60 Do
mesmo modo, trabalhadores que lutam por melhorias salariais e condições de trabalho, são
duramente reprimidos, tal como no massacre de Marikana (2012), em que a polícia abre fogo
contra mineiros em greve, mantando mais de trinta manifestantes.

Enquanto isso, no Brasil, a memória daqueles e daquelas que tombaram sob correntes
e coturnos, ainda espera por uma sociedade que reconheça, em suas entranhas, a
responsabilidade por tanta injustiça e dor que foram causadas, para que a casa grande, a elite
brasileira, mantivesse seus privilégios. Ao mesmo tempo, propaga-se uma onda reacionária,
contendo inclusive sinais de fascismo. Um de seus ingredientes é justamente a presença de
uma mentalidade teocrática que, de forma articulada ou não, tem se constituído num forte
obstáculo ao avanço de políticas públicas de promoção e reconhecimento de direitos
humanos. Sob uma suposta defesa da honra familiar e da moralidade divina, coloca-se em
xeque a laicidade do Estado, promovendo-se um modus operandi que perpetua práticas de
opressão e morte. As referências à religião e a Deus nos discursos políticos colocam em
questão a complexa relação entre fé e domínio público, em que a defesa do Estado laico é
uma condição para que as diferenças possam encontrar respaldo e um ambiente de
convivência respeitosa.

É certo que a dimensão da fé pode e deve contribuir para uma sociedade melhor e
mais justa, mas, por outro lado, uma religiosidade descontextualizada e sem uma
hermenêutica adequada, em geral, torna-se fonte de mais violência e sofrimento, na medida
em que se conserva, subjacente, um fundamentalismo próprio das sociedades patriarcais, em
que o homem (branco) se apresenta como referência de poder. Daí também a importância da
teologia pública, enquanto ciência da manifestação da fé, que pode e deve mobilizar esforços
para recuperar ou reforçar seu locus comunitário, tendo como horizonte a luta por justiça,
solidariedade, dignidade, libertação. Uma teologia que emana do evangelho da vida,
certamente, emerge como um antídoto contra teologias necrófilas, inquisitórias e
intimamente comprometidas com os interesses dos poderosos.

60
RAPE CRISIS. Rapa in South Africa. Disponível em: <http://rapecrisis.org.za/about-rape/>; Acesso em: 13.
Jun. 2016.
24

A teologia pública, em sua interação com os direitos humanos, implica a memória da


partilha do pão e do vinho e reconhece a boa nova: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham
com abundância” (Jo 10.10). A Palavra que se faz carne – memória –, é também a eucaristia
de Mahatma Gandhi, Dietrich Bonhoeffer, Edith Stein, Malcolm X, Martin Luther King Jr.,
Stephen Bantu Biko D. Oscar Romero, Edson Luis de Lima Souto, Dorothy Stang, Berta
Cáceres... Memórias que se tornam sementes de esperança plantadas no solo, à espera de um
novo amanhã que já vem. Na medida em que, na referência aos direitos humanos, há a busca
pelo reconhecimento e acolhida do rosto que clama pela sua condição – ‘tenho fome!’: fome
de pão, de cidadania, de participação, de justiça, de vida digna... – , a palavra da teologia
pode recuperar a memória do ‘eis-me aqui, envia-me!’.

À guisa de conclusão

Quiçá a eucaristia – reconhecimento, ação de graças, dom – possa repercutir no


mundo de hoje como alimento que Deus oferece a todos/as, independentemente de suas
contingências, como uma inaudita memória que toca os corações. Comungar dessa utopia é
prover passos que transformam o mundo, na direção de uma sociedade mais justa e solidária.
Assim quando a igreja é uma comunidade de portas abertas, em que a eucaristia se constitui
memória de um Deus que se torna, na mesa partilhada, alimento de vida e de esperança, os
corações se movem. “Obrigado Padre Duffell [um pároco de New York] pela bonita homilia
[...]. Eu fiquei comovida hoje quando você disse: ‘a eucaristia não é um prêmio para os
perfeitos, mas um alimento que Deus nos dá’ [...]”.61 Essas foram as palavras ditas por Lady
Gaga, uma artista que, em suas músicas e performances, tem chamado a atenção para temas
como machismo e homofobia.

Mais do que trazer à lembrança acontecimentos, fazer memória é percorrer os


meandros da narratividade que permite tecer os fios da justiça, da reconciliação e também da
celebração. Como tarefa e esperança, o reconhecimento da dignidade humana e da vida está
na ordem da proximidade, da cidadania, da participação, da democracia, da sensibilidade

61
LADY GAGA. “(Thank you Father Duffell for a beautiful homily) as always and lunch at my pop's restaurant.
(I was so moved today when you said. ‘The Eucharist is not a prize for the perfect but the food that God gives
us.’) - Father Duffell, Blessed Sacrament Church Nourishment.” 9 maio 2016. Tweet.
25

ecológica que inclui a defesa da dignidade da vida animal. A memória da luta pelos direitos
humanos nos coloca diante de uma condição de permanente vigília. Nesse sentido, a defesa
dos direitos humanos significa lutar contra todo tipo de violência e descriminação racial e de
gênero. Significa também lutar contra as chagas do trabalho escravo, da miséria e do
cerceamento à alimentação básica. É lutar pelo fim da tortura e aplicação de penas cruéis e
degradantes a todo ser humano. Defender os direitos humanos significa lutar pelo direito da
criança e juventude, pelo direito dos povos indígenas e minorias. Não se pode perder de vista
também a condição ecológica e a relação com os animais não humanos, a vida de nossos
outros que solicita nosso cuidado, respeito à sua dignidade.62 Aqui, a reflexão deve ter
continuidade.

Falando sobre seus sonhos e projetos, Mandela dizia que eles não estavam no cárcere
que, por quase três décadas, o aprisionara, mas nos seres humanos, na sabedoria coletiva que
luta por justiça e igualdade social. “Sou mais do que nunca influenciado pela convicção de
que a igualdade social é a única base da felicidade humana [...] É em torno dessas questões
que evoluem meus pensamentos.” Trata-se de uma convicção alimentada, continua Mandela,
pela “nova geração que declara guerra total contra todas as formas de crueldade, contra
qualquer ordem social que mantém privilégios econômicos para uma minoria e condena a
maioria da população à pobreza e às doenças, ao analfabetismo e à série de males que
acompanham uma sociedade estratificada”.63 A mística que semeia a semente da esperança,
empapa a luta cotidiana de quem cultiva sonhos de um outro mundo possível, que é também
memória da eucaristia. Então, como canta o poeta,

Se somos todos irmãos / Se todos somos amigos / Basta um pedaço de chão / Para
a vitória do trigo / Basta um pedaço de terra / Para a semente ser pão / Enquanto a
fome faz guerra / A paz espera no chão.64

REFERÊNCIAS
A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1989.

62
SUSIN; ZAMPIERI, 2015.
63
MANDELA, 2010, p. 181.
64
LEDESMA, Dante Ramon. A vitória do trigo. In: Dante Ramon Ledesma Duplo: 20 anos. Ao Vivo. Porto
Alegre: USA Discos. 2008. Compact Disc, Disco 2, faixa 5.
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