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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROJETO DE PESQUISA
Goiânia, GO
2020
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Por vezes nos deparamos com um ar confessional durante a leitura de Clara dos
Anjos. Seu autor, Lima Barreto, desabafa e denuncia a sociedade na qual vivia. Sociedade
de ideal burguês e escravocrata, como tantas vezes denunciou da mesma forma Machado
de Assis em anos anteriores, o Brasil se formou de forma bastante paradoxal. A
desigualdade social foi a base sobre a qual se constituiu nossa forma de organização social
que permanece até os dias atuais. O genocídio da população negra e indígena, a
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garantir o bem-estar dos seus cidadãos são a terceira fonte de sofrimento apontada por
Freud. Na verdade, o que ocorre é uma troca – o sujeito renuncia à satisfação plena em
troca da manutenção da civilização. Nesse sentido, Freud ressalta a descoberta da
psicanálise: “Descobriu-se que o homem se torna neurótico porque não pode suportar a
medida de privação que a sociedade lhe impõe, em prol de seus ideais culturais”
(1930/2010b, p. 45). O sujeito acredita que ao se submeter à privação, encontrará proteção
ante o desamparo e alívio do mal-estar. O fato é que isso não acontece, pois em alguma
medida o desamparo traz a angústia. Entretanto, o desamparo, apesar de inerente à
condição humana, será sentido de formas diferentes entre os sujeitos. As normas que
regem os vínculos – desde os tabus às regras de aceitação e reconhecimento – são
insuficientes para garantir que todos os sujeitos recebam as benesses da vida em
sociedade. Assim, alguns serão acolhidos e amparados, e outros terão seu desamparo
potencializado. Freud, analisando aspectos constitutivos da civilização ocidental, afirma
que: “Não é preciso dizer que uma cultura que deixa insatisfeito e induz à revolta um
número tão grande de participantes não tem perspectivas de se manter duradouramente,
nem o merece” (1928/2014, p. 243). É necessário repensar os termos do pacto
civilizatório de forma a abarcar todos os sujeitos dele integrantes.
Violante (2000), em análise acerca da exclusão social, ressalta que o mecanismo de
exclusão social expõe as fissuras do pacto civilizatório. Esse mecanismo “consiste em
destinar ao portador de algum sinal que a sociedade considera estigmatizante – a pobreza,
a negritude, a homossexualidade, o aleijume etc. –, a rejeição social plena, isto é, a
rejeição de todos os atributos do sujeito portador de um ou mais daqueles sinais” (p. 64).
Esses sujeitos, mesmo excluídos socialmente, são partes integrantes da lógica perversa
através da qual nossa sociedade produz e distribui riquezas, enfatiza Violante (2000).
Aulagnier (1979), em sua metapsicologia, analisa o pacto civilizatório proposto por
Freud (1930/2010b) a partir do conceito de contrato narcísico, e utilizaremos de sua
análise para investigar acerca do sofrimento psíquico e social do sujeito excluído.
Aulagnier (1979) ressalta que o narcisismo parental projeto na criança estará apoiado
em valores culturais. Existe, portanto, uma “cena extrafamiliar” que é a do registro sócio-
histórico que atravessa de forma constituinte a cena intrafamiliar. Nesse sentido, “por
registro sócio-histórico compreendemos o conjunto de instituições, cujo funcionamento
participa de um mesmo traço característico: ele é acompanhado por um discurso sobre a
instituição, que afirma se fundamento e sua necessidade. Este discurso designa, para nós,
o discurso ideológico” (p. 146). A cena intrafamiliar que engloba a relação do casal
parental e a criança carrega sempre o traço da relação do casal com o meio social que o
cerca. Gaulejac (1987/2014), a partir dessa ideia, destaca que todo romance familiar vai
carregar as marcas da classe social a qual a família pertence. Esse discurso social,
juntamente com o discurso parental, projeta uma antecipação do Eu do infans. Aulagnier
afirma que “bem antes do novo sujeito estar lá, o grupo pré-investirá o lugar que ele
supostamente ocupará, na esperança de que ele transmita, de forma idêntica, o modelo
sociocultural” (1979, p. 146).
Ao apropriar-se de uma série de enunciados do discurso social, o sujeito apropria-se
dos enunciados do fundamento daquele grupo social. Esses enunciados são partes
constituintes do discurso que afirma o fundamento das leis que regem o funcionamento
da cultura na qual o sujeito está inserido, afirma Aulagnier (1979). Esse fundamento
constrói um modelo ideal no qual o sujeito investe e repete. Ao fazer o movimento de
expansão do discurso parental para o discurso social iniciado com o narcisismo
secundário, a criança após se apropriar dos ideais familiares, se apropria também dos
ideais culturais. Esses passam a ser, juntamente com os primeiros, o discurso através do
qual o sujeito investe seu projeto futuro e sua repetição lhe garante a certeza de uma
origem, ou seja, lhe dá os elementos que lhe afiançam seu pertencimento e seu
enraizamento. O discurso social fornece ao sujeito, conforme analisa Aulagnier, um senso
de pertencimento a uma história coletiva anterior a si mesmo. Ou seja, o discurso social
vai lhe oferecer um modelo de origem e um modelo de futuro.
No processo de apropriar-se do discurso social, o sujeito vai se apropriando de seus
ideais e passa a tê-los como seus. Seu Ideal-do-Eu vai incorporando-os. Aulagnier atenta
para a constituição do sujeito ideal que se refere “ao sujeito do grupo, isto é, à ideia de si
mesmo que o sujeito pede ao grupo como conceito, conceito que o designa como um
elemento pertencente a um todo que o reconhece como um aparte homogênea a ele” (p.
150). Para que esse reconhecimento ocorra, o grupo espera que esse sujeito se engaje na
repetição e propagação de seus ideais culturais e se submeta a eles. Estabelece-se, assim,
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Percurso metodológico
a) Textos literários
Utilizaremos crônicas, romances e textos Machado de Assis, Lima Barreto e
Clarice Lispector, e os diários e textos autobiográficos de Carolina de Jesus. Os critérios
de inclusão/exclusão, diante da gama de escritores e escritoras brasileiras, se deu a partir
da leitura de textos da crítica literária que nos apontaram para esses autores.
Machado de Assis (1839-1908) retrata em suas crônicas e romances o período que
abarca o final do 2º reinado e o início da República brasileira. O Brasil descrito por
Machado em diversos textos, principalmente na novela Casa Velha (1885-1886/2008),
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nas crônicas publicadas na seção Bons Dias! (1888-1889/2013), e nos romances Quincas
Borba (1897/2016), Dom Casmurro (1899/2016) e Esaú e Jacó (1904/2016), é a de uma
sociedade aparentemente dividida entre monarquistas e republicanos, mas que
estruturalmente era a mesma – uma sociedade escravocrata. Dessa forma, a cisão da nossa
sociedade nunca foi, na realidade, entre liberais e conservadores, monarquistas e
republicanos. A sociedade brasileira era, e ainda é, cindida entre a elite branca e livre, e
os negros, escravizados e pobres. Cisão que tem, em Machado, um aspecto inconciliável.
Gledson (1986/2003), um dos maiores críticos da obra machadiana, em análise de
Quincas Borba, ressalta que Machado tinha como objetivo retratar essa cisão identitária
brasileira a partir da loucura, ou cisão da mente, do personagem Rubião. Cindido entre a
realidade e a fantasia, Rubião se deixa ser lesado por um casal que vai, aos poucos, se
apropriando de sua fortuna. Assim como o Brasil, afirma Gledson (1986/2003), “Rubião
enriqueceu subitamente e desperdiçará sua fortuna, desviando-se esbulhar por capitalistas
cujos verdadeiros interesses estão no exterior” (p. 88). Realidade observada por Machado
ao longo da história do segundo reinado, mas ainda observada na contemporaneidade.
Dessa forma, utilizaremos de parte da obra machadiana para compreender a formação
brasileira e seus reflexos nas construções ideais e ideológicas que permeiam os processos
identificatórios dos sujeitos.
Lima Barreto (1881-1922) foi um grande escritor e crítico social nunca
reconhecido durante sua vida. Neto de trabalhadores escravizados, Lima viveu durante o
período do higienismo carioca do início do século XX. Sua obra retrata a pobreza dos
trabalhadores e da periferia do Rio de Janeiro. Antônio Cândido afirma que a escrita de
Lima Barreto era “voltada com lucidez para o desmascaramento da sociedade e a análise
das próprias emoções” (1989, p. 40). Suas obras Recordações do escrivão Isaías Caminha
(1909/2010) e Clara dos Anjos (1924/2017) retratam as questões sociais escravocratas
sobre as quais a sociedade brasileira se formou. O Brasil descrito nessas obras é um Brasil
que não reconhece o sujeito negro como sujeito de desejo e de direitos.
Clarice Lispector (1920-1977) foi uma escritora brasileira1 cujos escritos sempre
evocam alguma crítica social. O livro a ser analisado será A hora da estrela (1977/1995)
cuja personagem principal, Macabéa, reflete a realidade de grande parte dos brasileiros e
brasileiras. A injustiça social e a alienação são temáticas que fundamentam o romance.
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Clarice Lispector, na verdade, nasceu na Ucrânia e estava com alguns meses de vida quando sua família
se estabeleceu em Recife no ano de 1920. Em entrevista, a autora se declara brasileira por ter sido a única
terra na qual se formou.
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Além disso, discorre acerca da condição humana e dos limites da comunicação. Nesse
romance, Lispector retrata uma realidade de sofrimento social e psíquico daquele sujeito
cujo processo identificatório se deu pelo viés do negativo e do silenciamento.
disso, tem a função de transmissão dos valores coletivos, das ideologias, e da resistência
dos grupos silenciados (Burke, 1991/2011).
Ao coordenar diversos elementos e fragmentos, a narrativa tece um todo articulado
temporalmente e conectado simbolicamente. Sua articulação constrói o senso de
totalidade ante à fragmentação dos eventos vividos e do tempo. Em estudo acerca das
relações entre filosofia e literatura a partir da obra ricœuriana, Gentil (2004) ressalta o
caráter temporal das narrativas e afirma que “narrar é, mais que tudo, articular
simbolicamente o tempo, representá-lo, trazer à linguagem o que a ação experimenta e
organiza no mundo” (p. 112). A temporalidade e o simbolismo próprio da ação vão
constituir as “dimensões do mundo da ação que serão mimetizadas pela narrativa” (p.
112).
Essa mimesis nos remonta ao que Aristóteles discute em sua “Poética” (2007) e no
livro VI de “Ética a Nicômaco” (1991). Em sua análise acerca da composição da poesia,
Aristóteles afirma que o poeta, ao contrário do historiados, imita a vida e imita ações. Ao
imitar a vida, “se torna óbvio que a função do poeta não é contar o que aconteceu, mas
aquilo que poderia acontecer, o que é possível” (2007, capítulo 9, p. 54). Ao imitar, o
poeta recria a realidade e acaba por enunciar verdades universais, contrariamente à
História que apenas relataria o que aconteceu. A poiesis aponta, portanto, para um a
posteriori, apesar de se basear em algo que já aconteceu, ou seja, no passado (Lima, Viana
& Lima, 2015). No ato de imitar e transformar, a poiesis se constrói a partir de duas
funções: a fruição do belo e a (re)criação do mundo. Novos sentidos podem ser criados
pelo poeta e transmitidas ao leitor.
Ricœur se propõe, com base em alguns elementos levantados por Aristóteles, analisar
a composição das narrativas. Ele parte, principalmente, da ideia de mimesis, ou seja, do
tecer da intriga, e a divide em 3 momentos: mimesis I, mimesis II e mimesis III. O
primeiro momento – mimesis I – diz respeito ao contexto no qual e a partir do qual a
narrativa foi construída. Ricœur ressalta que todo e qualquer texto está inserido em um
contexto mais amplo do qual emerge e para o qual retorna ao ser compreendido. Um
discurso não se compreende fechado em si mesmo. Para compreendê-lo, é necessário
retornar ao seu contexto prévio, ou pré-configurante (Ricœur, 1983/2010c).
A mimesis II abarcaria o tecer da intriga propriamente dito. É o momento em que o
narrador articula os eventos e episódios a serem narrados. Podemos pensar que o elemento
central do ‘tecer da intriga’ é a operação de síntese que ela promove – a concordância da
dissonância: “o tecer da intriga opera uma concordância entre discordantes, faz ir juntos
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Resultados esperados
instrumento de ação sociopolítica, uma vez que pode contribuir para a produção de
novas formas de representação identitária e novos modos de existência para sujeitos que
partir das construções teóricas e as análises produzidas na pesquisa, temos como objetivo
Educação e áreas afins. Além disso, será um espaço formativo para profissionais da área
fornecendo aos sujeitos sociais um conjunto de matrizes de significados a partir dos quais
eles podem se sentir parte de um grupo e desenvolver certas práticas sociais. É nesse
sentido que afirmamos que as identidades são construídas discursivamente. Não há modos
que os agentes sociais encontram meios para representar e identificar a si mesmos, bem
como meios para dar sentido às próprias ações e às ações do outro enquanto se engajam
nas relações sociais. Após as discussões e análise dos dados, temos como objetivo a
Cronograma
2020/1 2020/2 2021/1 2021/2 2022/1 2022/2 2023/1 2023/2 2024/1 2024/2
Fundamentação teórica x x x x x x x x x x
Orçamento
Total R$ 691,20
Referências bibliográficas
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122). (P. C. Souza, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Obra originalmente
publicada em 1930).
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originalmente publicada em 1977).
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novas perspectivas (pp. 39-64). (M. Lopes, Trad.). São Paulo: Editora Unesp. (Obra
originalmente publicada em 1991).