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Edição #42

O mal-estar no século
21
Ensaios de interpretação da cultura e da sociedade de
Freud merecem ser relidos à luz da conjuntura atual,
especialmente a brasileira
Christian Dunker
01fev2021 02h00 (18fev2021 00h35)

Freud, Sigmund
Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros ensaios
TRAD. Maria Rita Salzano Moraes

A edição dos textos sociais de Freud na coleção Obras


Incompletas de Sigmund Freud traz o melhor da teoria
psicanalítica da cultura. Para os que consideram a psicanálise
uma peça do passado, que deveria ser sepultada e esquecida,
a má nova será perceber como as questões permanecem
atuais, bem como os conceitos e termos mobilizados para
enfrentá-las. Para os que enaltecem Freud, indiferentes à
análise crítica dos aspectos datados de sua obra, assim como
para seus continuadores e intérpretes, a má nova é que, sem
uma análise histórica suplementar, muitos argumentos soam
anacrônicos. Por isso, são textos que merecem ser relidos à luz
da conjuntura atual, especialmente a brasileira.

A maior parte compreende o período posterior à famosa


conferência em Budapeste, “Caminhos da terapia psicanalítica”
(1918), logo depois da Primeira Guerra Mundial, momento da
virada política de Freud, sob impacto da Rotes Wien (Viena
Vermelha), impulso social-democrata para ampliar o acesso à
saúde e diminuir a pobreza. O engajamento dos intelectuais
envolveu a criação da Clínica Pública de Psicanálise e colocou
um psicanalista em cada pré-escola para escutar famílias
destroçadas pela guerra. 

Nos anos 1920, e mais acentuadamente com a ascensão do


nazismo, nos anos 1930, o campo de provas da psicopatologia
psicanalítica migrou para a psicologia das massas. Os
descaminhos da religião, da ideologia e das massas para o
paradoxo da cultura concorrem para que ela ao mesmo tempo
apazigue e regule os nossos conflitos e induza o sacrifício, a
renúncia e a infelicidade que alimentam nossas neuroses. A
cultura, que tanto nos promete, com seus ideais de amor e
progresso, pode facilmente ser objeto de ódio e destruição. A
correspondência com Albert Einstein, reproduzida em “Por que
a guerra?” (1933), é um bom exemplo desse esforço de
urgência para pensar a violência persistente nos laços
humanos. 

Os problemas examinados demandam nossa atenção hoje,


mais do que nunca, quando se discutem o retorno de ideias
autoritárias, a repetição de retóricas fascistas e a ascensão do
ódio contra a cultura. As respostas de Freud para cada um
desses três problemas enfatizam a grupalização destrutiva, a
culpa superegoica e as ilusões religiosas. A busca projetiva de
culpados e inimigos para saciar nossos sacrifícios e renúncias
mal elaborados será a hipótese de “O mal-estar na cultura”
(1930). A persistência das ilusões religiosas como fonte de
consolo e segurança contra o desespero e o desamparo
narcísico será posta em confronto com exigências maiores,
impostas pela ciência e pela razão, ao lado das quais Freud
situa a psicanálise, em “O futuro de uma ilusão” (1927). Por fim,
a tentação das ideias autoritárias estará sempre presente,
sobretudo em momentos de alta complexidade e risco
identitário, quando aumenta o impulso de nos entregarmos à
identificação, ao funcionamento de acasalamento entre massa
e líder, tal como se esclarece em “Psicologia das massas e
análise do Eu” (1921).
Modelo crítico
“O mal-estar na cultura” é um mapa para entender como o
discurso sobre o imperativo de felicidade pode nos levar ao
ódio e como pequenas conquistas podem se inverter em
grandes punições. O texto mais lido e citado de Freud é um
modelo crítico para uma teoria social antropológica de um
tempo, capaz de discutir a nossa diferença em relação à
natureza e ao processo histórico de individualização entre
cultura e civilização. A partir de uma discussão ética sobre a
felicidade; os métodos de evitação do sofrimento, da religião à
intoxicação química ou estética; passando pela tecnologia, que
cria as distâncias que, por outro lado, acaba suprimindo, ele
chega à ideia de que a mesma cultura que nos protege do
sofrimento é responsável pelo sentimento de culpa e pela
destrutividade que a caracteriza. É o texto definitivo sobre a
patologia universal do ser humano. Os impedimentos à
realização de pulsões e os ideais que mobilizamos nisso
seriam a causa e o efeito reatualizador do sofrimento. 

Contrapondo a gênese de valores como ordem, limpeza e


beleza aos meios para sua realização, tais como justiça,
liberdade e espírito de comunidade, Freud reatualiza o seu
diagnóstico sobre a cultura: ruim com ela, pior sem ela. Ele
aborda o papel do amor, da sexualidade e da relação entre os
gêneros para culminar no caráter trágico das transgressões e
das interdições que nos impomos, fonte e origem de nossa
atitude ambivalente perante a própria cultura. Divididos entre a
crueldade sádica do Supereu e o masoquismo vitimista do Eu,
entre a pulsão de separação, representada pela morte, e a
pulsão de união, dada pela vida, descobrimos que a pior forma
de lidar com o mal-estar é negá-lo como condição existenciária.
Daí será um passo para transformar o medo em culpa, a culpa
em ressentimento e o ressentimento em ódio pelo outro. 

“O futuro de uma ilusão” deveria ser lido por todos os que se


atordoam com os debates digitais e que parecem aturdidos
com a violência de certos grupos religiosos. Freud enfrenta um
interlocutor religioso tomado por paixões. As satisfações
narcísicas, propiciadas pelos ideais, são a base para o
sentimento de que elas estão mal distribuídas, e que quanto
menor a cultura com a qual nos identificamos, maior a
destrutividade em relação às demais, a ponto de um único
indivíduo ser irrestritamente feliz com o cancelamento para si
das restrições culturais: um ditador ou tirano. O desamparo dos
homens, tendo a natureza no seu encalço, inclusive a natureza
das doenças, daria o molde para a produção dos deuses. 

A tese mais interessante para o nosso tempo diz respeito ao


fato de que a religião é um sistema de ilusões. Ilusões não são
necessariamente erros ou falsidades: são uma qualidade de
nossas crenças, não de nossos saberes. Crenças dependem
de um determinado e necessário não sabido (um absurdo, por
exemplo) e de uma estrutura de ficção (que cria um “como se”
sobre o mundo). Ilusões podem estar em contradição com uma
realidade presente, mas não com uma descoberta futura.
Contra isso, Freud declara que ignorância é ignorância: dela
não advém nenhum direito a crer em coisa nenhuma. O
argumento da validade consolatória das ilusões deveria ser
submetido à inspeção dos tipos de crença contidos nelas, em
geral de natureza infantil. Ilusões que se mostram verdadeiras
não são fáceis de achar, mas, como elas existem, abre-se a
porta para o confronto e para a disseminação de versões
delirantes ou desejantes do mundo e dos fatos. Estamos diante
de um forte arsenal para enfrentar as fake news e a pós-
verdade. O que Freud chama de “educação para a realidade”
implicaria uma cultura que “não oprima mais ninguém” e a
capacidade de “suportar que nossas expectativas se revelem
como ilusões”.

“Psicologia das massas e análise do Eu” é leitura obrigatória


para entender os caminhos do mundo digital. Freud analisa a
formação de massas naturais e artificiais como o Exército e a
Igreja. Ele propõe três tipos de identificação, encontradiços na
clínica e na vida social: a identificação com o pai ancestral, a
identificação com o desejo e a identificação regressiva
(formadora dos sintomas). A intrusão do pai na política, a
descrição de como as massas se identificam com o líder,
colocando-o no lugar do Ideal, pareando e homogeneizando os
“eus” no interior da massa, continua a ser eficaz. As massas
digitais mantêm essa gramática, acelerando a tendência a
suprimir responsabilidades. A identificação cega com o líder, a
influência hipnótica que este é capaz de exercer sobre as
massas, inclusive contra seus interesses, sua imunidade à
contradição por argumentos, sua regressão cognitiva e seu
fortalecimento pelo ódio ao inimigo externo seguem com plena
validade política. 

O volume traz preciosas notas de Gilson Iannini e Pedro


Heliodoro Tavares. Inclui ainda prefácio de Iannini e Jésus
Santiago, e posfácio de Vladimir Safatle sobre o impacto do
corpo na teoria social freudiana. 

Mais do que nunca, o espírito das luzes que presidiu a aparição


da psicanálise como acontecimento histórico parece repetir a
constelação que lhe deu origem, o modelo crítico que ela
inspira a pensar o campo da razão e da ciência, com os
demônios e as idiossincrasias que o habitam e que, por vezes,
o devoram por dentro. 

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