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Revista de Psicologia ISSN 2179-1740

“DA GUERRA E DA MORTE. TEMAS DA


ATUALIDADE.” DE SIGMUND FREUD:
Revista UM SÉCULO DEPOIS.
de Psicologia “THOUGHTS FOR THE TIMES. ON WAR AND DEATH” OF SIGMUND FREUD:
ISSN 2179-1740 A CENTURY LATER.

Betty Bernardo Fuks 1

Resumo
O artigo propõe refletir sobre a atualidade do texto freudiano de 1915 – “Da guerra e da morte: temas da atualidade” -, a partir de alguns
conceitos metapsicológicos que deram corpo à análise crítica do autor à civilização que produziu a Primeira Guerra Munidal. Partindo
da hipótese de que o texto constitui um leit motiv à construção do conceito de pulsão de morte, sustentamos que a teoria psicanalítica,
por ser passível de reelaborações constantes e plurais, não cessa de convocar o analista à refletir sobre a configuração sócio-política
em que vive.

Palavras-chave: guerra, morte, pulsão de morte, gozo.

Abstract
This article proposes to reflect on the relevance of the Freudian text 1915 - “Thoughts for the times on war and Death” from some
metapsychological concepts that gave substance to the criticism of the author analysis the civilization that produced the First World
War. Assuming the hypothesis that text is a leit motiv to the construction of the concept of death drive, we hold that psychoanalytic
theory, be subject to constant and plural reworking, does not stop to call the analyst to reflect on the social and politic configuration
that lives.

Keywords: war, death, death drive, enjoyment.

¹ Universidade Veiga de Almeida – RJ (UVA). Psicanalista. Dra. em Comunicação e Cultura (UFRJ). Pesquisadora do CNPQ. Professora do Mestra-
do e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade (Universidade Veiga de Almeida). Pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamen-
tal. Organizadora de livros de psicanálise nacionais e internacionais. Autora de Freud e a judeidade: vocação do exílio (Zahar); Freud e a cultura
(Zahar); O homem Moisés e o monoteísmo: o desvelar do assassinato (Civilização brasileira). E-mail: betty.fuks@gmail.com

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O século XXI, numa continuidade es- uma ética, ela convoca o analista a ocupar
pantosa com o anterior, tempo das grandes o lugar de crítico da cultura de seu tempo
catástrofes históricas, vem experimentando já que, por mais que sua experiência seja
uma série de genocídios em massa, ditadu- concernente à história particular do sujei-
ras violentas, racismo e segregacionismo, to, por estar ligada à linguagem, essa histó-
terrorismo e explorações predatórias da na- ria faz parte da História (Stern, 2004). Nes-
tureza. Nos termos da crueldade e da des- se sentido, gostaria de enfatizar que, se em
truição, novos traumas sociais atingem os 1908, Freud soube nomear com precisão e
quatro cantos de uma civilização cujo pro- ousadia os termos do problema do “nervo-
gresso tecnológico e científico se mostra sismo moderno” - as características da vida
cada vez mais acelerado e quase que inó- urbana; a dupla moral sexual para homens
cuo à compulsão de destruição entre os ho- e mulheres; a maldição da relação inflexível
mens. A bússola mais precisa que encontro entre sexualidade e reprodução; a exclusão
para pensar esses signos da estranha alian- das saídas (assim chamadas) perversas; a
ça entre barbárie e progressos é um texto de neurose como proteção da virtude; o des-
Sigmund Freud que recém completou 100 prezo; a condenação dos homossexuais; o
anos: “Da guerra e da morte. Temas da atua- desconhecimento da sexualidade infantil;
lidade” (1915a/1976), escrito e publicado o desprezo pelo gozo feminino como con-
durante a Primeira Guerra Mundial. Minha sequência da neurose generalizada-, entre
confiança nessa obra consiste em saber que 1914 e 1915 dá início à construção de uma
a ferramenta com a qual o autor perscruta a crítica à presença da barbárie na “mais
cultura de guerra e morte, a metapsicologia, alta civilização” de todas as épocas, até en-
por ser passível de reelaboração constante, tão. Crítica que desembocará, alguns anos
se presta também à leitura do mal-estar de depois nos instrumentos que hoje permi-
nossa contemporaneidade. tem pensar psicanaliticamente a tendên-
cia destrutiva inerente à condição huma-
Do ponto de vista da ética da psica- na. Assim, enquanto o mundo literalmente
nálise, parto da ideia de que embora o in- virava de cabeça para baixo, seus filhos e
consciente ignore a divisão entre os tem- genro lutavam no front, Freud reúne dois
pos do passado, presente e futuro, isso não ensaios - “A desilusão causada pela guer-
significa que os psicanalistas possam se ra”, escrito em abril de 1915, e “Nossa ati-
permitir desconhecer a configuração sócio- tude para com a morte”, uma adaptação
-política de seu tempo. Aqueles que a ig- da conferência proferida na sede vienense
noram deverão renunciar ao exercício da da Associação judaica B’nai Brit (Filhos da
psicanálise, conforme advertiu Jacques La- Aliança) - “Nós e a morte” -, e publica “Da
can (1953/1998, p. 332) ao afirmar que a guerra e da morte. Temas da atualidade”
singularidade da prática analítica consiste (Freud, 1915a/1976).
em fazer confluir a clínica do um a um com
a escuta da política na qual ela se insere. Logo nas primeiras linhas o autor
Tal advertência não deixa de estar direta- confessa ter sido tomado por um forte sen-
mente embasada no modo como Freud, timento de perplexidade e desilusão diante
desde “A moral sexual civilizada e o ner- da desrazão que aflorava no coração da ci-
vosismo moderno” (Freud, 1908), passou vilização europeia. A questão que endere-
a refletir sobre os destinos da cultura em ça ao leitor - Por que apesar de todas as
função do que apreendia na clínica. A bem conquistas intelectuais e científicas da cul-
da verdade, a psicanálise está estruturada tura moderna não foi possível diminuir o
em torno de dois eixos interligados de modo ódio e a destruição entre os homens? - é
inexorável: além de uma práxis apoiada em respondida com um tom de profunda des-

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crença no poder de liderança das nações da política ao longo da História lhe fizeram
mais avançadas técnica e cientificamente. apreender que o ódio pode ser também
E igualmente decepcionado frente a posição uma tentativa de destruir a alteridade, o
de intelectuais e cientistas que, até então, estrangeiro que causa horror. Entretanto,
demonstravam uma clara afinidade para se por um lado, o ódio ao outro estrangeiro
com o infernal, dá início às suas primeiras é constitutivo dos grupos sociais, quando
elaborações sobre a categoria do Mal na or- excessivo desemboca no que conhecemos
dem dos fenômenos coletivos. Seu objetivo sob o nome de segregação e mais moder-
não era explicar a guerra a partir da psica- namente de extermínio. O “narcisismo das
nálise, mas, ao revés, tomar a destruição, pequenas diferenças”, deixa de salvaguar-
a violência como realidades do psiquismo e dar a fronteira necessária entre o “nós” e o
disso retirar consequências teóricas. A lógi- “outro” e o ódio, impulsionado ao paroxis-
ca de sua argumentação - baseada no texto
mo, é dirigido ao “outro” enquanto o amor
e publicada naquele mesmo ano - “Pulsões
é dirigido à insuflação narcísica do “nós”.
e seus destinos” (Freud, 1915b/1976) - foi
precisa: se as pulsões são aquilo que são, Quanto à violência, a insistência do
pressões constantes que visam a satisfa- fundador da psicanálise em considerar -
ção de certos impulsos primitivos e que em a partir da construção do mito de “Totem
si mesma não são boas nem más, e se o e tabu” (Freud, 1913/1976) – o direito e
amor e ódio intensos convivem conflitan- a lei como originários das transformações
tes (ambivalência de sentimentos), então dessa força, condensa, de forma precisa, o
a destruição da guerra e a desumanização duplo sentido do termo em sua obra. Além
dos laços sociais não são apenas momen- de designar a potência capaz de sustentar
tos efêmeros, fadados à superação no futu- os processos simbólicos e as relações en-
ro. Muito ao contrário, são acontecimentos tre os homens, indica, também, a presen-
inexoráveis que incorporam um elemento ça bruta de seu elemento mais arcaico nas
radicalmente social e histórico. operações destrutivas e outras assemelha-
das que, sistematicamente, inundam de
“Não há “erradicação” do mal” (Freud,
sangue e dor a civilização – o gozo ilimita-
1915a, p.317). Mesmo porque não existe
do de uma figura mítica detentora do po-
sujeito, individual ou coletivo, desprovido
der absoluto. A violência e mesmo o ódio
de forças violentas. Na verdade, desde o
início de sua obra Freud apontou veemen- ocupam, assim, uma posição paradoxal
te para a positividade do ódio na constitui- que como tantas outras coexistem na obra
ção do sujeito: trata-se de um afeto direta- de Freud sem mediação. Nada mais alheio
mente vinculado à hostilidade do eu contra ao seu pensamento do que a tentativa de
tudo aquilo que vindo do exterior causa as anular, absorvendo-as num sistema.
desprazer e o ameaça. Ou seja, nos basti- Mas isso não nos exime de aprofundá-las
sem aboli-las para tentar encontrar seus
dores da primeira relação do sujeito com o
próprios fundamentos. No presente artigo,
outro, o ódio é anterior ao amor. Eis, então,
a face positiva do ódio: construir a reali- considerando a hipótese de que a escrita
dade exterior. Em termos da constituição “Da guerra e da morte” é o leitmotiv da teo-
da cultura o ódio é igualmente anterior ao rização da pulsão de morte, talvez o mais
amor; funda e introduz a diferença entre as paradoxal de todos os conceitos freudia-
comunidades. Entretanto, a clínica da me- nos, tentarei executar a tarefa de traba-
lancolia fez com que Freud compreendesse lhar com as contradições que encontramos
que o ódio mantém igualmente uma íntima nesse texto e delas extrair consequências
relação com a destruição de si. E os rumos à nossa atualidade.

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Um ano antes de publicar “Da guerra titui os alicerces da nova tópica freudiana:
e da morte”, Freud estabeleceu uma impor- pulsões de vida x pulsões de morte. A par-
tante elaboração em relação ao fenômeno da tir dai Freud se concentra em apreender o
compulsão à repetição, identificando-o ao esforço subjetivo, individual e coletivo, na
modo pelo qual o paciente resiste lembrar luta contra perigos que auxiliam o orga-
de um conteúdo sexual que desperta vergo- nismo atingir seu objetivo rapidamente em
nha (Freud, 1914/1976). Nesse momento, nome dessa solidariedade antinômica que
acreditava que o instrumento da transferên- imbrica vida e morte. O princípio psicana-
cia no tratamento psicanalítico poderia tor- lítico de intrincação entres as pulsões de
nar tal resistência inócua e levar o paciente vida e de morte se anuncia, segundo a for-
a ultrapassar seus sintomas. Pouco tempo mulação de Rey-Flaud assim: “não há vida
depois, Freud liga a repetição ao conceito sem morte, não há morte sem vida”. (Rey-
de trauma em função do que ouviu dos sol- -Flaud, 2002, p. 42). Não seria esse um dos
dados que retornavam do front da Segunda sentidos que poderíamos atribuir ao aforis-
Guerra e mais tarde vincula esse fenômeno ma que surge na pena de Freud durante a
à pulsão de morte (Freud, 1919/1976). Nes- escrita de “Da guerra e da morte”, numa
se giro em direção ao trauma, Freud se dá inversão da máxima latina “Se queres su-
conta de que o sujeito repete algo que “não portar a vida, prepara-te para a guerra. Se
se liga” ao aparelho psíquico impotente de queres suportar a vida prepara-te para a
absorver o evento traumático, o imprevisível morte” (Freud, 1915a/1976, p. 301). Se
que atropela todo o esforço de sentido em admitirmos essa possibilidade, somos tam-
compreendê-lo. Um trauma perfura a alma, bém obrigados a convocar a teorização de
esgarça o simbólico e, por conta disso, é Lacan acerca da relação paradoxal e intri-
evocado repetitivamente. cada da vida com a morte no âmbito da sa-
tisfação pulsional. Conforme faz notar San-
Historicamente, um inventário de si- tiago (2015), o dualismo freudiano entre a
tuações traumáticas repetitivas - o sofri- vida e a morte é substituído por uma outra
mento psíquico dos soldados que retorna- forma de dualismo, aquele da “cisão inter-
vam do front sem condições de narrar a ex- na” à dimensão do gozo imiscuída no cor-
periência vivida na guerra; as situações de po. É o próprio gozo que se torna a fonte do
fracasso do tratamento psicanalítico pelo mal e não propriamente a pulsão de morte
sentimento de culpa; os sonhos do sujei- pois a “a vida, da qual somos cativos, está,
to da neurose traumática que o faz acor- (…) como tal, conjugada à morte, ela sem-
dar com um novo susto; e a brincadeira pre retorna à morte” (Lacan, 1978/1982, p.
de uma criança que joga repetidamente o
283). Esta não exprime propriamente um
carretel para em seguida pegá-lo de volta,
querer morrer ou querer matar, mas antes
referindo-se ao desaparecimento da mãe
uma vontade de voltar ao inanimado.
-, fornecem a Freud as evidências sobre a
existência de uma força outra que não a Voltemos a Freud tomando como pon-
sexualidade. Batiza-a de pulsão de morte, a to de partida o conceito lacaniano de gozo.
pulsão que lhe forneceu as provas de que o Qual a relação possível da guerra com o
organismo quer morrer, mas à sua maneira gozo? A Primeira Guerra era “tão cruel, tão
(Freud, 1920/1976). Entretanto, para que escarnicada, tão implacável quanto qual-
o organismo chegue a cumprir o propósito quer outra que a tenha precedido ao longo
de retornar ao estado anterior à vida a seu da História”. (Freud, 1915a/1976, p. 315).
tempo, a pulsão de morte necessariamente Nesses termos Freud introduz a ideia de que
contracena com a pulsão de vida. Um para- o sujeito moderno e o selvagem das cavernas
doxo - precisar da vida para morrer - cons- são igualmente bárbaros, cruéis e malignos.

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A psicanálise começava, assim, a descons- variam ao pior: a possibilidade de realizar


truir a ideia vigente de uma “superiorida- uma guerra química.. E assim foi: 14 anos
de” da civilização mais avançada sobre as depois as câmaras de gás nos campos de
mais primitivas para introduzir a tese de extermínio alimentavam o gozo mortífero,
uma certa unidade da espécie. Desconstru- rompiam o pacto civilizatório: os prisionei-
ção que dá a Freud (1930) elementos para ros, depois de destituídos de suas próprias
afirmar em “O mal-estar na cultura” que subjetividades, eram transformados em sa-
independentemente dos tempos a vocação bão. No lugar de cadáveres, pedaços de cor-
humana de “satisfazer no outro a agressão, pos mutilados e sem nomes.
explorar sua força de trabalho sem ressarci-
-lo, usá-lo sexualmente sem o seu consenti- O itinerário crítico de Benjamin
mento, tirar-lhe a posse de seu patrimônio, está voltado sobretudo contra a tendên-
humilhá-lo, infligir-lhes dores, martirizá-lo cia destrutiva da ideologia de progresso.
e assassiná-lo” (Freud, 1930/1976, p. 108) Em “O anjo da História”, a nona tese de
é inconfundível e repetitiva. O gozo mortífero “Sobre o Conceito de História” (Benjamin,
carrega uma carga poderosa de destrutivi- 1940/1993), numa leitura acurada e ex-
dade e crueldade, ameaça de aniquilamento tremamente singular do quadro Angelus
do sujeito e dos povos. Novus, de Paul Klee, o filósofo propõe a
tese de que a História, sobretudo no sé-
Mas há algo de assustador, segundo culo XX, marchava em direção à barbárie.
o que lemos em “Da guerra e da morte”, na Há um quadro de Klee que se chama Ange-
civilização moderna. O conflito entre Esta- lus Novus. Representa um anjo que parece
dos Modernos, segundo a análise freudia- querer afastar-se de algo que ele encara
na, se mostrava o mais destrutivo de todos fixamente. Seus olhos estão escancarados,
os conflitos conhecidos até então, devido ao sua boca dilatada, suas asas abertas. O
desenvolvimento técnico de armas de ata- anjo da história deve ter esse aspecto. Seu
que e de defesa. A modernidade, trouxe po- rosto está dirigido para o passado. Onde
deres desmesurados ao homem que Freud nós vemos uma cadeia de acontecimentos,
qualificou de “deus de prótese” depois de ele vê uma catástrofe única, que acumu-
afirmar estar de acordo com Plauto em que la incansavelmente ruína sobre ruína e as
o “O homem é o lobo do homem “ (Freud, dispersa a nossos pés. Ele gostaria de de-
1930/1976, p. 111). A guerra que durou ter-se para acordar os mortos e juntar os
4 anos de trevas em plena modernidade - fragmentos. Mas uma tempestade sopra
1914-1918-, se valeu, conforme a previsão do paraíso e prende-se em suas asas com
de Freud em 1915, de todos os poderes tec- tanta força que ele não pode mais fechá-
nológicos para fomentar a destruição em -las. Essa tempestade o impele irresistivel-
massa, causando um trauma social sem mente para o futuro, ao qual ele vira as
precedentes. Freud não estava sozinho em costas, enquanto o amontoado de ruínas
sua atenção aos perigos do progresso civi- cresce até o céu. Essa tempestade é o que
lizatório conceder uma faculdade excessiva chamamos progresso. Uma das ideias de-
da tecnologia no quadro do mundo moder- senvolvidas nessa tese, segundo sugere a
no. Entre os textos de seu contemporâneo leitura proposta por Maria Rita Kehl, é a
mais jovem Walter Benjamin, “Alarme de de progresso como a repetição a “mais do
incêndio” (Benjamin, 1928/1987), escrito mesmo”. Não é uma simples reprodução
entre as duas guerras mundiais é, segun- do evento traumático tal qual Freud iden-
do a leitura de Michel Löwy (2013), uma tifica na repetição da violência originária
previsão profética de que inovações tec- da morte do pai. O “anjo”, paralisado pela
nológicas aplicadas à guerra moderna le- própria marcha do progresso, não pode

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se deter para juntar os destroços e “mui- lidade que lhe é devido -, e que o homem
to menos para pensar para onde ele está seja inclinado ao assassinato e ambivalente
sendo impelido” (Kehl, 2015, p.124). para com aqueles que se ama desejando e,
ao mesmo tempo, temendo sua morte, a ex-
O tema vale uma digressão. O contex- periência da perda exige o trabalho de luto
to atual das grandes empresas de tecnolo- do objeto, mesmo em se tratando de um
gia sugere colocar em paralelo o hiperde- inimigo ao qual é endereçado o ódio. Com
senvolvimento da técnica e da catástrofe. espanto Freud se dá conta de que, enquan-
A Inteligência Artificial, ramo da tecnologia to o guerreiro primitivo responsabilizava-se
que começa a ser desenvolvida logo após a pela morte infligida ao inimigo e realizava
Segunda Guerra Mundial, vem sendo ques- o luto através de um conjunto de práticas
tionada por muitos pensadores, inclusive cerimoniais e tabus que permite expiar a
aqueles que se dedicam a construir plata- culpa pelo homicídio, nas sociedades ditas
formas e robôs que, supostamente, devem modernas vigora o desrespeito pela morte,
servir ao avanço civilizatório. O astrofísico no sentido mais amplo do termo.
Stephen Hawking, por exemplo, prevê que
a robótica e a inteligência artificial, em bre- Se há um acento profético no segundo
ve, colocarão em vulnerabilidade milhares ensaio do texto “Da guerra e da morte. Te-
de trabalhadores de baixa e média prepa- mas da atualidade”, ele reside na percepção
ração. Essa marcha do progresso, que vem de que nas sociedades modernas a ausên-
desenvolvendo formas primitivas de inteli- cia de luto em relação a morte de outrem
gência artificial, tem se mostrado muito útil, concorre para dissolver, cada vez mais, a
segundo o astrofísico. Entretanto, quanto transmissão simbólica da Lei que sustenta
maior o avanço, maior a possibilidade de a rede simbólica que tornou o humano um
se criar máquinas que sejam equivalentes, ser de linguagem. Essa é uma das faces da
ou superiores, aos humanos. Haverá uma barbárie na atualidade.
nova repetição da barbárie, disfarçada no
movimento inexorável do progresso científi- No âmbito dos debates sobre as guer-
co e tecnológico, num futuro próximo? ras atuais Judith Butler (2015, p. 29-33)
considera que elas costumam dividir a po-
Voltemos ao texto de Benjamin pulação entre a vida das pessoas que me-
(1928/1987), à figura do anjo paralisado recem lamento e aquelas “enlutáveis”. Isto
pelo progresso que a um só tempo o impele é, aquelas cuja vida não é passível de luto.
para frente e o impede de recolher os destro- A autora argumenta que a falta de luto
ços (os mortos) que produziu para ousar as- acontece porque a vida do sujeito nunca foi
sociá-la ao tema do segundo ensaio do tex- reconhecida como tal pelos governos que
to freudiano de 1915a “Nossa atitude para se encarregam de regular qual morte será
com a morte”. Freud volta-se sobretudo à lamentada. O leitor de “Quadros de guer-
sua percepção de que o homem moderno é ra: quando a vida é passível de morte?” se
incapaz de elaborar o luto e, consequente- inteira sobre a realidade de que em pleno
mente, transformar sua perda em memória, século XXI a política do Estado insiste em
em narrativas simbólicas. Sua crítica des- que algumas vidas não merecem luto pú-
cortina um paradoxo inesperado: as socie- blico. O que vigora, por exemplo, nos com-
dades primitivas se mostram mais éticas e plexos penitenciários de Abu Ghraib e de
civilizadas do que as modernas em sua in- Guantánamo é o gozo mortífero que se ex-
sistência de dessacralizar a morte, outrora perimenta em torturar os prisioneiros. A
sob o manto do divino. Ainda que no incons- indiferença pela dor do outro determina a
ciente não haja representação da morte, - o morte subjetiva do torturado e fomenta o
que dificulta dar à guerra o lugar na rea- desrespeito pela morte real do inimigo. Ao

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final da leitura do livro de Buttler chega-se de pela morte do outro exige uma respos-
à conclusão de que as atividades crimino- ta ética que só poderá advir se o sujeito
sas dos militares nos quadros de guerras atravessar o processo de luto. Essas são as
atuais em nada deixam a dever as atrocida- repostas, que ao meu ver constituem uma
des cometidas durante as Grandes Guerras das grandes lições do texto de 1915. A pri-
do século passado. meira nos alerta para a impossibilidade de
compactuar com a ideia de que progresso
Com essas considerações em mente, científico significa exclusivamente bem-
voltemos ao texto de Freud, no ponto em -estar, pois a história já nos ensinou que a
que tece considerações sobre o manda- diversidade com que as pulsões se manifes-
mento milenar “Não matarás”. O desejo de tam no político incluem o gozo mortífero. A
matar, escreve, é uma “tentação” que todos segunda exige uma posição ética e estética
experimentam. Ele surgiu “contra a satis- (Freud, 1932/1976, p. 19) capaz de fazer
fação do ódio que se ocultava em relação ao girar o mandamento “Não Matarás” até en-
pesar pelas pessoas mortas amadas, esten- contrar sua expressão maior na sentença
dendo-se gradativamente ao estranho e fi- “farás tudo para que o Outro viva” (Levinas,
nalmente até mesmo aos inimigos” (Freud, 1997, p. 243-245). Torção que o sujeito só
1915a/1976, p. 334). Proibição e desejo de pode fazer quando se dá conta de que ele é
matar num só mandamento. Na guerra habitado pela sombra da crueldade mere-
descarta-se facilmente o interdito de matar cedora de sua eterna vigilância. Esse seria
e sobrevém um estado anterior à fundação um possível antídoto contra o usufruto do
da cultura, de acordo com o mito freudia- gozo mortífero de assassinar e de se manter
no de Totem e Tabu. Daí porque toda guer- indiferente para com a morte do outro.
ra escancara a desmedida do usufruto em
gozar de matar o outro da diferença. Um Não podemos deixar de ficar perple-
gozo anterior à linguagem facultado pela xos ao lermos “Da guerra e da morte. Te-
invenção de Auschwitz e pela permissão do mas da atualidade” um século depois de
uso de bombas atômicas sob a população sua publicação. Ou seja, depois das duas
de Hiroshima e Nagazaki. Eis a barbárie se Guerras Mundiais, a invenção dos campos
estendendo ao nosso século: a indiferença
de extermínio, das bombas sobre Hiroshi-
pelos refugiados que os Estados democrá-
ma e Nagasaki, centenas e milhares de
ticos deixam morrer. Ou melhor, esses as-
massacres e genocídios, mas também em
sassinatos estão lançando a humanidade,
mais uma vez, na repetição do gozo que meio a um processo técnico-científico no
anuncia uma nova ruptura civilizatória. qual as máquinas ameaçam sobrepujar os
homens - diante da forma com que Freud,
Em resumo: as considerações freu- não se deixando levar por epígonos, mergu-
dianas sobre a guerra e as práticas as- lhou em temas que não cessam de não re-
sassinas inauguradas em “Da guerra e da tornar à civilização sob o signo da repetição
morte”, estabelecem relações diretas entre
da barbárie e da catástrofe.
as pulsões e as transformações do tempo
histórico em que foi escrito, a saber: (1)
desenvolvimento crescente da tecnologia e
da ciência que, no lugar de oferecer bem-
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS:
-estar e segurança, fomenta a barbárie; (2)
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Revista de Psicologia, Fortaleza, v.7 n.2, p. 110-117, jul./dez. 2016 117

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