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Victor Klemperer, em seu relato de como o “Nazismo se


embrenhou na carne e no sangue das massas por meio das
palavras” LTI: A Linguagem do Terceiro Reich, afirma que
“palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são
engolidas de maneira despercebida e aparentam ser
inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz
notar”. Processo similar se deu na tomada de poder pelo
bolsonarismo com a disseminação de pequenas pílulas de
veneno na linguagem de modo a mobilizar as pessoas em torno
de uma nova chave de entendimento do mundo.

Parte desse novo vocabulário — que incluiu, e.g., comunismo,


gayzismo, globalismo, metacapitalismo — tem sua origem nos
escritos de Olavo de Carvalho. Olavo conseguiu aliar temas e
conceitos oriundos da Extrema Direita americana, de circulação
restrita a livros e rádios do Bible Belt, com o catolicismo
brasileiro anterior aos anos 60 que pode ser encontrado nos
textos de figuras como Gustavo Corção. Em poucos anos, os
problemas e as frustrações que acabaram por eclodir nas ruas
com os protestos de 2013 foram sistematizados e explicados a
partir de doses e mais doses de olavismo liberados a conta gotas
pela internet para a grande população. Forneceu-se um
vocabulário e um ordenamento para uma série de emoções e
reações desencontradas contra o sistema político. Se chegamos
ao ponto no qual, por exemplo, a crise do sistema de ensino
público — gerenciado mas nunca resolvido pela esquerda no
poder — tem como solução as ações do Escola sem Partido, (essa
forma de maoísmo radical de Direita conforme Rosana
Pinheiro-Machado), é pelo efeito cumulativo das pílulas da
filosofia do caçador de ursos da Virginia.

Apesar desse processo silencioso ter sido um dos esteios da


eleição de Bolsonaro, talvez por pânico ou por despreparo
intelectual, a esquerda insiste nos mesmos erros de antes.
Exemplo maior é a recepção irônica diante da escolha do novo
ministro das Relações Exteriores. Repete-se a mesma
incredulidade em tons de superioridade que permitiu excluir o
olavismo e seu enraizamento silencioso do radar político da
esquerda. Confundiu-se política e seu funcionamento com uma
banca de defesa de doutorado ou com resenhas de livros em
cadernos culturais. Contudo, a política enquanto fenômeno de
convencimento na maioria das vezes não funciona na chave do
verdadeiro/falso.

Como efeito desse processo acumulativo de exposição ao


veneno, cada vez mais as pílulas nos chegam sem disfarces.
Cada vez mais o que pode ou não ser dito abertamente se
amplia de modo descarado. O texto do futuro chanceler,
“Trump e Deus”, exemplifica isso. Não vou esmiuçar o artigo
como um todo, mas apenas extrair dele uma ou duas doses do
veneno que me parecem as mais tóxicas — e que assim como
antes, são disseminadas de maneira irrisória e quase que
anódinas.

O artigo “Trump e o Ocidente” após elaborar uma espécie de


soteriologia (parte da doutrina cristã que trata da história da
salvação) que tem como principal agente Donald Trump,
termina de forma bombástica com o seguinte trecho:

Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus


operando pela nação — inclusive e talvez principalmente a nação
americana. Heidegger jamais acreditou na América como
portadora do facho do Ocidente, considerava os EUA um país
tão materialista quanto a União Soviética e incapaz da
autopercepção metafísica indispensável à geração de um “novo
começo”, como ele dizia, essa refundação do Ocidente que
repetiria em outros termos o primeiro começo gerado pelos
antigos gregos. Talvez Heidegger mudasse de opinião após ouvir
o discurso de Trump em Varsóvia, e observasse: Nur noch
Trump kann das Abendland retten, somente Trump pode ainda
salvar o Ocidente.

Por certo a deificação do presidente americano via Heidegger


salta aos olhos, mas gostaria de destacar no trecho citado outra
referência ao filósofo alemão. Em uma conferência de 1935,
publicada em livro como Introdução à Metafísica, defende que
as tendências da história mundial dominantes aquela época, a
Rússia Bolchevique e os Estados Unidos, se articulam como
uma “grande tenaz” para sufocar a Europa. Para ele,
“metafisicamente Rússia e América são a mesma coisa” e ambas
acabariam por levar a humanidade “as trevas do mundo, a fuga
dos deuses, destruição da terra, massificação dos seres
humanos”. Segundo seu biógrafo, Rüdiger Safranski, Heidegger
via na “revolução nacional-socialista uma força de resistência”
contra esse sinistro movimento de pinça da era moderna.
Introdução à Metafísica reflete os juízos políticos de Heidegger
após sua saída da Reitoria de Freiburgo, já sob o governo de
Hitler. Apesar disso, o que se encontra no texto não é um
afastamento das doutrinas do NSDAP e sim a demanda do
filósofo em se colocar como o portador da “verdade intrínseca”
e da “grandeza do Nacional-Socialismo” diante das perversões e
distorções impostas ao nazismo por figuras como Alfred
Rosemberg. Para o pesquisador Richard Wolin, a profunda
atração de Heidegger pelo Nazismo partia da crença metafísica
de que

Rússia e a América são o mesmo — exibem o mesmo ‘frensi


tecnológico’, a mesma organização limitada do Homem comum e
só a Alemanha devido a sua relação mais primordial com o
Pensamento do Ser […] possuía a capacidade para desviar o
destino da Europa do espectro do declínio espiritual eterno.
Assim, de acordo com um comentador, Heidegger acreditava
‘que a filosofia é a favor de Hitler, porque Hitler está no lado do
Ser’

Além disso, segundo Wolin, muitas das virtudes vistas por


Heidegger no Nazismo eram decorrentes não de um conjunto
positivo de propostas mas daquilo contra o NSDAP era contra:
“partidos políticos (o Nacional-Socialismo sempre se esforçou
por se apresentar a si mesmo como um ‘movimento’ em vez de
um partido político, no sentido tradicional), ‘intelectualismo’,
[…] modernismo estético e ‘cosmopolitismo’”. Tais virtudes
negativas — especialmente a anti-política — encontram grandes
similaridades com frases de ordem que serviram para a
legitimação do bolsonarismo: “contra tudo o que está aí” e
“qualquer coisa, menos o PT”.
O que dizer então de um artigo publicado em uma revista do
Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) — ligado
ao Ministério das Relações Exteriores — de um futuro ministro
que defende em termos heideggerianos que o papel de Donald
Trump diante do globalismo é o mesmo do nacional-socialismo
diante do capitalismo e do comunismo nos anos 1930?

Talvez essa referência a Heidegger e ao papel do Nazismo na


história seja a dose de arsênico mais perigosa e mais bem
disfarçada no artigo do senhor Ernesto Araújo. Mas existe uma
outra gota que merece ser colocada à luz, no caso, as referências
a Julius Evola. O primeiro é citado em um trecho que glorifica a
guerra, e não a tolerância, como fundamento da identidade
ocidental. Descontando o efeito cômico em se ler um burocrata
com “29 anos de carreira” em efusivas e quase que eróticas loas
às glórias metafísicas da guerra, a referência a Evola traz de
novo o nazismo ao texto. Segundo Nicholas Goodrick-Clarke
“Na Itália, o elitismo aristocrático e as tradições ariano nórdicas
esotéricas de Julius Evola inspiraram uma geração inteira de
neofascistas no pós-guerra”. Evola tem para si os mesmos já
conhecidos inimigos do nazismo: igualitarismo, democracia,
liberalismo e os judeus. Os ideais baseados em um mítico
passado indo-ariano se repetem: hierarquia, castas, autoridade,
invocação de valores heroicos e sagrados da vida. Estes últimos,
a propósito, se repetem por todo o artigo do futuro Ministro
como valores a serem resgatados pela administração Trump.

O artigo é longo e nitidamente se jubila em citações das mais


disparatadas em uma espécie de desfile carnavalesco de autores
e referências. O senso de urgência assim como o tom de
trombeta anunciando a chegada de um messias revolucionário 
— mesmo que conservador — redunda em uma espécie de
fanfarronice política travestida com a fleuma típica dos
diplomatas. Mas o processo se repete: o grotesco, o aberrante e
o non sense, que a princípio merecem apenas o escárnio da elite
intelectual do país, embalam crenças que agora se entronizam
não só no Executivo nacional no cotidiano das “pessoas
comuns”. O efeito perverso dessas gotas de arsênico não podem
mais ser ignoradas, ainda mais em uma época no qual o
ativismo político se tornou o novo refúgio do canalha.

Se o astrólogo louco da Virgínia atualmente indica ministros


resta nos prepararmos seriamente para o que os filhos
intelectuais dele podem fazer de fato com o poder na mão. O
tempo de recorrer ao “isso não vai acontecer” já passou.

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