Este documento discute o novo chanceler brasileiro e seu artigo que faz referências perigosas a Heidegger e Evola. Ao longo do tempo, o bolsonarismo disseminou pequenas doses de veneno ideológico por meio da linguagem, normalizando visões extremistas. A nomeação do novo chanceler é preocupante pois revela como essas ideias se enraizaram no governo.
Este documento discute o novo chanceler brasileiro e seu artigo que faz referências perigosas a Heidegger e Evola. Ao longo do tempo, o bolsonarismo disseminou pequenas doses de veneno ideológico por meio da linguagem, normalizando visões extremistas. A nomeação do novo chanceler é preocupante pois revela como essas ideias se enraizaram no governo.
Este documento discute o novo chanceler brasileiro e seu artigo que faz referências perigosas a Heidegger e Evola. Ao longo do tempo, o bolsonarismo disseminou pequenas doses de veneno ideológico por meio da linguagem, normalizando visões extremistas. A nomeação do novo chanceler é preocupante pois revela como essas ideias se enraizaram no governo.
Victor Klemperer, em seu relato de como o “Nazismo se
embrenhou na carne e no sangue das massas por meio das palavras” LTI: A Linguagem do Terceiro Reich, afirma que “palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e aparentam ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar”. Processo similar se deu na tomada de poder pelo bolsonarismo com a disseminação de pequenas pílulas de veneno na linguagem de modo a mobilizar as pessoas em torno de uma nova chave de entendimento do mundo.
Parte desse novo vocabulário — que incluiu, e.g., comunismo,
gayzismo, globalismo, metacapitalismo — tem sua origem nos escritos de Olavo de Carvalho. Olavo conseguiu aliar temas e conceitos oriundos da Extrema Direita americana, de circulação restrita a livros e rádios do Bible Belt, com o catolicismo brasileiro anterior aos anos 60 que pode ser encontrado nos textos de figuras como Gustavo Corção. Em poucos anos, os problemas e as frustrações que acabaram por eclodir nas ruas com os protestos de 2013 foram sistematizados e explicados a partir de doses e mais doses de olavismo liberados a conta gotas pela internet para a grande população. Forneceu-se um vocabulário e um ordenamento para uma série de emoções e reações desencontradas contra o sistema político. Se chegamos ao ponto no qual, por exemplo, a crise do sistema de ensino público — gerenciado mas nunca resolvido pela esquerda no poder — tem como solução as ações do Escola sem Partido, (essa forma de maoísmo radical de Direita conforme Rosana Pinheiro-Machado), é pelo efeito cumulativo das pílulas da filosofia do caçador de ursos da Virginia.
Apesar desse processo silencioso ter sido um dos esteios da
eleição de Bolsonaro, talvez por pânico ou por despreparo intelectual, a esquerda insiste nos mesmos erros de antes. Exemplo maior é a recepção irônica diante da escolha do novo ministro das Relações Exteriores. Repete-se a mesma incredulidade em tons de superioridade que permitiu excluir o olavismo e seu enraizamento silencioso do radar político da esquerda. Confundiu-se política e seu funcionamento com uma banca de defesa de doutorado ou com resenhas de livros em cadernos culturais. Contudo, a política enquanto fenômeno de convencimento na maioria das vezes não funciona na chave do verdadeiro/falso.
Como efeito desse processo acumulativo de exposição ao
veneno, cada vez mais as pílulas nos chegam sem disfarces. Cada vez mais o que pode ou não ser dito abertamente se amplia de modo descarado. O texto do futuro chanceler, “Trump e Deus”, exemplifica isso. Não vou esmiuçar o artigo como um todo, mas apenas extrair dele uma ou duas doses do veneno que me parecem as mais tóxicas — e que assim como antes, são disseminadas de maneira irrisória e quase que anódinas.
O artigo “Trump e o Ocidente” após elaborar uma espécie de
soteriologia (parte da doutrina cristã que trata da história da salvação) que tem como principal agente Donald Trump, termina de forma bombástica com o seguinte trecho:
Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus
operando pela nação — inclusive e talvez principalmente a nação americana. Heidegger jamais acreditou na América como portadora do facho do Ocidente, considerava os EUA um país tão materialista quanto a União Soviética e incapaz da autopercepção metafísica indispensável à geração de um “novo começo”, como ele dizia, essa refundação do Ocidente que repetiria em outros termos o primeiro começo gerado pelos antigos gregos. Talvez Heidegger mudasse de opinião após ouvir o discurso de Trump em Varsóvia, e observasse: Nur noch Trump kann das Abendland retten, somente Trump pode ainda salvar o Ocidente.
Por certo a deificação do presidente americano via Heidegger
salta aos olhos, mas gostaria de destacar no trecho citado outra referência ao filósofo alemão. Em uma conferência de 1935, publicada em livro como Introdução à Metafísica, defende que as tendências da história mundial dominantes aquela época, a Rússia Bolchevique e os Estados Unidos, se articulam como uma “grande tenaz” para sufocar a Europa. Para ele, “metafisicamente Rússia e América são a mesma coisa” e ambas acabariam por levar a humanidade “as trevas do mundo, a fuga dos deuses, destruição da terra, massificação dos seres humanos”. Segundo seu biógrafo, Rüdiger Safranski, Heidegger via na “revolução nacional-socialista uma força de resistência” contra esse sinistro movimento de pinça da era moderna. Introdução à Metafísica reflete os juízos políticos de Heidegger após sua saída da Reitoria de Freiburgo, já sob o governo de Hitler. Apesar disso, o que se encontra no texto não é um afastamento das doutrinas do NSDAP e sim a demanda do filósofo em se colocar como o portador da “verdade intrínseca” e da “grandeza do Nacional-Socialismo” diante das perversões e distorções impostas ao nazismo por figuras como Alfred Rosemberg. Para o pesquisador Richard Wolin, a profunda atração de Heidegger pelo Nazismo partia da crença metafísica de que
Rússia e a América são o mesmo — exibem o mesmo ‘frensi
tecnológico’, a mesma organização limitada do Homem comum e só a Alemanha devido a sua relação mais primordial com o Pensamento do Ser […] possuía a capacidade para desviar o destino da Europa do espectro do declínio espiritual eterno. Assim, de acordo com um comentador, Heidegger acreditava ‘que a filosofia é a favor de Hitler, porque Hitler está no lado do Ser’
Além disso, segundo Wolin, muitas das virtudes vistas por
Heidegger no Nazismo eram decorrentes não de um conjunto positivo de propostas mas daquilo contra o NSDAP era contra: “partidos políticos (o Nacional-Socialismo sempre se esforçou por se apresentar a si mesmo como um ‘movimento’ em vez de um partido político, no sentido tradicional), ‘intelectualismo’, […] modernismo estético e ‘cosmopolitismo’”. Tais virtudes negativas — especialmente a anti-política — encontram grandes similaridades com frases de ordem que serviram para a legitimação do bolsonarismo: “contra tudo o que está aí” e “qualquer coisa, menos o PT”. O que dizer então de um artigo publicado em uma revista do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) — ligado ao Ministério das Relações Exteriores — de um futuro ministro que defende em termos heideggerianos que o papel de Donald Trump diante do globalismo é o mesmo do nacional-socialismo diante do capitalismo e do comunismo nos anos 1930?
Talvez essa referência a Heidegger e ao papel do Nazismo na
história seja a dose de arsênico mais perigosa e mais bem disfarçada no artigo do senhor Ernesto Araújo. Mas existe uma outra gota que merece ser colocada à luz, no caso, as referências a Julius Evola. O primeiro é citado em um trecho que glorifica a guerra, e não a tolerância, como fundamento da identidade ocidental. Descontando o efeito cômico em se ler um burocrata com “29 anos de carreira” em efusivas e quase que eróticas loas às glórias metafísicas da guerra, a referência a Evola traz de novo o nazismo ao texto. Segundo Nicholas Goodrick-Clarke “Na Itália, o elitismo aristocrático e as tradições ariano nórdicas esotéricas de Julius Evola inspiraram uma geração inteira de neofascistas no pós-guerra”. Evola tem para si os mesmos já conhecidos inimigos do nazismo: igualitarismo, democracia, liberalismo e os judeus. Os ideais baseados em um mítico passado indo-ariano se repetem: hierarquia, castas, autoridade, invocação de valores heroicos e sagrados da vida. Estes últimos, a propósito, se repetem por todo o artigo do futuro Ministro como valores a serem resgatados pela administração Trump.
O artigo é longo e nitidamente se jubila em citações das mais
disparatadas em uma espécie de desfile carnavalesco de autores e referências. O senso de urgência assim como o tom de trombeta anunciando a chegada de um messias revolucionário — mesmo que conservador — redunda em uma espécie de fanfarronice política travestida com a fleuma típica dos diplomatas. Mas o processo se repete: o grotesco, o aberrante e o non sense, que a princípio merecem apenas o escárnio da elite intelectual do país, embalam crenças que agora se entronizam não só no Executivo nacional no cotidiano das “pessoas comuns”. O efeito perverso dessas gotas de arsênico não podem mais ser ignoradas, ainda mais em uma época no qual o ativismo político se tornou o novo refúgio do canalha.
Se o astrólogo louco da Virgínia atualmente indica ministros
resta nos prepararmos seriamente para o que os filhos intelectuais dele podem fazer de fato com o poder na mão. O tempo de recorrer ao “isso não vai acontecer” já passou.