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Da América de Trump ao Brasil de Bolsonaro

Texto base: POGGIO, Carlos Gustavo. “Qual conservadorismo? Da América de


Trump ao Brasil de Bolsonaro”, O Estado da Arte, dezembro de 2018”

INTRODUÇÃO

O autor começa declarando que não existe um conservadorismo moderno


intelectualizado organizado no Brasil. Para Poggio o que existe é um sentimento
conservador difuso, daí a necessidade da família Bolsonaro, alçada ao poder,
importar esse “movimento conservador organizado” dos Estados Unidos. A
influência religiosa, comum ao Brasil e aos EUA, é o motivo de Bolsonaro ter se
ancorado no conservadorismo norte-americano e não no conservadorismo
europeu, “berço das ideologias modernas”. Recorre aos dados: “para 72% dos
brasileiros e 55% dos americanos a religião é considerada muito importante,
contra apenas 11%dos franceses e 10% dos britânicos”.

Por outro lado, o artigo de Ernesto Araújo, publicado em dezembro de 2018,


reforça o argumento de Poggio, pois para o futuro chanceler a sociedade europeia
é “um espaço culturalmente vazio (...) dominado por esnobes intelectuais”. Sem se
assustar muito com o que escreve Araújo, Poggio declara que o artigo citado foi
motivo de sua indicação para o cargo no governo Bolsonaro. No texto que fez
história, o atual presidente dos EUA é um “salvador de um Ocidente (...) cada vez
mais [afastado] de suas raízes cristãs”. E é no referido artigo que Poggio encontra
pistas para entender o motivo do Brasil ter importado o conservadorismo norte-
americano.

APANHADO HISTÓRICO PARA ENTENDER O CONSERVADORISMO DO PRESENTE


Então, para entender o conservadorismo brasileiro, é necessário conhecer
brevemente a história do movimento conservador nos Estados Unidos. O que
conhecemos como conservadorismo norte-americano era uma coalizão de várias
ideias desarticuladas que só vieram a se organizar a partir dos anos 1950 com a
criação da revista National Review, fundada por William Buckley, em 1955. Para
Buckley, a revista era necessária para enfrentar a esquerda que estaria
encastelada na academia e na mídia. Aqui já podemos perceber algumas
semelhanças com o momento político e cultural contemporâneo do Brasil e dos
EUA. A National Review propiciou o contato entre os intelectuais conservadores
que na época circulavam em torno de duas perspectivas: os libertários e os
tradicionalistas. Intelectuais austríacos, da chamada “Escola Austríaca”,
representavam os primeiros. Mises e Hayek, criticavam o intervencionismo estatal
e subsidiaram intelectualmente a defesa do livre mercado em um EUA sob o New
Deal de Roosevelt. O clássico de Russell Kirk The Conservative Mind, 1953, é
considerado um dos textos fundadores do moderno conservadorismo norte-
americano. Mais do que os efeitos econômicos, os conservadores estavam
ocupados em analisar os efeitos sociais e políticos do totalitarismo e da própria
democracia. Defendiam a tradição cristã ocidental ameaçada pela modernidade.
Esses tradicionalistas, pouco afeitos às discussões econômicas, voltavam-se para
“extratos intermediários” como a família e associações comunitárias e religiosas.
Já os libertários defendiam a “ordem espontânea”, o individualismo comum
aqueles que defendem o livre mercado. Segundo o artigo de Poggio, ambos,
libertários e conservadores, marcavam posição, fazendo questão de se
diferenciarem: Kirk não gostava de ser associado aos valores do “businessmen” e
Hayek diferenciava-se em artigo com título que não deixava dúvidas, Por que não
sou um conservador.

Retomando Buckley e sua revista National Review, a tarefa de decantar um


conservadorismo livre de expressões indesejáveis (racismo, teorias da conspiração
ou ateísmo militante) não foi uma tarefa fácil. A preocupação de Buckley era
limpar o movimento de adjetivos e expressões indesejáveis, visando uma imagem
do conservadorismo que o levasse a “vencer as eleições e reeducar a classe
governante”. O expurgo intelectual teve com resultado a fusão de ideias libertárias
e tradicionalistas que ficou conhecida como “fusionismo”, com características
marcadamente norte-americanas. O livro In Defense of Freedom: A conservative
Credo, de Frank Mayer, 1962, contribuiu para essa espécie de reinvenção de
tradições que objetivava, segundo Meyer, conciliar a liberdade individual com uma
ordem moral religiosa, abrindo espaço para um caminho em que a moralidade
tradicional e o livre mercado andassem de mãos dadas, rumo ao conservadorismo
moderno estadunidense.

O anticomunismo abertamente vinculado à Guerra Fria abençoou essa união que


marcou o conservadorismo da segunda metade do século XX. Estava aberto o
caminho para um internacionalismo na política externa que derrotou isolacionistas
como Robert Taft, derrotado por Eisenhower nas primárias do Partido Republicano
em 1952. Poggio aponta a dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria
como os grandes fatos políticos que expuseram as fissuras camufladas sob o
fusionismo inaugurado por Buckley. Em se artigo, Poggio descreve uma curiosa
fissão ocorrida a partir da década de 1970: trotskystas nova-iorquinos e de origem
judaica de um lado e conservadores sulistas e católicos de outro. Os primeiros
defendiam um ativo internacionalismo promotor da democracia ao redor do
planeta, via intervenção militar, e os segundos uma espécie de isolacionismo em
um só país. Esses, de matiz religiosa e cristã, ficaram conhecidos como
paleoconservadores. Já os neocons, que obtiveram influência no governo Reagan,
defendiam uma firme intervenção militar, por exemplo, na Guerra do Golfo. Nesse
contexto, surge um personagem curioso: Pat Buchanan, um crítico da guerra que
disputou as primárias de 1992 com temas centrais do paleoconservadorismo:
nacionalismo, isolacionismo, protecionismo econômico, combate ao
multiculturalismo, defesa de valores tradicionais e uma forte postura anti-
imigraçao. Era representante de uma minoria que só começou a ser ouvida depois
da impopularidade da Guerra do Iraque que marcou a administração Bush. A
mesma guerra que junto a crise financeira de 2008 e a reação à administração
Obama, acabaram por implodir o equilíbrio entre os dois setores arquitetado por
Buckley nos anos 1950.

RETOMANDO O CONSERVADORISMO DE TRUMP E BOLSONARO


O texto de Ernesto Araújo, segundo Poggio, nos dá pistas para entender o
conservadorismo de Trump que agrada os novos conservadores bolsonaristas:
enxergar no cristianismo a base filosófica para a salvação do Ocidente decadente,
ameaçado pelo multiculturalismo baseado no marxismo cultural. O vitorioso
Araújo se aproxima do derrotado Buchanan ao apontar o marxismo cultual como
responsável pela “morte” do Ocidente civilizado. Interessante a análise de Poggio
para entender renitentes posturas do bolsonarismo quando esse defende um
isolacionismo econômico bastante criticado por uma direita brasileira
contemporânea (neocons tupiniquins?), baseada no PSDB e congêneres, que
defendem uma posição mais cosmopolita e integrada à economia internacional e
não apenas vinculada aos interesses norte-americanos de Donald Trump. Com
uma espécie de conservadorismo em um só país, Araújo defende o nacionalismo
de Trump que não tem tanto interesse em impor a democracia a outros países.
Atento, Araújo não faz menção ao livre mercado ou ao capitalismo ficando
próximo das correntes intelectuais conservadoras pré-Guerra Fria.

Feita essa breve análise histórica à luz do artigo de Ernesto Araújo, Poggio começa
a dar a linha para o “nascente movimento conservador brasileiro” assume sua face
buckleyliana ao propor que os conservadores brasileiros têm que “harmonizar o
liberalismo guedista com o paleoconservadorismo araujista”. A diferenciação entre
“globalização” e “globalismo” ajudaria nessa operação política sob o governo
Bolsonaro. O “globalismo” seria um fenômeno mais politico que econômico.
Então, estaríamos próximos da realidade do conservadorismo norte-americano
dos anos 1950. O “nascente conservadorismo brasileiro” teria a sua Guerra Fria, o
antipetismo. A diferença é que o conservadorismo brasileiro não teve tempo de
construir um conservadorismo estilo buckleyliano. Diferente de conservadorismo
que levou Reagan ao poder, após décadas de acumulo de forças, Bolsonaro
ganhou as eleições sem que o equilíbrio buckleyliano se estabelecesse no Brasil: o
“nascente conservadorismo brasileiro” teria que trocar o pneu como carro
andando. Mas para Poggio as coisas também não estariam fáceis para o
conservadorismo de Trump, pois as redes sociais instauraram uma cacofonia que
abriu espaços para setores conservadores marginalizados semelhantes aos que
Burkley queria sanitarizar nos anos 1950. Daí a importância dos conservadores
brasileiros entenderem a história do conservadorismo norte-americano: “Se na
ausência de base intelectual própria, vamos importar o conservadorismo dos
Estados Unidos, devemos ao menos saber o que estamos importando”.

A ausência de um grupo robusto de intelectuais conservadores no Brasil abre


espaço para figuras como Olavo de Carvalho: “Quem não tem Kirk caça com
Carvalho”, escreve Poggio. Também não existe no país de Bolsonaro um partido de
peso que se identifique como abertamente conservador. Poggio conclui o artigo
lamentando que Araújo se preocupe mais com filosofia política do que com a
aplicabilidade das ideias e, curiosamente, sugere que o chanceler troque a leitura
de Iliada por The Art of the Deal.

Buckleyliana

encontravam suas principais opções

Importantes notar que o texto foi escrito em dezembro de 2018, antes da posse do
presidente eleito.
O boné usado pelo lho de Jair Bolsonaro em recente viagem aos Estados Unidos
não é a única coisa com o nome Trump que está na cabeça da família do futuro
presidente e seus assessores. A julgar por uma série de declarações, tanto antes
como após as eleições, as ideias do presidente americano também têm adornado
as cabeças dos bolsonaristas. Claro que não se trata aqui das ideias do indivíduo
Trump, que não é exatamente um intelectual, mas daquilo que ele representa.
Parte da narrativa de integrantes do futuro governo, em especial dos responsáveis
pela política externa, é que o governo deve reetir os valores da maioria da
sociedade brasileira, e esses valores seriam em grande medida conservadores. O
problema é que inexiste um conservadorismo moderno intelectualmente
organizado no Brasil, fato reconhecido até mesmo por Olavo de Carvalho, o
intelectual que mais tem tido aderência na equipe do presidente-eleito. Ou seja,
uma coisa é um sentimento conservador difuso na sociedade, outra é o
conservadorismo organizado que traduza intelectualmente esse sentimento e lhe
dê uma direção. A solução bolsonarista para a ausência de um movimento
conservador organizado no Brasil tem sido, aparentemente, importá-lo dos
Estados Unidos. Portanto, torna-se fundamental compreender a evolução do
movimento conservador naquele país – bem como que tipo de conservadorismo é
representado por Trump – se quisermos entender o que se passa atualmente em
terras tupiniquins. Antes de mais nada, a primeira questão a ser enfrentada é a
seguinte: para além da declarada admiração da família Bolsonaro ao presidente
americano, quais as razões para a nova direita brasileira buscar inspiração nos
Estados Unidos e não na Europa, berço das ideologias modernas? Creio que a
resposta passa pelo fato de que, ao contrário da direita americana, a europeia
tende a ser menos confortável com a inuência religiosa. Marine Le Pen, que se
distanciou de Bolsonaro durante a campanha, provavelmente concordaria apenas
com metade do slogan de campanha do então candidato – “Brasil acima de tudo”
– dado que compartilha com o nacionalismo representado por essa frase.

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