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Precisamos falar sobre o (neo)conservadorismo no Brasil.

Felipe Araújo Castro1

As análises da última eleição são mais ou menos consensuais no


seguinte diagnóstico: teremos um Congresso Nacional ainda mais conservador
em 2019, isso tendo em vista que sua atual composição já é considerada a
mais conservadora da atual experiência republicana.
Isso se dará por meio da representação expressiva do Partido Social
Liberal (PSL) – que saltou de apenas um deputado para a segunda maior
bancada (52) – e a ampliação de representantes dos setores militares,
evangélicos, ruralistas, frequentemente associados às pautas lidas como
conservadoras. Essa, aliás, será uma característica própria da próxima
legislatura: serão as pautas conservadoras e não os partidos propriamente
ditos, que aglutinarão os representantes. A chefia do Executivo, por sua vez,
passa a ser ocupada pela extrema direita, igualmente conservadora, em uma
expressão nacional-populista.
Se o diagnóstico estiver correto e o Brasil efetivamente tiver sido tomado
por uma onda conservadora, o que exatamente isso significa?
Para compreender melhor o fenômeno é preciso dar dois passos atrás, e
ir à gênese do pensamento conservador. O conservadorismo é uma espécie de
primo pobre, menos afamado, das duas principais correntes ideológicas
herdeiras do iluminismo, o liberalismo e o socialismo; diferencia-se das duas
por se opor ao que elas têm em comum: a crença no progresso. Naturalmente,
as duas correntes ideológicas2 têm pressupostos e propósitos muito distintos.
Portanto, “um traço elementar a qualquer posição conservadora é sua
desconfiança perante a ideia segunda a qual a sociedade pode ser objeto da
aplicação de um plano”.3 Trata-se de uma corrente de pensamento menos
famosa, por isso menos estudada, por que tem como característica ser
reacionária, não costuma liderar projetos de governo ou aglutinar grande
movimentos sociais em torno de suas bandeira. É reacionário no sentido que

1Doutor em Direito pela UFMG e Professor da UFERSA. 064.223.624-04. Rua Brigadeiro Salema, 1320,
Casa 91, Bairro Costa e Silva, Mossoró-RN. (84) 98180-8108. felipeacastro@gmail.com.
2
O termo ideologia é entendido aqui como um sistema coerente e racional de princípios,
valores e crenças, que compõe uma visão de mundo compartilhada, com a capacidade de
agregar agentes em torno uma ação política com intencionalidade e finalidade.
3
CASTELLO-BRANCO, José Tomaz. Conservadorismo. In: João Cardoso Rosas e Ana Rita
Ferreira (Orgs.). Ideologias políticas contemporâneas. Coimbra: Almedina, 2016, p. 156.
não é comum ver conservadores reunidos em torno de um propósito
compartilhado; o que os une e os faz agir é muito mais o inimigo em comum e
as ameaças postas contra a ordem estabelecida.
Assim como não é possível reduzir o liberalismo ou o socialismo a uma
única corrente também é necessário abordar os conservadorismo em toda sua
complexidade. No quadro da modernidade européia, a gênese do pensamento
conservador iniciou-se em torno de partidos que se organizaram por reação as
revoluções liberais, com o partido Tory na Inglaterra do século XVII e o partido
da Restauração na França pós-revolucionária,4 é dizer, pretendiam conservar
certa relação de poderes e instituições após a derrubada das estruturas do
antigo regime e da emancipação política dos cidadãos.
Ser conservador no “Novo Mundo”, sobretudo num país como o Brasil,
que não passou por uma revolução burguesa propriamente dita, nem realizou
transições entre regimes políticos que rompessem com o passado colonialista,
patrimonialista, autoritário e escravocrata, assume um sentido completamente
diferente. Em resumo, a filiação em termos teóricos pode até ser racional e
coerente, mas em sentido prático pode ser demasiadamente injusta.
A renovação do pensamento conservador durante o século XX, na
Europa Ocidental, assumiu a forma de uma terceira via entre o liberalismo e o
socialismo, buscando uma espécie de síntese possível entre as duas posições.
A democracia cristã na Alemanha, por exemplo, a partir do ordo-liberalismo da
escola de Freiburg, introduziu a ideia de uma economia social de mercado por
meio da intervenção estatal que objetivava mitigar os malefícios de uma política
liberal mais ortodoxa. A denominada via média do partido Tory na Inglaterra,
por sua vez, estava a meio caminho entre o capitalismo livre e o planejamento
social. O que esses projetos defendiam era “a evolução pacífica de um
capitalismo livre para um capitalismo planejado”.5
Do lado de cá do Atlântico a história seria outra. É nos Estados Unidos
da América que a renovação do conservadorismo assumirá formas
semelhantes à ideologia que hegemonizou as eleições brasileiras de 2018.
Abandonando o campo da regulação da economia, uma série de autores
endossarão projetos de regulação da moral e dos costumes, a partir da leitura

4
Para uma leitura imanente da gênese do pensamento conservador ver BURKE, Edmund.
Reflections on the Revolution in France. Londres: Penguin Books, 2004. [1 ed. 1790]
5
MACMILLAN, Harold. The middle way: a study of the problem of economic and social
progress in a free and democratic society. Londres: Macmilla, 1938.
que o grande “mal” do Ocidente seria a profunda crise de valores que destrói
as fundações da moralidade social.
O marco dessa virada, agora chamada neoconservadora, é considerado
o livro de Alan Bloom, The closing of the american mind, de 1987. Para o
referido autor, essa crise moral era especialmente sentida nas universidades
estadunidenses que, ao invés de cumprirem seu papel de “bastião da cultura e
da civilização”, tinham se tornado um campo de batalha de ideologias
revolucionárias. Para Bloom, as universidades nos EUA passavam por um
processo de desmantelamento semelhante ao ocorrido com as elites
intelectuais alemãs nos anos 1930, o que, por sua vez, havia contribuído para a
ascensão do fascismo naquele país.6
O diagnóstico foi reforçado por intelectuais públicos como os sociólogos
Charles Murray e Robert Putman, o economista Francis Fukuyama, Michael
Novak etc. Segundo Castello-Branco, o traço comum desses trabalhos era o
alerta para a desestruturação da família americana (biparental e nuclear), o que
resultava em uma ameaça a própria sociedade estadunidense. Esse grupo de
intelectuais demandava o fim das políticas de descriminação positiva e maior
liberdade de escolha individual, especialmente da liberdade de empreender. A
função do Estado deveria ser a promoção das virtudes morais consideradas
ameaçadas.7
O avanço das extremas direitas neoconservadoras ao redor do mundo é
comumente associado aos ciclos das crises do capitalismo, mas a explicação
economicista não da conta do fenômeno como um todo, visto que países que
sofreram intensamente com a crise mais recente (Portugal, Espanha e Grécia),
não têm partidos de extrema-direita relevantes, enquanto países historicamente
estáveis contam com essas siglas (Suíça, Áustria).
Ao analisar a extrema direita européia contemporânea, Michel Löwy
defende que, apesar de manifestarem-se de maneiras muito distintas – desde
partidos abertamente neonazistas até grupos integrados ao jogo político
institucional –, esses projetos têm em comum um nacionalismo chauvinista,
que é contrário à globalização cosmopolita ou regionalista e é complementado

6
BLOOM, Allan. The closing of the american mind. Nova Iorque: Simon and Schuster, 1987,
p. 310 e ss.
7
CASTELLO-BRANCO, José Tomaz. Conservadorismo. In: João Cardoso Rosas e Ana Rita
Ferreira (Orgs.). Ideologias políticas contemporâneas. Coimbra: Almedina, 2016, p. 166.
por uma retórica social de apoio à classe trabalhadora, desde que branca e
nacional.
Já na Europa Oriental o fenômeno assume algumas particularidades
que, a nosso ver, o aproximam da expressão do novo conservadorismo
brasileiro, desde que feitas as devidas mediações. Nas antigas “democracias
populares” o bode expiatório é menos o imigrante estrangeiro do que as
minorias nacionais – frequentemente atacadas por milícias civis que apóiam e
são toleradas pelas organizações e governos de extrema direita –, há ainda
nesses movimentos um forte componente anticomunista; um sentimento que foi
impulsionado pelos fracassos das suas transições para o capitalismo, lideradas
por liberais ou social-democratas.8
No Brasil, a extrema-direta e o neocoservadorismo emulam várias das
características descritas acima, mas sempre de uma maneira farsesca, as
vezes quase cômica. Dos movimentos da Europa Oriental reproduzem a luta
contra o comunismo e o antagonismo às minorias, mas num país que nunca
teve um governo comunista, ou mesmo esteve sob a ameaça efetiva de um
levante “vermelho”. Do debate norte-americano, com meio século de atraso,
ressuscitam o discurso sobre a necessidade de combater os “ativismos”, que
teriam hegemonizado as universidades por meio do “marxismo cultural” e
seriam responsáveis pela degradação dos valores da verdadeira Nação
brasileira.
Por fim, mas com o sinal contrário em relação aos partidos da Europa
Ocidental, seu nacionalismo populista é neoliberal e cosmopolita, pretendendo
preterir as indústrias e o emprego nacional pelo regresso as relações
econômicas norte-sul, num papel de clara subserviência aos interesses dos
EUA.
Portanto, nem todo conservador pertence e se identifica com a extrema-
direita, ainda que, em função da atual conjuntura política e econômica, tenham
formado um grande bloco que veio a eleger esse projeto. Eu iria além, a
manifestação do neoconservadorismo brasileiro, ultraliberal, neopetencostal e
militarista, sequer é compatível com o pensamento conservador.9

8
LÖWY, Michael. Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. Serv. Soc. Soc.,
n. 124, pp. 655 e ss, 2015.
9
“É nesta sua faceta prosélita que o neo-conservadorismo melhor se identifica e se distingue
dos conservadores tradicionais, que rejeitam qualquer familiaridade com aqueles. Os
conservadores rejeitam sobretudo a pequenez e a estreiteza de vistas do moralismo neo-com
Como vimos, em sua origem, o conservadorismo é um pensamento
materialista – construído a partir das relações sociais como dadas –, avesso às
utopias liberais e socialistas, mas que de maneira nenhum objetivava caminhar
para trás, antes, defendia sim o progresso, ainda que mais lento do que muitos
gostariam e em respeito a certas instituições tidas como culturalmente
tradicionais. O projeto neoconservador brasileiro é claramente contrário a essa
visão, ao estabelecer a sua utopia num passado falseado, o Brasil de 40 anos
atrás, onde supostamente estávamos seguros e livre da corrupção – nas
palavras do próprio Bolsonaro.10
A crença idealista que determinadas pautas progressistas se imporiam à
sociedade brasileira com o passar do tempo, pela simples justeza de seus
ideais, fez com que a esquerda brasileira – e parte da direita liberal –
ignorassem o diálogo com parte significativa da população brasileira,
transformando o termo “conservador” numa espécie de adjetivo detrator do
interlocutor.
Concretizada a tragédia anunciada, agora é imprescindível reconstruir as
pontes que foram queimadas, se engajar no debate de forma dialógica e
comprometida, de forma a favorecer a separação do joio do trigo,
demonstrando que, apesar da expressiva votação de Jair Messias Bolsonaro,
seu projeto é uma ponte para o passado e não representa os anseios da
maioria da população brasileira.

e, em particular, não gostam de ser associados a programas doutrinários de libertação”.


CASTELLO-BRANCO, José Tomaz. Conservadorismo. Ob. Cit., p. 166.
10
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/objetivo-e-fazer-brasil-como-era-
a-40-50-anos-atras-diz-bolsonaro.shtml. Acesso em 01 de novembro de 2018.

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