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10 Anthony Giddens

Tenho uma dívida particular para com Alena Ledeneva, que


não só contribuiu amplamente para o livro como um todo mas
me estimulou a prosseguir sempre que me sentisse desen-
corajado — o que aconteceu muitas vezes.

1
Socialismo e depois

Em fevereiro de 1998, em seguida a um seminário sobre polí-


tica com os líderes americanos em Washington, Tony Blair falou
de sua ambição de criar um consenso internacional de centro-
esquerda para o século XXI. À nova abordagem iria desenvol-
wver uma estrutura política para reagir à mudança na ordem
global. “A velha esquerda resistiu a essa mudança. A nova di-
reita não a quis administrar. Temos de administrar essa mu-
dança para produzir solidariedade e prosperidade sociais.”'
Trata-se de uma tarefa tremenda, pois, como estas afirmações
indicam, as ideologias políticas preexistentes perderam sua
ressonância,

Cento e cinqiienta anos atrás, Marx escreveu que “um


espectro ronda a Europa” — o espectro do socialismo ou
comunismo, Isso permanece verdade, mas por razões di-
ferentes das que Marx tinha em mente. O socialismo e o
comunismo sucumbiram, e no entanto continuam nos as-
sombrando. Não podemos simplesmente pôr de lado os
valores e os ideais que os moveram, pois alguns permane-
cem intrínsecos à boa vida cuja criação é a meta do desen-
volvimento social e econômico. O desafio é fazer esses va-

"Tony Blair, entrevista, Greardian, 7 de Eevereico de 1998.


12 Anthony Giddens

lores contarem onde o programa econômico do socialismo


caiu em descrédito.

Hoje as idéias políticas parecem ter perdido sua capaci-


dade de inspirar e os líderes políticos sua capacidade de lide-
rar. O debate público é dominado por temores acerca dos pa-
drões morais declinantes, das crescentes divisões entre ricos
e pobres, das pressões que pesam sobre o estado de bem-es-
tar social, o welfare state. Os únicos grupos que parecem re-
solutamente otimistas são os que põem sua fé na tecnologia
para resolver nossos problemas. Mas a mudança tecnológica
tem conseqiiências ambíguas e, de qualquer maneira, a tecno-
logia não pode fornecer uma base para um programa político
eficaz. Para que o pensamento político recupere suas qualida-
des inspiradoras, ele não deve ser simplesmente reativo nem
ficar confinado ao cotidiano e ao provinciano. A vida política
não é nada sem ideais, mas os ideais são vazios quando não se
relacionam com possibilidades reais. Precisamos saber tanto
que tipo de sociedade gostaríamos de criar quanto quais são
08 meios concretos para nos aproximarmos dela. Este livro pro-
cura mostrar como esses fins podem ser alcançados e o idea-
lismo político revivido.

Meu principal ponto de referência é a Grã-Bretanha, em-


bora muitas de minhas argumentações tenham um âmbito mais
vasto. No Reino Unido, como em muitos outros países no
momento, a teoria está em atraso em relação à prática. Des-
pojados das velhas certezas, governos que proclamam repre-
sentar a esquerda estão criando política sem pensar no que
estão fazendo. É preciso pôr carne teórica no esqueleto de sua

prática política — não apenas para endossar o que estão fa- -

zendo, mas para fornecer aos políticos maior senso de dire-


ção e propósito. Pois a esquerda, é claro, sempre esteve ligada
ao socialismo e, pelo menos como um sistema de administra-
ção econômica, o socialismo não existe mais.

A terceira via 13
A morte do socialismo

As origens do socialismo estiveram atadas ao desenvolvimen-


to da sociedade industrial, em algum ponto entre meados e fins
do século XVIII. O mesmo se aplica a seo principal oponente,
o conservadorismo, que foi moldado em reação à Revolução
Francesa. O socialismo começou como um corpo de pensamen-
to que se opunha ao individualismo; sua preocupação em de-
senvolver uma crítica do capitalismo veio mais tarde. Antes
de assumir um significado muito específico com a ascensão da
União Soviética, o comunismo se sobrepunha extensamente
ao socialismo, um e outro empenhados em defender o prima-
do do social on do comunal.

O socialismo foi antes de mais nada um impulso filosófico


e ético, mas bem antes de Marx ele começou a adotar as rou-
pagens de uma doutrina econômica. Foi Marx, contudo, que
forneceu ao socialismo uma teoria econômica elaborada, Foi
também ele que situou o socialismo no contexto de uma ex-
posição abrangente da história, A posição básica de Marx veio
a ser partilhada por todos os socialistas, por intensas que fos-
sem suas outras divergências. O socialismo procura enfrentar
as limitações do capitalismo para humanizá-lo ou derrubá-lo
por completo. À teoria econômica do socialismo apóia-se na
idéia de que, deixado por sua própria conta, o capitalismo é
economicamente ineficiente, socialmente divisório e incapaz
de se auto-reproduzir a longo prazo.

À idéia de que o capitalismo pode ser humanizado medi-


ante uma administração econômica socialista confere ao so-
cialismo toda a vantagem que ele possui, mesmo que tenham
havido diferentes explicações de como tal meta poderia ser
alcançada. Para Marx, o socialismo se mantinha ou sucumbia
por sua capacidade de dar origem a uma sociedade que iria
gerar maior riqueza que o capitalismo e distribuir essa rique-
14 Anthony Giddens
za de maneira mais eqilitativa, Se o socialismo está morto hoje,
é precisamente porque essas pretensões soçobraram. Elas o
fizeram de uma maneira singular. Por cerca de um quarto de
século após a Segunda Guerra Mundial, o planejamento soci-
alista parecia ter chegado para ficar tanto no Ocidente quan-
tono Oriente. Um eminente observador da economia, E. F. M.
Durbin, escreveu em 1949; “Agora somos todos Planejadores
(...) O colapso da crença popular no laisser faire avançou com
rapidez espetacular (...) pelo mundo todo desde a guerra"?
O socialismo no Ocidente começou dominado pela social-
democracia — socialismo moderado, legislativo — fundamen-
tado na consolidação do welfare state, Na maioria dos países,
inclusive a Grã-Bretanha, o swelfare state foi uma criação tan-
to da direita quanto da esquerda, mas no período do pós-guerra
os socialistas passaram a reivindicá-lo como seu. Pelo menos
durante algum tempo, até os planejamentos muito mais abran-
gentes adotados nas sociedades de estilo soviético pareciam
economicamente eficazes, ainda que sempre politicamente
despóticos. Sucessivos governos americanos na década de
1960 levaram a sério a alegação de que a União Soviética po-
deria superar os EUA economicamente no prazo de trinta anos.
Ao avaliarmos o passado, podemos entender com muita
clareza por que a União Soviética, longe de superar os EUA,
caiu à níveis drasticamente inferiores 205 americanos, e por
que a social-democracia defrontou suas próprias crises. À
teoria econômica do socialismo sempre foi inadequada, subes-
timando a capacidade do capitalismo de inovar, adaptar e ge-
rar uma produtividade crescente. O socialismo foi também in-
capaz de compreender o significado dos mercados como fontes
de informação, que fornecem dados essenciais a comprado-
res e vendedores. Essas inadequações só se revelaram plena-

E, E M. Durbin: Problems of Ecomonic Plamuíveg. Londres: Roudedge, 1949, p. 41.

À terceira via 15

mente com a intensificação dos processos de globalização e


de mudança tecnológica a partir do início da década de 1970.

Ao longo do período iniciado em meados da década de


1970, muito antes da queda da União Soviética, a social-de-
mocracia foi crescentemente desafiada por filosofias de livre
mercado, em particular pela ascensão do thatcherismo ou do
reaganismo — mais genericamente designado como neoli-
beralismo. No período anterior, a idéia de mercados libera-
lizantes parecia pertencer ao passado, a uma era que fora su-
perada. Antes vistas como excêntricas, as idéias de Friedrich
von Hayek, o mais destacado defensor dos livres mercados, e
de outros críticos do socialismo partidários do livre mercado
tornaram-se de repente uma força a ser seriamente conside-
rada. O neoliberalismo causou menos impacto sobre a maio-
ria dos países da Europa continental do que sobre a Grã-
Bretanha, os EUA, a Austrália e a América Latina. Mesmo
assim, no contineênte europeu, como em toda parte, filosofias
de livre mercado tornaram-se influentes,

As categorias de “social-democracia" e “neoliberalismo”


são amplas e abrangeram grupos, movimentos e partidos de
diferentes convicções, ainda que um tenha influenciado o ou-
tro, por exemplo, os governos de Ronald Reagan e Margaret
Thatcher adotaram políticas diferentes em alguns contextos,
Assim que chegou ao poder, Thatcher não tinha uma ideolo-
gia madura, que foi desenvolvida à medida que ela avançou.
Políticas thatcheristas adotadas por partidos de “esquerda”,
como na Nova Zelândia, puseram importantes crenças políti-
cas num novo molde. Além disso, o neoliberalismo tem duas
vertentes. A principal é conservadora — a origem da expres-
são “a nova direita”. O neoliberalismo tornou-se a perspecti-
va de muitos partidos conservadores pelo mundo inteiro, No
entanto, há um importante tipo de pensamento associado com
filosofias de livre mercado que, em contraste com o conser-
16 Anthony Giddens

vador, é libertário tanto em questões econômicas quanto em


questões morais. Diferentemente dos conservadores thatche-
ristas, por exemplo, os libertários defendem a liberdade se-
xual ou a descriminação de drogas.

Social-democracia é um termo ainda mais amplo e mais


ambíguo. Eu o utilizo para designar partidos e outros grupos
da esquerda reformista, inclusive o Partido Trabalhista britã-
nico. No início do período pós-guerra, social-democratas de
muitos países diferentes partilharam uma perspectiva basica-
mente similar. É a isso que vou me referir como social-demo-
cracia do velho estilo ou clássica. Desde a década de 1980, em
resposta à ascensão do neoliberalismo e aos problemas do
socialismo, os social-democratas em toda parte começaram a
romper com esse ponto de vista anterior.

Na prática, os regimes socialdemocráticos variaram subs-


tancialmente, assim como variaram os sistemas de welfire que
eles alimentaram. Os uelfare states europeus podem ser divi-
didos em quatro grupos institucionais, todos os quais têm ori-
gens históricas, objetivos e estruturas comuns:

e (O sistema do Reino Unido, que enfatiza os serviços sociais


e a saúde, mas tende também a ter benefícios dependentes
da renda.

* Os welfare states escandinavos ou nórdicos, que têm uma


base de impostos muito elevada, são de orientação univer-
salista, fornecem benefícios generosos e serviços estatais
adequadamente mantidos, incluindo a assistência à saúde.

e Os sistemas da Europa Central, que têm um compromisso


relativamente tênue com serviços sociais, mas benefícios
bem providos em outros aspectos, financiados sobretudo
pelo emprego e baseados em contribuições para a previdên-
cia social,
e Os sistemas da Europa Meridional, semelhantes na forma

A terceira via 17

aos da Europa Central, mas menos abrangentes, que pagam


níveis mais baixos de pensões e aposentadorias,”

Levando em consideração a todas estas variações, a social-


democracia clássica e o neoliberalismo representam duas ten-
dências de filosofias políticas absolutamente diferentes. Re-
sumo as diferenças nos dois quadros a seguir.

Social-democracia clássica (a velha esquerda)

Envolvimento difuso do Estado na vida social e


econômica

Domínio da sociedade civil pelo Estado

Coletivismo

Administração keynesiana da demanda, somada


ao corporativismo

Papéis restritos para os mercados: a economia


mista ou social

Pleno emprego

Forte igualitarismo

Welfare state abrangente, protegendo os


cidadãos “do berço ao túmulo"

Modernização linear

Baixa consciência ecológica

Internacionalismo

Pertence ao mundo bipolar

Frite W. Scharpf: “Flexible integratioo", em lan Christie: Euro Visions. Lomdres:


Demos, 1998.
18 Anthony Giddens

Thatcherismo, ou neoliberalismo (a nova


direita)

Governo mínimo

Sociedade civil autônoma

EFundamentalismo de mercado
Autoritarismo moral, somado a forte
individualismo econômico

Mercado de trabalho se depura como qualquer


outro

Aceitação da desigualdade

Nacionalismo tradicional

Welfare state como uma rede de segurança

Modernização linear

Baixa consciência ecológica

Teoria realista da ordem internacional

Pertence ao mundo bipolar.

Comparações genéricas deste tipo correm um óbvio risco


de caricaturar. No entanto os contrastes assinalados aqui são
reais e importantes e os resíduos da social-democracia clássi-
ca ainda são fortes por toda parte.

Social-democracia do velho estilo

A social-democracia do velho estilo via o capitalismo de livre


mercado como o gerador de muitos dos efeitos problemáticos
que Marx diagnosticara, mas acreditava que era possível
emudecê-los ou superá-los pela intervenção do Estado no

À terceira vila 19

mercado. O Estado tem a obrigação de fornecer bens públi-


cos que os mercados não podem suprir, ou só o podem fazer
de maneira fragmentada. Uma forte presença do governo na
economia, e também em outros setores da sociedade, é nor-
mal e desejável, uma vez que, numa sociedade democrática, o
poder público representa a vontade coletiva. A tomada de
decisão coletiva, envolvendo governo, empresariado e sindi-
catos, substitui em parte os mecanismos de mercado.

Para a social-democracia clássica, o envolvimento do gover-


no na vida da família é necessário e digno de aplausos. Benefí-
cios estatais são essenciais para o auxílio a famílias em necessi-
dade, e o Estado deveria intervir onde quer que indivíduos, por
uma razão ou outra, sejam incapazes de se defender por si
mesmos, Com algumas exceções óbvias, 05 social-democratas
do velho estilo eram propensos a desconfiar de associações
voluntárias. Tais grupos freqiientemente fazem mais mal do que
bem porque, comparados com os serviços sociais fornecidos
pelo Estado, tendem a ser não profissionais, e a ser erráticos e
condescendentes para com aqueles com quem lidam.
John Maynard Keynes, a inspiração econômica do con-
senso do welfare no pós-guerra, não era um socialista; parti-
lháva, contudo, de algumas idéias que Marx e o socialismo
enfatizavam, Como Marx, Keynes encarava o capitalismo
como dotado de qualidades irracionais, mas acreditava que
seria possível controlá-las para salvar o capitalismo de si mes-
mo. Marx e Keynes tendiam ambos a não ter dúvidas quan-
to à produtividade do capital. O fato de a teoria keynesiana
prestar relativamente pouca atenção ao aspecto da oferta na
economia combinava bem com as preocupações social-demo-
cráticas. Keynes mostrou como o capitalismo de mercado
poderia ser estabilizado por meio da administração da deman-
da e da criação de uma economia mista. Embora ele não a
aprovasse, uma característica da economia mista na Grã-
20 Anthony Giddens

Bretanha foi a estatização. Alguns setores econômicos deve-


riam ser retirados do mercado, não só por causa das defici-
ências dos mercados, mas porque indústrias fundamentais
para o interesse nacional não deveriam ficar em mãos pri-
vadas.

A busca da igualdade foi uma preocupação dominante de


todos os social-democratas, incluindo o Partido Trabalhista
britânico. Uma maior igualdade deve ser alcançada mediante
várias estratégias de nivelamento. A tributação progressiva, por
exemplo, através do welfare state, tira dos ricos para dar aos
pobres. O welfare state tem dois objetivos: criar uma socieda-
de mais igual, mas também proteger os indivíduos ao longo do
ciclo da vida. As primeiras medidas de melfare, datadas do
século XIX, foram introduzidas por liberais ou conservado-
res, é muitas vezes foram combaridas pela classe trabalhado-
ra organizada. O welfare do pós-guerra, no entanto, tem em
geral uma forte base entre a classe operária, que até vinte anos
atrás foi a principal fonte de apoio eleitoral para os partidos
social-democrartas.

Até os reveses do final da década de 1970, a social-demo-


cracia seguiu em toda parte um modelo linear de moderniza-
ção— a “via do socialismo”. O que foi talvez o intérprete mais
eminente da ascensão do rmwelfare state na Grã-Bretanha, o
saciálogo T. H. Marshall, forneceu uma convincente exposi-
ção de tal modelo. O telfare state é o ponto alto de um pro-
longado processo de evolução dos direitos de cidadania. Como
muitos outros no início do pós-guerra, Marshall previa que
sistemas de twelfare iriam se expandir progressivamente, com-
binando o desenvolvimento econômico com a implementação
cada vez mais plena dos direitos sociais.

Em geral, a social-democracia do velho estilo não tinha uma


atitude hostil para com questões ecológicas, mas achava difí-
cil solucioná-las. Sua ênfase corporatívista, sua orientação para

À terceira via 21
o pleno emprego e a importância esmagadora que conferia ao
welfare state tornava-a mal adaptada para enfrentar questões
ecológicas de uma maneira sistemática. Também na prática ela
não tinha uma forte perspectiva global. A social-democracia
era internacionalista em sua orientação, mais inclinada a criar
solidariedade entre partidos políticos de idéias assemelhadas
que a enfrentar problemas globais como esses. Apesar disso,
estava inextricavelmente ligada ao mundo bipolar — situado
entre o minimalismo do rwelfare dos EUA e as economias de
comando do comunismo.

A perspectiva neoliberal

A hostilidade ao “governo grande”, uma característica primeira


e primordial das idéias neoliberais, vem de várias fontes. O
fundador do conservadorismo na Grã-Bretanha, Edmund
Burke, expressou seu desgosto pelo Estado, que, quando ex-
cessivamente dilatado, torna-se o inimigo da liberdade e da in-
dependência, O conservadorismo americano vem sendo hos-
1il ao governo centralizado há muito tempo. O thatcherismo
se valeu dessas idéias, mas também de um ceticismo liberal
clássico com relação ao papel do Estado, com base em argu-
mentos econômicos sobre a natureza superior dos mercados,
A tése do Estado mínimo está estreitamente ligada a uma vi-
são peculiar da sociedade civil como um mecanismo auto-
gerador de solidariedade social. Os pequenos pelotões da so-
ciedade civil deveriam ter permissão para florescer, e o farão
se não forem impedidos pela intervenção estatal. Diz-se que
às virtudes da sociedade civil, se esta fosse deixada por sua
própria conta, incluiriam: “Bom caráter, honestidade, dever,
dedicação, honra, serviço, autodisciplina, tolerância, respei-
to, justiça, anuto-aperfeiçoamento, confiança, civilidade, firme-
22 Anthony Giddens

za, coragem, integridade, diligência, patriotismo, considera-


ção pelos outros, frugalidade e reverência.”* Para o ouvido
moderno, diz o autor, essas coisas “têm uma ressonância de
encanto antigo” — mas isso porque o poder estatal as repri-
miu ao sabotar a sociedade civil.

Do Estado, em particular o welfare state, diz-se ser destru-


tivo para a ordem civil, mas os mercados não o são, porque
prosperam a partir da iniciativa individual. Como a ordem civil,
se deixados por si mesmos os mercados vão fornecer o maior
bem para a sociedade. O mercados são “máquinas de moto
perpétuo, exigindo apenas uma estrutura legal e a não inter-
ferência do governo para proporcionar crescimento inin-
terrupto”.5

Os neoliberais associam forças de mercado irrestritas a uma


defesa de instituições tradicionais, em particular a família e a
nação. A iniciativa individual deve ser desenvolvida na econo-
mia, mas caberia promover obrigações e deveres nessas outras
esferas. A família tradicional é uma necessidade funcional para
à ordem social, como na nação tradicional. Outros tipos de fa-
mília, como lares com uma única figura parental, ou relações
homossexuais, só contribuem para a deterioração social. O
mesmo se aplica em grande parte a tudo que debilite a integri-
dade nacional. Insinuações xenofóbicas costumam ser claras nas
declarações de escritores e políticos neoliberais — eles reser-
vam parte de suas mais severas restrições ao multiculturalismo.

O thatcherismo é caracteristicamente indiferente a desi-


gualdades, ou as endossa ativamente. A idéia de que a “desi-
gualdade social é inerentemente errada ou nociva” é “ingênua
e implausível”.5 Acima de tudo, ele é contrário ao igualitarismo.

“David Green: Reinventirag Civil Society. Londres: Instítate of Economic Afíxirs,


1993, p. viii

Sfobn Gray: Exlightemuvents Wike. Londres: Roueledge, 1997, p. 103.

David Marsland: Welfare or Welfore State?. Basingseoke: Macmillan, 1996, p. 212.

À terceira via 23

Políticas igualitárias, mais obviamente aquelas adotadas na


Rússia soviética, criam uma sociedade de uniformidade enfa-
donha, e só podem ser implementadas mediante o uso do po-
der despótico. Os que estão mais próximos do liberalismo, no
entanto, vêem a igualdade de oportunidade como desejável e
necessária. Foi nesse sentido que John Major, fazendo um
improvável eco a Marx, falou de sua intenção de criar uma
sociedade sem classes. Uma sociedade em que o mercado pode
atuar livremente é capaz de gerar grandes desigualdades eco-
nômicas, mas estas não importam, desde que pessoas com
determinação e talento possam ascender a posições adequa-
das às suas capacidades.

O antagonismo ao telfare state é um dos traços neoliberais


mais característicos. O welfare state é visto como a fonte de
todos os males, de maneira muito parecida àquela como o
capitalismo era visto outrora pela esquerda revolucionária.
“Devemos voltar os olhos para o iwelfare state com a mesma
atitude de zombaria e desdém com que hoje vemos a escravi-
dão como meio de organizar o trabalho eficaz, motivado”, disse
um autor. O welfare state "causa um dano enormemente
destrutivo a seus supostos beneficiários: os vulneráveis, os
inferiores e os desafortunados (...) aleija o espírito empreen-
dedor e autoconfiante dos indivíduos, e introduz uma profun-
da carga de ressentimento explosivo sob os alicerces de nossa
sociedade livre".”

O que provê o bem-estar social se o welfare state deve


ser desmantelado? À resposta é um crescimento econômico
conduzido pelo mercado. Welfare deveria ser entendido não
como benefícios estatais, mas como maximização do progres-
so econômico, e portanto riqueza geral, permitindo-se aos
mercados operar seus milagres. Essa orientação é geralmen-
TMartand: Wellure or Welfave State?, p. 197,
24 Anthony Giddens

te acompanhada por um desprezo pelos problemas ecológi-


cos como histórias de terror. Thatcher fez um aceno na di-
reção do “capitalismo verde", mas a atitude habitual foi de
hostilidade. Os riscos ecológicos, foi dito, são exagerados ou
inexistentes — uma invenção dos profetas da catástrofe. Os
indícios apontam, ao contrário, para uma era de prosperida-
de maior e mais universal do que jamais se conheceu antes.
Essa é uma visão linear da modernização, que declara ser
improcedente praticamente quaisquer limites ao desenvolvi-
mento econômico,

Diferentemente da social-democracia clássica, o neolibe-


ralismo é uma teoria globalizante, e contribuiu muito direta-
mente para forças globalizantes. Os neoliberais aplicam em
nível mundial a filosofia que os orienta em seus envolvimentos
mais locais. O mundo caminhará da melhor das maneiras se
os mercados puderem operar com pouca ou nenhuma interfe-
rência. Como defensores da nação tradicional, contudo, os
neoliberais adotam uma teoria realista das relações internacio-
nais — a sociedade global ainda é uma sociedade de Estados-
nações, e num mundo de Estados-nações o que conta é o po-
der. A prontidão para a guerra e a sustentação do poderio
militar são elementos necessários no papel que cabe aos Esta-
dos no sistema internacional. Como a social-democracia do
velho estilo, o neoliberalismo se desenvolveu na ordem bipolar
e carrega a marca das suas condições de origem.

As doutrinas comparadas

Pode-se considerar que o neoliberalismo triunfou por todo o


mundo. Afinal, a social-democracia está em um turbilhão ideo-
lógico e, se cinqiienta anos atrás todo mundo era um plane-
jador, agora ninguém mais dá essa impressão. É uma reversão

À terceira via 25

considerável, já que durante pelo menos um século os socia-


listas pensaram estar na vanguarda da história,

Apesar disso, longe de permanecer inconteste, o neoli-


beralismo está em apuros e é importante ver por quê. À prin-
cipal razão é que suas duas metades — fundamentalismo de
mercado e conservadorismo — estão em tensão. O conser-
vadorismo sempre significou uma abordagem cautelosa, prag-
mática, à mudança social e econômica — uma atitude adora-
da por Burke em face das pretensões messiânicas da Revolução
Francesa. A continuidade da tradição é essencial para a idéia
de conservadorismo. À tradição contém a sabedoria acomu-
lada do passado e portanto fornece um guia para o futuro. A
filosofia do livre mercado adota uma atitude completamente
diversa, fincando suas esperanças para o futuro no crescimento
econômico interminável produzido pela liberação das forças
de mercado,

A devoção ao livre mercado por um lado, é à família tradi-


cional por outro, é uma contradição, Espera-se que o indivi-
dualismo e o direito à escolha se detenham abruptamente na
soleira da família e da identidade nacional, onde a tradição deve
permanecer intacta. Mas nada destrói mais a tradição que a
“revolução permanente” das forças de mercado. O dinamis-
mo das sociedades de mercado solapa as estruturas tradicio-
nais de autoridade e fratura as comunidades locais; o neolibe-
ralismo cria novos riscos e incertezas e pede aos cidadãos que
simplesmente os ignorem. Ademais, ele negligencia a base
social dos próprios mercados, que depende daquelas formas
comunais que o fundamentalismo de mercado descarta com
indiferença.

Que dizer da social-democracia do velho estilo? Podemos


distinguir uma variedade de traços sociais que o consenso do
twelfare keynesiano tomou como óbvios — todos os quais se
desintegraram subseqlientemente:
26 Anthony Giddens

e Um sistema social e especialmente uma forma de família —


em que o marido provia o sustento e a mulher era a dona-
de-casa e mãe —, que permitiam uma definição clara do
pleno emprego.

« Um mercado de trabalho homogêneo em que os homens


ameaçados de desemprego eram na maioria trabalhadores
manuais dispostos a fazer qualquer serviço por um salá-
rio que assegurasse sua sobrevivência e a de suas famí-
lias.

e À dominância da produção de massa em setores básicos da


economia, que tendia a criar condições de trabalho estáveis,
ainda que não compensadoras, para muitos na força de tra-
balho.

e Um Estado elitista, com pequenos grupos de especialistas


com espírito público na burocracia estatal monitorando as
políticas fiscal e monetária a serem seguidas.

» Economias nacionais substancialmente contidas dentro de


limites soberanos, uma vez que o keynesianismo presumia
a predominância da economia doméstica sobre o comércio
internacional de bens e serviços.”

O igualitarismo da velha esquerda era nobre em intenção,


mas, como dizem seus críticos de direita, conduziu por vezes a
conseqilências perversas — visíveis, por exemplo, na engenha-
ria social que deixou um legado de conjuntos habitacionais de-
cadentes, dominados pelo crime. O rtwelfare state, visto pela
maioria como o cerne das políticas social-democráticas, gera
hoje mais problemas do que resolve.
"Egon Matrner e Wolfgang Streeck: Beyoud Keyrestarisim, Aldecrsbvor: Elgar, 1591,
pp. 3-4.

À terceira via 27
Os debates recentes

Os partidos social-democratas na Europa e em outras regiões


têm sido fortemente conscientes dessas questões e, desde pelo
menos o início da década de 1980, respondem ativamente a
elas. A necessidade de agir com plena liberdade em relação ao
passado recebeu uma carga dinâmica adicional do colapso do
comunismo no leste europeu em 1989, À maioria dos parti-
dos comunistas ocidentais mudou seus nomes e se aproximou
da social-democracia, ao passo que nos países da Europa Ori-
ental novos partidos social-democratas foram formados.

Na Grã-Bretanha, a primeira tentativa sistemática de afas-


tamento dos princípios socialdemocráticos clássicos esteve con-
tida na Análise Política do Partido Trabalhista, estabelecida pela
Conferência Anual em Outubro de 1987. Sete grupos de análi-
se foram compostos, cada um cobrindo uma área diferente da
política. Esperava-se que a análise envolvesse também o públi-
co, mas as reuniões públicas tiveram uma freqiiência apenas
esparsa e no final não tiveram muita importância, Confronta-
dos pelo apelo popular do thatcherismo, houve uma concordãn-
cia geral entre os grupos de política de que o Partido Trabalhis-
ta devia dar maior ênfase à liberdade individual e ao direito de
escolha pessoal. Promessas anteriores de ampliar a participa-
ção pública na indústria foram descartadas, a administração
keynesiana da demanda foi explicitamente abandonada e a de-
pendência em relação aos sindicatos foi reduzida. Temas eco-
lógicos foram introduzidos, mas eram restritos e não foram efe-
tivamente integrados ao resto da estrutura política,

Processos similares de reforma tiveram lugar na maioria


dos partidos continentais, em geral começando um pouco mais
cedo e por vezes produzindo mudanças mais completas na
ideologia. Os partidos social-democratas começaram a se
preocupar com questões como a produtividade econômica, po-
28 Anthony Giddens

líticas de participação, desenvolvimento comunitário e, parti-


cularmente, ecologia. A social-democracia “moveu-se além da
arena da distribuição de recursos para contemplar a organi-
zação física e social da produção e as condições culturais de
consumo nas sociedades capitalistas avançadas”.

Na Noruega, por exemplo, o Partido Trabalhista manteve


um “Debate da Liberdade” em 1986-88, seguindo um perío-
do de governo thatcherista. Seis temas foram debatidos em
grupos de estudo locais por todo o país: o equilíbrio entre
privado e público, flexibilidade da jornada de trabalho, opor-
tunidade educacional, o ambiente, habitação e democracia
econômica. A defesa de interesses individuais deixou de ser
considerada palavrão e o partido deveria ser “aberto”, atra-
vês do qual uma diversidade de grupos pudesse pressionar pelo
cumprimento de suas exigências. Um delegado colombiano
presente em um encontro da Internacional Socialista em 1989
comentou acerca de tal mudança política: “Meu partido é
chamado de liberal, mas é basicamente bastante socialista,
Com esses europeus é o contrário.”

Alguns dos mais importantes partidos comunistas ocidentais


realizaram mudanças semelhantes na década de 1980. O Partido
Comunista Italiano renasceu como Partido Democrático da Es-
querda em 1991. Bem antes dessa ocasião, porém, o partido ha-
via começado a enfatizar temas como os que estão sendo discu-
tidos pelo partidos social-democratas. Em meados da década de
1980 teve início na Itália um importante debate sobre até que
ponto as categorias de esquerda e direita continuavam a ter sen-
tido. Preocupações ecológicas, participação comunitária e refor-
ma constitucional passaram para o primeiro plano.

Ferbert Kitschebr: The Trausformatiou of Evropesi Social Dermocracy, Cambridge:


Cambridge University Press, 1994, p. 33.

MECnat Hesdar: “The Norwegian labowr party", em Richard Gillespie e William E.


PFaterson: Rerbinbirg Social Democracy in Europe, Londres: Cass, 1993, p. 62.

A terceira via 29

Provavelmente os debates mais significativos ocorreram na


Alemanha. Como em outros lugares, o objetivo era responder
à ascensão das filosofias de livre mercado, mas a demanda de
mudança política foi também fortemente influenciada pela
presença de um vigoroso movimento verde. Cinco anos de
intensa discussão levaram a um novo Programa Básico para o
SPD, o Partido Social Democrata alemão, instituído no ano
simbólico de 1989, O programa pôs uma pesada ênfase nos
problemas ecológicos. Os alemães formaram o primeiro im-
portante partido social-democrata a tomar a si a cuptura no
pensamento ecológico que teve lugar no final da década de
1970. No pensamento socialdemocrático clássico, admitia-se
um sacrifício da proteção ao ambiente em prol do desenvolvi-
mento econômico. De acordo com o novo tema de moderni-
zação ecológica, a proteção ambiental é vista como uma fonte
de crescimento econômico e não como seu oposto.

O Programa Básico reconheceu também o impacto do “pés-


materialismo" nos países desenvolvidos. Esta é uma idéia de-
senvolvida mais extensivamente pelo cientista político Ronald
Inglehart. Depois que certo nível de prosperidade foi atingi-
do, sustenta-se, os eleitores se tornam menos preocupados
com questões econômicas do que com a qualidade de suas
vidas. O Programa Básico concluiu que a perspectiva da “mai-
oria afluente" havia se desviado do etos socialdemocrático do
coletivismo e da solidariedade. A realização pessoal e a com-
petição econômica tiveram de ganhar maior relevo.
Desde sua declaração de Bad Godesberg em 1959, que foi
um marco, o SPD estivera comprometido com a “disciplina do
mercado”, Tsso tinha agora de ser combinado com um afasta-
mento ainda maior do intervencionismo estatal. “Para nós, a
participação do Estado não é um dogma (...) a pedra de toque
é saber se a qualidade de vida é mais bem servida por um an-
mento do consumo privado ou pelo aperfeiçoamento do de-
30 Anthony Giddens

sempenho do Estado.” O Programa Básico falou na necessi-


dade “de reconciliar desempenho econômico com seguridade
social” e frisou que “individualidade e solidariedade não de-
veriam ser vistos como opostos”. Concluiu que, “enquanto
seções importantes do eleitorado não confiarem no SPD para
as tarefas de modernização econômica, mas somente para
assegurar que salvaguardas sociais sejam mantidas, será mui-
to difícil construir uma maioria”."

Estruturas de apoio político

Que essas mudanças de política eram necessárias é indicado pelas


alterações nos padrões de apoio político, a que todos os parti-
dos social-democratas tiveram de reagir. As relações de classe
que costumavam estar subjacentes à votação e à afiliação polí-
tica sofreram mudanças drásticas, em razão do brusco declínio
da classe trabalhadora manual. O ingresso em grande escala de
mulheres na força de trabalho desestabilizou ainda mais os pa-
drões de apoio baseados em classe. Uma minoria considerável
já não vota e está essencialmente fora do processo político. O
partido que mais cresceu ao longo dos últimos anos não é parte
da política em absoluto: o “não-partido dos não-votantes”."?
Finalmente, há indícios substanciais de que ocorreram mudan-
ças de valores, em parte como uma questão de mudança de
geração, e em parte em resposta a outras influências,

Sobre este último aspecto, os indícios apontam para duas


tendências: uma substituição, como acaba de ser sugerido, de
“valores de escassez" por “valores pós-materialistas”, e uma

Citado em Stephen Fadgetr: “The German social democrats", em Gillespie e


Paterson: Retbinkimg Social Democracy, pp. 27 e 29.

lgich Beck: "The reinvestions of politics”, em Ulrich Beck, Anthony Giddens e


Scott Lash: Reflexive Moderminetion. Cambridae: Poliny Press, 1994.

À terceira via 31

distribuição de valores em mudança, que não se encaixa nem


em linhas de classe nem na dicotomia direita/esquerda. Em-
bora sujeita a críticas de numerosos setores, a tese de Inglehart
da mudança de valores recebeu considerável respaldo empí-
rico. Reunindo material de pesquisa de vários países indus-
trializados, Inglehart mostra que valores de realização econô-
mica e de crescimento econômico de fato se esvanecem com
a prosperidade crescente, À auto-expressão e o desejo de tra-
balho significativo estão substituindo a maximização das re-
compensas econômicas. Essas preocupações estão relaciona-
das com uma atitude cética para com a autoridade — que pode
ser despolitizante, mas no fim das contas impulsiona para uma
democracia e um envolvimento maiores do que comumente se
tem na política convencional,

Levantamentos sociais levados a cabo em países específicos


confirmam a realidade da mudança de atitude e a inadequação
da divisão esquerda/direita como um meio de compreendê-la,
John Blundell e Brian Gosschalk, por exemplo, vêem as atitu-
des sociais e políticas no Reino Unido divididas em quatro aglo-
merados, a que chamam conservador, libertário, socialista e
autoritário. A crença na liberdade econômica — o livre merca-
do — é medida num eixo e a liberdade pessoal em outro.

A posição “conservadora” é a neoliberal: um conservador


defende a liberdade de mercado, mas quer forte controle esta-
tal sobre questões como a família, as drogas e o aborto. Os
“libertários” defendem o individualismo e o envolvimento dis-
creto do Estado em todas as frentes. Os “socialistas” são 0 opos-
to do conservadores: querem maior intervenção do Estado na
vida econômica, mas são descrentes nos mercados e vêem o
governo com cautela no tocante a questões morais. Um “auto-

O mrabalho de Inglehart geron memerosas críticas e avaliações. Para um resumo


útil, ver Clive Bean e Elim Papadakis: “Polarised priotities or Mexible altennatives?”,
International fowrmeal of Public Ofpêiniou Research, vol. 6, nº 3, 1997.
32 Anthony Giddens

ritário” é alguém que deseja que o governo tenha mão firme em


todas as áreas, incluindo tanto a econômica quanto a moral, Os
demais adotam uma perspectiva política mais ambígua.

Segundo os dados do levantamento, no Reino Unido cerca


de um terço da população é conservadora por essas definições,
pouco menos de 20% dos habitantes são libertários, 18% so-
cialistas, 13% autoritários e 15% compõem à população re-
sidual. O Partido Trabalhista, tal como reconstruído por Tony
Blair, pouco antes da eleição de 1997 estava em primeiro lu-
gar para todos esses grupos, exceto os conservadores. Dos que
pretendiam votar nos conservadores, 84% vinham de dois
grupos, conservadores e libertários. Os resultados mostraram
diferenças muito claras por idade, em conformidade com a tese
de Inglehart: somente 18% do grupo de 15-24 anos eram con-
servadores, comparados com 54% no grupo dos que tinham
mais de 55 anos. Do grupo de 15-24 anos, 72% concordaram
com à afirmação, “o Estado não tem direito algum de proibir
qualquer tipo de ato sexual, se ele for praticado entre adultos
pela livre vontade de ambos”, ao passo que somente 36% da-
queles com mais de 55 anos concordaram."*

Comparando estes achados com uma pesquisa feita nos


EUA, o especialista em pesquisas de opinião pública Robert
Worcester conclui:
A caracterização dos partidos trabalhista e conservador
atuzis (...) como de “esquerda” e “direita” mascara o grau
em que os eventos que afetaram ambos os partidos ao lon-
go das duas últimas décadas toldaram à semântica de on-
tem na descrição de seus papéis atuais... A comparação
entre os números encontrados nos EUA e no Novo
Trabalhismo britânico é impressionante em sua coerên-

“ilokn Binndell e Brian Gosschalk: Beyond Left and Rigkt. Londres: Instinvte of
Ecomomic Affsirs, 1997,

À terceira via 33

cia, de modo um tanto surpreendente, uma vez que as


ideologias dos dois países foram em sua maior parte mui-
to diferentes ao longo dos últimos cinqãenta anos.*º

A comparação de uma variedade mais ampla de socieda-


des mostra que os padrões de atratividade e apoio alteraram-
se de forma generalizada. Em praticamente todos os países
ocidentais, a votação não mais se encaixa em linhas de clas-
se e passou de uma polarização esquerda/direita para um qua-
dro mais complexo. O eixo econômico que costumava sepa-
rar eleitores em posições “socialistas” e "capitalistas" tem
muito menor relevo, ao passo que o contraste entre libertário
e autoritário e “moderno” e “tradicionalista” cresceu, Ou-
tras influências, mais contingentes — como o estilo de lide-
rança —, tornaram-se mais importantes do que costumavam
ser.

Vários dilemas de apoio político, mas também novas pos-


sibilidades de formação de consenso, existem aqui. Os parti-
dos social-democratas não têm mais um “bloco de classe” co-
erente em que confiar. Uma vez que não podem contar com
suas identidades prévias, têm de criar novas identidades num
ambiente social e culturalmente mais diverso." Até na Suécia,
um dos países em que a votação por classe costumava ser mais
pronunciada, o valor de predição da classe caiu de 53% em
1967 para 34% em 1985, O valor de predição de opintões sobre
problemas elevoun-se regularmente ao longo desse período; os
eleitores mais jovens e as mulheres na Suécia são os menos
propensos a ser influenciados por posição de classe.

Robert Worcesser: “Imoroduction”, em Blundell e Gosschalk: Beyond Left awd


Right, p. 3.
MkKinchele: Transformation of European Social Democracy, p. 33.
34 Anthony Giddens
O destino da social-democracia

Essas mudanças não condenaram os social-democratas a uma


posição política marginal. Em meados de 1998 partidos social-
democratas ou coalizões de centro-esquerda estão no poder
na Grã-Bretanha, França, Itália, Áustria, Grécia e em vários
dos países escandinavos, ao passo que na Europa Oriental eles
estão em crescente proeminência.

Apesar de seus sucessos eleitorais, os social-democratas ain-


da não criaram uma perspectiva política nova e integrada. À
social-democracia sempre esteve ligada ao socialismo. Qual de-
veria ser sua orientação num mundo em que não há alternati-
vas ao capitalismo? O mundo bipolar foi o contexto em que a
social-democracia do pós-guerra foi moldada. Os social-demo-
cratas partilhavam ao menos algumas das perspectivas do co-
munismo, embora também se definissem em oposição a ele. É
possível que manter-se na esquerda continue tendo algum sen-
tido, agora que o comunismo desmoronou completamente no
Ocidente e o socialismo de maneira mais geral foi dissolvido?

Os debates políticos que tiveram lugar por toda a Europa


no final da década de 1980 e início da década de 1990 remo-
delaram a social-democracia de maneira muito substancial,
mas também produziram muita confusão ideológica. Um par-
ticipante alemão da iniciativa Programa Básico do SPD resu-
miu o problema de uma maneira esclarecedora:

A decisão de enoetar a análise do programa foi tomada numa


situação em que é extraordinariamente difícil chegar a um
quadro claro dos desenvolvimentos no mundo e na socieda-
de. Esse é o dilema em que o partido se encontra. Ele sabe
que, nestes tempos mutáveis, uma reorientação parece ne-
cessária, mas a própria mudança torna difícil efetuar a
reorientação. A ciência não oferece nenhum diagnóstico da

À terceira via 35

época, nenhuma compreensão universal do que está acon-


tecendo e de quais serão os desenvolvimentos futuros.”

Em relação a este cenário, que sentido terá falarmos em


uma terceira via? À expressão parece ter-se originado já na
virada do século, e foi popular entre grupos de direita na dé-
cada de 1920. No entanto, foi usada sobretudo por social-
democratas e socialistas. No início do período pós-guerra, os
social-democratas pensavam de maneira bastante explícita que
estavam encontrando um caminho distinto do capitalismo de
mercado americano e do comunismo soviético. Por ocasião de
sua refundação, em 1951, a Internacional Socialista falou ex-
plicitamente sobre a terceira via nesses moldes. Cerca de 20
anos depois, tal como empregado pelo economista tcheco Ota
Sik, à expressão foi usada para designar o socialismo de mer-
cado. Os social-democratas suecos parecem ter falado com
maior freqilência da terceira via, sendo que a última versão,
no final da década de 1980, referia-se a uma importante reno-
vação programática.

A apropriação mais recente de “terceira via" por Bill Clinton


e Tony Blair encontrou uma acolhida morna por parte da mai-
oria dos social-democratas do continente europeu, bem como
dos críticos da velha esquerda em seus respectivos países. Os
críticos vêem a terceira via nessa roupagem como neolibe-
ralismo requentado. Eles olham para os EUA e vêêm uma eco-
nomia altamente dinâmica, e também uma sociedade com os
mais extremos níveis de desigualdade no mundo desenvolvi-
do. Clinton prometeu “pôr fim ao seelfare tal como o conhe-
temos”, parecendo fazer eco a algumas das atitudes dos

Purt Sontheinter, cirado em Padgerr: “German social democrars”, p. 38. Com


relação à recente discussão no Reino Tinido, veja as interessantes oontribusções para
à Série "virtual thimk-tank" resmpressa em forma de livro como The Third Way, de
David Halpern e David Mikosz: Londres, Nexus, 1998,
36 Anthony Giddens

neoliberais conservadores. Ao chegar ao poder, dizem seus


críticos, Blair e o Novo Trabalhismo insistiram nas políticas
econômicas de Margaret Thatcher.

Meu objetivo no que se segue não é avaliar se tais obser-


vações são válidas ou não, mas considerar onde o debate so-
bre o futuro da social-democracia se situa, Vou supor que “ter-
ceira via" se refere a uma estrutura de pensamento e de prática
política que visa a adaptar a social-democracia a um mundo
que se transformou fundamentalmente ao longo das duas ou
três últimas décadas. É uma terceira via no sentido de que é
uma tentativa de transcender tanto a social-democracia do
velho estilo quanto o neoliberalismo,

Cinco dilemas

Os debates sobre o futuro da social-democracia ao longo dos


últimos dez a quinze anos suscitaram uma diversidade de ques-
tões gerais e de dificuldades — uma medida de o quanto o
terreno das políticas se tornou problemático. Nenhum progra-
ma integrado para políticas social-democráticas pode ser de-
senvolvido, no entanto, à não ser que respostas pelo menos
provisórias sejam dadas a essas questões. Vou me concentrar
em cinco dilemas básicos que ocuparam, com razão, grande
espaço nas controvérsias. Vou sugerir uma idéia sobre cada
um, mas tenho de pedir a indulgência do leitor. São todas gran-
des questões, So há espaço aqui para fornecer respostas su-
márias, e não serei capaz de oferecer embasamento para con-
vencer um cético em nenhum caso específico,
Os cinco dilemas envolvem:

= Globalização — o que é exatamente e que implicações tem?

e Individualismo — em que sentido, se é que há algum, as so-


ciedades modernas estão se tornando mais individualistas?

e Esquerda e direita — o que devemos fazer diante da afir-


mação de que elas não têm mais sentido?

» Ação política — está a política migrando para fora dos


mecanismos ortodoxos da democracia?
38 Anthony Giddens

= Problemas ecológicos — como deveriam eles ser integrados


na política social-democrata?

Globalização

A história do desagradável termo “globalização” é interessan-


te. Apenas dez anos atrás a palavra dificilmente era usada, fosse
em trabalhos acadêmicos ou na imprensa popular. A palavra
que não estava em parte alguma passou a estar em toda parte
— nenhum discurso político está completo, ou manual de
negócios é aceitável, sem referência a ela. Sua nova familiari-
dade insuflou intenso debate, em círculos acadêmicos e na li-
teratura da social-democracia. Foi observado com toda cor-
reção que nos últimos anos a globalização esteve no centro da
maioria das discussões políticas e dos debates econômicos,
A maioria dos aspectos da globalização é controversa: como
o termo deveria ser compreendido, se ele é novo ou não, e
quais serão suas prováveis conseqilências. Duas idéias abso-
lutamente contrárias emergiram, ligadas em certa medida a
posições políticas divergentes. Alguns sustentam que a globa-
lização é em grande parte um mito, ou é no máximo uma con-
tinuação de tendências estabelecidas há muito, Não nos sur-
preende que essa seja a posição daqueles que querem defender
aspectos da social-democracia do velho estilo. Para eles, globa-
lização é uma invenção dos neoliberais, Uma vez que tenha-
mos posto fim ao embuste, podemos continuar mais ou me-
nos como antes. No outro pólo estão autores e formuladores
de políticas que dizem que a globalização não só é real mas já

Perrvenche Beses: "The social democraric response to globalization"”, em René

Coperus e Johannes Kandel: Europens Social Democracy: Tramsformatios fu


Progress. Amsterdã: Friedrich Ebert Stiftung, 1998.

À terceira via 39

está muito avançada. Como o guru dos negócios Keniche Obhmae


o formulou, vivemos agora num mundo sem fronteiras, em que
o Estado-nação se tornou uma “ficção” e em que os políticos
perderam todo o seu poder efetivo?

Em geral entende-se que a globalização é econômica e, como


suas raízes sugerem, envolve conexões que abrangem o mun-
do. Em seu livro sobre o assunto, Paul Hirst e Graham Thompson
expressam isso da seguinte maneira: “Afirma-se que emergiu,
ou está no processo de emergir, uma economia verdadeiramen-
te global em que economias nacionais distintas e portanto es-
tratégias domésticas de administração econômica nacional são
cada vez mais irrelevantes.”* Eles investem contra esse ponto
de vista. A maior parte do comércio continua regional. Por exem-
plo, os países da União Européia comerciam basicamente entre
si mesmos. O nível das exportações da União Européia para o
resto do mundo só cresceu marginalmente ao longo das últimas
três décadas. Embora os EUA tenham se tornado mais abertos,
chegando a duplicar suas exportações durante o mesmo perío-
do, tais desenvolvimentos estão longe de criar uma “economia
plenamente globalizada”, O avanço do comércio dentro de di-
ferentes blocos econômicos e entre eles simplesmente nos le-
vou de volta ao final do século XIX. Naquela época, dizem Hirst
e Thompson, exatamente como hoje, havia uma economia de
comércio liberalizada.

Esta última afirmação é facilmente contestável. Mesmo


que fosse apenas um replay de um século atrás, o período
atual seria muito diferente da era pós-guerra do welfare state
keynesiano. As economias nacionais eram mais fechadas en-
tão do que são agora. Em 1950, a exportação de bens comer-

TKenichi Olmae: The End of de Nation State: The Rise of Regional Economies.
Londres, HarperCollins, 1995.

"Panil Hirst e Graham Thompson: Globalinetion br Question. Cambridge: Polity


Press, 1996, p. 1.
40 Anthony Giddens

ciáveis compunha apenas 7% do PIB dos países da Organi-


zação para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
(OCDE), em comparação a 12% em 1911. O nível de 12%
foi atingido novamente em 1970, e em 1997 havia subido para
17%. Além disso, comercializava-se uma variedade muito
maior de bens atualmente, incluindo muitas formas de servi-
ço, do que há um século. Um número muito maior de países
está envolvido em acordos mútuos de comércio.

A mudança mais importante é o papel ampliado dos merca-


dos financeiros, que operam cada vez mais em tempo real. Mais
de um trilhão de dólares por dia são girados em transações de
câmbio monetário. À proporção das trocas financeiras em re-
lação ao comércio cresceu por um fator de cinco ao longo dos
últimos quinze anos.* O “capital desconexo” — dinheiro institu-
cionalmente administrado — aumentou em 1.1009% numa es-
cala mundial desde 1970 em proporção com outras formas de
capital. Investidores institucionais baseados apenas nos EUA
detinham 11,1 trilhões de dólares em recursos em julho de 1996,
Fundos de pensão privatizados, ou títulos que flumaram para
os esquemas dos fundos de pensão, são uma parte básica dessa
imensa soma. Em 1995, os fundos de pensão americanos, os
fundos mútuos e as dotações detinham 331 bilhões de dólares
em ações institucionais.

A globalização econômica, portanto, é uma realidade, e não


se trata apenas de uma continuação de tendências de anos
anteriores ou de uma reversão a elas. Embora uma parte con-
siderável do comércio permaneça regionalizada, há uma “eco-
nomia plenamente global” no nível dos mercados financeiros.
No entanto, a idéia de globalização não é bem entendida se
David Held: “Democracy and ghobalization", em Daniele Archibugi, David Held e
Martin Kobler: Re-linagiring Political Community. Cambridge: Polirr Press, 1958.
Seftrey R. Gates: The Ororeersirip Solwetior. Nora York: Basic Books, 1998, pp. 2
el6

À terceira via 41

aplicada somente a conexões literalmente de âmbito mundial


e se tratada como unicamente, ou mesmo basicamente, eco-
nômica. A globalização, como vou concebê-la no que se se-
gue, não diz respeito em absoluto apenas, ou mesmo basica-
mente, à interdependência econômica, mas à transformação
do tempo e espaço em nossas vidas. Eventos distantes, quer
econômicos ou não, afetam-nos mais direta e imediatamente
que jamais antes. Inversamente, decisões que tomamos como
indivíduos são com freqgiiência globais em suas implicações,
Os hábitos alimentares que os indivíduos têm, por exemplo,
têm conseqilências para os produtores de alimentos, que po-
dem viver do outro lado do mundo.

A revolução das comunicações e a difusão da tecnologia


da informação estão profundamente ligadas a processos de
globalização. Isso ocorre mesmo na arena econômica. Merca-
dos financeiros que operam 24 horas por dia dependem de uma
fusão de tecnologias de satélite e computador, afetando mui-
tos outros aspectos da sociedade também, Um mundo de co-
municação eletrônica instantânea, em que até aqueles nas re-
giões mais pobres estão envolvidos, perturba instituições locais
e padrões cotidianos de vida. A influência da televisão por si
só é considerável. Muitos comentadores concordam, por exem-
plo, que os eventos de 1989 na Europa Oriental não teriam se
desdobrado tal como o fizeram não fosse a televisão,

Está o Estado-nação se tornando uma ficção, como Obmae


sugere, e 0 governo obsoleto? Não, mas seu formato está sen-
do alterado. A globalização “afasta-se” do Estado-nação no
sentido de que alguns poderes que as nações costumam pos-
suir, inclusive aqueles que são subjacentes à administração
econômica keynesiana, foram enfraquecidos. No entanto, à
globalização também “empurra” — ela cria novas demandas
e também novas possibilidades para a regeneração de identi-
dades locais. A recente e abrupta intensificação do naciona-
42 Anthony Giddens

lismo escocês no Reino Unido não deveria ser vista como um


exemplo isolado. É uma reação aos mesmos processos estru-
turais em ação em outros lugares, como no Quebec ou na
Catalunha. Nacionalismos locais não são inevitavelmente
fragmentadores. O Quebec pode optar por se emancipar do
Canadá, como a Escócia por se tornar independente do Reino
Unido. Alternativamente, um e outro podem seguir a rota
catalã, permanecendo partes semi-autônomas de uma entida-
de nacional mais ampla.

A globalização também espreme pelos lados, criando no-


vas regiões econômicas e culturais que por vezes transpóem
as fronteiras dos Estados-nações. Parte da Catalunha e tam-
bém da Espanha, Barcelona está igualmente envolvida numa
área econômica que se estende pelo sul da França. O movi-
mento de globalização de três vias está afetando a posição e o
poder de Estados pelo mundo todo. A soberania já não é uma
questão de tudo-ou-nada, se é que já o foi: as fronteiras estão
se tornando mais imprecisas do que costumavam ser, espe-
cialmente no contexto na União Européia, Apesar disso, o Es-
tado-nação não está desaparecendo, e a órbita do governo, to-
mada no geral, se expande em vez de diminuir à medida que a
globalização avança. Algumas nações, em algumas situações,
têm mais poder do que costumavam ter, e não menos — como
os países da Europa Oriental na esteira da queda do comu-
nismo.

As nações conservam, e vão conservar por um futuro pre-


visível, considerável poder governamental, econômico e cul-
tural sobre seus cidadãos e na arena externa, Freqiientemente,
contudo, elas só serão capazes de manipular esses poderes em
ativa colaboração umas com as outras, com suas próprias lo-
calidades e regiões, e com grupos e associação transnacionais.
“Governo”, assim, torna-se menos identificado com “o” go-
Verno — governo nacional — e mais abrangente. À “gover-

A terceira via 43

nação” torna-se um conceito mais relevante para designar al-


gumas formas de capacidades administrativas ou reguladoras.
Agências que ou não são parte de nenhum governo — organi-
zações não-governamentais — ou são de caráter transnacional
contribuem para a governação.

Fala-se com bastante frequência da globalização como se


ela fosse uma força da natureza, mas ela não é. Estados,
corporações empresariais e outros grupos promoveram ativa-
mente seu avanço. Grande parte da pesquisa que ajudou a criar
os satélites de comunicações foi financiada por governos,
como mais recentemente o foram as fases iniciais do que se
tornou a Internet. Governos contribuíram para a expansão dos
mercados financeiros mundiais através dos títulos que emiti-
ram para levantar dinheiro para saldar seus compromissos
domésticos. As políticas de liberalização e privatização con-
tribuíram para a intensificação do comércio mundial e o in-
tercâmbio econômico. Empresas se empenharam cada vez mais
em investimento estrangeiro direto. As vendas das subsidiá-
rias das corporações transnacionais em 1997 somaram 209%
mais que o total mundial das exportações de bens e serviços.

A globalização, em suma, é uma complexa variedade de


processos, movidos por uma mistura de influências políticas
e econômicas. Ela está mudando a vida do dia-a-dia, particu-
larmente nos países desenvolvidos, ao mesmo tempo em que
está criando novos sistemas e forças transnacionais, Ela é mais
que o mero pano de fundo para políticas contemporâneas:
tomada como um todo, a globalização está transformando as
instituições das sociedades em que vivemos. É com certeza
diretamente relevante para a ascensão do “novo individualis-
mo” que figurou com tanto destaque em debates socialde-
mocráticos.
44 Anthony Giddens
Individualismo

A solidariedade vem sendo há longo tempo um tema da social-


democracia. O legado original de Marx foi ambivalente no
tema do individualismo versus coletivismo. Marx falou do de-
saparecimento do Estado com o advento de uma sociedade
socialista plenamente amadurecida, em que “o livre desenvol-
vimento de cada um determinará o livre desenvolvimento de
todos”, Na prática, tanto o socialismo quanto o comunismo
punham forte ênfase no papel do Estado na geração tanto da
solidariedade quanto da igualdade. O coletivismo tornou-se um
dos traços mais destacados a distinguir a social-democracia do
conservadorismo, que ideologicamente enfatizava muito mais
“o individual”. Uma atitude coletivista foi também parte da
ideologia democrática cristã em países da Europa continental,

Isso em grande parte vem se invertendo desde o final da


década de 1970. Os social-democratas tiveram de responder
ao desafio do neoliberalismo, mas mais importantes foram as
mudanças em processo nos países ocidentais que ajudaram a
dar ao thatcherismo sua alavanca ideológica. Com alguma
supersimplificação, poder-se-ia dizer que a social-democracia
clássica foi mais bem-sucedida e mais bem desenvolvida em
países menores, ou países com culturas nacionais homogêne-
as. Todos os países ocidentais, no entanto, tornaram-se culto-
ralmente mais pluraristas, com uma proliferação de estilos de
vida — uma conseqitência, em parte, da própria afluência que
a “sociedade do welfare” ajudou a produzir.

Como sua nova posição é mais baseada num afastamento


relutante dos velhos pontos de vista do que positivamente
motivada, não é de surpreender que os social-democratas te-
nham tido de lutar para se acomodar à crescente importância
do individualismo e à diversidade dos estilos de vida. Eles fo-
ram incapazes de decidir até que ponto o novo individualismo

A terceira via 45

é o mesmo do indivíduo interesseiro retratado na teoria eco-


nômica neoliberal, e portanto a ser cerceado por coibições.
Afinal de contas, foi para contestar precisamente essa idéia do
“indivíduo autônomo” que o socialismo se desenvolveu.

Vários problemas básicos têm de ser enfrentados. Que é exa-


tamente o novo individualismo? Como ele se relaciona com o
papel ampliado agora desempenhado pelos mercados? Estamos
testemunhando a ascensão de uma geração do “eu”, que resulta-
rá numa sociedade do “primeiro en", que inevitavelmente des-
truirá valores comuns e preocupações públicas? Se a liberdade
pessoal deve receber maior ênfase dos social-democratas que no
passado, como deveria o antigo problema da relação entre liber-
dade e igualdade ser atacado?

Esquerda e direita têm se sentido igualmente atemoriza-


das diante do surgimento da sociedade do primeiro-eu e de
suas conseqtiências destrutivas para a solidariedade social, mas
elas a atribuem a diferentes causas. Os autores social-demo-
cratas vêem suas origens em forças de mercado, juntamente
com o impacto ideológico do thatcherismo, com sua ênfase na
idéia de que os indivíduos deveriam se defender por si mes-
mos em vez de depender do Estado. Já os neoliberais e outros
conservadores se voltam para a permissividade da década de
1960, que desencadeou um processo de decadência moral.

Nenhuma das hipóteses resiste a um exame atento, Pesqui-


sas realizadas em diferentes países sugere que todo o debate
precisa ser reformulado, À geração do “en” é uma descrição
enganosa do novo individualismo, que não assinala um pro-
cesso de decadência moral. Muito ao contrário, os levantamen-
tos mostram que as gerações mais jovens hoje estão sensibili-
zadas para uma gama mais ampla de inquietações morais do
que as gerações anteriores.º No entanto, elas não relacionam

“Helen Wilkinson e Geoff Malgan: Freedown's Childrei. Londres: Demos, 1995,


46 Anthony Giddens

esses valores com a tradição, nem aceitam a legislação sobre


questões de estilo de vida por formas tradicionais de autori-
dade. Alguns desses valores morais são claramente pós-mate-
rialistas no sentido de Inglehart, dizendo respeito por exem-
plo a questões ecológicas, direitos humanos ou liberdade
sexual,

Como a sociólogo Ulrich Beck observa, o novo individua-


lismo:

não é thatcherismo, nem individualismo de mercado, nem


atomização. Ao contrário, ele significa “individualismo
institicionalizado”, A maior parte dos direitos e garantias
do welfare state, por exemplo, é atribuída a indivíduos e
não a famílias. Em muitos casos eles pressupõem o em-
prego. O emprego por sua vez implica educação e ambos
pressupõem mobilidade. Por meio de todas essas exigên-
cias as pessoas são convidadas a se constituir como indiví-
duos: planejar-se, compreender-se, projetar-se a si mes-
mas coma indivíduos.”

O novo individualismo, em suma, está associado ao afas-


tamento da tradição e do costume de nossas vidas, um fenô-
meno relacionado mais com o impacto da globalização num
sentido amplo do que com a mera influência de mercados. O
welfare state desempenhou seu papel. Erigidas sob a égide do
coletivismo, instimições do welfare ajudaram a libertar os in-
divíduos de algumas das fixidades do passado. Em vez de ver
nossa época como marcada pela decadência moral, portanto,
faz sentido vê-la com uma época de transição moral. Se o in-
dividualismo institucional não é sinônimo de interesse pessoal,
ele representa uma ameaça menor para a solidariedade social,
mas implica que devemos buscar novos meios para produzir

Ulrich Beck: “The cosmopolitan manifesto”, Nem Sfatesian, 20 de março de 1958.

À terceira via 47

essa solidariedade. A coesão social não pode ser assegurada


pela ação de cima para baixo do Estado ou pelo apelo à tradi-
ção. Temos de moldar nossas vidas de uma maneira mais ativa
do que o fizeram gerações anteriores, e precisamos aceitar mais
ativamente responsabilidades pelas conseqitências do que fa-
zemos e dos hábitos de estilo de vida que adotamos. O tema
da responsabilidade, ou da obrigação mútua, estava lá na social-
democracia do velho estilo, mas permanecia em grande parte
latente, já que era submergido no conceito de provisão coleti-
va. Temos de encontrar um novo equilíbrio entre indivíduo e
responsabilidades coletivas hoje.

Muitos críticos esquerdistas mantém uma atitude reservada


em relação ao novo individualismo. Auto-realização, a reali-
zação de um potencial: não são essas coisas meras formas de
terapia pela palavra, ou a auto-indulgência dos afluentes?
Obviamente podem ser, mas encará-las como nada mais que
isso é deixar de perceber uma colossal mudança nas atitudes
e aspirações das pessoas. O novo individualismo segue de mãos
dadas com pressões por maior democratização. Todos nós
temos de viver de uma maneira mais aberta e reflexiva que
gerações anteriores. Essa mudança não é em absoluto apenas
benéfica: novos temores e ansiedades passam a ocupar o pri-
meiro plano. Mas muitas possibilidades positivas adicionais
emergem também.

Esquerda e direita

Desde seus primórdios, no final do século XVIII, a distinção


entre esquerda e direita permaneceu ambígua e difícil de es-
tabelecer claramente, embora se recuse inflexivelmente a de-
saparecer. Em sua história dos grupos políticos e partidos que
se qualificaram como “nem de esquerda nem de direita”, o
48 Anthony Giddens

historiador francês do fascismo Zeev Sternhell observa o quan-


to a natureza da divisão foi sempre contestada.º Esquerda e
direita também mudaram seus significados ao longo do tem-
po. Uma rápida observação do desenvolvimento do pensamen-
to político mostra que as mesmas idéias foram vistas como
esquerdistas em certos períodos e contextos e como direitistas
em outros. Por exemplo, os defensores de filosofias de livre
mercado eram vistos no século XIX como na esquerda, mas
hoje são normalmente situados na direita. A afirmação de que
a distinção esquerda/direita está exaurida foi feita na década
de 1890 por sindicalistas e defensores do “solidarismo”,. Essa
afirmação vem sendo repetida regularmente ao longo dos anos.
Jean-Paul Sartre argumentou neste sentido na década de 1960,
mas a tese foi proposta com igual freqiiência por aqueles que
vinham da direita. Em 1930 o historiador Alain (Emile Chartier)
observou: “quando sou perguntado se à divisão entre esquer-
da e direita ainda tem algom sentido, o primeiro pensamento
que me vem à cabeça é que a pessoa que está fazendo a per-
gunta não é de esquerda.””?

O pensador político italiano Norberto Bobbio publicou em


1994 o mais polêmico livro sobre o tema da esquerda e da
direita nos últimos tempos,”* O livro foi um best-seller em sua
publicação original na Itália, tendo vendido mais de 200.000
exemplares em seu primeiro ano. Bobbio buscou defender a
permanente relevância da distinção em oposição a uma avalan-
che de obras que a declaram obsoleta — desta vez vindo prin-
cipalmente daqueles com uma origem mais de esquerda do que
de direita. Os argumentos de Bobbio são dignos de ser ouvi-
dos. As categorias de esquerda e direita, diz ele, continuaram

Fev Seernhell: Ni droite ni goucle,. Faris: Semil, 1983.

Citado em Donald Sassoon: Owe Hicudred Years of Socielism. Londres: Tauris,


1956, p. 776.
“Norbesto Bobbio: Left amd Right. Cambridge: Políty Press, 1996.

À terceira via 49

a exercer tal influência sobre o pensamento político porque a


política envolve necessariamente oposição, A essência da po-
lítica é a luta de idéias e políticas opostas, Esquerda e direita
vêm dos dois lados do corpo. Embora o que está “na esquer-
da" ou “na direita” possa mudar, nada pode estar na esquerda
é na direita 4o mesmo tempo, Trata-se de uma distinção pola-
rizante,

Quando partidos ou ideologias políticas estão mais ou


menos uniformemente equilibrados, afirma Bobbio, poucos
questionam a relevância da distinção entre esquerda e direita,
Mas em tempos em que um ou outro se torna tão forte que
parece estar “abafando a banca”, ambos os lados têm interes-
se em questionar essa relevância. O lado que é mais poderoso
tem interesse, como Margaret Thatcher proclamou, em decla-
rar que "não há alternativa". Como seu etos tornou-se impo-
pular, o lado mais fraco geralmente tenta se apossar de algu-
mas das idéias de seus opositores e propagá-las como suas
próprias opiniões. À estratégia clássica do lado perdedor é
produzir uma “síntese de posições opostas com a intenção, na
prática, de salvar o que pode ser salvo da própria posição va-
lendo-se de idéias da posição oposta e assim neutralizando-a"."
Cada lado se apresenta como indo além da velha distinção es-
querda/direita ou combinando elementos dela para criar uma
orientação nova e essencial,
A direita política trajou uma nova roupagem, por exem-
plo, no período posterior à Segunda Guerra Mundial, em se-
guida à queda do fascismo. Para sobreviver, partidos de direi-
ta tiveram de adotar alguns dos valores da esquerda e aceitar
a estrutura básica do welfare state, Desde o início da década
de 1980, as coisas se passaram ao contrário, por causa da as-
cendência ideológica do neoliberalismo e do colapso do co-

TiBohkbio: Left aud Rigia, p. 16.


50 Anthony Giddens

munismo. À afirmação de que Tony Blair se apossou da maior


parte das idéias do thatcherismo e as reciclou como algo novo
é facilmente compreensível a partir desse ponto de vista. Desta
vez é a esquerda que mais tem a ganhar afirmando que as ve-
lhas categorias já não fazem nenhum sentido. À distinção en-
tre esquerda e direita, segundo Bobbio, vai se reafirmar, como
o fez antes. Assim, dado que a social-democracia está revivendo
e à nova direita está rapidamente se tornando não tão nova,
os social-democratas podem em breve parar de duvidar se es-
querda e direita são obsoletas.

A diferença esquerda/direita, na visão de Bobbio, não é


puramente uma questão de polaridade. Um critério fundamen-
tal reaparece continuamente, a distinguir esquerda de direita:
atitudes para com a igualdade. A esquerda defende maior igual-
dade, ao passo que a direita vê a sociedade como inevitavel-
mente hierárquica. A igualdade é um conceito relativo. Temos
de perguntar: igualdade entre quem, do quê, e em que grau?
A esquerda busca reduzir a desigualdade, mas essa meta pode
ser compreendida de diferentes maneiras. O que acontece não
é que a esquerda deseja diminuir todas as desigualdades, ao
passo que a direita quer sempre preservá-las. A diferença é
contextual, Por exemplo, num país que tenha uma população
imigrante recente, o contraste entre esquerda e direita pode
Ser expresso no grau em que se considera que os imigrantes
deveriam ser contemplados com direitos básicos de cidadania
e proteção material.

Embora afirmando que a divisão entre esquerda e direita


vai continuar, Bobbio encerra uma “Resposta” a críticos de seu
livro admitindo que a distinção não tem agora a influência que
tinha outrora:

É inegável que a razão para a atual falta de direção da


esquerda é que emergiram no mundo moderno problemas

À terceira via 51

que os movimentos tradicionais da esquerda nunca pro-


puseram, e alguns dos pressupostos em que eles fundaram
sua força e seus planos para a transformação da sociedade
não se materializaram (...) Nenhum esquerdista pode ne-
gar que à esquerda hoje não é o que era antes. "*
Bobbio está sem dúvida correto ao dizer que a distinção
esquerda/direita não vai desaparecer e ao ver a desigualdade
no seu cerne. Embora possa ser interpretada de maneiras bas-
tante diferentes, a idéia de igualdade ou justiça social é bási-
ca para a perspectiva da esquerda. Ela foi persistentemente
atacada pelos de direita. À definição de Bobbio, no entanto,
necessita de algum refinamento. Os da esquerda não somen-
te buscam justiça social, mas também acreditam que o go-
verno deve desempenhar um papel-chave na promoção des-
sa meta. Em vez de falar de justiça social como tal, é mais
preciso dizer que ser de esquerda é acreditar numa política
de emancipação. À igualdade é importante sobretudo por ser
relevante para as oportunidades de vida, o bem-estar e a
auto-estima das pessoas. Como o expressa o filósofo de Ox-
ford, Joseph Raz:

o que nos leva a nos inquietar com várias desigualdades...


é a fome dos famintos, à necessidade dos necessitados... o
fato de estarem em piores condições do que seus vizinhos
é relevante. Mas é relevante não como um mal ou desi-
gualdade independentes. Sua relevância está em mostrar
que à fome deles é maior, sua necessidade mais premente,
seu sofrimento mais pungente e portanto é nossa preocu-
pação com à igualdade que nos faz lhes dar prioridade.

HVEpbhio: “Reply to the critics”, in Left ad Right, p. 133.

Hloseph Raz: The Morality of Freedom. Oxford: Clarendon Poess, 1586, p. 86.
52 Anthony Giddens

Há também outras razões para a inquietação com a igual-


dade, Uma sociedade extremamente desigual está se prejudican-
do por não fazer o melhor uso dos talentos e capacidades de
seus cidadãos. Além disso, as desigualdades podem ameaçar a
coesão social e podem ter outras conseqitências socialmente
indescjáveis (como provocar altas taxas de criminalidade), É
verdade que houve sociedades que contiveram grandes desigual-
dades e ainda assim permaneceram estáveis — o tradicional
sisterna de castas indiano, por exemplo. Numa época de demo-
cracia de massa as coisas são muito diferentes. Uma sociedade
democrática que gera desigualdade em larga escala tende a pro-
duzir descontentamento e conflitos generalizados.

A globalização, juntamente com a desintegração do comu-


nismo, alterou os perfis de esquerda e direita. Nos países in-
dustrializados, não há extrema esquerda de que se possa fa-
lar. Mas há uma extrema direita, que se define cada vez mais
em resposta à globalização — uma tendência comum que liga
políticos de direita como Pat Buchanan nos EUA, Jean-Marie
Le Pen na França e Pauline Hanson na Austrália. O mesmo
pode ainda ser dito sobre as margens mais extravagantes da
direita, como os patriotas nos EUA, que vêm tanto as Nações
Unidas quanto o governo federal como conspirações contra
sua integridade nacional. Os temas da extrema direita são o
protecionismo econômico e cultural. Buchanan, por exemplo,
proclama “A América primeiro!” Ele defende o isolacionismo
nacional e uma política austera em relação à imigração como
as alternativas adequadas à-“globalite”,

À distinção esquerda/direita perdura, mas uma questão


fundamental para social-democracia é se ela abrange tanto do
campo político quanto o fazia antes. Estamos nós, como Bobbio
parece sugerir, apenas num período de transição, antes que
esquerda e direita se restabeleçam com força total, ou houve
uma mudança qualitativa em sua relevância?

À terceira via 53

Seria difícil resistir à conclusão de que houve tal mudan-


ça. Suas razões foram bem exploradas nos debates social-
democráticos dos últimos anos. Quer fossem ou não direta-
mente influenciados pelo marxismo, a maioria dos pensadores
e ativistas da esquerda adotavam uma visão progressivista da
história. Aliavam-se estreitamente não só com a “marcha para
a frente do socialismo” mas também com o avanço da ciência
e da tecnologia. Os conservadores, por outro lado, eram céti-
cos com relação aos esquemas monumentais e pragmáticos no
tocante ao desenvolvimento social, e enfatizavam a continui-
dade. Hoje esses contrastes tornaram-se menos pronunciados.
Esquerda e direita igualmente passaram a aceitar a natureza
ambígua da ciência e da tecnologia, que gera grandes benefí-
cios e também cria novos riscos e incertezas,

Com a morte do socialismo como uma teoria de adminis-


tração econômica, uma das principais linhas divisórias entre
esquerda e direita desapareceu, pelo menos para o futuro pre-
visível. A esquerda marxista desejou derrubar o capitalismo e
substituí-lo por um sistema diferente. Muitos social-democra-
tas também acreditaram que o capitalismo podia e devia ser
progressivamente modificado, de modo a perder a maior par-
te de suas características definidoras. Ninguém mais tem qual-
quer alternativa para o capitalismo — as discussões que res-
tam dizem respeito a até que ponto, e de que maneiras, o
capitalismo deveria ser governado e regulado. Essas discussões
são certamente significativas, mas não se igualam às discor-
dâncias mais fundamentais do passado.

À medida que essas circunstâncias mudaram, toda uma


variedade de outros problemas e possibilidades que não estão
no âmbito do esquema esquerda!direita passaram para o pri-
meiro plano. Eles incluem questões ecológicas, mas também
problemas ligados à natureza em mudança da família, traba-
lho e identidade pessoal e cultural. Evidentemente, valores de
54 Anthony Giddens

justiça social e emancipação têm uma conexão com tudo isso,


mas cada uma dessas questões corta transversalmente esses
valores. Às políticas emancipatórias da esquerda clássica te-
mos de acrescentar o que chamei em outra obra de política da
vida." A expressão pode ser boa ou não. O que quero dizer
com ela é que, enquanto a política emancipatória diz respeito
às oportunidades de vida, a política da vida diz respeito a de-
cisões de vida. Ela é uma política de escolha, identidade e
mutualidade. Como deveríamos reagir à hipótese do aqueci-
mento global? Devemos aceitar a energia nuclear ou não? Até
que punto o trabalho deveria permanecer um valor central da
vida? Deveríamos defender a desestatização? Qual deve ser o
futuro da União Européia? Nenhuma destas é claramente uma
questão de esquerda/direita.

Estas considerações sugerem que os social-democratas de-


veriam lançar um novo olhar sobre o centro político. Partidos
social-democratas deslocaram-se para o centro em grande par-
te por razões oportunísticas. O centro político, no contexto
de esquerda e direita, só pode significar, é claro, conciliação,
o “meio” entre duas alternativas mais bem definidas. Contu-
do, se esquerda e direita são menos abrangentes do que foram
outrora, esta conclusão já não procede. À idéia do "meio ati-
wo", ou do “centro radical”, discutida bastante amplamente
entre social-democratas recentemente, deveria ser levada a
sério,

Ela implica que “centro-esquerda” não é inevitavelmente


o mesmo que “esquerda moderada”. Quase todas as questões
da política da vida aqui mencionadas requerem soluções radi-
cais ou sugerem políticas radicais, em diferentes níveis de
governo. Todas são potencialmente divisórias, mas as condi-
ções e alianças exigidas para enfrentá-las não acompanham

MAnihony Giddens: Beyond Left and Right. Cambridge: Politr Press, 1994,

À terceira via 55

necessariamente aquelas baseadas em interesses econômicos.


Em seu Culture of Contertment, o economista |. K. Galbraith
sugeriu que nas sociedades contemporâneas os afluentes per-
dem o interesse pelo destino dos desvalidos.” No entanto a
pesquisa nos países europeus mostra que sob muitos aspectos
dá-se o oposto. Alianças de baixo para cima podem ser cons-
truídas, e podem fornecer uma base para políticas radicais. O
ataque a problemas ecológicos, por exemplo, por certo exige
com freqiiência uma perspectiva radical, mas esse radicalis-
mo pode em princípio merecer consenso generalizado. O
mesmo se aplica desde a resposta à globalização à política da
família.

O termo “centro-esquerda" não é pois um rótulo inocen-


te. Uma social-democracia renovada tem de ser esquerda do
centro, porque justiça social e política emancipatória perma-
necem no seu cerne. Mas o “centro” não deveria ser encara-
do como vazio de substância. Estamos antes falando das ali-
anças que os social-democratas podem tecer a partir dos fios
da diversidade de estilos de vida. Problemas políticos tradici-
onais, assim como novos, necessitam ser pensados desse modo.
Um twelfare state reformado, por exemplo, tem de corres-
ponder a critérios de justiça social, mas tem também de reco-
nhecer e incorporar a escolha ativa de estilo de vida, estar
integrado com estratégias ecológicas e responder à novos ce-
nários de risco.

O “radicalismo” costumava ser pensado como o arremes-


so da esquerda contra a direita — e da esquerda contra à es-
querda, já que os pretensos revolucionários e marxistas viam
a si mesmos como completamente distintos daqueles a quem
encaravam como meros “reformistas”. A equação entre ser de
esquerda e ser radical já não se sustenta, se é que algum dia o

11, K. Galbraith: The Crlture of Conferiment. Londres: Sinclair-Seevenson, 1992


56 Anthony Giddens

fez. Muitos social-democratas acham tal situação descon-


fortável, mas ela oferece ganhos ponderáveis, uma vez que
permite trocas por sobre cercas políticas que antes eram mui-
to mais altas. Considere novamente o exemplo da reforma do
welfare. Há grandes diferenças entre social-democratas e
neoliberais quanto ao futuro do welfare state, e essas diferen-
ças se concentram em torno da divisão esquerda/direita. À
maioria dos social-democratas quer manter o relfare com dis-
pêndio elevado, ao passo que os neoliberais defendem um
twelfare de rede de segurança mínima. Contudo, há também
questões comuns encaradas por todos os reformadores do
welfare. À questão de como lidar com o envelhecimento da
população, por exemplo, não é meramente um problema de
fixar níveis de aposentadoria. Ela exige um repensamento mais
radical em relação à mudança da natureza do envelhecimento
como tal, aos padrões em mudança de saúde e doença, e mais
ainda,

Ação política

Em todas as tentativas de renovação política, a questão da ação


se impõe. Se um programa político coerente pode ser monta-
do, como deve ele ser implementado? Os partidos social-de-
mocratas surgiram originalmente como movimentos sociais no
final do século XIX e princípio do século XX. Hoje, além de
sofrerem suas crises ideológicas, eles se vêem flanqueados por
novos movimentos sociais e, como outros partidos, surpreen-
didos numa situação em que a política ficou desvalorizada e o
governo aparentemente esvaziado de poder. O neoliberalismo
empreendeu uma crítica constante do papel do governo navida
social e econômica, crítica que parece encontrar ressonâncias
em tendências do mundo real. É hora de os social-democratas

À terceira via S7

lançarem um contra-ataque a tais idéias, que não se susten-


tam quando examinadas de perto.

Os temas do fim da política, e da submersão do Estado pelo


mercado global, foram tão proeminentes na literatura recen-
te que vale a pena reiterar o que o governo pode realizar no
mundo contemporâneo.

O governo existe para:

e Prover meios para a representação dos diversos interesses.

e Oferecer um fórum para a conciliação das reivindicações


concorrentes desses interesses,

e Criar e proteger uma esfera pública aberta, em que o deba-


Fá irrestrito sobre questões políticas possa ser desenvolvi-

s Prover uma diversidade de bens públicos, entre as quais


formas de seguridade coletiva e bem-estar social.

e Regular mercados no interesse público e fomentar a com-


petição de mercado onde há ameaça de monopólio.

e Fomentar à paz social mediante o controle dos meios de


violência e mediante a provisão de policiamento.

e Promover o desenvolvimento ativo do capital humano atra-


vês de seu papel essencial no sistema de educação.

e Sustentar um sistema jurídico eficaz,

e Ter um papel diretamente econômico, como um emprega-


dor por excelência, na intervenção macro e microeco-
nômica, além da provisão de infra-estrutura.

e De maneira mais controversa, ter um propósito civilizatório


— o governo reflete normas e valores amplamente susten-
tados, mas pode também ajudar a moldá-los, no sistema
educacional e em outros setores,

s Fomentar alianças regionais e transnacionais e buscar a

realização de metas globais,


58 Anthony Giddens

Estas tarefas podem, é claro, ser interpretadas de muitas


maneiras amplamente diferentes, e há também áreas de sobre-
posição com meios não-estatais. À lista é de consecução tão
difícil que supor que Estado e governo se tornaram irrelevantes
não faz nenhum sentido.

Os mercados não podem substituir os governos em nenhu-


ma dessas áreas, mas tampouco o podem fazer movimentos
sociais ou outros tipos de organização não-governamental
(ONG), por mais significativos que se tenham tornado. Os
movimentos sociais e os chamados “partidos contestadores”
não desempenharam um papel tão importante no Reino Uni-
do na década de 1980 e no início da década de 1990 como em
muitos países do continente europeu, No entanto, as mudan-
ças produzidas pela globalização ameaçaram por toda parte
solapar os partidos políticos ortodoxos. Na década de 1980,
os social-democratas se viram sem uma estrutura ideológica
efetiva com que reagir, ao passo que movimentos sociais e
outros grupos empurravam para o primeiro plano as questões
que foram abandonadas pela política social-democrática tra-
dicional — ecologia, direitos dos animais, sexualidade, direi-
tos do consumidor e muitos outros,

(O que para alguns pareceu um processo de despolitização


— a subtração de influência dos governos nacionais e dos
partidos políticos —, para outros foi uma disseminação de
engajamento político e ativismo. Ulrich Beck fala da emergên-
cia da “subpolítica” — política que migrou do parlamento para
grupos de pressão unidirecionados na sociedade."* Muitos
desses grupos, tais como o Greenpeace ou o Oxfam, operam
numa escala global, Um episódio essencial para Beck e mui-
tos outros foi o de Brent Spar. A empresa petroleira Shell pla-
nejou em 1995 descartar o equipamento de extração de pe-

TUlrich Beck: The Risk Society. Londres: Sage, 1992.

À terceira via 59

tróleo de Brent Spar jogando-o no leito do oceano. Grupos


ambientalistas armaram vigorosos protestos e consumidores
em muitos países pararam de comprar gasolina da Shell. As
mudanças de atitude da empresa desde essa época foram de
grande alcance,

Em 1998, a Shell publicou um relatório substancial des-


crevendo suas novas atitudes com relação à responsabilidade
corporativa. O relatório fala de envolvimento num “debate
global”, “para aprender com os outros" e “explicar nossas
ações”. Ela aceita que há uma “responsabilidade em assegu-
rar que nossos negócios sejam gerenciados de uma maneira
eticamente aceitável pelo resto do mundo" e que “devemos
mostrar que estamos fazendo isso permitindo a verificação
independente da segurança”. A Shell afirma ser a primeira
grande empresa de energia a apoiar publicamente a Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos da ONU. Um Comitê de
Responsabilidade Social foi instituído em 1997 para rever as
políticas e a conduta dos negócios da Shell."

Um discurso feito por Cor Herkstroter, o presidente mun-


dial da Shell, é revelador. Sobre os grupos ambientalistas e de
consumidores ele diz, "fomos de certo modo lentos em com-
preender que esses grupos estavam tendendo a adquirir po-
der. Subestimamos a extensão dessas mudanças — não nos
empenhamos em um diálogo sério com esses novos grupos”,
E acrescenta, "em termos simples, as instituições da socieda-
de global estão sendo reinventadas à medida que a tecnologia
redefine relacionamentos entre indivíduos e organizações”,
Os novos movimentos, grupos é ONGs são portanto ca-
pazes de flectir seus músculos na cena mundial e até socieda-
des anônimas globais têm de tomar conhecimento deles. Beck
compara “a imobilidade do aparato de governo” com à “mo-

Pehell: Profits ad Privciples. Londires: Shell, 1998.


60 Anthony Giddens

bilidade de agentes de todos os níveis possíveis da sociedade”


e "a exaustão da política” com “a ativação da subpolítica”,
Grupos de iniciativa de cidadãos, ele afirma, tomaram o po-
der unilateralmente, sem esperar pelos políticos. Eles, não os
políticos, introduziram questões ecológicas, e também muitas
outras novas preocupações, no programa político. Grupos de
cidadãos provocaram a transição da Europa Oriental em 1989:
“sem nenhuma fotocopiadora ou telefone", eles foram capa-
zes de forçar os grupos dominantes a se afastar e a desmoro-
nar simplesmente reunindo-se numa praça”

O crítico cultural Hans Magnus Enzensberger escreve


sobre a Alemanha — e por implicação também sobre outros
países:

'Os políticos se sentem insultados porque o povo está cada


vez menos interessado neles... [mas] há bastante tempo
inovações e decisões sobre o futuro não se originam da
classe política... O Governo Federal [alemão] é relariva-
mente estável e relativamente bem-sucedido, apesar, e não
por causa, do fato de ser comandado por essas pessoas
que riem para nós dos cartazes de campanha... A Alema-
nha pode se dar ao luxo de um governo incompetente,
porque em última análise as pessoas que nos amolam nos
jornais diários realmente não importam. !º

Tais comentários são coerentes com achados de pesquisa


sobre a confiança declinante nos políticos e na máquina da
política ortodoxa, semelhantes na maioria dos países indus-
trializados. Nos EUA, 76% da população, em um levantamen-
to de opinião realizado em 1964, responderam “todo” ou “a
maior parte do tempo” à pergunta: “Durante quanto tempo
TU Bode: "The reinvention of politics”, in Ulrich Beck, Anthony Giddens e

Soo Lash: Reflexive Moderwizatiom. Cambridge: Pality Press, 1954, pp. 17-19,
Citado em Beck: “The reinvention of politics”, p. 22.

À terceira via 61

você confia em que o governo em Washington fará o que deve


ser feito?” Uma reedição do levantamento feita em 1994 mos-
trou que a proporção tinha caído para 25%, Dos que expressa-
vam permanente confiança no governo, 61% tinham votado
nas eleições presidenciais anteriores, comparados com 35%
dos menos confiantes. Os jovens têm uma atitude mais reser-
vada em relação à política parlamentar que as gerações mais
velhas, embora os jovens tenham maior interesse que 05 mais
velhos em questões de “snubpolítica”. À “longa geração cívi-
ca” nascida entre 1910 e 1940 é mais propensa a confiar em
políticos e a votar.º Um levantamento feito em onze países
da Europa Ocidental em 1981 e repetido em 1990 mostrou que
a confiança nas instituições do governo havia declinado em seis
países, era estável mas bastante baixa em quatro e se elevara
em apenas um (Dinamarca), Não é apenas porque as pessoas
expressam menos confiança nos políticos do que antes: o mes-
mo pode ser dito de suas atitudes para com outras figuras de
autoridade, como a polícia, advogados ou médicos.?*!
“Partidos contestadores” procuraram explorar esses sen-
timentos atacando os partidos ortodoxos diretamente. Parti-
dos verdes e partidos populistas de extrema-direita lançaram
um desafio na busca de uma parcela de poder na maioria dos
países industrializados. Ambos os tipos de partido estão liga-
dos a movimentos sociais mais amplos e ambos protestam
explicitamente contra os partidos e os sistemas de governo
estabelecidos. Desde 1998, os verdes têm deputados em onze
parlamentos nacionais na Europa. Os partidos populistas
direitistas, que foram em sua maioria instituídos na década de
1580, têm uma representação mais variada, tendo até 209% de
apoio em alguns países, como o Freiheitliche Partei na Áus-

Pl iniversity of Weshington Graduate School of Public Affairs: Trust in Gorerneoesr

Project. Seasele, 1998.


Bloseph Nye: “ln governonent oe don't rose”, Foreiçu Polícy, outono de 1997.
62 Anthony Giddens

tria, e praticamente nenhuma presença em todos os outros,


como o Reino Unido, a Espanha, a Holanda e a Noruega.
Não há nenhum sinal de que esses partidos vão ganhar mais
apoio eleitoral do que já conseguiram até agora, embora isso
por vezes os ponha na posição de quem controla a influência
política de terceiros. Como ocorre com os movimentos sociais
€ grupos ativistas, sua importância é em grande parte simbó-
lica: eles impõem questões para o programa político, e dão
forma concreta às lutas que as cercam. Partidos e movimen-
tos de extrema-direita se tornariam perigosos caso passassem
a ser algo mais que preocupações minoritárias. Os verdes, por
outro lado, propõem questões ideológicas que são impossíveis
ignorar, e que põem em xeque algumas das orientações bási-
cas da social-democracia. Apesar dos dez anos de discussão
sobre a “modernização ecológica”, não se pode dizer que os
social-democratas foram capazes de assimilar adequadamen-
te o pensamento ecológico. “Mesmo na oposição, a esquerda
estabelecida na maioria dos países não demonstrou convincen-
temente até o final da década de 1990 que mudou sua posição
com relação às novas questões.”** Em parte a dificuldade re-
side na enormidade dos problemas intelectuais e de política
envolvidos. Além disso, a maioria dos partidos social-demo-
cratas está dividida, uma conseqitência de estar a meio cami-
nho, em que idéias da velha esquerda permanecem proeminen-
tes e nenhuma alternativa plenamente desenvolvida se formou.
Até que ponto irão as “subpolíticas” substituir as esferas
mais convencionais de política e governo? Beck está certo ao
afirmar que o interesse declinante pela política partidária e
parlamentar não significa despolitização. Movimentos sociais,
grupos de pressão unidirecionados, ONGs e outras associa-

Ferdinand Moler-Romamel: The neve challenges: greens and vila. populist


parties in Wessern Enrope”", Easariaes esáe ECL 6 1598, p. 20

A terceira via 63

ções de cidadãos seguramente terão importância na política


de forma continua — a partir de um nível local para um nível
mundial. Os governos terão de estar prontos para aprender
com eles, reagir às questões que levantam e negociar com eles,
como terão de fazer as empresas e outras instituições de ne-
gócios.

No entanto, a idéia de que tais grupos podem assumir o


controle quando o governo está falhando, ou pode tomar o
lugar dos partidos políticos, é fantasiosa. O Estado-nação e o
governo nacional podem estar mudando de forma, mas ambos
conservam uma importância decisiva no mundo de hoje. As
“pessoas que nos amolam nos jornais diários" têm importân-
cia, e continuarão a ter por um futuro indefinido. As mudan-
ças de 1989 na Europa Oriental dependeram de fato pelo
menos da conivência dos Estados e de seus líderes — particu-
larmente a decisão da liderança soviética de não enviar tropas
para reprimir as manifestações. Por mais importantes que
movimentos e grupos de interesse especial possam ser, eles não
podem, como tais, governar. Uma das principais funções do
governo é precisamente conciliar as reivindicações divergen-
tes de grupos de interesse especial, na prática e de direito. Mas
“governo” aqui deveria ser compreendido num sentido mais
geral que o de mero governo nacional. Os social-democratas
têm de considerar de que maneira o governo deve ser mais bem
reconstruído para atender às necessidades da época.

Questões ecológicas

A importância da política ecológica vai muito além de qualquer


influência que os movimentos sociais verdes possam concentrar,
ou da proporção dos votos que partidos verdes possam obter.
Na política concreta, a influência dos grupos ecológicos já foi
64 Anthony Giddens

considerável, especialmente na Alemanha — não é surpreenden-


te que a noção de “subpolítica” tenha se originado lá. Em sua
obra The German Left, Andrei Markovits e Philip Gorski ob-
servam que “ao longo de toda a década de 1980 os verdes se
desenvolveram no agente socializante da esquerda no sentido
de que praticamente todas as suas idéias, inovações políticas,
formulações estratégicas, estilo de vida (...) se originaram dos
verdes e de seu meio”.º O chanceler Willy Brandt gostava de
dizer que os verdes eram os “filhos perdidos do SPD”, mas na
verdade os social-democratas foram revitalizados por sua con-
frontação compulsória com o movimento ecológico. Às conse-
qiiências são tangíveis. A Alemanha é um dos mais destacados
países do mundo em termos de medidas ambientais como efici-
ência energética (quantidade de energia necessária para produ-
zir uma unidade do produto nacional) ou emissões per capita
de poluentes como dióxido de carbono ou dióxido de enxofre.

Os movimentos ambientais, é claro, não são talhados de uma


só peça, e o campo ecológico é abundante em controvérsias.
Premonições de possíveis catástrofes globais foram expressas
primeiramente na década de 1960 e logo floresceram em predi-
ções inteiramente maduras. Os recursos da Terra, foi procla-
mado, estão sendo consumidos numa taxa assustadora, enquanto
a poluição está destruindo o equilíbrio ecológico de que a con-
tinuidade da natureza depende. Essas advertências desespera-
das provocaram uma robusta reação dos críticos, que afirma-
ram que o crescimento econômico indefinido é possível. Eles o
fizeram sobretudo com base na teoria econômica neoliberal.
Princípios de mercado vão assegurar que não haja limite algum
para o crescimento, Como outros bens, se algum recurso natu-
ral se tornar mais escasso seu preço subirá e seu consumo cai-

Bandrei Markovits e Philip Gorski: The Germau Left, Cambridge: Polity Press,
15993; Nova York: Oxford Universiry Press, 1993, p. 269.

À terceira via 65

rá. Se o preço dos bens caí, isso significa que a oferta está supe-
rando a demanda. O economista Julian Simon fez uma famosa
aposta com o ambientalista Paul Ehrlich em 1980. Simon apos-
tou que, para qualquer conjunto de recursos naturais que Ehbrlich
pudesse apontar, 05 preços seriam mais baixos num momento
especificado no futuro. Ebrlich escolheu 1990, e selecionou
cobre, cromo, níquel, estanho e tungstênio. Em 1990, os pre-
ços desses materiais estavam de 24 a 789% mais baixos do que
tinham sido dez anos antes. Ebrlich pagou devidamente a aposta.

No tocante à poluição, Simon e outros com linhas simila-


res de argumentação simplesmente tendem a negar que haja
qualquer causa para preocupação, O aquecimento global, por
exemplo, ou não está acontecendo, ou é um fenômeno natu-
ral e não provocado pela atividade humana. À natureza tem
uma propriedade restauradora que vai muito além de qualquer
impacto que seres humanos possam ter sobre o ambiente —
por exemplo, a natureza está sempre criando novas espécies,
assim como destruindo-as,**

Essa visão é defensável? Não acredito. Soluções de mer-


cado são possíveis para uma diversidade de problemas ecoló-
gicos, no entanto, como em outros campos, isso não deveria
implicar uma opção pelo fundamentalismo de mercado. Ser
otimista em relação a perigos ambientais seria em si mesma
uma estratégia extremamente perigosa. Reconhecer esse fato
significa comprometer-se com as idéias de desenvolvimento
sustentável e modernização ecológica, como a maioria dos
partidos social-democratas reconhecem corretamente.

Desde sua inclusão no relatório da Comissão Brandtland em


1987, o desenvolvimento sustentável tornou-se a preocupação
dominante dos grupos ambientalistas, e a maioria dos políticos
reconhece, pelo menos de boca para fora, sua importância.

nkian LL. Simon e Herman Kaba: The Resourceful Earth. Oxford: Blackwell, 1984.
66 Anthony Giddens

Brondtland forneceu uma definição enganosamente simples de


desenvolvimento sustentável, como a capacidade da atual gera-
ção “de assegurar que ele atenda às necessidades do presente
sem comprometer a possibilidade de futuras gerações de satis-
fazer suas próprias necessidades”. Uma vez que não sabemos
quais serão as necessidades das futuras gerações, ou de que
modo a utilização do recurso será afetada pela mudança tecno-
lógica, a noção de desenvolvimento sustentável não permite
precisão — não é surpreendente que pelo menos quarenta di-
ferente definições dela tenham sido registradas.

Desenvolvimento sustentável, portanto, é mais um princípio


norteador do que uma fórmula precisa. Seja como for, ele foi en-
dossado na Agenda 21, um programa patrocinado pela ONU
como uma atualização detalhada dos esforços de Brundtland.
Vários países fizeram consideráveis esforços para introduzi-lo em
seu pensamento econômico. Espantosamente, o governo conser-
wvador da Grã-Bretanha em 1988 proclamou que a política eco-
nômica britânica estava de acordo com os princípios do desen-
volvimento sustentável, o que mostra o quanto o conceito é
maleável.

A atitude britânica no fim da década de 1980 e início da


década de 1990 contrastou acentuadamente com a de alguns
países europeus — por exemplo a Holanda, que em 1989 for-
mulou um plano nacional para integrar critérios ecológicos nas
operações de rotina de todos os departamentos do governo.
Cada departamento tem metas de qualidade ambiental e um
cronograma estabelecido com as datas em que elas devem ser
alcançadas. O desenvolvimento sustentável é definido como
evitar as tecnologias poluidoras em favor de modos de produ-
ção planejados desde o início para impedir ou limitar a polui-

FiWorld Commissos on Environment and Development: Our Comuronr Future,


Oxford: Oxford University Press, 1987, p. 8.

A terceira via 67

ção. Grupos de cidadãos e representantes da indústria parti-


cipam dos encontros que conduzem ao planejamento das me-
tas. O esquema tem tido a parcela habitual de reveses e difi-
culdades, mas teve importância na transformação da Holanda
em um país com um dos melhores indicadores ambientais.

A noção de desenvolvimento sustentável corresponde bem


à noção mais ampla de modernização ecológica. De acordo
com Marteen Hajer, um de seus principais teóricos, a moder-
nização ecológica reúne vários “enredos críveis e atraentes”:
desenvolvimento sustentável em lugar de “crescimento defi-
nidor"; uma preferência pela prevenção no lugar da cura; o
equacionamento de poluição com ineficiência; e o tratamen-
to da regulação ambiental e do crescimento econômico como
mutuamente benéficos.” Embora a intervenção do governo
seja necessária para promover sólidos princípios ambientais,
ela envolve a ativa cooperação da indústria — é de se esperar
que seja sua cooperação voluntária, mediante o reconhecimen-
to de que a modernização ecológica é benéfica para os negó-
cios, “A modernização ecológica implica uma parceria em que
governos, empresas, ambientalistas moderados e cientistas
cooperam na reestruturação da economia política capitalista
em linhas mais defensáveis ambientalmente.”

Bom demais para ser verdade? É mesmo. Não há a menor


dúvida de que a modernização ecológica associa preocupações
social-democráticas e ecológicas mais estreitamente do que
antes parecia possível. Ela tem realizações reais em seu favor:
os países mais influenciados pela idéia de modernização eco-
lógica são os mais limpos € os mais verdes entre as nações
industrializadas. Contudo, por proclamar chegar ao melhor

*“Marteen À. Hajer: The Politics of Environment Discowrse. Oxford: Clarendon

Press, 1995.
Plokn Dryaek: The Polítics of the Earth, Oxford: Oxford Universiry Press, 1997,
Pp. 145.
68 Anthony Giddens

dos mundos, a modernização ecológica contorna alguns dos


maiores desafios que os problemas ecológicos propõem para
o pensamento socialdemocrático. Não é realmente convincen-
te supor que proteção ambiental e desenvolvimento econômi-
co se adaptem confortavelmente — um está fadado a entrar
por vezes em conflito com o outro. Além disso, moderniza-
ção ecológica é em grande parte uma questão de política nacio-
nal, mas riscos ambientais em geral cruzam as fronteiras das
nações e alguns são de alcance global.

Os pressupostos um tanto amplos da modernização eco-


lógica desviam a atenção de duas questões fundamentais le-
vantadas por considerações ecológicas: nossa relação com o
avanço científico e nossa reação ao risco. Em parte como
uma conseqiiência da globalização, a mudança científica e
tecnológica se acelerou, e sua influência sobre nossas vidas
tornou-se tanto mais imediata quanto mais profunda. Pode-
ríamos pensar “o ambiente” como o mundo natural, mas é
claro que isso não é mais assim. Muito do que antes era na-
tural é agora produto da atividade humana, ou é influencia-
do por ela — não somente o mundo externo, incluindo pos-
sivelmente o clima da Terra, mas tambémo “ambiente interno”
do corpo. Para melhor ou para pior, a ciência e a tecnologia
invadiram o corpo humano, e retraçaram a fronteira entre o
que pode ser humanamente realizado e o que simplesmente
temos de “aceitar” da natureza,

A ciência e a tecnologia costumavam ser vistas como alheias


à política, mas essa visão se tornou obsoleta. Todos nós vive-
mos numa relação mais “interrogatória”" com a ciência € aino-
vação industrial do que costumava ser. “Novas vias expressas,
usinas de incineração de lixo, usinas químicas, nucleares ou
biotécnicas e institutos de pesquisa confrontam-se com a re-
sistência da população imediatamente afetada. Isso, e não
(como no início da industrialização) o regozijo diante de tal

A terceira via 69

progresso, é o que passou a ser previsível.”*! A tomada de


decisão nesses contextos não pode ser deixada aos “especia-
listas”, mas tem de envolver políticos e cidadãos. Em suma,
ciência e tecnologia não podem ficar alheias ao processo de-
mocrático. Não se pode esperar que especialistas saibam au-
tomaticamente o que é bom para nós, tampouco podem eles
sempre nos fornecer verdades inquestionáveis; eles deveriam
ser convocados para justificar suas conclusões e planos de ação
diante do escrutínio público,

À crise da doença da vaca louca no Reino Unido é vista por


muitos como tinica — como um problema britânico, ou, aos
olhos de alguns da esquerda, como uma falha thatcherista de
regulação. Não é uma coisa nem outra, ou não é somente isso,
O episódio da doença da vaca louca deveria antes ser compre-
endido como uma típica situação de risco que se desenvolve
quando “a natureza já não é a natureza”. Característico da nova
situação é que os especialistas discordam uns dos outros. Em
vez de um conjunto bem definido de achados para serem en-
caminhados para os formuladores de políticas, as pesquisas
geram conclusões ambíguas e interpretações controversas,

Com muitos riscos-padrão, as tendências são historicamen-


te estabelecidas. Riscos podem ser calculados com base na
experiência passada. O risco de um motorista ser envolvido
num acidente de tráfego ao longo de um determinado período
pode ser facilmente calculado numa base estatística. As novas
situações de risco não são assim, Não temos experiência pas-
sada para nos guiar, e mesmo a existência de quaisquer riscos
pode ser wociferadoramente discutida. A maioria dos cientis-
tas no campo acredita que 0 aquecimento global está ocorren-
do, que ele tem origem na ação humana, e que reserva possí-
veis desastres para a humanidade. No entanto, uma significativa

FReck: “The reinvention nf polítics”, p. 29.


70 Anthony Giddens

minoria de especialistas não acredita em nenhuma dessas coi-


sas e, como vimos, alguns dos que contribuem para a literatu-
ra ambiental concordam com eles.
Os eventos da doença da vaca louca até agora estão longe
de ter se esgotado. Ninguém sabe em quantos outros países a
doença da vaca louca pode aparecer, ou quais podem ser suas
conseqiiências a longo prazo. O modo preciso de sua trans-
missão entre espécies é um mistério e ela pode ter um longo
período de latência. Seu impacto puramente econômico já foi
considerável. A última estimativa da pesquisa da doença da vaca
louca em 1998 situa seus custos para a economia do Reino
Unido em até três bilhões de libras mensais, medidos apenas
em termos de indenizações pagas aos fazendeiros e custos para
eliminar o gado infectado e descartar de seus restos. O con-
sumo de carne de boi caiu em vários países ainda não afeta-
dos de maneira direta por essa doença.

O episódio da doença da vaca louca proporciona uma ampla


indicação, se é que há necessidade de indicação, de que riscos
ecológicos não podem ser “deixados de lado”, mas fluem para
as áreas essenciais da política moderna. É óbvio, por exem-
plo, que as políticas de assistência à saúde não podem ser pla-
nejadas como se controle da poluição e “ambiente” fossem
áreas distintas, ou como se estivessem separados de proces-
sos de mudança tecnológica. Enfrentar o risco ecológico será
uma questão problemática para o futuro previsível.

Na literatura da modernização ecológica, o princípio do


acautelamento é geralmente proposto como um meio para
enfrentar as ameaças ecológicas. O conceito parece ter sido
usado primeiro na Alemanha na década de 1980 e até certo
ponto fez parte da política pública daquele país. Em sua for-
ma mais simples, ele declara que a ação sobre questões ambien-
tais deve ser tomada ainda que haja incerteza científica acer-
ca delas. Assim, em vários países do continente europeu, foram

À terceira via 71

instituídos programas para combater a chuva ácida na década


de 1980, ao passo que na Grã-Bretanha a falta de indícios
conclusivos foi usada para justificar a inatividade diante des-
se e de outros problemas de poluição também,

No entanto, o princípio do acautelamento não é sempre


útil ou mesmo aplicável. O risco ecológico muitas vezes não
será normalizado dessa maneira, porque em muitas situações
nós já não temos a opção de “permanecer junto à natureza”,
ou porque o equilíbrio entre os benefícios e os perigos do avan-
ço científico e tecnológico é imponderável. Podemos precisar
com muita freqilência ser mais audaciosos do que cautelosos
no apoio à inovação científica e tecnológica.

O caráter complexo das novas situações de risco se esten-


de até à maneira como entram no debate público. Tome o
exemplo da doença da vaca louca novamente. O governo da
época foi amplamente acusado de, em primeiro lugar, negar
que a doença da vaca louca gera um risco de saúde para seres
humanos, para mais tarde inverter sua posição à luz de novas
evidências científicas. É muito fácil repudiar tal incoerência
como incompetência governamental, Onde existe risco novo,
é as evidências científicas são incompletas, os governos têm
de tomar decisões que são por definição um salto no escuro.
Uma incerteza básica está envolvida no quando e no como
anunciar possíveis perigos que vieram à luz por informação
científica nova. O anúncio público de um novo cenário de ris-
co, como o episódio da doença da vaca louca mostra, pode ter
profundas conseqiiências. Se um risco é divulgado — ou re-
cebe condição “oficial” pela intervenção do governo — e de-
pois revela ter sido exagerado ou não ser existente, os eríti-
cos vão falar de “alarmismo”. Suponha, no entanto, que as
autoridades ou acreditam que o risco é baixo, ou sejam caute-
losas quanto a divulgá-lo, Os críticos falarão de “acober-
tamento” — por que o público não foi informado mais cedo?
72 Anthony Giddens

Os problemas envolvidos aqui são ainda mais difíceis que


isso. Por vezes assustar as pessoas pode ser necessário para
convencê-las a alterar seu comportamento, ou a aceitar os pas-
sos que devem ser tomados para evitar um perigo específico ou
uma série de perigos. À ação mundial eficaz para combater o
aquecimento global, por exemplo, só tem probabilidade de acon-
tecer se governos e outras instituições se tornarem significati-
vamente perturbados com os desastres que de outro modo po-
dem sobrevir. No entanto, há presumivelmente um limite para
o número de medos que podem ou deveriam ser publicamente:
promovidos. Se houver demais, há o risco de que nenhum deles
seja levado a sério,

Proporcionar segurança aos cidadãos é há muito tempo


uma preocupação dos social-democratas. O welfare state foi
visto como o veículo de tal segurança. Uma das principais li-
ções a extrair das questões ecológicas é que igual atenção pre-
cisa ser dada ao risco. À nova proeminência do risco conecta
à autonomia individual de um lado com a influência avas-
saladora da mudança científica e tecnológica em outro. O ris-
co chama atenção para os perigos que enfrentamos — os mais
importantes dos quais nós criamos para nós mesmos —, mas
também para as oportunidades que os acompanham. Risco não
é somente um fenômeno negativo — algo a ser evitado ou
minimizado. Ele é ao mesmo tempo o princípio energizador
de uma sociedade que se afastou da tradição e da natureza.

Tradição e natureza são semelhantes no sentido de que


tomam muitas decisões “à revelia”. Atividades e eventos são
“sempre feitos desse modo” ou são aceitos como “naturais”,
Uma vez que tradição e natureza sejam transformadas, deci-
sões orientadas para o futuro têm de ser tomadas e somos
responsáveis por suas conseqilências. Quem deve assumir a
responsabilidade pelas conseqiiências futuras de atividades
presentes (seja de indivíduos, nações ou outros grupos) é uma

A terceira via 73
das maiores preocupações da nova política, como é a de quem

provê segurança se as coisas dão errado, como e com que re-


cursos.

À matriz do risco

Oportunidade Inovação
Segurança Responsabilidade

Oportunidade e inovação são o lado positivo do risco. Nin-


guém pode escapar ao risco, é claro, mas há uma diferença
básica entre a experiência passiva de risco e a exploração ati-
va de ambientes de risco. Um compromisso positivo com o
risco é um componente necessário da mobilização social e
econômica. Alguns riscos nós queremos minimizar tanto quan-
to possível; outros, como os envolvidos em nossas decisões de
investimento, são uma parte positiva e inevitável de uma eco-
nomia de mercado bem-sucedida,

Risco não é exatamente o mesmo que perigo. Risco se re-


fere a perigos que buscamos ativamente confrontar e avaliar.
Numa sociedade como à nossa, orientada para o foturo e
saturada de informação, o tema do risco une muitas outras
áreas da política em outros sentidos inteiramente dissimilares:
reforma do welfare state, compromisso com os mercados fi-
nanceiros mundiais, reações à mudança tecnológica, proble-
mas ecológicos e transformações geopolíticas. Todos precisa-
mos de proteção contra o risco, mas também da capacidade
de enfrentar e assumir riscos de uma maneira produtiva.
74 Anthony Giddens
Política da terceira via

Até agora discuti os “cinco dilemas” separadamente, como se


eles fossem independentes uns dos outros. É claro que não são,
e neste capítulo e nos subseqilentes precisamos atar os fios.

O objetivo geral da política da terceira via deveria ser aju-


dar os cidadãos a abrir sen caminho através das mais impor-
tantes revoluções de nosso tempo: globalização, transforma-
ções na vida pessoal e nosso relacionamento com a natureza,
A política da terceira via deveria adotar uma atitude positiva
em relação à globalização — mas, decisivamente, somente
como um fenômeno de espectro muito mais amplo que o mer-
cado global. Os social-democratas precisam contestar o pro-
tecionismo econômico e cultural, o território da extrema-es-
querda, que vê a globalização com uma ameaça à integridade
nacional e aos valores tradicionais. A globalização econômica
pura e simples pode ter efeitos destrutivos sobre a auto-sufi-
ciência local. Ainda assim, o protecionismo não é nem sensa-
to nem desejável. Mesmo que pudesse ser eficaz, iria criar um
mundo de blocos egoístas e provavelmente hostis. A política
da terceira via não deveria identificar a globalização com um
endosso coletivo ao livre mercado. O livre mercado pode ser
um motor de desenvolvimento econômico, mas, dado o poder
social e culturalmente destrutivo dos mercados, suas conse-
qliências mais amplas precisam sempre ser examinadas com
cuidado.

A política da terceira via deveria preservar uma preocupa-


ção essencial com a justiça social, aceitando ao mesmo tempo
que o âmbito de questões que escapam à divisão esquerda/di-
reita é maior do que antes. Igualdade e liberdade individual
podem entrar em conflito, mas medidas igualitárias também
aumentam muitas vezes o espectro das liberdades abertas aos
indivíduos. Liberdade para os social-democratas deveria signi-

A terceira via 75

ficar autonomia de ação, o que por soa vez exige 0 envolvimento


da comunidade social mais ampla, Tendo abandonado o coleti-
vismo, a política da terceira via busca um novo relacionamento
entre o indivíduo e a comunidade, uma redefinição de direitos
e obrigações.

Poder-se-la sugerir como um moto primordial para a nova


política, não há direitos sem responsabilidades. O governo tem
todo um aglomerado de responsabilidades para com seus cida-
dãos e outros, incluindo à proteção aos vulneráveis. A social-
democracia do velho estilo, no entanto, era propensa a tratar
direitos como exigências incondicionais. Com o individualismo
em expansão deveria vir uma extensão das obrigações indivi-
duais. Auxilios-desemprego, por exemplo, deveriam acarretar
à obrigação de procurar trabalho ativamente, e cabe aos gover-
nos assegurar que os sistemas de bem-estar social não de-
sencorajem à procura ativa, Como um princípio ético, a máxi-
ma "não há direitos sem responsabilidades” deve se aplicar não
apenas aos beneficiários do welfare, mas também a todos. É ex-
tremamente importante para os social-democratas enfatizar
isso, porque de outro modo o preceito pode ser considerado
aplicável somente aos pobres ou aos necessitados — como ten-
de a ser o caso na direita política.

Um segundo preceito, numa sociedade de hoje, deveria ser


não há autoridade sem dermocracia. A direita sempre conside-
rou os símbolos tradicionais como os meios perfeitos para
justificar a autoridade, seja na nação, no governo, na família,
seja em outras instituições.” Pensadores e políticos de direita
afirmam que sem tradição e sem formas tradicionais de defe-
rência a autoridade se esfacela — as pessoas perdem a capa-
cidade de diferenciar entre o certo é o errado. Conseqiiente-

lalian Le Grand: “Knoights, lenaves or pavens", fowranal of Social Folícy, vol. 26,
parte 2, abril de 1957.
76 Anthony Giddens

mente a democracia nunca pode ser mais do que parcial. Os


social-democrática devem se opor a essa visão. Numa socie-
dade em que a tradição e o costume estão perdendo seu do-
mínio, a única rota para o estabelecimento da autoridade é a
via democrática. O novo individualismo não corrói inevitavel-
mente à antoridade, mas exige que ela seja remodelada de
forma ativa ou participatória.

Valores da terceira via

Igualdade

Proteção aos vulneráveis

Liberdade como autonomia

Não há direitos sem responsabilidades


Não há autoridade sem democracia
Fluralismo cosmopolita
Conservadorismo filosófico

Outras questões com que a política da terceira via se preo-


cupa não pertencem à estrutura da emancipação política, ou
só lhe concernem parcialmente. Elas incluem reações à globali-
zação, à mudança científica e tecnológica e nosso relaciona-
mento com o mundo natural. As perguntas a serem feitas aqui
não dizem respeito à justiça social, mas ao modo como deve-
ríamos viver após o declínio da tradição e do costume, como
deveríamos recriar a solidariedade social e reagir a problemas
ecológicos. Em resposta a estas questões, uma forte ênfase deve
ser dada a valores cosmopolitas, e ao que poderíamos chamar
de conservadorismo filosófico. Numa era de risco ecológico,
a modernização não pode ser puramente linear e certamente

À terceira via T7

não pode ser simplesmente identificada com crescimento eco-


nômico.

A questão da modernização é uma questão básica para a


nova política. A modernização ecológica é uma versão, mas
há outras também. Os discursos de Tony Blair, por exemplo,
são apimentados com a conversa da modernização. Que se
deveria entender por modernização? Uma coisa que ela signi-
fica, obviamente, é a modernização da própria social-demo-
cracia — o afastamento de posições social-democráticas clás-
sicas. Como um programa mais amplo, contudo, uma estratégia
de modernização só pode funcionar se os social-democratas
tiverem uma sofisticada compreensão do conceito.

A modernização ecologicamente sensível já não diz respeito


a “mais e mais modernidade", porém é consciente dos proble-
mas e limitações dos processos modernizantes. É atenta à ne-
cessidade de restabelecer continuidade e desenvolver coesão
social num mundo de transformações erráticas, em que as ener-
gias intrinsecamente imprevisíveis da inovação científica e
tecnológica desempenham um papel tão importante.

O tema do conservadorismo filosófico é central. Moder-


nização e conservadorismo, é claro, são normalmente trata-
dos como opostos. No entanto, devemos usar as ferramentas
da modernidade para lidar com o viver mum mundo “além da
tradição” e “do outro lado da natureza", em que risco e res-
ponsabilidade se misturam de uma nova maneira.

“O conservadorismo”, neste sentido, tem apenas uma afi-


nidade débil com o modo como tem sido entendido na direita
política. Ele sugere uma atitude pragmática no enfrentamento
da mudança; uma visão nuançada da ciência e da tecnologia,
em reconhecimento às suas conseqgiiências ambíguas para nós;
um respeito pelo passado e pela história; e, na arena ambiental,
uma adoção do princípio do acautelamento onde for possível.
Essas meras não apenas são compatíveis com um programa
78 Anthony Giddens

modernizante como também o pressupõem. Ciência e tecno-


logia, como discutido antes, já não podem ser deixadas fora
do âmbito da democracia, uma vez que influenciam nossas
vidas de uma maneira mais direta e de mais longo alcance do
que ocorria com as gerações anteriores,

Como um outro exemplo, tome a família, que figura em


alguns dos mais contenciosos debates sobre política moder-
na. Apoiar a continuidade na vida familiar, especialmente pro-
tegendo o bem-estar das crianças, é umas das mais importan-
tes metas da política da família. Isso não pode ser alcançado,
no entanto, mediante uma posição reacionária, uma tentativa
de reintroduzir a “família tradicional”. Como tentarei mostrar
a seguir, isso pressupõe um programa modernizante de demo-
cratização,

Estado e sociedade civil

As idéias desenvolvidas no que se segue oferecem o esboço —


e nada mais que um esboço — de um programa político inte-
grado, abrangendo cada um dos principais setores da socieda-
de. À reforma do Estado e do governo deveria ser um princípio
orientador básico da política da terceira via — um processo de
aprofundamento e ampliação da democracia. O governo pode
agir em parceria com instituições da sociedade civil para fomen-
tar a renovação e o desenvolvimento da comunidade, A base
econômica de tal parceria é o que chamarei de a nova econo-
mia mista. Essa economia só pode ser eficaz se as instituições
de swelfiare existentes forem inteiramente modernizadas, A polí-
tica da terceira via é uma política de uma única nação. A nação
cosmopolita ajuda a promover a inclusão social e também tem
um papel-chave no fomento de sistemas transnacionais de
governo.

Cada um desses conceitos será discutido em algum deta-


lhe nas seções subseqiientes, Não quero sugerir que qualquer
das idéias que vou propor é livre de problemas. Ao contrário,
quase todas são discutíveis e difíceis. Não sabemos se sere-
mos capazes de controlar adequadamente as forças que a
globalização e a mudança tecnológica desencadearam. Os
novos ambientes de risco contêm uma enigmática mistura de

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