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LHOSA, Mario Vargas. El País. Liberais e liberais.

Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/25/opinion/1390689717_754195.html

Como os seres humanos, as palavras mudam de conteúdo segundo o tempo e o


lugar. Acompanhar suas transformações é instrutivo, embora, às vezes, como ocorre
com o vocábulo “liberal”, semelhante averiguação possa nos extraviar em um labirinto
de dúvidas. Em Quixote e na literatura de sua época a palavra aparece várias vezes. O
que ela quer dizer ali? Homem de espírito aberto, bem educado, tolerante,
comunicativo; em suma, uma pessoa com a qual se pode simpatizar. Nela não há
conotações políticas nem religiosas, somente éticas e cívicas no sentido mais amplo de
ambas as palavras.
No final do século XVIII esse vocábulo muda de natureza e adquire matizes que
têm a ver com as ideias sobre a liberdade e o mercado dos pensadores britânicos e
franceses do Iluminismo (Stuart Mill, Locke, Hume, Adam Smith, Voltaire). Os liberais
combatem a escravidão e o intervencionismo do Estado, defendem a liberdade privada,
o comércio livre, a concorrência, o individualismo e se declaram inimigos dos dogmas e
do absolutismo.
No século XIX um liberal é sobretudo um livre-pensador: defende o Estado laico,
quer separar a Igreja do Estado, emancipar a sociedade do obscurantismo religioso. Suas
diferenças com os conservadores e os regimes autoritários geram amiúde guerras civis
e revoluções. O liberal de então é o que chamaríamos um progressista, defensor dos
direitos humanos (a partir da Revolução Francesa foram conhecidos como os Direitos
do Homem) e a democracia.
Com o aparecimento do marxismo e a difusão das ideias socialistas, o liberalismo
vai sendo deslocado da vanguarda para a retaguarda, por defender um sistema
econômico e político – o capitalismo – que o socialismo e o comunismo querem abolir
em nome de uma justiça social que identificam com o coletivismo e o estatismo. (Não
em todas as partes ocorre essa transformação da palavra liberal. Nos Estados Unidos
um liberal é ainda um radical, um social-democrata ou somente socialista.) A conversão
da vertente comunista do socialismo para o autoritarismo empurra o socialismo
democrático para o centro político e o aproxima – sem uni-lo – do liberalismo.
Em nossos dias, liberal e liberalismo querem dizer, segundo as culturas e os
países, coisas distintas e às vezes contraditórias. O partido do tiranete nicaraguense
Somoza se chamava liberal, e assim se denomina, na Áustria, um partido neofascista. A
confusão é tão extrema que regimes ditatoriais como os de Pinochet no Chile e de
Fujimori no Peru são chamados às vezes de “liberais” ou “neoliberais” porque
privatizaram algumas empresas e abriram mercados. Desta desnaturalização do que é a
doutrina liberal não são de todo inocentes alguns liberais convencidos de que o
liberalismo é uma doutrina essencialmente econômica, que gira em torno do mercado
como uma panaceia mágica para a resolução de todos os problemas sociais. Esses
logaritmos viventes chegam a formas extremas de dogmatismo e estão dispostos a fazer
tais concessões no campo político à extrema direita e ao neofascismo que contribuíram
para desprestigiar as ideais liberais e para que sejam vistas como uma máscara da reação
e da exploração.
Dito isto, é verdade que alguns governos conservadores, como os de Ronald
Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher no Reino Unido, levaram a cabo
reformas econômicas e sociais de inequívoca raiz liberal, impulsionando a cultura da
liberdade de uma maneira extraordinária, embora em outros campos a tenham feito
retroceder. O mesmo se poderia dizer de alguns governos socialistas, como o de Felipe
González na Espanha e o de José Mujica no Uruguai, que, na esfera dos direitos
humanos, fizeram seus países progredirem reduzindo injustiças inveteradas e criando
oportunidades para os cidadãos de renda mais baixa.
Uma das características do liberalismo em nossos dias é que ele se encontra nos
lugares menos imaginados e às vezes brilha por sua ausência onde certos ingênuos
acreditam que esteja. Às pessoas e partidos há de se julgá-los não pelo que dizem e
pregam, mas pelo que fazem. No debate que há nestes dias no Peru sobre a
concentração dos meios de comunicação, alguns defensores da aquisição pelo grupo El
Comercio da maioria das ações da Epensa, o que lhe confere quase 80% do mercado de
imprensa, são jornalistas que se calaram ou aplaudiram quando a ditadura de Fujimori
e Montesinos cometia seus crimes mais abomináveis e manipulava toda a informação,
comprando proprietários e editores de jornais e intimidando-os. Como levaríamos a
sério a esses novíssimos catecúmenos da liberdade?
Um filósofo e economista liberal da chamada escola austríaca, Ludwig von Mises,
se opunha a que houvesse partidos políticos liberais, porque, na sua avaliação, o
liberalismo devia ser uma cultura que irrigasse um arco muito amplo de formações e
movimentos que, embora tivessem importantes discordâncias, compartilhassem um
denominador comum sobre certos princípios liberais básicos.
Algo assim ocorre já há muito tempo nas democracias mais avançadas, onde,
com diferenças mais de matiz que de essência, entre democratas-cristãos e sociais-
democratas e socialistas, liberais e conservadores, republicanos e democratas, há alguns
consensos que dão estabilidade às instituições e continuidade às políticas sociais e
econômicas, um sistema que só se vê ameaçado por seus extremos, o neofascismo do
Le Front National na França, por exemplo, ou La Liga Lombarda na Itália, e grupos e
grupúsculos ultracomunistas e anarquistas.
Na América Latina esse processo se dá de modo mais pausado e com mais risco
de retrocesso que em outras partes do mundo, por ainda ser frágil a cultura
democrática, que só tem tradição em países como Chile, Uruguai e Costa Rica, enquanto
que nos demais é bem mais precária. Mas começou a acontecer, e a melhor prova disso
é que as ditaduras militares praticamente se extinguiram, e dos movimentos
revolucionários armados sobrevive a duras penas as Farc colombianas, com um apoio
popular decrescente. É verdade que há governos populistas e demagógicos, além do
anacronismo que é Cuba, mas a Venezuela, por exemplo, que aspirava a ser o grande
fermento do socialismo revolucionário latino-americano, vive uma crise econômica,
política e social tão profunda, com o colapso de sua moeda, a carestia demencial – tudo
falta, a comida, a água, até o papel higiênico – e as iniquidades da delinquência, que
dificilmente poderia ser agora o modelo continental em que queria transformá-la o
comandante Chávez.
Há certas ideias básicas que definem um liberal. Que a liberdade, valor supremo,
é una e indivisível e que ela deve operar em todos os campos para assegurar o
verdadeiro progresso. A liberdade política, econômica, social, cultural é uma só, e todas
elas fazem avançar a justiça, a riqueza, os direitos humanos, as oportunidades e a
coexistência pacífica de uma sociedade. Se em um só desses campos a liberdade se
eclipsa, em todos os outros se encontra ameaçada. Os liberais acreditam que o Estado
pequeno é mais eficiente do que aquele que cresce demais, e que, quando este último
ocorre, não só a economia se ressente, também o conjunto das liberdades públicas.
Acreditam da mesma forma que a função do Estado não é produzir riqueza, mas que
essa função a sociedade civil realiza melhor, em um regime de mercado livre, em que se
proíbem os privilégios e se respeita a propriedade privada. A segurança, a ordem
pública, a legalidade, a educação e a saúde competem ao Estado, certamente, mas não
de maneira monopolizadora, e sim em estreita colaboração com a sociedade civil.
Essas e outras convicções gerais de um liberal têm, na hora de sua aplicação,
fórmulas e matizes muito diferentes relacionadas com o nível de desenvolvimento de
uma sociedade, de sua cultura e suas tradições. Não há fórmulas rígidas e receitas únicas
para pô-las em prática. Forçar reformas liberais de modo abrupto, sem consenso, pode
provocar frustração, desordens e crises políticas que ponham em perigo o sistema
democrático. Este é tão essencial ao pensamento liberal como o da liberdade econômica
e o respeito aos direitos humanos. Por isso, a difícil tolerância – para os que, como nós,
espanhóis e latino-americanos, temos uma tradição dogmática e intransigente tão forte
– deveria ser a virtude mais apreciada entre os liberais. Tolerância quer dizer,
simplesmente, aceitar a possibilidade do erro nas próprias convicções e da verdade nas
alheias.
É natural, por isso, que haja entre os liberais discrepâncias, e às vezes muito
sérias, sobre temas como o aborto, os casamentos gays, a descriminalização das drogas
e outros. Sobre nenhum desses temas existe uma verdade revelada liberal, porque para
os liberais não há verdades reveladas. A verdade é, como estabeleceu Karl Popper,
sempre provisória, somente válida enquanto não surja outra que a classifique ou refute.
Os congressos e encontros liberais costumam ser, com frequência, parecidos com os dos
trotskistas (quando o trotskismo existia): batalhas intelectuais em defesa de ideias que
se contrapõem. Alguns veem nisso um traço de inoperância e irrealismo. Eu acredito
que essas controvérsias entre o que Isaiah Berlin chamava de “as verdades
contraditórias” fizeram com que o liberalismo continue sendo a doutrina que mais
contribuiu para melhorar a coexistência social, fazendo avançar a liberdade humana.

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