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15/09/2021 Chegou o fim do liberalismo?

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Chegou o fim do liberalismo?


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1 de julho de 2019

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OPen

IDEIASAnálise
i

A ideologia que nasceu contra o medo se encontra hoje abatida


diante do ressurgimento de um fascismo rejuvenescido e
tecnologizado

Protesto contra Donald Trump em Nova York, em maio de 2018.MICHAEL BROCHSTEIN / GETTY
IMAGES

Os liberais vivem em choque. Aturdidos pelo impacto de uma realidade política que não
assimilam. O século XXI está lhes caindo mal. Não compreendem por que foram
golpeados tão intensamente no rosto da confiança que tinham em si mesmos. Sobretudo

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depois de terem contribuído de forma decisiva para ganhar as guerras mundiais que
acompanharam a marcha da liberdade durante o século passado.

Nos últimos 30 anos, sua importância sofreu uma guinada radical. Em 1989, a promessa
era de felicidade. As pessoas se encarapitaram no muro de Berlim, e uma primavera
liberal se apropriou da história proclamando seu fim. Não durou muito o verão dessa
hegemonia. A história voltou com maiúsculas. Trouxe consigo um duro inverno populista
que lhes faz tiritar e com a dúvida de se não estaremos no início de uma glaciação
totalitária.

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De fato, se pudéssemos retroceder uma década, alguém acharia possível ver na Casa
Branca um presidente empenhado em levantar um muro supremacista ao sul do rio
Grande? E o que dizer do mapa político da Europa? Acaso se poderia imaginar, após a
queda da Cortina de Ferro, que os defensores da chamada democracia iliberal
governariam em 11 países da União e representariam mais de uma quarta parte do
eleitorado do Velho Continente?

Com este panorama que se repete no conjunto do Ocidente, os liberais confrontam uma
época que parece empenhada em prescindir deles. Quantos secundariam hoje em dia
Václav Havel quando afirmava, durante a Revolução de Veludo, que poderia mudar o
mundo esgrimindo a verdade, o espírito livre, a consciência e a responsabilidade; sem
armas, nem vontade de poder ou arbitrariedade? Melhor não fazer o teste de contabilizá-
los. Basta dizer que se apalpa no ambiente que o desencanto e a decepção com os valores
liberais são intensos. Algo que impulsiona aqueles que, das fileiras populistas,
consideram que a democracia deve se despojar do liberalismo se quiser sobreviver e
defender eficazmente os interesses nacionais. Uma crítica que fundam na incapacidade
dos liberais na hora de lidar com a excepcionalidade permanente a que o mundo se vê
submetido desde a virada do milênio. A razão está em que não pode desenvolver um
decisionismo liberal a partir da liberdade, da lógica deliberativa, da tolerância, da
igualdade de oportunidades, do pluralismo e da defesa de um mercado não protecionista.

Esta suposta debilidade sistêmica do liberalismo frente às urgências decisionistas que


nosso tempo apresenta é o que confere ao populismo uma vantagem narrativa que lhe faz
ganhar espaço e progredir como um vetor de mudança arcaizante e autoritária, capaz de
mobilizar milhões de pessoas sob slogans neofascistas. E assim, como aconteceu no
período do entreguerras, os liberais estão em xeque e na defensiva. Retrocedem diante do
mal-estar de multidões radicalizadas em sua rejeição à democracia liberal e os valores que
a tornaram possível, como uma esperança de mudança e progresso para a humanidade.

Os dados parecem confirmar isso. Roger Eatwell e Matthew Goodwin os analisam em


National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy (“nacional-populismo, a
revolta contra a democracia liberal”). Em suas páginas se radiografa o pano de fundo
moral de sociedades ocidentais que se sentem declinantes e destruídas. Vítimas de um
futuro cheio de pessimismo e incerteza que faz desejarem grandes doses de ordem e

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segurança por todos seus poros


geracionais e de classe. Aqui é onde
devemos pôr nosso foco se
quisermos detectar as causas da
crise do pensamento liberal e do
choque que paralisa seus
defensores. Falamos de motivos
que batem sobre o inconsciente
coletivo da democracia e que
ativam sua psicologia reptiliana ao
propiciar um vetor populista que
muda, combinado com o
nacionalismo, para uma
ressignificação pós-moderna do
fascismo.

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Este revival de seu antípoda mais


intenso e direto é o que desconcerta
os liberais e os deixa fora do jogo,
mergulhados numa crise de
identidade muito profunda.
Sobretudo porque compromete a
QUINTATINTA
própria viabilidade da democracia
liberal, o principal produto de suas ideias. Contra todos os prognósticos, o fascismo abre
caminho, escala e ganha posições. Renasce de suas cinzas, confirmando as suspeitas de
que está firmemente enraizado no coração emocional do Ocidente. Não por acaso, depois
da brutalidade da Segunda Guerra Mundial ele volta vigoroso, rejuvenescido, vestindo um
traje que o dissimula, embora gritando o mesmo discurso antiliberal de sempre.

Denuncia-o com valentia Rob Riemen, um dos poucos filósofos liberais que restam. Em
To Fight Against This Age (“lutar contra esta época”), ele nos lança uma advertência e
nos pede que, independentemente dos traços populistas, autoritários ou cesaristas que o
escondam, chamemos o fascismo por seu nome. Algo que exige sua denúncia e seu
combate. Atitudes que o liberalismo deve confrontar depois de atacar um esforço de
autocrítica que lhe faça pensar que coisas fez de ruim e, sobretudo, o que deixou pelo
caminho quando venceu na Guerra Fria e todos os povos do mundo pós-soviético
abraçaram suas ideias com entusiasmo.

Os populistas acreditam que a democracia deve se despojar do liberalismo se quiser


sobreviver

Para isso, é preciso retroceder no tempo e compreender que o liberalismo nasceu como
uma trincheira contra o medo. Uma linha vermelha da qual protegeu a heterodoxia dos
dissidentes religiosos e o patrimônio destes frente ao todo-poderoso soberano. O primeiro

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se fez mediante a tolerância, e o segundo, com a propriedade. Algo que os liberais


abordaram quase ao mesmo tempo em que Hobbes edificava o Estado moderno sobre os
alicerces, justamente, desse medo que o leviatã utilizava para instaurar o governo da
ordem. Daí que James Simpson sustente em Permanent Revolution (“revolução
permanente”) que a aparição do liberalismo foi basicamente uma estratégia das minorias
puritanas para proteger seu catecismo calvinista em meio às guerras religiosas que
sacudiram o continente europeu. Uma iniciativa que logo se tornou revolucionária e que,
pela mão do iluminismo, desenvolveu um compromisso universal com a maioridade
política dos homens frente aos poderes políticos, econômicos e sociais.

O liberalismo adotou, portanto, um compromisso institucional a favor da razão, do


governo limitado e do progresso humano, através da democracia deliberativa e do
reformismo social. Empreendeu uma luta pelos direitos que, das revoluções atlânticas à
Declaração Universal das Nações Unidas de 1948, foi configurando uma civilização
baseada neles. A originalidade do liberalismo, como explica Helena Rosenblatt em The
Lost History of Liberalism (“a história perdida do liberalismo”), consistiu justamente em
dotar a pessoa de uma blindagem de direitos invioláveis frente aos dispositivos de
dominação que podiam projetar sobre ela o poder e a maioria social. Daí que os
pensadores liberais influíram nas Constituições e introduziram em seus textos um
somatório de liberdades. Umas, positivas ou de socialização, e outras, negativas ou de
preservação da subjetividade e suas escolhas individuais. Deste modo, o medo foi contido
e marginalizado como um dispositivo a serviço do poder. Além disso, este último teve que
admitir que sua legitimação só podia ocorrer numa democracia que se vertebrasse dentro
de uma institucionalidade liberal, baseada em direitos.

Dois séculos e meio depois do seu nascimento, o liberalismo parece estar abatido perante
o ressurgimento do medo que tão eficazmente soube desativar no passado. Abre-se a seus
pés uma crise de fundamentação devido ao tsunami de incerteza que leva as sociedades
democráticas a desprezarem a cultura liberal dos direitos e ansiar por uma ordem
autoritária. Inclusive são cada vez mais os que desejariam encerrar-se dentro de um
bunker reacionário onde se refugiar da insegurança que lhes assedia emocionalmente. A
própria democracia parece inclinada a deslocar seu eixo de legitimação do liberalismo
para o populismo. Um fenômeno sem aparente explicação porque talvez não tenha sabido
detectar adequadamente a origem dos sismos que nos desestabilizam e que transformam
o pensamento liberal em papel molhado.

Procuramos explicações no passado quando teríamos que buscá-las no futuro. Em causas


que têm a ver diretamente com ele. É preciso começar a assumir que a revolução digital
está remexendo os alicerces da arquitetura analógica do mundo, devido ao
desenvolvimento de um capitalismo cognitivo sem regulação, nas mãos de monopólios
intocáveis, profundamente desigual e que substitui a liberdade humana por algoritmos.
Uma revolução que inquieta sem ruído, porque se leva a cabo desprovida de controles
democráticos ou debate públicos. Mas uma mudança profunda de paradigmas que está
liberando mal-estares que têm um denominador comum: uma ansiedade não explícita

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que, entretanto, percute sobre a pele de mamífero que recobre a experiência coletiva e
individual da democracia e libera deslocamentos como a mencionada reaparição do
fascismo.

E é aqui onde o liberalismo capitula ante um medo ressignificado tecnologicamente. Um


medo que não se desenha com precisão, mas que localiza seu olhar em um futuro sem
trabalho, habitado por ciborgues e governado por uma inteligência artificial que
neutralizará a espontaneidade da ação humana. Talvez seja aqui onde teríamos que
identificar as causas mais secretas do colapso liberal: em que a ideia de progresso pode
deixar de ser um aliado da liberdade para se transformar no tapete narrativo que nos leve
a uma distopia totalitária por aclamação.

José María Lassalle é ex-secretário de Estado de Cultura e Agenda Digital da


Espanha e autor de ‘Ciberleviatán, el Colapso de la Democracia Liberal Frente a la
Revolución Digital’ (Arpa).

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