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A Desintegração Democrática
MVC Nov 6 · 12 min read
The Smiths
Apesar da acirrada disputa eleitoral entre Joe Biden e Donald Trump para o cargo da
presidência dos Estados Unidos, ainda assim não podemos esquecer, ao ler O Povo
Contra a Democracia — Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la, livro-
sensação do cientista político alemão Yascha Mounk lançado lá fora em 2018 e
publicado um ano depois no Brasil, de que ele é mais um produto feito a toque de caixa
para que o cidadão médio entenda quais foram os verdadeiros motivos das eleições de
Trump e Jair Bolsonaro, em 2016 e 2018, respectivamente. Inclua neste pacote o
referendo do Brexit (também ocorrido em 2016) e o que você tem, na prática, é uma
dissertação razoavelmente bem argumentada sobre o fato de que, se estamos nessa
situação complicada em termos políticos, é porque a culpa recai sobre esse monstro
informe que insistimos chamar de “populismo”.
por um lado, as preferências do povo são cada vez mais iliberais: os eleitores estão cada vez
mais impacientes com as instituições independentes e cada vez menos dispostos a tolerar os
direitos de minorias étnicas e religiosas. Por outro lado, as elites vêm assumindo o controle
do sistema político e tornando-o cada vez mais insensível: os poderosos estão cada vez
menos dispostos a ceder às opiniões do povo. Como resultado, liberalismo e democracia, os
dois elementos centrais do nosso sistema político, começam a entrar em conflito.
Só por este trecho, percebemos que Mounk acredita que a democracia e o liberalismo
são inseparáveis, mesmo ressaltando o tempo todo que ele também sabe que, na prática,
um poderia ser observado isoladamente do outro. Afinal, a democracia ateniense, por
exemplo, sempre ficou famosa porque não hesitava exilar estadistas impopulares,
executar filósofos críticos (como um tal de Sócrates) e censurar desde discursos políticos
a partituras musicais. Em seu papel de cientista político, ele reconhece que os direitos
individuais e a vontade popular dificilmente andam de mãos dadas, mas, na prática,
Mounk continua a crer que, quando ambos caminham lado a lado, “eles formam um
amálgama particularmente estável, resiliente e coerente”.
Esta seria a meta de uma democracia realmente liberal, algo completamente oposto ao
que pessoas como Órban, Steve Bannon, Jair Bolsonaro e outros acreditam ser
defendido neste “novo tempo do mundo”. Na cabeça deles, presume-se ser um outro tipo
de política — denominada por muitos de “populismo nacionalista” (aliás, título de um
outro livro recentemente lançado, escrito por Roger Eatwell e Matthew Goodwin,
lançado no Brasil pela Editora Record, e que aborda um argumento semelhante ao de
Mounk).
Contudo, o que seria a tal da democracia liberal defendida com tanto ardor em O Povo
Contra a Democracia? Mounk parte de três definições bem simples: a primeira é que a
democracia seria “um conjunto de instituições eleitorais com poder de lei que traduz as
opiniões do povo em políticas públicas”; a segunda é que, segundo essa perspectiva, “as
instituições liberais efetivamente protegem o Estado de direito e garantem os direitos
individuais — como a liberdade de expressão, de religião, de imprensa e de associação
— para todos os seus cidadãos (incluindo as minorias étnicas e religiosas); e a terceira é
que, com a fusão dessas características, a “democracia liberal é simplesmente um sistema
político ao mesmo tempo liberal e democrático — um sistema que tanto protege os
direitos individuais como traduz a opinião popular em políticas públicas”.
Há só um problema nessa definição tripartite: este tipo de democracia existe apenas em
um mundo onde o liberalismo deveria ser a única ideologia política dominante. Isto
implica que a primeira coisa que será sacrificada é justamente o pluralismo e, por
consequência, a tolerância que ele tanto defende, mesmo que seja de forma branda.
Todavia, o que vimos desde 2016 é que o liberalismo está cada vez mais agonizante no
mundo político, seja em termos de pensamento — e, sobretudo, em termos de
imaginação, se usarmos o termo aplicado por Lionel Trilling.
Mas será que o populismo é isso mesmo? Mounk tenta defini-lo como uma
“reivindicação exclusiva do povo — e é essa relutância em tolerar a oposição ou respeitar
a necessidade de instituições independentes que com tamanha frequência põe os
populistas em rota de colisão direta com a democracia liberal”. Portanto, é nítido que,
para o democrata liberal, o populismo é o novo bode expiatório, o principal responsável
pela desintegração democrática — a qual, como se não bastasse, cria esse estranho
paradoxo: a descoberta de que a democracia tem um conteúdo iliberal. De acordo com
Mounk:
Isso tende a acontecer particularmente em lugares onde a maioria opta por subordinar as
instituições independentes aos caprichos do executivo ou por restringir os direitos das
minorias que a desagradam. Por sua vez, regimes liberais podem ser antidemocráticos, a
despeito de contarem com eleições regulares e competitivas. Isso tende a acontecer sobretudo
em lugares onde o sistema político favorece de tal forma a elite que as eleições raramente
servem para traduzir a opinião popular em políticas públicas.
Agora, por trás dessa discussão, surge a pergunta definitiva — e essencial: O que é o
povo? Seria ele uma massa amorfa? Seriam o populacho, a ralé, o homem-massa
descritos por Ortega y Gasset? Ou estamos a falar de uma representação de algo abstrato
e que, com o passar do tempo, foi esquecido concretamente na forma como foi
desenvolvido o processo político? Os liberais como Mounk são da primeira opinião (aqui
no Brasil, seus representantes são os membros do Partido Novo, do Instituto Mises, do
Liberty Fund, a “direita-cachecol” e o resto da imprensa autointitulada anti-petista, mas
que não passa de uma vértebra do tucanismo arrependido); já a segunda opinião
praticamente não é divulgada — pelo simples motivo de que a casta intelectual do
Ocidente, fascinada pela “revolução permanente” típica de quem vive na imaginação
liberal, sequer sabe realmente o que é o populismo.
Com isto em mente, o jovem analista alemão começa a diagnosticar quais seriam as
origens da crise da democracia liberal e os remédios para impedir a desintegração desse
sistema tão idolatrado pelo seu “círculo de sábios”. Em relação ao primeiro grupo, ele
escreve que a revolução cognitiva provocada pelas mídias sociais democratizou o
conhecimento e a informação, mas, ao mesmo tempo, ampliou a intolerância, a
polarização e a rivalidades políticas; depois, ocorreu a instabilidade econômica dos
Estados-Nações, que foram incapazes de permitir que o cidadão comum conseguisse
imaginar ou sequer pensar em um futuro para si mesmo e o resto da sua família; e, por
último, a insurgência de um sentimento de pertencimento, no qual o desejo de se
amalgamar em uma identidade nacional culminou naquele outro fenômeno aberrante
chamado “nacionalismo”. Isto fomentou uma cultura do ressentimento prestes a
explodir em duas alternativas terríveis: ou na eleição de um político responsável por
instaurar a tal da “democracia iliberal”, ou no advento de uma revolução popular que
destruiria por completo as bases do status quo.
Sobre os remédios, Mounk deixa de lado um pouco o seu realismo e permite-se ficar à
deriva em algumas especulações utópicas. Na ordem inversa em relação à exposição do
conjunto de origens do impasse democrático-liberal, ele elabora novas formas de
domesticar o nacionalismo, fortalecendo não só os Estados-Nações, mas principalmente
as organizações supra-nacionais, como ONU, OTAM e, claro, a União Europeia, que
farão de tudo para equilibrar a instabilidade econômica a qual não permite que o
cidadão vislumbre um futuro digno para os seus. A convergência disso seria a
“restauração da fé cívica”, uma expressão bonita, sem dúvida, mas absolutamente
descolada do que acontece no cotidiano, uma vez que o “povo” busca outros elementos
para sedimentar uma fé que jamais será encontrada na política pragmática.
Eis aqui o verdadeiro ponto cego no argumento de Mounk. Antes de qualquer coisa, ele é
incapaz de admitir para si mesmo (e, portanto, para o leitor) que a sua visão sobre a
democracia só pode ser verdadeira se esta última for vista como se fosse um “deus”.
Contudo, como bem percebeu o alemão Hans Hermann-Hoppe (de resto, um autor com
vários problemas teóricos), a democracia é um “deus que morreu”, já que os supostos
anos de progresso tecnológico nos séculos XIX e XX só confirmaram que a extinção
humana pode ser a única saída possível para todos nós. Neste aspecto, a democracia
deve ser vista somente como um sistema político, jamais uma panaceia. Porém, Mounk
insiste na sua idolatria — e mais: resolve analisar o fenômeno do populismo como se
fosse um único amalgama, sem atentar para as circunstâncias históricas e sociais de cada
país que o escolheu como uma alternativa verdadeira e eficaz.
O fato é que existem diversos populismos — e nem todos parecem ser necessariamente
ruins. Eles atendem a uma demanda legítima da sociedade civil a respeito de como a
elite política se comportou nos últimos anos — no caso, completamente isolada das
exigências reais do cotidiano da sociedade civil, com suas dívidas, contas a pagar e
impostos exorbitantes. Mounk também ressalta essa distinção, mas logo depois a coloca
para debaixo do tapete, como se não fosse nada mais. O problema é que este
esclarecimento é essencial para que o debate público em torno da “democracia iliberal”
seja bem-sucedido.
Este “poder inteligente” não se opõe à liberdade. Segundo Han, pode até mesmo usá-la
para seu benefício. É um poder tão “amigável” que evita agir
frontalmente contra a vontade dos sujeitos subjugados, controlando suas vontades em seu
próprio benefício. É mais afirmador que negador, mais sedutor que repressor. Ele se esforça
em produzir emoções positivas e explorá-las. Seduz, em vez de proibir. Em vez de ir contra o
sujeito, vai ao seu encontro.
O vínculo que liga as pessoas que fazem parte desta comunidade é de natureza
transcendente, pois sabem que a igualdade democrática é tão somente “um
medicamento, não o alimento” para as mazelas da condição humana, nas sábias
palavras de C.S. Lewis. Aliás, é em um ensaio chamado “Membresia” que Lewis faz a
ressalva pertinente de que “a sociedade para a qual o cristão é chamado no batismo não
é um coletivo, mas um Corpo”, uma família no nível natural onde a personalidade
humana é chamada para frutificar da maneira mais plena possível. Ou seja, não
podemos confundir o coletivo com o coletivismo ideológico. Afinal de contas, o centro
desta comunidade é o relacionamento com uma pessoa específica — Jesus Cristo — que
age como um modelo cujo exemplo faz com essas pessoas se sintam num ambiente de
constante aprendizagem, onde todos estão “ensinando e aprendendo, perdoando e
sendo perdoados, representando Cristo para as pessoas, quando intercedendo por elas, e
representando as pessoas para Cristo, quando outros intercedem por nós. O sacrifício da
privacidade pessoal, que é diariamente exigido de nós, é recompensado diariamente,
cem vezes mais, no verdadeiro crescimento da personalidade que a vida do corpo
encoraja.”