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Resenha: O povo contra a democracia: Por que nossa liberdade corre perigo?

de Yascha
Mounk

Yascha Mounk ao nos apresentar esse livro faz uma leitura minuciosa da ascensão
do populismo ao longo do último quarto de século e quais as respectivas consequências
disso para o sistema democratico liberal, sistema que prestigiamos tanto mesmo sem
compreendê-lo muito bem. Donald Trump nos EUA, Marine Le-Pen na França, Viktor Orban
da Hungria, e Farage na Inglaterra entre outros personagens que costumamos atribuir a
alcunha de populistas têm competido em eleições e sido eleitos ao redor do globo em torno
de uma retórica comum à despeito de toda a diversidade de conjuntura entre seus
respectivos países. Embora compreendamos alguns desses personagens como autoritários,
a maioria reivindica de uma forma peculiar para si o título de porta-vozes da vontade
verdadeiramente democrática que emana do povo e que não tem sido respeitada por
quaisquer causas consideradas desagregadoras ou cerceadoras desse ideal; se
consideram vozes que não devem ser filtradas sequer por instituições da própria
democracia. A novidade no argumento de Mounk em relação à ascensão de discursos
conservadores e antiliberais é a desagregação dos ideais de democracia e liberalismo em
duas novas formas de governo principais, a de Democracia antiliberal, e a do Liberalismo
anti-democrático.
No pós guerra fria e expansão irrefreada do neoliberalismo ficou claro uma
tendência a organização dos países de formas ditas democráticas, estabelecimento de
instituições,direitos individuais garantidos, liberdade de expressão, eleições regulares,
mecanismos de regulamentação das eleições, bem como o desenvolvimento de
ferramentas que de certa forma limitam desmandos de chefes de estado; sobre essa
convicção o autor nos lembra da polêmica proposição de Francis Fukuyama acerca do “Fim
da história”. Junto a esses progressos uma ideia cada vez mais consolidada de que a
democracia e o liberalismo como sinônimos de uma mesma ordem social já não tinha contra
quem lutar numa disputa pela hegemonia; a perplexidade que mobiliza Mounk a escrever as
páginas é em relação aos fatos de que cada vez mais líderes com tendências
antidemocráticas tem ganhado visibilidade e cargos em regimes ditos democráticos, e a
realidade da aplicação políticas liberais sobre países à despeito da vontade manifesta do
seu povo. O argumento em torno do qual o autor trabalha é de que o que entendemos
acerca da democracia liberal está se decompondo em suas partes integrantes, projetando a
ascensão da democracia iliberal de um lado e do liberalismo antidemocrático do lado
oposto.
O conjunto de definições mais simples acerca do que é uma democracia liberal na
perspectiva do autor ainda são dependentes de uma série de tecnologias e consensos que
não impedem a sua captura por demagogos que se anunciaram como verdadeiros
representantes do povo, e isso se dá em algumas instâncias com as quais o cidadão
votante na maioria dos países mencionados não têm contato direto ficando desprovido de
um quadro geral que permita entender o que está escolhendo, ou sentir-se beneficiado pela
sua escolha. A política soa complexa demais para grandes contingentes da população, um
desestímulo que afeta a saúde da democracia na medida em que provoca a sensação de
impotência na mudança. Essa frustração das populações em relação a política como meio
de transformação e reivindicação é capturada através de uma simplificação discursiva
absurda dos problemas enfrentados por cada país. Essa simplificação exagerada de
problemas nacionais opera segundo o autor como um chamariz para a população que se vê
cada vez mais distanciada das decisões em suas próprias vidas, dentro de seu próprio país.
As transformações positivas que no auge da democratização de cada país foram
traduzidas em melhoria de vida na maioria da população eram de certa forma fator de
entusiasmo com o sistema; a inevitável reestruturação produtiva da era da informação
produziu um quadro em que a efetividade das escolhas da população nacional esteja a
submetida a uma conjuntura que não é senão internacional, ou seja, em vários âmbitos
distante da ideia do cidadão que vota acerca da resolução cotidiana dos seus próprios
problemas. Isso faz com que ao longo das crises os benefícios venham sendo ofuscados na
medida em que não traduzem uma melhoria constante para o cidadão médio que se vê
distante do sistema e da voz dos seus representantes.
Os mesmo atores políticos que anunciam a simplicidade na resolução dos
problemas nacionais também travam uma cruzada contra os traidores que se recusam
assumir como certas as saídas toscas que propõe de maneira emocionada durante sua
campanha. O estabelecimento dessa fronteira entre nós e eles facilita a tarefa populista de
lutar contra os inimigos da sua turva causa; enquanto Trump anunciava nas eleições de
2016 ser a voz do verdadeiro povo americano ele anunciava também que quem não fosse o
verdadeiro povo seria algo próximo de um inimigo, sejam os migrantes, sejam os
democratas, sejam os chineses, só não explicitava que a reestruturação produtiva em nível
internacional jamais permitiria que ele devolvesse aos americanos os empregos que não
existem mais. A apropriação da voz popular na argumentação de Mounk produziu na
democracia liberal estragos o suficiente para que pensemos na sua implicação na nossa
liberdade “Diante da pretensão populista de ser a única representante da vontade popular, a
política logo se torna uma luta existencial entre o povo real e seus inimigos”.
A produção dessa conjuntura populista de tendências antidemocráticas e anti
liberais é explicitada a partir de fatores que só são materializados num passado bastante
recente, de economia e informações globalizadas, nas quais o cálculo político conta com
novos recursos e tecnologias que ainda estamos nos familiarizando. As redes sociais e a
descentralização da produção de conteúdo anteriormente dominados por organizações
economicamente influentes deram uma nova cara ao processo político, seria ingenuidade
pensar que essa nova arena traria apenas vantagens ou uma popularização direta do
debate. O domínio da tecnologia nesse sentido fez com que mobilização das redes sociais
no campo da política produzisse resultados surpreendentemente amplos, onde a frequência
de aparição tem papel muito mais marcante nessa nova dinâmica do que a dimensão
informativa do fenômeno. A insistência, uma agressividade apresentada sob uma estética
simples, evocação da sensação de pertencimento, permitiram que essa mudança na cultura
política fosse tão brusca.
Essas manifestações evidentemente não seriam tão fortes se não tivessem uma
base na realidade a qual se referir mesmo que de uma maneira enviesada ou distorcida; a
estagnação econômica dos extratos médios da sociedade, a visibilidade da condição geral
do multiculturalismo de uma forma pejorativa baseada numa lógica nós e eles, a
possibilidade de produção de conteúdo nas mídias sociais com pouca ou nenhuma
regulamentação até as últimas eleições, a identidade como um fator de mobilização que
nem sempre se comporta de maneira integrativa podendo se tornar por vezes destrutiva. De
acordo com Mounk todas essas condições foram mais do que necessárias para construir
esse quadro, no entanto a apropriação dessa conjuntura por populistas não pode ser uma
lógica irreversível, seus apontamentos não são num sentido determinista como os de
Fukuyama nos anos 90. No tocante aos remédios para essa onda populista rapidamente se
constata que há um trabalho árduo a ser feito na domesticação de todos esses sentimentos,
tanto aqueles relativos a compreensão da identidade cívica, da liberdade e direitos
individuais diante da economia local e internacionalmente, quanto como domar as paixões
do nacionalismo que como vimos anteriormente podem ser geradoras de confrontos ainda
mais brutais do que no campo político. Estes se materializam quanto menos credibilidade
possa se conferir aos atores do jogo político.

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