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Resumo:
Boa parte das estudiosas das ciências humanas compartilham o diagnóstico de que a
democracia está hoje sob ataque ou mesmo em franco declínio (des-democratização),
seja nos países do norte ou do sul global. A ascensão pelo voto popular de governantes
defensores de valores e posições políticas associadas à (extrema-)direita conservadora
tem tornado urgente a reflexão sobre como e por que tais líderes políticos vêm obtendo
tanto sucesso e adesão. Quando analisamos tais vitórias eleitorais, notamos que quase
todos chegaram ao poder por meio de métodos similares: o recurso a redes e mídias
sociais em grande escala, uso e abuso de “fake news” e de “verdades alternativas” e
outras estratégias antidemocráticas. Problematizar a dimensão nefasta da digitalização e
datificação das sociedades sobre as práticas políticas e eleitorais bem como suas
consequências para as teorias democráticas que se sustentam em noções fortes de esfera
pública e de deliberação democráticas constitui o cerne deste trabalho.
Ou seja, para este pensador, o vocabulário político existente não seria mais
capaz de dar conta das mudanças que estão em curso nas democracias liberais, as quais,
na sua abordagem foucaultiana, estão ligadas aos efeitos da crise da subjetividade
política baseada na razão e na vontade; uma crise que substituiu o demos da democracia,
fundado na subjetividade abstrata da pessoa do direito, pela semântica biopolítica do
ghenos, que borra as fronteiras entre público e privado, tecnologia e natureza, lei e
teologia – um movimento que transforma em profundidade a cultura política
democrática herdada dos modernos (idem, ibid.).
Oriunda de uma outra chave analítica, mas oferecendo um diagnóstico
igualmente pessimista, a filósofa norte-americana Wendy Brown (2006) afirma, em um
texto seminal, no qual se confronta com a ascensão do (neo)conservadorismo nos EUA
quando da reeleição de G. W. Bush, que a aliança entre o que ela denomina a
racionalidade política neoliberal (isto é, uma razão política normativa que organiza a
esfera política, as práticas de governança e a cidadania a partir da ótica das relações de
mercado) e a racionalidade política neoconservadora (isto é, uma razão política
normativa que organiza a esfera política, as práticas de governança e a cidadania a partir
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dos modernos estaria conhecendo transformações profundas não nos parece estar em
questão. Tais argumentos, no entanto, não são suficientes para explicar como tais
políticos conservadores vêm obtendo tanto sucesso nas urnas e angariando, muitas
vezes, mais do que votos, mentes e corações.
Procuraremos mostrar por meio deste trabalho que parte relevante da explicação
para o sucesso destes ideólogos e políticos de direita reside no modo como eles têm se
apropriado e instrumentalizado para seus propósitos eleitorais e projetos de poder as
novas tecnologias digitais, hoje estruturadas e operadas por empresas de capital de risco
tecnológicas que utilizam algoritmos cada vez mais sofisticados e “inteligentes”;
procuraremos sustentar ainda que estas novas tecnologias têm desempenhado papel de
relevo também para a emergência do cidadão não-democrático, sujeito dos processos de
des-democratização em curso, contribuindo sobremaneira para a crise da democracia
aqui e alhures. A nosso ver, parte relevante dos problemas que se tem detectado no
funcionamento das democracias bem como em relação à ascensão de extremismos e
ideologias autoritárias encontra terreno fértil para sua difusão acelerada em ambientes
digitais algoritmicamente arquitetados, que fomentam fenômenos antidemocráticos
(câmaras de eco, filtros bolha, direcionamento de preferências, etc.), os quais têm
transformado as práticas políticas e eleitorais tradicionais.
Câmaras de eco, filtros bolhas, ação conectiva: a ‘ratio’ por detrás das máquinas
As inesperadas vitórias eleitorais de D. Trump e J. Bolsonaro, por exemplo, nos
permitem detectar com razoável grau de clareza a operação de mecanismos que atuam
de acordo com tal lógica de funcionamento que estamos chamando de algorítmica, que
tem sido viabilizada e impulsionada pelas novas técnicas automatizadas de produção de
saber e conhecimento (até pouco, chamadas de TICs). São muitas as linhas de
investigação das tecnologias digitais sobre o governo da sociedade; e é difícil estimar o
impacto da sua adoção sobre os mais diversos campos. Essas novas tecnologias nos
confrontam com problemas que vão desde a legalidade da captura e armazenamento de
dados dos usuários até o direito de não sermos submetidos a avaliações automatizadas
de nossas pessoas. (Becerra, 2015; Zuboff, 2015).
A discussão em torno da relevância – e mesmo do protagonismo – das redes
sociais e dos aplicativos de comunicação nas eleições presidenciais do Brasil e dos
Estados Unidos, tais como Facebook e Whatsapp retoma, de certa maneira, um tema
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Recusamos o termo governamentalidade algorítimica bem como seu correlato racionalidade
algorítimica, o qual fez fortuna entre especialistas, em virtude do fato de ambas as ideias –
governamentalidade e racionalidade – aprisionarem o argumento em um modo de raciocínio que tende a
operar sistemicamente, prescindindo dos e/ou autonomizando-se em relação aos agenciamentos concretos
dos sujeitos das ações. É importante ao nosso argumento aqui preservar as capacidades decisórias e os
agenciamentos tanto das pessoas que concebem quanto daquelas que fazem uso de tais ferramentas
tecnológicas.
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de informação e de mediação do debate público, o que tem como efeito uma espécie de
colonização do “espaço público” por uma esfera (ou ratio) privada hipertrofiada – que
se faz passar por ou que termina por aparecer como esfera pública. Foi exatamente a
operação disto que estamos chamando aqui de lógica de operação algorítmica que nós
testemunhamos nas eleições de D. Trump e J. Bolsonaro, os dois escolhidos para
mostrar como funciona essa ratio fundada no algoritmo, que viabiliza a produção
daquilo que Brown entende como uma razão política normativa capaz de organizar a
esfera política, as práticas de governança e a cidadania na direção da des-
democratização.
No que diz respeito à eleição de D. Trump, gostaríamos de destacar alguns
pontos: primeiro, é de domínio público que elas foram marcadas pelo uso intensivo do
marketing político comportamental impulsionado pelas inovações em tecnologias
digitais. O caso, evidentemente, não é novidade: episódios anteriores, como os do
Wikileaks e de Snowden, e o mais recente, o escândalo da Cambridge Analytica, já
haviam trazido a público indícios de como esses instrumentos digitais vêm sendo
mobilizados na política, com efeitos nada desprezíveis para a dinâmica das instituições
democráticas.
Embora o marketing político segmentado por audiência não seja uma novidade,
o novo nas interações sociodigitais que impactam o mundo da política é o volume de
dados existentes hoje no mundo digitalizado (os big data) e o que se pode extrair de
vantagem estratégica (em processos políticos, econômicos, etc), a partir do acesso a
ferramentas analíticas como o machine learning (a máquina que organiza dados
entrecruzados e constrói algoritmos capazes de tomar decisões com o mínimo de
intervenção humana). A campanha eleitoral para concorrer à presidência dos EUA, em
2016, borrou definições de práticas políticas democráticas e rompeu diversas
diferenciações utilizadas por analistas para pensar campanhas até então. Nela, se
sobrepuseram e se confundiram os polos de dicotomias como insider vs. outsider, mídia
tradicional e novas mídias, notícias e entretenimento.
Ferramentas digitais como computadores, smartphones e outros dispositivos
conectados à internet, como se sabe, foram utilizadas à exaustão na campanha de Trump
e geraram as principais marcas da sua corrida eleitoral: fake news, “verdades
alternativas”, exércitos de bots – softwares robôs da web que simulam ações humanas
repetidas vezes de maneira padrão, usados em games, mas que podem ser ilegalmente
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Outro fenômeno característico da lógica das redes sociais que merece menção
são os filtros bolha (Parisier, 2011), que produzem o mesmo efeito de confirmação de
viés, mas advêm da ordenação algorítmica dos ambientes digitais. O feed de notícias do
Facebook, p. ex., se ordena de acordo com aquilo que seja o mais interessante ao perfil
de cada usuário, quais são os seus gostos, interesses etc., de modo que a ideia central é
customizar o fluxo de informações recebidas pelo usuário (Kramer et al., 2014). Um
efeito colateral nada irrelevante dessa otimização, no entanto, é a redução da exposição
ao diferente.
Ambos, câmaras de eco e filtros bolha, produzem efeitos nefastos à democracia
como a concebemos até o século XX, em virtude de formarem segmentos de públicos
diferenciados, que não são expostos aos mesmos conteúdos, dificultando a formação de
algo como uma opinião pública testada nos debates da esfera pública. Além dos filtros
bolha e das câmaras de eco, a esfera pública em sua versão automatizada demonstra
também grande fragilidade democrática, na medida em que a relevância dos conteúdos é
baseada em métricas quantitativas de popularidade (os likes), que não dizem respeito à
qualidade ou à diversidade de posições sobre um determinado assunto de importância
pública, e sim são medidos em termos de visualizações, curtidas e compartilhamentos
(Pasquale, 2017). O ponto importante a ser ressaltado aqui é que tais interações sociais,
voltadas à produção de índices quantitativos, não geram, necessariamente, debate
público ou solidariedade, mas apenas interconexões funcionais.
Ao invés vez de persuadir o interlocutor pela força dos melhores argumentos em
um ambiente público e plural, mecanismos desta natureza instigam a reação
egocentrada, pré-reflexiva e emocionalmente carregada. Preconceitos e confirmação de
viés são dois elementos centrais nesse modelo estratégico de ação política por meio do
marketing digital (Sanches, 2019). A capacidade preditiva dos algoritmos de machine
learning desempenha um papel fundamental na construção e modulação dessas
predisposições (Kosinski et al., 2013). Os autores procuram mostrar que as pegadas
digitais dos usuários do Facebook, e principalmente seus likes, associados a análises
psicométricas (como aquelas feitas pela Cambridge Analytica), são fontes muito úteis
para a predição automatizada e acurada de uma vasta gama de atributos pessoais, que
vão desde a orientação sexual, passando pela etnia, preferências políticas e religiosas,
até traços da personalidade, inteligência, nível de felicidade, uso de substâncias aditivas,
separação parental, idade e gênero, etc.
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últimas décadas, mas que carrega ainda a potencialidade de gerar cidadãos de pendor
autoritário e conservador, despreparados para o cultivo do que outrora caracterizávamos
como vida democrática em sociedades plurais, como mostram pesquisas recentes sobre
a indiferença da chamada millennial generation em relação ao regime democrático
(Foa; Mounk, 2016) e outros tantos estudos sobre as sociedades digitais e datificadas.
Por tudo que já se discutiu até aqui, urge que as sociedades reflitam sobre o
universo digital da datificação, sobre sua natureza privatista, opaca e direcionadora de
comportamentos e preferências, e que decidam, politicamente, como regular, tornar
pública e mais transparente a lógica de operação algorítmica e todos os seus
componentes – machine learning, captura, controle e acumulação de big data,
programação dos aplicativos consumidos pelos usuários e tantas outras ferramentas que
sustentam a infraestrutura sociotécnica da rede. Uma tarefa que exige de cientistas
sociais e de todas e todos que refletem sobre a vida social e política um esforço de
imersão crítica no árido mundo das tecnologias digitais e seus modos de operação.
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