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Crise da Democracia

dois ensaios

1
Flávio Reis

Crise da Democracia
dois ensaios

2 3
à professora Maria de Lourdes Lauande Lacroix,
quarenta anos de amizade e trabalho

aos colegas do departamento de


Sociologia e Antropologia (UFMA),
pelos trinta anos de guarida

4 5
copyright 2023 Flávio Reis

Introdução 8

Capa & diagramação: Isis Rost


Imagem da capa: Pollock, Jackson„Utitled”, atrament na
papierze, 44,5×56,6 cm, ok. 1950 r., MoMA

Regressão democrática 17
e teoria politica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


R375r Reis, Flávio O Brasil na encruzilhada: 73
Crise da democracia: dois ensaios./ São Luís: Passagens, 2023 visões da crise política
146 p.; il. 14 x 21cm
ISBN 978-65-00-73286-3
l. Crise da democracia. 2. Populismo reacionário.
3. Crise política. 4. Brasil.
I. Título
CDU 321.728
CDD 321.4

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Introdução O presente trabalho1 é fruto de uma pesquisa
realizada no âmbito do Departamento de
Sociologia e Antropologia da UFMA, junto
com a professora Arleth Borges, sobre A Crise Atual da
Democracia. O projeto, vinculado ao GAL (Grupo de
Estudos em Democracia, Estados e Territorialidades
na América Latina), foi basicamente uma tentativa
de compreender, à luz da literatura mais recente no
campo da ciência política, o quadro que se colocou
na década de avanço da extrema direita no mundo,
com um discurso antidemocrático, antiglobalização,
repleto de componentes racistas e voltados para o
combate da diversidade cultural, de gênero, de cren-
ças religiosas. Desde a sua formulação inicial, eleições
de extrema importância, nos EUA e no Brasil, levaram
à derrota de dois nomes de muita importância no rol
dos novos populistas reacionários, Trump e Bolsona-
ro. A volta dos Democratas ao poder, com a vitória
de Joe Biden em 2020, e a vitória de Lula dois anos
depois, são indicadores de que os conflitos em torno
dos sistemas políticos sob o impacto das novas formas
de comunicação ainda estão abertos. Não há um cami-

1 No primeiro semestre de 2023, uma licença-capacitação realizada no


Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ), permitiu a elabora-
ção final dos dois ensaios que compõem este livro. Agradeço a acolhida
da professora Argelina Cheibub Figueiredo, coordenadora do DOXA
(Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e Opinião
Pública do IESP-UERJ), e a liberdade na elaboração dos textos, num am-
biente de discussão bem aberto. Claro que as análises e opiniões aqui
emitidas são de minha inteira responsabilidade.

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nho já definido no rumo da ascensão dos populis- quisa mais importantes, a discussão sobre a de-
mos reacionários, o que implicaria efetivamente na mocracia, suas transformações, crises e impasses.
“morte” ou no “fim” das democracias ocidentais. Com pequenas variações, podemos dizer que um
A segunda década do século XXI foi mar- ponto acordado por vários autores é que estaría-
cada pela crise econômica profunda iniciada nos mos diante de um quadro diferente de ataque à de-
mercados financeiros desregulados nos países mocracia, não mais por desmoronamento, mas por
centrais e seus efeitos políticos foram, inicialmen- erosão, na formulação feliz de Runciman. Em de-
te, uma explosão de mobilizações que uniam rei- mocracias consolidadas, o golpe de estilo clássico
vindicações e descontentamentos variados contra se tornou muito difícil, até mesmo improvável, e a
os sistemas políticos nacionais; posteriormente, forma de subversão da democracia se faz de outra
vimos uma rápida regressão, com o fortalecimento maneira, pelas bordas, minando a efetividade de
de líderes autoritários ou o retorno de militares ao agências governamentais, deslegitimando o siste-
comando, como foi o caso emblemático do Egito. ma eleitoral, combatendo a imprensa e as mídias
Logo após a derrota de Trump, estourou a guerra tradicionais, disseminando o ódio através de men-
da Ucrânia, invadida pela Rússia de Putin, um dos tiras espalhadas pelas redes socias e desconhecen-
mais antigos autocratas no poder, configurando do aspectos centrais dos costumes e das liturgias
um novo momento na geopolítica mundial, com do jogo democrático. Tudo isso num momento de
três potências em disputa, EUA, China e Rússia. profundas transformações globais no campo das
O conjunto das leituras selecionadas e os comunicações, afetando enormemente as formas
autores analisados proporcionaram uma visão de de construção do que nos acostumamos a chamar
como o avanço do neoliberalismo nas três décadas de “opinião pública”.
anteriores sedimentou a fragilização do Estado e O futuro dos regimes políticos passa pela re-
da política representativa, terreno onde floresce- definição das relações entre política e comunicação,
riam as lideranças personalistas e autoritárias que determinado pelo impacto dos novos meios sobre
emergiram na cena política mundial e causaram a representação política, como foi nos anos vinte e
um reboliço nas interpretações políticas. De cer- trinta, com o cinema e o rádio, ou nos anos sessen-
ta forma, essas leituras também significaram um ta e setenta com a televisão. Só que o potencial de
reencontro de seu coordenador com as tradições comando e alienação pode ser maior. O poder de
da ciência política em uma de seus temas de pes- construção de uma “realidade paralela” na era das

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fake news e da realidade virtual vai muito além do Para muitos, a derrocada inesperada do projeto de
que os meios tradicionais conseguiam, e que já não inclusão social encaminhado pelos governos petis-
era pouco, frise-se. Mas passa também pela questão tas trazia de volta os fantasmas da ditadura que pa-
da desigualdade social crescente que o neolibera- reciam distantes e colocava nas ruas toda uma carga
lismo estimulou, pelo reconhecimento do outro, do renovada de violência, intolerância e preconceitos.
respeito às diferenças culturais e às escolhas indi- De forma geral, essa questão foi o terreno dos livros
viduais. Apesar de não se furtarem a sugerir ações discutidos nesta parte da pesquisa.
essenciais e urgentes, os autores utilizados, ou a A ideia de “golpe parlamentar”, tratada
leitura que deles fizemos, tentaram acima de tudo mais incisivamente por Wanderley Guilherme dos
perceber a dinâmica dos processos de crise da de- Santos, é predominante, mesmo que nuançada com
mocracia representativa em curso e os horizontes expressões como “parlamentada” ou “golpe baixo”,
que se anunciam. Foram fundamentais para a mon- na linha mais do jogo duro institucional destacado
tagem do quadro maior em que se coloca a situação por Levitsky e Ziblatt, que é uma utilização desvir-
da crise política brasileira, a preocupação central tuada das regras. A sinergia entre a deposição de
da segunda parte do projeto. Dilma pelas oligarquias parlamentares e a Operação
O Brasil vive uma profunda crise política Lava Jato levou a uma desmoralização do sistema
desde a irrupção das Manifestações de 2013. São político que resultou na eleição de um outsider de
dez anos de turbulências, em que se verifica uma extrema direita. Mas, na tradição brasileira, um ou-
superposição de crises (política, econômica, social, tsider saído da periferia do próprio sistema político,
cultural) e o país parece perder os alicerces de sua como foram Jânio e Collor. Assim, os trabalhos se
identidade e de seu lugar no mundo. Este percurso voltavam para os dilemas colocados sobre a demo-
tem raízes profundas e alguns momentos emblemá- cracia pela emergência de movimentos de direita
ticos, como é o caso da questão que permeou a des- nas redes sociais que se propagavam rapidamente,
tituição de Dilma Rousseff: estaríamos diante de um por discursos de reabilitação e exaltação da dita-
processo imoral de impeachment ou de um golpe de dura militar e pela adoção de uma pauta conserva-
novo tipo, um “golpe parlamentar”? Essa questão dora de costumes, que cimentaria a ligação deste
de fundo, muito discutida entre intelectuais, mobi- projeto político com a vasta parcela da população
lizou parcela significativa de lideranças dos movi- integrante das igrejas neopentecostais. O chamado
mentos sociais, políticos, estudantes, sindicalistas. modelo político brasileiro foi discutido através da

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dinâmica do presidencialismo de coalizão, visto lítico. Apesar de não encamparmos a sugestão do
pelos trabalhos recentes de Sérgio Abranches e de pemedebismo como um conceito capaz de carregar
Fernando Limongi ou através da percepção de uma a caracterização de um sistema político, e sim um
história de longa duração da democracia, proposta traço da cultura política que expressa muito da dinâ-
por Leonardo Avritzer, em O Pêndulo da Democracia, mica do presidencialismo de coalizão (não seria este
indicando um movimento pendular entre momen- mesmo uma condição daquele?), o texto de Marcos
tos de consenso democrático vibrante e outros de Nobre é amplo e levou a compreensão da crise do
regressão autoritária violenta. sistema político da Nova República a um plano mais
O governo de Bolsonaro foi analisado de complexo. De outro lado, o livro de Lynch e Cas-
maneira mais direta através dos livros de Marcos simiro propiciou uma observação curta, mas cheia
Nobre, Limites da Democracia, e de Christian Lynch de dicas e pistas, sobre o neoconstitucionalismo que
e Paulo Cassimiro, O Populismo Reacionário, lança- sedimentou a ação dos agentes judiciais da Opera-
ção Lava Jato, e como as chamadas “novas direitas”
dos no ano passado. Fruto de uma reorientação da
encontraram nesta jornada levada a efeito por “te-
programação inicial, o encontro com esses trabalhos
nentes de toga” (expressão cunhada por Luiz Wer-
se mostrou uma escolha acertada. De um lado, por
neck Vianna) um escudo comum e depois todos se
uma visão mais ampla da importância do ciclo das
juntaram em torno da candidatura de Bolsonaro. Os
revoltas ocorridas entre 2011 e 2013, do qual o nosso
dois livros, concluídos antes do final do governo,
Junho faz parte. Com isso, se contrapondo às aná-
claramente não acreditavam no sucesso das tramas e
lises que estabelecem uma vinculação direta entre
arroubos golpistas de Bolsonaro, mas alertavam que
esses movimentos e a regressão autoritária poste-
as disputas políticas no Brasil passaram para outro
rior, classificando-os, portanto, como conservadores
plano e que a entrada de uma extrema direita aber-
em sua natureza. Nobre, ao contrário, aponta para
tamente anti-institucional chegou para ficar e não
as energias sociais anti-establishment que ali se ma-
vai se dissolver simplesmente numa recomposição
nifestavam e como o sistema político recusou-se a
do presidencialismo de coalizão.
qualquer reforma, seja pelos setores oligárquicos,
seja pelas forças mais progressistas. Essa energia
social terminaria canalizada para a solução de ex-
trema direita que Bolsonaro encarnava, visto como
a única que seria efetivamente contra o sistema po-

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Regressão
democrática
e
teoria
política

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Regressão democrática e teoria politica

E
ste ensaio parte de uma questão ampla que como em países periféricos e de democracia recente.
se impôs a partir da década passada: o que Movimentos e regimes de direita crescem em todo o
estaria acontecendo com a democracia li- mundo e põem em xeque valores e procedimentos
beral, em crise diante do avanço de regime populistas políticos que fizeram parte do arcabouço institucio-
de talhe autocrático, que passaram a utilizar a desig- nal das democracias. Nos últimos anos, Viktor Orbán
nação de “democracias iliberais”? (Hungria), Recep Erdogan (Turquia), Narendra Modi
(Índia), Donald Trump (EUA) e Jair Bolsonaro (Brasil),
Entre os cientistas políticos, a democracia além do já longevo domínio de Vladimir Putin (Rús-
quase sempre foi tratada como um horizonte histó- sia), são nomes que impulsionaram o debate em tor-
rico. Neste sentido, os temas da transição do autori- no das formas atuais do populismo reacionário ou de
tarismo à democracia, com a análise dos problemas um neofascismo. Mesmo as derrotas mais recentes de
da “consolidação democrática” ou de seus dilemas, Trump e Bolsonaro em suas tentativas de reeleição,
ocuparam muita atenção durante as décadas de 1980 se nuançaram a perspectiva sombria de uma escala-
e 1990. Na esteira da globalização, no entanto, o neo- da autoritária mundial, não afastaram sua presença e
liberalismo tecia lentamente o enfraquecimento de seus riscos.
instituições e regras que se constituíram, no decor-
rer de décadas, em pontos de sustentação dos regi-
mes que associaram liberalismo e democracia.

Regime político sempre afeito a tensões pela


sua própria constituição, a democracia representati-
va viveu no século passado dois momentos de crises
mais intensas. Nos anos trinta, com a ascensão do
fascismo, do nazismo e toda uma gama de regimes
autoritários em suas órbitas. Nas décadas de sessenta
e setenta, pela instauração de ditaduras militares na
Grécia e em vários países da América do Sul. Pode-se
dizer que vivemos um novo ciclo de crise da demo-
cracia liberal, desta vez, ocorrendo tanto em países ti-
dos como desenvolvidos e de democracia enraizada,

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Regressão democrática e teoria politica

As Implicações Políticas do Neoliberalismo que Foucault chamou de biopoder, encontra então


terreno fértil para se desenvolver. Acompanhando
esse processo, passamos a assistir a uma verdadei-
Em livro importante escrito no bojo da cri-
ra “desdemocratização” no âmbito dos regimes po-
se econômica instalada em 2008/09, Pierre Dardot e
líticos, vale dizer, um esvaziamento da democracia,
Christian Laval, definiram o alcance e as implica-
sem que haja sua extinção formal.
ções do neoliberalismo em termos de “uma nova
razão do mundo”. Intrigava os autores como “ape- Os anos 1980 foram marcados pela interven-
sar das consequências catastróficas a que nos con- ção política neoliberal protagonizada por Margareth
duziram, as políticas neoliberais são cada vez mais Thatcher e Ronald Reagan, que se contrapôs ruido-
atuais, a ponto de afundarem os Estados e as so- samente à regulação keynesiana da economia, alte-
ciedades em crises políticas e retrocessos sociais rou a propriedade pública das empresas, o sistema
cada vez mais graves?”1. A resposta, que constitui fiscal progressivo, a proteção social e todo o sistema
o núcleo do livro, é que estamos diante não apenas de direitos trabalhistas e de representação dos as-
de uma política econômica ou mesmo de uma ideo- salariados, além de, essencialmente, impor a lógica
logia, mas de uma certa “racionalidade” que bus- financeira do capitalismo como régua e compasso da
ca se impor tanto à ação dos governantes quanto sociedade. Estava em questão uma alteração profun-
à conduta dos governados. Para os autores, o que da dos modos de exercício do poder governamental.
está em questão é fundamentalmente a generaliza- Um relatório da Comissão Trilateral (EUA, Europa e
ção da concorrência como norma de conduta e dos Japão) em 1975, concluiu que as dificuldades da go-
critérios da empresa como modelo de subjetivação, vernança resultavam do “excessivo envolvimento
através da individualização do desempenho e das dos governados na vida política e social”. Ou seja,
gratificações. Dessa forma, o autocontrole substitui queixava-se dos “excessos de democracia” que ca-
o antigo controle exercido de fora, coercitivamen- racterizou o avanço de movimentos sociais na Euro-
te. Neste universo, onde o indivíduo se torna uma
pa e nos Estados Unidos na década anterior.
espécie de empresa de si mesmo, todos os disposi-
tivos de controle da população e das condutas, o Diferente da crise dos anos 1930, em que de-
semprego, inflação, desigualdades sociais, eram
atribuídos ao funcionamento do capitalismo e exi-
1 DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio
sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. giam correções, nos anos 1980, estes males seriam

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Regressão democrática e teoria politica

atribuídos ao Estado. Assim, se a saída daquela cri- o que se tratava era da “transformação da ação pú-
se implicou em mais proteção social e menos merca- blica, tornando o Estado uma esfera que também é
do, o inverso ocorreria nesta última. Assistiríamos regida pela concorrência e submetida a exigências
nas décadas seguintes à expansão da gestão neo- de eficácia semelhantes àquelas a que se sujeitam as
liberal das empresas, que resultou na individuali- empresas privadas”.2 O que os autores tentam enfa-
zação do desempenho e das gratificações, estabele- tizar é a característica do neoliberalismo como rees-
cendo a concorrência entre os assalariados dentro truturação do Estado, tornado guardião do direito
da empresa. O mundo do trabalho internalizava a privado, em que o cidadão, outrora portador de di-
lógica da concorrência do mundo empresarial. Essa reitos universais, torna-se o consumidor de serviços
“nova gestão” se espalhou para várias esferas de oferecidos através de empresas privadas submeti-
atividade, privadas ou públicas. Note-se, ainda, das a agências reguladoras responsáveis pela obser-
que esta forma de pensar e agir penetrou de ma- vação dos princípios da concorrência.
neira profunda o tecido social, e os grandes temas
Esta nova racionalidade se expressa na gene-
do neoliberalismo se colocaram em partidos que
ralização da ideologia da empresa em todo o corpo
se achavam historicamente no campo da regulação
social. Trata-se da passagem das instituições do go-
social keynesiana, como é o exemplo clássico dos verno às instituições do poder privado, na formula-
trabalhistas britânicos na era de Tony Blair, preser- ção precisa de Grégoire Chamayou, em A Sociedade
vando as políticas neoliberais do thatcherismo. Ingovernável. A empresa passa a servir de nexo, de
conexão entre os indivíduos e ela própria não é mais
A forma de expansão dessas políticas e de di-
uma entidade real, mas um conjunto de “relações con-
fusão de comportamentos homogeneizadores, veio
tratuais”. As empresas começam a produzir subjetivi-
principalmente através de agências internacionais
dades e a impor um verdadeiro governo privado da
multilaterais, como FMI, BID, OMC, e foi permeando
vida, muito mais invasivo que o poder do Estado. A
os mais variados programas, estabelecendo-se como
questão é que pelo seu gigantismo e a amplitude dos
razão “técnica”, inquestionável. Os governos não só impactos sociais de suas decisões, as grandes empre-
foram atores ativos neste processo como o próprio sas modernas começam a governar o mundo, impor
Estado passou a incorporar uma lógica empresarial.
Longe de assistirmos a uma simples retirada do Es-
tado das atividades econômicas e da proteção social, 2 Ibid., p. 272.

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Regressão democrática e teoria politica

padrões de relacionamento, de aquisição de serviços, seus efeitos sobre a despesa pública, afirmava de modo
de comunicação. Estabelece-se entre elas uma verda- taxativo que o programa para controlar os governos
deira guerra pelas mentes dos indivíduos, assim, as era simplesmente “destronar a política”. Com esta
empresas não são mais um assunto apenas da econo- fórmula se enunciava a estratégia do neoliberalismo
mia, tornando-se, cada vez mais, instituições de po- como poder “destituinte”. Valeria para todos os tipos
der de dimensão pública. É neste campo que floresce de regimes, mas, no caso das democracias colocava-se
a noção de direitos flexíveis, um direito frouxo, adap- uma dificuldade específica: seria possível impô-lo sem
tável às circunstâncias do mercado, bastante afeito às romper abertamente com as formas do regime repre-
ideias de autorregulação. A crise de dimensões glo- sentativo? A solução passava pela restrição do campo
bais que se colocou em 2008/09 mostrou como essas do poder governamental, vale dizer, pelo modelo de
agências, no fundo dominadas por interesses de mer- um “governo constitucionalmente limitado em maté-
cado, podem agir no sentido de preservar a lucrativi- rias de decisões econômicas”. Caía-se na ditadura dos
dade, ocultando ou manipulando dados, a ponto de mercados e a palavra de ordem tornou-se a “desregu-
lançar todos ao precipício, justo na área em que sur- lamentação”, o mercado “não era mais somente aquilo
giram estas noções de autorregulação, os mercados sobre o que a política não devia avançar, mas também
financeiros. A regulação privada das relações sociais aquilo a que ela devia se submeter a partir de então”.4
anuncia a era da “sociedade ingovernável”, que não A resposta implicava em um processo de esvaziamen-
aceita ser dirigida pelos governos, caindo diretamen- to dos poderes expostos à pressão popular, ou seja, em
te na mão das empresas e de sua ótica de mercado.3 “desdemocratização”.

O tema das relações entre liberalismo e autorita- As relações intrínsecas entre o neoliberalismo
rismo ganha uma importância central. Em 1978, Hayek e a crise da democracia ou “como a racionalidade
escrevia que “a democracia só pode ser conservada neoliberal preparou o terreno para mobilizar e legiti-
sob a forma de uma democracia limitada. Uma demo- mar forças ferozmente antidemocráticas na segunda
cracia ilimitada necessariamente destrói a si mesma”. década do século XXI” são também destacados por
Ecoando o diagnóstico dos “excessos” de democracia e Wendy Brown.5

4 Ibid., p. 359.
3 Ver CHAMAYOU, Grégoire. A Sociedade Ingovernável: uma genealo- 5 BROWN, Wendy. Nas Ruínas do Neoliberalismo: ascensão da política
gia do liberalismo autoritário. São Paulo: Ubu Editora, 2020. antidemocrática no Ocidente.

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Regressão democrática e teoria politica

Está em questão a gestação de um campo crática. A distinção entre liberalismo e democracia


vasto de ataques à igualdade e à sociedade. O des- é fundamental e, para Hayek, não há dúvida de
mantelamento do Estado Social, através da priva- que o capitalismo é incompatível com a expansão
tização, da delegação de suas tarefas e, por fim, da democracia. Este aspecto é crucial para enten-
da “desconstrução do Estado administrativo”, dermos as tensões políticas que se exacerbaram no
como anunciado por Steve Bannon para a presi- olho do furacão neoliberal.
dência de Donald Trump, preparou o terreno para Desdemocratizar o Estado e remover o seu
gerar uma cultura antidemocrática. Nesse ponto, empenho com a igualdade foi o horizonte das cor-
juntam-se várias correntes que desembocaram no rentes neoliberais na defesa do liberalismo autori-
neoliberalismo, dos ordoliberais e sua concepção tário. Wendy Brown anota:
de um Estado forte, necessário para a ordem e a
estabilidade econômica, sob forma tecnocrática à medida que o Estado neoliberal
e isolado das demandas democráticas, a Milton adequadamente constituído é desdemo-
cratizado e despojado de soberania, sua
Friedman e Friedrich Hayek e suas concepções do
autoridade é fortalecida, e os cidadãos,
político como domínio “autoexpansivo” que pre-
politicamente pacificados. (...) Daí o sonho
cisava ser contido. Nesta junção contra os “exces- ordoliberal de uma ordem liberal autoritá-
sos” da democracia, os próceres do neoliberalismo ria, ligada a uma constituição econômica e
propunham uma “ditadura liberal”. Todos endos- guiada por tecnocratas. Daí o objetivo de
sam o liberalismo autoritário. Hayek de uma separação estrita dos po-
deres, de restrições severas ao alcance le-
Como frisa Brown, “o sufocamento da de- gislativo e de deslocamento da soberania
mocracia foi fundamental, e não incidental, para do Estado para princípios do mercado e
o programa neoliberal mais amplo”. Segundo moralidade.6
Hayek, o oposto da democracia é o autoritarismo,
que é um poder concentrado, mas não necessa- Tudo isto foi realizado nas últimas déca-
das, no entanto, frisa Brown: “O neoliberalismo
riamente ilimitado, enquanto o oposto do libera-
realmente existente consiste em Estados domina-
lismo é o totalitarismo, que é o controle de todos
dos por todos os grandes interesses econômicos e
os aspectos da vida. Desta forma, o autoritarismo
seria compatível com uma sociedade liberal e o to-
talitarismo poderia nascer de uma maioria demo- 6 Ibid., p. 101.

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compelidos a lidar com um populacho fervendo “Desdemocratização” ou a erosão da


de rancor, raiva e ressentimento, para não men-
cionar suas necessidades materiais.” 7 Ao final, democracia liberal
quatro décadas de racionalidade neoliberal re-
sultaram em crises econômicas, aumento da desi- “Desdemocratização” é um termo que apare-
gualdade social e uma cultura política marcada- ceu para dar conta destes processos de regressão de-
mente antidemocrática. mocrática presentes seja nas antigas democracias do
centro ou nas democracias recentes da América Lati-
na, do Leste Europeu ou da Ásia. É uma situação nova,
na medida em que não se caracteriza pela interrupção
simples das regras da competição política ou das rela-
ções institucional entre poderes, mas de um processo
mais longo de esvaziamento e deslegitimação de ins-
tituições, de corrosão das regras do jogo democrático
e de ataques às representações de minorias.

O problema da crise das democracias tomou


de chofre a atenção dos cientistas políticos na se-
gunda década do século atual, depois de décadas
de expansão dos regimes de Constituição democrá-
tica no mundo. O avanço da internet e a criação das
redes sociais pareciam anunciar uma era de apro-
fundamento da democracia, pela maior difusão de
informações, quebrando o monopólio exercido pe-
las grandes mídias tradicionais. Na esteira da crise
de 2008/09 nos países centrais, vimos movimentos
de contestação novos e importantes, que gritavam
contra o domínio dos mercados financeiros e a de-
sigualdade social crescente, com bandeiras bastan-
7 Ibid., p. 104. te diversificadas, como o Occupy Wall Street, nos

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Regressão democrática e teoria politica

Estados Unidos, que chegou a se espalhar por vá- Dentre a literatura mais recente que trata da
rias cidades, ou o movimento dos Indignados, na questão, destacamos Crises da Democracia, de Adam Pr-
Espanha. Logo estourou a Primavera Árabe, na Tu- zeworski; Como as Democracias Morrem, de Steven Le-
nísia e no Egito, países de longo domínio ditatorial. vitsky e Daniel Ziblatt; O Povo Contra a Democracia, de
O ciclo de contestações populares chegou ao Brasil Yascha Mounk; O Século do Populismo, de Pierre Rosan-
nas Manifestações de 2013. Parecia que o aprofun- vallon e Como a Democracia Chega ao Fim, de David Run-
damento da democracia estava batendo à porta.8 As ciman. De uma maneira geral, todos concordam que a
aparências, no entanto, costumam enganar. crise atual apresenta uma feição distinta do que ocorreu
na ascensão do fascismo europeu ou nas ditaduras mili-
O que se viu na sequência foi o degringolar
tares da América Latina. E isto dá bem o tom predomi-
da revolução egípcia, com nova ascensão dos mi-
nante na ótica dos cientistas políticos hoje, a percepção
litares, a derrota dos movimentos nos Estados Uni-
de que a democracia pode soçobrar por erosão lenta. No
dos, a vitória do Brexit no Reino Unido, a eleição de
entanto, existem distinções importantes. Vejamos.
Donald Trump e de Jair Bolsonaro, o fortalecimento
de Orbán, na Hungria, falando numa forma de “de- Adam Przeworski é um autor reconhecido há tem-
mocracia iliberal”, além de Erdogan, na Turquia, e pos por seus estudos sobre democracia e sempre destacou
Modi, na Índia, atando novamente política e religião o elemento da competição institucionalizada como seu tra-
na escalada da concentração autocrática de poderes. ço essencial. Ao contrário de outros estudiosos, não fala em
O sacolejo foi geral. De repente, um horizonte bem “fim da democracia”. Percebe que “alguma coisa está acon-
distinto do que os cientistas políticos imaginavam tecendo” nas democracias amadurecidas, mas alerta que
deslocou novamente as análises para a questão da
anúncios apocalípticos do ‘fim’ (da civiliza-
crise das democracias, colocada agora num quadro
ção ocidental, da história, da democracia)
bem mais complexo, pois o ataque vinha através do
ou da ‘morte’ (do Estado, da ideologia, do
próprio processo eleitoral, com a ascensão de líderes Estado-nação) sempre acontecem. Essas de-
populistas que agitavam bandeiras antissistema, pro- clarações são provocadoras, mas não con-
metendo “devolver ao povo” e às nações, o poder que sigo pensar em nada nessa lista que tenha
teria sido subtraído por elites “globalistas”. acabado ou morrido.9

8 CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: movimentos 9 PRZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar,
sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 2020, p. 26.

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Regressão democrática e teoria politica

Com esta cautela, revisita rapidamente quatro Przeworski foi um estudioso das transições
casos de crise e seu desfecho: os colapsos na República do autoritarismo à democracia, no momento em
de Weimar e no Chile de Allende e as crises políticas so- que esses processos ocorriam na América do Sul e
lucionadas de forma institucional na França de De Gaul- no Leste Europeu. A questão que se coloca agora
le, duas vezes, entre 1954 e 1962 (crise argelina) e na crise é distinta e impõe retrocessos institucionais que
de 1968, em ambos os casos resultando em ampliação impactam a sociedade de maneira brutal. Assim,
das prerrogativas do Executivo; e nos Estados Unidos essa destruição (institucional, social, cultural, eco-
de Nixon, com o caso Watergate, quando o sistema de lógica) é impulsionada a partir de governantes
pesos e contrapesos funcionou contra o abuso do poder. eleitos. “O mistério na destruição da democracia
por retrocesso está em como um cenário terrível
Apesar de deixarem lições sobre fragmentação
pode ser construído aos poucos.”11 O foco é mais
do sistema partidário, choques entre poderes, declínio
no como a desconsolidação se desenvolve do que
dos partidos tradicionais e ascensão de novas lideranças
propriamente as condições em que ela ocorre.
personalistas, efeitos políticos da desigualdade de ren-
Para Przeworski o traço complicador é que esta é
da, polarização eleitoral e outros, a crise atual apresenta
a forma de expressão política presente em todo o
uma feição e um timing diferentes. Trata-se de um pro-
espectro político hoje, na medida em que “tanto
cesso novo, ainda historicamente desconhecido: “A des-
os partidos insurgentes de esquerda quanto os da
democratização ou retrocesso democrático é um proces-
direita são populistas.” Este populismo não fala
so de desgaste gradual das instituições e das normas da
contra a democracia, ao contrário, se coloca como
democracia”.10 É um processo novo porque não é um
corretivo dela, mas seria visceralmente anti-insti-
ataque que vem de fora pregando outra institucionali-
tucionalidade, sendo, portanto, apontado pelo au-
dade, mas vem de dentro da própria institucionalidade
tor como uma via da desdemocratização em curso.
estabelecida e tem como agente catalisador e beneficiá-
Frisa, ainda, que o Judiciário conseguirá, “no má-
rio imediato o ocupante do Executivo, seja presidente
ximo”, retardar o processo, mas não interromper.
ou primeiro-ministro (às vezes as duas coisas, pela ma-
nipulação do próprio sistema de governo, alterado de Quando Przeworski estava concluindo seu
acordo com as conveniências eleitorais do líder). trabalho, saiu o livro de Steven Levitsky e Daniel Zi-

10 Ibid., p. 200. 11 Ibid., p. 203.

32 33
Regressão democrática e teoria politica

blatt, Como as Democracias Morrem, que logo se torna- dos novos meios de comunicação e propaga fake
ria um best-seller. O foco do livro é a situação norte- news, insultos públicos, falsas acusações. É a menti-
-americana após a vitória de Donald Trump em 2016 ra e o espetáculo como método de governo.
e o que ela pode indicar sobre a crise da democracia.
Os Estados Unidos têm um sistema de gover-
Os argumentos centrais guardam muita proximida-
no e um sistema eleitoral com várias particularida-
de, apesar do ângulo de Przeworski ser mais amplo
des. Levitsky e Ziblatt se detém sobre os “cães de
na análise dos processos em vários contextos de des-
guarda da constituição”, que identificam principal-
democratização e o dos professores de Harvard ser mente no Colégio Eleitoral, como pensado inicial-
mais direcionado para a situação norte-americana, mente pelos fundadores, e cuja função logo foi pas-
mesmo que contenha também exemplos e compa- sada aos partidos. “Os eleitores se tornaram agentes
rações com outros casos. De forma direta, afirmam partidários, o que significa que o Colégio Eleitoral
que a crise atual da democracia se define pela ero- cedeu a autoridade de guardião aos partidos. E os
são, que é diferente da existência do momento de- partidos a mantiveram desde então”.12 Os candi-
cisivo, o golpe armado. A tática para subverter a datos precisavam do apoio da rede partidária de
democracia a partir do poder Executivo comporta políticos estaduais e locais. Isso terminava servin-
alguns pontos que seriam familiares a outros casos do de barreira eficaz à chegada de outsiders e mes-
históricos ou exemplos contemporâneos, como os mo magnatas com certa popularidade e influência,
confrontos com o Congresso e o Judiciário e os ata- como Henry Ford, não conseguiram ter a indicação
ques à mídia. Os presidentes passaram a contornar da candidatura sem a anuência da máquina partidá-
o Congresso utilizando-se de decretos executivos. O ria, que funcionava como filtro. O outro ponto são
jogo pesado na esfera institucional contra os árbitros as “grades de proteção”, regras informais essenciais
do sistema, os tribunais, os serviços de inteligência, para o funcionamento do sistema. A tolerância en-
polícia etc., todos precisando estabelecer vínculos tre os competidores é a primeira, a legitimidade que
com a liderança política. Na relação institucional se reconhece no outro e o respeito aos resultados.
entre os partidos no Congresso, a intolerância e o A chamada “reserva institucional”, que consiste em
bloqueio vão se tornando a regra, a disputa eleitoral “evitar ações que, embora respeitem a letra da lei,
se radicaliza e a demarcação dos distritos cada vez
mais implica em tirar do sistema político grupos im-
12 LEVITSKY, Steven e ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem.
portantes (negros, imigrantes). A liderança faz uso Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 48.

34 35
Regressão democrática e teoria politica

violam claramente o seu espírito”. Explorar prer- Nos Estados Unidos, a eleição de Trump apa-
rogativas institucionais a todo momento, travando rece como ponto alto de um roteiro que vem sendo
os processos, fazendo o “jogo duro institucional”, escrito há tempos. Magnata do setor imobiliário, fi-
tudo isso vem sendo cada vez mais utilizado desde gura polêmica da mídia, era o tipo de outsider visto
a década de 1990, por ambos os partidos, nas uni- com desconfiança pelo establishment, que apareceu
dades da federação e na União, de tal forma que os tantas vezes na história americana. Mas os tempos
estados americanos são qualificados pelos autores agora eram outros. Trump manteve a candidatura
como verdadeiros “laboratórios de autoritarismo”. contra a direção partidária (e depois submeteria to-
A subversão da democracia a partir do Executivo talmente o partido), desde o início do governo forçou
passa por contornar o Congresso com decretos exe- os limites institucionais, agiu ao arrepio de normas
cutivos, o confronto e a tentativa de controlar o Ju- e regras de convívio, acirrou a separação entre os
diciário, o combate à mídia. partidos. Os partidos passam a se ver como inimigos
mortais e perder deixa de ser uma situação rotineira
A erosão da democracia acontece de manei- do processo eleitoral para significar uma catástrofe.
ra gradativa, muitas vezes em pequeníssi- Donald Trump desde o início da campanha desqua-
mos passos. Tomado individualmente, cada
lificou o processo eleitoral; eleito, continuou agindo
passo parece insignificante – nenhum de-
les aparenta de fato ameaçar a democracia. da mesma forma e, quando perdeu, tentou de todas
Com efeito, as iniciativas governamentais as maneiras virar a mesa do jogo, até a malsinada in-
para subverter a democracia costumam ter vasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Este des-
um verniz de legalidade. Elas são aprovadas fecho, até o momento, que o livro não alcança, impli-
pelo Parlamento ou julgadas constitucionais cou numa resistência institucional importante, mas o
por supremas cortes. Muitas são adotadas
quadro da erosão da democracia nos Estados Unidos
sob o pretexto de diligenciar algum objeti-
vo público legítimo – e mesmo elogiável -, está dado. Nos exemplos utilizados de outros países,
como combater a corrupção, ‘limpar’ as elei- Rússia, Turquia, Hungria, Polônia, e em outros mo-
ções, aperfeiçoar a qualidade da democracia mentos, como o caso de Fujimori, no Peru dos anos
ou aumentar a segurança nacional.13 1990, ou de Chávez, na década seguinte, a tônica é a
mesma: “Uma vez que os principais oposicionistas,
mídia e empresários são afastados ou marginaliza-
13 Ibid., p. 81. dos, a oposição se esvazia. O governo ‘ganha’ sem

36 37
Regressão democrática e teoria politica

necessariamente quebrar as regras”.14 Levitsky e Zi- cipalmente, isolando as políticas públicas da pressão
blatt não tinham dúvidas de que “O comportamento popular. Estaríamos diante de um processo inédito
de Trump em relação a tribunais, órgão de polícia e de desconsolidação democrática, movido pelo desco-
inteligência e outras agências independentes foi tira- lamento das partes que compunham historicamente a
do de uma cartilha autoritária”.15 democracia liberal.

Yascha Mounk, em O Povo Contra a Democracia,


A democracia liberal, essa mistura única de
publicado também em 2018, tem como foco o popu-
direitos individuais e governo popular que
lismo de direita em ascensão no mundo e o conceito há muito tempo tem caracterizado a maio-
de “democracia iliberal” que ele carrega. Para Mou- ria dos governos na América do Norte e na
nk, o que define o populismo é a reivindicação de re- Europa Ocidental, está se desmantelando.
presentação exclusiva do povo – “e é essa relutância Em seu lugar, presenciamos a ascensão da
em tolerar a oposição ou respeitar a necessidade de democracia iliberal, ou democracia sem di-
instituições independentes que põe os populistas em reitos, e do liberalismo antidemocrático, ou
direitos sem democracia.17
rota de colisão direta com a democracia liberal”.16 As
duas partes que compõem a democracia liberal esta-
riam se descolando, proporcionando a ascensão de O liberalismo antidemocrático se expande na
democracias iliberais (democracia sem direitos), de esteira do crescimento de áreas inteiras das políti-
um lado, e de um liberalismo antidemocrático (di- cas públicas que se colocam sob a regência de agên-
reitos sem democracia), de outro. Neste quadro, as cias burocráticas alçadas quase à posição legislativa.
opiniões do povo tendem a ser iliberais, apostando Assim, “para determinar a política monetária e
nas soluções imediatas propostas por líderes carismá- resistir à pressão política para criar crescimentos
ticos, enquanto as preferências da elite inclinam-se, artificiais em anos de eleição, mais e mais bancos
cada vez mais, para propostas antidemocráticas, frag- centrais ganharam independência”.18 O liberalismo
mentando os direitos, excluindo populações e, prin- antidemocrático se volta principalmente contra o ati-
vismo jurídico, alegando que um tribunal composto
de juízes não eleitos pode derrubar uma lei aprovada

14 Ibid., p. 90.
15 Ibid., p. 173.
16 MOUNK, Yascha. O Povo Contra a Democracia. São Paulo: Compa- 17 Ibid., p. 29/30.
nhia das Letras, 2019, p. 10. 18 Ibid., p. 82.

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Regressão democrática e teoria politica

pelos representantes do povo. Desconsidera que mui- situação, simplificar os problemas, localizando sua
tos avanços dos direitos civis vieram dos tribunais e solução em um único ponto, denunciando o papel
coloca os juízes como usurpadores da soberania po- das elites traidoras dos interesses nacionais, no caso,
pular. É um quadro de dissociação entre os eleitores e elites comprometidas com o “globalismo”.
a tradução de seu voto em políticas governamentais,
submetidas à intervenção dos juízes. As origens da situação atual são localizadas em
três aspectos principais. As transformações profun-
No Ocidente, as últimas três décadas foram das causadas pelas mídias sociais, com a passagem
marcadas pelo papel crescente dos tribu-
da comunicação “um para muitos”, que caracterizava
nais, agências burocráticas, bancos centrais
e instituições supranacionais. Ao mesmo os meios de comunicação de massa, para a comuni-
tempo, houve um rápido crescimento da cação “muitos para muitos”, numa rede de usuários
influência dos lobistas, dos gastos com cam- em que todos se comunicam entre si. A visão sobre os
panha política e do abismo que separa as efeitos dessa mudança alterou completamente: “Em
elites políticas das pessoas que elas deve- 2014 ou 2015, o senso comum sobre as mídias sociais
riam representar. Tomado como um todo,
era predominantemente positivo. Desde então, essa
isso efetivamente isolou o sistema político
da vontade popular.19 percepção virou de cabeça para baixo”. Em uma pala-
vra, o novo quadro da comunicação deu visibilidade
O exemplo maior dessa tendência antidemo- aos outsiders e desestabilizou as elites governantes no
crática dos novos desenhos institucionais estaria na mundo inteiro. Em seguida, anota os efeitos da estag-
União Europeia, onde uma série de questões que im- nação econômica, a combinação de crescimento baixo
pactam o cotidiano em diferentes países são tomadas e aumento da desigualdade. Comparada às décadas
em Bruxelas por altos funcionários que não foram de estabilidade democrática, a queda é acentuada e
eleitos. Esta é uma bandeira agitada por todos os cria apreensão sobre o futuro. Não se verifica mais
líderes populistas ante eleitores cada vez mais insa- a ascensão material que sustentava a aliança entre
tisfeitos com as lideranças estabelecidas e os rumos
gerações diferentes. Por fim, destaca as batalhas da
da globalização. Na lógica do populismo, uma das
identidade, impulsionadas pelos efeitos da acelera-
primeiras características é apontar culpados para a
ção da imigração, pois, “embora a diversidade étnica
sempre tenha sido uma característica da experiên-
19 Ibid., p. 118. cia americana, a igualdade étnica nunca foi: duran-

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Regressão democrática e teoria politica

te a maior parte da história do país, muitos grupos em curso dá vazão a uma insatisfação social diante
étnicos minoritários foram abertamente reprimidos das promessas não cumpridas da globalização neoli-
ou até escravizados”.20 Entre os eleitores europeus, beral. O próprio nacionalismo teria que ser retirado
a imigração está também no topo das preocupações, do domínio da extrema direita populista, geralmen-
tendo grande peso nas disputas eleitorais, mesmo em te carregado de traços de xenofobia, em nome de um
países que tiveram níveis muito baixos de imigração nacionalismo inclusivo, aberto à diversidade cultu-
nas últimas décadas, como a Polônia ou a Hungria. ral. Mounk coloca o problema como de descolamen-
to entre as duas partes constitutivas da democracia
Mounk não se mostra pessimista quanto ao liberal, mas, nesta visão, a “solução” surge apenas
futuro da democracia, acha que ainda é possível como correção, uma recalibragem da relação entre
“lutar por nossas convicções”, como afirma, desde essas partes. O populismo aparece como um gran-
que alguns “remédios” sejam levados em considera- de mal a ser combatido, pois “um sistema em que a
ção para enfrentar a situação de deterioração da de- vontade do povo consegue se sobrepor aos juízes e
mocracia e a erosão das instituições liberais. Entre as burocratas pode parecer mais democrático a curto
“lições” sugeridas, destacam-se a união das forças prazo; no longo prazo, também torna mais fácil para
democráticas em processos eleitorais, a defesa das um autocrata abolir a democracia”.21
regras institucionais, na contramão do esvaziamen-
to proposto pelos líderes populistas e a necessidade A ascensão do populismo é também o centro
de “falar a língua da gente comum”, se reconectar da atenção de Pierre Rosanvallon, em O Século do Po-
com as preocupações do eleitorado e de passar uma pulismo, publicado em 2020. O enfoque, no entanto, é
imagem positiva, indicar algum horizonte e não fi- distinto e o livro apresenta maior amplitude histórica
car apenas enumerando os defeitos dos populistas. para tratar o fenômeno. Na verdade, aqui o populismo
Neste ponto, é enfático ao afirmar que “os defenso- em suas formas recentes não é tratado como problema
res da democracia liberal não vão derrotar os po- e “deve ser compreendido como uma proposição de
pulistas enquanto derem a impressão de que estão resposta aos problemas contemporâneos”.22 Para Ro-
comprometidos com o status quo”. Trata-se de um sanvallon, esses populismos se inscrevem na perspec-
aspecto central no sentido de que a voga populista

21 Ibid., p. 122.
20 Ibid., p. 204. 22 ROSANVALLON, Pierre. O Século do Populismo, p. 60

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Regressão democrática e teoria politica

tiva de uma regeneração democrática. A democracia li- Acima de tudo, a voga populista expressaria
beral em suas partes constitutivas, associa dispositivos um descontentamento com o funcionamento das
constitucionais que garantem os direitos individuais instituições representativas e nas eleições vemos
e instituições independentes que controlam o exercí- “triunfar cada vez mais as coalizões negativas, que
cio do poder executivo, que é o seu aspecto liberal, ao fazem chegar ao poder personalidades imprová-
princípio da soberania popular, a característica demo- veis cuja virgindade e surgimento a partir do nada
crática. A concepção populista parte da constatação do são as principais qualidades”.24 São movimentos
esvaziamento do poder de fato dos eleitores pelas oli- que surgem a partir de uma linguagem da recusa,
garquias parlamentares em associação com os círculos que não se estruturam pela organização vertical
dominantes nos mercados financeiros. Neste sentido, em torno da defesa de interesses claramente
privilegia a democracia direta, reivindicando a mul- definidos, mas de uma soma de demandas e re-
tiplicação dos referendos como forma de devolver o clamações diversas, cujo ponto de junção é o sen-
poder de decisão às populações, e defende o “projeto timento da indiferença dos poderes constituídos
de uma democracia polarizada, que denuncia o caráter frente a seus problemas. Este desencantamento se
não democrático das autoridades que não foram elei- espalha para além da oposição tradicional entre
tas e das cortes constitucionais”.23 Na democracia po- direita e esquerda.
larizada, a legitimidade é colocada integralmente no
processo majoritário de escolha eleitoral, afirmando a Rosanvallon localiza as origens dessa con-
verticalidade e esvaziando ou suprimindo a legitimi- cepção de democracia plebiscitária na França de
dade dos poderes horizontais de controle, notadamen- Luís Bonaparte, através de uma forma de represen-
te na esfera do Judiciário, combatendo o que chamam tação-encarnação “apoiada numa política da proxi-
de “o governo dos juízes”, que se manifesta na “juris- midade da qual ele foi um dos principais pioneiros.
prudência que vem determinar a lei ao interpretá-la”. Política ilustrada notadamente por suas numerosas
Completam o quadro, a crítica dos partidos, a prefe- viagens durante as quais percorria as províncias
rência por outro tipo de organização política, o movi- francesas ao encontro direto com seus habitan-
mento, e a crítica dos meios de comunicação de massa, tes”.25 Ele se coloca historicamente como o primeiro
contrapondo a eles a utilização das redes sociais.

24 Ibid., p. 120.
23 Ibid., p. 74. 25 Ibid., p. 150.

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Regressão democrática e teoria politica

praticante de um tipo inédito de democracia ilibe- formas constitucionais fortalecendo o Executivo e


ral, pela deslegitimação da representação política a busca da reeleição sem limites do líder, de que
tradicional e o controle da imprensa, princípios ba- são exemplos os casos de Chávez e Putin, mas tam-
silares do Estado de Direito. bém Evo Morales, Rafael Corrêa, Nicolas Madu-
ro, Daniel Ortega, Viktor Orbán, Recep Erdogan,
No século XX, esse tipo de democracia foi Narendra Modi, a lista é extensa, incluindo-se as
defendido e teorizado principalmente por Carl experiências de Trump e Bolsonaro. Para Rosanva-
Schmitt, “ligando seu antiliberalismo radical à ce- llon, “o exemplo latino-americano é emblemático
lebração de uma democracia de aclamação oposta do processo de mudança progressiva de democra-
às ‘democracias discutidoras’ que ele despreza- cias para democraturas”. Todos esses casos seriam
va”.26 Está aí recolocada a crítica aos órgãos inter- diferentes do que sucedeu, por exemplo, no Egi-
mediários entre o Estado e a sociedade, ou seja, to após a derrocada da Primavera Árabe, tendo se
partidos, sindicatos, associações independentes. configurado um poder abertamente ditatorial, ou
Essa dissociação entre liberalismo e democracia dos “numerosos casos de manutenção no poder de
levou à criação do neologismo “democratura”, chefes de Estado africanos com a ajuda de eleições
forjado para “qualificar um tipo de regime funda- quase totalmente manipuladas”.28 Além da pola-
mentalmente iliberal que conserva formalmente a rização das instituições, a democratura também
roupagem de uma democracia”.27 A democratura efetua a politização do Estado, o alinhamento ne-
nasce na democracia em sua forma polarizada, que cessário dos funcionários, numa politização das
se alimenta da tensão entre o princípio vertical funções. Neste regime, o poder Legislativo está
majoritário das eleições e observância das regras submetido às ordens do Executivo.
institucionais horizontais entre os poderes. A le-
gitimidade do líder diante das massas depende do Um exemplo clássico é Hugo Chávez, con-
ataque às instituições de controle, colocadas como siderado pelo autor como “figura de proa desse
empecilho às mudanças desejadas. Para contornar novo ciclo populista”. Acompanhemos a síntese de
estes óbices, dois expedientes são utilizados: as re- sua trajetória:

26 Ibid., p. 258.
27 Ibid., p. 307. 28 Ibid., p. 316.

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Regressão democrática e teoria politica

havia desde 1999, data de sua posse, fei- mas não como desvio ou anomalia que devesse ser
to votar o prolongamento da duração do corrigida no sentido de uma volta, pois “não é per-
mandato presidencial (de cinco a seis manecendo na defesa da ordem existente das coi-
anos) e tornado possível uma reeleição
sas que será possível dar uma resposta satisfatória
consecutiva. Em seguida, essa limitação
tinha sido levantada em 2009 com a ree-
às questões e às demandas que alimentam a as-
leição presidencial se tornando indefini- censão desse populismo contemporâneo”.30 Neste
da. Assim, ele pôde permanecer quatorze sentido, defende que a solução para a crise da re-
anos no poder, apenas a doença o impe- presentação, seria justamente “desdobrar as suas
dindo de seguir seu quarto mandato (que modalidades e as suas expressões para além do
teria se encerrado em 2019).29 papel indispensável e limitado do exercício eleito-
ral”, numa democracia que ele denomina de “inte-
Na jornada de transformação do regime, rativa”, capaz de estabelecer “dispositivos perma-
Chavez ampliou o número de juízes da Corte nentes de consulta, de informação e de prestação
Constitucional, de modo a esvaziar sua indepen- de contas”. A soberania popular precisa ser apro-
dência, controlou o Congresso, utilizando-se de fundada para além de sua configuração eleitoral.
sucessivas alterações na legislação eleitoral, en- O populismo expressaria, assim, um problema das
trou em conflitos com os grupos que controlavam democracias a exigir uma solução que o atravesse
os principais meios de comunicação, encampando e não simplesmente o negue ou exclua, na medida
redes de televisão e perseguindo jornalistas, em em que a maior personalização da ação e a frag-
suma, forneceu a diretriz que seria seguida, com mentação dos atores são parte indissociável dos
pequenas variações, por outros líderes populistas novos meios de comunicação, numa palavra, da
da região, da esquerda ou da direita. O chavismo própria condição social contemporânea.
foi o modelo de populismo autoritário seguido na
América Latina. O último dos autores elencados aqui é o bri-
tânico David Runciman e seu Como a Democracia
Rosanvallon relaciona a emergência do po- Chega ao Fim, também publicado em 2018. O cen-
pulismo com a crise da democracia representativa, tro do argumento de Runciman é que ainda somos

29 Ibid., p. 313. 30 Ibid., p. 327.

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Regressão democrática e teoria politica

cativos das imagens do século XX e é nas déca- a) “golpes promissórios” – em que a democracia é
das de 1930 e 1970 que vamos pegar os indicativos tomada por pessoas que em seguida convocam
para pensar as crises da democracia, nos golpes eleições para legitimar seu governo;
de estado dados com tanques nas ruas e prisões b) “ampliação do poder do Executivo” – quando
de opositores, mas, talvez “nossas democracias os ocupantes do poder desgastam as institui-
estejam fracassando de maneira que desconhece- ções democráticas sem chegar a derrubá-las;
mos”. A pergunta se torna, pois, como a democra-
c) “manipulação estratégica das eleições” – quan-
cia pode ser subvertida sem o uso da força? Para
do as eleições não são exatamente livres e justas,
responder à questão, destaca três elementos: o em-
mas tampouco são claramente fraudulentas.
baralhamento da noção de golpe de estado, o risco
de uma catástrofe que nos arraste a todos (guerra Neste quadro, quanto mais antiga a expe-
atômica, mudança climática, bioterrorismo) e as riência de regime democrático maior a probabili-
ameaças da revolução tecnológica. dade de que ela venha a ser subvertida sem que aja
um momento de derrocada, um golpe clássico. “Em
O primeiro aspecto começa com uma obser- especial, a ampliação do poder do Executivo – em
vação provocante: “Parece até que ninguém mais que homens fortes eleitos minam as instituições de-
sabe o que significa um golpe de Estado”. Repor- mocráticas enquanto alegam defendê-las – parece
tando-se à situação da Grécia no auge da crise eco- ser a maior ameaça à democracia no século XXI”.31
nômica, anota: “Fala-se muito em golpe – o golpe A forma e o ritmo são outros. “São democracias
dado pelos banqueiros, o golpe dado pelos tecno- que caem por erosão, em vez de desmoronarem.”
cratas, o golpe dos alemães – mas esses golpes são
Runciman se detém sobre o caso da Turquia,
metafóricos”. A distinção fundamental estaria en- uma história republicana iniciada em 1923, pontuada
tre os que se impõem deixando claro que o regime por golpes militares. “As Forças Armadas turcas se
mudou e a democracia não existe mais e os que colocaram como guardiães da Constituição laica, con-
precisam fazer de conta que ela permanece. Os tra os que tentam subvertê-la em nome do Islão”. Em
golpes de Estado clássicos, com a tomada violenta
do poder, são os da primeira categoria, enquanto
os últimos se distribuem em 3 tipos: 31 RUNCIMAN, David. Como a Democracia Chega ao Fim, p. 52.

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Regressão democrática e teoria politica

2002, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), As catástrofes podem se configurar como


de Recep Erdogan, conseguiu grande vitória eleitoral, outro modo pela qual a civilização moderna
vista como rejeição popular à interferência dos mili- pode acabar destruída, seja uma guerra de des-
tares, e cinco anos mais tarde, saiu vitorioso de con- truição em massa ou a devastação ambiental
fronto com o exército ao indicar um grande defensor e o envenenamento dos seus alimentos. Esta
do islamismo para a presidência. Nos anos seguintes seria uma questão fundamental do século XXI,
empreendeu uma série de reformas que fortaleciam o se a humanidade conseguirá sobreviver e se a
Executivo e aproximou mais Estado e religião. Em ju- democracia conseguirá se colocar como a melhor
lho de 2016 conseguiu reverter um golpe militar, apa- via para encaminhar a discussão dessas pautas
recendo na internet de madrugada, conclamando o
urgentes ou as decisões serão tomadas por círculos
povo a resistir ao golpe, supostamente articulado por
restritos, cada vez mais integrados por poderosas
um dissidente exilado em Londres. Em 12 horas o gol-
empresas que comandam o armazenamento de da-
pe tinha malogrado. A partir daí, Erdogan promoveu
dos e a comunicação.
um expurgo no exército e nas universidades, prendeu
políticos de oposição, jornalistas, educadores. O ponto seguinte, os riscos da revolução
tecnológica, pode ser apresentado pela indagação:
No ano seguinte, convocou um referendo e
o que aconteceu com a promessa democrática de
venceu por pouco, propondo aumento dos pode-
res da presidência. “Erdogan ampliou muito seu uma revolução na internet? A tecnologia digital
poder pessoal, sempre tomando o cuidado, porém, e as redes sociais tiveram um início estimulador,
de apresentar tudo como um modo de proteger a prometendo quebrar o domínio da informação
democracia da possibilidade de futuros golpes mi- exercido pela grande mídia e permitir a visibili-
litares”. Tudo foi feito “em nome da democracia”, dade maior da política, mas em vez de enfraque-
mas o golpe contra Erdogan nunca foi bem prova- cer o poder de líderes autoritários, estes passaram
do ou ficou claro e a oposição sempre o acusou de a utilizá-la com sucesso. O que interessa agora é
tê-lo forjado. O certo é que o resultado do malogro capturar a atenção dos usuários do mundo digital,
foi o seu fortalecimento pessoal, num jogo onde mantê-los presos à tela, em estado de alerta e exci-
“o apoio popular funciona como um biombo para tação permanentes. Capturar a atenção é o jogo da
ocultar as manobras de um candidato a autocrata”. publicidade. Neste sentido,

52 53
Regressão democrática e teoria politica

Trump é o político ideal para essa versão cipalmente no mundo virtual. É a política tornada
da democracia. (...) O que ele procura é publicidade, um show para chamar atenção, pouco
atenção. Esperamos que os políticos mu- importando a veracidade e mesmo a plausibilidade
dem seu comportamento a partir do mo-
do que está sendo dito. Amanhã inventa-se outro
mento em que fecham sua venda. Depois
da vitória, Trump permaneceu em modo
absurdo, contando que a atenção de todos continue
de campanha. Domina a atenção do mun- sobre ele. A intenção da democracia representativa
do inteiro, mesmo sem realizar nada.32 funciona exatamente contra o impulso e a satisfação
imediata, daí o desgaste por que passa, e, ao con-
Propagandista de si mesmo, mentiroso, ca- trário, o impulso que as mídias sociais têm dado a
luniador, o que Trump faz, e outros o seguem com outsiders políticos de vários matizes.
sucesso, é manter a plateia entretida com o show,
vociferando, incitando, esperando o próximo lan-
ce. Assim foram os comícios de campanha e tudo
continuou nos anos de governo. A cada dia, um
insulto, uma grosseria, um absurdo, eram jogados
no Twitter. Carne às feras famintas, estimulando o
ódio e a violência.

Para Runciman existe um descompasso en-


tre a lógica de satisfação imediata do mundo digital
e o ritmo lento da democracia representativa, com
seus sistemas de pesos e contrapesos, regras, buro-
cracias, tribunais. A imediatidade e o personalismo
presentes na lógica das redes atropela os partidos e
os políticos de maior sucesso eleitoral tendem a se
apresentar como líderes de movimentos, conduto-
res de massas, com as quais eles se relacionam prin-

32 Ibid., p. 170.

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Regressão democrática e teoria politica

As veias abertas da democracia um nome de destaque foi o italiano Norberto Bobbio


e a tese de que não seria mais possível falar em de-
Todos estes autores apresentam um forte tra- mocracia sem levar em conta o respeito aos direitos
ço comum na análise da crise atual da democracia. individuais, nem falar em liberalismo sem incluir a
Trata-se de um processo inédito de desconsolidação, participação de todos os setores da sociedade, com
de fragilização e erosão institucional, que guarda exclusão de outras restrições além dos requisitos de
importantes diferenças em relação às característi- idade mínima. Na ciência política, poderíamos citar
cas das crises vivenciadas nas décadas de 1930 ou Robert Dahl e sua conhecida formulação da demo-
de 1960/70, quando se expressava através de golpes cracia contemporânea como poliarquia, caracterizada
armados e a instauração de uma nova ordem insti- pela resolução de dois problemas básicos na forma-
tucional, abertamente antidemocrática e antiliberal. ção dos regimes políticos modernos, a instituciona-
Aquelas crises faziam parte do quadro de tensões lização da competição pelo poder e a ampliação da
e impasses que marcaram os processos de fortale- participação, ou Arend Lijphart e sua distinção entre
cimento de Estados Nacionais no centro e na peri- modelos de democracia, majoritária e consensual,
feria, no momento da passagem da política de no- formas diferentes de produção de maiorias, ou ain-
táveis para a política de massas. A crise atual tem da, Adam Przeworski e Alfred Stepan e a ênfase na
como pano de fundo os problemas da globalização competitividade, na incerteza eleitoral, como caracte-
neoliberal e se recoloca o nacionalismo no tabuleiro, rística nuclear da democracia. Para todos estes auto-
o faz de forma diferente, mais como slogan político res, a democracia era pensada principalmente como
que realidade econômica efetiva. Um nacionalismo método, circunscrita em sua especificidade política.
que tenta se sustentar na xenofobia cultural, como A referência era o funcionamento das democracias
reação ao multiculturalismo da globalização. estabilizadas da América do Norte e da Europa Oci-
dental, oscilando entre governos de centro-esquerda
Os cientistas políticos guardaram durante dé- ou de centro-direita, mantendo os extremos fora do
cadas uma certeza de que a junção entre liberalismo jogo político-eleitoral.
e democracia, iniciada em fins do século XIX e efe-
tivada nos anos dourados do pós-guerra, se tornara No campo da especulação filosófica e do
indissolúvel, de maneira que os processos políticos ensaísmo, no entanto, a crítica no sentido de apon-
passaram a ser tratados sob o signo da “consolida- tar para o esvaziamento da democracia já era bem
ção democrática”. No campo da filosofia política, forte desde os anos 70 do século passado. Para ci-

56 57
Regressão democrática e teoria politica

tar alguns nomes expressivos, Foucault, Debord, do no próprio processo de construção do Estado li-
Baudrillard e, mais recentemente, Losurdo ou beral, em sua fase de ampliação das bases sociais,
Agamben, foram unânimes em tratar a democra- configurando uma alternativa à discriminação cen-
cia contemporânea sob a sombra do estado de ex- sitária como forma de atenuar o impacto da entra-
ceção normalizado, no âmbito do funcionamento da das massas na política. Para ele, o bonapartismo
real do poder, através de noções como biopoder, se bifurca, entre as formas de guerra, do fascismo e
espetáculo, simulacro, controle. Podemos ainda do nazismo, e a forma soft, do modelo norte-ameri-
agregar as observações de Jacques Rancière, em O cano. Geralmente tratado como originário da Fran-
Ódio à democracia, ou de Tzvetan Todorov, em Os ça, o bonapartismo se espelha no fortalecimento do
inimigos íntimos da democracia. Nesta seara, o ponto poder Executivo que resultou do “golpe de Estado”
central não era a ideia do fortalecimento da de- da Convenção da Filadélfia, em 1788. Destinada a
mocracia em curso, mas, ao contrário, de sua di- fazer uma reforma nos artigos da Confederação, a
luição e do embaralhamento mesmo da distinção Convenção foi muito além e elaborou praticamente
entre democracia e ditadura. O próprio Norberto um novo texto constitucional, fortalecendo os pode-
Bobbio, ao final de sua longa vida, vociferou res do Executivo no âmbito de uma Federação. Nas
“contra os novos despotismos”, numa série de palavras do general Washington, uma “Constitui-
artigos de jornal, entrevistas e intervenções acerca ção liberal e enérgica”, capaz de varrer “anarquia
do “berlusconismo”.33 e caos”.34 A associação entre conservadorismo e li-
beralismo seria utilizada por Napoleão Bonaparte e
Domenico Losurdo, por exemplo, é um an- pelo sobrinho, Luís Bonaparte, em seus respectivos
tigo crítico desta propalada junção feliz entre libe- golpes do Brumário. Para Losurdo, seguindo Marx,
ralismo e democracia. Na verdade, defende mesmo o estado de exceção que o bonapartismo expressa,
que o liberalismo é intrinsecamente antidemocrá- não apenas nasce junto ao regime constitucional,
tico. Em Democracia ou Bonapartismo: triunfo e deca- como funcionou mesmo de pressuposto. Na ori-
dência do sufrágio universal, elabora uma análise do gem dos regimes constitucionais estava a exceção,
bonapartismo que o coloca como fenômeno surgi- nos dois lados do Atlântico. A especificidade é que

33 BOBBIO, Norberto. Contra os Novos Despotismos: ensaios sobre o


berlusconismo. São Paulo: Editora Unesp; Instituto Norberto Bobbio, 34 LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo. Rio de Janeiro:
2016. Editora da UFRJ; São Paulo: Editora da Unesp, 204, p. 102.

58 59
Regressão democrática e teoria politica

a realidade política americana nos coloca tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados
diante de uma espécie de bonapartismo contemporâneos, inclusive dos chamados democrá-
soft, que, no entanto, pode se transformar, ticos”.36 Reportava-se ao processo de fortalecimento
se necessário, de modo bastante fácil,
do Executivo frente o Legislativo ocorrido em todas
num explícito bonapartismo de guerra,
para retornar novamente à normalidade
as democracias e à burocratização das decisões po-
uma vez que se considere superado o es- líticas, colocadas nas mãos de técnicos e conselhos
tado de exceção.35 distantes das pressões eleitorais. O estado de exceção
moderno é uma criação da tradição revolucionária,
A passagem para o bonapartismo de guerra pensado para emergência de guerra civil ou externa,
foi exercida por Abraham Lincoln, na guerra civil, mas, após a I Guerra Mundial, foi cada vez mais uti-
Wodroow Wilson, na I Guerra, mas também por lizado para fazer frente a emergências econômicas,
Roosevelt, na implementação do New Deal, sem estendendo-se a outras áreas da administração até
que houvesse uma ruptura institucional. Mais re- virar um autêntico paradigma de governo:
centemente, foi o que vimos no governo de George
Sob a pressão do paradigma do estado de
W. Bush. A flexibilidade do modelo norte-america- exceção é toda a vida político-constitucio-
no não escondia que o núcleo do sistema repousava nal das sociedades ocidentais que, progres-
na possibilidade da rápida concentração de pode- sivamente, começa a assumir uma nova
res no Executivo. forma que, talvez, só hoje tenha atingido
seu pleno desenvolvimento.37
Publicado originalmente em 1993, em pleno
auge da propalada vitória da democracia liberal, o Neste campo, a Itália teria sido o verdadei-
livro de Losurdo vaticinava que sua natureza mais ro laboratório político-jurídico no qual o decreto-lei
profunda era, na realidade, o estado de exceção, tornou-se fonte ordinária de produção de direito e,
a ditadura. Nesta linha também caminha Gior- nas palavras de Agamben, a democracia parlamen-
gio Agamben, para quem “a criação voluntária de tar se tornou governamental. O princípio da divisão
um estado de emergência permanente (ainda que, de poderes estaria “caduco”, pois “o poder executivo
eventualmente, não declarado no sentido técnico)

36 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo,


2004, p. 13.
35 Ibid., p. 146. 37 Ibid., p. 27.

60 61
Regressão democrática e teoria politica

absorveu de fato, ao menos em parte, o poder legis- -Fascismo “pode voltar sob as vestes mais inocentes.
lativo”, que se limita a ratificar seus decretos. Não Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para
passava despercebido a Agamben, que cada uma de suas novas formas – a cada dia, em cada
lugar do mundo”.41 Eco falava a partir da contraposi-
Exatamente no momento em que gostaria
de dar lições de democracia a culturas e tra- ção clássica entre democracia e fascismo.
dições diferentes, a cultura política do Oci-
Na América do Sul, o processo da transição
dente não se dá conta de haver perdido por
dos regimes autoritários à democracia, comporta-
inteiro os princípios que a fundam.38
va dois momentos: a formação de um governo de-
É possível fazer uma referência também à mocrático e a consolidação do regime democrático.
famosa conferência de Umberto Eco, proferida em Nas palavras de um de seus principais intérpretes,
1995, intitulada O Fascismo Eterno, destacando carac- eram “democracias fracas, incompletas e, em diver-
terísticas gerais de uma “nebulosa fascista”, distinta sos sentidos, decepcionantes, devem ser cuidadas e
do fascismo histórico. Entre elas estariam: o culto da defendidas dos riscos – muito reais – de uma regres-
tradição (não pode haver avanço do saber), o irracio- são autoritária”.42 Entre as possibilidades aventadas
nalismo, o apelo à frustração da classe média pressio- naquele momento, O’Donnell chegou a se referir,
nada pela ascensão de grupos sociais subalternos, a junto com Philippe Schmitter, a “democradura”,
xenofobia, o culto da violência e da guerra (expresso que seria um “governo civil com soberania militar”.
no slogan falangista “Viva a Morte!”), o culto do líder Posteriormente, formulou a tese da “democracia de-
e da “ação pela ação”.39 Alertava ainda que: “Em nos- legativa” para dar conta de uma situação em que os
so futuro, desenha-se um populismo qualitativo de requisitos formais da poliarquia estavam presentes,
TV ou internet, no qual a resposta emocional de um mas submetidos à herança autoritária e patrimonia-
grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada lista, de tal forma que a democracia resultava incom-
e aceita como a ‘voz do povo’”.40 E terminou a confe- pleta, pelas insuficiências da passagem do governo
rência afirmando que este “Fascismo eterno” ou Ur- democrático ao regime democrático. Essa passagem

38 Ibid., p. 33. 41 Ibid., p. 61.


39 ECO, Umberto. O Fascismo Eterno. Rio de Janeiro: Record, 2020 42 O’DONNELL, Guilhermo. Transições, continuidades e alguns pa-
(10ª ed.), esp. pp. 44-61. radoxos in REIS, Fábio Wanderley e O’DONNELL, Guilhermo (orgs.).
40 Ibid., p. 56/57. A Democracia no Brasil: dilemas e perspectivas, p. 42.

62 63
Regressão democrática e teoria politica

não era simples, principalmente nos casos em que a Seguindo as percepções abertas por Rosan-
transição foi prolongada, como verificado exemplar- vallon, Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro
mente no Brasil. Em sua definição, na democracia lançaram recentemente O Populismo Reacionário, onde
delegativa “os direitos participativos, democráticos, o populismo é tratado como “um estilo de fazer po-
da poliarquia são respeitados. Mas o componente li- lítica típico de ambientes democráticos ou de massa,
beral da democracia é sistematicamente violado”.43 praticado por uma liderança carismática, que reivin-
O’Donnell tentava conceituar uma nova forma de dica a representação de uma maioria contra o restante
regimes democráticos que, frisava, “não são – nem da sociedade”.45 Estamos diante de uma “representa-
parecem estar caminhando para isso – democracias ção-encarnação” que nega a legitimidade das oposi-
representativas”.44 Seria uma forma de regime híbri- ções e os preceitos do liberalismo político:
do, misturando aspectos do regime autoritário com
elementos da democracia representativa, notada- porque se percebe como a encarnação da
vontade do povo soberano, o populista
mente a legitimidade eleitoral. As características são
radical se considera autorizado a desres-
bem próximas do populismo reacionário de hoje, da
peitar a independência ou autonomia das
“democracia iliberal” de que se ocupam os autores instituições representativas, a fim de dob-
que trabalhamos. rá-las pela cooptação ou pela intimidação.46
Os dilemas não resolvidos cobrariam um
preço alto no momento em que esse ciclo de ascen- Trata-se da democracia iliberal defendida
são democrática se viu às voltas com os efeitos so- por Carl Schimitt, onde “a democracia ‘verdadei-
ciais perversos da crise da globalização neoliberal ra’ se expressava por intermédio de uma ditadura
e o surgimento de novos movimentos de direita, cesarista, cujo líder fosse aclamado pelas multi-
que se aglutinam em torno de figuras com apelo dões”.47 No populismo reacionário os sinais foram
populista, carregando um discurso “antissistema” trocados, a ditadura vira democracia, e a demo-
que reverbera em meio a insatisfação social e as cracia, ditadura.
decepções políticas.

45 LYNCH e CASSEMIRO. O Populismo Reacionário. São Paulo: Edito-


43 O’DONNELL, Guilherme. Democracia Delegativa? in Novos Estu- ra Contracorrente, 2022, p. 15
dos Cebrap 31. 46 Ibid., pp. 121/22.
44 Ibid., p. 26. 47 Ibid., p. 120.

64 65
Regressão democrática e teoria politica

A “tempestade conservadora” que se colocou um desafio colocado ao sistema representativo diante


no mundo na última década causou, na percepção das novas possibilidades da comunicação e organiza-
aguda de Marcos Nobre, “uma peculiar confusão en- ção de grupos para além das formas tradicionais de
tre crise da democracia e crise de determinadas teo- partidos, sindicatos e movimentos sociais. Um tipo de
rias da democracia”.48 Para o autor, movimento novo, com ação mais fluida e instantânea,
colocar em xeque as premissas fundamen- adaptada aos novos tempos das redes sociais e de indi-
tais da literatura dominante sobre a crise da vidualismo extremado, em que as personalidades são
democracia significava alterar os termos em avaliadas pelo número de “seguidores”.
que é compreendida a própria democracia,
de tal maneira que suas potencialidades so- A saída da crise em que estamos passa, para
ciais e institucionais possam emergir. Signi- Nobre, necessariamente pelo aprofundamento da de-
ficava, por exemplo conceder centralidade a
mocracia para além dos limites estabelecidos nos mo-
seu caráter de forma de vida e não apenas
de regime político ou de forma de governo.
delos da democracia representativa vigorantes nas
(Nobre, cit., p. 23) últimas décadas, circunscritos ao jogo político-eleito-
ral. Assim, coloca em questão os próprios fundamen-
A preocupação central de Nobre é fugir do di- tos que sustentaram o debate sobre a democracia em
lema que, em graus diversos, é expresso pela grande termos exclusivos de regime ou sistema político que
maioria dos cientistas políticos hoje e que vimos co- se expressa em determinados arranjos institucionais.
locada em quatro dos cinco autores aqui referidos A crise atual, em sua forma multifacetada, apontaria
(Przeworski, Levitski e Ziblatt, Mounk e Runciman). para os limites da reflexão especificamente política,
Todos terminam reféns da “alternativa politicamente que, presa ao funcionamento das regras institucio-
suicida entre voltar ao modelo institucional anterior à nais, foi surpreendida pela crise de um regime polí-
crise ou sucumbir à barbárie autoritária”. Talvez Ro- tico que julgava estabilizado em suas linhas mestras
sanvallon não possa ser colocado, sem mais, nessa lista, e não consegue pensar a crise atual da democracia
por ver na ascensão dos novos populismos não um para além dos marcos estabelecidos pela sua forma
sintoma de diluição ou destruição da democracia, mas representativa, de maneira que o mote das análises
termina sendo a ideia da morte, do fim. Filósofo com
forte influência da Teoria Crítica, Marcos Nobre não
48 NOBRE, Marcos. Crise da democracia e crise das teorias da democracia
in FIORE, Maurício e DOLHNIKOFF. Mosaico de Olhares, p. 13. faz coro com estas visões dos cientistas políticos e se

66 67
Regressão democrática e teoria politica

coloca na trincheira por uma resposta à crise que se BIBLIOGRAFIA


volte para experiências novas de mobilização e or-
ganização políticas, que ultrapassem os limites ins- AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo:
titucionais estabelecidos e sejam capazes de propor Boitempo, 2004.
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exemplos, essa morte, na verdade, já ocorreu na for-
censão da política antidemocrática no Ocidente. São
ma da sociedade de controle e na normalização do
Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.
estado de exceção. Neste sentido, a reflexão que tem
sido levada a efeito no campo da ciência política se CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança:
ocupa das formas institucionais que esta derrocada movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro:
Zahar, 2013.
da democracia liberal, em curso há décadas, toma
hoje. Sempre pouco afeita às análises que indicavam ______ . Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de
como o funcionamento efetivo das democracias oci- Janeiro: Zahar, 2018.
dentais corporificava cada vez mais formas políticas CHAMAYOU, Grégoire. A Sociedade Ingovernável: uma
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DAHL, Robert. Poliarquia. São Paulo: Edusp, 1997.
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lecendo rankings de democracia quando o processo DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do
que se desenrolava já era bem outro - do ensaísmo Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Pau-
mais livre e engajado, que recusa a especialidade lo: Boitempo, 2016.
de área e há tempos (e por vias diversas) tratava da ECO, Umberto. O Fascismo Eterno. 10ª ed. Rio de Ja-
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70 71
O BRASIL
NA
ENCRUZILHADA

visões da
crise política

72 73
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

A transição brasileira do autoritarismo


à democracia é um longo, tortuoso e
incompleto percurso. Da abertura po-
lítica de Geisel, anunciada em 1974, à eleição de
mente pareceu ruir a partir das Manifestações de
Junho de 2013, da acirrada eleição presidencial do
ano seguinte, do impacto da Operação Lava Jato
sobre o sistema político e o impeachment de Dilma
Collor, em 1989, foram longos 15 anos. Os milita- Rousseff, o governo-tampão de Michel Temer e a
res mantiveram prerrogativas de poder na nova eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. De repente, ve-
ordem constitucional e ficaram como uma espada lhos esqueletos mantidos no armário vieram à tona
pendendo sobre a cabeça do sistema político insti- e a sombra da ditadura voltou à cena política bra-
tuído com a Constituição de 1988, afora a continui- sileira, alinhando o país ao cenário internacional
dade de aspectos históricos, como o patrimonialis- sacudido pela emergência dos novos populismos
mo, marca de origens coloniais, e a centralização reacionários que detonaram a crise atual das demo-
política de coloração autoritária, delineada a partir cracias. Aqui colocamos em perspectiva visões de
do Estado Novo e acentuada na Constituição im- conjunto sobre a crise política brasileira elaboradas
posta em 1967. Esta herança e as dificuldades de- no calor da hora.
correntes sempre foram levadas em consideração
por grande parte dos analistas, de forma que a de-
bilidade rendeu qualificativos, como “democracia
delegativa” (O’Donnell) ou “semidemocracia” (Za-
verucha). Não obstante, havia uma percepção de
que o processo de aprofundamento democrático e
aperfeiçoamento institucional seguia timidamente
em frente. O “presidencialismo de coalizão” como
modelo político resultante de condicionantes his-
tóricos (a heterogeneidade social e regional) e es-
colhas políticas (o sistema eleitoral proporcional
de lista aberta), depois da crise do impeachment
de Collor, parecia ter chegado a um ponto precário
de equilíbrio com as grandes coalizões articuladas
nos governos do PSDB e do PT. Tudo isso simples-

74 75
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

O golpe parlamentar como impeachment efetiva do que se verificou até então. Tudo caminhou
mais ou menos a contento até a crise econômica que
se instalou a partir de 2008/09 e teria desdobramen-
No decorrer da crise política do governo Dil- tos sociais e políticos em vários países.
ma Rousseff, o historiador inglês Perry Anderson
fez uma incisiva intervenção nos debates em curso, No Brasil, verificou-se a junção explosiva
em artigo intitulado A Crise do Brasil, cuja tradução entre crise econômica e crise política no segundo
circulou amplamente através do blog da editora Boi- mandato de Dilma Rousseff. Reeleita negando a cri-
tempo, em abril de 2016. No livro Brasil à Parte (1964- se fiscal que se anunciava e prometendo um novo
2019), lançado em 2020, ele retoma este e outros ar- ciclo de crescimento, Dilma tentou uma guinada
tigos escritos sobre a política brasileira, de maneira ainda antes de tomar posse para o segundo manda-
a desenhar um circuito cujo centro é a análise das to, com a nomeação de Joaquim Levy para o minis-
experiências governamentais do PSDB e do PT. O tério da Fazenda, cujo programa tinha como foco o
ponto inicial é o chamado neoliberalismo progres- tratamento da crise fiscal e a necessidade de cortes
sista de Tony Blair e Bill Clinton, a 3ª via que, na e ajustes. Com isso, perdeu apoios à esquerda e logo
prática, deu continuidade ao programa original de no início do segundo mandato perdeu apoios tam-
Thatcher e Reagan. O Brasil de Fernando Henrique bém à direita, ao se indispor com o PMDB e outras
Cardoso integrou-se a ele, sustentado numa alian- siglas aliadas na disputa da presidência da Câmara.
ça com o PFL, partido enraizado principalmente nas Neste ano, a Operação Lava Jato estava em plena as-
oligarquias do Nordeste. Essa aliança de setores mo- censão, de maneira que o governo carregava o du-
dernos e arcaicos caracteriza o que Gramsci denomi- plo fardo da deterioração econômica e da corrupção
nou de “transformismo”, a capacidade que a ordem política. É o contexto onde se dá o impeachment de
estabelecida possui de abraçar e inverter as forças Dilma Rousseff, por questões de má gestão orça-
da mudança. Anderson afirma ser o Brasil “o país mentária, as chamadas “pedaladas”, empréstimos
do transformismo”, pois a conciliação pelo alto foi ou antecipações de bancos oficiais ao Tesouro, sem
sempre uma das marcas de sua história. O caminho que entrassem na contabilidade do governo enquan-
foi seguido nos governos petistas, com a diferença to tal, camuflados pelo que se chamava à época de
de que o acordo com o andar de cima da pirâmide “contabilidade criativa”. O processo foi controver-
social teria que encampar a necessidade de enfrentar so, a tal ponto que, no final, Dilma foi cassada, mas
a miséria e a desigualdade social de maneira mais teve os direitos políticos preservados, uma contra-

76 77
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

dição evidente. Com a subida de Temer, ficou claro Wanderley Guilherme dos Santos foi ou-
que os velhos manda-chuvas do Congresso e a nata tro a fazer intervenções incisivas no contexto da
do fisiologismo político brasileiro tinha logrado seu crise política. Os textos reunidos em A Democracia
intento. Na análise de Anderson, fechava-se, assim, Impedida: o Brasil no século XXI, lançado em 2017,
a experiência brasileira de um governo de talhe so- explicitam sua compreensão. O pano de fundo
cial-democrata para um retorno aos fantasmas bem da reflexão é a distinção conceitual no universo
vivos da ditadura. Não aceita, entretanto, a desig- dos regimes representativos entre oligarquias re-
nação de fascista ao governo de Bolsonaro, enfati- presentativas e democracias representativas. O
zando ser aquele uma reação ao perigo da revolu- primeiro caso, vigorando no século XIX até o pré-
ção social, o que não seria o caso aqui, bem como -Guerra; o segundo, principalmente no pós-Guer-
a mobilização de quadros e a organização de um ra. Na linha de Dahl, o que define a democracia
movimento de massas vinculado a uma ideologia representativa é a satisfação completa de duas
definida. No caso do governo de Bolsonaro, visto condições: a competição eleitoral pelas posições
então ainda em seu início, não haveria propriamen- de mando, de maneira regular, com regras explí-
te nenhuma estrutura organizacional abaixo dele e citas e resultados reconhecidos, de um lado, e a
de seu círculo mais restrito. Assim, participação ampliada, sem outra restrição a não
a ascensão de Bolsonaro foi resultado de ser a idade mínima, de outro. O Brasil já estaria
um colapso quase completo do tradicio- no segundo momento, mas ainda tentando conso-
nal sistema político brasileiro, com duas lidar a passagem.
de suas principais legendas, o Partido dos
Trabalhadores (PT) e o Partido da Social De uma maneira geral, a aceitação da incor-
Democracia Brasileira (PSDB), completa- poração social e política de setores marginalizados
mente desorganizados após o desastre da ou excluídos por parte dos setores dominantes se-
Presidência de Dilma e Temer e escânda- ria o grande problema a ser ultrapassado e esteve
los financeiros pairando sobre toda a clas- presente tanto no golpe de 1964, através de uma
se política. A ascensão repentina de Bol-
intervenção militar, quanto no golpe parlamentar
sonaro foi, sobretudo, o resultado fortuito
de 2016, que decretou o impeachment de Dilma
de um vácuo de poder.1
Rousseff e a retirada do PT do poder, através da
junção entre velhas oligarquias parlamentares e
1 ANDERSON, Perry. Brasil à Parte (1964-2019). São Paulo: Botempo, 2020, p. 168. círculos de juízes federais e procuradores fortaleci-

78 79
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

dos pela Operação Lava Jato. Um ponto central do atual tornam difícil reeditar aventuras golpistas
livro é justamente a caracterização do processo de como a de 1964”. 4 Na linha de outros analistas que
impeachment como um golpe de novo tipo. “Por já investigavam os novos mecanismos da instabi-
‘golpe parlamentar’, aqui, indica-se uma substi- lidade política nas democracias contemporâneas,
tuição fraudulenta de governantes orquestrada e Wanderley Guilherme mostrava que os golpes
executada por lideranças parlamentares”. 2 Esse acontecem hoje por outras vias, mas o sentido his-
tipo de golpe, já apresentado em outras ocasiões tórico seria o mesmo.
na América do Sul, como na rápida destituição
Outro aspecto central da análise é o papel
do presidente do Paraguai, Fernando Lugo, em
jogado pelos agentes do Judiciário e do Ministério
2012, se inscreve nas formas atuais de enfraque-
Público no processo político brasileiro. No ensaio
cimento institucional, de erosão dos mecanismos
A Expropriação Constitucional do Voto, o autor
democráticos estabelecidos constitucionalmente,
localiza na Ação Penal 470, o conhecido caso do
numa espécie de subversão consentida das regras
“mensalão”, o ponto inicial de viragem da ação
do jogo. O processo todo se desenrola na esfera
política do Judiciário, na medida em que “inau-
parlamentar, obedecendo formalmente à letra da
gurou a atitude conservadora de interromper
lei. Para Wanderley Guilherme, apesar de distin-
por via não eleitoral a liderança do Partido dos
tos na forma, comportando roteiros diferentes, “o
Trabalhadores, com intervenção ancilar direta do
denominador comum entre os golpes dos anos
Judiciário”.5 Fazendo uma análise dos autos do
1950 e 1960 e os de 2016 é a rejeição ao progresso
julgamento, do voto dos juízes, Wanderley defen-
econômico e social das classes vulneráveis”.3 Nes-
de que os crimes eleitorais cometidos teriam sido
te sentido, 1964 e 2016 seriam dois momentos de
transformados em crimes comuns, o crime de cai-
contrarrevolução, no sentido de impedimentos do
xa dois em crimes de corrupção: “indignados com
aprofundamento da democracia, pela ampliação
ilícitos reais, os ministros criminalizaram todo o
da participação e a melhoria das condições sociais
processo de captação e distribuição de recursos
de camadas expressivas da população. “Em tese,
por caixa dois...”.6
sociedades tão amadurecidas como a brasileira

2 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A Democracia Impedida: o Bra- 4 Ibid., p. 65.


sil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, p. 31. 5 Ibid., p. 159.
3 Ibid., p. 42. 6 Ibid., p. 165.

80 81
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

A caracterização feita do golpe parlamentar da pirâmide social, um subproletariado que até en-
tornou-se predominante nas análises do processo de tão se mantinha distante do PT e que, movido pelas
impeachment de 2016 e se insere na visão predomi- várias políticas sociais, além da valorização do sa-
nante na esquerda de que foi uma reação de caráter lário mínimo e do acesso a crédito, inicia um ciclo
conservador às transformações sociais impulsionadas de melhoria das condições de vida das populações
por uma série de políticas de cunho compensatório mais carentes que as tornam um bastião eleitoral,
ou distributivo, criando aproximações sociais através expresso na votação que passa a ter no Nordeste. O
de pautas de consumo que estariam incomodando PT possuía vínculos históricos com os trabalhadores
setores dominantes. Os efeitos da crise mundial, en- sindicalizados, com a igreja católica ligada às CEB’s,
cerrando o longo ciclo de alta das commodities que com setores escolarizados de classe média, mas
sustentou o crescimento da economia e da renda de sempre carregava uma dificuldade em penetrar na
setores distintos, de alto a baixo, sofre brusca altera- massa de trabalhadores informais, subempregados,
ção e o conflito distributivo se acirra. Assim, o golpe biscateiros, desempregados, os que Collor chamava
parlamentar de 2016 reafirma o golpe militar de 1964. de “descamisados” no embate eleitoral de 1989. O
Dois momentos distintos de um mesmo processo es- que André Singer percebeu com perspicácia e aten-
trutural contrarrevolucionário que tenta manter a de-
ção aos dados eleitorais foi uma rotação significa-
mocracia como algo eternamente impedido.
tiva na base de apoio, a configuração de uma nova
A análise do impeachment de Dilma Rousseff realidade política que ia além do PT e do petismo,
como golpe parlamentar é o fio condutor da inter- o lulismo. Mudança na base social e uma configu-
pretação efetuado por André Singer em O Lulismo ração ideológica de reformismo fraco, na linha do
em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011/2016). crescimento com incorporação social. O desafio de
Publicado em 2018, é uma continuidade do livro Os Singer é explicar como entregando a direção do país
Sentido do lulismo: reforma gradual e pacto conservador, à sucessora no auge da popularidade de seu líder,
de 2012, quando o autor deu um sentido sociológico o lulismo entrou em crise e assistiu quase inerte a
para uma expressão que começava a circular na im- deposição de Dilma Rousseff por uma coalizão de
prensa aludindo à relevância do líder em relação ao direita, sustentada pelo antilulismo que cresceu a
partido. Para Singer, a eleição de 2006 marcou uma partir das manifestações de 2013 e da propagação da
virada na trajetória eleitoral de Lula e do PT, com Operação Lava Jato, com a reverberação crescente
o apoio decisivo de parcelas significativas da base da grande mídia sobre o caso.

82 83
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

Singer divide o período de Dilma Rousseff ação mais incisiva foi o desmonte da rede formada
à frente da Presidência em duas fases. A primei- pelo PT, PMDB e PP em torno da Petrobrás. Era a
ra, até meados de 2013, foi marcada pelo “ensaio missão de Graça Fortes, que desligou três diretores
desenvolvimentista”, cujo eixo era uma redução de área que estariam no centro do escândalo do
substancial das taxas de juros e uma política de fa- “petrolão” dois anos depois, Paulo Roberto Costa,
vorecimentos do parque industrial nacional, e por Jorge Zelada e Renato Duque. A ação de Dilma re-
um “ensaio republicano”, o combate à corrupção verberou no núcleo da coalizão que sustentava o
expresso na “faxina” feita em ministérios ocupa- governo e se cruzava com as investigações da Lava
dos por partidos fisiológicos que integravam a Jato. O problema era que “o giro republicano des-
coalizão. Foram tempos de alta popularidade de montava o sistema de alianças construído por Lula
Dilma, até superior às marcas alcançadas por Lula e, com isso, a base do governo se esfacelava”.8 Na
em igual momento de governo. Falar em desenvol- Câmara, Cunha articulava a resistência e a vingan-
vimentismo implicava em abandono do tripé neo- ça, formalizando um bloco independente no início
liberal, vale dizer, metas de inflação apertadas com de 2014, uma coalizão de sete partidos sob o seu
juros altos, superavit primário e câmbio flutuante, comando (PMDB, PP, PROS, PR, PTB, PSC e Solida-
acertado ainda nos tempos de Armínio Fraga e que riedade). Assim, “à medida que Dilma cutucava as
constituía o chão da política econômica. Neste ter- onças clientelistas, formava-se no Congresso uma
reno, a luta de Dilma seria principalmente contra sólida frente antirrepublicana, equivalente ao antide-
o núcleo do capital, o setor financeiro que domina senvolvimentismo na economia”.9
a economia. “O fracasso do ensaio desenvolvimen-
A segunda fase apareceu a partir das mani-
tista brecou a presidente, que não pôde acelerar o
festações de junho de 2013, ponto de inflexão que
lulismo conforme profetizava o sonho rooseveltia-
marca a derrocada da popularidade até o seu afas-
no. O ritmo médio de expansão do PIB do segundo
tamento por um golpe parlamentar em 2016. Para
governo Lula, de 4,7%, caiu para 2,4% nos quatro
Singer, “Dilma cometeu o erro elementar de brigar
anos iniciais de Dilma”.7 A outra perna da estra-
com a esquerda e a direita ao mesmo tempo, além
tégia de Dilma era o “ensaio republicano”, cuja
de se distanciar de Lula, a única sustentação que lhe

7 SINGER, Paul. O Lulismo em Crise: um quebra-cabeça do período


Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 77 8 Ibid., p. 189.
(grifo do autor). 9 Ibid., p. 192 (grifo do autor).

84 85
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

restaria numa situação como aquela”.10 Ao dar uma papel de Aécio Neves contestando o resultado das
guinada brusca na condução da economia, perdeu urnas e pressionando pela anulação da eleição no
apoios à esquerda; ao trombar com Cunha e o “blo- TSE, jogando água no moinho da deslegitimação do
cão” na eleição da Câmara e iniciar uma “faxina” no processo eleitoral. O compromisso envolveria, ain-
ministério, perdeu apoios à direita. No decorrer do da, a mudança de postura do STF em relação aos
ano foi ficando claro que não tinha muita noção da procedimentos e o escopo da Lava Jato. Para Singer,
crise em curso e da profundidade da recessão. “Por
Da mesma maneira que o mensalão pode
fim, substitui Levy por Barbosa, perde o entusiasmo ser entendido como a punição exemplar da
dos empresários e também o da esquerda ao falar prática corriqueira do caixa dois, o petróleo
em reforma previdenciária e teto de gastos. Dilma foi o inédito desbaratamento do esquema de
por ela mesma resultara em esplêndido insulamen- corrupção que sempre envolvera as estatais.
to”.11 Frente aos percalços em série, a presidente Tanto em um caso como em outro, o lulismo
pagou o preço de participar do modus vi-
esperava que a Lava Jato e o Ministério Público ti-
vendi tradicional da política brasileira.12
rassem Cunha do jogo antes que ele acatasse e enca-
minhasse o processo de impeachment, mas não foi o Tendo perdido a luta do desenvolvimentis-
que aconteceu. Cunha seria retirado da presidência mo, pois o arco dos industriais, do agronegócio, do
da Câmara somente semanas depois da conclusão comércio e do setor de serviços aderiu às propostas
do impeachment, em seguida preso e condenado defendidas pelo setor financeiro, de corte de gastos
por corrupção. Tratava-se do grande acordo a que públicos e diminuição da proteção ao trabalho, Dil-
se referiam Romero Jucá e Sérgio Machado para “es- ma perdeu também a luta do republicanismo, que
tancar a sangria” promovida pela Lava Jato. O acor- estava encarnada no combate à corrupção e à con-
do passaria principalmente pelo acerto entre PMDB cepção patromonialista de uso do poder político.
e PSDB, cujas digitais estavam lá através da ação de Terminou engolfada pela gama fisiológica que inte-
José Serra em apoio a Temer, de Migue Reale Jr., num grava sua coalizão, comandada por velhas raposas
remendo ao pedido de impeachment encaminhado da política tradicional, numa situação de perda de
inicialmente por Helio Bicudo e Janaína Pascoal, no sustentação parlamentar e de apoio social.

10 Ibid., p. 196.
11 Ibid., p. 219. 12 Ibid., p. 251.

86 87
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

Na análise de André Singer, o papel político A dinâmica do presidencialismo de coalizão


desempenhado por juízes e procuradores é realçado,
formando o que ele chama de Partido da Justiça. Com Interpretação diferente sobre o processo tem
suas operações espetacularizadas, a força-tarefa sedia- Sérgio Abranches, cujo eixo de análise é o funcio-
da em Curitiba passou a encarcerar grandes empresá- namento do presidencialismo de coalizão. Em arti-
rios, políticos, altos funcionários, de maneira que “O go tornado justamente clássico, publicado em 1988,
PJ dera um nó no PT, colocando a ideia de igualdade Abranches analisou o “dilema institucional brasilei-
perante a lei contra o partido que deveria representar a ro” inscrito no funcionamento do presidencialismo
bandeira da igualdade no cenário político”.13 No que- de coalizão, tal como se efetivou na experiência da
bra-cabeça do período Dilma, duas peças “se encaixa- Segunda República (1946-1964). Os presidentes elei-
vam de maneira complexa: a contradição da Lava Jato, tos não possuíam base partidária suficiente para
ao mesmo tempo facciosa e republicana, enganchava sustentar o governo, tendo que buscar apoios de
na contradição do PT, criado para mudar as institui- outras siglas e em outro campo político. O modelo
ções e engolido por elas”.14 O lulismo estava baseado que teria vida com a Constituição de 88, no entanto,
numa perspectiva conciliatória e desmobilizadora, de guardou diferenças importantes em relação à expe-
forma que não teve como reagir à implosão da base riência original, notadamente a adoção de um fede-
parlamentar e nem fôlego para ocupar as ruas, que es- ralismo de cunho mais centralista e das atribuições
tavam sendo agora disputadas com grupos de direita. legislativas conferidas ao Executivo, traços incorpo-
rados principalmente da Carta outorgada de 67, mas
A visão de André Singer se cruza com a de
mantinha uma caracterização geral de governos sus-
Wanderley Guilherme dos Santos na percepção do
tentados por coalizões multipartidárias, que seria a
impeachment de Dilma Rousseff como contrarrevolu-
tônica das décadas seguintes, de forma que o artigo
ção movida através do sistema político para barrar um
continuou instigando debates e trabalhos, na medi-
processo de transformação social e do aprofundamento
da mesmo em que o modelo passava a servir de re-
do componente republicano da democracia. Ambas ex-
ferência para tratar outros casos latino-americanos.
pressam o entendimento predominante entre os círcu-
los de esquerda para explicar as razões da crise política. No alentado volume publicado em 2018 so-
bre o tema, o autor se propõe um exame histórico
amplo sobre esta forma de presidencialismo, que
13 Ibid., p. 255.
14 Ibid., p. 261. seria o cerne do “modelo político brasileiro”. Para

88 89
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

Abranches, o presidencialismo de coalizão era o três tiveram o mandato interrompido. Sob a Consti-
resultado não tanto de escolhas direcionadas pe- tuição de 1988, já foram dois casos de impeachment
los legisladores, mas principalmente fruto de ele- efetivados e os presidentes que conseguiram se man-
mentos de nossa formação histórica: “O fato do ter no cargo passaram por votações ou pedidos de
nosso presidencialismo ser de coalizão nasce de abertura de processos de impeachment engavetados
nossa diversidade social, das disparidades regio- pelos presidentes da Câmara. Essas dificuldades que
nais e das assimetrias de nosso federalismo, que se colocam continuamente na relação entre o Executi-
são mais bem acomodadas por multipartidarismo vo e o Legislativo seriam fruto, para alguns analistas,
proporcional”.15 Apresenta traços desse multiparti- da fragmentação partidária facilitada pelo sistema de
darismo estrutural na forma como a República Oli- representação proporcional de lista aberta. O quadro
gárquica absorvia os conflitos políticos através do de fragmentação acirra a necessidade de ampliação
faccionismo intrapartidário. Neste modelo, porém, da base de apoio e estimula o clientelismo parlamen-
o presidente tinha menos poder, o que foi modifica- tar, o balcão de negócios entre o governo e a represen-
do a partir de Vargas, mantido pela Constituição de tação política. Os partidos da coligação de Lula, no
1946 e aprofundado em 1967 no regime autoritário primeiro mandato, mais o PDT e o PPS, naquele mo-
comandado pelos militares. mento no mesmo campo político ou próximos, con-
trolavam apenas 37% das cadeiras na Câmara. Seria
Tanto sob a Constituição de 1946 quanto na
preciso trazer outros partidos para formar a coalizão
atual, verifica-se clara tensão política entre poderes,
e o PMDB aparecia como óbvio a se tornar o principal
implicando em descontinuidades ou rupturas insti-
aliado. O mesmo havia ocorrido na presidência de
tucionais. Assim, no primeiro caso, “Vargas, Quadros
Fernando Henrique Cardoso, cuja coligação reunia
e Goulart, não conseguiram formar coalizões, seus
PSDB, PFL e PTB. Nos dois casos, a estabilização do
partidos eram minoritários e não tinham a confiança
governo passou por uma articulação com o condomí-
do partido-pivô. As poucas maiorias que formaram
nio que comandava o PMDB.
foram frágeis e fugazes”.16 De maneiras diversas, os
Abranches não acredita que a instabilidade
derive do modelo do presidencialismo de coalizão.
15 ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de Coalizão: raízes e evolução
Para isso, argumenta com os governos de dois man-
do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, datos de Fernando Henrique e Lula, que conseguiram
p. 14.
16 Ibid., p. 65. manter a coalizão, mesmo atravessando turbulências

90 91
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

econômicas e crises políticas. Este modelo impõe ao Limongi derrubaria uma série de mitos acerca do de-
presidente um processo permanente de coordenação sempenho institucional da democracia brasileira. Sob
e articulação política, de maneira a manter uma sin- o jogo do presidencialismo de coalizão, em décadas
tonia com o núcleo da coalizão, sem perder de vista recentes problemas importantes encontraram cami-
as bordas, atento às insatisfações parlamentares. Os nhos de resolução ou foram reconhecidos na agenda
dois presidentes bem sucedidos foram justamente os política, como na superação da hiperinflação ou na
que tinham maior capacidade de negociação política. diminuição das desigualdades sociais. O sistema, en-
Os casos de Collor e Dilma expressam a ausência des- tretanto, supõe uma atividade construtiva e coorde-
se componente essencial no presidencialismo de coa- nadora a partir do Executivo.
lizão. O livro faz uma narrativa concisa, mas densa,
dos governos das duas primeiras experiências repu- A questão dos processos de impeachment é
blicanas em que se divide, a Primeira (1889-1930), e a um ponto central da análise apresentada por Sérgio
Segunda (1946-1964), detendo-se mais longamente na Abranches. A condição necessária, mas não suficien-
Terceira (1988 aos dias atuais), sempre sob o ângulo do te, é a desagregação da coalizão parlamentar que
funcionamento do sistema político, das relações entre sustenta o governo. A variável decisiva, no entanto,
poderes, notadamente das relações entre o Executivo é a perda de apoio na sociedade. Apesar da ausên-
e o Legislativo. Frise-se que o texto já carrega a am- cia de um partido significativo ou mesmo de uma
pla gama de discussões e trabalhos acadêmicos que o articulação parlamentar, Collor não teve problemas
tema do presidencialismo de coalizão suscitou. Neste para aprovar as medidas econômicas drásticas. Sua
terreno, o destaque é o trabalho igualmente clássico derrocada veio na esteira da perda de apoio na so-
de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, Execu- ciedade pelo fracasso do plano de estabilização e o
tivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional, publi- escândalo da corrupção envolvendo PC Farias e os
cado em 1999, uma reunião de textos sobre o funcio- gastos da Casa da Dinda. Foi um processo a toque de
namento parlamentar das coalizões partidárias, que caixa, durando apenas 122 dias. Collor terminou num
demarca claramente as distinções entre o modelo vi- isolamento praticamente total, de forma que o episó-
gente sob a Constituição de 1946 daquele construído dio ficou na história como um processo juridicamente
pelos constituintes de 1988, com os poderes legislati- incontroverso, mas não foi. Posteriormente, ele seria
vos conferidos ao Executivo, através do instrumento inocentado de todas as acusações pelo STF. Não se
das medidas provisórias. A pesquisa de Figueiredo e trata, no entanto, de processo jurídico, mas político.

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

O caso de Dilma Rousseff parece mais comple- vencedores. O que importa destacar é que ele vê os
xo. O rito foi longo, 273 dias. O pano de fundo era a dois processos sob a ótica do funcionamento do pre-
crise econômica, que indicava o fim do ciclo expan- sidencialismo de coalizão e afirma:
sivo das commodities e seus efeitos sobre o finan-
O que está claro é que, ou bem as duas de-
ciamento das políticas sociais do governo. Reeleita posições por impeachment equivalem a um
negando a necessidade de ajuste fiscal e anunciando ‘golpe parlamentar’ contra um mandatário
um novo ciclo de desenvolvimento, Dilma deu uma legítimo, argumento usado por ambos os
guinada e colocou no ministério da Fazenda o eco- presidentes vitimados por elas, ou nenhuma
das duas deve ser interpretada como tal.17
nomista Joaquim Levy, cuja visão era contrária aos
princípios do que os governistas chamavam de “nova No fundo, os dois processos de impeachment
matriz econômica” e havia vigorado sob o comando se deram na ausência de regras claras definidas, pois
de Guido Mantega no primeiro mandato. Com isso, a lei que o regulamenta data dos anos 1950 e após a
perdeu apoios à esquerda. Por outro lado, na abertu- Constituição de 1988 nunca chegou a ser atualizada,
ra dos trabalhos legislativos, em sequência, queimou abrindo espaço para decisões discricionárias e aberta-
pontes à direita ao disputar e perder o controle da Câ- mente contraditórias. Assim, Collor teve os direitos po-
mara para o PMDB, o principal partido que integra- líticos suspensos, apesar da renúncia e da consequente
va sua coligação, ficando o PT fora da mesa diretora, extinção do processo, enquanto Dilma teve o mandato
mesmo sendo o maior partido. A condição necessária, cassado, mas sem a perda dos direitos políticos.
ou seja, um processo de desagregação da coalizão, se
Na lógica deste presidencialismo, as coali-
inicia quase concomitante à condição decisiva, a rá- zões visam a eleição e não são formadas para ob-
pida corrosão da popularidade da presidente. Dilma ter a maioria parlamentar. O governo se sustenta
não conseguiria estancar o que Abranches denomina com maiorias flutuantes e as negociações se fazem
“ciclo de fuga do presidencialismo de coalizão” e o a cada pauta importante colocada em cena. O fun-
ardil utilizado para afastá-la foram as chamadas “pe- cionamento do sistema é complexo, impondo par-
daladas fiscais”. Para Abranches, Dilma e seus alia- ticipação ativa da Presidência, e está sujeito a atri-
dos travavam uma luta em duas frentes: a política, de tos constantes, no núcleo ou nas bordas da coalizão,
tentar impedir a deposição, e outra ideológica, de fi-
xar sua ilegalidade, construindo a narrativa do golpe.
Na primeira, foram derrotados; na segunda, saíram 17 Ibid., p. 147.

94 95
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

mas não é um arranjo institucional congenitamente niência do momento”. Provocado constantemente


instável ou que leve à paralisia decisória, sendo an- a intervir, o STF termina sobrelevando a dimensão
tes uma forma adequada à heterogeneidade social e política da ação judicial: “Ao decidir quem ganha
regional brasileira, que condiciona a necessidade de e quem perde em questões estritamente políticas,
coalizões multipartidárias. o STF interfere no curso, na substância e, even-
tualmente, no resultado do conflito político”. 19
Por fim, não passa despercebido a Abranches
O caso da prisão em segunda instância é emble-
o novo quadro que se colocou a partir da Constitui-
mático. O STF primeiro mudou o entendimento,
ção de 1988, com o fortalecimento do Poder Judi-
se acomodando com as posições defendidas pela
ciário e do Ministério Público, que terminaria pro-
Lava Jato, mantida sob pressão dos militares, no
piciando uma nova dimensão política às decisões
conhecido episódio do tuíte do general Villas-
judiciais. Neste aspecto, dois pontos importantes
-Boas, mas, depois voltou atrás. Ao impedir a can-
a ressaltar. Primeiro é que a Constituição fortale-
didatura de Lula nas eleições de 2018 e posterior-
ceu o Legislativo, ampliando a capacidade de fis-
mente retornar ao posicionamento inicial sobre
calizar o Executivo, mas, ao mesmo tempo, deu ao
o tema, teve um papel decisivo sobre o processo
Executivo o poder de legislar através das medidas
político. “Essa dimensão política da ação do Ju-
provisórias e isso tem efeitos sobre o papel do Ju-
diciário tem legitimidade restrita, alto potencial
diciário: “é clara a ampliação de poderes presiden-
para controvérsia, e se dá nos limites da democra-
ciais na segunda experiência com o presidencialis-
cia. Os ministros não são eleitos, podem agir mo-
mo de coalizão e ela aumentou a responsabilidade
nocraticamente, isto é, tomam decisões solitárias,
do Judiciário na mediação política entre os dois, e
com alto grau de subjetividade”. 20 A expressão
aumentou o escopo do controle constitucional dos
“nos limites da democracia” aponta para os riscos
atores legislativos e de governo.”18 O modelo traz
de deslegitimação dos atores eleitos, mas, prin-
um novo complicador ao sistema político, e este é
cipalmente, para a criação de uma zona cinzenta
o segundo ponto a destacar, pois “o maior risco da
no que concerne à vigência da lei e, portanto, da
judicialização da política é a politização da decisão
própria continuidade da democracia.
judicial, tornando-a errática e atrelando-a à conve-

19 Ibid., p. 368.
18 Ibid., p. 366. 20 Ibid., p. 367.

96 97
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

Apesar dessas observações, a percepção do recorriam para encher os cofres de suas campanhas
autor não é completamente negativa, na medida em eleitorais e os próprios bolsos. A faxina, portanto, foi
que as ações do Judiciário e do Ministério Público no limitada”.22 Limongi se refere principalmente à mu-
sentido de inibir a corrupção teriam efeitos sobre o dança no comando da Petrobrás, colocando Graça
clientelismo parlamentar e, devidamente calibrada Fortes, que iniciou um processo de troca de direto-
para coibir os excessos de interferência na indepen- rias e saneamento da empresa. Ao mesmo tempo, a
dência dos poderes, podem favorecer a prática de Operação Lava Jato aprofundava suas investigações
vínculos mais programáticos aos apoios políticos do e avançava no cerco aos círculos centrais do siste-
Executivo na esfera do Legislativo. ma político. Em março de 2015, depois de um pleito
muito acirrado e da guinada de Dilma em relação
Em livro recentemente publicado, o cientista
à política econômica, com a crise fiscal e a inflação
político Fernando Limongi também analisa o proces-
mostrando as garras, muitos foram às ruas já agi-
so do impeachment de Dilma Rousseff sobre a ótica
tando a bandeira do impeachment, que só tomaria
do funcionamento do presidencialismo de coalizão.21
corpo um ano depois. Nas palavras do autor: “O gi-
Igualmente rechaça a ideia de golpe de estado. De
gante voltou a despertar. Dessa feita, ao contrário de
maneira geral, torna endógeno o modelo usual para
2013, sem ambiguidades. O PT era o inimigo”.23
tratar os processos de impeachment, que comporta
a existência de um choque vindo de fora do sistema O escândalo da compra da refinaria de Pasa-
político, a mobilização da insatisfação nas ruas e, por dena, autorizada por Dilma quando presidia o Con-
fim, a conversão da maioria da classe política. Limon- selho de Administração da Petrobrás, teria sido uma
gi traz todos esses fatores para dentro do sistema po- mensagem dos partidos beneficiados pelo esquema,
lítico. Neste sentido, logo de cara é categórico: “O im- leia-se PMDB e PP. O PT, o outro principal benefi-
peachment não foi uma resposta à pressão popular”. ciário, foi o que mais perdeu com a reforma da esta-
tal empreendida por Dilma e Foster. Inicialmente, o
A questão central estaria em torno do comba-
discurso do governo convergia com o da Lava Jato,
te à corrupção. “Dilma mexeu no vespeiro, mas não
ambos alardeando que as investigações não teriam
fechou todas as fontes a que os líderes partidários
o destino das anteriores. Mas, “os mentores da Lava

21 LIMONGI, Fernando. Operação Impeachment: Dilma Rousseff e o 22 Ibid., p. 31.


Brasil da Lava Jato. São Paulo: Todavia, 2023. 23 Ibid., p. 80.

98 99
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

Jato se recusaram a ser sócios do governo. A decisão cassado e preso pela Lava Jato. Para Limongi, a partir
foi fruto de um cálculo político”.24 No imbróglio que da prisão do senador Delcídio do Amaral, líder do
se avolumava, Dilma primeiro se distancia de Lula e governo no senado, teria ficado claro que “o governo
dos partidos principais da coalizão e vê uma rápida não tinha forças para salvar os seus”. Este foi o ponto
escalada dos posicionamentos da PGR e da Opera- de virada, numa disputa que além de Dilma, Cunha
ção Lava Jato no caso da corrupção na Petrobras, que e os partidos da coalizão, envolvia as disputas entre
funcionou como o “choque” sobre o sistema políti- a PGR, em Brasília, sob o comando de Rodrigo Janot,
co. As mobilizações organizadas a partir de grupos e a Operação Lava Jato, em Curitiba, sob a batuta do
ideológicos de direita que se articulavam através das procurador Deltan Dallagnol e do juiz Sérgio Moro,
redes sociais, como MBL e Vem Pra Rua, marcam o pelo controle das investigações.
momento em que o PSDB, que contestava o resultado
A Lava Jato, como se depreende das conver-
da eleição, pedindo a impugnação da chapa vence- sas na reunião organizada por Delcídio do
dora, se vincula decididamente a uma via não eleito- Amaral, funcionava como um verdadeiro
ral para destituir a presidente reeleita. Mas o proces- “mercado persa”, onde era possível adquirir
so se arrastaria por meses e possivelmente não teria de tudo. Presos acertavam versões dos fatos
o desfecho que teve se não fosse a figura de Eduardo e as “autoridades” que entregariam entre si.
Advogados passavam a perna em colegas.
Cunha, o presidente da Câmara, responsável pela
Policiais vendiam documentos, permitindo
aceitação do pedido de impeachment e que estava que os investigados antecipassem casos da
com a corda no pescoço, denunciado no Conselho investigação. Promotores e procuradores
de Ética por falta de decoro, ao ter mentido numa recorriam abertamente a ameaças para ar-
CPI sobre a existência de contas no exterior. Cunha rancar as confissões que lhes interessavam.25
tentou todo tipo de barganha política com o gover- Para Limongi, “não havia incompatibilidade
no, que não tinha como livrá-lo ao mesmo tempo ideológica entre o projeto do PT e o fisiologismo do
do Conselho de Ética e da PGR, como era requerido. PMDB”.26 O bloco de partidos que apoiou o impeach-
Sem colchão protetor, ele acatou o pedido de impea- ment e o governo de Michel Temer estava todo com
chment, fez o serviço a toque de caixa e depois seria

25 Ibid., pp. 120/121.


24 Ibid., p. 74. 26 Ibid., p. 162.

100 101
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

o governo do PT até o início de março de 2016, à ex- publicanas foram expostas nas combinações entre
ceção do PSDB, DEM e PPS. Assim, “explicar o im- os agentes do Ministério Público e o juiz do caso,
peachment passa por entender por que as ofertas da reveladas pelo site Intercept e que foram um pon-
presidente deixaram de ser vantajosas para os parti- to de virada no apoio que a Operação mantinha na
dos da coalizão”. (Ibid. p. 164). A resposta é simples opinião pública. A Operação Lava Jato, seguindo os
e está no famoso áudio de Romero Jucá expondo a passos da italiana Mãos Limpas, utilizava métodos
necessidade de “estancar a sangria” promovida pela “não ortodoxos” para contornar as exigências pro-
Lava Jato. O impeachment foi a contra-ofensiva do cessuais, que podem ser sintetizadas no tripé prisão
sistema político para neutralizar o ataque vindo do preventiva – publicidade – delação premiada. E as-
Judiciário e do Ministério Público. “Esse era o senti- sim foi revelando um fio interminável de casos de
do do governo Temer. Por isso a coalizão se recom- corrupção que eram logo repassados aos meios de
pôs. Dilma não tinha como oferecer proteção contra comunicação, provocando efeitos políticos, influen-
a Lava Jato”.27 ciando no desenrolar do processo eleitoral. Os agen-
tes do Ministério Público se colocavam claramente
A sequência é conhecida: “A titular da PGR
como agentes políticos, influenciando a pauta e o
(Raquel Dodge) deu início à domesticação do MPF
desenrolar de questões importantes. Incorporavam
e da Lava Jato. Somente seu sucessor, Augusto Aras,
o papel de salvadores da pátria.
daria cabo da tarefa”.28 O autor critica os meios uti-
lizados e a postura política tomada pela Lava Jato, As premissas dos mentores da Lava Jato
que funcionaria como espécie de choque no sistema haviam sido comprovadas. A corrupção
era parte do modus operandi do mundo
político, e insiste que a tese de golpe movido por
político. Entretanto, a força-tarefa havia
uma posição contrária às políticas sociais dentro da
sido constituída com um objetivo específi-
coalizão de governo não se sustenta. Neste sentido, co, investigar a Petrobras e não todo e qual-
o impeachment foi gerado e conduzido em todo o quer caso envolvendo desvio de recursos
seu processo no sistema político, um acordo nos ter- públicos, mesmo que estes tivessem sido
mos indicados por Jucá, “com o Supremo e tudo”, cometidos por quem respondia a processos
que neutralizou a Lava Jato, cujas ações nada re- em Curitiba.29

27 Ibid., p. 164.
28 Ibid., p. 171. 29 Ibid., 174.

102 103
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

Limongi explica toda a dinâmica do processo Leonardo Avritzer e o pêndulo


do impeachment dentro do próprio sistema políti-
da democracia
co. Não faz parte da análise a crise econômica como
um fator determinante para o colapso da sustenta- Em O Pêndulo da Democracia, publicado em
ção parlamentar e mesmo social do governo de Dil- 2019 , Leonardo Avritzer volta, com maior ampli-
ma Rousseff, e nem o impeachment significou uma tude histórica e conceitual, à discussão sobre a
ruptura política que pudesse ser caracterizada como natureza da crise política brasileira, que foi o ob-
golpe de estado. O presidencialismo de coalizão te- jeto de um livro anterior, Impasses da Democracia
ria conseguido se recompor através da solução Te- no Brasil, de 2016. A crise, que teria como marco
mer. Ao final, o impeachment aparece como a res- as manifestações urbanas ocorridas em 2013 e ex-
posta do sistema político ao impacto da Operação posto os limites do presidencialismo de coalizão,
Lava Jato em seus caminhos e descaminhos. ganha agora enquadramento através de um movi-
mento pendular de longa duração entre momen-
tos de afirmação e de negação da democracia.

Dois aspectos iniciais que ajudam a explicar


essa oscilação e estão interligados são, de um lado,
a fragilidade na garantia ampla dos direitos civis,
justamente aqueles considerados mais importan-
tes para vigência da ordem liberal democrática; de
outro, a dificuldade de incorporar o Judiciário na
estrutura de divisão de poderes, processo que ain-
da não chegou a bom termo, mesmo passados 35
anos da promulgação da Constituição. Além disso,
a relação entre elites e democracia no Brasil estaria
marcada por uma democratização insuficiente, que
não atinge todos os poderes, como seria o caso mais
notório do Judiciário e das prerrogativas mantidas
pelos militares, e por uma rejeição a controles ex-
ternos, característica presente em todos os poderes.

104 105
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

Para Avritzer, a partir da Constituição de 1988, O pêndulo vigora desde a Segunda Repú-
o nosso presidencialismo convive com três elementos blica e seus grandes ciclos seriam:
contrademocráticos:
Expansão – 1946 / 1964
Regressão – 1964 / 1985
a) o impeachment – sem legislação clara e
abrangendo um leque muito amplo de Expansão – 1985 / 2013
questões, políticas e administrativas, incor- Regressão – 2013 / 2018
pora forte elemento conjuntural, movido
Existe uma dinâmica de fundo econômico e
pela desagregação da coalizão de governo;
social que definiria a mudança no movimento do
pêndulo: “Ao fim de cada momento incorporador,
b) a Justiça Eleitoral – a passagem paulatina
como foram os de 1950-64 ou 2003-14, temos uma
de um modelo de regulação legal das elei-
forte crise que passa a envolver lances democráticos
ções para coibir fraudes para um sistema de
e não democráticos”.30 O que interessa diretamente
julgamento político. Esse papel se eviden-
a Avritzer é entender a conjuntura que se abre com
cia no nível crescente de intervenção em re-
as manifestações de 2013 e desembocaria na eleição
sultados eleitorais por parte dos Tribunais
de Bolsonaro para a Presidência da República. É o
Regionais Eleitorais e do Tribunal Superior
período em que o Judiciário “se torna parceiro de
Eleitoral, chegando ao caso esdrúxulo do
um processo de degradação institucional”, pela in-
afastamento do governador eleito do Mara- tervenção nos mandatos eletivos e pela interferên-
nhão, Jackson Lago, mais de dois anos de- cia em atribuições de outros poderes, como teriam
pois da posse, e a entrega direta do cargo à sido os casos da nomeação de Lula como ministro
candidata derrotada, Roseana Sarney. da Casa Civil de Dilma Rousseff (que se repetiria
posteriormente com a suspensão da nomeação do
c) a possibilidade de intervenção militar – a
delegado Alexandre Ramagem para o comando da
partir do controverso art. 142 da Consti-
Polícia Federal) ou a remoção de Eduardo Cunha da
tuição e, desde 2010, da incorporação dos
militares na política de segurança pública,
pelo envolvimento no combate ao crime or-
30 AVRITZER, Leonardo. O Pêndulo da Democracia. São Paulo: Todavia,
ganizado no Rio de Janeiro. 2019, p. 23.

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

Presidência da Câmara. Seriam fatos, entre outros, esteira das Manifestações, como o MBL, que congre-
que indicam “a mudança de concepção que aponta gava uma juventude mobilizada contra os partidos
na direção da superioridade da Justiça em relação à políticos (principalmente de esquerda), os movimen-
soberania popular vigente no país”. Seria o Judiciá- tos populares, a imprensa. Para Avritzer, o STF con-
rio se colocando como “poder moderador” nas dis- tribuiu muito para o quadro de degradação institu-
putas entre o Executivo e o Legislativo, e não apenas cional com suas idas e vindas diante das iniciativas
funcionando como garantidor da lei. tomadas pela Lava Jato, no início apoiando todas as
suas decisões, que contavam com ampla anuência po-
Junho de 2013 é um ponto central da análise,
pular ao encarcerar sem mais e com vasta cobertura
na medida em que sua irrupção inesperada deixou a midiática, políticos, dirigentes de estatais e empresá-
nu a falência do modelo político da Nova República, rios poderosos, posteriormente voltando atrás e con-
evidenciando o descolamento entre representação siderando os desvios processuais que eram constan-
política e sociedade. A partir daí, independente das temente apontados pelos advogados de defesa dos
razões iniciais, as mobilizações funcionaram tam- implicados. Terminaria por decretar a parcialidade
bém como vazão para o aparecimento de movimen- do juiz Sérgio Moro e decidindo pela nulidade das
tos de direita na cena pública, utilizando-se larga- suas condenações. Este é um aspecto de relevância
mente dos instrumentos da comunicação online, a central na visão do autor, que afirma:
grande visibilidade propiciada pelas redes sociais.
a questão decisiva em pauta para que o país
Essas chamadas “novas direitas” têm uma base so-
volte a operar dentro de um conceito de or-
cial alargada no neopentecostalismo, que possui dem democrática é a volta do princípio da
grande penetração em camadas populares e pelo legalidade na relação entre os poderes, em
predomínio nas redes sociais, conseguindo visibili- especial entre o Poder Judiciário e o sistema
dade para um conjunto de propostas de cunho con- político.31
servador no campo dos costumes, de deslegitimação O aprofundamento da crise política após o im-
do processo eleitoral e de aceitação da utilização da peachment de Dilma expunha a nova crise do Estado,
violência como recurso político. que “se estrutura na improvável interseção desses
A Operação Lava Jato seria o elemento de dois modelos de Estado, o patrimonial e o social”.
junção entre setores da magistratura e do Ministério
Público com movimentos surgidos neste período, na 31 Ibid., p. 179.

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

O Brasil carregaria um passivo na transição para a setor financeiro que colonizou o Banco Central e
modernidade, a manutenção de estruturas de Estado age com vistas apenas ao controle da inflação, se
patrimonial. Essa característica conseguiu sobreviver coloca contra a expansão do Estado social, junto
passando quase imune pelo desenvolvimentismo, com o agronegócio.
que se fez utilizando estruturas paralelas envolven-
O impacto das “novas direitas” na cena po-
do agências estatais e grupos privados, na forma do
lítica se expressa através das propostas de “des-
“insulamento burocrático”, com os setores modernos
liberalização”, que levaram à “progressiva subs-
do Estado se isolando do sistema político. Assim, ti-
tituição, entre 2013 e 2018, de uma agenda liberal
vemos um Estado que era, ao mesmo tempo, patri-
de direitos por outra agenda não liberal e não li-
monialista e desenvolvimentista. Essa característica
bertária, que perpassa todo o campo conservador
perdurou, pois “nem a Constituição de 1988 nem as
no Brasil”.34 Como se trata de um pêndulo, sua
mudanças do governo FHC conseguiram romper com
reorientação em sentido democrático dependeria
a velha cultura patrimonialista do setor produtivo do
fundamentalmente de dois aspectos, o respeito à
Estado brasileiro. Essas características se ampliariam
determinação eleitoral da política e a garantia judi-
no governo Lula”.32
cial de direitos individuais, ambas arranhadas pela
A partir da Constituição de 1988, e especial- situação de agigantamento do Judiciário, desequi-
mente nos governos entre 1994 e 2014, erigiu-se librando a relação entre os poderes.
uma estrutura de Estado social, cuja referência é
igualitária e se choca com a tradição patrimonia-
lista. O atrito ficou camuflado no momento de
expansão, mas se expôs com a crise econômica e
a agudização do conflito distributivo. “Assim, a
crise que vivemos é de um padrão de dominação
oligárquica de longo prazo do Estado revertida
apenas parcialmente pela Constituição de 1988”.33
Neste embate, os agentes do mercado, ou seja, o

32 Ibid., p. 85.
33 Ibid., p. 103. 34 Ibid., p. 139.

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

Marcos Nobre, o “pemedebismo” e os própria sociabilidadade contemporânea, movidas


pela expansão da tecnologia digital. As manifesta-
limites da democracia ções múltiplas e algo enigmáticas de 2013 tornam-
Marcos Nobre vem desenvolvendo na última -se o ponto crucial da análise, um marco que se
década uma reflexão sobre as características do sis- impõe, mas como esfinge exigindo ser decifrada.
tema político brasileiro que tem na formulação da Nobre recusa a ligação direta entre os dois pontos
categoria “pemedebismo” uma de suas chaves cen- do subtítulo do livro, que se apresenta na maior
trais. Concluído às portas da eclosão do Junho de parte das análises, como se as Manifestações de Ju-
2013 nas ruas do país, o livro Imobilismo em Movi- nho fossem o prenúncio ou a antessala da eleição
mento, lançado no mesmo ano, propunha esta cate- de Bolsonaro e a ascensão do conservadorismo de
goria analítica para apreender uma cultura política extrema direita estivesse inscrito no ataque ao sis-
estabelecida na década de 1980, que foi estruturando tema político expresso naquelas mobilizações, que
o sistema político de forma a blindá-lo frente as for- se estenderam de forma desigual e fragmentada,
ças políticas de transformação que se colocavam no mas persistente, nas semanas seguintes. Ele enfa-
momento, tornando-se um modo de fazer política tiza que o Junho brasileiro faz parte de um ciclo
congressual baseado na observância estrita de dois de revoltas democráticas de caráter global ocorri-
princípios fundamentais: o governismo congênito do entre 2011 e 2013, que representou o marco de
e a necessidade de supermaiorias. Apoiando-se no uma nova configuração das formas de mobilização
que o autor designa de “mito da governabilidade”, política, através das redes sociais, ultrapassando o
o pemedebismo expressaria a própria dinâmica do
modelo de comunicação de massa que vigorou por
processo da democracia brasileira pós-Constituição
décadas. Essas manifestações globais carregariam
de 1988. Neste sentido, pretende se opor às formas
uma energia social que não foi capturada pelas for-
de interpretação do sistema político baseadas na di-
ças progressistas no sentido do aprofundamento da
nâmica do presidencialismo de coalizão.
democracia, mas, ao contrário, vimos em sequên-
Em Limites da Democracia: de junho de 2013 cia uma série de desdobramentos regressivos em
ao governo Bolsonaro, lançado em 2022, retoma a re- vários países no correr da década, com a ascensão
flexão das transformações do sistema político, co- de governos de talhe autoritário, pressionando as
locado no bojo de um conjunto de alterações pro- envelhecidas instituições da democracia represen-
fundas e globais nas formas da comunicação e na tativa. Nobre tenta se colocar contra o que consi-

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

dera uma verdadeira armadilha da grande maioria tituíam no espaço de formação da opinião pública,
das formulações atuais sobre a crise da democra- num momento em que os partidos se organizavam
cia que trabalham com a alternativa “crise da de- a partir de clivagens dadas na sociedade em termos
mocracia / populismo” ou “regressão autoritária / econômicos, sociais e culturais; por fim, o que cha-
fascismo”. Ele quer abrir as possibilidades presen- mou de “democracia do público”, onde se verifica
tes para além do que considera modelos apoiados uma alteração na relação entre lideranças políticas
numa forma de sociabilidade e de institucionali- e eleitorado. O representante não é mais um porta-
dade política que não voltará. Com argúcia, afir- -voz de grupos ou setores sociais e sim é quem pro-
mou que “os resultados eleitorais regressivos que põe clivagens para o eleitorado, que se aglutina para
surgiram em vários lugares na década de 2010 não a disputa a partir delas. Neste modelo, a personali-
indicam uma tendência irreversível da história. zação da política aumenta e os partidos viram meros
Provêm, antes de tudo, da tentativa de bloquear os “instrumentos a serviço de um líder”. Não por aca-
potenciais democráticos que eclodiam no ciclo de so, o tema do populismo e suas formas ocupa nova
revolta no período 2011-13”. importância no debate sobre a política atual.

Para Nobre, grande parte da bibliografia so- Utilizando o quadro proposto por Manin,
bre a “crise da democracia” tem como horizonte o Nobre tenta pensar uma quarta categoria, que cha-
retorno ao modo anterior da política institucional mou de “democracia digital”. A eleição de Bolso-
ou simplesmente o fim da democracia. Na esteira do naro se dá dentro dessa transição, mas no sentido
pensamento de Manin sobre as formas do governo de utilização do espaço novo de organização para
representativo, propõe agregar outro tipo, não pre- acirrar a corrosão dos mecanismos da democracia,
visto, mas perfeitamente adequado ao tempo das através de uma candidatura antissistema, que foi
redes. O autor referido estabeleceu uma tipologia o resultado do quadro marcado pela resistência
das formas de governo representativo em três fases: do sistema político em se autorreformar a partir
a parlamentar, que vigorou entre o final do século da pressão das ruas e das ações do Judiciário e do
XVIII e fins do século XIX, caracterizada pelo exer- Ministério Público sobre a corrupção envolvendo
cício da política pelos notáveis; a democracia de partidos, empresários e dirigentes de estatais no
partidos, que predominou a partir de então até os financiamento da atividade política. A energia dis-
anos de 1960 e foi coetânea ao auge dos meios de persa e vibrante de 2013, que se opunha ao padrão
comunicação de massa oligopolizados que se cons- pemedebista do “imobilismo em movimento”, não

114 115
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

encontrou canais de expressão institucional e seria pemedebismo depende da manutenção dos canais
apropriada pela direita, e logo pela extrema direita, parlamentares (em algum momento o autor chega
numa perspectiva extrainstitucional e depois fran- a dizer que ele é “indissociável da democracia”)
camente anti-institucional. Assim, o “partido” em e não endossaria a estratégia antissistema de Bol-
que se apoiou não era nenhuma sigla no sentido sonaro, que apostava no choque entre poderes. O
tradicional, mas um “partido digital”, tipo tratado arco completo do pemedebismo a partir do Plano
por Gerbaudo como um partido-plataforma porque Real pode ser sintetizado da seguinte forma:
“mimetiza a lógica de companhias como Facebook
FHC – ocupado pela direita;
e Amazon de integrar a lógica criada por dados das
Lula e Dilma – ocupado pela esquerda;
redes sociais em sua própria estrutura de decisão”.
Temer – chega diretamente ao poder;
Bolsonaro não precisava criar ou dominar nenhum
partido institucionalizado porque o partido que Bolsonaro – ocupado pela extrema direita.
operava e o sustentava era de outro tipo, digital, A caracterização da direita escapa ao simplis-
existe através das redes sociais, com mobilização mo que é comum nas teorias do “ovo da serpente”,
virtual constante e “hackeia” ou parasita partidos que terminam por estabelecer uma falsa vinculação
institucionalizados. Esta seria mais uma caracterís- direta entre 2013 e 2018. O primeiro é percebido por
tica do trumpismo totalmente seguida pelo bolso- Nobre sempre de maneira aberta, tentando absor-
narismo. “Foi assim que essas novas forças se tor- ver o leque de possibilidades então colocadas, sem
naram antiestablishment, antissistema. Como não definir sua natureza pelo quadro de predomínio
encontravam canalização institucional possível, o regressivo que se seguiu na maioria dos países em
único caminho possível foi o de se organizar em que ocorreram protestos. O segundo teria se gesta-
torno de uma oposição extrainstitucional”.35 do principalmente a partir de 2015, quando foi se
A questão é entender o período 2015-2018, formando “uma oposição extrainstitucional com
que desemboca na eleição de Bolsonaro, como de razoável unidade, grande força política e significa-
crise aguda do pemedebismo, culminando em sua tiva capacidade de mobilização. Não se tratou de
“forma-limite”, “protoautoritária”. Isso porque o uma oposição a um partido ou a um governo, mas
de uma oposição antissistema, antiestablishment”.36

35 NOBRE, Marcos. Limites da Democracia: de junho de 2013 ao go-


verno Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2022, p. 130. 36 Ibid., p. 129.

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

As energias antissistema que se colocaram na cena Esses grupos não tinham plataforma comum,
pública em Junho não desembocaram em transfor- eram “outsiders conectados” que viviam num am-
mações institucionais, ao contrário, o sistema políti- biente de “arquipélagos isolados”. O caráter antis-
co não admitiu reformas e, frise-se, sistema com que Bolsonaro se apresentava na cena
foi aí que a decisão do PT como líder eleitoral foi determinante para que confluíssem em
do condomínio pemedebista naquele sua direção.
momento de cerrar fileiras com o sistema
político contra esses impulsos antissistema De maneira geral, o governo Bolsonaro se-
foi determinante para que eles fossem guiu a estratégia de desmonte do aparelho do Es-
organizados e canalizados pela direita, em tado e atritos institucionais. Assim, se recusou a
sentido amplo.37 “deixar sedimentar qualquer governo”, mas com-
Neste campo ideológico, “novas direitas” são binou isso com um recuo depois da mobilização
um leque de forças antissistema que terminaram de intenção golpista efetivada em 7 de setembro de
convergindo para uma posição extrainstitucional 2020, quando pediu perdão e fez juras de respei-
sob o escudo da Lava Jato. Não são fruto de Junho to à Constituição através de uma carta articulada
de 2013, nem se organizaram a partir daí, e sim gru- com a ajuda de Temer, que lhe indicou o caminho
pos que foram surgindo desde a década anterior, no das pedras para barrar qualquer pedido de impea-
ambiente digital dos anos 2000 chment, o acerto com o Centrão comandado por
Arthur Lira. Essa combinação contraditória em
em que hackers e gamers, com garantia de que o líder falava contra o “sistema” e ao mesmo
anonimato, postavam sem filtro e sem qual-
tempo com ele se compunha foi a cara do governo
quer tipo de censura ou de autocensura, em
busca do reconhecimento da comunidade Bolsonaro. No final, o tripé partidário de apoio à
por meio das repostagens que jogavam o sua reeleição foi composto com PL, PP e PR, jus-
conteúdo repostado novamente para o alto tamente a nata do Centrão e da “velha política”
do board, dentro da mais pura lógica de cap- atacada nas lives semanais. Do ideário de combate
tura de atenção”.38 à corrupção e apoio à Lava Jato não sobrou nada.
A Lava Jato foi desmontada, e o grande ar-
tífice dessa desmontagem foi Bolsonaro –
com o auxílio decisivo da Vaza Jato, da Pro-
37 Ibid., p. 130/31.
38 Ibid., p. 139. curadoria-Geral da República e do STF. E,

118 119
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

sobretudo, porque o desmantelamento da A ascensão do populismo reacionário


Lava Jato não interessava apenas à parte do
Centrão que aderiu a Bolsonaro, interessa Os cientistas políticos Christian Lynch e
ao conjunto do sistema político.39
Paulo Cassimiro também analisaram a ascensão da
Por fim, Nobre é categórico ao afirmar que extrema direita em O Populismo Reacionário, publi-
o único caminho para manter a democracia será cado no ano passado. É um livro sintético, mas de
aprofundá-la. Não há possibilidade de retorno a muita força, sobre a ascensão dessa nova forma po-
uma era de predomínio dos partidos tradicionais lítica. Lynch tem formação jurídica e o livro inicia
e da “grande mídia”. Será preciso inovar insti- justamente por um capítulo sobre a “revolução ju-
tucionalmente, sair da armadilha montada pelo diciarista” surgida na década de 1990 na academia
“mito da governabilidade”, que impõe a constru- e evoluindo na década seguinte para as Procura-
ção de supermaiorias no Congresso, e trabalhar dorias de Justiça e os Tribunais “para legitimar a
com maiorias mais enxutas e menos complicadas judicialização da política e a atuação política dos
para operar. Outro problema inadiável é a chama- operadores jurídicos”.41
da questão militar. Neste sentido, afirma que “A Em linhas gerais, essa “revolução judiciaris-
tarefa menos adiável e ao mesmo tempo mais deli- ta” apoia-se no chamado neoconstitucionalismo,
cada de todas é a do reposicionamento das Forças que coloca a Constituição no centro do sistema ju-
Armada e das polícias na ordem democrática. É a rídico, de modo que a ação dos juízes passa a in-
típica tarefa que o pemedebismo da política bra- corporar princípios normativos, invocando valo-
sileira adia indefinidamente”40. E romper a lógica res constitucionais. O neoconstitucionalismo tem
do pemedebismo seria a complicada tarefa que se precedentes antigos no Brasil, remontando a Rui
mantém no horizonte. Barbosa, que afirmava ser o Judiciário “indubita-
velmente, um poder, até certa altura, político, exer-
cido sob as formas judiciais”. Rui Barbosa, Hermes
Lima, Afonso Arinos de Mello Franco, Evandro
Lins e Silva, chegando a Raymundo Faoro, durante

39 Ibid., p. 199 41 LYNCH; CASSIMIRO. O Populismo Reacionário. São Paulo: Editora


40 Ibid., p. 237 Contracorrente, 2022, p. 31.

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

o regime militar na década de 1970, formam toda juridicamente controversos em franca expansão, for-
uma linhagem do judiciarismo brasileiro. maram o quadro que sustentou o momento de auge
do neoconstitucionalismo no Brasil. O ponto de vi-
O judiciarismo se caracterizava pela defesa
do Poder Judiciário como um sucedâneo do rada foi a reação do sistema político e dos chamados
Poder Moderador monárquico, capaz de “garantistas” no universo jurídico, que denunciavam
garantir, por intermédio da jurisdição cons- os atropelos cometidos pela Lava Jato no devido pro-
titucional, o primado do Estado de Direito cesso legal. No quadro de incertezas e instabilidade
democrático contra as veleidades oligárqui- política crescente, “Temer aproveitou a onda conser-
cas ou autoritárias do regime.42
vadora para resistir em nome da ordem e da estabi-
A disposição regeneradora dos males da Re- lidade à ação política do Judiciário”.43 A reação en-
pública pelo Poder Judiciário, no entanto, foi desloca- volveria a mudança de postura do ministro Gilmar
da por outra instância de poder mais efetiva, as For- Mendes no STF, que passou a atacar continuamente
ças Armadas, notadamente o Exército, autoinvestido os atos e procedimentos da Lava Jato e liderou a rea-
na posição de árbitro e interventor, alardeando sem- ção às posturas defendidas por Barroso e Fachin. A
pre as mesmas intenções reformadoras das tradições exemplo da Operação Mãos Limpas, da Itália, que lhe
patrimonialistas e corruptas da política brasileira. serviu de inspiração e guia, “a ‘revolução judiciarista’
Apenas na década de 1990, depois da Constituição de brasileira terminaria desmoralizando o sistema polí-
1988, que fortaleceu a posição do STF e do Ministé- tico, agravando um processo de rejeição às elites da
rio Público na estrutura dos poderes, criaram-se as Nova República e de fuga da política da moderação
condições propícias à atuação política dos juízes, na pela institucionalidade”.44
linha preconizada pelo neoconstitucionalismo, que
Em seguida, os autores se voltam para “uma
tem em Luís Roberto Barroso um dos principais de-
radiografia ideológica do governo Bolsonaro”. Ma-
fensores. O desencadeamento da Operação Lava Jato,
peando as grandes correntes ideológicas da moderni-
com toda a espetacularização midiática feita estrate-
dade, definem três linhas distinguidas pelo princípio
gicamente pelo juiz do caso e os procuradores envol-
que sustentam: os socialistas, votados ao prevaleci-
vidos, a ação do Procurador-Geral Rodrigo Janot e
mento da igualdade; os liberais, que privilegiam a
do STF em apoio às sucessivas fases e procedimentos

43 Ibid., p. 58.
42 Ibid., p. 42. 44 Ibid., p. 66.

122 123
O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

liberdade; e os conservadores, com a afirmação da dora”, Bolsonaro “não desejou, nem pôde adotar um
autoridade. No campo conservador, seria preciso figurino bonapartista. Ele não quer operar sínteses
destacar o conservadorismo reacionário, quando não que superem conflitos, mas destruir o presente para
se trata apenas de refrear a mudança, “mas sim de restaurar um passado mítico”.47 A destruição foi um
destruir a ordem existente em nome de uma imagi- objetivo conscientemente perseguido pelo gover-
nada ordem passada”.45 Aqui, estamos num universo no, que implicou em desmonte de áreas inteiras do
“anti-iluminista e até anti-renascentista, rechaçando aparelho de Estado e das políticas públicas. É o que
valores como pluralismo, tolerância, Estado de direi- Steve Bannon chamou de “Estado Administrativo”,
to e laicidade”.46 Seguindo os passos de Trump, Vik- colocando a sua destruição como um dos três objeti-
tor Orbán e outros, Bolsonaro se coloca nesse grupo. vos centrais da extrema direita no poder, ao lado do
A ordem a ser destruída, no caso, é a que foi tecida combate à globalização e ao pluralismo identitário.
pela redemocratização e a Constituição de 1988, en- A devastação ambiental, a destruição das institui-
quanto a era mítica a ser restaurada é justamente a ções representativas e a fragilização dos mecanis-
da ditadura militar que a antecedeu. Neste sentido, mos de controle, o desmonte de políticas sociais, o
a reconstrução da memória sobre o período torna-se sucateamento das universidades, o desvirtuamento
essencial. A ditadura militar é reabilitada através da ou esvaziamento dos órgãos da cultura, tudo se co-
construção mítica de um período de tranquilidade locaria num quadro de negacionismo generalizado,
social e bonança econômica, negando toda a história dos fatos, das leis, da ciência, da política.
da repressão política e o desastre econômico que dei-
O populismo reacionário se nutre da criação
xou de herança.
de uma realidade paralela. É nesse contexto que o
Assumindo em meio a uma grave crise econô- anticomunismo reaparece como traço ideológico
mica e no auge do processo de desmoralização dos central. A diferença é que na atualidade “O ativismo
agentes políticos ocasionado pela Lava Jato, a situa- pelos direitos humanos seria a nova forma adquiri-
ção poderia abrir espaço a um governo de tipo bo- da pelo comunismo; e a Nova República, o regime
napartista, mas não foi o que aconteceu. Exatamente no qual os antigos comunistas, agora no poder, se
por se considerar líder de uma “revolução conserva- desforrariam dos militares”. O bolsonarismo tem no

45 Ibid., p. 69.
46 Ibid., p. 74. 47 Ibid., p. 73.

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

trumpismo o modelo de cultura política autoritária pelo legalismo autocrático como perfeitamente
a ser seguido. A disputa política passa fundamen- constitucionais. É do ponto de vista do legalismo
talmente por uma “guerra cultural”, aspecto central autocrático que declara ‘jogar dentro das quatro
dessa ideologia e que foi aqui difundida através de linhas’”.49 Por outro lado, o golpe no sentido clás-
Olavo de Carvalho e suas aulas na internet. Três sico, a tomada do poder pela força, é uma ameaça
estratégias básicas a serem utilizadas nesta guerra: sempre brandida pelo líder, mais como recurso retó-
desacreditar a imprensa, estabelecer uma comunica- rico para sua base radical e forma de manter a pres-
ção direta entre o líder e seus seguidores nas redes são aparente contra o sistema político, ao tempo que
sociais e a farta produção e divulgação de notícias se acerta com ele por baixo dos panos.
falsas. É, portanto, no terreno gramsciano da hege-
A Corte pagou para ver a carta do golpe
monia cultural que o ataque do populismo reacioná- de Estado que Bolsonaro sugeria ter des-
rio às instituições políticas busca sustentação social. de fevereiro de 2020 e, vendo que era blefe,
Para isso se utiliza intensamente das redes sociais agiu para cercear a central de produção de
e do “recurso a técnicas fascistas de intimidação, propaganda, desinformação e intimidação
como o grito, o xingamento, a violência física”.48 montada pelos filhos do presidente (o ‘gabi-
nete do ódio’), com a instauração de inqué-
O capítulo seguinte trata da estratégia polí- ritos destinados a apurar a existência e a res-
tica do governo Bolsonaro e a forma de organiza- ponsabilidade pelos atos antidemocráticos.
ção do populismo reacionário no poder. O ponto a (LYNCH e CASSIMIRO, 2022, p. 174/75.
ressaltar é a centralidade do golpe. Alardeado desde A organização do governo se efetuou atra-
antes de começar o governo, “o ‘golpismo’ se tor- vés de uma camarilha formada em torno da família
nou uma ideia-força associada ao modus operandi do Presidente. O principal núcleo estratégico esta-
do populismo reacionário”. Na prática, governa por va no chamado “Gabinete do Ódio”, comandado
decretos ilegais, aparelhando órgãos administrati- pelos filhos (principalmente Carlos, o vereador do
vos com pessoas inadequadas às funções, esvazian- Rio) e “encarregado de construir a figura de Bolso-
do os órgãos de cultura, banalizando as emendas naro como político corajoso, autoritário e disrup-
constitucionais. “Todos esses atos são apresentados tivo, capaz de ‘romper com o sistema’”. O culto à

48 Ibid., p. 106. 49 Ibid., p. 129.

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

personalidade, traço essencial dos populismos, foi núcleo duro do bolsonarismo e pretendia dar uma
seguindo à risca o modo de agir de Trump: aura de respeitabilidade e competência técnica ao
governo. E com isto, Bolsonaro, encheu a admi-
Por um lado, Trump fomentou o culto a
nistração direta de militares da reserva e da ativa,
sua personalidade, convertendo o Partido
Republicano em instrumento de sua polí- sugerindo sempre o apoio das Forças Armadas ao
tica pessoal. Seus ministros devem ser su- seu projeto de poder. O resultado prático foi uma
ficientemente medíocres e servis, de modo linha de cooptação que pegou alguns generais do
a não se tornarem competidores e cumpri- governo, que se alinharam totalmente ao bolsona-
rem todas as suas ordens, ainda que aten- rismo, casos de Augusto Heleno e Braga Neto, mas
tem contra a legalidade administrativa. Por
não chegou nunca a contar com a chancela dos cír-
outro, o presidente cria deliberadamente
culos hierárquicos superiores, o Alto Comando. Os
polêmicas de caráter moral, a fim de mos-
tra-lo midiaticamente como o único perso- militares, afinal, nem exerceram papel de freio aos
nagem político relevante da vida nacional, arroubos de Bolsonaro, nem imprimiram qualquer
em constante luta contra os inimigos do racionalidade técnica a seu governo, simplesmente
povo. A estratégia visa também a mobili- se aboletaram em cargos e salários, ou seja, arru-
zar permanentemente seus seguidores pela maram, como se diz, uma “boquinha”.
exploração do medo e do ódio ao diferen-
te, atacados como traidores, depravados, Por fim, os autores mostram Bolsonaro
esquerdistas ou corruptos em verdadeiro como líder de uma “revolução reacionária” que
linchamentos digitais.50 seria frustrada, pois, “Olhando de perto, Bolsona-
Tudo isso soa com um roteiro seguido à ris- ro se encontra na situação inversa à dos autocra-
ca pelo bolsonarismo no poder. Dentro do Palácio tas modernos, que empregaram sua popularidade
do Planalto operaria também o “gabinete militar”, para roer as instituições”.51 O golpe sonhado por
composto de generais aposentados “encarregados ele teria por protagonista o “povo armado” (as mi-
de tocar a articulação política com os demais Po- lícias) em atos insurrecionais e de desobediência
deres”. A participação dos militares foi inicialmen- civil. Nada disso ocorreria de fato, pois “Bolsonaro
te colocada como contraponto ao radicalismo do é, acima de tudo, um mentiroso blefador, que ex-

50 Ibid., p. 105. 51 Ibid., p. 168.

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

plora o ódio à democracia para viver impunemente Contando as favas


às custas dela”.52 Ele viveria o dilema do parasita,
saber até onde pode explorar o ódio à democracia
O percurso aqui realizado com a interpre-
“sem matá-la ou provocar sua reação contra si”. A
tação direta de oito trabalhos sobre a crise política
aposta dos autores se mostrou acertada. Derrotado
brasileira mostra pontos em comum e outros tantos
nas eleições, Bolsonaro tentou estimular uma rea-
divergentes. O chão comum é a análise da regressão
ção de seus eleitores, não reconhecendo claramente
que se estabeleceu na última década e que alinhou
a derrota. Terminou se refugiando nos Estados Uni-
o Brasil com a emergência mundial de lideranças
dos, sem passar a faixa presidencial ao sucessor,
populistas de talhe autoritário, recolocando velhos
o arqui-inimigo Lula, de onde assistiria a invasão
fantasmas ditatoriais, que no fundo sempre estive-
dos prédios dos três poderes da República por seus
ram presentes, novamente na cena política. Dete-
apoiadores, no dia 8 de janeiro de 2023. A imagem
nho-me aqui sobre as diferenças e destaco três. De
final de vandalismo e destruição na Praça dos Três
cara, o debate acerca da natureza e do alcance do
Poderes, o coração da República, é o retrato fiel do
processo político que culminou no afastamento de
governo Bolsonaro e da experiência do populismo
Dilma Rousseff da Presidência da República. A vi-
reacionário no Brasil.
são de que estava em curso um golpe de estado de
novo tipo, caracterizado por Wanderley Guilherme
dos Santos de “golpe parlamentar”, é dominante
nos círculos à esquerda e está expressa na rápida
edição organizada pela editora Boitempo, intitulada
Por que gritamos golpe?, publicada no bojo das dis-
putas em 2016. Nos textos de Santos reunidos em
A Democracia impedida, 1964 e 2016 aparecem como
dois momentos distintas do mesmo fenômeno, a re-
sistência das elites políticas e econômicas e da classe
média tradicional diante da diminuição das desi-
gualdades sociais. Assim, são as melhorias ao andar
de baixo colocadas em curso pelos governos do PT
52 Ibid., p. 171. e as seguidas derrotas imposta aos grupos identifi-

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

cados com as propostas neoliberais, PSDB à frente, cial levando em conta as ações contraditórias toma-
que explicariam a tomada de posição em favor do das por Dilma após a reeleição e de como ela tam-
impedimento da presidente reeleita, valendo-se do bém cavou o isolamento em que se encontrava no
ardil das pedaladas fiscais, mecanismo utilizado em auge da crise. E não deixa de frisar que as próprias
governos anteriores, mesmo em menor amplitude, e contradições do lulismo, enquanto esteio das po-
que passou a ser condenado pelo TCU como desres- líticas de inclusão, teria efeitos sobre o desenrolar
peito à Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesta con- do processo, pois ele carregava a característica da
cepção, o impeachment de 2016 seria fruto de uma desmobilização dos movimentos sociais, oriundo
articulação golpista conduzida no âmbito parlamen- do caminho conciliatório escolhido, amparado nos
tar, que envolveu principalmente o PMDB, de Temer tempos de bonança da expansão da venda de com-
e Cunha, e o PSDB, de Serra e Aécio. O processo de modities para a China.
criminalização da política, exercido por tribunais de
O rechaço desta interpretação, defendida,
justiça e Ministério Público e pela espetacularização
com variações, tanto por Wanderley Guilherme dos
midiática dos casos de corrupção, se voltou de ma-
Santos quanto André Singer e Perry Anderson, vem
neira prioritária contra o PT e foi o sinal para a onda
principalmente de dois analistas do presidencialismo
antipetista que se alastraria em seguida, culminan-
de coalizão. Por vias diferentes, Sérgio Abranches e
do na eleição de Bolsonaro.
Fernando Limongi descartam que o processo de afas-
O problema dessa forma de ver os aconte- tamento de Dilma Rousseff seja caracterizado como
cimentos é quase isentar completamente Dilma um golpe de estado. Na verdade, deveria ser pensado
Rousseff e o PT no processo tortuoso que levou à dentro da dinâmica do presidencialismo de coalizão
sua derrocada. Neste ponto, a análise de André em momento de grave crise política, como um movi-
Singer é mais sofisticada, quando tenta remontar mento desleal, na linha do “jogo duro institucional”
o quebra-cabeça do período de Dilma, valendo-se apontado por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em
do fracasso do governo em encaminhar as propo- Como as Democracias Morrem. Nos termos de Sérgio
sições de talhe (neo)desenvolvimentista na econo- Abranches, Dilma não conseguiu contornar o que
mia e de levar a bom termo o “ensaio republicano”, chama de “ciclo de fuga do presidencialismo de coa-
a faxina que a presidente se propunha a fazer nas lizão”, o que Fernando Henrique e Lula atravessaram
estatais e se perdeu no meio do caminho. Analisa com sucesso, não sendo engolfados pela crise política
assim o derretimento do apoio parlamentar e so- quando ela surgiu. Apesar de destacar a ação políti-

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

ca de juízes, promotores e procuradores no combate na “por solicitação de qualquer dos poderes”, uma
à corrupção detectada na Petrobrás, de forma a in- exigência que mostra bem os limites da democra-
terferir no encaminhamento do processo decisório, cia, como no título do livro de Marcos Nobre.
para Abranches, o impeachment é resultado princi-
A caracterização do “pemedebismo” feita por
palmente de erros na condução da coalizão de gover-
no. Na visão de Limongi, o papel da judicialização do Nobre é de uma forma de atuação política marcada
processo político teria sido determinante, na medida pelo “imobilismo em movimento”, uma blindagem
em que o objetivo principal do impeachment foi, no do sistema político frente os impulsos progressistas
seu entendimento, deter a Lava Jato, coisa que Dilma através do “mito da governabilidade”, que impõe a
nunca se mostrou disposta a fazer e depois perdeu montagem de supermaiorias parlamentares, insa-
mesmo a condição. Assim, sob o mandato-tampão de ciáveis e difíceis de administrar, configurando focos
Temer, depois sob Bolsonaro, a ação dos indicados potenciais de tensão e crises. Tudo isso nos parece
para a PGR seria o inverso do papel exercido por Ja- mais uma descrição do modus operandi do presiden-
not sob Dilma. E a postura do STF sobre os procedi- cialismo de coalizão brasileiro. De qualquer forma,
mentos da Lava Jato também mudaria. serve bem para indicar a postura do conjunto do sis-
tema político frente a emergência dos protestos de
O tema do golpe ocupa igualmente lugar
Junho de 2013, pois Nobre recusa, a meu ver acerta-
central na análise de Leonardo Avritzer, mas num
damente, uma vinculação direta entre os protestos
quadro explicativo distinto, que percebe a constru-
multifacetados daquele ano, as manifestações pelo
ção de longo prazo da democracia no Brasil envolta
num movimento pendular que alterna momentos impeachment em 2016 e a vitória da extrema direita
de expansão democrática com outros de regressão nas eleições de 2018. Naquele momento, o “peme-
autoritária, numa dinâmica ainda sem resolução. debismo” estava ocupado pela esquerda, segundo
Um ponto comum forte entre os autores é a distor- o esquema proposto, assim como esteve ocupado
ção verificada no ordenamento institucional pela pela direita nos governos de FHC, e o PT se uniu aos
hipertrofia do Judiciário em relação aos outros po- outros grandes partidos na recusa a discutir a sério
deres, tornando-se um novo ponto de instabilidade mudanças que implicassem em alteração do status
num sistema que já carrega uma legislação muito quo. A crítica é incisiva a qualquer esperança de que
ampla sobre o impeachment e a posição resguar- a crise política se resolva sem alterações institucio-
dada dos militares como garante da ordem inter- nais de monta, pois a rotação em questão é de grande

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

magnitude, envolvendo as formas de organização e dades inscritas que não se realizaram, simplesmente
comunicação e não pode ser negada simplesmente, deduzindo a natureza das mobilizações dos cami-
a não ser ao custo da derrocada da democracia. A nhos posteriores que se efetivaram. Neste sentido,
recusa em aproveitar esse impulso das ruas, que es- a observação feita por Nobre me parece de suma
cancarava os limites das instituições frente às novas importância, sobre a postura imobilista do PT, inca-
realidades, e a opção por cerrar fileiras junto as ve- paz de articular qualquer ponte com aquelas ener-
lhas raposas da elite política em polvorosa, aparecia gias sociais, ficando apenas na defensiva, preocu-
já nesse momento como mau augúrio para o que vi- pado em preservar a imagem de suas políticas de
ria em seguida. Com Bolsonaro, o “pemedebismo” integração social e acenando com hipotéticos planos
seria ocupado pela extrema direita, o sistema tomou de melhoria dos serviços urbanos. Era muito pouco
uma forma “protofascista” e o ataque à democracia para os desafios de renovação postos em cena. Na
tornou-se realidade. O ex-capitão governou obceca- verdade, era a submissão aos princípios básicos do
do pela ideia de realizar um golpe de Estado. Assim “pemedebismo”, ao simular alguma movimentação
como Trump, talvez não tenha tido tempo suficiente e permanecer parado, apostando no desgaste das
para domesticar e desarticular mais ainda as institui- energias sociais antes de qualquer posicionamento.
ções, como o fizeram Orbán, Erdogan ou Modi, sem Essas energias contestadoras, no entanto, não se di-
esquecer Putin, todos autocratas por eles admirados. luiriam e foram canalizadas pelas chamadas “novas
direitas”, com ampla utilização do novo meio das
A discussão sobre os movimentos de pro-
redes sociais e potencializadas pelas denúncias da
testo de junho de 2013 é outro ponto de discórdia
Lava Jato, tudo confluindo para o forte sentimento
importante, principalmente a vinculação muitas ve-
antipetista que tomava conta do cenário.
zes sugerida entre esta explosão e o quadro de re-
gressão política que se colocaria com força nos anos A ascensão rápida de Bolsonaro se deu entre
seguintes. Em sua crítica das instituições represen- 2015 e 2018, ao mesmo tempo que a escalada da Lava
tativas, na recusa das formas políticas tradicionais, Jato corria em paralelo e chegava ao auge. No gover-
partidos, sindicatos e movimentos sociais, aquelas no, agiu seguindo mais ou menos a trilha trumpista
mobilizações multifacetadas seriam a parteira da de destruição da máquina administrativa, comunica-
ascensão da extrema direita ao poder poucos anos ção direta através de redes sociais, onde postagens
depois. Este raciocínio tipo “ovo da serpente” perde agressivas e produção de fake news mantinham os
a complexidade do momento e descarta as possibili- seguidores insuflados, conflitos com a independên-

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

cia de agências públicas e instituições de controle, zer “caixa 2”, mas adotou métodos que se chocam
acirramento das tensões entre poderes, deslegitima- com traços essenciais da democracia liberal, como a
ção do processo eleitoral e muito mais, a lista seria garantia dos direitos individuais, violados através
longa. Tentou de todas as maneiras fragilizar as ins- da utilização abusiva das prisões temporárias e do
tituições criadas pelo pacto da transição, consubs- mecanismo das delações premiadas, alçadas à condi-
tanciado na Constituição de 1988, mas não conseguiu ção de prova suficiente para determinar diligências
propriamente um apoio de massa para as suas inten- e abertura de inquéritos. O combate à corrupção ter-
ções golpistas, apesar do contingente disposto a lhe minou servindo de biombo para intenções de inter-
seguir as ordens não ser nada desprezível. A situa- venção política a partir de uma rede de apoios em
ção que se criou parecia propícia a uma saída de tipo torno da ação supostamente regeneradora de esferas
bonapartista, o que não ocorreu, como indicaram do Judiciário e do Ministério Público. Na caracteri-
Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro, por- zação de André Singer, a Operação Lava Jato foi, ao
que Bolsonaro não queria produzir nenhuma síntese mesmo tempo, “republicana e facciosa”. O faccionis-
a partir dos conflitos em questão. Trabalhava com a mo político engoliu o espírito republicano, de modo
ideia de destruição da ordem e retorno a uma era de que ela terminou produzindo resultado próximo ao
ouro localizada na idealização da ditadura militar, que ocorreu na Itália depois da Mãos Limpas, não só
o que implicava em revisão do imaginário histórico pelo impacto sobre o sistema partidário e a ascen-
do período, num exercício de inversões, mentiras e são de um líder populista de direita, mas até com a
ocultamentos. A paralisia em que a máquina admi- entrada de agentes judiciais na política profissional.
nistrativa foi entrando, por destruição intencional e Em graus diferentes, mas com percepção unânime, o
incompetência, levou a resultados sofríveis nas mais processo de judicialização da política, alavancado a
variadas áreas de governo, o que dificultou um apoio partir da década de 1990 pelo avanço do neoconsti-
maior a sua escalada golpista, de modo que não en- tucionalismo no campo da teoria jurídica, teve neste
controu caminho para descumprir decisões do STF,
momento seu ponto até aqui mais alto. A sinergia en-
como ameaçou várias vezes.
tre a deposição de Dilma Rousseff pelas oligarquias
A questão da Lava Jato é outro ponto com- parlamentares e a Operação Lava Jato levou à desmo-
plicado, na medida em que ela de fato tocou em um ralização do sistema político que propiciou a eleição
aspecto central do financiamento do sistema político de um outsider de extrema direita. Mas, na tradição
no Brasil, a utilização das empresas estatais para fa- brasileira de outsider vindo da periferia do próprio

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O Brasil na encruzilhada: visões da crise política

sistema político, como foram Jânio Quadros e Collor tumultuar o ambiente e desacreditar o sistema
de Mello. A resposta, entretanto, veio sob a forma eleitoral, inclusive numa vergonhosa e esdrúxu-
de um arranjo político que deu sobrevida ao modelo la reunião com embaixadores estrangeiros, rasga-
do presidencialismo de coalizão, pelo menos em sua do abertamente (com a anuência do Congresso) a
característica medular do clientelismo parlamentar, lei do teto de gastos e da responsabilidade fiscal
chegando à forma esdrúxula do “orçamento secreto” em evidente utilização eleitoral, Bolsonaro não
acertado entre Bolsonaro e o Centrão, agora coman- foi candidato molestado pela Justiça e, durante o
dado por Arthur Lira, uma espécie de Cunha menos pleito, ainda houve atuação partidária descarada
açodado, mas igualmente “dono” de bancadas. No de agentes e setores do Estado, como foi o caso
final das contas, a forma da remontagem joga água notório da Polícia Rodoviária Federal. No fundo,
no moinho da deslegitimação da democracia e man- essa burla das regras e a tentativa de estabelecer
tém aceso o problema da corrupção no financiamen- uma suspensão da lei foi a tônica do governo até o
to dos partidos. O aparecimento ruidoso da extrema fim. Mas reconstruir, como enfatizou Marcos No-
direita na cena política brasileira indica que o nosso bres, não deve ser bem a tônica do momento, e sim
presidencialismo de coalizão continuará sob intensa a disposição para tecer fios novos e outros laços.
pressão, agora com a presença de um outro tipo de Recompor o presidencialismo de coalizão nos ter-
coalizão na cena, a que se faz abertamente contra o mos em que funcionava décadas atrás não parece
sistema político vigente. suficiente para as necessidades de renovação polí-
tica e talvez até nem seja mais viável, dado o nível
A vitória difícil de Lula no pleito de 2022
de polarização e radicalização que a experiência
livrou o país da derrocada certa no autoritarismo
do populismo reacionário nos legou. O candidato
se Bolsonaro tivesse conseguido a reeleição, mas
Lula parecia ter percepção dessas questões, quan-
não retira as nuvens pesadas que continuam a as-
do insistiu na Frente Ampla e falou em seu discur-
solar o clima político. O desastre que foi o governo
so de posse na necessidade de inovar. Resta sa-
Bolsonaro pode ter implicado mais decisivamente
ber se o presidente Lula terá uma ação condizente
para sua derrota do que a “resistência das insti-
com esse anseio de uma nova institucionalidade
tuições” ou um repúdio ao seu discurso de exal-
que expanda a democracia ou sucumbirá ao canto
tação da ditadura, pois se ambos ocorreram em
de sereia da ação personalista.
momentos decisivos, não é demais lembrar que,
tendo burlado tanto todas as regras, procurado

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Titulo

Autor
projeto gráfico
Formato
Páginas
Tipologia
Papel
Edição
Titulo Crise da Democracia
Publicação- dois ensaios
Impressão
Autor Flávio Reis
projeto gráfico Isis Rost
Formato 14x21 cm
Páginas 146
Tipologia Palatino linotype 11,5/ 16
Papel Offset 90 gr/m²
Edição 1ª
Publicação Passagens
Impressão Printstore - julho 2023

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