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ESCUTA.

“The Bolsonaro Paradox”: um resumo


Jonas Medeiros*

Tive a honra e a alegria de escrever com a Camila Rocha e a Esther Solano o livro The
Bolsonaro Paradox: The Public Sphere and Right-Wing Counterpublicity in Contemporary Brazil
(Springer, 2021).

Passamos muitos meses finalizando a escrita do livro a fim de analisar e interpretar inúmeras
pesquisas empíricas que fizemos individual ou coletivamente na última meia década: as
entrevistas em profundidade com lideranças da nova direita que resultaram na tese de
doutorado da Camila[1]; as várias pesquisas quantitativas – surveys em manifestações de rua
– e qualitativas – entrevistas e grupos focais – coordenadas pela Esther[2]; as observações nos
protestos da campanha pró-impeachment de Dilma Rousseff[3]; sem contar discussões
teóricas e conceituais que já duram mais de 6 anos no Subgrupo Contrapúblicos do
NDD/Cebrap[4]. Como o livro está sendo publicado em inglês[5], aproveito esta oportunidade
para apresentar em português – de modo bastante resumido e com um recorte
inevitavelmente pessoal – a estrutura e os principais argumentos desta obra escrita a seis
mãos.

Na Introdução (Capítulo 1) apresentamos nosso quadro teórico de forma entrelaçada com


uma história da esfera pública no Brasil.[6] A mobilização da historiografia brasileira recente
sobre imprensa, esfera pública, movimentos sociais e indústria cultural permite enxergar a
novidade histórica do nosso processo de redemocratização, com o surgimento do que
chamamos de esfera pública pós-burguesa[7] – a integração política inédita, porém frágil, de
grupos sociais subalternos (como mulheres, pessoas LGBT+, negros e indígenas). Estamos
vivendo, hoje, uma reação a este processo, com a emergência de uma contrapublicidade de
direita[8]: uma estratégia e um estilo discursivos que corroem as bases institucionais e
culturais desta nova esfera pública para tentar restaurar uma autocracia burguesa[9].
Encaramos a contrapublicidade de direita[10] como uma retórica que transgride as normas de
decoro historicamente contingentes da nova esfera pública pós-burguesa (o que se
convencionou chamar, geralmente com conotação negativa, de “politicamente correto”).
Apenas através desta chave – onde há norma, há também resistência à normalização – que se
torna compreensível como e porque categorias mobilizadas por Judith Butler e Mikhail
Bakhtin, tais como “paródia”, “grotesco”, “carnavalização” e “bufonesco” – sem contar a
teorização queer de Warner, a qual nós privilegiamos – que antes eram empregadas para
analisar mobilizações sociais de grupos subalternos[11] se tornaram surpreendente e
contraintuitivamente atuais e produtivas para também interpretar a extrema-direita
contemporânea[12].

No Capítulo 2 [“A nova direita brasileira: radical e sem vergonha”], a história da nova direita é
apresentada, nas suas continuidades e descontinuidades complexas com a velha direita. A
direita que saiu da ditadura militar para a redemocratização era, como reconhece a literatura
especializada, “envergonhada”, enquanto a nova direita perdeu a vergonha e “saiu do
armário”: primeiro nas comunidades do Orkut, depois no mercado editorial, na imprensa, no
sistema universitário até chegar na política partidária. Quem deu a senha para a identidade
coletiva desta nova direita foi Olavo de Carvalho, com sua noção de que o Brasil estava
tomado por uma ‘hegemonia cultural esquerdista’. Também foi Olavo quem estabeleceu no
Brasil, a partir do seu tradicionalismo[13], a contrapublicidade de direita: uma retórica
ofensiva, chocante e disruptiva[14] (não à toa, Olavo escreveu nos anos 1990 uma
apresentação ao livro do Schopenhauer que é uma espécie de manual dos trolls e da
trollagem: Como vencer um debate sem precisar ter razão, em 38 estratagemas).

No Capítulo 3 [“A reação conservadora e as revoltas de Junho de 2013”], precisamos lidar com
o incontornável acontecimento de Junho de 2013. Nem ovo da serpente nem caixa de pandora,
as revoltas de 2013 precisam ser inseridas, a fim de se tornarem compreensíveis, em um
amplo ciclo de protestos[15] que marcou a década de 2010 no Brasil: uma intensificação brutal
dos conflitos sociais que aponta para várias direções – o conflito distributivo, como atesta o
ciclo de greves de 2012-16, bem como a disputa entre grupos progressistas que buscavam
aprofundar a esfera pública pós-burguesa nas instituições (como, por exemplo, a decisão do
STF sobre aborto de fetos anencéfalos) e nas ruas (como as Marchas das Vadias[16] e as
ocupações secundaristas[17]) e uma reação conservadora bastante anterior ao fortalecimento
eleitoral de Bolsonaro (discursos de reprivatização[18] que buscavam barrar o avanço na
esfera pública dos direitos das mulheres, das pessoas LGBT+ e de crianças e adolescentes). A
nova direita participou das revoltas de 2013, mas em uma posição bastante minoritária, tanto
em termos das lideranças quanto da base social dos protestos.

No Capítulo 4 [“A ascensão de Bolsonaro”], mostramos como a mudança crucial na estrutura


de oportunidades políticas para a nova direita não foi 2013, mas as eleições de 2014. A
campanha pró-impeachment de Dilma Rousseff foi lançada assim que as eleições terminaram.
Vários grupos da nova direita protagonizaram a campanha. Da perspectiva do chão dos atos
de rua da direita, os manifestantes eram movidos por emoções[19] de raiva (o antipetismo),
alegria (o protesto como sociabilidade de um setor da população socialmente homogêneo) e
desconfiança (do sistema político-partidário: até políticos tucanos foram vaiados e xingados no
protesto). Depois de algumas tentativas da nova direita de canalizar toda esta energia das ruas
para a política institucional (para o NOVO, o PSL – com o Livres – e o PSC), foi a candidatura de
Jair Bolsonaro em 2018 que conseguiu angariar a raiva e a alegria e, ainda por cima, converter
a desconfiança em confiança. Como? Com a contrapublicidade: discursos de ódio circularam
como “politicamente incorretos”, legitimando não apenas Bolsonaro como um candidato
honesto, sincero e autêntico diante de eleitores que não eram de extrema-direita, mas também
legitimando um projeto extremista, de corrosão e destruição da esfera pública pós-burguesa.

Por fim, na Conclusão (Capítulo 5), abordamos rapidamente o governo Bolsonaro para
interpretar o que chamamos de o paradoxo Bolsonaro, que, na verdade, são vários. O primeiro
paradoxo é: a nova direita queria se afastar do legado da ditadura militar, mas as
consequências não-intencionais[20] de suas ações foram pavimentar os caminhos autoritários
do governo mais militarizado desde a redemocratização. O segundo paradoxo é a habilidade
da contrapublicidade de direita de atribuir um caráter antissistêmico a posições sociais
dominantes; é o caminho sinuoso de buscar relegitimar sistemas de opressão (em especial de
gênero e sexualidade) diante do seu questionamento pós-1988. Já o terceiro paradoxo é o que
chamamos de contrapublicidade dominante[21]: mesmo ocupando um dos centros do sistema
político – a Presidência da República – Bolsonaro continua se apresentando como
antissistêmico. A contrapublicidade dominante – quando a contrapublicidade de direita chega
ao poder – é um fenômeno instável, que aponta não apenas para a corrosão da esfera pública
pós-burguesa, mas para sua destruição e a sua futura substituição por instituições que
apontem para uma renovada autocracia burguesa.
Contudo, todos os processos históricos aqui mencionados têm um caráter relativamente
contingente e socialmente construído: nada estava “escrito nas estrelas”, sendo resultados de
disputas, conflitos, escolhas, alianças, negociações, vitórias e derrotas.[22] A instauração de
um regime autoritário no Brasil também não está pré-definida, mas para evitar este
desdobramento, os atores políticos vão precisar se esforçar para inventar novas formas de
legitimar a cultura política democrática, o que, obviamente, ainda está em aberto.

Jonas Medeiros é cientista social e pesquisador do CEBRAP.

Notas:

[1] Sua premiada tese foi recentemente transformada em livro: Camila Rocha, Menos Marx,
mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil (Todavia, 2021).

[2] Seja sozinha, seja com a Camila (com apoio da Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil ou da
Fundação Tide Setubal), seja com outros pesquisadores; cf., p.ex., Esther Solano, Pablo
Ortellado e Marcio Moretto Ribeiro, 2016: o ano da polarização? (FES Brasil, 2017); Esther
Solano, Crise da Democracia e extremismos de direita (FES Brasil, 2018); e Camila Rocha e
Esther Solano, Bolsonarismo em crise? (FES Brasil, 2020).

[3] Observações que eu realizei em conjunto com Antonia Malta Campos; cf. nosso texto,
“Cultura política e conservadorismo no Brasil atual: reflexões sobre o curto e o longo prazo”
(2015), disponível em:
https://www.academia.edu/45652185/Cultura_pol%C3%ADtica_e_conservadorismo_no_Brasil_a
tual_reflex%C3%B5es_sobre_o_curto_e_o_longo_prazo

[4] Contamos com o debate e a colaboração de diversas outras pessoas pesquisadoras, como
Rúrion Melo, Fabiola Fanti, Mariana Valente, Natália Neris, Márcio Moretto Ribeiro e, mais
recentemente, Daniela Mussi, Felipe Gretschischkin e Gustavo Frota.

[5] Nós somos muito gratos pelo apoio financeiro da FES Brasil, o qual viabilizou a contratação
da tradutora Catherine Osborn, que nos brindou com uma paciência e um rigor infinitos.

[6] Uma inspiração metodológica crucial foi o trabalho de Fernando Perlatto, Esferas públicas
no Brasil: teoria social, públicos subalternos e democracia (Appris, 2018).

[7] O termo é utilizado pela primeira vez por Oskar Negt e Alexander Kluge, Public Sphere and
Experience: Toward an Analysis of the Bourgeois and Proletarian Public Sphere (University of
Minnesota Press, 1993); mas aprofundamos em nossos próprios termos a formulação
conceitual de Nancy Fraser em “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique
of Actually Existing Democracy” (Social Text, n. 25/26, 1990). Esta é uma forma alternativa de
conceber e interpretar o que Marcos Nobre chamou de “modelo de sociedade social-
desenvolvimentista” em Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma
(Companhia das Letras, 2013).

[8] Foi o teórico literário Michael Warner (Publics and Counterpublics, Zone Books, 2002) que
inaugurou a dissociação entre contrapublicidade e subalternidade, permitindo a circulação
das categorias de contrapúblico e contrapublicidade para abarcar a experiência, as
necessidades e a criação de mundos contrapúblicos por grupos sociais não-subalternos.
[9] O conceito é de Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil: ensaio de
interpretação sociológica (Zahar, 1976); contudo, buscamos reler o seu conceito via uma
abordagem interseccional, para interpretar tanto a ditadura militar quanto a
redemocratização (e o bolsonarismo) com um olhar mais complexo, que, além da classe social,
articule também relações de gênero e sexualidade, relações étnico-raciais e as conexões
geracionais.

[10] Não se trata de fenômeno exclusivamente brasileiro. Além da proliferação de estudos


empíricos sobre contrapúblicos não-subalternos no Norte Global (EUA, Alemanha,
Escandinávia, Canadá, Coreia do Sul), analistas do Sul Global estão começando a ficar atentos
à sua emergência, mesmo que não utilizem as mesmas referências conceituais que as nossas;
no caso da Argentina, cf. Pablo Stefanoni, ¿La rebeldía se volvió de derecha?: Cómo el
antiprogresismo y la anticorrección política están construyendo un nuevo sentido común (y
porqué la izquierda debería tomarlos en serio) (Siglo XXI, 2021).

[11] Carla Gomes, Corpo, emoção e identidade no campo feminista contemporâneo brasileiro: a
Marcha das Vadias do Rio de Janeiro (Doutorado em Antropologia, UFRJ, 2018).

[12] Ricardo Fabrino Mendonça e Renato Duarte Caetano, “Populism as Parody: The Visual
Self-Presentation of Jair Bolsonaro on Instagram” (The International Journal of Press/Politics, v.
26, n. 1, 2020); e Sandra Fischer e Aline Vaz, “Populismo no Brasil de contrapositores:
manipulação do autêntico e profanação do contrário” (Agenda Política, v. 8, n. 1, 2020).

[13] Benjamin R. Teitelbaum, Guerra pela eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão


da direita populista (Ed. Unicamp, 2020).

[14] Camila Rocha e Jonas Medeiros, “‘Vão todos tomar no…’: a política de choque e a esfera
pública”, Horizontes ao Sul, disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-
post/2020/04/27/VAO-TODOS-TOMAR-NO-A-POLITICA-DO-CHOQUE-E-A-ESFERA-PUBLICA

[15] Sidney Tarrow, Democracy and disorder: Protest and politics in Italy, 1965–1975
(Clarendon Press, 1989).

[16] Jonas Medeiros e Fabiola Fanti, “Recent Changes in the Brazilian Feminist Movement: The
Emergence of New Collective Actors” (In: Juan Pablo Ferrero; Ana Natalucci e Luciana
Tatagiba, Socio-political Dynamics Within the Crisis of the Left: Argentina and Brazil, Rowman
& Littlefield International, 2019).

[17] Jonas Medeiros, Adriano Januário e Rúrion Melo, Ocupar e Resistir: movimentos de
ocupação de escolas pelo Brasil (2015–2016) (Editora 34, 2019).

[18] Ao mesmo tempo que estava atenta para os discursos oposicionais dos (contra)públicos
subalternos feministas, Nancy Fraser nunca se descuidou de analisar o reposicionamento dos
movimentos conservadores na vida pública estadunidense nos anos 1980, com o backlash
contra a New Left e os governos Reagan e Bush: Unruly practices: Power, discourse, and gender
in contemporary social theory (University of Minnesota Press, 1989). Enquanto os movimentos
sociais politizaram temas quebrando as retóricas de privacidade que impediam seu debate
público, os discursos de reprivatização almejam “colocar o gênio de volta na garrafa”, via
despolitização e renaturalização destes mesmos temas, uma tarefa nada simples nos marcos
da democracia.

[19] Para além da teoria da esfera pública e dos estudos de contrapúblicos, temos
coletivamente buscado aprofundar um diálogo com a sociologia das emoções, como o trabalho
teórico de James Jasper, Protest: A cultural introduction to social movements (Polity Press,
2016) e o trabalho empírico de Arlie Russell Hochschild, Strangers in Their Own Land: Anger
and Mourning on the American Right (New Press, 2016). Nosso objetivo é avançar uma
abordagem qualitativa e interpretativa que não trate os agentes sociais como “dopados
culturais”, independente da sua posição político-ideológica.

[20] Max Weber, A ética protestante e o “espírito” do capitalismo (Companhia das Letras, 2008).

[21] Camila Rocha e Jonas Medeiros, “Jair Bolsonaro and the Dominant Counterpublicity”
(Brazilian Political Science Review, v. 15, n. 3, 2021).

[22] O Prefácio de Marcos Nobre ao nosso livro explicita este elemento epistemológico do que
buscamos muitas vezes realizar implicitamente: “showing how circumstantial and isolated
factors ended up crystallizing as structural elements”. Este Prefácio, nossa própria
Apresentação e o Sumário do livro estão disponíveis para baixar gratuitamente em:
https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-030-79653-2

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