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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

CURSO DE FILOSOFIA

História da Filosofia Moderna

Trabalho apresentado à
Disciplina de História da
Filosofia Moderna, do Curso
de Filosofia da Universidade
Federal do Maranhão.
Professora: Zilmara Carvalho
Aluno: Hiago Christian
Cordeiro

São Luís, MA

2018
O nascimento do Sujeito; a árvore moderna e o solo cartesiano
Ao lançarmos um primeiro olhar, de um ponto de vista da filosofia, sobre aquilo
que entendemos historicamente como Modernidade somos levados a perceber que desde
o seu nascimento, por volta do século XVI, ela é perpassada por um fio condutor tecido
por um punhado de ideias centrais das quais constituem o seu âmago. Comumente
somos levados a pensar no célebre método minado de preceitos racionalistas de René
Descartes como também no criticismo Kantiano, estabelecendo novos limites para o
intelecto humano em relação ao conhecimento sobre a metafísica, ou então Hegel cujo o
pensamento filosófico historiográfico foi o responsável por nomear mesmo esse período
segundo Habermans1. Contudo, com um olhar um pouco mais demorado é possível
perceber também que todas essas bandeiras modernas possuíam uma direção clara e
específica, um telos tão necessário que todas as pluralidades de movimentos podiam ser
quase que exclusivamente reduzidos a ele; desde os projetos emancipatórios iluministas
as aspirações capitalistas da revolução industrial, todo esse ideário filosófico do
progresso que se espalhou pela Europa gerando várias transformações em diversos
âmbitos da vida humana, possuía sempre como um norte: a tomada da razão como único
e exclusivo paradigma cultural do ocidente. Uma razão instrumental como apontaram os
frankfurtianos2, impulsionada antes de tudo por uma ânsia de dominação e
transformação da natureza, em busca de uma determinada ordem de valores e modos de
vidas estáveis, como diria Bauman3. A razão é sem dúvidas a seiva que sustenta a árvore
moderna e enrijece de vida todos os seus galhos e ramificações; política, religião,
epistemologia e até mesmo a arte. Entretanto, com um olhar mais demorado ainda é
possível seguir o curso dessa seiva, e verificar nas suas raízes um conceito, que se talvez
não o mais originário, mas que no mínimo, igualmente importante e bastante intricado
ao conceito de razão moderna: que é o conceito de Sujeito. É através da análise desse
conceito, que acreditamos ser chave para a compreensão da atmosfera moderna, que
tentaremos expor nesse capítulo através de um breve traçado que irá do seu nascimento
e desenvolvimento, destacando a importância desse conceito para a modernidade.
Nesse sentido, essa ascensão e reconhecimento do poder da razão, significava, por
um lado, libertar a consciência tutelada pelo mito e, por outro, usar a ciência, para tornar
mais eficazes todas as instituições humanas. Tudo isso no intuito de aumentar a
liberdade e autonomia do indivíduo, um indivíduo não mais pensado dentro de um
panorama exclusivamente gregário e em harmonia com um cosmos terrível e fascinante,
mas inerentemente desconhecido, ou mesmo um indivíduo algemado pelos grilhões da
culpa judaico-cristã, a qual lhe foi imposta através de um pecado original por uma
ascendência fantástica e um tanto duvidosa, restando nenhuma escolha além da
1
Para Jürgen Habermas foi Hegel o verdadeiro filósofo paradigmático da modernidade,
deixando Kant, que tradicionalmente era considerado o nome central da modernidade filosófica,
inclusive na própria interpretação hegeliana, como um segundo plano. Para isso consultar:
HABERMANS, J. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990.
2
Corrente sociológica surgida na Alemanha nos anos 30, no Instituto para Pesquisa Social, em
Frankfurt, onde pensadores como Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros promoveram uma
extensa reflexão sobre o capitalismo e a experiência moderna. A respeito da razão instrumental
indicamos: ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Trad. Guido Antônio de Almeida. 2.ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1986.
3
Esse tema é profundamente abordado em: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida.
Tradução de Plínio Dentzien. Rio Janeiro: Zahar, 2003.
aceitação e da abnegação. Mas um indivíduo com capacidade de ser senhor de si mesmo
“e possuidor da natureza”, uno, monádico, livre, racional, sem fissuras, e
cartesianamente basilar. Pois, é exatamente com René Descartes que é reconhecido o
título de fundador do racionalismo moderno e da subjetividade, operando assim uma
grande revolução no que diz respeito à história da filosofia ao destituir aquilo que para a
filosofia medieval e escolástica era reconhecido como Deus e que estava no centro das
reflexões e fundamentações, e substituir justamente pelo homem, mas especificamente
pela razão, ou mais especificamente ainda e mais de acordo com os objetivos aqui
propostos; pelo Sujeito.
Que sujeito é esse? Como Descartes chegou nesse sujeito? Sem a pretensão de
explicitar o itinerário do método cartesiano em sua totalidade, podemos elucidar alguns
de seus principais pontos para a melhor compreensão do nascimento dessa noção de
sujeito: a primeira regra do seu método será o abandono de todas as opiniões que não
são claras e distintas ou a alteração daquelas opiniões pouco confiáveis e que por
ventura utilizamos como fundamentos de nossas vidas, como o próprio Descartes
confessa ter feito:
“Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera
muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei
em princípios tão mal assegurados não podia ser se não mui duvidoso e incerto.”
4

Por mais que Descartes critique o conhecimento que recebera e estudara ao longo
dos anos, certamente não esquece os estudos da matemática, pois seu projeto de buscar
uma certeza primeira, utilizará sempre dos princípios dos geômetras para que se possa
extrair desta um encadeamento de conclusões e premissas que embasem e justifiquem o
conhecimento. É a partir desta primeira verificação da falta de certezas, influenciado
pela instabilidade epistemológica de sua época, que impelirá o autor das Meditações
Metafísicas e do Discurso sobre o Método a escolher a dúvida como seu procedimento
metodológico para fins de relativizar nossa confiança tanto nos sentidos como nas ideias
que deles provêm:
“afastando-me de tudo que em que poderia imaginar a menor dúvida, da mesma
maneira como se eu soubesse que isso fosse absolutamente falso; e continuarei
sempre neste caminho até que tenha encontrado algo de certo, ou, pelo menos, se
outra coisa não me for possível, até que tenha aprendido certamente que não há
nada no mundo de certo.”5
É correto inferir deste excerto acima que Descartes não possui nenhuma aspiração
cética, no sentido estrito do termo, que venha por ventura demonstrar a inviabilidade do
conhecimento humano. Ao contrário, ele estava convicto de que se houvesse realmente
algo de indubitavelmente correto, uma certeza imediata, ele iria encontra-la se
permanecesse firme na sua dúvida metódica, pois, por ser um fenômeno puramente
mental, esta dúvida estaria livre dos possíveis equívocos dos sentidos ou mesmo ilusões

4
DESCARTES, R. Meditações de Filosofia primeira (tradução: Jacob Guinsburg & Bento
Prado Junior). SP: Difel, 1973., pág. 93.
5
Ibidem., pág. 99.
provenientes de qualquer deus maligno que possa querer engana-lo 6. Com isso, chega à
conclusão de que somente essa dúvida poderia ser sua primeira verdade, uma verdade
que servirá como motriz para o encadeamento lógico de suas preposições, aquilo que
inaugura o grande sistema cartesiano, esculpido na famosa frase “penso logo existo”,
cogito ergo sum.
“Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar
que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa.
E, ao notar que esta verdade: “penso, logo existo”, era tão sólida e tão correta
que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe
causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro
princípio da filosofia que eu procurava.” 7
Nessa concepção, o penso pode ser lido como eu penso dando o lugar do sujeito
que é, que existe independente de toda materialidade e extensão. Sendo assim, pode-se
dizer que ao identificar-se o núcleo irredutível do conhecimento (a dúvida metódica),
Descartes fundamenta a certeza do cogito, identificando como consequência o núcleo
irredutível de todo humano racional (o Sujeito). Estaria implícito nas proposições
cartesianas que deveria existir algo anterior ao pensamento e que lhe fosse a sua causa,
como um suporte ontológico que possibilitaria a atividade de pensar, esse algo seria a
res cogitans (coisa pensante), ou seja o Sujeito. Contudo, esse tipo de implicação
poderia pôr em risco a própria imediaticidade que Descartes buscava tão
veementemente. Como aponta João Evangelista T. Melo Neto; “o cogito não seria
propriamente uma certeza imediata, mas uma conclusão mediada por um raciocínio
causal sub-reptício que conclui a necessidade da existência de um agente substancial por
trás do ato de pensar”8, ou seja, um silogismo. Resgataremos um pouco dessa
problemática ao apresentarmos a crítica nietzschiana logo mais, contudo, não
abordaremos em sua totalidade, é apenas importante destacar que nosso filósofo francês,
a contraposição das opiniões de que o cogito seria uma inferência silogística, defenderá
com afinco a imediaticidade dessa inferência como uma inspeção do espírito, uma
tomada de consciência, ou mesmo um simples reconhecimento de uma primeira
verdade clara e distinta9.
Identificando o Eu com o Subjectum (etimologicamente aquilo que subjaz, que está
por baixo, fundamento) constrói-se, então, o pensamento e, consequentemente, a noção
de consciência e de subjetividade, como ponto de partida básico da busca da verdade. É
assim que sua filosofia desvia de um modelo do ser e começa a visar rumo ao modelo

6
Essa noção de um Deus enganador ou um gênio maligno é usado por Descartes apenas como
um recurso metodológico ou um “artifício psicológico”, não havendo nenhum conteúdo de
cunho teológico propriamente dito, segundo o próprio Descartes.
7
DESCARTES, R. Discurso do Método (tradução: Maria Ermantina Galvão). São Paulo:
Martins Fontes, 1996 – (clássicos)., pág. 22.
8
NETO. João Evangelista T. Melo. DOURADO. Isabela Gonçalves. A Crítica nietzschiana a
noção de sujeito e o problema da falência da moral ocidental. Em: Ágora Filosófica. Vol. 1, N
1. Recife (PE): UNICAP, 2018., pág. 122.
9
Sobre essa questão Neto e Dourado ainda citam em notas de rodapé algumas passagens de:
DESCARTES, Objeções e respostas às meditações metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1983,
p. 158. (Os pensadores). E também: COTTINGHAM, J. Dicionário Descartes. Trad. de Helena
Martins. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995).
da consciência, ou seja, deixa de buscar o fundamento de todas as coisas em um
substrato material, como os gregos faziam, ou teológico como pressupunham os
medievos, para localizá-lo na própria consciência do homem10. O sujeito é o mínimo
atômico desse homem que não encontra mais em si a verdade divina, mas descobre a
auto evidência da verdade. É a descoberta deste eu pensante em sua interioridade
reflexiva que cria a possibilidade desse novo Sujeito, um sujeito moderno, capaz de
acessar o âmago da realidade e enfim desvelar o mundo.
Assim, é através dessa filosofia da subjetividade que se prepara o solo para
fecundação da semente moderna. O caminho do pensamento moderno está arraigado
num pensamento filosófico que tem no Sujeito a sua constituição principal. O Sujeito
passa, então, a ser a referência de todas as coisas: desde a fundamentação do
conhecimento científico até as sistematizações morais dos povos, tudo isso terá como
referência mediata ou imediata a figura do Sujeito.

10
Max Weber interpreta esse acontecimento como um processo de “desencantamento do
mundo”, onde o sujeito moderno passa a abdicar-se de certas crenças e costumes baseados em
tradições transmitidas e ancoradas nos pilares fixos das religiões. Indicamos: WEBER, Max. A
ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad.: M. Irene de Q. F. Szmrecsányie Tamás J. M.
K. Szmrecsányi. 7. ed. São Paulo: Pioneira, 1989.
Referências:
- DESCARTES, R. Discurso do Método (tradução: Maria Ermantina Galvão). São Paulo:
Martins Fontes, 1996 – (clássicos).
- DESCARTES, R. Meditações de Filosofia primeira (tradução: Jacob Guinsburg & Bento
Prado Junior). SP: Difel, 1973.
- NETO. João Evangelista T. Melo. DOURADO. Isabela Gonçalves. A Crítica nietzschiana a
noção de sujeito e o problema da falência da moral ocidental. Em: Ágora Filosófica. Vol. 1, N
1. Recife (PE): UNICAP, 2018.

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