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Paula Gonçalves Ferreira Santos

Advogada; consultora Legislativa da Área III -


Direito Tributário e Tributação mestra em Direito
pela Universidade Católica de Brasília (UCB/DF)
e doutoranda em Economia Política pelo Swiss
Management Center University (SMC).

A guerra contra
a democracia

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Resumo
Existe uma guerra hoje contra a democracia, que é resul-
tado da consolidação do processo de globalização e da
hegemonia de ideais neoliberais políticos e econômicos.
Chegou-se em um momento da história em que o regime
democrático não consegue mais responder aos anseios da
população, o cidadão está cada vez mais descrente com
os agentes políticos, o que se reflete em votações menos
massivas, consequentemente, em representantes que as-
sumem seus cargos sem ampla legitimidade. Esse quadro
requer um olhar detido dos pesquisadores e dos que par-
ticipam de uma forma ou de outra no processo político.
É importante identificar os problemas para que se possa
buscar soluções viáveis. Não se pode simplesmente de-
sistir do sistema que, até o momento, tem se mostrado
o mais efetivo, pois as demais opções sobre o tabuleiro
(populismo, anarquia, totalitarismo, etc) não parecem
nada desejáveis.

Palavras-chave
pós-democracia; democracia; populismo; eleições; e po-
lítica.

Abstract
There is currently a war against democracy, which is the
result of the consolidation of the globalization process and
the hegemony of neoliberal political and economic ideals.
We have arrived at a moment in history in which the demo-
cratic regime is no longer able to respond to the aspirations
of the population, the citizen is increasingly in disbelief
of political agents, which is reflected in less massive votes
and in representatives who assume their positions without
broad legitimacy. This picture requires a careful look by
researchers and those who participate in one way or an-
other in the political process. It is important to identify the
problems so that viable solutions can be sought. One cannot
simply give up on the system that, so far, has proved to be
the most effective, as the options (populism, anarchy, total-
itarianism, etc.) are not at all desirable.

Keywords
post-democracy; democracy; populism; elections; and poli-
tics.

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Introdução
A pós-democracia é um tema atual que tem sido objeto de discussão
em diversas áreas, visto que, em muitos países, políticos populistas estão
sendo eleitos com a bandeira de remediar os “defeitos” da democracia. O
sistema democrático liberal parece já não servir aos cidadãos como pare-
cia ao final dos anos noventa.
Krasteva (2019) argumenta que houve três transformações nas últi-
mas três décadas: uma pós-comunista, uma (nacional) populista e uma
pós-democrática. As três transformações aconteceram cronologicamente
e transversalmente em três períodos subsequentes. Diz-se transversalmen-
te porque os elementos de cada uma das três transformações se encon-
tram em todas as três etapas cronológicas, de modo que se encontram
características do período pós-democrático quando ocorria o intervalo
chamado de pós-comunista. Nesse sentido, o aspecto crítico para distin-
guir entre os períodos é o projeto elitista que domina o cenário. Por meio
da elite dominante, um determinado plano de transformação torna-se
um projeto hegemônico que controla discursos, estratégias e políticas,
por um lado, e valores e atitudes, por outro (KRASTEVA, 2019).
O período pós-democrático difere em sua forma e aparência das duas
transformações anteriores, mas não em sua estrutura de poder. Em to-
dos esses períodos, o poder decisivo e os recursos de status favoreceram
um pequeno grupo em detrimento da maioria dos cidadãos comuns. As
fontes de poder podem variar de sociedade para sociedade. Mas a centra-
lização e a monopolização dos recursos de poder permanecem as mesmas
(ALIKHANI, 2017).
Neste trabalho, o foco será no terceiro dos três períodos. O objetivo
é compreender o momento da política no mundo ocidental e seu futuro.
Não é uma ambição caracterizar as duas transformações que precederam
a pós-democrática. No entanto, algumas características existentes em am-
bos os períodos serão analisadas com foco na compreensão da formação
do último.
O artigo está dividido em quatro partes, além desta introdução. A
segunda seção se centra nas circunstâncias que deram origem ao surgi-
mento da pós-democracia. Uma terceira seção caracteriza o fenômeno da
pós-democracia. A quarta seção declara como o fim dos regimes demo-
cráticos pode estar acontecendo. Na quinta seção, há uma descrição de

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um possível futuro para a política. Enfim, fala-se um pouco sobre o Brasil
no contexto da pós-democracia.
As circunstâncias que dão origem à pós-democracia
Quando se fala em pós-democracia, é fundamental compreender o
encadeamento dos eventos históricos que levaram ao seu surgimento. A
ideia é demonstrar como o neoliberalismo, paulatinamente, em uma sé-
rie de circunstâncias, reduziu as instituições políticas às condições pós-
-democráticas modernas, que se revelaram por um processo evolutivo e
dialético, quando todas as soluções parciais para as crises do capitalismo
passaram a gerar novos problemas (JONUTIS, 2019).
Alikhani (2017) argumenta que o ideal neoliberal, sob a conjuntura
globalizante, fez com que o “setor” econômico ganhasse gradualmente
mais influência sobre outros “setores” nas últimas quatro décadas. A libe-
ralização econômica e a integração dos países favoreceram algumas pou-
cas corporações globais e centros financeiros, que impactaram o curso
das decisões políticas nos níveis nacional e internacional, com enormes
consequências para outros “setores” dessas sociedades democráticas.
Nesse contexto de interconexão entre as nações, o advento do neo-
liberalismo no final da década de 1970 levou a ações como redução de
impostos, medidas de extrema austeridade, comercialização e privatização
da esfera pública (ALIKHANI, 2017). Essas políticas provocaram um de-
clínio na participação popular e deram origem ao aumento da influência
das empresas multinacionais (PABST, 2016). Nas palavras de Habermas
(1975, p. 123), pode-se compreender melhor o fenômeno:
A democracia não tem mais o objetivo de racionalizar a autoridade
por meio da participação dos cidadãos em processos discursivos
de formação de vontades. Pretende-se, em vez disso, possibilitar
compromissos entre as elites dominantes. Assim, a substância da
teoria democrática clássica é finalmente abandonada. Não mais
todas as decisões politicamente consequentes, mas apenas as de-
cisões do governo ainda definidas como políticas, devem estar su-
jeitas aos preceitos da formação democrática da vontade. Dessa
forma, um pluralismo de elites, substituindo a autodeterminação
do povo, torna o poder social exercido privadamente independen-
te das pressões de legitimação e o imuniza contra o princípio da
formação racional da vontade (tradução nossa).

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Como consequência, as políticas neoliberais provocaram a moralização
da política (a despolitização da política), a desdemocratização de institui-
ções (por exemplo, o poder judiciário assumindo funções dos demais po-
deres) e a securitização de demandas democráticas (como na supressão de
direitos humanos). A moralização da política é verificada quando a solução
para um problema político ocorre dentro de um quadro de moralidade,
bem assim, uma situação não moralizada ocorre quando o debate é feito
sem apelo a argumentos moralizantes (KREITZER; KANE; e MOONEY,
2019). Nesse sentido, pode-se visualizar um estado de emergência apoia-
do por uma democracia iliberal e majoritária nas urnas, onde diferentes
ideologias não podem mais se chocar, pois se fundam em questões morais,
situação vivenciada em alguns países ocidentais (TEKDEMIR, 2019).
A gradual transformação neoliberal do estado de bem-estar social pro-
porcionou acumulação de riqueza, eficiência, competitividade, políticas de
austeridade e dominação de mercado. Com o declínio da influência da
democracia de massa no capitalismo, a economia se despolitizou e várias
entidades políticas transnacionais (como multinacionais, organizações in-
ternacionais, ONGs) passaram a exercer o controle. A partir desse momen-
to, os governos nacionais não tiveram outra opção a não ser adotar políticas
ainda mais neoliberais, decepcionando seus cidadãos (JONUTIS, 2019).
A ideologia neoliberal postula todas as decisões em uma sociedade,
não apenas as econômicas. Qualquer resolução deve ser deixada para os
mercados ou ser subserviente às forças do capital. A ênfase na ideologia
neoliberal acentuou a divisão na sociedade. Essa divisão compreende aque-
les comprometidos com o neoliberalismo e aqueles que buscam uma al-
ternativa ao neoliberalismo. E essa desagregação rapidamente se tornou o
eixo central do conflito ideológico nos países “democráticos” (MUNCK,
2015).
Segundo Milutinović (2015), no início do século XXI, a democracia
europeia tornou-se pós-democracia. O autor reclama que, embora as elei-
ções existam e possam mudar os governos, o debate eleitoral público é um
espetáculo rigidamente controlado, conduzido por equipes de especia-
listas rivais, profissionais nas técnicas de persuasão. A massa de cidadãos
desempenha um papel passivo, quiescente e até entorpecido, responden-
do apenas aos seus sinais. Por trás desse espetáculo do jogo eleitoral, a
política é moldada privadamente pela interação entre governos eleitos e
elites que representam principalmente interesses empresariais.

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Aproveitando-se da situação fragilizada por que passa a crença no
sistema liberal democrata, movimentos populistas buscam aumentar a
relevância por meio de dois objetivos. O primeiro desses propósitos é
desestabilizar a ordem política regular, aumentando o número de atores
políticos. Seu segundo escopo é posicionar-se na periferia da democracia,
fazendo-se desafiador ao diferenciar mobilizações populistas de distúrbios
espontâneos de massa (JONUTIS, 2019).
Assim, o populismo do século XXI qualifica-se como um fenômeno
bastante novo na política, que poderia ser categorizado como antitecno-
crático, tendo em vista a lógica da diferença. O populista “moderno” mol-
da o discurso por meio de diferenças em relação aos outros. Esse novo ator
político declara o esgotamento do período pós-democrático dos partidos
tradicionais como a principal razão de seu nascimento (sendo um sintoma
da pós-democracia). Ademais, não reivindica nada de novo, além de um
sentimento anti-ideológico ainda mais profundo (JONUTIS, 2019).
O ressurgimento do populismo não é a única ameaça à democracia.
Outra ameaça é a oligarquia que fortaleceu o poder executivo em detri-
mento do parlamento e do povo. Essa oligarquia compreende “velhas eli-
tes” e “novas classes”. As “velhas elites” são as dinastias políticas e os chefes
da indústria. Enquanto isso, as “novas classes” abrangem a “oligarquia
tecnológica”, representada pelos setores-chaves da vida moderna, como
energia, informática e engenharia genética; defensores da “filantropia ca-
pitalista”, que se propõem a fazer investimentos que parecem louváveis,
mas que escondem interesses autocentrados; e os tecnocratas no governo.
As “velhas elites” e as “novas classes” usam o regime democrático para
aumentar seu poder, riqueza e status social (PABST, 2016).
Desta forma, os cidadãos já não se sentem influenciadores dos rumos
políticos do seu país. As políticas neoliberais sufocam o estado de bem-
-estar, enquanto uma oligarquia figura no poder buscando apenas seus
próprios interesses. A emergência de um populista, com a promessa de
colocar a nação no eixo, parece a saída perfeita.
O conceito de pós-democracia
A pós-democracia é um processo que engloba três dimensões, a cap-
tura do Estado, as desigualdades sociais e o abstencionismo. A captura
do Estado ocorre por meio da corrupção e do sistema dominado pela

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“política por dinheiro”, que se dá pelo comércio de influência. A caracte-
rística “ausente” do Estado revela-se na existência formal de instituições
governamentais, as quais deixam de representar o interesse comum, cap-
turadas por estreitos interesses privados. (KRASTEVA, 2019). Ao longo
do tempo, a desigualdade social advém da captura do Estado feita pelo
“setor” econômico.
Nenhum político declara abertamente um projeto pós-democrático,
pois a quebra, resultado da captura e rejeição do Estado, de conquistas
democráticas fundamentais, como o Estado de Direito e a separação de
poderes, não é algo que se mostre facilmente legítimo. No entanto, em-
bora não haja identificação de atores políticos com tal projeto, ao final,
diante das pretensões da classe dominante, o ambiente político acaba se
caracterizando como pós-democrático (KRASTEVA, 2019). Os Estados
permanecem com as estruturas da democracia apenas em uma fachada da
estrutura liberal, a qual esconde outras formas de governo, como o totali-
tarismo autocrático invertido, onde o setor econômico domina a política
(MILLER, 2018). Em dado momento, a democracia se desconecta da sua
estrutura ideal e a concepção de um projeto pós-democrático, que pode ser
o anarquismo ou um ato totalmente autônomo, tanto no nível da imagem
quanto no da interação, passa a sobrepor. Finalmente, a democracia deixa
de existir (YAYA SAWITRI & NYOMAN WIRATMAJA, 2021).
Em uma pós-democracia, ou a sociedade não tem o poder coletivo de
articular demandas, ou o governo permanece relativamente indiferente
(YUN, 2021). Esse processo se intensifica com o declínio da classe traba-
lhadora e o impulso das empresas globais, que passam a dominar o cená-
rio político. Um novo tipo de lobista empresarial liga essas corporações
emergentes ao governo. Uma rede sobreposta de conselheiros, consultores
e lobistas desempenha um papel cada vez mais crucial na redefinição dos
interesses das corporações que eles representam como de interesse público
(ALIKHANI, 2017).
O fim dos regimes democráticos
Um mal-entendido sobre o que é democracia pode distorcer as cir-
cunstâncias políticas sob as quais um país passa. Ver o regime democráti-
co como sinônimo de liberdade total para concretizar a vontade do povo é
um desses equívocos, que pode apontar para o desenvolvimento de dinâ-

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micas sociais em desacordo com o próprio conceito de democracia (YAYA
SAWITRI & NYOMAN WIRATMAJA, 2021). Por outro lado, o pro-
cessamento de conflitos, de acordo com regras democráticas previamente
adotadas e amplamente aceitas, faz a política dentro de uma democracia,
o que não acaba com a política sobre a democracia (MUNCK, 2015).
Na democracia liberal, um paradoxo reclama atenção. De um lado, os
representantes dotam-se de poder e ficam tentados a abusar dele por meio
da simples corrupção ou mesmo da repressão de seus opositores. Nesse
sentido, regras sobre transparência e suborno evitam potenciais conflitos
de interesse entre governantes e governados, pois os governados devem
manter o direito de mudar de ideia (CROUCH, 2019). Não obstante os
representantes tenderem a abusar de seu poder, eles também devem agra-
dar seu eleitorado; portanto, a democracia liberal pode ser um catalisador
para o populismo e a demagogia. Essa incongruência torna-se ainda mais
aguda pela tensão entre valores substantivos e normas processuais, de um
lado, a necessidade de respeitar a vontade da maioria, e, de outro, a pro-
teção de indivíduos e minorias da opressão (PABST, 2016).
Quem governa sabe que a minoria de hoje pode se tornar a maioria
de amanhã, o que também significa que as maiorias devem ter cuidado
com a forma como tratam as minorias, visto que essa pode ser sua posição
daqui a alguns anos. Tal expectativa de uma mudança no equilíbrio de
poder é a melhor proteção que se tem contra aqueles que se arvoram a
abusar dele (CROUCH, 2019). No entanto, a busca por essa harmonia
pode fazer com que governos democraticamente eleitos falem por falar e
façam promessas aos eleitores apenas para serem eleitos (MILLER, 2018).
A democracia liberal contém as sementes da erosão nessa necessidade
de manter o equilíbrio. O problema se revela ainda maior devido às con-
cepções distintas de democracia, cada grupo ideológico se prontificando a
determinar o caminho político correto para o país. Nesse sentido, tem-se
que o debate teórico-político sobre modelos de democracia não se traduz
diretamente em práticas políticas, pois os atores políticos não operam com
modelos puros de democracia. De fato, esses atores raramente podem im-
plementar seu modelo preferido de democracia, pois este é muitas vezes
resultado de um misto de conflito e de cooperação entre aqueles que de-
fendem diferentes modelos (MUNCK, 2015). E a necessidade de manter
o equilíbrio, nesse cenário, alimenta os argumentos desses atores, tanto na
defesa de um determinado modelo de democracia como de seus interesses.

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Os atores políticos apoiam ou minam a democracia considerando
seus interesses distintos e o impacto dos modelos de democracia em seus
objetivos. Portanto, a forma como os atores apoiam a democracia depen-
de do modelo predominante. Em algumas circunstâncias, independen-
temente do padrão de democracia a que aderiram, agem de maneira a
acentuar uma forma de poder de cima para baixo que suprime o papel do
parlamento e da oposição (MUNCK, 2015).
Na busca de seus interesses e, considerando o modelo de democracia
predominantemente adotado, líderes populistas usam os mais diversos
instrumentos, como a propaganda, para conter o papel do parlamento
e da oposição no século XXI. Ao contrário dos regimes totalitários do
século XX, a política democrática contemporânea exerce um poder mais
indireto, influenciando a mente das pessoas e garantindo o controle mais
por meio de gostos e opiniões uniformes do que pela força. Assim, a
democracia está se tornando o mesmo que uma ditadura, mas adotando
novas formas de autoritarismo não liberal (PABST, 2016).
Instituições estabelecidas, como partidos (conservadores ou liberais),
cristãos e socialdemocratas, acostumaram-se a se envolver com os elei-
tores por meio de campanhas profissionais na mídia, confiantes de que
poderiam moldar as eleições por meio da comunicação de cima para bai-
xo. Porém, hoje em dia, a informação acontece horizontalmente, inter-
mediada por mensagens disseminadas no mundo virtual. Esses tipos de
notícias dão origem a toda forma de discurso, que se volta contra o or-
çamento público desregulado, a deterioração da esfera pública, as velhas
elites políticas, vários tipos de imigrantes, especialmente muçulmanos, e
as organizações internacionais (CROUCH, 2019).
A relativa indiferença liberal aos valores substantivos que surgiram
nas últimas décadas pode levar à exploração do medo e à manipulação
da opinião como instrumentos endêmicos da democracia representativa.
A política liberal gira cada vez mais em torno da suposta proteção contra
estranhos: o terrorista, o refugiado, o estrangeiro, o saqueador do bem-
-estar social e aqueles considerados desprovidos de “empreendedorismo”.
Como resultado, uma defesa imaginária da democracia justifica a suspen-
são das decisões democráticas e das liberdades civis (PABST, 2016). O
desenvolvimento do ciberespaço reforça esse suposto apoio à democracia,
aumentando as características pós-democráticas do sistema (YAYA SA-
WITRI & NYOMAN WIRATMAJA, 2021).

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Na era moderna, a discussão permanece quase exclusivamente no
plano ideológico; o “caos” cultural é visto como o principal problema,
e implica um aumento da intolerância (TOWNSHEND, 2003). O sec-
tarismo se manifesta no modelo de uma política sem adversários e no
aparecimento da política consensual, para além da esquerda e da direita.
Essa política se perde na distinção nós/eles, pois não há democracia sem
fronteira definida, separando “eles” e garantindo a coerência do “nós”.
Não há “nós” sem “eles”, e a própria identidade de um grupo depende da
existência de um “fora constitutivo”. Hoje a chamada “extrema direita”
abastece os “eles”. Este termo refere-se muito vagamente a grupos e parti-
dos que vão desde grupos extremistas marginais, skinheads e neonazistas
até a direita autoritária e uma variedade de partidos populistas de direita
(MOUFFE, 2005).
A política supostamente se tornou “não adversária”, pois o “eles” ne-
cessário para tornar possível o “nós” dos bons democratas não pode ser
considerado um adversário político. A fronteira se ergue contra um re-
gistro moral, “a extrema-direita do mal”. A outra é uma doença moral
condenada moralmente, não combatida politicamente. Como resultado,
a condenação moral e o estabelecimento de um distanciamento saudável
tornaram-se as respostas dominantes à ascensão dos movimentos popu-
listas de direita (MOUFFE, 2005). Só que a resposta pela condenação
moral e pelo distanciamento não é suficiente para aplacar a promessa de
um líder populista.
Percebe-se, assim, que o populismo é consequência da primazia de-
mocrática do procedimento sobre a substância (PABST, 2016). O popu-
lista é um líder eleito para realizar a vontade do povo – dada a dificul-
dade de os cidadãos atuarem juntos de forma coerente e sem qualquer
mediação. Qualquer coisa que modere ou condicione o comportamento
desse líder constitui uma frustração da vontade do povo. Portanto, as ins-
tituições democráticas são privadas do poder de não interferir nas ações
do líder que representa essa vontade (CROUCH, 2019). Pensar em um
líder populista é pensar em um governante que traz soluções. Alguém que
responde aos anseios da população, que se mostre capaz de fazer todas as
mudanças necessárias, independentemente dos obstáculos que apareçam.
Acima de tudo, um líder que entende as pessoas.
O líder populista está na vanguarda de movimentos não contidos em
partidos políticos estabelecidos. Esses movimentos não se comportam de

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acordo com as regras (formais e informais) de conduta política, mas agem
como a voz de seus apoiadores, que geralmente são, em um primeiro
momento, forasteiros políticos, não tendo experiência nem respeito por
tais práticas. Movimentos populistas reforçam os atos de lideranças para
legitimar suas ações em prol da vontade do povo. Um ciclo que se susten-
ta continuamente (CROUCH, 2019).
A eleição de um líder populista, que pode ser tanto de esquerda quan-
to de direita (MUNCK, 2015), pode até revigorar o sistema democrático
de um país, trazendo questões negligenciadas pelas políticas públicas e
tirando partidos e elites estabelecidos de sua inércia. No entanto, a me-
nos que se trate de aceitar instituições restritivas, sua presença contínua
pode ameaçar a democracia. O perigo para a democracia está na potencial
manipulação das instituições para alcançar a vontade popular. É claro que
essas instituições democráticas têm deficiências. Contudo, a mitigação de
sua força para dar fim aos defeitos inerentes ao sistema resta por combalir
o regime democrático, fazendo com que fique ainda mais a mercê dos
interesses do líder populista.
Apesar do perigo que representa, atacar o populismo com defesas da
corrupção, da captura plutocrática do governo, ou de sistemas partidários
que não representam as divisões mais importantes da sociedade, seria ape-
nas uma forma de reforçar o movimento (CROUCH, 2019). O líder po-
pulista deve ser enfraquecido dentro do sistema democrático, a partir das
regras estabelecidas, consolidando-se as instituições e o debate político.
Acima de tudo tendo em conta que não se trata de uma contenda moral,
mas de uma disputa entre diferentes correntes democráticas.
O futuro da política
O caminho que leva ao populismo e, eventualmente, à pós-democra-
cia não é único. Há outras possibilidades, outras circunstâncias que, ao
interagirem, geram consequências diferentes da pós-democracia. A tur-
bulência política é uma parte natural da democracia que, em um senti-
do positivo, cria relações dinâmicas que exacerbam o caráter criativo dos
atores na resolução de problemas sociais. No entanto, se essa turbulência
levar à desestabilização do poder político, o resultado será a morte políti-
ca. Porque quando os cidadãos deixam de confiar e acreditar no sistema
político, o que prevalece é a face do anarquismo e do caos, cheio de fal-

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sidade e desvio: uma condição da pós-democracia (YAYA SAWITRI &
NYOMAN WIRATMAJA, 2021). Nessas circunstâncias, tal e qual os
líderes populistas, surgem formas políticas inusitadas como solução para
a desordem instalada.
Há um sucesso crescente de líderes populistas de direita, o que se re-
vela em um aumento da ameaça às instituições democráticas. Esses líderes
construíram uma oposição entre o “povo” e o “establishment”; o populis-
mo de direita rompe a estrutura consensual e traz à tona a fragilidade da
perspectiva teórica dominante. A atração exercida pelo discurso populista
de direita é a própria consequência do “fim da política” que prevalece
hoje (MOUFFE, 2005). A divisão de poderes no sistema democrático
faz-se vaga e o impacto das instituições democráticas na política diminui
gradualmente caracterizando-se o “fim da política” (TEKDEMIR, 2019).
Sem uma mudança profunda no funcionamento do regime democrá-
tico, os problemas que levaram à ascensão do populismo de direita não
desaparecerão. É preciso resolver o déficit democrático que caracteriza a
era “pós-política” provocada pela hegemonia neoliberal, além de solucio-
nar a desigualdade de renda insuportável que dá vazão a vários tipos de
ressentimentos (MOUFFE, 2005). Se não se dirimir os problemas do
regime democrático, as eleições se tornarão uma concha cada vez mais
vazia, expressando graves conflitos de interesse (CROUCH, 2016).
O enfraquecimento da democracia traz o risco de que os eleitores se
desconectem do sistema. Paradoxalmente, isso aumenta a alavancagem
da manipulação a interesses poderosos, apesar da falta de legitimidade
dos agentes políticos eleitos que defendem o benefício dessa elite. Para a
classe dominante, é mais confortável que as pessoas votem e se envolvam
na votação. Dirigir o voto para questões menores evita levantar questões
essenciais sobre quem está ganhando com o sistema. A politização de
tópicos menores, muitas vezes técnicos, é mais valioso do que o fim da
democracia para a elite dominante (CROUCH, 2016), tendo em vista
que, à medida que a democracia é cada vez menos representativa, haverá
pressões maiores para que o país se “democratize”. (Miller, 2018). Em um
cenário catastrófico, teremos cada vez menos democracias globalmente, e
o fim da política como concebemos hoje pode se tornar universal.
O mundo pode estar marchando para a pós-democracia, mas ainda
não chegou a este ponto. Regras para transparência, revisão judicial, liber-
dade de informação e assim por diante fornecem uma barreira vital para

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a pós-democracia. Há, no entanto, também o perigo de que reforcem a
postura oficial da classe política do início do século XXI de complacência
autocongratulatória sobre o estado da democracia (CROUCH, 2016).
Por isso, é fundamental manter um debate democrático contundente
sobre possíveis alternativas para os problemas que afligem os cidadãos,
como a crescente desigualdade social (MOUFFE, 2005).
Conclusão
Em várias partes do mundo, líderes populistas foram eleitos com a
promessa de devolver o país aos seus cidadãos. Uma resposta a um proble-
ma criado fora do sistema democrático: globalização, que deu evidência
ao mercado, que forçou as políticas neoliberais. É uma solução de dentro
da democracia que pode acabar com o próprio sistema. O populista não
pensa duas vezes antes de usar e destruir as instituições democráticas para
atingir seu objetivo. Chegamos, então, a um dilema: como responder aos
anseios da população sem acabar com o sistema democrático?
O sistema democrático liberal continua sendo o melhor dos sistemas
políticos, mas terá que evoluir para satisfazer os desejos da população.
Não há como voltar atrás no passo dado em direção ao mundo global.
As fronteiras estão cada vez mais fluidas, com todos cada vez mais inter-
conectados. As democracias que existem hoje responderam a um mundo
bipolar, no qual duas esferas de influência se sobrepunham. No entanto,
agora, as circunstâncias mudaram, sendo imperativo que os sistemas de-
mocráticos e suas instituições passem a refletir essa evolução.
Vários países no mundo estão com o seu rumo à pós-democracia in-
certo. Dúvida sobre se o populismo acarretará o “fim da política”, em
consequência da pós-democracia, ou se a própria democracia será capaz
de evoluir e interromper esse movimento, resta martelando no incons-
ciente das pessoas. Esse é um movimento que se iniciou há alguns anos e
que não parece estar no fim.
Mostra-se importante olhar com mais atenção às tendências atuais
para poder trabalhar com uma eventual guerra contra a democracia. En-
tender as causas dessa guerra e seus efeitos é fundamental para que se
escolha um futuro tangível para a política.

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Referências bibliográficas

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120 Cadernos ASLEGIS | 62 • 1o Semestre 2022


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