Você está na página 1de 22

XI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA

1 a 5 DE SETEMBRO DE 2003, UNICAMP, CAMPINAS, SÃO PAULO


GT 13 – PARTICIPAÇÃO SOCIAL E CIDADANIA

Tradições associativas populares e democracia:


uma análise comparativa das experiências de Orçamento Participativo na
Região Metropolitana de Porto Alegre

Prof. Dr. Marcelo Kunrath Silva


(Departamento de Sociologia; Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural;
Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFRGS)
Endereço Eletrônico: mksilva@vortex.ufrgs.br
2

RESUMO

Diversos enfoques de análise da questão democrática enfatizam a relação


positiva entre organização societária e processos democráticos. Esta perspectiva,
disseminada com o trabalho de Alexis de Tocqueville sobre “A democracia na América”,
encontra-se também na teoria habermasiana, nas discussões sobre sociedade civil, na
abordagem do “capital social”, nos estudos sobre o associativismo, entre outros. O ponto
em comum entre estas diferentes abordagens é o destaque à importância dos processos
organizativos e da atuação dos atores sociais para a implantação, sustentação e/ou
qualificação da democracia. Sejam funcionando como “escolas” de cidadania, sejam
possibilitando a expressão pública de representações e interesses sociais, sejam controlando
e orientando a ação estatal, sejam desenvolvendo relações de confiança e envolvimento
coletivo, entre outras potencialidades, as organizações sociais desempenhariam um papel
fundamental para a efetivação da democracia. O objetivo deste trabalho é problematizar
esta perspectiva a partir da seguinte questão: quais formas de organização e atuação dos
atores sociais efetivamente contribuem para o fortalecimento da democracia (e, mais
especificamente, para o fortalecimento de processos democráticos centrados na participação
dos atores sociais na gestão pública)? A partir da fundamentação empírica fornecida pela
análise comparativa de experiências de Orçamento Participativo em três municípios da
Região Metropolitana de Porto Alegre, questiona-se uma apreensão unificadora dos atores
sociais, que deixa de perceber a sociedade civil como um espaço de diversidade, de
relações de poder e de conflitos, no qual confrontam-se atores marcados por diversas
orientações e mantendo diferentes relações com a democracia (e, no caso específico deste
estudo, com os processos participativos). Neste sentido, a mera “densidade associativa”
pode não ser, como transparece em algumas abordagens, um fundamento seguro do
processo de democratização, sendo preciso uma investigação qualitativa deste tecido
associativo, de suas representações e práticas em relação à democracia.
3

INTRODUÇÃO: ASSOCIATIVISMO E DEMOCRACIA.

O debate sobre a questão democrática no Brasil contemporâneo, que ganha


amplitude no final dos anos 70 e início dos 801, implicou a necessidade de importantes
mudanças nas concepções teóricas até então predominantes entre analistas e agentes da vida
sócio-política do país. Um dos aspectos centrais nesta mudança, diretamente relacionado ao
tema deste artigo, poderia ser denominado de “(re)descoberta da sociedade civil”(COSTA,
1994).
Segundo NUN (1989), a tradição política e analítica latino-americana (incluída
a brasileira) é fortemente marcada por aquilo que ele denomina de “visão heróica da
política”, ou seja, por uma concepção de que a política é assunto restrito a especialistas,
espaço de ações grandiosas e gloriosas, e não algo que diga respeito às pessoas comuns e ao
seu cotidiano, vistos como politicamente “insignificantes”. Nesta concepção, o Estado
tende a assumir a centralidade na estruturação e condução dos processos políticos, sendo,
em grande medida, visto como o único agente com capacidade de atuação autônoma e
instituinte e, ao mesmo tempo, um espaço a ser conquistado por aqueles que pretendam ser
atores politicamente relevantes (SADER; PAOLI, 1986).
No Brasil, a experiência dos governos ditatoriais pós-64, ao lado do
desenvolvimento de novas formas de organização e atuação sócio-política dos atores
sociais, ao longo dos anos 70 e 80 (analisado, em grande medida, pelo campo de
investigações e discussões sobre “movimentos sociais”), contribuiu para e possibilitou a
ruptura com esta “visão heróica” e uma re-significação profunda dos processos políticos. A
valorização das relações e espaços da vida cotidiana como processos marcados por uma
dimensão política inerente, a identificação do poder como elemento constitutivo das
relações sociais, a adoção de uma perspectiva de análise que salientava a capacidade
instituinte dos atores sociais, a valorização da sociedade como campo fundamental das
estratégias de transformação social, entre outros aspectos, possibilitaram uma
complexificação do entendimento da política e a sua ampliação para um âmbito muito
maior que os processos e atores políticos institucionais. Assim, a sociedade e seus atores

1
Dois trabalhos pioneiros e marcantes neste período inicial de discussão foram COUTINHO (1980) e
WEFFORT (1984).
4

passam a ser interpretados como agentes politicamente relevantes e, em vista disto,


incorporados às análises sobre os processos políticos.
Assim, esta “redescoberta da sociedade civil” colocou, para o debate
democrático, a necessidade e/ou a possibilidade de pensar a democracia para além dos
processos políticos institucionais, de forma a incorporar às suas preocupações de análise as
complexas articulações entre as relações de poder de âmbito societário e a política
institucional. Tal perspectiva mostrou-se fundamental no sentido de evitar o isolamento dos
processos políticos em relação ao contexto sócio-econômico-cultural no qual se inserem e
pelo qual são condicionados. Isto não significa, no entanto, a retomada de uma perspectiva
determinista, que rejeita a autonomia relativa dos processos políticos, mas é, ao contrário,
uma tentativa de apreender as conexões entre processos cujos recortes disciplinares muitas
vezes tendem a fragmentar e ocultar. Como salientam REIS; CHEIBUB (1993:235), não há
como negar que determinados aspectos críticos [do processo de democratização] têm sido
negligenciados por conta do tratamento de facto da política enquanto variável
independente de fatores sociais e econômicos.
Articulada a estas re-orientações teóricas, observa-se a introdução de uma nova
conceituação sobre o próprio sentido da democracia, que se afasta e rejeita a redução desta
aos procedimentos e dinâmicas no âmbito estrito das instituições políticas democráticas
(sem, no entanto, desvalorizar ou desprezar estas instituições). Esta concepção se
caracteriza por aquilo que AVRITZER (1994:39) define como uma “teoria societária da
democracia”. De acordo com esta perspectiva, sob forte influência da teoria habermasiana,
a democracia se constitui em um fluxo de comunicação que tem o seu início nas
redes de comunicação da esfera pública. Os acordos políticos resultantes
desses processos são legalmente institucionalizados e administrativamente
implementados. Diferentemente do elitismo democrático, a democracia, nessa
acepção, é estruturalmente dependente das redes de comunicação existentes na
esfera pública, redes essas que estabelecem a direção do processo de produção
de poder nas sociedades democráticas. (AVRITZER, 1996:21)

Esta ampliação do conceito de democracia para além dos procedimentos


políticos formais (enfatizando, novamente, que isto não significa desconsiderá-los), implica
novos enfoques de análise dos fenômenos políticos e do próprio significado da política,
abrindo espaço para uma sociologia política da democracia. Como destacam HELLER;
ISAAC (2002:605),
5

Temos, assim, que olhar além das fachadas macroinstitucionais dos


parlamentos, constituições e eleições e analisar as instituições intermediárias e
locais e as arenas consultivas existentes nos interstícios do Estado e sociedade,
onde as formas de democracia quotidiana florescem ou morrem. É necessária,
dito de outra forma, uma sociologia política da democracia, uma sociologia
que reconheça especificamente que uma democracia ativa tem que ser uma
democracia efetiva. (...) Uma democracia efetiva tem duas características
inter-relacionadas – uma sociedade civil robusta e um Estado capaz. Uma
sociedade civil livre e dinâmica torna o Estado e os seus agentes mais
responsabilizáveis, ao assegurar que a participação popular não ocorre
apenas através de eleições (...), mas também através de feedback e negociação
constantes. A sociedade civil é essencial à prática democrática pois amplia o
alcance e o estilo reivindicativo além do interesse representativo formal
característico da sociedade política. Movimentos sociais, associações e
sindicatos mobilizam novos atores e levantam novas questões. Neste processo,
não só proporcionam um contrapeso em relação a formas mais burocráticas e
centralizadas de representação de interesses, como também criam novas
solidariedades, que desafiam diretamente, em muitas instâncias, certas
desigualdades, impulsionando desta forma a própria democratização da
sociedade em si. O cerne da questão é que a saúde de uma democracia é
medida tanto pela natureza qualitativa dos seus padrões de associação quanto
pelo caráter formal das suas instituições, e (...) estas duas variáveis se
condicionam mutuamente – os padrões associativos são condicionados pelo
envolvente institucional e a sensibilidade institucional é condicionada pela
vitalidade associativa.

Conforme as citações acima, percebe-se que um aspecto que ganha destaque


nesta concepção ampliada da democracia é a dimensão associativa da sociedade, ou seja,
aquele campo de atores, organizados formalmente ou não, que conformam a dimensão da
esfera societária apreendida pelo conceito de “sociedade civil”. Segundo ARATO; COHEN
(1994:154)
a diferenciação estrutural do mundo da vida (um aspecto dos processos de
modernização) se dá por intermédio da emergência de instituições
especializadas na reprodução de tradições, solidariedades e identidades. É esta
dimensão do mundo da vida a que melhor corresponde ao nosso conceito de
sociedade civil.

Diversos enfoques de análise da questão democrática enfatizam uma relação


positiva entre formas de organização societária e processos democráticos. Esta perspectiva,
por exemplo, encontra-se em autores clássicos do pensamento político, como Rousseau e
John Stuart Mill, analisados pelo trabalho de PATEMAN (1992). Segundo a autora, estes
autores fornecem fundamentos para uma teoria da democracia participativa, que rejeita os
6

argumentos da incapacidade de participação do cidadão comum e da ameaça que tal


participação traria para a estabilidade democrática, argumentos estes constituintes do
chamado “elitismo democrático”. Nas palavras da autora,
A existência de instituições representativas a nível nacional não basta para a
democracia; pois o máximo de participação de todas as pessoas, a socialização
ou „treinamento social‟, precisa ocorrer em outras esferas, de modo que as
atitudes e qualidades psicológicas possam se desenvolver. Esse
desenvolvimento ocorre por meio do próprio processo de participação. A
principal função da participação na teoria da democracia participativa é,
portanto, educativa; educativa no mais amplo sentido da palavra, tanto no
aspecto psicológico quanto no de aquisição de prática de habilidades e
procedimentos democráticos. Por isso, não há nenhum problema quanto à
estabilidade de um sistema participativo; ele se auto-sustenta por meio do
impacto educativo do processo participativo. A participação promove e
desenvolve as próprias qualidades que lhe são necessárias; quanto mais os
indivíduos participam, melhor capacitados se tornam para fazê-
lo.(PATEMAN, 2002:60-61)

Esta articulação entre práticas associativas, participação sócio-política e


democracia é defendida também pelo trabalho de Alexis de Tocqueville sobre “A
democracia na América”. Nesta obra clássica, o autor ancora sua explicação dos avanços da
sociedade norte-americana, em termos de igualdade e liberdade, na existência de uma
sólida base associativa entre a população. É esta vida associativa intensa que constitui o
contraponto às tendências de individualização excessiva e, como a outra face desta
individualização, de ameaça de despotismo por parte de um Estado que concentra poder e
não encontra mais os limites impostos pelos poderes particulares das sociedades
aristocráticas. Através da vida associativa, então, indivíduos comuns aprenderiam a
desenvolver práticas coletivas e a importância destas para si e para a vida em sociedade.
Como salienta TOCQUEVILLE (2000:143), os homens, nas associações,
aprendem a submeter sua vontade à de todos os outros e a subordinar seus
esforços particulares à ação comum, coisas que não é menos necessário saber
nas associações civis do que nas associações políticas. (...) Portanto, as
associações políticas podem ser consideradas como grandes escolas gratuitas,
em que todos os cidadãos vão aprender a teoria geral das associações. (...)
Quando os deixam [os indivíduos] associar-se livremente em todas as coisas,
acabam vendo, na associação, o meio universal e, por assim dizer, único, que
os homens podem utilizar para atingir os diversos fins que se propõem. Cada
nova necessidade desperta imediatamente a idéia de se associar.
7

Aqui, novamente, encontra-se a noção de que a participação social e política


constitui uma verdadeira “escola” de cidadania, ensinando as habilidades necessárias ao
agir coletivo e, ao mesmo tempo, forjando uma predisposição a tal agir, em contraposição
às tendências individualizantes da sociedade moderna.
A teoria habermasiana também salienta esta conexão entre associativismo e
democracia. Na medida em que a existência de uma efetiva democracia depende da
articulação entre a esfera político-institucional e a esfera societária, através da mediação da
esfera pública, na qual as demandas, interesses e problemas sociais consigam expressar-se
e, de alguma forma, orientar a atuação dos agentes e instituições político-administrativas,
torna-se imprescindível a existência de atores sociais capazes de organização e atuação
autônoma. Como destaca COSTA (1994:44), A sociedade civil, com seu conjunto de
associações voluntárias, independentes do sistema econômico e político-administrativo,
absorve, condensa e conduz de maneira amplificada para a esfera pública os problemas
emergentes nas esferas privadas, no mundo da vida. Ou seja, são as formas de
associativismo civil, na medida em que tiverem capacidade e autonomia, que irão garantir
que o fluxo de influências se oriente da sociedade para as instituições políticas, garantindo
o controle e a abertura destas para os interesses societários, e não ao contrário, com a
subordinação da sociedade e seus atores aos interesses e à racionalidade da esfera político-
administrativa.
Por fim, outra fonte teórica que tem destacado a relação positiva entre
associativismo e democracia encontra-se nos trabalhos de autores que adotam a abordagem
do “capital social”. Colocando os agentes em relação, estabelecendo processos de
comunicação entre eles, forjando identidades coletivamente compartilhadas, criando
compromissos e responsabilidades com o coletivo, as organizações e as redes que
compõem o tecido associativo tendem a gerar relações de confiança. Tal confiança, por
outro lado, é fundamental no desenvolvimento de processos associativos, uma vez que é a
partir dela que se podem estabelecer objetivos comuns e, mais do que isso, haver um
engajamento dos agentes na realização destes objetivos na medida em que há uma
expectativa de que todos (ou pelo menos uma parcela significativa) irão igualmente
engajar-se. Como salienta PUTNAN (1996:180), A confiança promove a cooperação.
8

Quanto mais elevado o nível de confiança numa comunidade, maior a probabilidade de


haver cooperação. E a própria cooperação gera confiança.
Assim, as práticas associativas contribuem para a constituição daquilo que
alguns autores têm conceituado como “capital social”, ou seja, confiança, normas e
sistemas, que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações
coordenadas (PUTNAN, 1996:177). Este “capital social” tende a ser produzido e
acumulado através da ação e cooperação coletiva, forjando articulações e relações de
confiança que facilitam a geração de práticas coletivas em outros campos, não
necessariamente relacionados com aquele das relações originais.
Para PUTNAN, este “capital social” acumulado, este estoque de confiança e
cooperação, é um fator central na explicação do bom desempenho das instituições políticas
democráticas, condicionando as mesmas. Nas suas palavras,
o contexto social e a história condicionam profundamente o desempenho das
instituições. Quando o solo regional é fértil, as regiões sustentam-se das
tradições regionais, mas quando o solo é ruim, as novas instituições definham.
A existência de instituições eficazes e responsáveis depende, no jargão do
humanismo cívico, das virtudes e práticas republicanas. Tocqueville tinha
razão: diante de uma sociedade civil vigorosa, o governo democrático se
fortalece em vez de enfraquecer.(1996:191 – destaque no original)

O ponto em comum entre as diversas abordagens vistas acima é, assim, o


destaque à importância dos processos organizativos e da atuação dos atores sociais para a
implantação, sustentação e/ou qualificação da democracia. Sejam funcionando como
“escolas” de cidadania, sejam possibilitando a expressão pública de representações e
interesses sociais, sejam controlando e orientando a ação estatal, sejam desenvolvendo
relações de confiança e envolvimento coletivo, entre outras potencialidades, as
organizações sociais desempenhariam um papel fundamental para a efetivação da
democracia.
A partir destas considerações teóricas (e, às vezes, normativas), coloca-se, para
a investigação empírica, a necessidade de avaliar se e, em caso afirmativo, como se dá esta
relação hipoteticamente estabelecida entre associativismo e democracia. O objetivo deste
trabalho é problematizar esta perspectiva a partir da seguinte questão: quais formas de
organização e atuação dos atores sociais efetivamente contribuem para o fortalecimento da
9

democracia (e, mais especificamente, para o fortalecimento de processos democráticos


centrados na participação dos atores sociais na gestão pública)?
A partir da fundamentação empírica fornecida pela análise comparativa de
experiências de Orçamento Participativo em três municípios da Região Metropolitana de
Porto Alegre – Alvorada, Gravataí e Porto Alegre –, questiona-se uma apreensão que
unifica e iguala os atores sociais, deixando de perceber a sociedade civil como um espaço
de diversidade, de relações de poder e de conflitos, no qual confrontam-se atores marcados
por diversas orientações e mantendo diferentes relações com a democracia (e, no caso
específico deste estudo, com os processos participativos). Neste sentido, a mera “densidade
associativa” pode não ser, como transparece em algumas abordagens, um fundamento
seguro para o processo de democratização, sendo preciso uma investigação qualitativa deste
tecido associativo, de suas representações e práticas em relação à democracia.

CONTEXTUALIZANDO OS CASOS EM ANÁLISE: A REGIÃO


METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE

A Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA) é constituída, atualmente,


por 31 municípios, abrigando uma população de 3.715.430 habitantes (correspondendo a
36,5% da população do Estado do Rio Grande do Sul – dados para o ano de 2000). A partir
dos anos 50, esta região conhece um intenso processo de concentração das atividades
produtivas e, conseqüentemente, de atração populacional. Durante o período situado entre a
década de 50 e meados da década de 70, as principais atividades econômicas tenderam a
concentrar-se no eixo formado pela BR-116, numa linha que se estende de Porto Alegre até
o município de Novo Hamburgo. De outro lado, os municípios situados fora deste eixo,
particularmente na parte leste da RMPA, tenderam a constituir-se em áreas de habitação
para a população de baixa renda atraída para a região (população esta sem condições de
arcar com os custos da moradia em Porto Alegre ou nos outros municípios economicamente
mais dinâmicos, situados no eixo formado pela BR-116, tais como Canoas, São Leopoldo e
Novo Hamburgo).
Em virtude deste processo de estruturação da RMPA, dois municípios
abordados neste estudo (Alvorada e Gravataí), situados na parte leste da Região, vão
constituir-se, a partir dos anos 50, como “cidades-dormitório”. De um lado, seu processo de
10

urbanização foi marcado pela ação de agentes loteadores privados, submetidos a pouco ou
nenhum controle público, que buscavam fundamentalmente a produção de lotes de baixo
custo, acessíveis aos segmentos pobres atraídos para a RMPA. Dentro desta lógica de
produção de lotes a baixo custo, os loteadores buscavam o barateamento dos lotes através
da não instalação de infra-estrutura básica nos loteamentos, muitos dos quais irregulares,
constituindo assim bairros totalmente desprovidos de bens e serviços públicos.
De outro lado, além da precariedade urbana, outra característica contida na
definição destes municípios como “cidades-dormitório” é a fragilidade de suas estruturas
econômicas. Excluídos do eixo mais dinâmico da região, concentrador das atividades
industriais, os municípios de Alvorada e, até meados dos anos 70, Gravataí, terão suas
economias organizadas fundamentalmente em torno de atividades comerciais e de serviços
para o atendimento das necessidades de populações formadas, na sua grande maioria, por
segmentos de baixa renda e que necessitavam buscar oportunidades de trabalho nos
municípios vizinhos. Além disto, Gravataí também apresenta algum volume de produção
primária, que no entanto não possui capacidade de dinamizar a vida econômica do
município.
Na trajetória do município de Gravataí, no entanto, observa-se uma alteração
significativa desta realidade econômica que deve ser destacada. A partir da década de 70,
Gravataí é palco de um processo de industrialização que altera radicalmente a sua estrutura
sócio-econômica, transformando-se de “cidade-dormitório” em um dos pólos mais
dinâmicos de atividade industrial no Estado do Rio Grande do Sul (processo que se
consolida com a instalação do complexo automotivo da General Motors na cidade, no final
dos anos 90). Inicialmente, esta alteração está relacionada, pelo menos, a três fatores: a
saturação do eixo constituído em torno da BR-116; a abertura da BR-290, estrada que passa
por Gravataí e liga Porto Alegre à BR-101 e, assim, ao centro do país; uma política
governamental de estímulo à industrialização através da constituição de distritos industriais.

TRAJETÓRIAS E CARACTERÍSTICAS DO ASSOCIATIVISMO POPULAR EM


ALVORADA, GRAVATAÍ E PORTO ALEGRE

Uma primeira aproximação ao associativismo nos municípios em análise pode


ser feita observando-se as entidades formalmente registradas junto às Prefeituras
11

Municipais de Alvorada e Gravataí, responsável legal pela emissão do atestado de


funcionamento das entidades municipais2:
Quadro 1. Número e tipo de entidades cadastradas junto às Prefeituras Municipais de
Alvorada e Gravataí
Alvorada (1) Alvorada (2) Gravataí (1) Gravataí (2)3
Associações de Moradores (A) 44 42 19 13
Clubes de Mães (B) - - 2 2
Entidades Comunitárias (A+ B) 44 (80%) 42 (59,1%) 21 (42,8%) 15 (36,6%)
Entidades Esportivas/Recreativas - 4 - 1
Entidades Assistenciais/Beneficientes 9 (16,4%) 17 (23,9%) 10 (20,4%) 12 (29,2%)
Entidades Religiosas 1 4 6 3
Entidades Escolares - - 7 5
Outras 1 4 5 5
Total 55 71 49 41
Fontes: Alvorada (1) – cadastro do CRC e entidades credenciadas no Conselho Municipal de Assistência
Social, em 19994; Alvorada (2) – cadastro de entidades da Prefeitura Municipal de Alvorada, de 1992;
Gravataí (1) – cadastro de entidades da Prefeitura Municipal de Gravataí (1999-2000); Gravataí (2) – cadastro
do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Em Alvorada encontramos ainda 29 entidades credenciadas no Conselho


Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente, mas que não apresentam uma
discriminação por tipos de entidade. Além disso, estão conveniadas junto à Prefeitura de
Alvorada 30 Creches Comunitárias, muitas delas ligadas a Associações de Moradores.
Comparando-se estes dados com os dados referentes ao tecido associativo de
Porto Alegre, observa-se que esta última apresenta uma maior densidade associativa,
quando são levadas em conta as entidades formalmente cadastradas. Devido a algumas
dificuldades do cadastro de entidades da Prefeitura Municipal de Porto Alegre que foi
analisado (obtido no ano de 1999), que apresenta entidades com mais de um registro, não é
possível determinar com precisão o número entidades, mas pode-se estimar a existência de
algo em torno de 1.700 entidades cadastradas junto ao Governo Municipal5. A
superioridade quantitativa do associativismo em Porto Alegre se expressa claramente

2
O atestado de funcionamento é um documento indispensável, por exemplo, para as entidades terem acesso a
recursos de fundos municipais como o de Assistência Social e da Criança e Adolescente ou ainda para
estabelecerem convênios com órgãos e instituições públicas.
3
Também estão inscritos no CMDCA de Gravataí 9 órgãos governamentais, mas que não foram
contabilizados pois não são entidades da sociedade civil.
4
A Prefeitura de Alvorada não possui mais um cadastro único de entidades, tendo descentralizado o processo
de credenciamento que é feito em órgãos específicos, de acordo com as particularidades de cada entidade.
5
O cadastro consultado apresentava 1.993 registros.
12

quando comparada a proporção entre o número de entidades e a população dos três


municípios6:
 Alvorada – 1 entidade por 2.282 habitantes;
 Gravataí – 1 entidade por 4.204 habitantes;
 Porto Alegre – 1 entidade por 758 habitantes.

Tomando-se apenas as Associações de Moradores cadastradas, que são as


entidades com maior envolvimento com o Orçamento Participativo, que será analisado
adiante, obtém-se a seguinte proporção entre entidades cadastradas e população municipal7:
 Alvorada – 1 entidade por 3.682 habitantes;
 Gravataí – 1 entidade por 10.843 habitantes;
 Porto Alegre – 1 entidade por 2.387 habitantes.

Estes dados quantitativos demonstram um fato já destacado por diversos


pesquisadores, qual seja, a existência de uma intensa dinâmica associativa na cidade de
Porto Alegre, diferenciando-a, em certa medida, mesmo de municípios bastante próximos
em termos espaciais.8
No entanto, se estes dados cadastrais possibilitam uma aproximação da
realidade associativa local, apresentam, por outro lado, sérias distorções que comprometem
sua utilização como material para uma caracterização mais qualificada do associativismo
nos municípios. Por um lado, existe um importante efeito de distorção devido ao fato de
que alguns tipos de entidades, pela natureza de suas atividades, tendem a necessitar de um
cadastramento formal, enquanto outras não. Neste sentido, por exemplo, entidades que
desenvolvem trabalhos educativos com crianças ou de assistência social dependem de
cadastramento formal para terem acesso a convênios e/ou recursos de fundos públicos,
além da obtenção de seus alvarás de funcionamento. Já entidades esportivas e recreativas,
ao contrário, geralmente não buscam recursos através de instâncias formais e o
desenvolvimento de suas atividades independe da inscrição em cadastros municipais. O

6
Esta proporção foi estabelecida tomando-se o cadastro no qual estava inscrito o maior número de entidades
em cada município e dividindo-se pela população estimada para 1996, segundo a Base de Informações
Municipais: Alvorada, 162.005 habitantes; Gravataí, 206.023 habitantes; Porto Alegre, 1.288.879 habitantes.
7
Esta proporção foi estabelecida tomando-se o cadastro no qual estava inscrito o maior número de
Associações de Moradores em cada município. No caso de Porto Alegre, foi feito um cálculo estimando-se, a
partir dos cadastros da Prefeitura Municipal, a existência de 540 Associações de Moradores.
8
Não é objetivo deste trabalho enfocar as origens desta tradição associativa. Análises referentes aos processos
de organização dos setores populares em Porto Alegre podem ser encontradas em ABERS (1998), BAIERLE
(1992), SILVA (2001).
13

resultado, assim, quando se tomam apenas os dados cadastrais como instrumento de


caracterização do tecido associativo municipal, tende a ser a sobre-representação de alguns
tipos de entidades e a sub-representação de outros tipos. Um exemplo ilustrativo deste
problema se expressa no caso dos Clubes de Mães em Alvorada. Tomando-se as duas
fontes cadastrais, pode-se concluir, de forma equivocada, pela inexistência desta forma
associativa no município. Utilizando os jornais locais como fonte, no entanto, encontramos
referência constante aos Clubes de Mães, que apresentam uma presença significativa na
vida social e política municipal.
Por outro lado, os números destes cadastros ocultam o fato de que muitas
entidades e organizações possuem uma existência meramente formal, sem apresentar
nenhum tipo de atuação mais efetiva. A desconsideração deste aspecto pode levar ao
equívoco de supor a existência de práticas associativas onde, de fato, apenas existem
estruturas formais desprovidas de qualquer vida associativa. Neste sentido, por exemplo, é
ilustrativa a fala de um entrevistado de Alvorada sobre as associações de moradores do
município, onde fica clara a grande desproporção entre o número de entidades formalmente
existentes e aquelas efetivamente atuantes:
Tem umas setenta e duas [associações de moradores em Alvorada], só que das
setenta e duas, digamos assim, deve ter hoje funcionando plenamente,
plenamente digamos assim meio [inaudível], papelada não em dia, tudo mais,
deve ter umas quarenta por aí. [Conselheiro do OP]

É preciso ter presente que esta estimativa é algo subjetivo, se diferenciando, por
exemplo, da avaliação feita por outro entrevistado, que coloca: Hoje nós estamos com umas
30 [associações de moradores]. Temos 46, mas das 46 tem umas 20 ativas mesmo.
[Integrante da Prefeitura] 9
Por fim, os problemas destas informações cadastrais não se restringem a uma
questão quantitativa, mas também são insuficientes para uma apreensão mais qualitativa
destes tecidos associativos. Mesmo que o número de entidades seja um indicador
importante na caracterização do associativismo local, tal caracterização torna-se bastante
empobrecida (e, às vezes, falsificadora) se não levar em conta a “qualidade” deste

9
Na verdade, parece que a informação mais correta se encontra entre estas duas previsões. Em pesquisa junto
às Associações de Moradores de Alvorada, no ano de 2001, foram localizadas e entrevistadas 30 entidades
que realmente apresentavam alguma vida associativa. Por outro lado, mais de uma dezena de entidades
formalmente registradas estavam, na verdade, desativadas.
14

associativismo. Para uma caracterização mais qualitativa torna-se necessário, então, uma
pequena recuperação da trajetória associativa municipal, na qual se geraram aquelas
características que hoje podem ser apreendidas através de uma análise mais aprofundada.
Nesta caracterização será enfatizada a trajetória das associações de moradores, que, de um
lado, tende a ser o principal formato associativo dos setores populares nos municípios
analisados e, de outro, são aquelas entidades que têm estabelecido uma relação mais estreita
com o OP (proximidade esta que está longe de significar adesão, conforme se verá ao longo
da análise).
O primeiro aspecto a ser destacado nesta caracterização do associativismo
existente nos três municípios refere-se ao período de constituição das organizações. Os
dados obtidos através de questionário aplicado pelo autor ao universo de Associações de
Moradores em atividade nos municípios de Alvorada e Gravataí (sendo, em ambos os
casos, identificadas 30 entidades às quais foram aplicados questionários), trazem as
seguintes informações: em Alvorada, 16,7% das associações foram criadas até 1978, 36,7%
constituíram-se entre 1979-1988 e 33,4% a partir de 1989; em Gravataí, apenas 6,6%
surgiram até 1978, 63,3 foram criadas entre 1979-1988 e 23,3% foram constituídas a partir
de 1989.
Para Porto Alegre, possuímos duas fontes de informações sobre o período de
surgimento de organizações sociais. Em primeiro lugar, os dados coletados pelo autor junto
a 118 entidades de Porto Alegre10 para a pesquisa de AVRITZER (2000), trazem as
seguintes informações: 29,7% das entidades haviam sido criadas até 1979, 42,4% foram
criadas no período de 1980-1989 e 28% surgiram a partir de 1990. Por outro lado, dados
parciais de um survey que está sendo desenvolvido, juntamente com Gianpaolo Baiocchi,
com as Associações de Moradores de Porto Alegre nos informam que: 20,5% das 98
associações entrevistadas até o momento haviam sido criadas até 1978, 42,9% foram
criadas entre 1979-1988 e 33,7 foram constituídas a partir de 1989.
Comparando-se as informações acima, percebe-se uma certa semelhança em
termos de dinâmica associativa, mas uma diferença em termos dos valores em cada um dos
três momentos. Assim, por um lado, observa-se que, em todos os três casos, o momento de
maior intensidade no surgimento de organizações sociais localiza-se na década de 1980, na

10
Entre estas 118 entidades, 74,6% eram associações de moradores/comunitárias.
15

qual, principalmente no caso de Gravataí, há uma certa “efervescência” em termos do


desenvolvimento de práticas associativas. Por outro lado, no entanto, os dados também
demonstram que Porto Alegre possui uma vida associativa mais antiga, com um percentual
bastante superior de entidades criadas até o final dos anos 70, em especial quando
comparada com Gravataí. Frente a estes dados, uma primeira qualificação que pode ser
feita é que o associativismo, em Porto Alegre, não só é quantitativamente superior aos
outros casos, mas, também, é mais antigo e, provavelmente, mais enraizado na dinâmica
social da cidade.
Quando se desloca a análise para o processo de formação destas organizações
sociais, é observada uma significativa diferenciação entre, de um lado, Porto Alegre e, de
outro, Alvorada e Gravataí. Mesmo que em todos os três casos se identifique claramente a
presença de elementos clientelistas e conservadores na formação e atuação das associações
de moradores, o caso de Porto Alegre se afasta dos outros pela constituição de um
segmento com características distintas, questionando e tensionando as práticas tradicionais
de subordinação das formas associativas populares à reprodução das elites políticas locais.
Este aspecto de confrontação e de busca de autonomia para a organização e atuação sócio-
política dos setores populares se expressa pela própria denominação de auto-identificação
das lideranças e ativistas atuantes neste campo: segmento combativo do movimento.
Mesmo que, em geral, quantitativamente minoritário entre o universo de
associação de moradores, este segmento combativo, constituído a partir do trabalho
desenvolvido por diversos agentes sociais e políticos desde a segunda metade dos anos 70
(setores da Igreja Progressista, antigas lideranças do trabalhismo, ONGs, militantes de
partidos de esquerda clandestinos, militantes dos novos partidos constituídos a partir de
1979 – especialmente aqueles ligados ao PT, PDT e PMDB), conseguiu ter uma presença
ativa e significativa na vida política de Porto Alegre, ao longo dos anos 80 e 90.
Nos casos de Alvorada e Gravataí, por outro lado, mesmo encontrando algumas
entidades e lideranças orientadas por uma perspectiva mais autônoma e “combativa”, pode-
se caracterizar a maioria das associações de moradores como entidades envolvidas e
subordinadas nas tradicionais relações de clientelismo desenvolvidas pelos agentes
políticos locais. Muitas destas entidades, subordinadas a grupos partidários que as utilizam
como instrumentos nas suas estratégias de disputa eleitoral, acabam perdendo ou não
16

construindo uma verdadeira dimensão associativa, constituindo-se em estruturas formais


desprovidas de qualquer conteúdo e significado coletivo.11
Assim, com base nesta caracterização extremamente sucinta da formação das
associações de moradores nos três municípios12, pode-se concluir que o tecido associativo
popular de Porto Alegre (cujo núcleo central é constituído por estas entidades), além de ser
mais denso e mais antigo (e, assim, provavelmente mais enraizado na vida da cidade),
também possui segmentos mais autônomos em relação às estruturas de dominação
clientelista, o que possibilita maior capacidade de iniciativa, formulação de demandas e
defesa de interesses próprios frente aos agentes políticos e governamentais da cidade.

ASSOCIATIVISMO E PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO OP

Uma primeira caracterização sobre a participação no OP nos municípios em


análise refere-se ao número de participantes nas plenárias, expressos no gráfico abaixo:

11
Qualquer observador da realidade das associações de moradores de Porto Alegre poderia identificar
exemplos deste processo também neste caso. O autor concorda com este argumento, mas busca destacar que a
especificidade do caso de Porto Alegre é que, ao lado (e, muitas vezes, contra) esta tradição clientelista,
formou-se um segmento combativo significativo, que foi/é responsável por algumas particularidades do
associativismo local (e, no caso deste estudo, por diferenças na forma de relação entre associações e
participação social no OP que serão discutidas a seguir).
12
Para uma análise detalhada e aprofundada deste processo, envolvendo também o município de Viamão, ver
SILVA (2001)
17

Gráfico 1. Porcentagem de participações nas Plenárias do Orçamento Participativo


nos municípios de Alvorada, Gravataí e Porto Alegre, proporcionalmente à população
municipal – 1997-200013

7,00%

6,00%

5,00%

4,00%
Alvorada

Gravataí
3,00%

Porto Alegre

2,00%

1,00%

0,00%
1997 1998 1999 2000

Observando o Gráfico, identifica-se uma significativa superioridade, em termos


do volume de participação nas plenárias do OP, dos municípios de Alvorada e,
especialmente, Gravataí, quando comparados com o volume de participação encontrado em
Porto Alegre nos mesmo período (em particular nos anos de 1999 e 2000, quando a
diferença se apresenta bastante significativa).
Estes dados quantitativos sobre a participação no OP, no entanto, precisam ser
complementados por uma análise qualitativa desta participação, que permita diferenciar
aquilo que a quantificação tende a tomar como semelhantes. Neste sentido, a partir da

13
Esta proporção em relação à população municipal é, de fato, equivocada, pois o total de participações nas
duas rodadas de Plenárias do OP oculta o fato de que muitos dos participantes da primeira rodada também
estão presentes na segunda rodada, levando a uma dupla contagem. Neste sentido fala-se em participações e
não em participantes, pois o mesmo participante pode ter mais de uma participação. Em vista disso, a
referência à proporção da população municipal tem unicamente o objetivo de dimensionar o volume de
participação em relação ao tamanho da população municipal, não devendo ser tomada como uma
proporcionalidade real, equívoco que se observa em alguns participantes do processo e, mesmo, analistas.
18

investigação empírica desenvolvida junto a estes municípios, é possível identificar


diferenças significativas entre a dinâmica participativa de Porto Alegre e a dinâmica
participativa de Alvorada e Gravataí, as quais resultam em processos de participação
qualitativamente distintos.
No caso de Porto Alegre, identifica-se a presença de uma mediação
desenvolvida pelas organizações sociais, especialmente as associações de moradores. São
estas organizações que, em grande medida, desenvolvem o trabalho de identificação e
construção das demandas sociais, de informação sobre o processo participativo, de
mobilização para a participação, de organização da intervenção social nas diferentes fases
do OP, de disputa pela definição de determinadas demandas como prioridades, entre outros
aspectos. Neste sentido, mesmo que muitas vezes a participação dos indivíduos ocorra a
partir da busca de resolução de problemas ou satisfação de interesses percebidos como
particulares, tal participação encontra-se inserida dentro de um processo de mobilização
coletiva, do qual é dependente para que obtenha êxito no atendimento da reivindicação. Ou
seja, indivíduos isolados das formas associativas, que estruturam em grande medida o
processo de participação no OP de Porto Alegre, tendem a ter pouca capacidade de
intervenção e influência sobre os resultados do processo.
Um segundo aspecto a ser ressaltado em relação à dinâmica participativa no OP
de Porto Alegre, é que esta mediação desenvolvida pelas organizações sociais tende a
limitar o número de pessoas mobilizadas para a participação. Em primeiro lugar, isto de
deve ao fato de que estas organizações possuem um âmbito limitado de intervenção e, por
conseqüência, seu esforço mobilizador tende a atingir um determinado segmento
populacional com o qual estas entidades possuem relações. Em segundo lugar, também há
uma seletividade em termos de locais, temas, pessoas, demandas a serem inseridas na
mobilização coletiva, pois estas lideranças tendem a desenvolver um processo de
negociação e definição de determinadas questões como prioritárias e/ou viáveis para serem
demandadas em detrimento de outras, fazendo com a lógica de mobilização não se guie por
uma preocupação simplista voltada apenas a mobilizar o maior número de pessoas. Mesmo
que a quantidade seja importante, ela é relacionada com outros aspectos (tensões que
determinada demanda pode gerar na “comunidade”, dificuldade em obter determinada
demanda que pode afetar a legitimidade das lideranças, potencial “político” de determinada
19

demanda, etc), que compõem um quadro complexo a ser levado em conta na escolha de
quem deve e quem não deve ser alvo do trabalho de mobilização para participação no OP
em cada momento.
Por fim, ao mesmo tempo que esta mediação (ou, mesmo, “filtragem”)
desenvolvida pelas entidades tende a limitar o número de participantes no OP, de outro
lado, os dados demonstram uma participação estável e continuada ao longo do tempo. Isto
se deve ao fato de que o núcleo de ativistas ligados às organizações, que atua neste
processo movido por orientações político-ideológicas e não apenas por demandas
pragmáticas e pontuais, tende a manter sua participação durante um período de tempo
relativamente longo (muitos deles, por mais de uma década), paralelamente a uma
constante renovação daqueles que se aproximam e se afastam do processo de acordo com o
êxito ou fracasso na obtenção de suas reivindicações mais imediatas. Isto faz com que haja
uma relativa permanência, que confere estabilidade ao processo, ao mesmo tempo que uma
dinâmica de entrada e saída de novas pessoas, algumas das quais acabam se constituindo
como lideranças, inserindo-se nas organizações e envolvendo-se no trabalho de
mobilização dos participantes mais eventuais.
Quando se compara esta dinâmica com aquela observada em Alvorada e
Gravataí, percebem-se profundas diferenças. A fragilidade associativa, somada à
generalizada subordinação das entidades às relações clientelistas com agentes políticos
partidários, tornou as associações de moradores destes municípios não apenas
despreparadas para assumirem um papel protagonista na construção da participação social
no OP destes municípios, mas, paradoxalmente, em muitos casos, as constituiu como um
obstáculo a esta participação, na medida em que tais entidades colocaram-se em oposição
direta ao OP (seja por identificá-lo como um “instrumento” do PT, seja por identificá-lo
como um mecanismo de esvaziamento do poder das entidades, que não teriam mais o
“privilégio” de fazerem a intermediação clientelista entre as demandas sociais e os agentes
políticos e governamentais).
Neste sentido, aquele papel de mediação identificado em Porto Alegre está
praticamente ausente nos outros dois casos. Na verdade, nestes casos há uma tendência ao
contato direto entre a população, em grande medida individualizada, e os agentes
governamentais, que assumem a quase totalidade daquelas “tarefas” de construção da
20

participação que, em Porto Alegre, são desenvolvidas pelas organizações sociais. Em visto
disso, a dinâmica participativa em Alvorada e Gravataí tende a girar, fundamentalmente,
em torno de uma mobilização baseada na busca da satisfação de demandas imediatas (que o
próprio governo municipal estimula, na medida em que um alto volume de participação é
identificado com o “sucesso” do OP). Tal característica pragmática desta participação tende
a ser um fator de significativa instabilidade nestas experiências de OP, uma vez que elas
são dependentes, quase que totalmente, de sua capacidade de gerar respostas em termos do
atendimento das obras e serviços públicos demandados. Particularmente no caso de
Alvorada, um município bastante pobre em termos de recursos para realização de
investimentos públicos, tal fator tem afetado de forma significativa a credibilidade na
participação no OP em anos mais recentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que pode concluir-se desta análise comparativa sobre a relação entre


associativismo e democracia (exemplificada pelas experiências empíricas de OP), é que ela
não é algo linear e predeterminado. Ou seja, não foi identificada uma relação positiva
automática entre as formas associativas constituídas ao nível da sociedade civil local e os
processos de participação social na gestão pública investigados. De fato, a forma tomada
por esta relação é diretamente dependente das características do tecido associativo local, as
quais derivam de sua trajetória histórica específica. Neste sentido, percebe-se que nos locais
onde houve uma experiência significativa de constituição e atuação de agentes sociais mais
autônomos e menos subordinados às relações clientelistas – como em Porto Alegre – é
estabelecida uma relação de adesão e sustentação dos processos participativos pelas
organizações sociais (ou, pelo menos, por uma parte significativa destas organizações), que
assim podem ser identificadas como um fator central na sustentação e legitimação de um
processo de democratização da gestão municipal através da participação direta dos cidadãos
na definição do orçamento público. Por outro lado, naqueles espaços onde predominam de
forma significativa as práticas de subordinação e dependência das formas associativas em
relação aos agentes político-partidários – em Alvorada e Gravataí –, a tendência é de
conformação de uma relação de rejeição e oposição aos processos participativos por parte
21

daquelas formas associativas, pois tal participação atenta contra os mecanismos


historicamente estabelecidos de intermediação de interesses e demandas, além de abalar as
bases do poder detido pelas “lideranças comunitárias” tradicionais.
Frente a isto, pode-se concluir que, ao contrário do que geralmente é
estabelecido pelas abordagens que trabalham com uma perspectiva homogeneizante e
idealizada da sociedade civil, as formas assumidas pelo associativismo civil não apresentam
nenhuma dimensão democrática e participativa inerente, podendo, ao contrário,
constituírem-se como agentes e estruturas ativas na reprodução das relações de submissão e
dominação existentes. Por outro lado, naquelas situações onde, fruto de uma trajetória
histórica, parcelas significativas da sociedade civil assumem uma dimensão organizadora e
mobilizadora dos interesses e demandas sociais, observa-se uma relação estreita entre
associativismo e democratização da gestão municipal, conforme ilustra de maneira
inequívoca o caso de Porto Alegre.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABERS, Rebecca. From clientelism to cooperation: local government, participatory policy,


and civic organizing in Porto Alegre, Brazil. Politics & Society, vol.26, n°4,
december/1998.
ARATO, Andrew; COHEN, Jean. Sociedade civil e teoria social. In: AVRITZER,
Leonardo (coord.). Sociedade civil e democratização. Belo Horizonte: Del Rey,
1994.
AVRITZER, Leonardo (coord.). Sociedade civil e democratização. Belo Horizonte: Del
Rey, 1994.
AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e
teoria democrática. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Editora da UFMG,
1996.
AVRITZER, Leonardo. Sociedade civil, espaço público e poder local: uma análise do
orçamento participativo em Belo Horizonte e Porto Alegre. Belo Horizonte:
mimeo., 2000. Relatório final do Projeto de Pesquisa “Civil Society and Democratic
Governance”.
BAIERLE, Sérgio Gregório. Um novo princípio ético-político: prática social e sujeito nos
movimentos populares urbanos em Porto Alegre nos anos 80. Campinas: Unicamp,
1992. Dissertação (Mestrado em Ciência Política), Universidade de Campinas,
1992.
COSTA, Sérgio. Esfera pública, redescoberta da sociedade civil e movimentos sociais no
Brasil – uma abordagem tentativa. Novos Estudos, São Paulo, nº 38,1994.
COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal: notas sobre a questão
democrática no Brasil. São Paulo: Ciências Humanas, 1980.
22

HELLER, Patrick; ISAAC, T. M. Thomas. O perfil político institucional da democracia


participativa: lições de Kerala, Índia. In: SANTOS, Boaventura de Souza (org.).
Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
NUN, José. La rebelión del coro: estudios sobre la racionalidad política y el sentido
común. Buenos Aires: Nueva Visión, 1989.
PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
PUTNAN, Robert D.. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
REIS, Elisa, CHEIBUB, Zairo B.. Pobreza, desigualdade e consolidação democrática.
Dados, Rio de Janeiro, v.36, nº 2, 1993.
SADER Eder, PAOLI, Maria Célia. Sobre “classes populares” no pensamento sociológico
brasileiro. In: CARDOSO, Ruth C. (org.). A aventura antropológica: teoria e
pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
SILVA, Marcelo Kunrath. Construção da “participação popular”: análise comparativa de
processos de participação social na discussão pública do orçamento em municípios
da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS. Porto Alegre: UFRGS, 2001. Tese
(Doutorado em Sociologia).
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
WEFFORT, Francisco C.. Por que democracia?. São Paulo: Brasiliense, 1984.

Você também pode gostar