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SUJEITOS, OBJETOS
E PRÁTICAS
Coleção PPGE
1
Coleção PPGE
Volume 6
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO:
SUJEITOS, OBJETOS E PRÁTICAS
Presidente
Luiz Carlos Novaes (Universidade Federal de São Paulo, Brasil)
Conselheiros:
Luiz Carlos Novaes (Universidade Federal de São Paulo, Brasil) (Presidente)
Adriana Lia Friszman Laplane (Universidade Estadual de Campinas, Brasil)
Alberto Barausse (Università degli Studi del Molise, Itália)
Allan Patrick Olivier (Université de Nantes, França)
César Tello (Universidad Nacional de Tres de Febrero, Argentina)
Denise Braga (Universidade Estadual de Campinas, Brasil)
Fernando Bárcena (Universidad Complutense de Madrid, Espanha)
Jefferson Mainardes (Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil)
Laurinda Souza Ferreira Leite (Universidade do Minho, Portugal)
Luanda Rejane Soares Sito (Universidad de Antioquia, Colômbia)
Márcia Jacomini (Universidade Federal de São Paulo, Brasil)
Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo (Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil)
Rosa Fátima de Souza Chaloba (Universidade Estadual Paulista, Brasil)
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo (Universidade Estadual de Campinas, Brasil)
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO:
SUJEITOS, OBJETOS E PRÁTICAS
Coleção PPGE
Volume 6
PROJETO GRÁFICO
Alcindo Donizeti Boffi
DIAGRAMAÇÃO
Marcos Lourenço | MC&G Design Editorial
CAPA
Alcindo Donizeti Boffi
REVISÃO
O conteúdo dos textos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de responsabi-
lidade dos respectivos autores.
APRESENTAÇÃO 13
Mirian Jorge Warde
Fernando Rodrigues de Oliveira
1ª PARTE
IMPRESSOS EDUCACIONAIS
3ª PARTE
A ESCOLA SEUS SUJEITOS E SUAS PRÁTICAS
9
No entanto, a intenção interpretativa antevista nas possibilidades do arca-
bouço conceitual demandava operações mais formais: a organização/criação de
acervos e bancos documentais já que havia poucos em condições otimizadas de
uso à disposição dos pesquisadores. Esse trabalho foi capitaneado por grupos
de pesquisa alocados em quase todas as universidades, com predomínio daquelas
públicas, sem prescindir da iniciativa particular.
Grandes projetos coletivos, inclusive com vínculos internacionais, volta-
ram-se para a elaboração de inventários documentais, tarefa que se mostrou es-
sencial para impulsionar e multiplicar o número de pesquisas. Simultaneamente
à análise de periódicos específicos que circularam em diferentes regiões do país, a
imprensa pedagógica e educacional foi recenseada, localizada e, principalmente,
se tornou acessível para novos estudos, ora tomada como objeto, ora como fonte
para o conhecimento de processos, métodos de ensino, conteúdos escolares, dis-
cussões curriculares e dos intelectuais que nela atuaram e por meio dela adquiri-
ram algum tipo de projeção como autores, formuladores ou atuação em diferentes
níveis da hierarquia do sistema educacional.
Trabalho semelhante foi feito com a legislação educacional promulgada
nos diferentes estados, tornando visível diacronias, semelhanças de propósitos e
adesão a vertentes pedagógicas e, notadamente, o ritmo da inovação educacional
e suas particularidades. Sob um mesmo propósito nacional, tornaram-se eviden-
tes as diferenças na organização de sistemas e graus de escolaridade, modalidades
de instrução, formação de professores, o atendimento ou não das demandas so-
ciais e a contradança entre desenvolvimento urbano e rural.
Os livros didáticos e escolares, em geral, menosprezados nos acervos regu-
lares, adquiriram status e espaços próprios e, inventariados a exemplo dos grandes
projetos internacionais, contribuíram para o entendimento dos processos de cir-
culação, editoração, autoria e produção de conteúdos escolares. E, nesses acervos,
os livros dedicados ao ensino da leitura e da alfabetização adquiriram lugar de
destaque. O movimento mais recente desse tema ocorre com a organização e o
estudo de bibliotecas particulares ou específicas, mesmo que institucionais, ou
provenientes de editoras e associações. A mudança de perspectiva – dos acervos
institucionais para os acervos especializados e particulares – abre horizontes para
o conhecimento do consumo e apropriação desse material, aspecto que, muitas
vezes, ficava à sombra e sobre o qual pouco podia ser dito.
O incremento mais recente nos inventários e na catalogação de fontes pos-
tos à disposição dos pesquisadores tem se dado no âmbito da cultura material
escolar. Objetos banais, mas imprescindíveis ao funcionamento escolar, deman-
dam maior esforço de catalogação. Previstos na legislação, reivindicados por pro-
fessores, essenciais ao desenvolvimento de diferentes propostas metodológicas,
esses materiais acabam sendo arrolados nas denúncias dos problemas que sua
10
ausência acarreta e no enxugamento orçamentário que acompanha todas as ini-
ciativas educacionais. No entanto, tornam-se visíveis em outros setores que não o
educacional propriamente dito: acervos patrimoniais, documentos de compras e
prestação de contas, entre outros, dificultando, mas não impedindo, o trabalho de
pesquisadores que têm demonstrado sua importância no trabalho cotidiano em
sala de aula, em diferentes períodos.
Os estudos sobre as instituições educacionais, arquitetura escolar e foto-
grafia, embora com referenciais teóricos específicos e interpretações originais,
aparecem entrecruzados com outros temas e colaboram nos recenseamentos aqui
indicados. Ilustram, revelam e delimitam espaços de atuação e de práticas peda-
gógicas, bem como a adesão, a resistência e a originalidade na concretização de
diferentes práticas e processos.
Parece-me ser esse o contexto de desenvolvimento dos estudos em His-
tória da Educação no Brasil com o qual os trabalhos que se seguem nesse livro
colaboram e ampliam. Originários de Instituição universitária e de Programa de
Pós-Graduação, cuja atuação na área de Ciências Humanas é mais recente, a lógi-
ca adotada na organização do volume articula dois grandes núcleos de estudo - os
impressos e a escola - e em seu interior, as diferentes fontes documentais tomadas
para as análises estabelecem diálogos com períodos, graus e ramos de instrução,
formação de professores, práticas pedagógicas e objetos escolares.
Com relação aos periódicos educacionais, os textos voltam-se para a aná-
lise da conformação de diferentes questões em periódicos específicos (Revista de
Educação, Atualidades Pedagógicas e Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos), mas
também apresentam aos leitores brasileiros periódico norte-americano dedicado
à discussão das questões raciais. A introdução a essas análises particularizadas
apresenta um balanço da produção historiográfica que tomou as revistas educa-
cionais como objeto, exercício analítico imprescindível para captar o sentido da
produção e constituir-se como base a partir da qual novos análises possam ser
desenvolvidas.
As pesquisas sobre impressos de destinação educacional, mais uma vez,
testemunham a versatilidade e a proficuidade dessa tipologia de material. O con-
teúdo neles tratado revela seu vínculo com conteúdos escolares específicos, dos
mais tradicionais, àqueles que, pela intermitência, atuaram como coadjuvantes do
currículo e da prática pedagógica. A autoria desses impressos revela sujeitos que,
em determinados períodos e regiões, deixaram marcas formativas na escolariza-
ção.
O eixo do livro dedicado à escola, sujeitos e práticas foi organizado com
base nos graus e modalidades escolares, indicando as particularidades que carac-
terizam cada um deles. A criação de instituições dedicadas à educação infantil,
que toma memórias, fotografias e legislação como fontes, descendam as dificul-
11
dades para sua instauração e manutenção, bem como sua necessidade social. Os
artigos sobre a escola primária (cujo denominação foi modulada por diferentes
políticas educacionais ao longo do tempo) focalizam o trabalho cotidiano e ro-
tineiro desenvolvido em instituições desse nível de escolarização, os materiais
necessários ou a ausência deles para o desenvolvimento do ensino e um conjunto
de atividades escolares que, embora não sendo cotidianas, constituem dispositi-
vos para o alcance dos objetivos, por vezes, tensionados entre as demandas e seu
atendimento.
Estão presentes também estudos que têm ligação forte com a formação de
professores em seus aspectos simbólicos e não, necessariamente, curriculares. Re-
lações hierárquicas, normas, espaços de controle e de exercício da profissionaliza-
ção são objeto de reflexão e análise. Indicam, portanto, de quantas circunstâncias
e iniciativas é constituída essa formação.
Parece-me que os avanços nos estudos historiográficos brasileiros, vistos
em perspectiva geral ou particularizados em linhas de pesquisa específicas, ainda
não conseguiram desvendar a tal caixa preta da escola (se é que isso é possível),
embora estejam num caminho promissor, dadas sua versatilidade e variedade.
Faltam-nos fontes mais precisas, há lacunas documentais a serem preenchidas,
mas sabemos hoje com quantas coisas, sujeitos e indícios das práticas a escola
tem sido modelada. A visão de conjunto dos estudos que compõem esse volume
indica quão lento é o processo de mudança educacional; indicam também que o
avanço no seu conhecimento, provavelmente, virá da capacidade de trabalho em
diferentes frentes, como indicado nos capítulos: estudos descritivos, pormenori-
zados e delimitados (por períodos, séries documentais, dispositivos educacionais)
e balanços analíticos e compreensivos que apontem os sentidos do que já foi feito
e as possiblidades abertas aos pesquisadores.
12
APRESENTAÇÃO
13
Aos e às colegas da linha de História da Educação do campus Guarulhos,
aos nossos orientandos e orientandas aqui presentes, os nossos agradecimentos
pelos esforços gigantescos que dispenderam para concluir seus capítulos, em um
curto espaço de tempo, comprometendo o tempo de convívio familiar e de férias
ou mesmo adiando outros compromissos.
À coordenação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unifesp,
agradecemos toda atenção e apoio.
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1ª PARTE
IMPRESSOS EDUCACIONAIS
1. REVISTAS DE EDUCAÇÃO E ENSINO COMO
OBJETO DE HISTORIADORES DA EDUCAÇÃO
(BRASIL, 1988-2021)1
Introdução
1 Este texto foi originalmente publicado no dossiê Journals for teachers, children and youth as a trans-
national phenomenon. Directions and experiences of the periodical press in Italy, Brazil, Spain, France,
and United States between political, social and cultural changes in 19th and 20th Centuries, para a
revista History of Education & Children’s Literature (HECL), 20221-2, com organização de Alberto
Barausse, Claudia Panizzolo, Roberto Sani e Mirian Jorge Warde.
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palavras: deslocamento das atenções dos produtos para os processos e as práticas;
do alto para o baixo; do familiar para o estranho.
O interregno entre as predisposições para uma historiografia renovada e o
aparecimento dos primeiros trabalhos com a imprensa periódica foi relativamen-
te curto. Assim que se afirmou nas pesquisas de história da educação, a imprensa
periódica se apresentou tanto como fonte quanto como objeto (WARDE; CAR-
VALHO, 2000).
Contemporâneo a esse movimento, verificou-se uma tendência ao alar-
gamento dos focos temporais aos quais a historiografia educacional conferia até
então maior atenção. Se antes eram os anos pós-1930 que cativavam os histo-
riadores da educação, a partir de fins dos 1980, o século XVIII ganhava algum
interesse e o século XIX e início do século XX ganhavam muito mais atenção
(WARDE, 2003). Nesse novo movimento historiográfico, a década de 1930 não
foi relegada a segundo plano; ao contrário, foi enfaticamente revisitada, reinter-
pretada, mas não no âmbito exclusivo do estado e sim da perspectiva das disputas
intraestatais que envolviam defensores de diferentes padrões escolares, como, por
exemplo, católicos e liberais em relação à “Escola nova”. Em outros termos, em
relação ao século XIX e início do século XX ganharam proeminência os estudos
que buscavam a gênese da forma escolar; as práticas e os discursos que amalga-
maram a cultura da escola moderna2.
A disposição de “abrir a caixa preta” que se transformou com o tempo na
busca da “cultura escolar”, conduziu muitos pesquisadores a vasculhar materiais
e temas tradicionalmente não valorizados pelos historiadores da educação. Nes-
sa direção, foram defendidas teses sobre livros didáticos, manuais e compêndios
escolares, livros de leitura, cartilhas, dentre outros. Foi dessa forma inicial que os
impressos periódicos educacionais foram ocupando espaço3. Eram já expressão de
um interesse crescente pelas práticas para além das legislações e normas oficiais
de ensino.
O alargamento temático e temporal mobilizou o interesse por outros tipos
de impressos, para além daqueles diretamente destinados à ou apropriados pela
sala de aula. Estudos relevantes sobre jornais escolares e não-escolares; jornais
ligados a movimentos sociais mais amplos ou mais restritos vieram a público,
2 São bons exemplos dessas pesquisas, C. Monarcha, A reinvenção da cidade e da multidão: dimensões
da modernidade brasileira: a Escola Nova (1989); L. M. Faria Filho, Dos pardieiros aos palácios:
cultura escolar e urbana em Belo Horizonte na Primeira República (2000); R. F. Souza, Templos de
civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo (1998).
3 Um dos primeiros e mais destacados títulos nessa linhagem: Circe M. F. Bittencourt, Pátria, civilização
e trabalho (1917-1939) (1990).
17
juntando-se a estudos de panfletos, boletins, revistas, magazines e outras modali-
dades de impressos periódicos4.
Embora as condições de pesquisa no Brasil tenham melhorado desde os
anos 1980 para cá, ainda estão longe de oferecer facilidades ao pesquisador, des-
tacadamente ao historiador da educação. A quase totalidade de arquivos, biblio-
tecas e instituições correlatas não mantém banco de dados informatizados e de
acesso aberto5. Além disso, as políticas nacionais e estaduais de preservação e
acesso continuam desastrosas.
Assim, como seria de esperar, a imprensa periódica não escapou e não es-
capa a essas mazelas. Poucos pesquisadores ou grupos de pesquisa se dispuseram
até o momento a realizar o levantamento de impressos periódicos de educação e
de ensino lançados no Brasil a partir do início do século XIX e posterior publica-
ção de catálogos, tais como guias e repertórios. Àquelas limitações de acesso que
dificultam as pesquisas nos estados, acrescente-se a extensão territorial do Brasil
que exige um empreendimento de larga escala, custoso e de longo prazo6.
O Catálogo da Imprensa Periódica Educacional Paulista (1890-1996), orga-
nizado por Denice B. Catani e Cynthia P. Sousa (1999), é um raro empreendi-
mento de catalogação de revistas de ensinos criadas e editadas em um único es-
tado, o de São Paulo. Em cinco anos de trabalho, a equipe comandada pelas duas
pesquisadoras identificou 456 títulos. Por São Paulo ser o estado com a maior
concentração de capital e com grande concentração populacional, o Catálogo...
certamente cobre uma parcela significativa das revistas postas em circulação no
Brasil entre os séculos XIX e XX; portanto, já se tem aí uma amostra relevan-
te. Um levantamento complementar a esse foi realizado por Carlos Monarcha
(2004), que mapeou um segmento das revistas de educação e ensino editadas no
estado de São Paulo no período 1892-1944. Em dois anos (2003-2005), Monar-
4 Citarei aqui apenas exemplos dos primeiros trabalhos: M. T. Duarte. O trabalho de ensinar pedagogia
para a professora (1988), dissertação de mestrado orientada por Carlos R. Jamil Cury; D. B. Catani,
Educadores à meia-luz (um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professo-
rado Público de São Paulo: 1902-1908) (1989), tese de doutorado; D. Vidal e M. J. G. de Camargo, A
imprensa periódica especializada e a pesquisa histórica: estudos sobre o Boletim de Educação Pública
e a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1992); D. B. Catani e M. H. C. Bastos (orgs), Educação
em Revisa: a Imprensa periódica e a História da Educação (1997).
5 Cite-se, como relevantes exceções: A Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional que permite consulta
de mais de cinco mil títulos (https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ ) e o Repositório Digital
de Jornais e Revistas do Arquivo do Estado de São Paulo (http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/
acervo/repositorio_digital/jornais_revistas).
6 Monarcha (2004) localizou entre os trabalhos mais remotos no âmbito da História da educação e da
cultura: Carlos Silveira, Apontamentos para uma história do ensino público em São Paulo revistas
de ensino, Educação, São Paulo, vol. ii, n. 3, p. 323-332, jun. 1929 e de Antonio Barreto do Amaral,
Nossas revistas de cultura. Ensaio histórico-literário, Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, n.
clxxiv, p.127-175, 1968.
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cha rastreou 14 títulos. Amarílio Ferreira Neto e colaboradores (2002) organi-
zaram o único repertório disponível com cobertura nacional relativo à Educação
Física e Esporte, de 1930-2000; em quase quatro anos de trabalho, localizaram
36 periódicos nessa área7.
Além desses, alguns pesquisadores deram a conhecer outras modalidades
de impressos educacionais, como o que Maria Helena C. Bastos coordenou sobre
os jornais de estudantes no estado do Rio Grande do Sul (2015). Outros levan-
tamentos de menor alcance também foram realizados com base em revistas de
educação e ensino, aos quais não se teve acesso.
Assim, como se pode inferir, apesar do grande interesse pelos impressos
periódicos e pelas revistas em particular, poucos foram os investimentos bem-su-
cedidos de levantamento e catalogação desses títulos no Brasil. Não casualmente,
os estudos de história da educação que consideram revistas como objeto/fonte de
pesquisa apresentam um espectro relativamente pequeno de temas, abordagens,
autores, distribuição geográfica e temporal.
O levantamento realizado que dá base a este artigo apoia-se em uma con-
cepção ampla de revista de educação e de ensino: aquelas editadas ou mantidas
por professores para professores; de estudantes para seus colegas; de editores para
pais e professores; de inspetores para diretores e professores; de órgãos de estado
para professores ou outros níveis da hierarquia; de instituições de ensino para seus
docentes; de associações docentes para seus membros; de uma igreja para seus
seguidores ou para fatias da população a serem conquistada; de uma categoria
social para seus pares-docentes; de editoras comerciais que vendem seus produtos
em bancas de jornal para membros do magistério.
Para esse artigo, foram considerados 308 trabalhos que apresentam uma ou
mais revistas de educação e de ensino como objeto e, por decorrência, como fonte
privilegiada de pesquisa. São títulos tornados públicos entre 1988 e 20218. Entre
7 Nos escritos consultados de história dos impressos periódicos educacionais se encontram, com muita
frequência, referências a alguns trabalhos que teriam contribuído para a afirmação dessa temática entre
os historiadores da educação brasileira. Destacam-se: A. L. Martins, Revistas em revista: práticas
culturais em tempos de República, 1890-1922 (2008); H. F. Cruz (org.), São Paulo em Revista: catálogo
de publicações da imprensa cultural e de variedades paulistana, 1870-1930 (1997); A. Nóvoa, A imprensa de
educação e ensino - Repertório analítico (séculos XIX e XX) (1993); P. Caspard (org.). La presse d’éducation
et d’enseignement, XVIIIe siècle-1940. Répertoire analytique (1981- 1991); P. Caspard-Karydis (org.).
La presse d’éducation et d’enseignement. 1941-1990. Répertoire analytique (2000-2005); G. Chiosso
(org.), La stampa pedagógica e scolastica in Italia (1820-1943) (1997); M. De Vroed, Bijdragen tot de
Geschiedenis van het Pedagogisch leven in België in de 19de en 20ste eeuw. De Periodieken (1973-1987).
8 Os 308 títulos foram localizados em bancos de dissertações e teses da CAPES/MEC; repositórios das
bibliotecas universitárias; sítios Domínio Público e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
Tecnologia (IBICT); revistas especializadas em História da educação: Cadernos de História da edu-
cação; Revista Brasileira de História da educação; História da educação-UFPel; plataforma Lattes/
CNPq, os próprios autores e orientadores. R. Darnton (1990), referindo-se aos Estados Unidos, diz
que não sabe de onde novas tendências historiográficas aparecem, mas, uma vez que aparecem, são
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os títulos selecionados estão: 155 dissertações de mestrado e teses de doutorado
(109 dissertações e 46 teses); 96 artigos de revistas e 57 capítulos de coletâneas.
Esses trabalhos ocupam-se de 123 diferentes revistas, que serão apresentadas, no
próximo tópico, pelo nome, ciclo de vida, local de publicação e seu responsável
(pela criação ou pelo financiamento)9.
No Quadro único em anexo, estão reunidas todos as 123 revistas estudadas
nos trabalhos de história da educação selecionados; seus títulos, ciclos de vida,
cidades aonde foram ou são editadas e os responsáveis pela concepção, pela edição
ou pelo financiamento.
Elas foram classificadas em 12 categorias criadas mediante a soma de dois
critérios: os criadores/mantenedores, ou seja, os responsáveis, e por algum traço
distintivo que merecia ganhar algum relevo10. São elas: “Revista Oficial, mantida
por órgão de Governo”; “Revista de associação docente e outros membros do ma-
gistério; sindicato de professores e outros profissionais da educação, professores
individualmente ou em pequeno grupo”; “Revista de instituição ou unidade de
ensino”; “Revista de centro de estudo, fundação e instituto de pesquisa”; “Revista
de movimento estudantil e de agremiação de estudantes”; “Revista criptocomer-
cial”; “Revista confessional e de educação religiosa”; “Revista comercial”; “Maga-
zine”; Revista de cultura”; “Revista de imigrantes” e “Revista de pais”.
9 Para fins deste artigo foram deixados de lado os jornais e outras modalidades de impressos que não
se enquadram na categoria de “revista”. Mesmo admitindo que nuanças devem ser consideradas, para
esse artigo foi adotada a definição de G. Barbosa e C. A. Rabaça (1987, p. 516-517): «Revista: publi-
cação periódica que trata de assunto de interesse geral ou relacionado a uma determinada atividade ou
ramo de conhecimentos (literatura, ciência, comércio, política etc.) Produzida em forma de brochura,
a revista apresenta-se geralmente em formato menor que o jornal, maior número de páginas e capa
colorida, com papel mais encorpado. Veículo impresso, de comunicação e propaganda, quase sempre
ilustrado, que atinge a um público determinado, de acordo com suas características específicas e sua
linha editorial ou doutrinária, artísticas, literárias, educativas, culturais, científicas, de humor etc. Os
gêneros mais comuns de revistas destinadas ao grande público (ou a faixas determinadas desse grande
público) são: as noticiosas, as de interesse geral, as masculinas, as femininas, de moda, de fotonovela, as
infanto-juvenis, de histórias em quadrinhos (gibis), de esportes, de automobilismo etc. As revistas no-
ticiosas, geralmente semanais ou mensais, seguem uma linha relativamente próxima à dos jornais, mas
o tratamento das notícias é mais livre e interpretativo, a apresentação gráfica e o estilo redacional mais
amenos e dá-se mais destaque a artigos, críticas, notas, entrevistas, fotorreportagens e foto-legendas».
10 Uma vez definidas, as nomenclaturas das 12 classes foram reformuladas à luz da tipologia adotada por
D. Catani e C. Sousa no Catálogo por elas organizado (1999).
20
Cabem alguns esclarecimentos sobre essa tipologia: “Revista de imigran-
tes” e “Revista de pais” são dois exemplos de tipos criados para dar destaque à
origem e destinação: imigrantes e pais; do contrário, poderiam ser classificadas
em “Revista de instituição ... de ensino” e “Revista comercial”, respectivamente.
A classe “Revista criptocomercial” foi aberta para dar lugar às revistas comerciais
envoltas em uma aura acadêmica, seja porque se valeram de “especialistas” seja
porque evitaram a venda em bancas de jornal, por meio da venda por assinaturas
ou distribuição gratuita ou, ainda, porque mantiveram um regime de propagan-
da em suas páginas circunscrito ao ambiente educacional ou cultural. Por fim, a
inclusão da categoria “Magazine” se deve pela ênfase conferida pelos autores dos
respectivos trabalhos ao caráter educativo desses periódicos exclusivamente des-
tinados à “educação feminina”.
11 As revistas que já foram estudadas, mas que não aparecem com informações completas, foram deixadas
fora do Quadro único. Por ex., Revista do ensino da Bahia cujo ciclo de vida completo e o responsável
ainda não foram confirmados. Não foram incluídas, também, as revistas abordadas por trabalhos que
não estavam acessíveis enquanto eram localizadas as fontes deste trabalho. Por ex., uma dissertação de
mestrado que estuda a revista Em aberto criada e mantida pelo INEP/MEC desde 1981. Por fim, não
foi incluída a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, de 1896 a 2004, criada pelo
referido Instituto (IHGSP), posto que uma tese e um artigo a respeito só foram acessados quando este
artigo já estava concluído. Ver a respeito: M. A. Pereira, Subsídios para a história da educação no Brasil:
um estudo da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (2013), tese de doutorado
orientada por A. Ferreira Junior e M. A. Pereira, M. Tolentino, A. Ferreira Junior, M. C. P. I. Hayashi.
História da Educação nas páginas da revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (2016).
21
Por outro lado, os intercâmbios formais e programáticos entre os estados
se intensificaram a partir de fins do século XIX, ou seja, quando já proclamada
a república. Em quase todos os estados foram desencadeadas reformas quer no
sentido de extensão da escolaridade primária a um conjunto maior da população
quer visando a modernização administrativa e pedagógica das escolas públicas; a
formação, o preparo, a qualificação dos professores primários ganharam proemi-
nência, naquele momento, uma vez que a quase totalidade de docentes em exer-
cício não tinha qualquer formação específica, e um número considerável sequer
tinha concluído a escolaridade elementar.
Quando foram adotados no Brasil, os impressos periódicos de destinação
pedagógica ou os educacionais já circulavam nos Estados Unidos e na maioria
dos países europeus, servindo como ferramenta de comunicação das autoridades
com as demais instâncias hierárquicas, especialmente professores, visando instru-
mentá-los para a sala de aula; com isso, é quase certo que no Brasil os títulos das
revistas tenham se inspirado nos seus equivalentes estadunidenses e europeus,
assim como esses se copiavam.
De qualquer modo, para futuros estudos a esse respeito, há que se consi-
derar o peso da função atribuída ao impresso periódico pelos seus criadores no
momento da definição do seu nome.
Ciclo de vida
22
cação e do ensino entre os séculos XVI e XIX. Elas fazem parte do grupo de 27
(22%) revistas historiadas que ainda estão em circulação13.
Na Tabela 1, onde está registrado o tempo de duração dos diferentes tipos
de revistas. Nela, merece atenção a tendência a ciclos de vida curtos das revistas
de associações docentes; 20 (77%) não ultrapassaram sete anos de existência e
nenhuma continua em circulação. Essa tendência deve estar associada aos ciclos
de vida das próprias associações, também elas, com algumas exceções, fadadas
ao desaparecimento em curtos intervalos de tempo. Nesse grupo, também estão
incluídas as iniciativas de indivíduos, e nesses casos a circulação dos seus periódi-
cos variou entre um e três anos. Curioso é que esse tipo de revista parece ser um
fenômeno do século XIX e de começos do século XX: 46,2% dessa modalidade se
situam entre 1872 e 1894 e 34,6% circularam entre 1900 e 1920. A distribuição
das revistas de associações docentes etc. também podem ser pensadas a partir de
outros critérios, por exemplo: 8 (30,8%) são pré-republicanas; 13 (50 %) nascem
com as primeiras iniciativas de reformas republicanas do ensino nas quais exten-
são das matrículas primárias, a qualificação do professorado e o aperfeiçoamento
dos sistemas de controle e inspeção são as tônicas. Com exceção de uma, todas
encerram seus ciclos de vida no mesmo período. Essas concentrações sugerem
dois movimentos: o primeiro, no qual a urbanização e dinamização do mercado
de trabalho de algumas das principais cidades do país na segunda metade do
século XIX pressionaram as precárias redes de ensino por mais e melhor aten-
dimento; sem contar com a contrapartida dos governos locais e muito menos
do governo central, houve um movimento associativista no seio do professora-
do visando sua autoproteção profissional, assim como a sua autoafirmação como
postulante legítimo de métodos e de conteúdo de ensino. Sem nítida solução
de continuidade, um segundo movimento associativista nasce coetâneo das pri-
meiras reformas republicanas, mantendo seus dois focos, mas introduzindo uma
tônica corporativista não tão nítida anteriormente, reativa ao crescimento da in-
tervenção do estado sobre a escola e o professor, em especial14.
13 Ver sobre elas, por exemplo: C. A. A. Toledo e J. P. Neto. Os jesuítas e a educação no programa da Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1939) (2010); C. A. A. Toledo e M, A. Barboza. A atuação
educativa, missionária e pastoral dos franciscanos no Brasil colonial nas páginas da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) (2020), e. M. T. Leher, A ‘Revista Brazileira’ (1879-1881) e os
debates sobre ciência, língua, literatura e educação (2002), tese de doutorado orientada por N. Piletti.
14 Ver a respeito, por exemplo, G. B. Teixeira, A imprensa pedagógica no Rio de Janeiro: os jornais e as revistas
como agentes construtores da escola (1870 a 1919) (2016), tese de doutorado orientada por A. Schueler,
autora de Representações da docência na imprensa pedagógica na Corte imperial (1870-1889): o exemplo da
Instrução Pública (2005); M. M. C. Carvalho, Da pedagogia como arte de ensinar à pedagogia científica:
a Revista de Ensino e a difusão de modelos pedagógicos estrangeiros (1902-1918 (2018); A. C. B. Nery, A
Sociedade de Educação de São Paulo: embates no campo educacional (1999), tese de doutorado orientada por
D. B. Catani.
23
A modalidade “revista oficial”, que se apresenta em maior número, forma
uma distribuição curiosa a ser observada relacionando-se tabela 1 ao Quadro úni-
co: a maioria das revistas oficiais foi criada por órgãos dos estados ou do Distrito
Federal (17; 63%); são essas que tendem a ciclos de vida mais curtos; enquanto
as 10 restantes, criadas por algum órgão do Ministério da Educação, ligado ao
governo federal, têm uma duração mais prolongada, sendo que duas delas estão
em circulação há mais de 50 anos. Além disso, com exceção de uma revista do
Rio Grande do Sul, encerrada em 1992, e de uma revista lançada e encerrada na
primeira década do século XXI por uma secretaria municipal da educação, a his-
toriografia não registra nenhuma outra iniciativa municipal, estadual ou do Dis-
trito Federal dos anos 1990 para cá. Essas instâncias governamentais desistiram
dessa modalidade de comunicação e migraram para outros tipos de comunicação
via internet? Ou os veículos de comunicação dessas instâncias de governo ainda
não entraram no radar dos historiadores?
As revistas oficiais estudadas são todas posteriores à Proclamação da Re-
pública, ou seja, datam de quase duas décadas depois das primeiras criadas por
associações ou grupo de professores. Curioso é que a historiografia aponta uma
primeira leva de 5 revistas criadas entre 1890 e 1907, e 9 criadas entre 1920 e
1934; essas, acrescidas de 3 em circulação há três ou quatro décadas, sinalizam
aquele momento em que estados estavam empenhados em reformas moderniza-
doras, especialmente tangidas por princípios e valores dos movimentos de “escola
nova” europeu e estadunidense. Essas duas levas de revistas oficiais são as que há
mais tempo têm ocupado a atenção dos historiadores da educação e sobre as quais
se concentra o maior número de estudos aqui abordados15.
A quase totalidade das revistas de instituições de ensino pode ser acresci-
das às revistas oficiais, resguardadas as suas especificidades: essas, em regra, veicu-
lam ou veiculavam mensagens, políticas e orientações legais, governamentais ou
legitimadas pelos órgãos responsáveis destinadas aos sistemas de ensino corres-
pondentes; aquelas, em regra, eram ou são endereçadas a públicos mais restritos,
não muito mais amplos do que os das próprias instituições de ensino responsáveis
ou de instituições de ensino equivalentes. Das 14 revistas de instituições de en-
sino, 12 (85,7%) eram e são mantidas com recursos públicos, ou seja, do estado.
Dentre essas, 6 eram de responsabilidade de escolas normais ou equivalentes; 4
24
de unidades universitárias, também destinadas à formação do magistério e 1 de
responsabilidade do Exército16.
Chama a atenção, por outro lado, a contemporaneidade das revistas de
centros de estudo, fundações e institutos de pesquisa; com exceção da Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil lançada de 1839, as demais revistas datam
do início dos anos 1970 para cá, estando a maioria em circulação (75%). O surgi-
mento mais recente desse tipo de impresso periódico reflete, no Brasil, o cresci-
mento a partir dos anos 1960 de institutos de estudos e pesquisas que buscaram
afirmar seus estudos e pesquisas com autonomia em relação ao estado - como,
por exemplo, a Fundação Carlos Chagas e o Centro de Estudos Educação &
Sociedade - ou buscaram consolidar e difundir profissões específicas e os saberes
especializados que produzem - exemplos, a Associação de Leitura do Brasil e a
Sociedade Brasileira de História da educação.
Revista de imigrantes 1 - - 1 - - - -
Revista de pais 1 - - - - - 1 1
Total 123 53 21 10 20 5 14 27
16 C. Monarcha, Revista do Jardim da Infância: uma publicação exemplar (2001); E. B. Dias, Revista da
Escola Normal de São Carlos (1916-1923): um estudo sobre idéias e práticas educacionais (2009) disserta-
ção de mestrado orientada por C. Monarcha; F. Marques da Silva, A Escola Seletiva Como Problema
Educacional. Uma Leitura da Revista Brasileira De Estudos Pedagógicos (1952–1961) (2020) dissertação
de mestrado orientada por R. C. E. Gualtieri, autora de trabalho também incluído na base deste texto:
Leituras de formação: raça, corpo e higiene em publicação pedagógica do início do século XX (2008).
25
Por fim, ainda sobre o ciclo de vida das revistas de educação e ensino pes-
quisadas pelos historiadores da educação, há forte indícios de que elas apresentem
em média ciclos de vida mais longos do que o universo das revistas lançadas. De
um lado, porque os pesquisadores certamente optaram por estudar periódicos que
oferecem um mínimo de informações materiais necessárias para se constituírem
em objeto/fonte de investigação; daqueles periódicos que restam apenas algumas
páginas internas de um ou dois números, por exemplo, não haveria muito o que se
dizer; de outro lado, porque várias fontes de distintas épocas mencionam revistas
e seus criadores das quais não se tem ainda vestígios de suas presenças em biblio-
tecas ou arquivos, mas sobre as quais há muitos testemunhos da existência; como
os arquivos estaduais e municipais estão desigualmente organizados e, como já
dito, a maioria ainda não tem sua documentação catalogada e acessível, então é
provável que ainda se levará um bom tempo para se produzir uma exaustiva car-
tografia dos impressos educacionais.
Distribuição geográfica
17 Foram mantidos os registros, do local de publicação das revistas, efetuados pelos autores dos estudos
consultados. Ou seja, a distinção entre Rio de Janeiro como Município Neutro, Distrito Federal ou
estado não é de Warde e sim dos autores originais. Optou-se por manter esses registros por não ser
possível no momento conferir caso a caso a sua correção. Ver na tabela 2 as entradas coloridas em tom
cinza-claro.
18 O Município Neutro foi uma unidade administrativa criada no Império do Brasil, que existiu no
território correspondente à atual localização do município do Rio de Janeiro entre 12 de agos-
to de 1834 (quando foi proclamado o Ato Adicional à Constituição de 1824) e 15 de novem-
bro de 1889, quando foi proclamada a república no Brasil. Mas só deixou de existir oficialmente com
a promulgação da Constituição de 1891. Pela constituição republicana, esta unidade administrativa
tornou-se o Distrito Federal, em 1891, cuja situação política mudou novamente quando tornou-se o
estado da Guanabara, em 1960 e, posteriormente, com a fusão deste com o estado do Rio de Janeiro,
em 1975. A capital do estado tem o mesmo nome: Rio de Janeiro. Em 1961, o Distrito federal foi
26
Tabela 2: Distribuição geográfica das revistas de educação e ensino estudadas pelos historiado-
res da educação brasileiros (1988-2021) historiadores da educação brasileiros (1988-2021)
Revista Revista
Revista Revista de Revista Revista
de associação de centro
Oficial instituição estudantil Criptocomercial
docente de estudo
DF/RJ 3 RJ 13 SP 6 SP 6 RJ 4 SP 5
DF/RJ
3 SP 5 DF/RJ 3 RJ 3 RS 4 RJ 3
e Brasília
DF/
RJ 3 MG 3 RJ 2 1 SP 2 MG 2
Brasília
DF/
3 PA 2 PA 1 PR 1
Brasília
SP 5 PR 1 BA 1 RS 1
MG 2 RN 1 RS 1
MT 1 BA 1
SC 1
PB 1
AL 1
AM 1
PA 1
RS 1
ES 1
Total 27 26 14 12 10 10
Revista Revista Revista de Revista de Revista de
Magazine
Confessional Comercial cultura Imigrantes pais
DF/
SP 5 SP 5 RJ 3 RJ 2 RS 1 1
Brasília
RJ 2 DF/RJ 1 MT 1 SE 1
RS 1 RJ 1
Total 8 7 4 3 1 1
27
sede do governo central (1961), uma vez que as constituições federais firmadas em
1891, 1934, 1937 e 1946 mantiveram o ensino primário e secundário sob a respon-
sabilidade dos estados, assim como a educação infantil e o ensino normal.
Em dois tipos de revistas o Rio de Janeiro, portanto, ganha proeminência:
entre os periódicos mantidos por órgãos oficiais - daí, a maior concentração ocor-
re pela condição de Distrito Federal - e nas revistas criadas por associações/agru-
pamentos docentes e assemelhados, modalidade em que o Rio de Janeiro antece-
de as demais províncias em todos os sentidos, pela anterioridade e pelo número.
Nesse caso, são 7 revistas criadas antes da Proclamação da República de 1872 a
1884; duas criadas na década seguinte entre 1894 e 1900 e, ainda, e quatro criadas
entre 1913 e 1919. Elas remetem a ambientes de grande efervescência cultural e
política nos quais professores e inspetores de ensino se misturam a intelectuais e
publicistas para produzir um clima propício ao debate de ideias e de projetos para
a nação tracionada em direções opostas e profundamente dividida socialmente.
Segue-se São Paulo que aparece à frente do Rio de Janeiro e dos demais
estados em cinco tipos de revistas; não casualmente, São Paulo tem uma entrada
na cena dos periódicos educacionais bem despois do Rio de Janeiro, mas ganhará
impulso a partir da Proclamação da República nas revistas de órgãos públicos
de ensino, posteriormente nos periódicos de centros de pesquisa e equivalentes,
bem como e principalmente nos aqui denominados comerciais e criptocomer-
ciais. Segundo R. Morse, São Paulo passou de um “burgo de estudantes” no sé-
culo XIX a “metrópole” no século seguinte (MORSE, 1970). Esse salto se deveu
centralmente ao superavit produzido pela exportação do café que tanto permitiu
uma acelerada substituição da mão de obra escrava pela mão de obra assalariada
alimentada por grandes levas de imigrantes europeus e, posteriormente, asiáticos
e árabes, assim como ancorou o vertiginoso processo de urbanização e de indus-
trialização, esse mais lento e por substituição de importações. Centralizando o
capital, São Paulo se tornou o epicentro da modernização da cultura e da instru-
ção pública, além da conquista de espaço definitivo na cena política nacional; com
isso, tornou-se polo de atração de fábricas de celulose, livrarias, e principalmente
de editoras interessadas em conquistar e ampliar o público leitor, além de capturar
os corações e mentes de dirigentes do ensino e donos de escolas.
Essas são as possíveis razões que explicam a concentração de revistas de
educação e ensino em dois estados da região Sudeste do Brasil. Essas razões re-
metem à condição privilegiada ocupada pela região em geral e pelos dois estados
mencionados em particular. Neles, estava concentrado o maior volume de capital
econômico o que lhes confere grande margem de poder na cena política19. Por
19 Desde os anos 1960, o Rio de Janeiro vem perdendo a relevância econômica, mas mantém forte pre-
sença política no jogo político nacional e relevância cultural nacional e internacional.
28
outro lado, há que se atentar para o fato de que as revistas aqui tratadas com-
porem uma amostra encontrada na historiografia sobre o assunto. São aqueles
mesmos fatores se reapresentando: a maioria dos 306 trabalhos consultados são
originários do Sudeste; a título de exemplo, entre as 155 dissertações e teses, 107
(69,0%) foram defendidas em universidades dessa região e a maior parte desses
trabalhos aborda revistas da região de residência e trabalho dos autores ou revistas
de circulação nacional menos identificadas com os locais de publicação; e como já
dito, as condições dos arquivos e bibliotecas no país não são em regra boas, mas
são melhores nos estados do Sudeste.
O Sul é também um polo economicamente aquecido e culturalmente di-
nâmico. No campo específico do ensino e da pesquisa, as taxas de escolaridade
são historicamente altas comparadas às médias nacionais e, desde os anos 1970
a universidades da região têm se destaco muito, em várias áreas e na História
da educação em particular. As universidades do Sul respondem por 23 (14,8%)
dissertações e teses aqui registradas. Seguem as regiões Nordeste com 14 (9,0%),
bastante ativa na historiografia da educação, Centro-Oeste com 9 (5,8) com pro-
gramas mais tradicionais e o Norte com apenas 1 (0,6%) de incursão mais recente
na área.
20 Consultar http://www.rbep.inep.gov.br/ojs3/index.php/rbep/issue/archive.
29
diz respeito apenas ao seu período de circulação; ela é depositária de iniciativas
que a antecederam e nela se decantam projetos fermentados, no curto prazo, pe-
los reformadores “escolanovistas” desde os anos 1920, e no médio prazo, pelos
republicanos de primeira ou última hora; não por acaso um dos primeiros nomes
cogitados para o INEP foi “Pedagogium”, órgão federal, criado com a reforma
republicana de Benjamin Constant, em 1890 e extinto em 191921. Por outro lado,
o INEP é também produto da conjuntura política cujos sinais autoritários e cen-
tralizadores se manifestavam desde, pelo menos, 1935, e que culminaram no gol-
pe de estado de 1937, desferido por Getúlio Vargas com apoios civis e militares.
Os estudos amostrados sobre a RBEP datam de 1990 a 2020, e recobrem
abordagens, objetivos e recortes temáticos muito distintos. Na e a partir da re-
vista foram examinados temas tais como: relações intelectuais - estado; conexões
psicologia - educação; fracasso escolar; estatísticas escolares; conhecimento peda-
gógico e escola; recepção do pragmatismo; espaço escolar; avaliação e qualidade
da educação; representações sobre desenvolvimento; escola; organização da edu-
cação nacional; ensino primário e lei de diretrizes e bases; aprendizagem; escola
seletiva; escola secundária; cidadania. Esses estudos evidenciam como a RBEP
tem funcionado como suporte de discursos que nela se legitimam. Há, ainda, dois
trabalhos de uma mesma autora, - dissertação e tese - que examinam a gênese da
RBEP, sua materialidade, sua configuração, as representações que nela se apresen-
tam e as lutas que nela e por meio dela são travadas22.
Nenhum dos trabalhos se dispôs a estudar todo o ciclo de vida da RBEP;
concentraram-se nas suas duas primeiras décadas e o que chegou mais perto,
cobriu de 1995 a 2013. Os focos das atenções são os períodos em que Lourenço
Filho (1938-1946) e Anísio Teixeira (1952-1964) presidiram o INEP, tendo o
primeiro criado a RBEP e respondido por sua publicação por dois anos; o segun-
do, Anísio Teixeira, respondeu por sua publicação por 12 anos, imprimindo-lhe
novas características.
Por que aqueles dois períodos atraem especial atenção? Primeiro, porque
Lourenço Filho e Anísio Teixeira são dois dos nomes mais importantes na con-
solidação do campo educacional no Brasil, com relevante produção intelectual, ao
21 No Quadro único, a primeira revista que aparece é a Revista Pedagógica órgão do Pedagogium, tam-
bém criado em 1890 e incorporado pouco depois ao Ministério da Instrucção Publica, Correios e
Telegrapho.
22 Referências aos trabalhos de mestrado e doutorado de A. Dantas na linha dos trabalhos de Bastos e
Biccas, orientandos por M. Carvalho, cujos escritos sobre impresso compõem a amostra aqui traba-
lhada. Ver A. M. L. Dantas, Crônica de uma Reforma Anunciada: uma análise da Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos nos anos de 1961/1962 e 1972/1973 (1997), a dissertação de mestrado orientada por
M. H. Granjo; A. M. L. Dantas, Urdidura da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos nos bastidores do
Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos: a gestão Lourenço Filho (1938–1946) (2001), a tese de douto-
rado, orientada por M. Carvalho.
30
mesmo tempo que ocupavam cargos político-administrativos de grande alcance.
Receberam a alcunha de “cardeais da educação” desde que despontaram como
lideranças do movimento de renovação educacional brasileira, de base escolano-
vista, nos anos 1920. Lourenço Filho é prestigiado tanto no campo da Educação
quanto no da Psicologia. Diferentes historiadores da educação associam a predo-
minância na RBEP de matérias de perfil psicológico e pedagógico às preferências
teóricas do chefe do órgão. Por outro lado, sobre Lourenço Filho pesa um estra-
nhamento por ter aceitado participar do governo Vargas, nele permanecer após
flagrante instauração da ditadura e, ainda, declarar-se simpático a intervenções
autoritárias e centralizadora, o que aliás teria patenteado no desenho interven-
cionista e centralizador que conferiu ao INEP e à RBEP, por decorrência. Anísio
Teixeira, por seu turno, é associado às teses mais democráticas, às administrações
mais liberais, às práticas mais inclusivas dentre os líderes do movimento renova-
ção educacional no Brasil; a ele também se confere a responsabilidade de ter dado
a conhecer a pedagogia social deweyana, traduzindo e pondo em circulação seus
escritos. Vítima do autoritarismo do governo Vargas - foi deposto do cargo de
diretor do ensino do Distrito Federal em 1935 - e vítima da ditadura civil-mili-
tar que se instaurou em 1964 - que o depôs de todos os cargos que ocupava no
governo federal, inclusive da direção do INEP; a Anísio Teixeira são destinadas
muitas glórias e pouquíssimos equívocos.
Pelas mãos de Lourenço Filho, a RBEP ganhou a função de orientar as
práticas dos professores e administradores dos sistemas regionais e locais de en-
sino, bem como subsidiá-los com indicações de leituras prioritariamente diri-
gidas para o ensino na sala de aula e a gestão das escolas, legislação de ensino
e documentação oficial e informes. Anísio Teixeira distribuiu as funções antes
conferidas à RBEP, ao criar outras revistas com patrocínio do INEP, nas quais re-
sultados de estudos e pesquisa eram divulgados; a RBEP, por sua vez, ganhou um
perfil mais internacionalizado com temas mais largos sobre sistemas de ensino e
políticas educacionais.
As décadas mais recentes da RBEP carecem de estudos mais minuciosos
e mais abrangentes considerando que desde os anos 1980 esse periódico teria
perdido praticamente todos as características conferidas por Lourenço Filho, na
sua gênese, quanto por Anísio Teixeira no seu anseio de mobilização nacional via
educação. A RBEP é hoje uma revista científica que faz avaliação cega dos artigos
que lhe são encaminhados pelos acadêmicos.
Três estudos sobre as revistas do/de ensino se tornaram matriciais, referên-
cias obrigatórias em praticamente todos os escritos de história de revistas de edu-
cação e ensino. São as teses de doutorado de D. B. Catani, Educadores à meia-luz:
um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado Público
de São Paulo (1902-1918), defendida em 1989; de Maria Helena C. Bastos, O
31
Novo e o Nacional em revista: a Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1939-
1942), de 1994 e de Maurilane S. Biccas, O impresso com estratégia de formação
de professores(as) e conformação do campo pedagógico em Minas Gerais: o caso da
Revista do Ensino (1925-1940), de 200123.
Catani reconstrói todo o ciclo de vida da Revista de Ensino, criada por
uma associação docente, portanto, um organismo privado, apoiado financeira-
mente pelo órgão estadual responsável pela direção geral da instrução pública.
Para a autora, o estudo permitiu que caracterizasse o campo educacional - é
preciso dizer, campo em constituição no Brasil - de modo a flagrar o come-
ço do movimento profissional de professores e suas demandas por melho-
res condições de trabalho e salário; a construção discursiva sobre qualidade
de ensino, trabalho docente, organização do sistema de ensino; a emergência
de “questões de ensino” tais como disciplina, avaliação, interesse e motivação.
Para Catani, os discursos são instauradores do campo, portanto, expressões das
disputas que nele e contra ele se travam, para instauração e controle das regras
de seu funcionamento (CATANI, 2003). Nas palavras da autora:
Emprestava-se de Pierre Bourdieu a lógica de análise que
permite conceber o espaço educacional como lugar de lutas.
Constatava-se, então, que as disputas se estabelecem pela
autoridade e legitimidade para falar sobre a educação e fa-
zer valer posições na condução da política educacional e das
questões de ensino, de modo geral (Bourdieu...)
Buscava-se assim, compreender na lógica das lutas pela do-
minação do espaço profissional, o significado das iniciativas
de produção e circulação dos discursos sobre o ensino e a
constituição progressiva de uma imprensa periódica educa-
cional (CATANI, 1996, p. 120).
23 As três teses foram publicadas posteriormente como livros: D. B. Catani, Educadores à meia-luz:
um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação Beneficente do professorado público de São Paulo
(1902-1918) (2003); M. H. C. Bastos, A Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1939-1942): o
novo e o nacional em revista (2005) e M. S. Biccas, O impresso como estratégia de formação: Revista do
Ensino de Minas Gerais (1925-1940) (2008).
32
seja, com Chartier, a materialidade do objeto e é a via pela qual se pode ter acesso
às representações e as lutas inscritas nos textos.
Os quatro primeiros anos da revista examinada por Bastos transcorrem in-
teiramente sob o “Estado Novo”, e são guiados pela campanha de “reconstrução
nacional” desencadeada por Getúlio Vargas, também ele originário do Rio Grande
do Sul. A respeito, diz Bastos “empenhada no programa de ‘renovação educacional’,
[a Revista do Ensino] assume a bandeira da ‘patriótica cruzada’ pela educação, que
visava a construir uma nova identidade nacional pela disseminação da cultura e do
ensino” (BASTOS, 1994).
A tese, bem como os escritos posteriores de Bastos a respeito da Revista
de Ensino, desvenda na sua primeira fase um periódico empenhado no amolda-
mento do professor exemplar, no seu engajamento com o estado, imbuído dos
deveres moral e profissional perante a pátria, como dimensões constitutivas da
profissão docente24. A revista dirige-se ao professor-leitor como se o colocasse em
contato direto com o estado; o privilegiamento dessa relação, portanto, implica
para os editores da Revista o mascaramento de conflitos e a construção de uma
imagem harmoniosa do professorado. Nos textos em que adentra os períodos
subsequentes da Revista, Bastos torna ao exame da sua materialidade e, a partir
dela, examina os deslocamentos discursivos produzidos pelos diferentes editores
responsáveis. São deslocamentos provocados, nos anos 1950, pelo fim do “Estado
Novo”, por uma nova direção técnico-pedagógica imprimida por Anísio Teixeira
na direção do INEP, em cujo projeto a Revista será inicialmente engajada; nos
anos 1980, quando inaugura a sua terceira e última fase, a Revista já está envolta
em uma nova conjuntura pós-ditatorial, em que novas demandas sociais, políticas
e profissionais emergiam.
A tese de M. Biccas aborda a Revista do Ensino de Minas Gerais, periódico
oficial “mais representativo da história da educação mineira» que teve um ciclo de
vida longo, mas interrompido duas vezes além de circulação irregular principal-
mente na última fase; a revista foi criada em 1892 e interrompida no mesmo ano;
reapareceu em 1925 e parou em 1940; em 1946 retornou e foi definitivamente
interrompida em 1972. O foco de M. Biccas é sempre o período 1925-1940; a pro-
pósito, das 12 publicações registradas que abordam essa revista mineira, apenas um
faz um exame do seu último período (1950-1970) e não há registros dos números
lançados em 1892.
Na tese, a atenção de M. Biccas se dirige à materialidade da revista no
período indicado, os conteúdos veiculados, as mudanças às quais foi submetida
e seus significados. Para tanto, examina a Revista como “suporte de texto”, os
24 Além dos dois títulos já citados de M. H. C. Bastos, ver também As Revistas Pedagógicas e a atualização
do professor: a Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1951-1992) (1997).
33
próprios textos veiculados e a “apropriação” que dela/deles é feita, enfocando o
discurso produzido a partir dos sentidos e deslocamentos provocados pelo ato da
leitura, no qual a forma do impresso e a forma que o texto nele assume exercem
uma função fundamental (BICCAS, 2008).
Nessa breve descrição do trabalho de Biccas já se patenteiam com niti-
dez seus débitos com os conceitos de “apropriação” e “materialidade”, aos quais é
conjugado o conceito de “representação” de R. Chartier. E é também na tese de
Biccas que M. de Certeau se apresentará com suas ferramentas conceituais para
decifração das lutas que se travam em, e por meio, de um impresso; Biccas se re-
fere em especial ao conceito de “estratégia” para pensar a Revista como um campo
de forças em disputa. Em Biccas, como nos trabalhos que se sucederam a esses
aqui chamados de “matriciais”, P. Bourdieu é também mobilizado para compor o
referencial teórico por meio do seu conceito de “campo”. A propósito, a Revista de
ensino se afigura, na tese, como “o impresso pedagógico oficial mais representativo
da história da educação mineira, não só pelo seu longo ciclo de vida, mas pelo
papel significativo no processo de formação de professores e de conformação do
campo educacional mineiro” (p.12).
Dito de outro modo, a Revista do Ensino mineira é compre-
endida como estratégia de conformação do campo pedagógico,
por meio das práticas e representações que eles produzem ou
põem em circulação. Assim, a “Revista do Ensino” é tomada
como objeto de investigação sob dois aspectos: como dispositi-
vo de normatização pedagógicas e como suporte material para
ampliar a cultura educacional e subsidiar as práticas escolares
dos professores (p. 12).
25 Foram localizados mais de 100 títulos a respeito da revista Nova Escola produzidos em diferentes áreas
das Ciências Humanas.
26 A Nova Escola circula hoje em um novo formato e consta como responsáveis Associação Nova Escola/
Fundação Lemann.
34
posteriores aqui chamadas de “Criptocomerciais”. A Nova Escola foi lançada
com o objetivo de “fornecer à professora informações necessárias a um melhor
desempenho do seu trabalho”, bem como “proporcionar uma troca de experiên-
cias e conhecimentos entre todas as professoras brasileiras do 1º grau”, ou seja,
a instrumentar o professor (dos anteriores níveis de ensino, primário ou secun-
dário) para a sala de aula27. Lançada em outro ambiente sociopolítico e cultural,
imediatamente posterior ao último governo ditatorial, a Nova Escola se dispensa-
va de tarefas supostamente já realizadas: qualificar o professorado leigo e atualizar
o professor saído das escolas normais ou instrumentá-los para se pensarem como
membros de uma categoria profissional e como membros (instauradores) de um
campo.
A Nova Escola se tornou um sucesso entre os professores pelo seu apelo
midiático, por sua linguagem leve, por seus recursos gráficos, pela facilidade de
aquisição nas bancas de jornal ou por assinatura. Mas nada teria sido mais deci-
sivo para seu amplo consumo do que os investimentos nela feitos pela Fundação
Victor Civita, seu criador; pela Editora Abril, pertencente ao mesmo grupo em-
presarial, e o convênio firmado em 1986 e renovado em 1991 entre essa Fundação
e o Ministério da Educação, que implicava cobertura de 70% dos custos da revista
pelo erário28.
28 Seu próprio criador, Victor Civita, já havia tentado uma equivalente, a revista Escola (para professores)
que circulou por poucos anos, de 1971 a 1974. Sobre as revistas Escola e Nova Escola, D. Revah. Escola e
Nova Escola: faces de um velho sonho (2013) e M. R. A. Toledo e D. Revah, A indústria cultural e a política
educacional do regime militar: o caso da revista Escola. Revista Brasileira de História (2010).
35
de Buenos Aires; uma espanhola - Pedagogia - e quatro estadunidenses - Ame-
rican Journal of Education, Child Study, Teachers College Record e Yearbook of
International Institute-Teachers College29.
Com esses estudos parece ocorrer o mesmo que se verificou nos demais
relativos às revistas brasileiras: eles não compõem necessariamente programas
investigatórios dedicados, centrados, no exame de impressos periódicos em geral
e de revistas em particular. Ou seja, ainda não parece ser uma tendência no âm-
bito da história da educação no Brasil pesquisadores com dedicação exclusiva às
revistas educacionais e nem a impressos periódicos em sentido mais amplo. Essa
tendência também se verificou em relação aos estudos relativos a revistas estran-
geiras. Aparentemente, são eventuais nas carreiras dos pesquisadores, resultantes
das mais diversas circunstâncias, a serem devidamente contextuadas.
Assim como, foram encontrados autores que persistem no objeto - uma
única revista ou um conjunto de revistas brasileiras -, três dos trabalhos seleciona-
dos que abordam revistas estrangeiras, resultam de um programa de investigação
de periódicos educacionais estadunidenses postos em circulação no século XIX e
primeiras décadas do século XX30.
Destaque-se ainda, que há variantes em meio à massiva referência a R.
Chartier e M. de Certeau em estudos sobre impressos, impressos periódicos e
revistas de educação e ensino, que também precisam ser contextuadas. As referên-
cias a M. Foucault são frequentes; salientam-se, em estudos de revistas de Edu-
cação Física, em pesquisas sobre o corpo, sobre práticas eugênicas e higiênicas. F.
Sirinelli também comparece, ainda que pouco, mas principalmente em pesquisas
que abordam revistas como elementos de agregação e amalgamação de redes in-
telectuais e políticas. Sirenelli é frequente nos estudos de M. J. Warde, conjugado
com W. Lepenies e R. Collins, que também operam no âmbito da história dos
intelectuais.
Ficam, assim, registradas pistas promissoras para os historiadores da edu-
cação investirem em pesquisas de impressos periódicos; revistas em particular.
29 Ver por exemplo: A. L. C. Fernandes, A santa causa da instrução e o progredimento da humanidade. Re-
vistas Pedagógicas e construção do conhecimento pedagógico no Brasil e em Portugal no final do século XIX
(2004), tese de doutorado orientada por A. W. P. C. Mendonça (em outra versão, esta tese foi defendida
na Univ. Lisboa, em 2006, sob orientação de A. Nóvoa; L. C. Barreira, Circulação de modelos sóciopedagó-
gicos: experiências em educação escolar em Portugal no início do século XX (2014); V. T. Valdemarin, Modelos
para a formação de professores nas páginas do Teachers College Record (1900-1921) (2016).
30 M. J. Warde, G. Stanley Hall e o child study: Estados Unidos de fins do século XIX e começo do século
XX, «Revista Brasileira de História de Educação», vol. 14, n. 2, 2014, pp. 243-270; M. J. Warde, O
International Institute do Teachers College, Columbia University, como epicentro da internacionalização do
campo educacional, «Cadernos de História da Educação», vol. 15, n. 1, 2016, pp. 190-221; M. J. Warde,
Periodismo educacional: Estados Unidos, do século 19 às primeiras décadas do século 20, «História da Edu-
cação», vol. 20, 2016, p. 95-120.
36
Referências
37
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1941-1990. Répertoire analytique. Paris: INRP, 2000-2005.
REVAH, Daniel. Escola e Nova Escola: faces de um velho sonho. História da Educação,
v. 17, p. 79-99, 2013.
38
DE VROED, Mauritis. Bijdragen tot de Geschiedenis van het Pedagogisch leven in België
in de 19de en 20ste eeuw. De Periodieken. Grand Louvain, Be: Rijksuniversiteit te
gente/Universtié Catholique de Louvain, 6 vols., 1973-1987.
DIAS, Enéias B. Revista da Escola Normal de São Carlos (1916-1923): um estudo sobre
idéias e práticas educacionais. 2009. Dissertação (Mestrado). Universidade do Estado
de são Paulo. Araraquara, 2009.
FARIA Filho, Luciano M. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e urbana em Belo
Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2000.
39
Monarcha, Carlos. Revista do Jardim da Infância: uma publicação exemplar. In:
MONARCHA, Carlos (org.). Educação da infância brasileira (1875-1983). Campinas:
Autores Associados/FAPESP, 2001.
MORSE, Richard. Formação histórica de São Paulo (De comunidade à metrópole). São
Paulo: Difel, 1970.
Nery, Ana Clara B. A Sociedade de Educação de São Paulo: embates no campo educacional.
1999. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999.
40
TOLEDO, Cézar A. A. de; NETO, Juscelino P. Os jesuítas e a educação no programa
da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1939). Cadernos de História
da Educação, vol. 9, n. 2, p. 397-411, 2010.
WARDE, Mirian J. G. Stanley Hall e o child study: Estados Unidos de fins do século
XIX e começo do século XX. Revista Brasileira de História de Educação, vol. 14, n. 2, p.
243-270, 2014.
41
Anexo
42
Quadro 1: Revistas de educação e ensino brasileiras estudadas por historiadores da educação brasileiros entre 1988-202131
Tipo Título (105) Ciclo de vida Cidade/Estado Responsável
Revista Oficial, mantida 1 Revista Pedagógica 1890-1896 Distrito Federal/RJ Pedagogium/Ministério da Instrucção Publica, Correios e Telegraphos
por órgão de Governo 1892-1892
2 Revista do Ensino 1925-1940 Belo Horizonte/MG Diretoria de Instrucção Publica de Minas Gerais
27 1946-1971
Educação e Ensino – Revista
3 1897-1897 Distrito Federal/RJ Diretoria Geral da Instrução Pública Municipal do Distrito Federal
Pedagogica
Escola – Revista Official do
4 1900-1935 Belém/Pa Diretoria Geral da Instrução Pública do Estado do Pará
Ensino (A)
Annuario do ensino do Estado Directoria Geral da Instrucção Publica/
5 1907-1937 São Paulo/SP
de São Paulo Departamento de Educação do Estado de São Paulo
6 Revista do Ensino 1920-1920 Manaus/Am Diretoria Geral da Instrução Pública do Estado do Amazonas
7 Revista de ensino primário 1922-1922 Florianópolis/SC Directoria Geral da Instrucção Publica do Estado de Santa Catarina
8 Revista Escolar 1925-1927 São Paulo/SP Directoria Geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo
9 Revista do Ensino 1927-1931 Maceió/Al Orgam Official da Directoria Geral da Instrucção Publica de Alagoas
1927-1930 Directoria Geral da Instrução Pública/Sociedade de Educação de São Paulo
10 Educação
1930-1931 Diretoria Geral da Instrução Pública de São Paulo
Escola Nova
1933-1943
Revista de Educação Diretoria Geral do Ensino de São Paulo
1944-1947 São Paulo/SP
Educação
1951-1952, Diretoria Geral do Ensino do Estado de São Paulo /
Revista de Educação
1961 Departamento de Educação do Estado de São Paulo
Diretoria Geral de Instrução Pública do Distrito Federal/
11 Boletim de Educação Pública 1930-1935 Distrito Federal/RJ
Departamento de Educação do Distrito Federal
Revista Nacional de
12 1932-1934 Rio de Janeiro/RJ Museu Nacional do Rio de Janeiro/Ministério da Educação e Saúde Pública
Educação
13 Revista do Ensino 1932-1942 João Pessoa/Pb Diretoria do Ensino Primário o Estado da Paraíba
Secretaria do Interior e da Justiça/Secretaria da Educação e Saúde Pública
14 Revista de Educação 1934-1937 Vitória/ES
do Espírito Santo
1939-1942
15 Revista do Ensino 1951-1978 Porto Alegre/RS Secretaria de Educação e Saúde do Rio Grande do Sul
1989-1992
16 Revista de Educação Pública 1943-1958 Rio de Janeiro/RJ Secretaria Geral de Educação e Cultura do Rio de Janeiro
Revista Brasileira de Estudos Distrito Federal/RJ e
continua... 17 1944- INEP/Ministério da Educação e Cultura
Pedagógicos Brasília
continua...
43
14 Revista da Educação Física/UEM 1988- Maringá/Pr Departamento de Educação Física da Universidade Estadual de Maringá
continua...
46
continua...
48
Revista de pais Federação Nacional das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais
1 Mensagem da APAE 1963- Distrito Federal/Brasília
1 (FAPAEs)
Introdução
32 Este capítulo é uma republicação do artigo GUALTIERI, R.C.E. Métodos de ensino para a inovação
pedagógica nas décadas de 1930 a 1950. O que a “Revista de Educação” de São Paulo divulga? His-
tory of Education & Children’s Literature, XVI, 2 (2021), pp. 269-291, que integra o dossiê Journals for
teachers, children and youth as a transnational phenomenon. Directions and experiences of the periodical press
in Italy, Brazil, Spain, France and United States between political, social and cultural changes in 19th and
20th Centuries, edited by Alberto Barausse, Claudia Panizzolo, Roberto Sani and Mirian Jorge Warde.
Os dados apresentados e discutidos no artigo foram obtidos na pesquisa realizada entre 2017 e 2021
“O ethos da escola seletiva numa perspectiva histórica (1930-1960)” e financiada pela Fundação de
Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp). Na presente versão do texto, houve alteração do título do
artigo original e algumas modificações na forma escrita.
49
historiografia assinala que essa publicação, para a época, “se configura como uma
das publicações mais duradouras e significativas no âmbito da imprensa periódica
educacional do país” (MELLO, 2007, p. 91).
33 Considerando essa alternância de nomes entre «Revista de Educação» e «Educação», neste capítulo,
ao se referir a ela no período entre 1931 e 1961, será registrado, por facilidade, Revista ou Revista de
Educação.
34 Expressão utilizada na apresentação da Revista Educação, Vol. II, n.º 3, Mar. 1928, verso da capa.
35 Essa informação consta no verso da contracapa da Revista de Educação, Vol. IX e X, n.º 9 e 10, Mar.
50
dição que predominou com o passar dos anos, reforçada por decisão nos anos 1940
de que “todos os institutos oficiais de ensino” passariam a receber um exemplar da
revista36. Isso dá a dimensão de sua abrangência, embora, evidentemente, não do
real impacto daquilo que tencionava fazer em relação às escolas e aos educadores
com quem pretensamente dialogava. Esse aspecto de ser um veículo oficial com
tal abrangência interessa para os propósitos deste capítulo que visa compreender a
natureza dessa interlocução.
A periodicidade variou de mensal a anual, passando, ao longo do tempo,
por várias outras possibilidades37, em função de alegadas crises financeiras asso-
ciadas à instabilidade institucional. Houve mudanças constantes nos titulares da
Secretaria de Educação à qual a Diretoria de Ensino, responsável pelo periódico,
era vinculada, como também houve mudanças na titularidade da própria Dire-
toria.
As trocas frequentes dos administradores na década de 1930 e parte da de
1940, de certa forma, espelham as mudanças políticas que ocorreram nesses anos
com a ascensão de Getúlio Vargas no âmbito da administração federal do Brasil e
as consequentes alterações nos espaços de poder nos Estados, tudo agravado pe-
los acontecimentos em âmbito internacional, até meados dos anos 1940. Getúlio
Vargas assume a chefia do governo provisório no início de novembro de 1930 e,
como afirma Monarcha (2010, p. 70), a partir de então, “abria-se no Estado de
São Paulo um ciclo conflagrado caracterizado por uma sucessão vertiginosa de
interventores federais”, seguida de acomodações nos cargos dirigentes dos vários
setores da administração estadual, e os da instrução pública não constituíram
exceção. Tal situação de interventores federais administrando o estado paulista
somente é revertida a partir de meados dos anos 1940, com a redemocratização
do país e, de fato, no início de 1947, quando assume um governador eleito.38
No Quadro 1, em que há o registro dos administradores no período entre
1931 e 1961, é possível constatar as descontinuidades, com situações em que em
apenas um ano há três dirigentes que se sucedem na Diretoria de Ensino.
1935.
37 Mensal entre 1927 e 1930; bimestral, entre 1931 e 1932; trimestral, entre 1933 e 1934; quadrimestral
em 1951; semestral entre 1935 e 1937, em 1944, 1945 e 1961; anual entre 1938 e 1944; 1946-1947 e
1952.
38 Cabe assinalar que, entre abril de 1935 e dezembro de 1936, assumiu um governador eleito, mas o
período, conhecido como período constitucional, durante a era Vargas, foi curto - entre 1935 e 1937.
51
Quadro 1: Administradores da Secretaria e do Departamento de Educação nos anos de publi-
cação da Revista de ensino no período 1931-1961.
Francisco de Sales Gomes Júnior; José Rodrigues Alves Sud Mennucci; João Toledo; Fernando de
1932
Sobrinho; Augusto de Meireles Reis Filho Azevedo
Augusto de Meireles Reis Filho; Waldomiro Silveira; Fernando de Azevedo; Sud Mennucci;
1933
Christiano Altenfelder Silva Francisco Azzi
Christiano Altenfelder Silva; Augusto Meireles Ramos;
1934 Francisco Azzi; Luiz da Motta Mercier
Adalberto Bueno Neto; Márcio Pereira Munhoz
1935 Márcio Pereira Munhoz; Cantídio de Moura Campos Luiz da Motta Mercier; Almeida Júnior
Sebastião Nogueira Lima; Jorge Americano; Antônio Sud Mennucci ; Milton Camargo da Silva
1945
Ferreira de Almeida Júnior Rodrigues
Antônio Ferreira de Almeida Júnior; Plinio Caiado de Luiz da Mota Mercier; Milton Camargo da
1946
Castro Silva Rodrigues
Plinio Caiado de Castro; Francisco Malta Cardoso;
1947 Luis Gonzaga Noveli Júnior; Aloísio Lopes de Oliveira; Thales Castanho de Andrade
Fernando de Azevedo; Francisco Brasiliense Fusco
948 a
Não houve publicação da Revista
1950
Ary Albuquerque; Juvenal Lino de Matos; Francisco
1951 Thales Castanho de Andrade
Antonio Cardoso; Juvenal Lino de Matos
1952 Antonio de Oliveira Costa Thales Castanho de Andrade
1953 a
Não houve publicação da Revista
1960
1961 Luciano Vasconcelos de Carvalho Jair de Moraes Neves
39 Solicitação impressa no verso da capa da Revista Educação, Vol II, n.º 3, Mar 1928.
53
e da presença de professores primários, formados nas escolas normais, que atua-
ram como “teorizadores de modelos de educação e métodos de ensino e autores
de obras didáticas de larga repercussão” (MONARCHA, s/d, p. 2). No caso do
periódico em análise, de fato, esses “teorizadores” de modelos e métodos, alguns
dos quais autores de obras didáticas, são os que partilham suas experiências e con-
vicções nas páginas do periódico como será mostrado mais adiante neste texto.
Na estrutura da Revista, os textos desses colaboradores aparecem na pri-
meira seção. Outras seções especializadas integram a organização do periódico e,
apesar de sofrerem alterações, durante as décadas de existência, de modo geral,
elas se destinam a informar sobre normas legais, reproduzindo decretos e resolu-
ções expedidas pela Diretoria de Ensino, como também dar publicidade a ações e
realizações da administração pública e ainda divulgar resenhas de livros, eventos
educacionais, indicações ou reproduções de textos já publicados em periódicos
nacionais e internacionais.
A ambição desse periódico é ampla e inclui oferecer orientações oficiais,
auxiliar o trabalho do professor, veicular debates educacionais sem exclusividade
para qualquer grau de ensino, embora a interlocução com o curso primário seja a
maior até o final dos anos 1950.
Vilela (2000), conforme apontado por Mello (2007), ao estudar os discur-
sos veiculados nos artigos que considera representativos – pela projeção que seus
autores têm no cenário educacional da época ou pela frequência com que publi-
cam no periódico –, avalia que essa ambição se realizou com ênfases diferentes ao
longo do tempo, ora se tornando mais explicitamente a voz oficial, ora promoven-
do com mais força o debate educacional, ora auxiliando o trabalho pedagógico do
professor, circunstância que Vilela interpreta como mudanças de escopo.
Mortatti (2000, p. 182) também concorda que se trata de diferentes orien-
tações que acabaram por produzir, ao longo do tempo, diferentes revistas, mas re-
conhece que guardam um traço comum – o de se apresentarem como pertencente
à Diretoria de Ensino ou Departamento de Educação.
Mudanças nas ênfases e orientações são esperadas, em especial, no caso
desse periódico que conta com tantas descontinuidades administrativas nessas
três décadas. No entanto, para os propósitos deste capítulo, interessam exatamen-
te o apontado como traço comum e o fato de que a interlocução com professores
é mantida ao longo dos anos, seja por meio de textos que atualizam normas e re-
gulamentos referentes à organização e ao funcionamento da escola e da profissão
docente em São Paulo, seja por artigos reproduzidos de educadores, já publicados
em outras revistas e jornais nacionais ou estrangeiros de interesse para a escola, ou
ainda, por meio de textos relacionados a práticas pedagógicas.
Ligados a matérias do currículo escolar, os textos sobre práticas pedagó-
gicas abrangem conteúdos e estratégias de ensino, abordagens teóricas, materiais
54
didáticos específicos, além de tratarem de problemas que podem estar associados
a essas práticas como disciplina do aluno e rendimento escolar. São textos publi-
cados na seção dos colaboradores do periódico e que se destinam, preferencial-
mente, à escola primária, mas também há os voltados para a escola secundária.
Considerando as publicações entre 1931 e 1961, a análise recairá sobre alguns
desses textos que tratam de práticas pedagógicas, formas de fazer do professor
primário, identificados neste artigo sob o título geral de “métodos de ensino”.
Os autores desses textos, ao discutirem inovações pedagógicas, baseadas
em suas experiências, leituras e ou em obras didáticas escritas por eles, se dirigem
diretamente ao professor. Tal circunstância combinada com o fato de a Revista
contar com colaboradores, atuando dentro e fora do espaço escolar sustentam
o critério de escolha para análise desses textos. Assim, ser ou não autor de livro
didático, atuar profissionalmente, dentro ou fora da escola, trazem especificidades
na forma de os colaboradores abordarem o professor? Em outras palavras, suas
abordagens traduzem a “particularidade” de seus “lugares de fala”? (CERTEAU,
2008, p. 65) De que modo? O que isso pode representar para a época? Em que
contribui para compreender os fazeres educacionais?
Pode parecer imprópria a opção por examinar as publicações nesse arco de
tempo relativamente amplo e no interior de um periódico cuja administração foi
acidentada em termos de troca de comando, projeto editorial, viabilidade econô-
mica, organização interna, escopo, características que levaram alguns historiado-
res da educação, como já mencionado, a considerarem não como uma revista, mas
várias. No entanto, levamos em conta a advertência de Certeau (1998, p. 311) de
que “o tempo que passa, separa ou liga” e, desse modo, a amplitude temporal favo-
receu, no presente estudo, a percepção de recorrências no modo como diferentes
colaboradores da Revista falam com o professor, ao visarem instaurar práticas
pedagógicas pensadas como exemplares.
As recorrências encontradas talvez ainda não possam ser compreendidas
como generalizáveis, mas apontam para uma possibilidade interpretativa a ser
discutida a seguir.
55
cadas seguintes. Referenciados, ou não, na Psicologia, destacam a importância de
que programas, planos de aula, estratégias de ensino e materiais didáticos sejam
produzidos e implementados, tendo em vista o que consideram ser as necessida-
des e os interesses de quem aprende, abordagem nada incomum nos anos 1930
e, na Revista, aparece como um princípio para vários autores, também em anos
posteriores.
N.º total
Métodos de
Ano/Vol./Num/Mês N.º volumes de artigos
ensino
publicados
56
1937 (Vol. XIX e XX n.º 19 e 20 Set Dez) 2 11 3
1939 (Vol. XXIII a XXVI n.º 23 a 26 Set Dez 38 e Mar Jun 39) 2 10 2
Decreto n. 17.698, de 26 de
novembro de 1947
1947 (Vol. XXXVI n.º 54 a 57 Jan Dez) 1
(Consolidação das Leis do
Ensino)
1961 n.º 66 1 10 6
1961 n.º 67 1 10 7
57
únicas e homogêneas, chama a atenção um aspecto que se revelou uma tendência
no âmbito do periódico. Ao longo dessas três décadas, o alcance das inovações
metodológicas, seu sucesso ou insucesso para atingir o pretendido, é diferente-
mente estimado pelos autores, mas suas perspectivas guardam relação com as
funções que ocupam na estrutura do sistema educacional e com os interesses daí
decorrentes.
Para exemplificar, são trazidos, a seguir, excertos de textos que tratam, es-
pecificamente, do ler e escrever e da matemática na escola primária. Os autores
são variados e ocupam funções diferentes no sistema educacional – atuam na
escola ou na administração regional ou central – e escrevem orientações ou su-
gestões para os professores.
No texto, publicado em 1932, de José Ferraz de Campos, ex-professor de
escola primária, ex-professor da Escola Normal de Itapetininga e, na época da
publicação, membro do corpo de inspeção da Diretoria Geral do Ensino, ao dis-
cutir o ensino das frações, deixa claro que as dificuldades dos alunos seriam su-
peradas se ocorresse “o emprego de um novo método no ensino concretizado das
frações” (CAMPOS, 1932, p. 67).
O ensino das frações, avalia Campos (p. 66), “foi sempre e continua a ser
deploravelmente mal ministrado no curso preliminar” o que resulta em um “de-
sastre”.
Sentindo-se incapazes de um ensino objetivo bem feito, de po-
derem explanar e transmitir conhecimento raciocinado e cons-
ciente de multiplicação e divisão de quebrados às classes de 3o
e 4o anos do curso preliminar, professores há que tentam a in-
dução das regras, naqueles casos, pela teoria que se encontra nas
Aritméticas do curso secundário, absolutamente inadequada,
abstrata e fora do alcance da mentalidade ainda incipiente dos
seus alunos. O desastre é certo trazendo, a mais, por contrapeso,
além da tortura inútil [...]; o desinteresse, a desatenção e, pior,
que tudo, a ideia, a certeza (!) que ante os fracassos acumulados
se vai formando, cada aluno, de que “não tem jeito”, “não tem
queda”, “não dá para a Matemática”. (CAMPOS, 1932, p. 66)
58
considerandos iniciais, justificando em seu texto que é para “evitar tantos males”
que “de longa data” vem aconselhando o emprego de um novo método (p. 67).
Na avaliação de Valente e Pinheiro (2015, p. 30), a vivência de José Ferraz
de Campos como inspetor geral de ensino deu-lhe oportunidade de verificar em
diferentes escolas como o ensino de Aritmética acontecia. Além dessa experiên-
cia, destacam os autores, a familiaridade com as discussões atualizadas sobre o
ensino de matemática contribuiu para que passasse a escrever orientações que iam
ao encontro das propostas da escola ativa, uma das quais é a obra “Cálculo para
principiantes”. Lançada em 1928, é destinada a professores e contém prescrições
sobre como trabalhar vários tópicos da aritmética, supostamente orientadas se-
gundo a pedagogia moderna.
Nessa obra didática, contudo, é possível constatar que os novos métodos
são referidos como solução para cessar os males decorrentes do ensino de cálculo
não ancorado na pedagogia moderna, mas a retórica é diferente, própria dos ma-
nuais didáticos, tal como aponta Valdemarin (2010, p. 132), “destinada à sedução,
ao convencimento e à conversão”. Assim, afirma Campos na introdução:
Corrigir todos os males acima apontados, segundo os preceitos
da moderna pedagogia, orientando o professor, foi o intuito que
tivemos, ao organizar este trabalho; nele encontrará o mestre, à
mão, o material necessário ao ensino da Aritmética, nas classes
iniciantes do curso preliminar. (CAMPOS, 1928, p. IX)
Essa retórica diversa remete a Certeau (1998, p. 252), quando diz “o lugar
de onde se fala é exterior ao empreendimento escriturístico” e faz pensar que, no
texto didático, Ferraz de Campos não fala do lugar do inspetor que avalia e julga,
mas do autor de um livro didático que quer seduzir e converter. De outro modo,
Campos, um ex-professor primário e ex-professor de Escola Normal, escreve na
Revista, identificando-se como inspetor geral do ensino e, imbuído dessa função
de fiscalizar e orientar, analisa o “desastre” dos resultados do ensino de matemá-
tica como sendo responsabilidade dos ex-colegas, que não inovam suas práticas, e
as crianças são suas vítimas. Ele escreve do lugar de inspetor para as autoridades
do sistema, talvez reivindicando a imposição de certos fazeres, mas certamente
justificando por que impor e não convencer já que de “longa data” aconselha os
professores.
No mesmo ano de 1932, mas em outro volume, Abel de Faria Sodré, di-
retor do Grupo Escolar de São Carlos, atuando, portanto, diretamente na escola,
escreve sobre a alfabetização que considera o “problema vital para o Estado de
São Paulo”, dado o grande número de crianças que repetem o primeiro ano e
não liberam suas vagas para novas matrículas. Para enfrentar a repetência, Sodré
(1932, p. 33) estimula os educadores, propondo “aventemos novos métodos ou
novos processos de alfabetização”, “estudemos juntos” para, em seguida, apresen-
59
tar o “nosso método”, desenvolvido quando era professor de escola isolada em São
Carlos. Sodré deixa entender que, no final do ano, se alguma criança ainda per-
manecer analfabeta o problema não será decorrente do método ou do professor.
Somente “a falta de frequência por moléstia ou anormalidade poderá justificar” (p.
34). Em suma, enfatiza que, acertado o método, se houver fracasso, a justificativa
se encontra na criança. É uma forma de valorizar a própria proposta e o trabalho
do professor que o seguir, responsabilizando a criança pelo eventual fracasso. O
problema da repetência, para esse autor, está nas inadequações do método e, uma
vez corrigidas, se ainda for registrado o fracasso, a causa deve ser buscada na
criança.
O diretor Sodré, quando escreve esse artigo na Revista, está no lugar de
quem deve convencer e converter os educadores da escola, de quem quer “fazer
crer”.
Uma credibilidade do discurso é em primeiro lugar aquilo que
faz os crentes se moverem. Ela produz praticantes. Fazer crer é
fazer fazer. Mas por curiosa circularidade a capacidade de fazer
se mover – de escrever e maquinar os corpos – é precisamente
o que faz crer. Como a lei é já aplicada com e sobre os corpos,
‘encarnados’ em práticas físicas, ela pode com isso ganhar cre-
dibilidade e fazer crer que está falando em nome do ‘real’. Ela
ganha fiabilidade ao dizer: ‘Este texto vos é ditado pela própria
Realidade’ 41. (CERTEAU, 1998, p. 241)
42 Mortatti (2000, p. 204) também constata a secundarização do papel da cartlha em outro texto de Sodré.
60
imposto um dever de estudar a criança e observar suas necessidades espirituais.
Tanto quanto Sodré, ele se inclui entre os professores, nessas preliminares, para
afirmar que “aos poucos, iremos renovando nossos métodos de ensino” (SOA-
RES, 1932, p. 131). Diferentemente, portanto, da aparente impaciência do ins-
petor Campos, que afirma virem “de longa data” os conselhos para os professores
mudarem de método.
Soares, ao expor suas convicções sobre o tema, apresenta o que identificou
como causa dos resultados irregulares no ensino da leitura com a aplicação do
método analítico. Depois de pesquisar em sua escola e em escolas vizinhas, afir-
ma reconhecer que o método analítico funciona diferentemente nos meios rural
e urbano.
Foram notáveis os resultados do método analítico nos meios
adiantados, onde a criança costuma ir à escola já de posse de
grande traquejo de linguagem [...]. Agora, no sítio, onde o tra-
quejo de linguagem é quase nulo [...] a coisa foi outra, para-
doxalmente maiores foram os péssimos resultados do método.
(SOARES, 1932, p. 134)
61
o recorde de repetências “(84%) foi exatamente um dos da capital” e conclui seu
raciocínio, argumentando que o prof. Soares “parece ligar demasiada importância
a ‘essa inferioridade’ e mesmo exagerá-la” (LEITE, 1933, p. 5 e 6).
A oposição de Leite, de fato, é relativa à defesa que Soares ainda faz do
método analítico para o ensino da leitura, um debate que vinha ocorrendo já há
alguns anos, bem documentado no trabalho de Mortatti (2000). Leite até con-
corda com a perspectiva de Soares de que os livros para a aprendizagem por esse
método contêm “linguagem elevada” que deixa a criança confusa, mas tanto a
criança do meio urbano quanto do rural e, por isso, tece longas críticas ao método,
apontando as falhas do processo, chamado por ele de “pernicioso em extremo”,
por estar em desacordo com o que seria a “lógica da criança” (LEITE, 1933, p.10).
O prof. Leite também critica o método global de O. Decroly cujo texto
traduzido foi publicado na Revista no ano anterior, embora concorde em parte
com o pedagogista belga, sobre o alcance do método.
Estamos perfeitamente de acordo com o Dr. Decroly, quando
diz que ‘entre crianças normais é perfeitamente possível obter a
leitura sem passar por exercícios sistemáticos sobre a decompo-
sição em sílabas e letras’, mas, somente quanto ao ensino INI-
CIAL da leitura de sentença por meio da aprendizagem das
palavras, e com a condição de acompanha-lo – livre de preocu-
pação – o ensino sistematizado das sílabas, – para conduzir à al-
fabetização INTEGRAL. (LEITE, 1933, p. 10, grifos do autor)
43 Em relação ao “Guia”citado, trata-se de uma cartilha, Guia do ensino da leitura, que o próprio autor
informa, em texto de 1930, que aguarda a possibilidade de ser publicada, segundo Mello (2007, p. 209).
62
Esse contraste na abordagem dos efeitos e do alcance do método continua
perceptível em anos posteriores.
O texto de Luiz Gonzaga Fleury, do corpo técnico da Diretoria de Ensino,
publicado em 1936, trata do ensino da tabuada, de modo semelhante a Ferraz
de Campos, e entende que a aprendizagem de matemática depende de método
adequado. Baseando-se em sua experiência, relata o processo que adotava, quan-
do era professor em classes do 2º. Ano, para conseguir que os alunos aprendes-
sem a tabuada sem dificuldade e “com prazer”. Para isso, articulava o ensino com
historinhas e desafios para que os alunos a memorizassem. Reconhece que suas
práticas para memorizar a tabuada provocará “arrepio de horror pedagógico”, mas
se justifica, apoiando-se no escolanovista, autor de obras didático-pedagógicas,
nascido em Porto Rico, Alfredo Miguel Aguayo (1866-1948). Para corroborar
suas estratégias, cita Aguayo, quando afirma que os trabalhos e exercícios são in-
dispensáveis para adquirir práticas, formar hábitos e atitudes mentais (FLEURY,
1936, p. 38 e 39).
Ao expor suas estratégias, ressalta que, com ele, as crianças “aprendiam
com a maior facilidade, de sorte que, em pouco mais de uma semana, venciam,
com pequeninos esforços e com prazer intenso, toda a tabuada de multiplicar”
(FLEURY, 1936, p. 32). No entanto, ao mesmo tempo, afirma que o processo
de que lança mão não tem os mesmos efeitos com todos os professores, porque
“nem todos os professores conseguem comunicar-lhe igual intensidade de vida, e
o interesse da criança evapora-se” (p. 32). E conclui
os métodos e processos de ensino devem se adaptar, por um lado,
à psicologia das crianças, e, por outro, à psicologia dos mestres.
Mas, geralmente nos esquecemos que também a psicologia dos
mestres é uma realidade iniludível, que é inútil pretender forçar.
(FLEURY, 1936, p. 42)
44 Essa mesma posição já havia sido exposta em texto anterior de Fleury (1930).
63
sificação e Promoção de Alunos do Departamento de Educação, do estado de São
Paulo e também presidente da Comissão de Concursos de Ingresso, Promoção e
Remoção.
A análise dessa autora sobre a produção escrita de Fleury na Revista, entre
outros aspectos, também destaca que o educador parece se apoiar na crença de
que o êxito do trabalho dos professores decorre de uma boa atuação e observa que
em relação aos alfabetizadores que não conseguem aplicar o método analítico, ele
os incentivava
para que se esforçassem em atingir os melhores resultados a par-
tir do uso de ‘bons métodos’ [...], seguindo as características de
sua psicologia individual, pois, segundo Fleury, era impossível
deixar de mencionar as influências e o peso da individualidade e
da ‘psicologia’ particular do professor [...]. (GOULART, 2015,
p. 148)
64
gas, estribado em autoridades as mais respeitáveis no assunto,
sem pretender estar dizendo novidades. Não faço imposições
como responsável pela orientação didática do estabelecimento,
pois penso que toda a orientação imposta discricionária e into-
lerantemente, por melhor que seja, torna-se antipática e produz
sempre resultados negativos. (CALDEIRA, 1940, p. 50)
65
de fora se encontre aí coligida, classificada, imbricada num sis-
tema e, assim transformada; ou fazer que as regras e os modelos
elaborados neste lugar excepcional permitam agir sobre o meio
e transformá-lo. (CERTEAU, 1998, p. 225 e 226)
66
tural), do Departamento de Educação45 escreve sobre “Metodologia da Lingua-
gem no Primeiro Grau”. Como uma das responsáveis por orientações técnicas,
comenta as dificuldades que encontrou entre os que frequentaram os Cursos de
Metodologia que ministrou na capital e no interior do Estado, com a participa-
ção, segundo ela, de “perto de 200 professores, entre os quais alguns diretores e
inspetores escolares”. Entre os problemas, arrola “desconhecimento de métodos e
processos de ensino da leitura”; “dificuldades no estabelecimento de critérios para
a escolha de materiais de leitura”; “resistência a processos que, embora comprova-
damente eficientes, exigem do Professor real preparo técnico-pedagógico e maio-
res conhecimentos do comportamento infantil” (OLIVAN, 1961, p. 141-144).
Critica o professor primário “que não se sente na obrigação de estudar” e, por isso,
“verifica-se a situação cômoda e rotineira do emprego das mesmíssimas téc-
nicas, ano após ano, porque o sair dessa rotina implicaria estudos demorados,
planejamentos e confecção de material didático” (p. 143 e 144).
Em síntese, na Revista, durante e período analisado, inovações metodo-
lógicas são apresentadas como condição para transformar o ensino, posto que
podem transformar o modo de atuar do professor. Os textos que discutem as
inovações representam apenas uma parte das publicações na Revista e o que foi
aqui destacado resulta de uma seleção dessa parcela. Esse aspecto é suficiente
para indicar a importância de ter cautela para admitir qualquer generalização. No
entanto, a detecção de estratégias diferentes, mas repetidas, de convencimento
ou de imposição de formas de ensinar ou de formas de interpretar os problemas
educacionais, responsabilizando o professor ou alunos e familiares, dependendo
do lugar de quem fala, contam algo sobre a forma como interagem os agentes que
atuam na escola e nos órgãos da administração educacional. Esse aspecto será
problematizado a seguir.
Para concluir
67
que, nos anos abrangidos pelo presente capítulo, as várias reformas técnico-admi-
nistrativas ocorridas nesses serviços vão na direção da progressiva burocratização,
divisão do trabalho e departamentalização.
Mudanças que visam incrementar a eficiência dos serviços, pela criação
de novas funções e novos cargos para a assistência técnica do ensino e pela am-
pliação dos serviços de inspeção escolares. Funções e cargos criados para intervir
racionalmente no processo educativo, conformar mentalidades, prescrevendo e
padronizando práticas. Esses estudos mostram de modo detalhado como essas
funções técnicas se diversificam e ampliam, por meio das reformas no interior da
Diretoria de Ensino ou do Departamento de Educação da Secretaria.
Assim por exemplo, em dezembro de 1930, ocorre a reorganização da Di-
retoria Geral da Instrução Publica e já nos “considerandos” do Decreto46, anun-
cia-se a necessidade de separação entre os serviços técnico e administrativo, sob
o argumento de que não estavam perfeitamente discriminados nem nas normas
legais nem nas praxes adotadas. Tal discriminação visa evitar, segundo ainda os
considerandos, a dualidade nos serviços e, consequentemente, obter “economia” e
“maior eficiência dos serviços”. Com essa reforma, cria-se, de acordo com o artigo
5º., um “Serviço de Assistência Técnica” com sete funcionários, no total (dois
Assistentes Técnicos do ensino primário, um para o ensino normal, um para o en-
sino profissional e vocacional, um de psicologia aplicada, um para educação física
e um para o ensino de música). Em seguida, ocorrem algumas outras reformas
que ampliam significativamente o número de técnicos e de serviços técnicos47. O
impacto financeiro decorrente dessa ampliação leva a nova reorganização em ju-
lho de 1935, com a finalidade de compactar e racionalizar a estrutura do órgão, na
qual os serviços técnicos passam a se distribuir em cinco chefias, conforme artigo
5º., a saber: Educação Secundária e Normal; Educação Primária e Pré-Primá-
ria; Ensino Particular; Estatística e Publicidade e Prédios Escolares.48 Em 1947,
ocorre a cisão da Secretaria de Educação e da Saúde Pública, por meio de novo
Decreto49 e nele ficou estabelecido que ao Secretário da Educação competiria
reorganizar a pasta.
47 Por exemplo, Decreto nº 5335, de 7 de janeiro de 1932, amplia o número de funcionários para a As-
sistência Técnica e cria, de acordo com o Art. 5.º, o Serviço de Antropometria Pedagógica, com um
chefe, um técnico, um técnico adjunto, dois auxiliares e trinta professores em comissão e, pelo Art. 4.º,
o Serviço de Psicologia Aplicada que terá dois sub-assistentes, dois adjuntos e dois auxiliares efetivos
para as secções do estatística e arquivo, medidas mentais, medidas do trabalho escolar e orientação
profissional, sob a direção do assistente técnico de psicologia aplicada. O Decreto N. 5.828, de 4 de
fevereiro de 1933 cria um total de 15 Serviços Técnicos.
68
Segundo Santos (2019, p. 121-123), o Secretário da Educação da época
encaminhou ao governador do estado, o projeto de lei que reorganizava a Secre-
taria e, em seguida, enviou à Assembleia Legislativa de São Paulo, como previa o
regramento. No entanto, a pesquisadora não encontrou a lei originária resultante
desse projeto, mas identificou vários outros decretos que se sucederam ao de ju-
nho de 1947 e que foram configurando a reorganização do órgão educacional, aos
poucos. Em sua análise do projeto de lei e do conjunto de decretos que vieram
depois, destaca a nítida clivagem entre os aspectos administrativo e pedagógi-
cos e a implantação de uma estrutura organizada unicamente em departamentos
e diretorias e, no interior de cada departamento havia subdivisões em seções e
serviços. A autora ainda registra que uma ampla reorganização da Secretaria irá
ocorrer apenas em 1969.
A criação e a expansão dos serviços técnicos, como mostram Mate (2002)
e Santos (2019), tencionam, precisamente, incutir novas técnicas e princípios pe-
dagógicos, e, com o apoio da inspetoria geral e regional, controlar e garantir sua
aplicação. A Revista, mantendo-se vinculada a essa estrutura, corporifica esse
movimento.
Nessa circunstância, o professor ou diretor de ontem que se inclui entre os
colegas da escola para propor inovações, compartilhar experiências, convencê-los
e convertê-los é o mesmo inspetor ou assistente técnico de hoje, mas que, ao falar
desse outro lugar, não fala mais com eles, mas sim para eles e desse novo lugar,
avalia, desqualifica, responsabiliza para prescrever. “O lugar é o palimpsesto”, nos
alerta Certeau (1998, p. 310), metáfora perfeita para essa transmutação de discur-
so em função do lugar de onde se fala.
De outro modo, diretores ou professores que estão atuando na escola, falam
pela escola, valorizam seu próprio trabalho, evitam desqualificar o colega, pro-
curam seduzi-lo,consideram as inovações pedagógicas como possibilidades para
um novo fazer, porém, por vezes, tratam de responsabilizar, se houver insucesso,
os que estão diretamente implicados no processo educacional, os alunos, ou indi-
retamente, seus familiares, e até mesmo as instâncias superiores da administração.
Ao final, o que se observa é uma transferência de responsabilizações ou de
desresponsabilizações o que estimula a pensar o quanto essa estrutura hierarqui-
zada provoca o oposto do pretendido, ao crer ser possível padronizar currículos,
práticas, tempos, espaços e valores.
Assim, a análise de um impresso oficial como a Revista de Educação, que
atravessou três décadas, publicando debates, disputas e prescrições em torno do
que deve ser o melhor para escola, professor e criança permitiu apreender a hie-
rarquização, a burocratização e a fragmentação do trabalho educacional e efeitos
da tencionada racionalização.
69
Referências
CAMPOS, J. F. de. Das frações dobrando e rasgando papel. Educação. Vol. VI, n. os 1,
2 e 3, Jan-Mar, 1932, p. 66-73.
CAMPOS, J.F. de. Cálculo dos principiantes. São Paulo: Irmãos Ferraz, 1928, disponível
em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/159675
FLEURY, L.G. Sobre o ensino da leitura. Revista Educação, Vol. X, n.o 3, Jan-Mar,
1930.
FLEURY, L.G. O ensino da tabuada no 2º. Ano. Revista de Educação, Vols. XIII e
XIV, n.os 13 e 14, Mar.a Jun., 1936, p. 38-42
70
GOULART, I. do C. V. O ensino da leitura na produção escrita de Luiz Gonzaga
Fleury, entre 1922 a 1936. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá-PR, v.
15, n. 2 (38), maio/ago. 2015, p.133-158.
71
VALDEMARIN, V.T. .História dos métodos e materiais de ensino: a escola nova e seus
modos de uso. São Paulo: Cortez Editora, 2010.
72
3. “HABILIDADES FÍSICAS E MENTAIS DO
NEGRO AMERICANO” NO JOURNAL OF NEGRO
EDUCATION (1934)
Introdução
73
O retorno da elite sulista ao poder político nesses estados foi catastrófico para a
população negra. Os avanços obtidos na sua cidadania, a partir da emancipação
dos escravos (1863), passaram a ser restringidos por leis estaduais conhecidas
como Jim Crows (ANDERSON, 1988).
A legalidade dessas leis estaduais segregacionistas foi reconhecida pela
Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Plessy versus Ferguson - separados,
mas iguais - em 1896. Segundo essa decisão da Suprema Corte, a segregação
racial nos espaços públicos não feria a 14ª emenda, contanto que as condições
materiais oferecidas fossem iguais, o que não ocorria na prática. A tese do “sepa-
rados, mas iguais” passou a embasar a legislação segregacionista dos estados do
Sul e de alguns estados do Norte também, sendo a base jurídica que sustentou a
Era da Segregação.
Tal situação perdurou até pelo menos 1954, quando então a Suprema Cor-
te decidiu que a segregação na educação era inconstitucional no caso Brown vs
Board of Education. Essa decisão abriu caminho para o movimento dos direitos
civis e foi resultado de uma estratégia adotada pela National Association for the
Advancement of Colored People (NAACP) e que contou com o apoio do Journal of
Negro Education ( JNE) e de seu editor Charles H. Thompson (RAY, 2014).
O Journal of Negro Education ( JNE, daqui em diante) foi a primeira e mais
importante publicação especializada na educação dos negros nos Estados Unidos.
Fundada em 1932, por Charles H. Thompson, a revista ainda hoje continua sendo
editada pela tradicional Universidade de Howard – uma universidade historica-
mente negra e conhecida por formar grande parte dos intelectuais negros dos
Estados Unidos.
Acredita-se que o JNE oferece uma perspectiva privilegiada sobre o modo
como os intelectuais estadunidenses, que se reuniram em torno da revista, espe-
cialmente negros, mas também brancos liberais-progressistas, pensavam a edu-
cação e como incorporaram teorias pedagógicas e práticas escolares à luta por
direitos civis e, especificamente, contra a segregação educacional.
Todos os anos, o JNE publicava uma edição especial dedicada a debates
atuais de temas considerados relevantes para a educação da população negra dos
Estados Unidos. Nesses anuários, apenas especialistas eram convidados para pu-
blicar artigos. O anuário tinha como objetivo tornar o debate intelectual público
e contribuir para a formação de uma opinião pública. Tomados como objetos de
pesquisa, esses anuários podem revelar como a rede de intelectuais que se estabe-
leceu em torno da revista, apropriou-se de temas e os representou na medida em
que os considerava relevantes para a educação e para o avanço dos direitos civis
dos negros nos Estados Unidos.
Assim, minha pesquisa de doutorado toma como objeto 31 anuários pu-
blicados pelo JNE, entre os anos de 1932 e 1963, período no qual o fundador
74
Charles H. Thompson esteve à frente da revista como editor e no qual assinou a
maioria dos editoriais. Thompson foi o primeiro negro a obter o título de Philo-
sophy Doctor (PhD) em Psicologia da Educação pela University of Chicago e fez
sua carreira como professor na Howard University onde, em 1932, fundou o JNE.
Segundo Sirinelli (2003), uma das dificuldades de se estudar o grupo social
dos intelectuais está no seu caráter polimorfo, o que dificulta a própria definição
do significado do termo intelectual. As revistas aparecem como possibilidade de
superação dessa dificuldade, na medida em que conferem uma estrutura ao campo
intelectual, por meio de suas forças antagônicas de adesão. Assim, as revistas se
configuram como uma rede de relações que se define por meio de afinidades. Sob
esse aspecto, toma-se o JNE como um espaço de sociabilidade, de fermentação
intelectual e de relação afetiva.
Roger Chartier (1988) contribuí para superar os desafios relacionados a
análise e interpretação do texto contido em uma revista. Para ele, o sentido de
um texto só pode ser extraído na sua materialidade, pois trata-se de um produto
cultural. Os impressos estão sujeitos a uma série de procedimentos e restrições
característicos do seu campo. Desse modo, o impresso é entendido como um
instrumento de transmissão ideológica, na medida que cria representações e, tam-
bém, como um produto da indústria cultural, na medida em que está sujeito as
regras de um determinado campo. O JNE é entendido como um instrumento de
transmissão ideológica e está sujeito as regras do campo intelectual, na medida
em que é uma publicação acadêmica.
Neste texto, tem-se por objetivo apresentar ao leitor um dos 31 anuários
que serão analisados na pesquisa de doutorado, o anuário de 1934. Esta edição foi
escolhida por representar em suas páginas o debate intelectual acerca da eugenia,
hereditariedade e melhoramento da raça, que marcou os EUA durante as três
primeiras décadas do século XX.
Esse período foi marcado pela popularização de ideias sobre a hereditarie-
dade de características como preguiça, fraqueza mental, pauperismo, alcoolismo,
criminalidade e frouxidão sexual, bem como inteligência, economia, honestidade,
moralidade, laboriosidade e assim por diante. Isso era ensinado aos jovens nas
escolas e a seus pais em eventos estaduais e em revistas populares. Essas ideias
apresentavam a hereditariedade como fator determinante para o aprimoramento
da raça humana e sugeriam a procriação seletiva (SELDEN, 1999).
Argumento, aqui, que o anuário de 1934 reflete um esforço para descredi-
tar algumas ideias eugenistas que afirmavam a inferioridade do negro em relação
ao branco. Esse esforço se insere em um movimento maior de luta contra a se-
gregação escolar, tema que aparece no anuário do ano seguinte (1935). Para que
a segregação escolar fosse mitigada era necessário que o princípio eugênico de
inferioridade do negro fosse refutado.
75
Quem é quem no anuário de 1934 do JNE
76
Figura 1: Capa Journal of Negro Education
Fonte: FRONT MATTER. The Journal of Negro Education, v. 3, n. 1, Journal of Negro Education, 1934, http://
www.jstor.org/stable/2292134
Fonte: VOLUME INFORMATION. The Journal of Negro History 19, n. 1 (1934): i–iv. http://www.jstor.
org/stable/2714653 .
77
A capa, publicada na primeira edição do ano, trazia o título da revista,
JOURNAL OF NEGRO EDUCATION, em caixa alta e centralizado, com in-
formações sobre a publicação; sem cores. A paginação era numerada sequencial-
mente durante todas as edições do ano, reiniciando a contagem no ano seguinte.
A ideia era que o leitor pudesse encadernar as edições de um ano em um único
volume.
Os objetivos declarados da revista eram facilitar a disseminação de in-
formações sobre a educação dos negros; apresentar discussões que envolvessem
avaliações críticas das propostas e práticas relativas à educação destes; estimular e
patrocinar pesquisas sobre sua educação (RECTOR, 2007).
Seu fundador e editor, Charles Henry Thompson, nasceu em 1895 na cida-
de de Jackson, Mississipi. Seus pais eram professores no Jackson College, um dos
raros locais de cooperação inter-racial no estado do Mississipi. Thompson fre-
quentou a Virginia Union University e se juntou ao Exército durante a 1ª Guerra
Mundial. Em 1919, obteve seu segundo bacharelado em Psicologia pela Chicago
University. Um ano depois, obteve o título de mestre com a dissertação A Study of
the Reading Accomplishments of Colored and White Children (RAY, 2014).
Thompson voltou à Virginia Union University como professor e iniciou
seu doutorado na Chicago University em 1921. Nos anos seguintes, instruiu pro-
fessores em formação na Escola Normal Estadual em Montgomery, Alabama.
Em 1925, obteve o doutorado em Psicologia da Educação com a tese: Objective
Determination of a Curriculum for the Training of Kindergarten Primary Teachers.
Um ano depois, Charles entrou na Howard University, recrutado por Dwight
Oliver Wendell Holmes, reitor do College of Education, se tornando professor
titular em 1929. Thompson era filiado à National Association of Teachers in Colored
Schools (1904) e à NAACP (1909), da qual participou do quadro de diretores
(RAY, 2014).
Em 1931, Thompson apresentou o projeto do JNE para a Howard; obtida
a aprovação, a revista foi lançada no ano seguinte. Mesmo ano em que ocorreu o
III Congresso Internacional da Eugenia e foi iniciado o famigerado experimento
de Tuskegee, cujo objetivo era observar a evolução da sífilis não tratada em negros
adultos, sem seu consentimento. O JNE foi lançado em um momento em que as
ideias eugenistas se tornaram um movimento mundial e no qual haviam conquis-
tado grande popularidade nos Estados Unidos (RAY, 2016; SELDEN, 2019)
No que se refere a educação, havia uma grande disparidade entre a educa-
ção do Norte e do Sul dos Estados Unidos. O Sul apresentava os piores índices.
Havia uma diferença ainda maior entre a educação oferecida aos brancos e aos
negros, uma vez que os investimentos públicos no Sul se concentravam nas es-
colas que atendiam apenas a população branca. A educação dos negros sulistas
78
contava com a ação de filantropos do Norte e com seus próprios esforços, estabe-
lecendo-se lentamente, em condições bastante precárias (ANDERSON, 1988).
Durante a Grande Migração (1915-1940), centenas de milhares de pes-
soas negras fugiram de um sistema de exploração do trabalho rural degradante,
da violência dos linchamentos a quais eram submetidos no Sul e migraram para
as cidades industriais do Norte, atraídos pelos postos de trabalho criados com a I
Guerra Mundial (1914-1918). Jornais como o Chicago Defender estimularam os
negros do Sul a buscarem uma vida melhor no Norte. O crescimento da popula-
ção negra nas cidades – estima-se que até 1910 cerca de 80% dos negros dos Es-
tados Unidos viviam nas áreas rurais do Sul – fez crescer a ação de supremacistas
brancos e gerou revoltas raciais contra os negros. A Grande Migração alterou as
características das grandes cidades do Norte, como Chicago, Detroit e Nova York
e transformou problemas raciais, até então tratados como regionais, em questão
nacional (CREW, 1987).
Em meados da década de 1930, estados do Norte também estavam apro-
vando leis de segregação racial nas escolas. Nesse período, em 17 estados e no
distrito de Columbia, onde se situa a Capital Federal, a segregação era compulsó-
ria - Alabama, Arizona, Arkansas, Delaware, Florida, Georgia, Kansas, Kentucky,
Louisiana, Maryland, Mississipi, Missouri, Carolina do Norte, Carolina do Sul,
Oklahoma, Tennessee e Texas. Em 3 estados ela era permitida - Indiana, Nova
York e Wyoming. Apenas 12 estados haviam banido a segregação - Colorado,
Connecticut, Idaho, Illinois, Massachusetts, Michigan, Minessota, New Jersey,
Pennsylvania, Rhode Island, e Washington. Nos outros 14 estados, a legislação
era omissa (PETERSON, 1935).
O ambiente ideológico no qual se dava o crescimento da legislação segre-
gacionista era marcado pelas ideias eugenistas. Essas ideias se tornaram populares
durante as três primeiras décadas do século XX nos Estados Unidos e deram
suporte a leis segregacionistas, de esterilização compulsória e antimiscigenação,
como é o caso da Lei de Integridade Racial do estado da Virginia - que proibia
casamentos interraciais - instituída em 1924 e derrubada pela Suprema Corte dos
Estados Unidos apenas em 1967 (DORR, 2008).
Nos Estados Unidos, o movimento eugênico foi bastante marcado por
influências mendelianas. Gregor Mendel (1822-1844) foi um frade e biólogo co-
nhecido por realizar experiências com ervilhas que elucidaram características da
hereditariedade. Os eugenistas mendelianos acreditavam em uma forma extrema
de hereditariedade determinista, que determinaria traços como o patriotismo, o
alcoolismo, a indolência e o pauperismo (SELDEN, 1999).
É interessante destacar que na virada do século XIX as ideias do naturalis-
ta francês Lamarck (1744-1829), que afirmavam a herança dos caracteres adqui-
ridos e justificavam melhorias no ambiente, estavam caindo em descrédito. Isso
79
impulsionou as ideias eugenistas mendelianas, que aplicavam as noções de Men-
del a todos os traços humanos complexos e defendiam que as qualidades morais,
intelectuais e sociais poderiam ser explicadas por referência ao funcionamento
da hereditariedade. Eles acreditavam na reprodução seletiva dos indivíduos mais
aptos e rejeitavam políticas ambientais para melhorar os seres humanos, pois aos
seus olhos, ela não teria um efeito duradouro nas gerações seguintes (SELDEN,
1999).
Por meio do quadro abaixo, pode-se perceber o crescimento de organiza-
ções para a discussão e para a propaganda da eugenia nos Estados Unidos nas
três primeiras décadas do século XX. O nome do biólogo Charles B. Davenport,
se destaca na liderança do movimento eugenista americano. Ele acreditava que
traços humanos como preguiça, desejo de viajar e pauperismo eram hereditários
e que seus padrões de transmissão precisavam de pesquisa. Para promover a pes-
quisa e popularizar as ideias eugenistas, ele criou a American Breeders Association
(1903), o Eugenics Reccord Office (1911) e a Galton Society (1918), todas financia-
das pelo Carnegie Institution (SELDEN, 1999).
80
primeiro ano em que Howard ensinou eugenia teve como objetivo apresentar
as contradições inerentes à eugenia em relação à hierarquia racial (GINTHER,
2015). Ginther (2015) argumenta que as ideias eugenistas foram adotadas e sub-
vertidas por figuras intelectuais negras. Para ele, a eugenia negra não deve ser
condenada imediatamente como um fracasso moral, mas deve ser considerada em
um contexto maior de luta por direitos civis.
A publicação do anuário de 1934 do JNE insere-se nesse contexto de
amplo debate acerca da eugenia. No pano de fundo da maioria dos artigos dos
anuários, mais claro em alguns do que em outros, está a desigualdade de oportu-
nidades com base na raça e na classe. O quadro a seguir apresenta os artigos do
anuário, seus autores e instituições de filiação e as partes que compõe o anuário.
Título Autor/Filiação
PARTE 1 - INTRODUÇÃO
81
PARTE 3 – O STATUS DO PROBLEMA NO PRESENTE
Fonte: FRONT MATTER. The Journal of Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal of Negro Education,
1934 Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2292374 Acesso em : 22 dez 2021
82
logia Educacional Clínica da Harvard University entre 1917 e 1947. Dearborn
realizou pesquisas sobre problemas de leitura, a relação entre o desenvolvimento
físico e a inteligência, e testes de inteligência (HARVARD LIBRARY, s/d).
De origem judáica, o antropólogo Mellville J. Herskovits foi aluno de gra-
duação e de doutorado de Franz Boas na Columbia University. A antropologia
cultural boasiana é marcadamente antirracista e Herskcovits foi um grande estu-
dioso sobre os negros nos Estados Unidos. Um de seus principais trabalhos foi
The Myth of the Negro Past (1941), onde ele destrói mitos raciais sobre os traços do
negro americano (NORTHWESTERN UNIVERSITY, s/d).
Entre os intelectuais negros, destacam-se o sociólogo Charles S. Johnson
(1893-1956) e Horace M. Bond (1904-1972). Johnson foi um proeminente autor,
educador e Presidente da Fisk University, um dos principais centros de pesquisa
sobre relações raciais no Sul dos EUA. Bond foi um historiador da educação
e um grande crítico da interpretação racial dos testes de inteligência aplicados
pelas Forças Armadas dos EUA (U.S Alpha Tests). Ele observou que os resulta-
dos inferiores nos testes de inteligência obtidos pelos negros do Sul, comparados
aos do Norte, deviam-se ao baixo investimento em educação que esses recebiam.
O desempenho dos negros do Norte era superior ao de muitos brancos do Sul.
Bond refutou a ideia de inferioridade do negro e estabeleceu uma correlação entre
gastos em educação e desempenho nos testes de inteligência ( JACKSON, 2005;
FISK UNIVERSITY, s/d).
Essa análise prévia dos intelectuais que publicaram no anuário de 1934,
permite perceber que se tratavam de autoridades do campo intelectual e que con-
gregavam ideias progressistas, quando comparados aos eugenistas mendelianos.
A teoria de que uma revista funciona como um campo magnético, que cria uma
rede de relações por afinidades e exclusões, proposta por Sirinelli (2003), pode ser
confirmada por essa análise até aqui apresentada. Muitos dos artigos publicados
nesse anuário criticaram as pesquisas do eugenista mendeliano Charles B. Da-
venport. Portanto, a revista atrai intelectuais com afinidades e repele outros dis-
cordantes. Ela revela cisões no campo intelectual, bem como as instaura, muitas
vezes para além de suas próprias páginas.
83
editorial Thompson afirma que o terceiro anuário do JNE é dedicado a apresentar
um sumário crítico dos estudos relativos as habilidades físicas e mentais do negro
americano. Ele afirma que essa decisão se deve, por um lado, ao interesse do pú-
blico sobre essas questões e por outro as evidências científicas dos últimos 15 anos
que haviam lançado luz a essas questões (THOMPSON, 1934a).
Em seu editorial, Thompson (1934a) ainda aponta que as dúvidas quan-
to as capacidades raciais são controversas desde o “início da história”, mas que
a investigação sistemática havia começado há apenas 200 anos. Destaca que a
introdução dos testes, a partir de 1910, constituíram um novo e mais preciso
instrumento de medição e que isso estimulou novas pesquisas, as quais o anuário
de 1934 se propôs a abordar.
Ainda segundo Thompson (1934a), o anuário se divide em quatro partes.
A introdução consiste em um enunciado geral sobre o problema das diferenças
raciais e um breve sumário histórico que aborda a questão até a criação dos testes
de inteligência. A parte 2 divide-se em duas sessões, uma examina as a literatura
sobre as habilidades físicas e outra as mentais, a partir de 1910. A terceira parte
é uma tentativa de definir tão cientificamente quanto possível o exato estágio
em que estava o problema das diferenças raciais. A quarta parte apresentava um
referencial bibliográfico. Um ponto importante de se destacar é que Thompson
(1934a) afirma no final do editorial que o anuário foi concebido como uma uni-
dade, embora possam ocorrer lacunas entre os artigos.
Na introdução, Johnson e Bond (1934), traçam um sumário histórico sobre
as diferenças raciais. Afirmam que a consciência racial não é de origem antiga,
mas um produto dos tempos modernos. Os gregos enfatizavam o contraste cul-
tural, não a raça. A cor da pele se torna um fator relevante a partir do estabeleci-
mento do tráfico negreiro pelos britânicos no século XVI.
As primeiras tentativas de explicar as diferenças raciais tentavam perma-
necer fiéis à literalidade da bíblia. A maldição de Noé sobre Cam foi a primeira
justificativa para existência da raça negra e da escravidão. Essa perspectiva acom-
panhou os primeiros missionários europeus na América, que por sua vez influen-
ciaram os primeiras trabalhos dos naturalistas do século XVIII. No século XIX,
a teoria da evolução ganhou espaço e adeptos. O conde de Gobineau foi quem
primeiro sistematizou uma hierarquia racial e suas ideias se tornaram a base da
instituição da escravidão nos Estados Unidos ( JOHNSON; BOND, 1934).
Johnson e Bond (1934), prosseguem afirmando que a craniologia e a cra-
niometria foram marcantes nas primeiras abordagens científicas. Na época desses
trabalhos, supunha-se que os traços mentais estavam relacionados com o tama-
nho e a forma do crânio. Com o descrédito desses trabalhos, o peso do cérebro
passou a ser enfatizado como o meio mais confiável de inferir sobre mentalidade.
Com o tempo, o peso do cérebro deu lugar aos estudos da topografia do cérebro,
84
especialmente as diferenças no lobo frontal. A teoria de que o fechamento pre-
coce da sutura coronal do negro suprimia o crescimento de seu cérebro ganhou
adeptos.
Enquanto o século XIX esteve centrado principalmente na anatomia e
fisiologia diferencial, a virada do século chamou a atenção para à psicologia dife-
rencial. Inicialmente, esses psicólogos cometeram os mesmos erros de amostra-
gem (12 ou menos) que caracterizaram os anatomistas. Johnson e Bond (1934)
concluem que as investigações psicológicas anteriores a 1910 apenas criaram mais
confusão para a psicologia racial.
Ainda na introdução, Garth (1934) ao tratar da psicologia racial no mesmo
período apontam que dificuldade mais comum no estudo das diferenças raciais
é a falha em assumir e manter uma mente aberta. O autor afirma que o cerne do
problema gira em torno da mobilidade ou mutabilidade da raça. O problema é
determinar se as diferenças mentais detectáveis são nativas ou devidas ao meio.
Ele prossegue argumentando que a população geralmente aceita as realizações
como um critério de superioridade racial, porém as raças ascendem à eminência
e retrocedem enquanto outras raças tomam seu lugar. Ele questiona a realização
como critério realização, pois muitas vezes a realização de uma raça resulta da
exploração insensível e imoral de outras raças e que tal exploração não pode ser
considerada uma conquista real no sentido mais elevado e nobre.
Na segunda parte do anuário, Cobb (1934) apresenta uma revisão da lite-
ratura contemporânea da época sobre a constituição física do negro. O capítulo é
composto por oito seções que abordam: Antropometria, Características Externas,
Músculos, Órgãos Internos. Particularmente interessante é a falta de apoio à ale-
gação de Davenport e Steggerda de que os cruzamentos entre negros e brancos
exibem uma estrutura anatômica desarmônica, como pernas longas e braços cur-
tos. Coob (1934) conclui que as pesquisas analisadas não comprovavam efeitos
eugênicos e nem disgênicos no cruzamento interracial.
Hersckovits (1934) ao tratar desses cruzamentos interracias, conhecidos
na época como mulatto hypothesis aponta que em verdade existiam duas hipóteses
diametralmente opostas. Um sustenta que os cruzamentos raciais são disgênicos
e o outro sustenta que são eugênicos. O autor define raça como grupos da huma-
nidade cujos membros se assemelham suficientemente em certas características
físicas que podem ser marcadas como distintas dos membros de outros desses
grupos. Ele diz que, na época, os antropólogos reconheciam três raças: mongoloi-
de, caucasiana e negroide, porém, para o autor, a classificação não explicava nada
do ponto de vista biológico. Para ele, os traços pelos quais os animais domestica-
dos e selvagens são diferenciados eram os mesmos que diferenciavam a humani-
dade em raças: (a) habitat restrito, (b) alimentos diferentes, (c) proteção contra o
85
clima e feras, e (d) a reprodução é controlada. A cultura e a tradição entre os seres
humanos seriam limitações e proteções comparadas a esses elementos listados.
Peterson (1934) aponta que no estudo das diferenças raciais, é um erro
comparar o QI ou outra pontuação dos negros com aquelas crianças brancas nas
quais os testes foram padronizados. Alguns eugenistas mendelianos tinham como
hipótese a correlação entre bons resultados obtidos pelos negros nos testes de
inteligência com algum grau de sangue branco, como se houvesse uma heredita-
riedade da inteligência transmitida pelo sangue branco. Peterson (1934), afirma
que não existe correlação entre o grau de sangue branco e a pontuação de inte-
ligência dos negros e que faltavam mais informações sobre as influências exatas
dos fatores ambientais. Price (1934) também crítica o fato de que esses testes de
inteligência eram exógenos à cultura negra e destaca a futilidade das tentativas de
medir diferenças raciais.
Klineberg (1934) vai ao encontro de Price (1934) e Peterson (1934), ao in-
dicar que os testes de inteligência estavam cada vez mais enfatizando a importân-
cia de fatores ambientais sobre o resultado dos testes. As condições de oportuni-
dade e de competição dos negros eram desfavoráveis. Um ambiente melhorado e
escolarização mostraram ter resultados positivos nos testes de inteligência. Kline-
berg (1934) aponta os resultados dos testes de inteligência aplicados pelas Forças
Armadas dos EUA, onde os negros do Norte obtiveram melhores resultados que
os do Sul, como uma prova da interferência do ambiente no resultado dos testes.
Ele ainda cita um estudo bastante interessante feito com crianças de uma mesma
faixa etária e mesma série de uma escola primária do Harlem. Todas elas haviam
nascido no Sul e diferiam apenas quanto ao tempo de residência no Norte. As
crianças com mais tempo de residência no Norte tiveram melhores resultados,
enquanto as recém chegadas do Sul tiveram os piores resultados. Essa seria uma
evidência clara da influência do ambiente no resultado dos testes de inteligência.
A terceira parte do anuário, que se propõe a discutir o status do deba-
te da década de 1930, pode ser sintetizada no artigo de Charles H. Thompson
(1934b) que é uma representação do debate intelectual sobre as diferenças raciais.
Thompson (1934b) enviou um questionário sobre diferenças raciais a um grupo
de 100 psicólogos, 39 educadores e 30 sociólogos e antropólogos. Nomes impor-
tantes como os de C. B. Davenport (Carnegie Institution), John Dewey (Colum-
bia), Willian. H. Kilpatrick (Columbia), Franz Boas (Columbia), Henri Pieron
(Sorbonne), Jean Piaget (Geneva) responderam ao questionário (THOMPSON,
1934b).
Primeiro foi apresentada uma classificação de três grupos: (1) aqueles que
aceitavam a hipótese da desigualdade racial, (2) aqueles que consideravam a de-
sigualdade racial possível e (3) os considerados céticos, mas que tendiam a crer
na igualdade racial. Quatro por cento consideravam a hipótese da desigualdade
86
racial, 46% consideravam a desigualdade racial possível e 30% tendiam a crer na
igualdade racial – 20% dos entrevistados foram colocados em um 4º grupo, que
estaria situado entre as posições 2 e 3 (THOMPSON, 1934b).
Questionados sobre o quanto as pesquisas recentes concluíam que os ne-
gros eram mentalmente inferiores ou iguais aos brancos, 62% julgavam que as
pesquisas eram inconclusivas, 19% acreditavam na inferioridade do negro e ou-
tros 19% acreditavam na igualdade racial. Thompson (1934b), nas suas considera-
ções, destacou que os dados indicam inegavelmente que os cientistas concordam
que os experimentos da época não comprovavam nenhuma diferença entre as
habilidades mentais dos negros e dos brancos (THOMPSON, 1934b).
Os participantes também foram questionados sobre se as evidências cien-
tificas davam suporte ou refutavam a mulatto hypothesis , de que mais sangue bran-
co resultaria em uma mentalidade superior. Setenta por cento dos entrevistados
responderam que os experimentos eram inconclusivos, 15% apoiavam a hipótese
e 15% a refutava. Isso mostrava que a grande maioria dos intelectuais entrevista-
dos não acreditavam no valor científico dessa hipótese. Thompson (1934b) encer-
ra seu artigo destacando que as diferenças entre os negros e brancos da América
deviam-se aos efeitos do ambiente, aproximando-os ou os afastando.
Considerações finais
Referências
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90
4. REVISTA ATUALIDADES PEDAGÓGICAS E A
‘NOBRE CRUZADA’ PELA UNIDADE NACIONAL
(1950-1962)50
Claudia Panizzolo
Considerações iniciais
50 Este texto foi originalmente publicado no dossiê Journals for teachers, children and youth as a trans-
national phenomenon. Directions and experiences of the periodical press in Italy, Brazil, Spain, France
and United States between political, social and cultural changes in 19th and 20th Centuries, organiza-
do por Alberto Barausse, Claudia Panizzolo, Roberto Sani e Mirian Jorge Warde, na revista History
of Education & Children’s Literature (HECL), 20221-2, em artigo denominado “Bem servir e bem
informar: a revista «Atualidades Pedagógicas» e a ofensiva cultural da Companhia Editora Nacional
(1950-1962)”.
91
e criou uma livraria, com lojas no Rio de Janeiro e em Lisboa. De acordo com
Rodrigues, Miranda e Toledo (2015), o livro brasileiro conseguiu conquistar o
mercado português por algum tempo, mas com a estratégia de barateamento ado-
tada pelas editoras portuguesas, a situação ficou insustentável, e em 1944 a loja
em Lisboa foi vendida.
Na década de 1930, a CEN já era a maior editora de livros de São Pau-
lo, apesar de todas as adversidades advindas do Golpe de estado de 193051 e do
Movimento Constitucionalista de 1932, que impingiram respectivamente dois e
quatro meses de trabalho perdidos. Em 1931, a produção da CEN correspondia a
82% de toda a produção do Estado de São Paulo; em 1938, a produção de livros
da CEN correspondia aproximadamente a um terço de toda a produção do país,
que era de dez milhões de exemplares por ano; e em 1940, a “Companhia” exercia
a liderança entre as editoras nacionais.
O crescimento da CEN continuou até meados da década de 1950, mo-
mento em que a empresa ainda ocupava o primeiro lugar entre as editoras brasi-
leiras. Nessa década, a CEN atingiu o auge de sua produção, oscilando entre cinco
e sete milhões de exemplares por ano. Hallewell (1985) afirma que o crescimento
da CEN se deu em relação direta com o desenvolvimento do ensino secundário52,
marcadamente a partir da década de 40 com a ampliação da rede de ginásios, in-
tensificando-se, no entanto, na década de 50, por meio da criação de novas unida-
des escolares, bem como pelo aproveitamento dos estabelecimentos já existentes.
Ao longo da década de 1960, a produção da editora, embora estável, en-
frentava a crescente concorrência dos novos empreendimentos editoriais. Para
acompanhar as transformações no mercado, “passou a publicar guias de professo-
res e livros em formatos maiores, mais coloridos e com letras maiores. As mudan-
ças se deram nos livros didáticos e nas obras voltadas ao mercado universitário”
(RODRIGUES, MIRANDA, TOLEDO, 2015, p. 66).
51 Em 1930 houve um golpe de estado pelo qual Getúlio Vargas chegou à presidência da república, nela
permanecendo até 1945. De 1937 a 1945, Vargas instituiu uma ditadura denominada “Estado Novo”;
foram anos de forte aliança civil-militar, de intensa intervenção nos diferentes graus de ensino, com
ênfase no secundário, superior e na modalidade profissionalizante.
52 No Brasil, ao longo da década de 1950 o ensino era organizado em quatro anos de escolaridade no nível
primário; quatro anos de escolaridade no nível ginasial, e três anos de escolaridade no ensino médio. O
ensino médio dividia-se no ramo secundário e em várias modalidades do ramo técnico-profissional. “É
importante marcar a distinção profunda que então se fazia entre o ensino secundário e outras formas
de ensino médio. O ensino secundário deveria ter um conteúdo essencialmente humanístico, estaria
sujeito a procedimentos bastante rígidos de controle de qualidade, e era o único que dava acesso à
universidade. Aos alunos que não conseguissem passar pelos exames de admissão para o ensino se-
cundário, restaria a possibilidade de ingressar no ensino industrial, agrícola ou comercial, que deveria
prepará-los para a vida do trabalho” (SCHWARTZMAN, S.; BOMENY, H. M. B.; Costa, V.M.R.
Tempos de Capanema, Rio de Janeiro/ São Paulo, Paz e Terra/EDUSP, 1984, p. 189).
92
Com o falecimento do proprietário Octalles Marcondes Ferreira, em 1973,
a editora foi dividida entre herdeiros sem experiência de administração de empre-
sa e muito menos em gerenciamento do campo editorial. O declínio da editora
foi muito rápido:
...em 1974, a carioca José Olympio fez um empréstimo junto
ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e comprou
a editora paulista. Todavia, não conseguiu honrar as dívidas e
tanto a José Olympio como a CEN passaram ao controle do
BNDE. Em 1980, a CEN foi adquirida pelo Instituto Brasileiro
de Edições Pedagógicas [...], para onde foi transferido todo o
material editorial (Ibid, p. 66).
93
-a ou deixando de fazê-lo (CASPARD IN CATANI; SOUSA,
1999, p.14).
94
por Pereira e Rios (2016) elegeu as imagens das capas na investigação sobre a
construção de uma estética escolar associada aos valores vinculados à escola bra-
sileira da década de 1950.
O corpus documental da pesquisa é composto pelos 54 números publicados
da revista Atualidades Pedagógicas, localizados em dois acervos diferentes. O pri-
meiro na biblioteca da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande,
Mato Grosso. O segundo na biblioteca da Faculdade de Educação da Universi-
dade de São Paulo. O recorte temporal obedece a marcos definidos pelo ciclo de
vida da própria revista, entre o primeiro número lançado em janeiro de 1950 e o
último, em janeiro de 1962.
Toma-se, a revista Atualidades Pedagógicas como objeto cultural, o que im-
plica na investigação de suas características gerais do ponto de vista da concepção
e da materialidade, visto que, como afirma Chartier (1990) “não existe nenhum
texto fora do suporte que o dá a ler” (p.127). Esse procedimento implicou no
levantamento e análise dos artigos que constituem a revista, dos autores que nela
escreveram, de seus destinatários, enfim, no estudo das mudanças e permanências
no perfil da revista ao longo de sua existência.
Na abordagem dos sujeitos que produziram a revista, considerando edito-
res e autores buscou-se em Sirinelli (1996) uma melhor compreensão acerca do
termo intelectual. Em artigo intitulado Os intelectuais, o autor apresenta tanto o
caráter polissêmico da definição quanto o aspecto polimorfo do meio intelectual,
o que acarreta a imprecisão de critérios definidores do termo, além, é claro, da
evolução gerada pelas próprias mutações societárias. Assim defende “uma defi-
nição de geometria-variável, mas baseada em invariantes” (p. 242), apresentando
para tal duas acepções de intelectual.
A primeira, de caráter mais amplo e sociocultural, abrange os criadores,
ou seja, todos os que “participam na criação artística e literária, ou no progresso
do saber” (p.261) e os mediadores culturais, categoria composta pelos que con-
tribuem para “difundir e vulgarizar os conhecimentos dessa criação e desse sa-
ber” (p.261). A segunda acepção, de caráter mais restrito, refere-se à noção de
engajamento na vida da cidade como autor, através da intervenção do intelectual
em questões que lhe legitime ou privilegie, tomando-as a serviço das causas que
defende.
Ainda que se apresente como bastante operacional é preciso, no entanto,
evitar o estabelecimento de fronteiras rígidas entres os criadores e mediadores
culturais. Segundo Gomes e Hansen (2016) a distinção não reside entre os sujei-
tos criadores e mediadores, que podem inclusive desempenhar simultaneamente
as duas funções, mas sim nas práticas culturais e nos projetos políticos “com os
quais um intelectual (individualmente ou em grupo) atua em determinado con-
texto, constantemente de forma múltipla” (p. 27).
95
Dessa forma, pergunta-se quem eram os sujeitos mediadores que produzi-
ram e fizeram circular a revista Atualidades Pedagógicas? Como foi recrutado o
coletivo de sujeitos envolvidos com a produção dos artigos da revista? Quais es-
tratégias editoriais foram adotadas pela Revista visando atingir seu público-alvo?
O texto está organizado em três seções, na primeira seção são descritas as
condições materiais de sua produção, as capas, tiragem e distribuição; na segunda
seção são apresentados os sujeitos mediadores culturais que criaram, produziram
e fizeram circular a revista Atualidades Pedagógicas; a terceira seção problematiza
o projeto editorial da revista.
13 Bimestral 40
1952
14-18 Bimestral 48
19-22 Bimestral 40
1953
23-24 Bimestral 32
25 Bimestral 48
29-30 Bimestral 48
96
ANO NÚMERO PERÍODO Nº DE PÁGINAS
31 Bimestral 32
34 Bimestral 56
35-36 Bimestral 72
37 Quadrimestral 46
1956
38 Quadrimestral 48
39 Quadrimestral 56
40 Quadrimestral 44
1957
41-42 Quadrimestral 56
43 Quadrimestral 48
1958 44 Quadrimestral 52
45 Quadrimestral 56
46 Quadrimestral 48
1959 47 Quadrimestral 64
48 Quadrimestral 68
49 Quadrimestral 64
1960 50 Quadrimestral 72
51 Quadrimestral 64
52 Quadrimestral 62
1961
53 Octomestral 68
1962 54 Bimestral 84
97
A opção por dedicar a maior parte das capas para fotos de instituições
educacionais foi constante ao longo de todo o ciclo da revista, provavelmente por
ser essa a melhor forma de exprimir os objetivos das Atualidades Pedagógicas, es-
tampando nas capas e divulgando em suas páginas experiências modelares instau-
radoras de práticas pedagógicas e configuradoras da formação e aperfeiçoamento
docente. A Figura 1 estampa o colégio Dante Alighieri:
98
A capa corresponde à matéria intitulada Colégio Dante Alighieri, uma glória
maior para a cultura latina». O colégio é apresentado com adjetivos enaltecedores
das suas qualidades físicas, arquitetônicas, didáticas e docentes. A respeito dos
cursos oferecidos, desde o jardim de infância, primário, secundário, até os diversos
ramos do médio, em comércio e química industrial, sempre com tom laudatório
e de divulgação:
Em todos eles o mesmo espírito de trabalhar ao máximo a terra
virgem e fértil da juventude. Em todos eles, o mesmo padrão
de seriedade, a mesma tradição de eficiência [...] Do ponto de
vista pedagógico, o estabelecimento pode ser considerado tam-
bém como um dos mais modernos e eficientes de todo o país
[...] No setor esportivo, também se distingue a grande casa de
ensino [...] Já deixou há muito de ser um centro cultural para os
italianos e seus descendentes. Hoje é uma das glórias da cultura
latina em todo o mundo e um braço forte que coopera com o
Brasil para um Brasil melhor (ATUALIDADES PEDAGÓ-
GICAS, 1951, p. 26).
53 A entrevista cedida pelo professor José de Arruda Penteado, responsável pela redação da revista Atuali-
dades Pedagógicas entre 1953 e 1959 e no ano de 1962, e diretor entre 1959 e 1961 à Claudia Panizzolo
ocorreu em 25 de outubro de 2000, nas dependências da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.
99
Em busca de melhor compreensão sobre a tiragem da revista, pode-se co-
tejá-la com dados disponíveis sobre a Revista do Professor, periódico oficial do
Centro do Professorado Paulista, publicado entre 1934-1939, e de 1949-1965, pas-
sando depois a chamar-se O Professor entre 1964 e 1975. No ano de 1952, a Re-
vista do Professor informa a tiragem de 10.000 exemplares, crescendo três vezes
até 1962, o que sugere a circulação relativamente restrita das Atualidades Pedagó-
gicas. Apesar da tiragem restrita, a seção de cartas ao leitor indica a presença em
várias regiões do Brasil.
Atualidades Pedagógicas apresenta em seu expediente o valor para vendas
avulsas e assinaturas anuais, muito embora, segundo José de Arruda Penteado
essa teria sido mais uma estratégia editorial de Ênio Silveira, que colocava o preço
apenas para valorizar o produto, quando, em verdade, a revista teria sido distribu-
ída gratuitamente pelos ginásios, colégios e institutos de educação de todo o país.
Mesmo que essa estratégia tenha sido adotada, não seria impeditiva da aquisição
da revista com base no preço de capa. Em seus primeiros números, o preço avulso
era de Cr$4,00 e assinatura anual de Cr$20.00, interessante notar que no nú-
mero 13 há um aumento nos preços para Cr$5.00 e Cr$30,00, respectivamente
retornando no número 14 aos valores anteriores. O número 19 sofreu aumento
para Cr$5,00 e Cr$25,00, permanecendo inalterado até o número 36. Mais tar-
de, uma redução de preço, só que dessa vez, apenas na assinatura anual, entre os
números 37 e 44, que passou a custar Cr$15,00. Chamam à atenção os aumentos
consecutivos ocorridos no final de seu ciclo: no número 49, o preço avulso era de
Cr$20,00 e a assinatura, Cr$60,00; no número 51, Cr$35,00 e Cr$100,00, e no
número 54, Cr$50,00 e Cr$240,00, respectivamente. As variações nos preços da
revista podem ser claramente visualizadas no Quadro 2, por meio do preço do
principal lazer intelectual e instrumento de trabalho do professor, o livro, farta-
mente propagandeado nas páginas da revista.
100
NOME DO LIVRO ANO PREÇO
1957 Cr$25,00
Moby Dick (Literatura)
1960 1961 Cr$120,00
1958 Cr$250,00
1959 Cr$280,00
Pequeno Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa
1960 Cr$320,00
1961 Cr$1.300,00
101
das Cruzes e respondia pela área de desenho técnico, no Serviço de Medidas e
Pesquisas Educacionais do Departamento de Educação54.
Dentre os seus três diretores, seguramente Ênio Silveira foi o mais proe-
minente. Segundo Hallewell (1985), Silveira teria sido um radical, que expressou
sua política no trabalho editorial, tendo seus métodos administrativos, publici-
tários e de produção gráfica equiparados em importância aos promovidos por
Monteiro Lobato.
Ênio nasceu em 18 de novembro de 1925, na cidade de São Paulo, tendo
sua origem, conforme ele próprio costumava declarar, em uma família de classe
média, com longa tradição de gerações de bacharéis, profissionais ligados à litera-
tura, à pesquisa, ao magistério, ao comércio e à indústria.
A política, no sentido profissional da palavra, não teria seduzido sua famí-
lia, ainda que seu tio-avô, Alarico Silveira, tenha sido secretário da Presidência e
Ministro do Supremo Tribunal Militar no governo Washington Luís e seu avô,
Valdomiro Silveira, secretário de Educação e de Justiça no Governo Armando
Sales de Oliveira, contudo, segundo Silveira “um e outro, porém como todas as
demais pessoas de sua família, entenderam o exercício de cargos públicos como
tarefa, jamais como carreira” ( FÉLIX, 1998, p. 20).
Segundo o próprio Silveira, a experiência vivida na CEN e o convívio com
“alguns dos brasileiros mais dignos e competentes” (Ibid, p. 21) que conhecera,
como “Monteiro Lobato e Octalles Marcondes Ferreira, seus fundadores, Fer-
nando de Azevedo e Anísio Teixeira, seus assessores culturais” (Ibid, p. 21) foram
determinantes para a construção de seus valores culturais e políticos, e para a
escolha da profissão a qual se dedicaria por toda a vida.
De acordo com a descrição de Hallewell (1985) o “encanto pessoal, vi-
vacidade, energia, visão e impulso para a ação” (p. 446) foram complementados
por uma boa educação recebida por Ênio Silveira em São Paulo. Frequentou o
Ginásio do Estado, considerado o equivalente paulista do Colégio Pedro II no
Rio de Janeiro55, quer seja pela excelência dos professores, quer seja pelo rigor
com que eram ministradas as aulas. Cursou também a Escola Livre de Sociologia
e Política, contudo, não concluiu o curso, tendo apontado como impeditivos, a
necessidade de trabalhar, o casamento e a permanência de um ano nos Estados
55 O Colégio Pedro II, criado em 1837, durante todo o período imperial foi considerado o padrão ideal
de ensino a ser ministrado no país. A esse respeito consultar M. de L. M Haidar, O ensino secundário
no Império brasileiro, São Paulo: Grijalbo/ EDUSP, 1972; G. B. Silva, A educação secundária; perspectiva
histórica e teoria, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969; G. B. Silva, Introdução à crítica do
ensino secundário, Rio de Janeiro: CADES, 1959; CASTRO, C. A (org). Ensino secundário no Brasil, São
Luís: EDUFMA, 2019.
102
Unidos, onde teve a oportunidade de trabalhar na Editora Alfred A. Knopf e
cursar editoração na Universidade de Columbia.
Ênio Silveira, além de ser promotor de autores nacionais como Fernando
Sabino, Adonias Filho, Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, Millor Fernandes,
Dalton Trevisan entre muitos outros, tornou a Civilização Brasileira importante
pela variedade de traduções da literatura moderna dos Estados Unidos, França,
Itália, Alemanha e Rússia; “disso resultou que, em 1970, controlava aproxima-
damente 20% de todo o mercado brasileiro de ficção” (HALLEWELL, 1985, p.
447).
Embora a maior parte de sua política editorial na área de ficção seja de
ótimo nível, procurou editar um número suficiente de best-sellers para garantir a
estabilidade financeira da Civilização Brasileira, lançando ou relançando autores
consagrados como Agatha Christie, Ian Fleming, Aldous Huxley, George Orwell
entre outros. Além de ficção, publicou na Civilização Brasileira títulos referentes
às ciências humanas, com especial destaque aos de Sociologia, Economia e Po-
lítica.
Com formação e interesses editoriais em Ciências Sociais, o que teria mo-
tivado Ênio Silveira a criar o projeto editorial de uma revista pedagógica destina-
da aos professores do ensino secundário?
Em seu primeiro número o editor apresenta a equipe da revista como co-
nhecedora da extensão e da profundidade dos problemas enfrentados pelo ma-
gistério nacional, tendo assim concebido Atualidades Pedagógicas com o objetivo
de discutir programas e currículos, técnicas e metodologias pedagógicas, mas,
sobretudo, oferecer aos seus leitores orientações referentes à vida profissional,
como obtenção de regularização de registros, esclarecimentos quanto à legislação,
por meio de uma seção específica destinada à transcrição de instruções, circula-
res, portarias, decretos e leis, e pela publicação de edições especiais denomina-
das “Suplementos de Legislação de Ensino”. Essas publicações, compostas por
orientações referentes à vida profissional e aos trâmites burocráticos nas suas re-
lações com o poder público e iniciativa privada eram produzidas pelo Serviço de
Assistência ao Professor56 (SEAP), subseção do Departamento de Relações Pú-
blicas da CEN, que dentre tantas orientações, encaminhava requerimentos para
a prestação de exames de suficiência, para que não licenciados pudessem obter
o registro para lecionar; auxiliava com a documentação para orientar as escolas
quando do processo de verificação do estabelecimento de ensino realizada pelos
órgãos fiscalizadores públicos.
56 Em 1961 o SEAP contava com 10 escritórios de atendimento em São Paulo, capital e interior, Rio de
Janeiro, Porto Alegre, Belém, Recife, Salvador, Curitiba, Florianópolis e Belo Horizonte.
103
Acompanhar os colaboradores das Atualidades Pedagógicas auxilia na com-
preensão das finalidades do periódico e das estratégias editoriais empreendidas
pelos editores, sobretudo por Ênio Silveira na diretriz que sustentou todo o ciclo
de vida do periódico. Durante seus anos de existência acolheu em suas pági-
nas figuras que desfrutavam de certa projeção nos meios educacionais, além de
professores, pesquisadores e especialistas que desejassem divulgar uma notícia
ou experiência empreendida, por meio de transcrições, de artigos, ou através de
matérias produzidas para o periódico.
Ao longo do ciclo de vida da revista foram publicados 772 artigos, que
podem ser organizados em torno de dois núcleos de colaboradores, um central e
um secundário. O núcleo central constituído por autores vinculados de diferentes
maneiras à CEN. A primeira vinculação, inclusive bastante expressiva é a presen-
ça de 174 artigos com autoria da própria Atualidades Pedagógicas; outra é a pre-
sença de 29 matérias de autoria explícita dos editores e redatores, tais como José
de Arruda Penteado e Ênio Silveira; outra participação é a de 113 matérias de
autores de livros didáticos publicados pela CEN, como Aroldo de Azevedo, Já-
como Stávale, Osvaldo Sangiorgi, J. L. Campos Júnior, Sidrack de Holanda Cor-
deiro, dentre outros. Este núcleo composto por um número reduzido de autores
é responsável por 316 matérias, o que representa 40,93% do conjunto de artigos.
Segundo José de Arruda Penteado, um importante critério para a seleção
dos autores a serem incluídos na revista era a condição de ser autor de livro pu-
blicado pela CEN ou pela Civilização Brasileira e a disponibilidade em ministrar
palestras e cursos para professores, procedendo assim, a divulgação do seu próprio
livro e da editora. Cabe ressaltar que na década de 50, os livros didáticos já repre-
sentavam um porto seguro para as editoras e uma razoável fonte de renda para
seus autores. Por meio de um exemplo, Hallewell (1985) auxilia na compreensão
da relevância das obras didáticas para as editoras:
A série de matemática de Osvaldo Sangiorgi, por exemplo, ini-
ciada em 1953, e destinada às quatro séries das escolas secundá-
rias, chegou a ter 300.000 exemplares vendidos em um ano, em
meados da década de 50, quando as tiragens de seus principais
concorrentes estavam por volta de 80.000 exemplares (p. 442).
104
A segunda característica, diretamente relacionada à primeira, diz respeito
ao lugar de atuação profissional. A maior parte desses colaboradores atuava den-
tro das escolas, como professores e diretores do ensino secundário, geralmente
oriundos dos cursos de licenciatura em Matemática, Letras, História e Geografia,
com preponderante atuação na escola pública.
A terceira característica é a presença pouco significativa do ponto de vista
numérico, mas muito expressiva, pela questão simbólica, da legitimidade e no-
toriedade de seus autores. Compõem esse núcleo secundário excertos de autores
brasileiros e estrangeiros pertencentes ao Movimento da Escola Nova, cujos li-
vros foram publicados pela CEN na coleção também denominada Atualidades
Pedagógicas, dentre esses autores encontram-se Lorenzo Luzuriaga, Lourenço
Filho, Roger Cousinet, Anísio Teixeira etc; e excertos de autores renomados da
literatura, como Graça Aranha, Humberto de Campos, Jorge Americano, José de
Alencar, Eça de Queiroz, Edmondo De Amicis etc.
Por meio de seu corpo editorial e da seleção que fizeram sobre quem pode-
ria colaborar com a revista foi levado ao termo e ao cabo um projeto político-pe-
dagógico que visava o preparo intelectual e técnico do magistério. As estratégias
editoriais adotadas, bem como, os núcleos temáticos que deram organicidade para
a revista serão discutidos na próxima seção.
105
ampliação e da reforma do ensino secundário, cuja premissa era construir uma
nova identidade nacional pela disseminação de princípios, de renovação e
experimentação pedagógica, que ganharam novo alento e nova configuração no
pós-Segunda Guerra Mundial.
O projeto editorial da revista buscou de modo incessante a padroniza-
ção. A presença reiterada ao longo das páginas da revista de artigos divulgadores
de escolas-modelo secundárias e técnicas e de faculdades-padrão; a preocupação
com os programas obrigatórios a serem seguidos; a uniformização das questões
espaciais e temporais da organização escolar, correspondem a um ideal de homo-
geneidade e conformidade. Nesse sentido, a unidade nacional seria alcançada por
meio de duas estratégias complementares. Uma pela perspectiva da unidade por
meio da padronização dos saberes pedagógicos e das práticas docentes; e outra
pela perspectiva do nacional, pelo grau de abrangência e penetração da revista em
todo o país. O processo de construção da unidade nacional, empreendido pelos
mediadores culturais a serviço da CEN, se deu nas páginas da revista por meio da
produção e divulgação de saberes pedagógicos, e, pela configuração do trabalho
docente.
A distribuição das matérias na revista Atualidades Pedagógicas, durante
todo o seu ciclo de vida, não obedece a uma sequência pré-determinada. Contu-
do, pode-se afirmar que seu projeto editorial é organizado em torno de três gran-
des núcleos temáticos: “disciplinas, divulgação e política educacional”. A análise
desses núcleos temáticos consubstanciados por artigos, séries e seções, nos permi-
te acompanhar de modo sistemático as preocupações pedagógicas, de formação
do magistério, as proposições teórico-metodológicas e as discussões sobre im-
plementações de práticas escolares. O Quadro 3 apresenta os núcleos temáticos:
106
temático57, os artigos, séries e seções são abordados sob quatro diferentes aspec-
tos: divulgação científica (36%), orientação didático-metodológica (35%), pro-
posta curricular (22%) e teorias psicológicas (7%).
Os artigos destinados à divulgação científica discutem questões teóricas e
técnicas relacionadas à educação e ao ensino, valendo-se da publicação de auto-
res brasileiros contemporâneos, representantes de diversas tendências e posições.
Matemática é a disciplina contemplada com maior número de artigos (37), que
discorrem sobre temas tais como: teoremas e teorias de trigonometria: “Equa-
ções trigonométricas, tópicos de uma carta”58, “O denominado: método geral da
tangente da metade” 59, “Teorema de Pitágoras”60; Geometria: “Poliedros Regu-
lares”61, “Cálculo das áreas”62, “Serão isósceles todos os triângulos”63; e Álgebra:
“As equações do 2º e do 4º graus; variações sobre velhos temas”64, “O problema
do infinito no cálculo infinitesimal”65, “Somas dos quadrados e dos cubos dos n+1
primeiros números ímpares”66.
A Língua Portuguesa merece destaque dentro de um projeto, ainda bas-
tante frágil, de pavimentação de uma unidade nacional. O interesse pelo uso
adequado da língua materna visava a garantia de uniformidade e estabilidade
ao longo de todo território nacional. Dessa forma são 33 artigos que procuram
despertar no professor a relevância do estudo da Gramática, através do estudo da
morfologia, da fonética, da sintaxe etc.
57 Esse núcleo é composto por 347 artigos voltados ao tratamento das várias disciplinas do ensino médio,
com ênfase ao ensino secundário, escritos por 222 colaboradores. Esses em sua maioria, escreveram
apenas um artigo, enquanto 22 autores são responsáveis por 109 artigos.
58 LAPA, L. Equações trigonométricas, tópicos de uma carta. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 31, p.
9-10,1955.
62 BEZERRA, M. J. Cálculo das áreas. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 27, p. 27-28,1954.
63 VALLE, J do C. Serão isósceles todos os triângulos? Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 31, p.
7,1955.
66 CORDEIRO, S. de H. Somas dos quadrados e dos cubos dos n+1 primeiros números ímpares. Atua-
lidades Pedagógicas, São Paulo, n. 38, p. 35-36,1956.
107
Outros artigos, de Física (11), Geografia (6), História (6), Química (4),
Ciências (2), Arte (2), Canto Orfeônico (1) e Economia Doméstica (1), divulgam
conhecimentos específicos sobre a área do saber, como por exemplo: “Sobre a de-
finição de cinemática elementar do movimento harmônico simples”67, “Conceito
de região natural e sua aplicação na divisão regional do Brasil”68, apresentam uma
retrospectiva da situação educacional, como por exemplo “Evolução do canto or-
feônico no Brasil”69, “Comentários sobre o ensino de física e o desenvolvimento
tecnológico do Brasil”70; e apontam para novas perspectivas do ensino como em
“Novos rumos do ensino da física”71, “É preciso olhar a vida inteira com os olhos
de criança”72.
Mas é sobre as orientações didático-metodológicos que a revista faz um
grande investimento. Esse núcleo temático é apresentado mediante a organização
de gabinetes e salas ambiente, a elaboração de plano de aula e de provas, a organi-
zação de técnicas artísticas, o planejamento de excursões e visitas extracurricula-
res, a escolha de cantos escolares, de recursos audiovisuais, de procedimentos para
correção de textos e do uso de material didático. Esses artigos, além de pretende-
rem contribuir para superação dos “problemas dos planos de aula” (expressão cara
aos colaboradores da revista), buscam fixar um padrão de atuação do professor,
por meio de técnicas, métodos e iniciativas aconselháveis sobre como ensinar,
constituindo dessa forma um projeto nacional de educação através da promoção
de uma segura e uniforme prática didática-metodológica que resultaria em uma
melhor e maior aproximação entre os educadores. Os artigos enfatizam o planeja-
mento, a execução e avaliação da aula, mediante orientações minudentes dos pro-
cedimentos didáticos a serem adotados com vistas ao êxito no processo de ensino.
Os artigos “Como devemos ensinar” de autoria do Professor Doutor João
Ecsodi (1952) apresentam a educação em seu aspecto físico, intelectual e moral e,
68 PICENA, M. L. Conceito de região natural e sua aplicação na divisão regional do Brasil. Atualidades
Pedagógicas, São Paulo, n. 38, p. 11-12,1956.
69 VALLE, R. O do. Evolução do canto orfeônico no Brasil. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 32, p.
3-6,1955.
71 BRAMBILLA, A. Novos rumos do ensino da física. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 52, p. 47-
48,1961.
72 MATISSE, H. É preciso olhar a vida inteira com os olhos de criança. Atualidades Pedagógicas, São
Paulo, n. 39, p. 19-20,1956.
108
para alcançá-la, o autor propõe procedimentos a serem adotados pelos professores
em sala de aula:
1º) É aconselhável que o professor lecione de pé, pois poderá
perceber tudo o que se passa na classe muito melhor do que
assentado.
2º) É importantíssimo o olhar do professor com o qual poderá
manter a ordem indispensável em toda a classe.
3º) O professor deve falar sempre a toda a classe, dirigindo suas
perguntas a todos.
4º) Deve formular antes a pergunta para depois arguir um alu-
no, porque assim procedendo conseguirá a meditação de todos.
5º) Deve-se formular também perguntas secundárias à questão
principal, para envolver mais alunos no trabalho comum.
6º) O ensino deve ser um trabalho em comum, isto é, o pro-
fessor estabelecerá juntamente com os alunos as teses, temas,
argumentos e os resultados.
7º) A voz do professor deve ser bem audível, dando realce à
pronúncia.
8) O professor deveria falar tanto quanto for necessário à com-
preensão do assunto.
9º) O professor não deve corrigir as repostas erradas, porquanto
os erros devem ser corrigidos pelos alunos.
10º) O professor não deve só se ocupar dos bons e ótimos alunos.
11º) A exposição da matéria, a fala do professor, tudo deve ser
exemplo do correto e elegante uso da língua materna ou estran-
geira.
12º) É preciso exigir do aluno uma expressão gramatical per-
feita.
13º) O professor poderá, sempre que possível, dispensar o livro
didático durante as aulas, embora não deva abandoná-lo [...]
14º) Enfim, o professor deve sempre falar empregando o plural
(p. 34).
109
senso em torno desses e de outros lemas já era relativamente alto nos meios
educacionais, mas difundi-los no ensino médio parecia se configurar o gran-
de desafio a ser enfrentado, especialmente em um ramo como o secundário,
herdeiro de mazelas pedagógicas datadas do século anterior, quando muitas
disciplinas foram incluídas como necessárias ao ensino pós-primário e pré-
-universitário. Exemplos eloquentes dos debates travados nas páginas da re-
vista, e que circulavam nos meios educacionais brasileiros à época, dizem res-
peito à manutenção ou não do Latim, bem como o lugar da Matemática no
currículo do secundário. Essas discussões já haviam ocupado os “curriculistas”
europeus e norte-americanos no início do século. Nesses países, já haviam se
confrontado seguidores de Herbart, de Thorndike e de tantos outros; já tinham
sido tecidos argumentos favoráveis e contrários às teses sobre o poder de trans-
ferência do Latim para o aprendizado das línguas modernas, assim como o papel
da Matemática não só para o aprendizado das ciências como também para o do
raciocínio lógico. Atualidades Pedagógicas registra, muitas décadas depois, esses
debates quando, então, eclodia no Brasil.
O espaço escolar também merece destaque nas páginas das Atualidades
Pedagógicas por meio de orientações sobre a organização das salas ambientes de
História, gabinete de Geografia, museu histórico-geográfico, sala de Inglês, sala
de Francês, enfim, a possibilidade de criação de espaços apropriados para várias
disciplinas do currículo escolar. Sob a alegação de acompanhar a moderna peda-
gogia, os alunos do ginásio e do colégio necessitariam ter à sua disposição, além
da sala de aula, outros ambientes que proporcionassem “a sensação de estarem
realizando alguma coisa útil para eles próprios e para sua escola” (MACEDO in
ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, nº 39, 1956, p.41), ao mesmo tempo que
permitissem oportunidades de construção.
Atualidades Pedagógicas publica também sugestões de organização do tem-
po escolar, com destaque para orientações acerca do uso do material didático,
considerado de capital importância para que o aluno parta de modelos concretos,
adquirindo de forma ativa as futuras abstrações.
Com relação às propostas curriculares podem ser encaradas como um mo-
vimento de resistência às mudanças que estavam sendo discutidas à época, ao
mesmo tempo em que, propostas de inclusões e revisões no âmbito dos compo-
nentes curriculares. Atualidades Pedagógicas promove uma verdadeira campanha
contra a restrição do número de aulas ou suspensão do Latim. Nessa perspectiva,
situa-se, por exemplo, o inquérito “Deve o Latim ser conservado nos currículos
do curso secundário?”73 respondido por José Cretella Júnior, professor da Escola
73 CRETELLA JUNIOR, J. Deve o Latim ser conservado nos currículos do curso secundário? Atuali-
dades Pedagógicas, São Paulo, n. 1, p. 24,1950.
110
Preparatória de Cadetes e do Ginásio do Estado de São Paulo, e autor de livros
didáticos publicados pela CEN, bem como por Lávio Sílvio Pereira de Lacerda74,
professor da Colégio São Luís de São Paulo.
Os Trabalhos Manuais também mereceram defesa veemente da revista,
por ser considerado uma disciplina promotora de desenvolvimento físico, moral e
social e motivadora da aprendizagem das demais disciplinas.
O canto orfeônico, por sua vez, é apresentado como imprescindível à di-
fusão da disciplina, civismo e educação artística. Um exemplo desse enfoque é o
artigo “O ensino do canto orfeônico na escola secundária”75 uma representação
de professores secundários de canto orfeônico do Estado de São Paulo enviada
ao Presidente da República e ao Presidente do Senado, que após circunscrever
as finalidades desta disciplina solicita sua permanência entre as matérias básicas
do curso ginasial, com atribuição de nota, em oposição à reforma que pretendia
reduzi-la à prática educativa, sem nota.
A Sociologia é apresentada como fundamental para que o aluno pudesse
conhecer a organização da sociedade e assim, compreender os processos de rela-
ções humanas; dessa forma, os vários artigos que versam sobre esse componente
curricular voltam-se para as razões que justificam sua inclusão no curso secundá-
rio. Assim, em “As Ciências Sociais no ensino de segundo grau”76 de autoria do
professor Manuel Diégues Junior (1952), a ausência da Sociologia no currículo
do curso secundário é interpretada como uma falha educacional responsável pelo
despreparo do educando para a vida coletiva e para o sentimento de grupo, for-
mando um ser “animado de um sentimento individualista absorvente, como se
fora um pequeno monstro, antissocial e anticristão” (p. 11-12).
Um conjunto de artigos era voltado principalmente à exposição de moti-
vos que justificariam mudanças nos programas de Filosofia, História, Espanhol
e Geografia. O mote partilhado por estas matérias é o da ampliação da carga
horária, sob a alegação de serem as Ciências Sociais e Humanas indevidamente
subjugadas pelas Ciências Naturais.
Atualidades Pedagógicas reservou, ainda que pequeno, espaço para a apre-
sentação de teorias psicológicas, como a série de trabalhos de autoria da pro-
fessora Irene Mello Carvalho, publicados entre 1951 e 1952. Os artigos foram
organizados como um verdadeiro curso de Psicologia da aprendizagem destinado
74 LACERDA, L. S. P. de. Deve o Latim ser conservado nos currículos do curso secundário? Atualidades
Pedagógicas, São Paulo, n. 9, p. 20-21, 1951.
76 DIÉGUES JUNIOR, M. As ciências sociais no ensino de segundo grau. Atualidades Pedagógicas, São
Paulo, n. 16, p. 11-12, 1952.
111
aos professores que “devido a seus encargos, não podem fazer estudos minucio-
sos sobre o assunto, que é tão debatido quanto desconhecido” (CARVALHO
in ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, n. 8, 1951, p. 19-20). Estruturado de
modo a permitir a divulgação das conquistas no campo de estudo da Psicologia
e a favorecer a compreensão do professor, após a explanação teórica, os artigos
apresentam derivações práticas para os professores.
O segundo núcleo temático concentra 245 artigos voltados à “divulgação”77
e pode ser considerado a espinha dorsal de Atualidades Pedagógicas. Esses artigos
visavam a difusão de determinados saberes pedagógicos e a conformação das boas
práticas docentes, através da publicação e explicitação de padrões considerados
exemplares em uma escola de qualidade e tradição, através da divulgação e do es-
tímulo à constituição do espaço escolar e o desenvolvimento de práticas escolares
modernas; a publicação de cursos, conferências, congressos e seminários, o que
sugere uma preocupação com a organização profissional da categoria do magis-
tério; a recomendação de leituras, através das indicações bibliográficas, resenhas
e comentários que, além de divulgar as produções editoriais da CEN, definiam e
legitimavam a pauta das obras a ser consumidas.
A principal seção versa sobre “Instituições Educacionais”, presente em 47
números. Essa seção geralmente se apresentava como reportagem de capa, com-
posta sobretudo, do histórico de instituições escolares, públicas ou privadas, desti-
nadas ao ensino primário (25), aos vários ramos do ensino médio (33), ensino se-
cundário (35), normal (12), comercial (5), superior (4) e industrial (1), destacando
a estrutura física do prédio, a competência dos funcionários administrativos, a
formação do corpo docente e suas práticas pedagógicas modelares.
Para auxiliar na divulgação dessas instituições, o editor optou por apresen-
tar fotografias, aliás é exatamente esta a seção que mais fez uso desse recurso, no
qual são mostradas as escolas, principalmente as áreas externas, como fachadas e
quadras, salas internas, como bibliotecas, laboratórios e salas ambientes, além da
direção e do corpo docente.
A seção intitulada “Bibliografia” tem a finalidade de informar sobre o as-
sunto de um determinado livro, de modo a criar no leitor o desejo de lê-lo direta-
mente. As indicações bibliográficas são sempre constituídas de uma resenha sobre
a obra, contendo as referências bibliográficas, as credenciais do autor, o resumo
das ideias principais com as características da obra destacadas, as conclusões do
autor e a apreciação quanto às contribuições advindas de sua leitura. O exame
dessa seção permite vislumbrar o movimento editorial da CEN e da Civilização
77 Os artigos que constituem esse núcleo temático foram escritos por 84 autores. Em sua maioria, esses
autores escreveram apenas um único artigo; a redação da revista, por sua vez, assina 122.
112
Brasileira, uma vez que todas as bibliografias indicadas pertenciam a essas duas
casas editoras.
Por fim, a seção “Atualidades Pedagógicas Informa” presente entre os nú-
meros 25 e 30 (1954), depois denominada “Noticiário” entre os números 32 e 54
(1955-1962) fornece um amplo panorama educacional, nacional e internacional.
Pronunciamentos e entrevistas de autoridades eclesiásticas e governamentais a
respeito do magistério; projeto de revisão de lei do ensino; cursos, conferências,
congressos e seminários; revistas ofertadas à redação; relatos de experiências edu-
cacionais de vários países além da apresentação dos empreendimentos editoriais
da CEN, eram noticiados e comentados em suas páginas.
O terceiro núcleo temático é composto por 180 artigos que abordam ques-
tões relativas à “política educacional”78, cuja finalidade é expressar a posição da
revista Atualidades Pedagógicas no que diz respeito ao sistema de ensino.
A seção de “Legislação de Ensino” compreende transcrições de decretos,
portarias, circulares, resoluções e regulamentações referentes aos vários ramos do
ensino médio. Ocupam um número significativo de páginas - de 4 a 36 -, o que a
torna a maior seção da revista. Tendo por justificativa cooperar com professores,
diretores e alunos do ensino médio e atender às solicitações do magistério, são
publicados os programas de várias disciplinas do ensino médio, por exemplo Pro-
gramas do curso comercial, programa do ensino secundário, programas do curso
de formação profissional dos professores, entre tantos outros.
Os editoriais aparecem em 24 dos 54 números da revista (44%). A maio-
ria deles discute questões relacionadas à situação política-educacional do país
- reformas de ensino, orçamento para educação, as relações entre desenvolvi-
mento econômico e educação, construção de prédio escolares, exames orais,
situação da produção editorial no país-, enquanto outros apresentam os obje-
tivos da criação da revista e suas reformulações, bem como saudações ao ma-
gistério. Quinze editoriais contêm assinatura (62%), sendo treze de autoria
de José de Arruda Penteado, e dois de Ênio Silveira, além dos outros nove de
responsabilidade da redação da revista.
Merece destaque a série de 22 artigos publicados de modo intermiten-
te, que anunciam o próximo lançamentos ou as obras publicadas pela “Coleção
Atualidades Pedagógicas”, por meio de transcrições de excertos dos autores que
a própria Coleção havia contribuído para tornar renomado, constituindo, uma
“biblioteca de referência” do magistério. Essa opção editorial aponta para um
movimento de reordenação, reconfiguração, redistribuição da própria “Coleção” a
partir do empreendimento editorial da revista. Dito de outra maneira, parece que
78 Esses artigos foram escritos por 95 autores que, em sua maioria, escreveram apenas um único artigo;
sete autores, assinaram 26; e a redação respondeu por 48 artigos.
113
a “Coleção” é apropriada e redimensionada pela revista, gerando dentro dela uma
biblioteca da Biblioteca.
O estudo dos três núcleos temáticos indica que Atualidades Pedagógicas
configura o campo educacional através da difusão de saberes pedagógicos, nor-
matiza a organização do tempo e do espaço escolar e padroniza a atuação dos
professores, promovendo assim a unidade nacional, através da homogeneização
de saberes e práticas pedagógicas a serem difundidas e aplicadas em sala de aula
de norte a sul de um país de dimensão continental.
Considerações finais
79 O ramo secundário é o que atraia o maior número de alunos, porque era o que dava acesso a todas as
carreiras do ensino superior. Com isso, nos anos cinquenta, o aumento da procura não foi acompanha-
do pela criação de escolas e muito menos de cursos superiores destinados à formação de professores
secundários. Daí, a revista entrar na campanha de qualificação/credenciamento docente.
80 A Coleção Atualidades Pedagógicas compunha uma das frentes da Biblioteca Pedagógica Brasileira, com-
posta por cinco séries: Literatura Infantil, Livros Didáticos em Geral, Atualidades Pedagógicas, Iniciação
Científica e Brasiliana. A esse respeito consultar SILVA, C. P. B da. Atualizando pedagogias para o ensino
114
além de uma questão de nomenclatura, há o intuito de inserir a revista em uma
tradição pedagógica ou, ao menos, tentar transferir para ela a legitimidade con-
quistada pela “coleção”.
O terceiro fator, refere-se à opção mercadológica, ancorada na expansão,
bem como na relevância social e política do ensino médio, especialmente do seu
ramo secundário. Para a editora seria bastante fértil, através das páginas da revista
Atualidades Pedagógicas, tornar esse professorado uma clientela cativa, em se tra-
tando de uma das poucas revistas disponíveis no mercado editorial81 de destina-
ção exclusiva para o ensino médio e em especial o secundário. O alvo mercadoló-
gico patenteia-se, além disso, através da intensa publicidade nas páginas da revista
de outras obras da mesma editora, de modo muito especial a “coleção Atualidades
Pedagógicas”, bem como dos livros didáticos da “Editora Nacional” 82.
Apesar do impulso tomado, o ensino médio no Estado de São Paulo, em
1950 – ano de criação da revista – apresentava uma taxa de matrícula de 1, 8%,
enquanto no ensino primário a taxa era de 8,8%. Esses índices não fragilizam o
peso conferido ao fator mercadológico, quando da criação da revista, posto que,
de um lado, a editora estava investindo com uma certa segurança na expansão
crescente deste nível de ensino e, de outro, o conjunto dos seus ramos comportava
uma grande diversidade de disciplinas e atividades. Deve-se considerar, ainda,
tratar-se de uma modalidade de ensino sobre a qual cresciam as exigências – tan-
to legais quanto acadêmicas – de maior e melhor formação e aperfeiçoamento.
Aqui, mais uma vez, não pode ser olvidado que a quase totalidade dos professores
absorvidos pelo ensino médio, à época, não tinha formação em licenciaturas es-
pecíficas.
Atualidades Pedagógicas foi apresentada em seu primeiro número, de janei-
ro de 1950, como “veículo de divulgação dos educadores brasileiros” (p. 1), seu
destinatário privilegiado seria o professor do ensino secundário. Vários indícios
permitem identificar esse destinatário: as referências explícitas em artigos, séries
e seções ao professor secundário; o número significativo de orientações didático-
81 Nesse período circulavam outras revistas pedagógicas, como a Revista Educação (1927), Revista do Pro-
fessor (1934), voltadas prioritariamente ao primário; a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1944)
que incluía o ensino secundário, além da Revista EBSA, documentário do ensino, do órgão de infor-
mações de interesse específico para o ensino médio, publicada pela Editora do Brasil S/A, de periodi-
cidade mensal circulou entre 1947 e 1972 e o Boletim da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo,
ligado ao Serviço de legislação e publicidade, circulou entre 1951 e 1952.
82 Não há dados disponíveis a respeito, mas é cabível supor que já houvesse um considerável público con-
sumidor dos livros didáticos da editora entre os alunos das escolas privadas de ensino médio. Segundo
Spósito (1992, p.28), em 1940 a iniciativa privada era responsável por 75,20% da oferta de vagas no
ensino médio. A esse respeito consultar: SPÓSITO, M. P. O povo vai à escola; a luta popular pela expan-
são do ensino público em São Paulo, São Paulo: Loyola, 1992.
115
metodológicas às disciplinas do currículo secundário; a divulgação de instituições
educacionais e legislação desse mesmo nível de ensino.
Os números publicados em 1961 evidenciam dificuldades, como assinatu-
ra avulsa e anual mediante pagamento antecipado, o acoplamento de números, e
a reestruturação do pessoal responsável pela redação e arte-gráfica. Parecem ter
sido dois os principais episódios deflagradores do encerramento do periódico.
Um relacionado ao desligamento de Ênio Silveira, idealizador da revista, e o ou-
tro relativo à saída de José de Arruda Penteado, seu editor, para assumir funções
junto a uma faculdade no interior de São Paulo. Mas esses desligamentos podem
ser remetidos às mudanças, nos anos 60, empreendidas pela CEN para enfrentar
o aumento da concorrência83. Assim, é admissível supor que o próprio plano de
reestruturação da “Nacional” incluísse o afastamento de Ênio Silveira; quanto
ao desligamento de Arruda Penteado, de porte distinto do seu companheiro no
comando da revista, é provável que tenha sido decorrência “natural” da perda de
lugar do periódico no interior dos novos planos editoriais da “Companhia”.
As mudanças estruturais introduzidas na Editora Nacional – prováveis res-
ponsáveis pelas saídas de Ênio Silveira, mentor da revista, e de Arruda Pentea-
do, seu operacionalizador – somadas às significativas transformações do ensino
médio nos anos 50 e início da década seguinte – aí incluindo a promulgação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação84 – tiraram o sentido dessas funções, antes
desempenhadas pela revista – especialmente as de padronização de condutas di-
dático-pedagógicas e de assessoria à vida profissional do magistério, são as mais
plausíveis razões encontradas para compreender o término da revista. Assim, quer
do ponto de vista ideológico, quer do ponto de vista mercadológico, especialmen-
te deste, a revista deixa de ter lugar nos novos planos editoriais da “Companhia”;
torna-se mais lucrativo substitui-la por um catálogo bem-organizado e signifi-
cativamente mais econômico, contendo referências às publicações da “Nacional”.
Fontes
83 Em setembro de 1958, a Livraria Francisco Alves em parceria com a Editora Paulo de Azevedo lançou
uma nova seção da Revista do Magistério, com distribuição gratuita e destinada aos professores do ensi-
no secundário e normal. Revista de caráter cultural e informativo, publicava além de noticiário sobre os
acontecimentos do ensino, as novidades pedagógicas e administrativas. Com uma tiragem significativa,
em torno de 35.000 exemplares, foram publicados apenas quatro números, com periodicidade irregular,
entre 1958 e 1960.
84 BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases, nº 4024 de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
116
ensino do canto orfeônico na escola secundária. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n.
37, p. 35-36, 1955.
BEZERRA, M. J. Cálculo das áreas. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 27, p. 27-
28,1954.
117
LAPA, L. Equações trigonométricas, tópicos de uma carta. Atualidades Pedagógicas,
São Paulo, n. 31, p. 9-10,1955.
S. DE H. CORDEIRO, Somas dos quadrados e dos cubos dos n+1 primeiros números
ímpares. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 38, p. 35-36,1956.
Referências
CHARTIER A.; J. HÉBRARD, J. Discursos sobre a leitura; 1880 – 1980. São Paulo:
Ática, 1995.
118
FÉLIX, M. Ênio Silveira, arquiteto de liberdades. Rio de Janeiro: Berthand Brasil, 1998.
SILVA, C. P. B da. Atualizando pedagogias para o ensino médio; um estudo sobre a Revista
Atualidades Pedagógicas (1950-1962). 2001. Dissertação de Mestrado, Educação,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001.
119
SILVA, G. B. Introdução à crítica do ensino secundário. Rio de Janeiro: CADES, 1959.
SPÓSITO, M. P. O povo vai à escola; a luta popular pela expansão do ensino público em
São Paulo. São Paulo: Loyola, 1992.
120
5. A FORMAÇÃO DO PROFESSORADO COMO
ANTÍDOTO PARA O BAIXO RENDIMENTO
ESCOLAR. REPRESENTAÇÕES VEICULADAS NA
RBEP (1952-1961)
Introdução
85 As atividades do Inep tiveram início em 1938, conforme organização dada pelo Decreto-Lei nº 580 de
30 de julho de 1938 (BRASIL, 1938).
121
as soluções dos nossos problemas, mas o itinerário [...]” (p. 79). Sua pretensão
é a de produzir uma “consciência educacional comum”, pois avalia que leigos e
profissionais apreciam e julgam diariamente a educação nacional com base em
“opinião pessoal”, o que tem de ser combatido e, para tanto, argumenta “temos
que nos esforçar por fugir a tais rotinas de simples opinião pessoal, onde ou sem-
pre que desejarmos alcançar ação comum e articulada” (p.77)
Mendonça (2008, p. 78)), citando Venâncio Filho86, entende que esse dis-
curso de posse não é um “simples discurso protocolar”, mas um “verdadeiro pro-
grama de governo” de Anísio Teixeira. A autora lembra que o próprio diretor
atribuía grande importância a esse discurso pois, além de publicá-lo na RBEP,
o republicou com algumas alterações, como Introdução, em dois de seus livros,
editados, respectivamente em 1956 e 1969.
De fato, há, em sua fala, convicções que parecem já antecipar os resulta-
dos de estudos e inquéritos futuros, como as presentes no texto escolhido para
a epígrafe: faltam professores, faltam professores formados em escolas especiali-
zadas para exercer o ofício e faltam livros, tanto os “experimentais de sugestões
e recomendações para a condução do trabalho escolar” quanto o “livro didático”
(TEIXEIRA, 1952, p.78). Em outro trecho, Teixeira identifica a escola primária
como “má escola de ler e escrever” (p. 74), mas nenhum segmento fica fora de suas
críticas. A escola secundária, em sua avaliação, tornou-se “a escola de passar de
uma classe social para outra” e, em relação ao ensino superior, dispara: “estamos
dissolvendo-o,” com a “multiplicação irresponsável” de escolas desse nível (p. 74).
Essa multiplicação de faculdades, para ele, decorre do fato de que faltam profes-
sores para as escolas secundárias e, portanto, é uma tentativa de correção, o que,
para ele, é mais uma distorção, pois não haverá professores capazes para preen-
cher tais vagas no superior.
Trata-se, portanto, de uma situação educacional bem analisada e criticada
pelo diretor recém-empossado para a qual pretende produzir e divulgar diag-
nósticos “válidos e aceitos” no meio educacional e, assim, conduzir as soluções,
seguindo o “itinerário” fornecido pela “ciência”. Os estudos do Inep, promete o
diretor, “deverão ajudar a eclosão desse movimento de consciência nacional indis-
pensável à reconstrução escolar” (p. 77).
O Inep dispõe desde 1944 de uma publicação oficial, a Revista Brasileira
de Estudos Pedagógicos (RBEP). O que figuram nos textos publicados na RBEP,
nos anos 1950, em relação à formação e à atuação dos professores, consideradas
uma das responsáveis pela “inversão da marcha natural das coisas”? Que diag-
nósticos e prognósticos são apresentados? É o que buscaremos na RBEP, fonte
86 Trata-se da obra VENÂNCIO FILHO, Alberto. A educação e a crise brasileira (Prefácio). In: TEI-
XEIRA, Anísio. A educação e a crise brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
122
principal para o estudo e as reflexões apresentadas neste capítulo. E, embora a
disposição do diretor que assume o Inep nessa década é a de tratar as disfunções
do sistema, de todos os níveis de ensino, vamos nos ater às discussões que a RBEP
traz relacionadas apenas ao magistério primário, dados os limites deste capítulo.
O arco temporal abrange 1952, quando Anísio Teixeira se torna diretor do
Inep, até 1961, ano da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, LDB/61, cujas modificações introduzidas não serão examinadas neste
texto.
Os debates nos anos 1950, veiculados em uma revista pertencente a uma
instituição oficial, nos interessam porque permitem compreender os rumos das
políticas públicas a partir de como seus representantes e colaboradores identi-
ficam os problemas educacionais e apontam soluções. Conforme levantamento
realizado por Silva (2020), autores como Gouveia (1971), Araújo (2000) e Xavier
(2000) avaliam essa década como fecunda para a pesquisa educacional sobre os
problemas da ineficiência da escola e ressaltam o protagonismo de Teixeira nes-
sas discussões e na elaboração de projetos educacionais. Além disso, a pesquisa
coordenada por Mendonça e Xavier (orgs., 2008) atesta o empenho do Inep na
formulação de uma política de qualificação do magistério nacional. Daí a rele-
vância da RBEP, periódico do Inep, como fonte para este estudo.
A imprensa de educação e ensino, utilizada como fonte para a história da
educação, como aponta Nóvoa (2002, p. 11), permite apreender discursos que
“exprimem desejos de futuro ao mesmo tempo que denunciam situações do pre-
sente”. Esses dois aspectos, ressaltados por Nóvoa, são também relevantes para
este estudo: a denúncia do presente e os desejos de futuro, ou seja, o diagnóstico e
o prognóstico que circulam na RBEP relativamente ao sistema educacional, com
foco na escola primária.
A RBEP, como mencionado, foi criada em 1944, em plena Guerra, quando
o Inep estava sob a direção de Lourenço Filho. O editorial publicado no primeiro
número da revista traz sua finalidade e ressalta sua importância dado o momento
histórico.
Editada pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, a RE-
VISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS
não se destina a apresentar apenas o movimento desse órgão
técnico: deverá desenvolver mais amplo programa, aberto como
se vê, à colaboração dos especialistas de todo o país. Com este
propósito é que se apresenta esta publicação, animada do sin-
cero desejo de contribuir para a formação de uma esclarecida
mentalidade pública em matéria educacional; para dar reflexo
às ideias do professorado brasileiro de todos os níveis e ramos
do ensino; para registrar, enfim, os rumos da pedagogia brasi-
leira na fase, em que se encontra, de viva renovação e de clara
afirmação social. Se, nesta hora tão grave do mundo, por toda
123
a parte acrescem as responsabilidades dos educadores, verdade
é também que a consciência desses novos deveres bem clara se
apresenta ao professorado nacional (RBEP, EDITORIAL, vol.
I, no. 1, 1944, p. 6).
124
Trata-se de mais um aspecto que nos interessa compreender. Quem são os
colaboradores? Há entre os que publicam na RBEP, no período estudado, uma
“consciência educacional comum” sobre os problemas do magistério, capaz de
contribuir para a chamada “formação de uma esclarecida mentalidade pública”?
Se sim, qual é, como é modulada ou matizada? Que representações são veiculadas
a respeito do professor e de suas responsabilidades no processo de escolarização?
As representações sociais, como afirma Chartier (2002, p. 19), “à revelia
dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confron-
tados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é ou
como gostariam que fosse”. E, por isso mesmo, as práticas discursivas são carac-
terizadas como “produtoras de ordenamento, de afirmação de distancias, de divi-
sões” (CHARTIER, 2002, p. 27). Nessa perspectiva, diagnósticos e prognósticos
difundidos na RBEP nos informarão como a realidade educacional estava sendo
construída e dada a ler?
A RBEP tem periodicidade variável entre 1944 e 1950, mas de 1951 até
1961, mantém publicação trimestral. Está organizada em seções, mas a que é
explorada no presente estudo, por incluir os textos dos colaboradores, é a seção
Ideias e Debates – renomeada Estudos e Debates em 1960.
Em estudo anterior, Silva (2020) identificou, na RBEP, um conjunto de
textos que tratam da formação docente e ou de impactos da atuação de professo-
res despreparados na escola primária, no período entre 1952 e 1961, apresentados
no Quadro 1.
Quadro 1: Artigos e autores que discutem formação de professores da Seção Ideias e Debates
da RBEP (1952–1961)
N.º do N.º da
Ano Título do artigo Autor
Artigo Revista
125
8 1956 61 Caminhos que levam a aprendizagem Riva Bauzer
126
pela Lei Orgânica do Ensino Normal (Decreto-Lei nº 8.530/46) que determina
o Ensino Normal dividido em dois ciclos e, para Tanuri (2000)
A Lei Orgânica do Ensino Normal não introduziu grandes
inovações, apenas acabando por consagrar um padrão de ensino
normal que já vinha sendo adotado em vários estados. Em sime-
tria com as demais modalidades de ensino de segundo grau, o
Normal foi dividido em dois ciclos: o primeiro fornecia o curso
de formação de “regentes” do ensino primário, em quatro anos,
e funcionaria em Escolas Normais Regionais; o curso de se-
gundo ciclo, em dois anos, formaria o professor primário e era
ministrado nas Escolas Normais e nos Institutos de Educação.
(TANURI, 2000, p. 75–76)
127
Assim, de acordo com números veiculados na revista, em 1955, o Brasil
conta com uma população de oito milhões de crianças em idade escolar (de sete
a doze anos) e apenas a metade delas, cerca de quatro milhões, está matriculada
nas escolas primárias estaduais, municipais e privadas. E, ensinando nas escolas
públicas (municipais e estaduais), há 70.000 professores normalistas e cerca de
50.000 professores leigos.
Esses dados são citados por Eny Caldeira (1912-1992) no artigo “O pro-
blema da formação de professores primários”, publicado na RBEP em 1956. Esse
texto é resultado de um trabalho apresentado na XII Conferência Nacional de
Educação, realizada na cidade de Salvador, em 1956, promovida pela Associação
Brasileira de Educação (ABE), e tem a particularidade de apresentar diagnósticos
sobre a educação, denunciar seus desvios e, ao mesmo tempo, propor soluções aos
problemas apontados.
Eny Caldeira, segundo Silva (2012), em 1956, no momento em que parti-
cipou da conferência, desenvolvia, a convite de Anísio Teixeira, um levantamento
para o Centro Brasileiro de Pesquisa Educacional (CBPE) sobre as condições da
formação docente nos diferentes estados brasileiros. Tinha formação em Curso
Normal e em Pedagogia e realizou diversas especializações em uma viagem que
fez à Europa entre os anos de 1950 e 1952. Foi professora normalista e diretora
do Instituto de Educação do Paraná.
Em sua comunicação, Caldeira (1956) apresenta algumas considerações
sobre sua pesquisa em andamento e sublinha a importância do professor no su-
cesso das escolas primárias.
O elemento essencial de todo o sistema de educação é, sem dú-
vida, o professor. Daí a importância que lhe dão, especialmente
aos professores primários, os legisladores, governantes, educa-
dores e o público em geral, nos países adiantados. Realmente é
da formação, do número de mestres qualificados, da dedicação
e do devotamento dos professores em exercício, que dependem,
antes de tudo, os resultados da Educação. (CALDEIRA, 1956,
p. 39)
128
ano de 1955, segundo ela, um total de 400 professores nos cursos normais, mas
sua real necessidade era dez mil professores.
As proposições apresentadas por Caldeira (1956) relacionam diretamente
a precariedade da formação do professor com os problemas da escola primária.
Afirma que “é da qualidade de nossas Escolas Normais que irá depender o pro-
gresso das escolas primárias do país. [...] Nossas Escolas Normais precisam sair
do caos em que se acham mergulhadas” (p. 39). E o caos das Escolas Normais
é traduzido por situações consideradas regras nessas instituições como: falta de
ambiente próprio para funcionar; falta de equipamentos nas bibliotecas e labo-
ratórios; falta de ambientes para trabalho em equipe e campos de recreação; falta
de planos de estudos adequados à formação cultural e pedagógica dos futuros
mestres. Ainda menciona: programas inadequados com assuntos que não visam
à solução dos problemas pedagógicos; professores normalistas que desconhecem
a situação do Ensino Primário e Escolas de Aplicação – anexas aos Cursos Nor-
mais. E, para superar esse caos, Caldeira sugere várias iniciativas, entre as quais,
a revisão das leis que regulamentam as Escolas Normais e das exigências de for-
mação do professor dessa escola que, além da formação superior, deveria revelar
experiência de magistério realizada em uma boa escola primária. Sugere também
estabelecer as bases de um novo Plano de Estudos para as Escolas Normais bra-
sileiras e, para tanto, recorrer às contribuições dos Organismos Internacionais,
(UNESCO e BIE) e especialmente às recomendações da XVI Conferência Inter-
nacional de Instrução Pública realizada em Genebra em 1953 (p. 42 e 43).
Esses organismos internacionais acionam educadores de vários países
para realizar estudos sobre a escola primária, incluindo a formação docente.
Assim, Manoel Bergstrom Lourenço Filho (1897-1970) publica na RBEP,
ainda em 1953, um estudo feito por encomenda da UNESCO sobre a formação
de professores para as áreas rurais, com ênfase em duas experiências brasileiras:
Escola Normal Rural de Juazeiro do Norte (1934), no Estado do Ceará, e os
serviços de treinamento, formação e aperfeiçoamento da Fazenda do Rosário,
no município de Betim, Estado de Minas Gerais (1948). Nas regiões rurais, se
concentra o maior número de mestres leigos em atuação e é sobre o professor
leigo ou improvisado e as experiências das escolas normais regionais que trata
o texto de Lourenço Filho, intitulado “Preparação de pessoal docente para as
escolas primárias rurais”.
Quando escreveu o texto em análise, Lourenço Filho era professor de Psi-
cologia Educacional na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Bra-
sil, cargo em que se aposentou no ano de 1957. Sua larga experiência profissional
inclui parcerias administrativas anteriores, com Anísio Teixeira. Em 1932, a con-
vite de Anísio, então Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, assumiu a
direção do Instituto de Educação do Distrito Federal. O educador formou-se na
129
escola normal e lecionou como normalista nas cidades de São Paulo e Piracicaba.
Em 1929 graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais. Foi Diretor da Instrução
Pública do Ceará, na década de 1920, quando realizou uma reforma no sistema
de ensino que teve repercussão nacional. Foi Diretor da Instrução Pública de São
Paulo, em 1930. Trabalhou na implantação do Inep e foi seu primeiro diretor de
1938 a 1946. Criou a RBEP, em 1944, e a dirigiu até 1946. Assumiu a direção
geral do Departamento Nacional de Educação, entre os anos de 1947 e 1951.
(GANDINI; RISCAL, 2002, p. 746-754).
No artigo, Lourenço Filho faz um diagnóstico da situação da escola pri-
mária no Brasil e do seu magistério. Explica que, no Brasil, a atuação de mestres
leigos é da ordem de 48% do total de professores em atividade e há uma grande
diferença no percentual de leigos entre os estados. Nos do Sul e Sudeste, há cerca
de 10% de mestres “improvisados” e nos do Norte e Nordeste, em torno de 80%.
Depois de apresentar os números que retratam essa difícil situação, o edu-
cador pergunta: “A que se deverá esse fato, impeditivo de boa organização da
escola, e assim de seu maior rendimento pedagógico e social?” (LOURENÇO
FILHO, 1953, p. 62). Nessa indagação, fica clara a responsabilidade que atribui à
atuação de professores leigos pelo baixo rendimento pedagógico e social da escola
que, para Lourenço (1953), se expressa pelo déficit de vagas, baixa frequência e
alto índice de abandono.
O baixo rendimento escolar - elevado número de reprovações e repetências
nos anos iniciais, baixa frequência e alto índice de abandono - está, além da falta
de vagas, entre as denúncias frequentes nas páginas da RBEP, como veremos
mais adiante neste capítulo. Para o diretor do Inep, reverter esses indicadores é
condição para reconstruir e democratizar a escola brasileira, caracterizada por ele
como escola seletiva.
O ensino primário se vem fazendo um processo puramente
seletivo. [...] O característico da organização das escolas para
finalidade seletiva é o menosprezo às diferenças individuais,
ou a utilização das diferenças individuais apenas para elimi-
nar os reputados incapazes. Os que não se revelarem capazes,
são reprovados, tornando-se, ou repetentes, ou excluídos. [...]
Nada mais legítimo, se a escola visa realmente selecionar alguns
alunos para determinados estudos. E nada mais ilegítimo, se a
escola se propõe a dar a todos uma habilitação mínima para a
vida, a promover a formação possível de todos os alunos de acor-
do com as suas aptidões. Não será necessário estender-me mais
sobre a matéria, pois as reprovações maciças no ensino primá-
rio, respondendo pelo número de repetentes e, em parte, pelas
deserções, demonstram que esta é, realmente, a organização do
ensino primário. (TEIXEIRA, 1957, p. 5).
130
Lourenço Filho (1953) analisa o baixo rendimento da escola brasileira,
partindo das diferenças nas realizações educacionais nos diferentes estados bra-
sileiros e aponta dois motivos: primeiro, a dispersão demográfica do país que cria
“espaços não escolarizáveis”. Esse primeiro motivo refere-se ao fato de que em
algumas regiões, a distância entre os povoados e a baixa população não justifica a
criação de uma escola, tampouco atrai professores para atuar nesses locais. Segun-
do motivo é a diferença de capacidade econômica entre os estados, ocasionada
em grande parte pela forma de distribuição dos recursos destinados aos estados e
municípios. Assim, explica que o Fundo Nacional de Ensino Primário visa suprir
essa incapacidade financeira, custeando a construção de prédios escolares (escolas
primárias e normais) e provendo cursos de aperfeiçoamento destinados aos mes-
tres primários.
Ao analisar a década de 1950, as realizações do Inep e também de Anísio
Teixeira à frente do órgão, diferentes autores já atribuíram o vigor de suas inicia-
tivas ao poder do Instituto em gerir recursos financeiros que permitiram impor-
tantes realizações. Mendonça (2008) ressalta esse aspecto e acrescenta
A mera permanência de Anísio à frente do órgão durante 12
anos, marcados por sucessivas crises institucionais, que se refle-
tiram na passagem de 18 ministros, entre efetivos e interinos,
pela pasta da Educação, já é um indicativo da sua importância,
bem como da habilidade política de Anísio Teixeira e da sua
capacidade de estabelecer articulações, tanto no âmbito insti-
tucional, quanto no âmbito das relações internacionais, que lhe
garantiam, mesmo que de forma frequentemente instável, a via-
bilização financeira e técnica de seus projetos. (MENDONÇA,
2008, p. 79)
131
cifras correspondem a um maior equilíbrio de matrículas na escola primária deste
Estado, comparando o contingente populacional das zonas rurais e urbanas. Ou
seja, em sua interpretação, as escolas normais regionais, por oferecerem o curso
normal de primeiro ciclo, de quatro anos de duração, e por serem locais, atendem
melhor a escola primária das diferentes regiões do estado, provendo professores e
promovendo, assim, uma melhor distribuição e menor desigualdade de matrículas
nas zonas rurais em comparação com outros estados.
A criação dos cursos normais regionais fora aventada pela lei orgânica do
ensino normal e há uma clara defesa, por parte de Lourenço Filho, da expansão
dessa iniciativa. No entanto, embora defenda a ampliação de escolas normais re-
gionais rurais, o educador demonstra não concordar com a formação do professor
nos moldes dos que propugnavam a ruralização do ensino e incluíam, por exem-
plo, dominar conhecimentos sobre técnicas agrícolas e uma clara exaltação do
meio rural. Propõe sim, uma atuação do professor mais identificada com o meio
em que atua, mas sua defesa parece incidir na proposta de equacionar de forma
mais pragmática e eficiente a falta de professores e a atuação de mestres leigos
nas zonas rurais. Assim, por exemplo, considera acertada a decisão da Fazenda do
Rosário em iniciar seus cursos com os professores em exercício, oferecendo-lhes
aperfeiçoamento e treinamento para adaptá-los “a uma nova filosofia e a uma
nova pedagogia de cunho acentuadamente social” e “recuperando” esses mestres
improvisados. Argumenta que embora ainda não existam estudos para avaliar o
rendimento das escolas rurais, nas quais atuam professores egressos dos cursos
ministrados na Fazenda do Rosário, já é possível verificar o “aumento da frequ-
ência dos alunos, observada em quase todas as escolas de que os mestres tenham
passado por cursos de treinamento, ou de formação em serviço, na Fazenda do
Rosário.” (LOURENÇO FILHO, 1953, p. 100-101) E conclui que o problema
da formação de professores rurais está intimamente ligado ao recrutamento des-
ses futuros profissionais: eles devem ser recrutados no meio rural.
Igualmente interessado nas questões que envolvem o meio rural e sua re-
lação com a educação está Gilberto Freyre (1900-1987), em artigo publicado na
RBEP, no ano de 1957, com o título “Palavras às professoras rurais do Nordeste”.
Ele faz uma entusiasmada exaltação aos meios rurais e sua importância na iden-
tidade brasileira. O intelectual evoca a relevância do professor rural, sublinhando
a exigência de ele compreender, se envolver e valorizar esse ambiente. No ano
de 1957, quando escreve o texto em questão, Freyre assume a direção do Centro
Regional de Pesquisas Educacionais, em Recife, a convite de Anísio Teixeira.
De acordo com Meucci (2015),
“[...] a aceitação”. deste cargo e de suas responsabilidades num
momento em que a carreira de Freyre se internacionalizava
pode estar relacionada com a afinidade entre os fundamentos
132
da criação do CBPE e dos Centros Regionais e as ideias do au-
tor. No discurso de posse do Centro Regional do Recife, Freyre
reivindica uma forma de educação escolar capaz de se adequar
às diferentes formas de vida regionais, o que nos leva a identifi-
cá-lo como parceiro de Teixeira na luta pela descentralização do
sistema de ensino. (p. 132)
Concordamos com Meucci (2015) quando diz que Freyre não tinha uma
trajetória de intimidade com a educação, mas que sua ligação com as ciências
sociais e seu modo de ver o Brasil e o regional o credenciam para atuar nas inicia-
tivas empreendidas pelo Inep e justificam sua nomeação como diretor do CRPE
do Recife.
A criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e dos
Centros Regionais de Pesquisas Educacionais (CRPEs), em 195587 está alinha-
da com os projetos de Anísio Teixeira que, reiteramos, desde sua posse no Inep,
revela intenção em fundar os estudos e os diagnósticos da educação nacional em
bases científicas.
Sempre que pudermos proceder a inquéritos objetivos, estabe-
lecendo os fatos com a maior segurança possível, teremos fa-
cilitado as operações de medida e julgamentos válidos. [...]. É
necessário levar o inquérito às práticas educacionais. Procurar
medir a educação, não somente em seus aspectos externos, mas
em seus processos, métodos, práticas, conteúdos e resultados re-
ais obtidos. (TEIXEIRA, 1952, p. 78)
133
pelo próprio Centro e pelos Centros Regionais de Pesquisas a
ele articulados. (MENDONÇA; XAVIER, 2008, p. 33)
134
Mesmo demonstrando uma preocupação com o rural, Freyre (1957), assim
como Campos (1956), o qual trataremos mais adiante, e também Lourenço Filho
(1953) estão muito distantes de uma defesa da ruralização do ensino. De acordo
com Souza e Ávila (2014), entre os anos de 1930 e 1940 há um intenso movi-
mento de disputa em defesa, por um lado, da ruralização do ensino e, de outro, da
escola comum. Segundo as autoras as propostas de ruralização despontam desde a
década de 1920, tendo como porta-voz Sud Mennucci (1892-1948). Quanto aos
modelos em disputa a partir de 1930, cada um apresenta o seu “projeto” para a na-
ção. Vislumbravam “um Brasil que tomasse como base de sua economia a indus-
trialização ou um Brasil de vocação eminentemente agrícola: para cada projeto,
a defesa de um tipo de ensino” (SOUZA; ÁVILA, 2014, p. 23). Tal antagonismo
não é observado nos textos aqui estudados, sem uma aparente defesa de um mo-
delo de Brasil em detrimento de outro. A defesa que vemos é do desenvolvimento
por meio da educação e de uma escola primária para todos, embora se aceite, que
deva se adequar às necessidades e possibilidades de cada região.
Demonstrando preocupação com o bom rendimento da escola de forma
diretamente relacionada à atuação do professor e à formação que ele recebe estão
as considerações de Campos (1956). No artigo, “A escola elementar brasileira e o
seu magistério”, publicado na RBEP, em 1956, Campos produz um diagnóstico
contundente do ensino primário e denuncia as condições precárias dessa escola,
seu rendimento, formação inadequada do professor e a falta dela.
Paulo de Almeida Campos (1915-1991) foi assessor de Anísio Teixeira
e delegado do Brasil em diversas conferências internacionais promovidas pela
UNESCO. Quando escreveu o referido artigo, Campos atuava como técnico do
Inep e o texto publicado na RBEP foi preparado para a Conferência Regional
sobre Educação Primária na América Latina, realizada em Lima (Peru), em 1956,
no qual Campos compareceu como delegado do Brasil. Formou-se na escola nor-
mal em 1932, em Direito em 1939 e em Pedagogia em 1950. No estado do Rio
de Janeiro foi professor primário, diretor de Grupo escolar e ocupou cargos na
Inspetoria e Direção do Ensino. Foi professor universitário e participou de di-
versos congressos, conferências e simpósios de Educação, no Brasil e no exterior.
(LANKENAU, 2002, p. 888-892).
Campos (1956), como outros autores citados, chama atenção para o pro-
blema do déficit escolar, apesar da obrigatoriedade do ensino. A não permanência
dos alunos na escola, principalmente nas zonas rurais, é apontada por ele como
decorrente de fatores diversos: relacionados às condições econômicas desfavorá-
veis que tiram o aluno da escola e devido a distância entre o que a escola ensina
e as necessidades imediatas das classes populares e da população do campo. Para
135
ratificar seu argumento utiliza o conhecido estudo de Moysés Kessel88 para afir-
mar que a cada 10.000 crianças matriculadas na escola primária, 5.073 a abando-
nam antes de findar o primeiro ano escolar e elenca várias razões para essa evasão.
Para essa evasão escolar, concorrem, além de fatores de ordem
econômica, tal como o anteriormente referido, outros de ordem
pedagógica, facilmente identificáveis: pauperismo, regime de
“graduação”, rígido e inadequado, escola não adaptada às con-
dições regionais, escassez de recursos didáticos oferecidos, po-
breza de métodos adotados, professor não ajustado psicologica-
mente à comunidade em que se situa a escola, etc. (CAMPOS,
1956, p. 101)
Campos (1956) enfatiza, porém, que a situação é mais dramática nas zonas
rurais, onde a escola primária não consegue atingir outro objetivo além de apenas
alfabetizar e relaciona esse fato à falta de professores formados
É que nas zonas interiores não se pode contar senão ainda com
o elemento docente improvisado, porque nem contamos com
diplomados em número suficiente para a totalidade das escolas
existentes, nem estes se interessam pelas escolas longínquas e
de difícil acesso. De outro lado, nessas escolas um só professor
atende a um só tempo a turmas de cinco e seis níveis de aprovei-
tamento das três e quatro séries. É, de igual modo, escassamente
equipada a escola que também é parcamente assistida do ponto
de vista técnico-pedagógico. Pobre também é o seu currículo.
Já as escolas primárias das cidades são mais ricas em conteú-
do didático, melhor aparelhadas, de magistério com preparação
adequada, em maioria instaladas em prédios próprios, turmas
de alunos organizadas por critério menos empírico, contando,
inclusive, com professores especializados para educação física,
canto orfeônico e trabalhos manuais. (CAMPOS, 1956, p. 102)
88 KESSEL, M. I. A evasão escolar no ensino primário (com nota preliminar de Anísio Teixeira e estudo
introdutório de Otávio Martins), Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 22, n. 56,
p. 53–72, out. / dez. 1954. Disponível em www.portal.inep.gov.br.
136
é possível. Referindo-se às escolas municipais e comparando às estaduais, relata
suas condições, de forma alarmante.
Mais pobremente equipada, e instalada em piores condições que
a do Estado, a escola mantida pela Municipalidade não pode
oferecer mais riqueza de ensino nem maior eficiência. Bem ao
contrário, pois. Entretanto, essa é a escola de penetração, a do
alto sertão e da longínqua restinga, desservida de rodovias e de
recursos de civilização: é a escola desbravadora. E seu dirigente
é a modesta professora não diplomada, ali nascida, ali vivendo
com sua família, e que numa sala da sua própria casa ensina o
que sabe aos meninos da redondeza. Faz, assim, obra de pionei-
rismo. A despeito das deficiências de organização dessa escola,
tudo que nela ainda se faz é obra da mestra leiga, cheia de boa
vontade, que reparte com as crianças o que sabe. E diante da
gigantesca massa escolarizável do Brasil, não dispondo de mais
vultosas somas para substituir da noite para o dia essa escola por
outra de mais alto padrão pedagógico, não podemos dispensar
ainda nas zonas interiores esse tipo de escola nem esse professor.
A má escola é, afinal, ainda, de certo modo, uma escola. E não se
podendo fazer melhor escola fazemos, no interior, aquela que é
possível, embora reconheçamos as suas debilidades. (CAMPOS,
1956, p. 108)
137
Nos argumentos apresentados nos excertos até aqui expostos é possível
identificar a “rede de comunicação” que se forma quando Lourenço Filho (1953)
e Campos (1956) apontam para a centralidade dos recursos e a conveniência dos
cursos normais regionais. Campos (1956) chega a citar trechos do estudo de Lou-
renço Filho de 1953. Fica evidente, também, a constituição dessa rede ao sugerir
o modelo de financiamento educacional proposto pelo diretor do Inep.
De igual modo, é interessante notar a estratégia discursiva dos autores que,
de forma recorrente, como Lourenço Filho (1953), Caldeira (1956) e Campos
(1956), apresentam, primeiramente, uma situação alarmante e, por meio de dados
estatísticos que tencionam ratificar seus argumentos, buscam revelar a realidade.
Depois de apresentar a realidade (diagnóstico), apontam causas e, não raramente,
descrevem um modelo ideal e assim propõem soluções para alcançá-lo.
O uso de dados estatísticos pode ser compreendido como estratégia de
“persuasão” e “justificação” (CHARTIER, 2002, p. 224-225). 89 As estratégias,
por sua vez, podem configurar um processo de representação em que os atores
descrevem a “sociedade tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse”
(CHARTIER, 2002, p. 19).
Há correspondência, como visto, nos diagnósticos até aqui apresentados,
tanto quanto nas principais inquietações. A preocupação com o rural, que se
sobrepõe em algumas discussões, reflete a insuficiência real das escolas nesses
ambientes, mas também abarca a dinâmica social de um período em que o país
vive um intenso movimento de urbanização e industrialização e que, ao mesmo
tempo, assiste à intensificação do êxodo rural.
Com a crescente urbanização e industrialização e as carências de desen-
volvimento e o êxodo nos ambientes rurais, as discussões expressam urgências de
um momento em que ao Inep, por meio de seus centros de pesquisa, é facultada
a possibilidade de pensar o social. No ambiente rural, faltam professores interes-
sados em atuar nesses locais, faltam professores habilitados e faltam escolas e, nas
zonas urbanas, há multiplicação de turnos, faltam prédios escolares e, também,
falta a formação adequada do professor.
Assim como a situação do professor em relação ao sistema (a falta deles
e o tipo de formação), a preocupação com questões práticas do ensino primário
é notável nos textos da RBEP que examinam a atuação do professor. São textos
que analisam atitudes e comportamentos docentes, objetivos e planejamento do
89 Nessa perspectiva, as reflexões a partir do trabalho de Paulilo e Gil (2017) também nos ajudam a
pensar o esforço dos autores da RBEP para legitimar e validar seus discursos que criticam a escola
primária e propõem soluções para a superar os problemas. Paulilo e Gil (2017) analisam a produção e a
utilização de estatísticas educacionais e a forma como constituíram legitimidade, nas primeiras décadas
do século XX, no Brasil, para direcionar políticas educacionais, colocando em evidência, ou não, os
problemas de rendimento escolar, de acordo com a condução dessas políticas.
138
ensino e métodos de ensinar. Esses textos deixam clara a relação que seus auto-
res estabelecem entre baixo rendimento escolar – dificuldades na aprendizagem,
reprovação, repetência e abandono escolar – e práticas ou atitudes docentes ina-
dequadas.
Com essa perspectiva está o texto de Riva Bauzer 90, técnica de educação
do Inep, que em 1956 publica na RBEP o artigo “Caminhos que levam a apren-
dizagem”. Nele, a autora indica de forma detalhada, atitudes, comportamentos e
procedimentos adequados ao professor, enfatizando que a escola deve sempre se
adaptar ao aluno para garantir seu interesse e consequente aprendizagem. Os dez
passos indicados por Bauzer (1956), dão a medida da representação do professor
ideal ou como “gostaria que fosse”.
I. O bom professor dá aos alunos trabalhos ao seu alcance, isto
é, onde possam obter sucesso.
II. O bom professor ajuda seus alunos a transformarem-se em
membros do grupo.
III . A saúde física e mental e indispensável ao bom desenvolvi-
mento dos processos de aprendizagem.
IV. Não procure fazer ninguém dar mais do que pode dar.
V. O medo como elemento de motivação deve ser completa-
mente abolido.
VI. Todo comportamento tem causa.
VII. As personalidades diferem sob vários aspectos.
VIII. Dez aprovações para uma negação.
IX. O bom professor ensina a seus alunos que os problemas de-
vem ser enfrentados e não evitados.
X. A segurança é um ponto médio situado entre a dependência
e a independência. (BAUZER, 1956, p. 132–139)
90 Não localizamos informações precisas sobre a trajetória de formação e profissional dessa autora. Em
publicações da RBEP há a menção de Riva Bauzer como “do Inep”.
139
Escola Normal do Rio de Janeiro, atuou no magistério primário como professora
e como diretora, foi assistente de Lourenço Filho no Instituto de Educação e,
em 1942, foi nomeada Chefe de Distrito Educacional do Distrito Federal onde
permaneceu até 1952. (SILVA, 2002).
Silveira (1958) aponta o “pequeno rendimento” no ensino de leitura e es-
crita e argumenta que essa defasagem na aprendizagem é responsável por gran-
de parte das sucessivas repetências ou, em suas palavras, “insucessos escolares”.
Aponta oito causas para o problema.
I. Dissociação entre pensamento e linguagem, entre conteúdo e
forma, consequência da permanência de certos conceitos origi-
nários de uma psicologia mais interpretativa que experimental.
As definições correntes de linguagem, incompletas e subjetivas,
respondem por essa dissociação;
II. Rotina;
III. Falsa concepção de aprendizagem, baseando-se em teorias
psicológicas obsoletas e inadequadas;
IV. Diferença de conceituação entre o que é matéria de ensino, para
o professor, e matéria de estudo, para a criança, dando origem a uma
distorção entre meios e fins educacionais;
V. Desconhecimento dos novos estudos a respeito das funções e usos da
linguagem, do domínio do significado e das investigações científicas,
principalmente no campo da fisiologia da leitura;
VI. Material didático deficiente e de má qualidade;
VII. Conceito de “série” sobrepujando a realidade das diferenças
individuais;
VIII. Horário escolar insuficiente. (SILVEIRA, 1958, p. 51–61,
grifos nossos)
91 O que é considerado intrínseco ou extrínseco à escola segue o que está em CORBUCCI, P. R.; ZEN,
E.L. O IDEB à luz de fatores extrínsecos e intrínsecos à escola: uma abordagem sob a ótica do muni-
140
Os periódicos educacionais têm como pretensão guiar as ações educacio-
nais em situações distintas, de acordo com a sua especificidade e público alvo
– orientando a ação do professor em sala de aula, divulgando tendências pe-
dagógicas inovadoras, propagandeando realizações ou mesmo direcionando-as.
Gualtieri (2013) ao estudar a Revista Escola Nova, no início dos anos 1930, tam-
bém identifica um movimento de renovação da cultura pedagógica. Publicação da
Diretoria de Ensino de São Paulo, esse periódico é direcionado a orientar a atu-
ação dos professores. Naquele momento, em suas páginas, discutia-se que “o ato
pedagógico cientificamente controlado era condição para resolver os problemas
educacionais” (GUALTIERI, 2013, p. 206). E, um dos problemas era a repetência
decorrente das dificuldades que os alunos apresentavam, mas a natureza desse
problema era vista de outra forma pelos autores que indicavam a necessidade
de medir os alunos, medir, classificar e separar para homogeneizar as classes, os
processos educativos e assim oferecer uma “escola sob medida”. (GUALTIERI,
2013)
Diferentemente, os autores sob análise, dão destaque à infraestrutura pe-
dagógica – humana e material –, como Silveira (1958), que encerra o texto sin-
tetizando as sugestões para enfrentar os problemas apontados e afirmando que
levantar as causas profundas e talvez as mais frequentes do pequeno rendimento
do ensino do ler e escrever não é atitude derrotista, mas realista.
Do mesmo modo, Joel Martins e Hilda Taba, autores do texto “Necessida-
des de observar os objetivos do ensino”, publicado em 1958, na RBEP, analisam
os prejuízos que currículos e programas mal definidos pelos especialistas repre-
sentam para o público escolar. O artigo é resultado de um estudo realizado du-
rante o Curso de Especialistas em Educação para a América Latina, promovido
pelo CRPE de São Paulo com apoio da Unesco.
Joel Martins (1920-1993) atuou, entre os anos de 1956 e 1959, no CRPE
de São Paulo, a convite de Fernando de Azevedo – primeiro diretor deste centro
– quando trabalhou na coordenação dos Cursos de Especialistas em Educação
para a América Latina (MUSTAPHA, 2018). Os cursos oferecidos pelo centro
foram comentados na RBEP e, de acordo com Mustapha (2018, p. 147), tiveram
“grande repercussão na imprensa”. Martins formou-se em Pedagogia e Filosofia
pela Universidade de São Paulo (USP). Realizou mestrado nos Estados Unidos,
entre os anos de 1949 e 1950 e Doutorado em Psicologia da Educação, na USP,
de 1951 a 1953. O pesquisador foi importante personagem na implantação da
pós-graduação no Brasil.
cípio. In: BOUERI, R.; COSTA, M. A. (editores). Brasil em desenvolvimento 2013: estado, planejamento
e políticas públicas. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília: Ipea, 2013. p. 793- 816
141
Hilda Taba (1902-1967) foi uma professora e pesquisadora da educação,
de origem estoniana, a qual se atribui erroneamente a identidade de “professora
americana”. Formou-se como professora primária em 1921 e em Filosofia na
Universidade de Tartu (Estônia), em 1926. Realizou seus estudos de pós-gra-
duação nos Estados Unidos e se especializou em Currículos, sendo reconhecida
mundialmente nessa área.92
No artigo supracitado, os autores apresentam uma análise de currículos e
programas de ensino em vigor naquele momento e afirmam que os especialistas
em educação precisam dominar os conhecimentos necessários à elaboração desses
documentos para amparar o trabalho dos professores que, “muitas vezes”, não são
“dotados de uma preparação adequada”. Ressaltam que a definição de objetivos
deve ser realista, considerando tanto a faixa etária quanto o desenvolvimento e
o interesse da criança, além da real situação da escola, com carências diversas
“com o pouco tempo que a criança despende na escola, com a habitual carência
de materiais, e muitas vezes sem professores dotados de uma preparação adequa-
da, a validez do que deve ser obtido nessas condições precisa ser reconsiderada.”
(MARTINS, TABA, 1958, p. 45)
Os autores demonstram preocupação, para além da atuação do profes-
sor, alertando para a necessidade de formação e conhecimento adequados para
aqueles que orientam o trabalho pedagógico e são responsáveis por guiá-los na
elaboração de planos e programas de ensino. E, como outros educadores e pesqui-
sadores da RBEP, aqui estudados, descrevem a escola primária na década de 1950,
expondo seus reveses (diagnósticos) e formulam propostas na intenção de superá-
-los (prognósticos), tendo como foco da análise o que veiculam sobre a formação
e a atuação dos professores. Nessa busca, identificamos quem eram esses autores
e as posições que ocupavam.
Podemos afirmar que em um mesmo período, as explicações para o baixo
rendimento da escola ou seu insucesso podem não ser as mesmas. E, ainda que
propondo renovações pedagógicas, a justificativa para o insucesso escolar pode
incidir em diferentes fatores, dada a posição de quem a profere. É o que explica
Gualtieri (2021) ao analisar discursos sobre inovação pedagógica, nas décadas
de 1930 a 1950, proferidos por autores que ocupam posições diferenciadas no
sistema educacional, nos quais consegue identificar argumentos distintos e trans-
mutações de discursos “em função do lugar de que se fala” (GUALTIERI, 2021,
p. 290).
92 As informações obtidas sobre a trajetória de Hilda Taba foram extraídas do texto de Edgar Krull, dis-
ponível em: http://www.ibe.unesco.org/sites/default/files/tabas.pdf no qual não foi pos-
sível identificar a ligação de Hilda Taba com o Inep, embora tenha assinado o texto com Joel Martins,
não fica claro se sua participação no Curso de Especialistas em Educação para a América Latina se deu
diretamente em vínculo com o Inep ou apenas com a Unesco.
142
No entanto, na historiografia há um lugar comum que imputa um mesmo
discurso para a explicação do insucesso escolar em diferentes momentos. Patto
(2015) afirma que historicamente a responsabilização pelo fracasso escolar foi
atribuída ao aluno, à família e a seu modo de vida, até mesmo na RBEP, na déca-
da de 1950. Tal fato não foi confirmado por Silva (2020), ao estudar os discursos
sobre a escola seletiva na Revista, na década de 1950, bem como neste trabalho.
Um movimento diferente foi observado, ao analisarmos um conjunto de
textos da RBEP da década de 1950. Uma revista de natureza institucional, com
abrangência nacional, direcionada a um público amplo, em que as vozes dos auto-
res sugerem um esforço em convencer sobre a urgência dos problemas identifica-
dos na escola e no sistema de ensino, em demonstrar a centralidade do professor,
sua formação e atuação, em viabilizar as ações pretendidas, bem como dar a ver e
manter as já existentes: são também os “desejos de futuro”.
Considerações finais
143
ao bom funcionamento da escola. O peso que representa a criança e sua família
no baixo rendimento escolar é relativizado ou inexistente nos diagnósticos dos
técnicos e pesquisadores analisados.
Responsabilizar o sistema e a escola pelas disfunções educacionais marca
uma posição diferente se compararmos com o que veiculam outros impressos,
em outros momentos, em que família e criança estão entre as justificativas prefe-
renciais para o baixo rendimento escolar. É de se pensar o papel que essa rede de
comunicação teve na construção de outro entendimento.
Talvez caiba aqui traçar um paralelo com as reflexões de Darnton (1996)
quando chama a atenção para o fato de que os historiadores tratam a palavra im-
pressa como um registro e não como uma força ativa na história, um instrumento
para a criação de uma nova cultura política. No caso do impresso pedagógico
estudado, de criação de nova ou de outra cultura educacional.
Referências
144
BRASIL. Decreto-Lei nº 8.530, de 2 de janeiro de 1946. Lei Orgânica do Ensino Normal.
Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, Seção 1, p. 116, jan. 1946b. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br.
145
DARNTON, R. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014.
146
política de formação do magistério nacional: o Inep/MEC dos anos 1950/1960. Brasília:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2008, p. 19-
38.
SILVA, F. M. da. A escola seletiva como problema educacional. Uma leitura da Revista
Brasileira de Estudos Pedagógicos (1952-1961). Dissertação de Mestrado em Educação.
Universidade Federal de são Paulo. Guarulhos, 2020.
147
SOUZA, R. F. de, ÁVILA, V. P. da S. de. As disputas em torno do ensino primário
rural (São Paulo, 1931–1947). História e Educação [Online], Porto Alegre, v. 18, n. 43,
maio/ago. 2014, p. 13–32.
148
2ª PARTE
IMPRESSOS DE DESTINAÇÃO PEDAGÓGICA
149
6. INSTRUIR A INFÂNCIA PELAS LIÇÕES MORAIS
E RELIGIOSAS: CONTOS BRAZILEIROS (1881), DE
GABRIELLA DE JESUS FERREIRA FRANÇA
Introdução
150
será desnaturalizada, pela superstição ou negligência, e por isso
hão de ser de necessidades melhores. Podem, portanto, ser fei-
tos ou pelos mestres encarregados deste ensino, ou por particu-
lares, que queiram entregar-se a estes gêneros de trabalho em
benefício de sua pátria, voluntariamente ou por ordem superior
ou por dinheiro; podem mesmo traduzir-se alguns, que há em
outras nações cultas, particularmente a alemã, que mais se tem
assinalado nesta espécie de instrução, apropriando-se ao sistema
estabelecido neste plano, e depois fazê-los examinar, por aque-
la corporacão ou pessoas literatas e sábias, a quem o soberano
haja de confiar iguais exames. (MACHADO apud MOACYR,
1936, p. 137-138).
Dessa defesa pela vigilância e inspeção dos livros, frequente entre políticos
e intelectuais ligados à Instrução pública, a partir da segunda metade do século
XIX, associadamente à expansão da atividade editorial e ao crescimento do nú-
mero de escolas públicas criadas no país, esse dispositivo didático tornou-se alvo
sistematizado de controle e ordenamento por parte do Estado, sendo obrigatória
a sua inspeção e aprovação pelos administradores da Instrução Pública. Em face
disso, o período foi marcado por disputas e debates em torno da aprovação ou não
de novos livros para uso nas escolas primárias, tornando-se a chancela do governo
objeto de amplo desejo, importante instrumento de validação e propaganda des-
ses impressos e fruto de intrincadas relações de poder.
Mediante o exposto, este texto tem como objetivo contribuir para a com-
preensão do modo como os livros escolares oitocentistas estiveram associados ao
propósito de civilização e (com)formação de seu público destinatário, ao mesmo
tempo em que viabilizaram o ensino dos saberes elementares instituídos para a
instrução primária pelo governo Imperial. Para tanto, o enfoque recai sobre o
livro Contos brazileiros: o livro de Antonico (primeira série), de autoria da pro-
fessora e escritora Gabriella de Jesus Ferreira França, publicado em 1881, pela
Typographia do Apóstolo, no Rio de Janeiro.
Esse livro, além de ter gozado do privilégio de integrar a relação dos im-
pressos autorizados para uso nas escolas da época, com finalidade de transmitir
aos pequenos aprendizes lições de leitura moral e cristã, compõe o conjunto das
obras que marcaram o movimento em defesa dos livros literários e escolares “ver-
dadeiramente nacionais”, em oposição ao predomínio dos livros portugueses e
franceses (TAMBARA, 2002), corroborando para a “origem” da literatura infantil
brasileira (ARROYO, 1968).
Pelas razões apresentadas, entende-se que Contos brazileiros possibilita re-
conhecer indícios importantes sobre os ideais de criança, família, instrução e a
vida em sociedade nas últimas décadas do período Imperial brasileiro, dado seu
alinhamento às políticas do governo e ao ideal de educação da infância.
151
Dinâmicas de controle sobre a circulação dos livros didáticos no
século XIX: caminhos para a aprovação oficial de Contos brazileiros
153
futuros destinos do Brasil pendem inteiramente da boa, ou má
direcçáo que se der aos espíritos da geração que começa a desen-
volver-se. (SOUZA, 1835, p. 13-14).
93 O Conselho Diretor era formado pelo Inspetor Geral, pelo Reitor do Colégio de Pedro II, por dois
professores públicos e um particular com distinguido exercício do magistério e mais dois membros
nomeados pelo governo (BRASIL, 1854).
154
e Secundária da Corte poderiam ser oficialmente admitidos para uso nas escolas
do Rio de Janeiro.
Em face dessa nova regulamentação, os livros escolares em circulação ou
que viriam a ser produzidos deviam se ajustar à definição das novas matérias de-
terminadas para o ensino primário elementar, conforme o estabelecido no artigo
47 do Decreto nº. 1.331-A, de 1854. Compreendiam essas matérias: instrução
moral e religiosa, leitura e escrita, noções essenciais de gramática e sistemas de
pesos e medidas. Apenas para as escolas voltadas ao ensino feminino, além dessas,
deveria ser acrescida matéria sobre bordados e trabalhos de agulha.
Em relação à avaliação e aprovação dos livros, o Decreto nº. 1.331-A, de
1854, estabeleceu rito que compreendia: análise dos originais por pessoas indica-
das pelo Conselho Diretor, normalmente professores “idôneos” e de “confiança”
do governo, com destacada atuação nas escolas primárias cariocas (TEXEIRA,
(2008); e parecer deliberativo do Conselho Diretor, publicado em jornais e veícu-
los de comunicação oficial. Para os livros devidamente aprovados após esse rito,
eram conferidos aos seus autores o pagamento de um prêmio por parte do go-
verno imperial, tal como previsto no artigo 95 do Decreto nº. 1.331-A, de 1854.
Como se pode verificar, esse processo de fiscalização dos livros e atribuição
de uma chancela governamental evidencia o controle e a importância desse tipo
de material didático no contexto da escolarização moderna, uma vez que o espaço
ocupado por ele, totalmente regulado e legitimado pela administração central, era
crucial para o sustento das práticas de ensino e de imposição de novos costumes
e cultura ao povo.
Mas, não era apenas o interesse instrucional e civilizatório que estava em
jogo na execução desse dispositivo legal. O processo também envolvia dinâmicas
políticas complexas, pois a posição ocupada pelos autores na esfera social, edu-
cacional e administrativa também concorriam para o aceite e circulação desses
materiais. Sobre esse assunto, identifica Bittencourt (2004) que os autores dos
livros escolares normalmente eram intelectuais ligados ao poder e pertenciam às
elites política e cultural do país. Dessa maneira, verifica-se que o direito à pena
ou a autorização de fala não era acessível a todos e todas, bem como demarcava
parcela restrita e privilegiada da sociedade.
Também as questões mercadológicas e o prestígio dos autores e editoras
influíam no processo de adoção e compra desses livros por parte do Governo.
Sobre isso, explica Teixeira (2008) que:
[...] no caso dos autores mais “renomados”, que possuíam suas
obras impressas por editoras mais prestigiadas, a negociação
geralmente era feita diretamente entre as respectivas editoras
e o governo [...] Já no caso dos menos “renomados”, a iniciati-
va de 50 impressão corria por conta dos próprios autores, que
155
recorriam às pequenas tipografias, livrarias e editoras menos
prestigiadas, sendo possível perceber que, neste caso, tendo o
livro aprovado, comumente o próprio autor vendia suas obras, ao
governo ou ao público avulso, tendo as obras, inclusive, preços
diferentes. (p. 50).
Essa segunda situação, dos autores menos renomados, parecer ter sido a
de Contos brazileiros, de Gabriella de Jesus Ferreira França. Impresso em sua 1ª
edição pela Typographia do Apóstolo, uma editora sem grande prestígio, ligada
às publicações religiosas instalada na Rua Nova do Ouvidor, n. 16 e 18, no Rio
de Janeiro, Contos brazileiros foi submetido pela autora, em 1881, para apreciação
do então Inspetor Geral da Instrução Pública, José Bento da Cunha Figueiredo,
como se verifica em carta-resposta por ele redigida:
Illma. e Exma. Sra. D. Gabriella Ferreira França
Corte, 1° de Março de 1881.
Acabo de receber, com muito agradecimento, o livrinho de que
se dignou fazer-me presente, acompanhado de sua presada carta
de hoje.
Começando a lêl-o, fui logo ao fim, attrahido pelos bons concei-
tos que a obra encerra, escriptos em linguagem simples, pura e
castiça, de certo mui própria para interessar e alimentar a curio-
sidade dos meninos, imprimindo-lhes na memória palavras e
usos especiaes da índole dos nossos incolas, que muito convém
zelar.
Estou certo que o Livro de Antoniço merecera, como me me-
receu, o mais benevolo acolhimento do Conselho de Instrucção.
Resta-me fazer mil votos para que V. Ex., não só por gloria
sua, como também para suscitar a emulação das nossas hábeis
patrícias, continue a cultivar seu bello talento nesse gênero de
litteratúra domestica, de que não temos ainda bastante fartura.
Sou com particular consideração
De V. Ex.
Humilde servo e respeitador
JOSÉ BENTO DA CUNHA FIGUEIREDO.
(FIGUEIREDO apud FRANÇA, 1893, p. 8).
156
O LIVRO DE ANTONICO
94 Esses pedidos de compra encontram-se registrados nos Annaes da Assembleia Legislativa Provincial.
157
Também em 1885, a Assembleia Legislativa Provincial determinou a
substituição dos livros até então em uso95 pelos de autoria de Gabriella de Jesus
Ferreira França, Francisco de Paula Barros e Félix Ferreira, pois não havia recurso
suficiente para comprar todos eles (TAMBARA, 2003).
Tendo conquistado esse espaço de prestígio no circuito dos livros escolares
no Rio de Janeiro, Contos brazileiros também circulou em outras localidades do
país, com adoção oficial em escolas primárias das províncias de Minas Gerais,
Pará, Pernambuco, Bahia, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No caso de Per-
nambuco, Galvão (2009) explica ter sido esse o único livro de autoria feminina
com circulação no século XIX, fato que permite compreender o lugar de impor-
tância conquistado por Gabriella de Jesus Ferreira França no âmbito dos impres-
sos com destinação escolar. Quem foi, então, essa mulher “infiltrada” nesse nicho
predominantemente masculino?
95 De acordo com Tambara (2003), eram esses livros: Contos de Schmidt; Segundo livro de leitura do Dr.
Abílio; Terceiro livro de leitura do Dr. Abílio; Catechismo de doutrina Cristã; e História Sagrada.
158
Na opinião de muitos, não havia porque mobiliar a cabeça da
mulher com informações ou conhecimentos, já que seu destino
primordial – como esposa e mãe – exigiria, acima de tudo, uma
moral sólida e bons princípios. Ela precisaria ser, em primeiro
lugar, a mãe virtuosa, o pilar de sustentação do lar, a educadora
das gerações do futuro. A educação da mulher seria feita, por-
tanto, para além dela, já que sua justificativa não se encontrava
em seus próprios anseios ou necessidades, mas em sua função
social de educadora dos filhos ou, na linguagem republicana,
na função de formadora dos futuros cidadãos. (LOURO, 2004.
p. 570).
96 Dentre os vestígios que possibilitam essa afirmação, tem-se diversos registros em jornais, de pedidos
de pagamento de pensão à Gabriella de Jesus Ferreira França, em decorrência da morte de seu pai.
Também nas notas de falecimento dessa professora e escritora, não há qualquer menção a esposo ou
filhos. A assinatura dessas notas e dos convites para missa de 7º dia são dos irmãos, mãe, tios e primos.
159
contra a ordem estabelecida, mas como porta voz de mulheres católicas, dotadas
de instrução não recorrente para esse público, que agiram em defesa dos valores
morais, de certa manutenção do status quo e preservação do ideal cristão. Consta
em um de seus obituários que ela também atuou em prol da causa abolicionista,
bem como na defesa acirrada dos interesses católicos.
Sobre esse último aspecto, é exemplo a manifestação que ela e outras duas
mulheres encabeçaram em favor da alteração dos princípios que deram origem ao
Decreto nº. 181, de janeiro de 1890, que instituiu a lei sobre o casamento civil97,
como consta em notícia publicada no jornal Civilisação: periódico Hebdomada-
rio, ligado ao Órgão dos Interesses Católicos do Maranhão:
As senhoras fluminenses dignamente representadas pelas
Exmas. Viscondessa de Pirassinunga, D. Ilidia Drummond e
D. Gabriela Ferreira França dirigiram-se hontem ao palacete do
ilustre generalissimo chefe do governo provisório e despuzeram
nas mãos de S. Exe. uma representação pedindo que seja adiada
a execução do decreto sobre o casamento civil, até que o Con-
gresso Nacional delibere a respeito, de modo definitivo. [...] Eis
a representação: Ao Exm. Generalissimo chefe do governo pro-
visório. Generalissimo, confiando em que algumas medidas de
certo não emanaram do vosso coração recto e bem intencionado
seriam reconsideradas e abolidas, esperamos; mas eis se appro-
xima a éphoca que olhamos com toda a angustia que desperta
em nosso coração a ideia dessa medida a que dão o nome de
casamento civil. Chegará em poucos dias o prazo em que deverá
vigorar essa lei, que tem despertado em todo o nosso paiz o
mesmo sentimento de dôr e repulsão, como bem o manifestam
os inúmeros protestos contra elle dirigidos. Julgamos portanto
que também para nós chegou o momento em que devemos, nós
brazileiros desta capital elevar igualmente a nossa voz. Genera-
lissimo, essa lei offende a nossa consciência de catholicas, pois
nos obriga embora celebremos o nosso consorcio conforme as
leis da Igreja a passar por uma formalidade que opprime a nossa
delicadeza um juiz civil; e magôa dolorosamente o nosso cora-
ção, pois, se pela graça de Deus, protestamos não reconhecer
como verdadeiro se não o matrimonio-sacramento instituído
por Nosso Senhor Jesus-Christo e como ordena a Santa Igreja
Catholica Apostolica Romana, á qual nós também vós, cidadão
Generelissimo, temos a dita de pertencer, a nossa honra e o nos-
so decôro commum, estremecem com a lembrança dos grandes
males que vão recahir sobre a sociedade e sobre algumas que
talvez por ignorância se deixem illudir. Lembrae-vos que nós
formamos a parte a amis numerosa, e é pois a maioria do povo,
97 Entre as mudanças fixadas por esse decreto, que gerou o incomodo manifesto por Gabriella de Jesus
Ferreira França, está a determinação de pena para religiosos que realizassem uma celebração matrimo-
nial antes da efetivação do casamento civil.
160
que vos pede, reconsidereis essa medida aliás inutil. Ouvi pois o
clamor geral que todos os Estados se eleva, suspendei essa lei e
os catholicos brazileiros que gemem entrevendo o futuro a dis-
solução na família, a desmoralisação da sociedade e mil outros
males, abençoarão o vosso nome. (CIVILISAÇÃO...,1890, p.
4).
161
Esse entendimento sobre o papel da mulher na esfera do magistério foi
também a justificava para a gradativa saída dos homens das salas de aula (LOU-
RO, 2004) e de outras funções associadas ao ensino, como a escrita de livros esco-
lares. Embora por um longo período ainda tenha prevalecido a autoria masculina
na publicação desse tipo de livro, gradativamente as mulheres foram também
ocupando esse espaço, algumas alçando certo prestígio no mercado dos impressos
com destinação escolar. E esse parece ser o caso de Gabriella de Jesus Ferreira
França, com as reedições de Contos brazileiros.
Após a 1ª edição, publicada em 1881 pela Typographia do Apóstolo, e a
2ª edição, publicada em 1882, pela mesma editora, em 1893, Contos brazileiros foi
reeditado em sua 3ª edição, pela Livraria Clássica de Alves & Comp. Essa mu-
dança de editora é um indício da projeção de Gabriella de Jesus Ferreira França
como autora de livro escolar, pois, diferentemente da Typographia do Apóstolo,
a Livraria Clássica de Alves & Comp. era uma das principais editoras do país
à época, responsável pela publicação da maioria dos livros adotados nas escolas
brasileiras até o início do século XX (BRAGANÇA, 2004).
Apesar do lugar de destaque de Gabriella de Jesus Ferreira França na es-
crita de um livro escolar, seu investimento maior como escritora se deu com os
romances. Depois da publicação de Maria do Patrocínio ou Patrocínio de nossa
Senhora e Contos brazileiros, essa professora fluminense teve publicado um novo
romance: Ernestina ou scenas da vida contemporânea, impresso na oficina dos pa-
dres Salesianos (FLUMINENSE, 1888). Sobre esse livro, também destinado ao
público feminino, o jornal O Apóstolo publicou a seguinte nota em 1888:
Ernestina ou scenas da vida contemporânea, escripto por D. Ga-
briela França, uma das mais intelligentes e illustradas senhoras
de nossa sociedade e publicado no collegio dos Salesianos. E’
um dos melhores romances que se têm publicado entre nós,
quer por suas scenas naturaes, quadros bem descriptos, lingua-
gem fácil e amena, quer pela mais escrupulosa moralidade. E’,
sem dúvida, um livro que honra a biblioteca de qualquer senho-
ra que se dê á literatura. (APÓSTOLO, 1888, p. 2).
162
meninos”, mediante a transmissão de valores e princípios tidos como essenciais
para a época (CRUZEIRO; APÓSTOLO apud FRANÇA, 1893). Em face dis-
so, passo a apresentar, então, o projeto formativo da infância presente em Contos
brazileiros.
163
sentação da teoria do criacionismo: “[...] Elle tomou um pouco de barro e com
elle tornou o primeiro homem, que se chamou Adão, e depois inspirou-lhe uma
alma immortal.” (FRANÇA, 1893, p. 14).
Diante das explicações da mãe, Arthur chega à conclusão de que a bonda-
de de Deus é infinita, pois permitiu a vida aos homens e as belezas da natureza,
motivo pelo qual todos deveriam ser tementes a ele:
– Então, mamãi, Deus é muito bom, não é? [...]
– Então, continuou o menino, nós demos ser muito bons para
Deus, pois Elle é tão bom para nós, não é assim, mamãi? [...]
– Sim, Arthur, devemos ser-lhes muito gratos e corresponder
á sua immensa bondade, procurando cumprir aquillo que para
Elle nos pôs no mundo, isto é: amando-o e servindo-o [...]
– Mamãi, eu hei de fazer o que Deus quer; hei de ser sempre
bom. (FRANÇA, 1893, p. 14-15).
Como se pode verificar pelo diálogo entre as crianças e a mãe, o não cum-
primento das tarefas escolares é digno de punição, nesse caso, a perda do direito
ao passeio. Esse aspecto demonstra que o castigo aplicado a Alberto não apenas
tinha como finalidade “endireitar” um possível desvio de caráter futuro, como
também servir de exemplo para os demais. Nesse contexto, o conto evidencia um
outro tipo de lição moral, essa de natureza religiosa.
Informados do castigo de Alberto e cientes da vergonha e falta que repre-
sentava o descumprimento das tarefas escolares, a irmã, Rosinha, intercedeu por
Alberto, de modo a exaltar a nobreza do perdão.
– Porém, mamãi, disse Rosinha [...], se eu pedires por ele?
– Se pedires por ele? Respondeu a mãi pensativa, mas. [...]
164
– Sim mamãi? Continhou Rosinha [...] Perdôe por esta vez, e
Alberto se emendará, sou eu a fiadora.
– Pois bem, respondeu a mãi, está perdoado! Meu filho agradece
á tua irmã e não a deixes ficar mal. E tu, Rosinha, sê sempre boa;
quem é bom ganha por si e para os outros. (FRANÇA, 1893,
p. 17-18).
165
vela a intencionalidade de transmissão do princípio cristão da recompensa divina
pela caridade: “Deus recompensa a caridade, e as bênçãos dos pobres e desvalidos
são sempre por Elle ouvidas” (FRANÇA, 1893, p. 27).
Em meio à ênfase dada aos sentimentos de caridade e de bondade, como
responsáveis por aproximar os homens de Deus, o conto “Izabel ou a menina
compassiva” toca numa outra questão importante para a época: a construção de uma
ideia de igualdade entre pretos e brancos. Esse aspecto possivelmente se deve aos
princípios abolicionistas de que Gabriella de Jesus Ferreira França partilhava, bem
como a necessidade de se construir uma imagem de modernidade para o Brasil pós
abolição dos escravos. Essa temática, bastante cara e conflituosa para os políticos
e intelectuais da época, também está presente em outro conto, “Arthur”, em que o
protagonista questiona a mãe se o amigo André, um “pretinho”, também foi criação
de Deus. A resposta da mãe, reafirmando a ideia de igualdade, destaca que “Deus é
pai de todos, tanto dos bancos como dos pretos” (FRANÇA, 1893, p. 14).
Os pecados capitais também figuram como pano de fundo das lições
de Contos brazileiros. Exemplo disso é a o conto “A menina teimozinha”, que
retrata episódio trágico com Arlinda, que tinha “gênio de furiazinha”, era “tão
teimosa” e extremamente gulosa. Desobedecendo a todos, a menina comeu
em excesso numa festa, cometendo o pecado capital da gula, o que resultou
numa grave indigestão. A solução, segundo o médico, era óleo de rícino, mas
Arlinda se recusou de todas as maneiras a tomar. O desfecho dessa teimosia
foi o castigo fatal:
Por fim de contas, a menina continuou a teimar e não tomou
o remédio; veio-lhe um attaque de cabeça e convulsões e ficou
muito mal! Então a mãi arrependeu-se, mas era tarde, e d’ahi a
dous dias a bonita Arlinda estava enterrada! Eis ahi o que acon-
tece aos meninos teimosos e que abusam do carinho de seus
pais! (FRANÇA, 1893, p. 55).
166
– Uma história! uma história! gritaram os meninos todos a uma
voz.
– Mas qual há de ser? Perguntou D. Rita com toda a paciência;
querem a da – Bella e da féra? –
– Ora, essa não, disse Gaspar, é tão sabida!
– A da – Gata-borralheira? –
– Todos sabem essa, disse Mariquinhas, já não tem graça.
– A da – Capinha-roxa? –
– Tão antiga?
– Não, não senhora! Queremos uma historia que possa ter acon-
tecido, e não de gigantes e fadas.
– E a da Baratinha, - não querem?
– Ora, essa é para creanças pequeninas, disse o Julinho, que já
tinha sete annos [...]
– Pois então Sra. D. Rita, eu lhe peço o favor de contar uma his-
toria de quando a senhora era pequena; eu gosto tanto quando
nos diz: No tempo que eu era pequenina!
(FRANÇA, 1893, p. 84-85).
Se, por um lado, Contos brazileiros delineia seu projeto formativo na repre-
sentação dos sentimentos virtuosos pelo bom exemplo, pelos comportamentos a
serem imitados ou seguidos, por outro, a punição severa também é por vezes o
caminho que se toma para moralizar os pequenos leitores. Exemplo disso é o des-
fecho fatal da gulosa Arlinda, no conto “A menina teimozinha”. Outro exemplo
é o conto “Bond”, em que os irmãos Julio e Henriquinho percebem uma movi-
mentação incomum na rua de casa e descobrem ser a razão o atropelamento de
um conhecido pelo bondinho. A vítima do atropelamento, Nhônhô, era filho do
charuteiro e teve a perna quebrada porque não cumpria as orientações de sua mãe
quando tomava o transporte.
Diante do acontecido, relata a tia de Julio e Henriquinho:
– E´o que acontece, disse a tia, a estes meninos que andam todo
o dia a correr pela rua; a pobre mulher ainda outro dia disse me
que não podia com o filho; que elle, quando voltava da escola em
logar de vir direto para casa, punha-se a vadiar pela rua, a correr
167
com os moleques e com os outros meninos ociosos como elle! A
pobre mãi bem dizia que alguma desgraça havia de acontecer!
(FRANÇA, 1893, p. 29).
168
Essas situações radicais demonstram a severidade moral presente em Con-
tos brazileiros, de modo que as punições para as crianças que se aproximavam dos
comportamentos e sentimentos tidos como maus e não se arrependiam deles era
a morte. Esse tipo de artifício tinha como finalidade a tentativa de inibir qualquer
tipo de conduta que pudesse significar um “desvio” de caráter ou descumprimento
dos deveres morais e civis do bom cristão por parte das crianças.
Em meio a essas lições de moralidade, os contos de “Antonico” também
abordam questões com a explicita intenção instrutiva, tratando de temas relacio-
nados à natureza e aos símbolos de nossa cultura, que conferem uma espécie de
identidade nacional. Nesse intento, algumas histórias se configuram como lições
sobre temas variados, como: a mandioca, em que se explica o processo de extração
da farinha, do amido, do beiju, da goma e da tapioca; o algodão, em que se explica
a sua origem e sua importância na produção dos tecidos; o bicho da seda, em que
se explica sobre a extração dos fios que dão origem a esse tecido; a carnaúba, em
que se destaca sua função medicinal, sua importância na produção da cera, bem
como o uso da palha para confecção de chapéus; a seringueira, em que se destaca
sua importância para a produção de borra; a cana-de-açúcar, em que se explica
o processo de cultivo e extração do açúcar; o comércio, em que se explica sobre a
importância das transações comerciais para o progresso do país; e o café, em que
se explica também sobre o cultivo dessa fruta, sua origem e sua importância para
o país.
De modo geral, esses contos buscam demonstrar o valor da escolarização
como meio de instrução e desenvolvimento da inteligência e como forma diverti-
da de ocupação do tempo. Ou seja, verifica-se a prevalência da ideia da instrução
útil e agradável, com lições que educam e distraem ao mesmo tempo. Esse aspecto
fica evidente em diversos contos, como em “Algodão”:
[...] com o estudo, a observação e a indústria, não só se alcançam
muitas vantagens, como também se gozam muitas innocentes e
amenas distracções. Não são os vãos passatempos que entretem
o espírito; quase sempre produzem cansaço e inquietação. Ao
redor de nós temos innumeros objetos, que nos fornecem não
só a instrucção, mas tambem momentos de verdadeiro prazer.
Aprendam minhas filhas, a não procurar longe de si, o que po-
dem achar na vida domestica e no centro de suas famílias.
169
bordado. Exemplo é o conto “Algodão”, em que a protagonista se diz aborrecida
por ter que esperar duas horas para sair com pai, por conseguinte, é orientada pela
mãe a ocupar o tempo ocioso fazendo um bordado.
– Não se deve esperdiçar nem um minuto, quanto mais duas
horas, minha filha; o tempo perdido não aproveita a ninguem.
Toma o exemplo de tua irmã, ella também vai sahir e entretando
aproveita o tempo; olha para o seu trabalho; enquanto abres a
bocca, persegues o gato, atormentas o chachorro e te aborreces,
ella já bordou uma rosa toda inteira na linda almofada que está
fazendo. (FRANÇA, 1893, p. 29).
170
querer deverás e trabalhar; a vontade e o trabalho, ajudados pela
graça divina, vencem todas as dificuldades! (FRANÇA, 1893,
p. 24).
171
acha, vôvô, que nós temos mais obrigação ainda de ir civilizar e
colonizar a esses do que aos outros? (FRANÇA, 1896, p. 135).
172
Esses valores morais se apresentam em Contos brazileiros em lições com
finalidade explicita de “zelar pela boa instrução”, “inoculando” nos pequenos lei-
tores: o sentimento de temor e gratidão a Deus; a prática da caridade e o cultivo
da bondade; o respeito à natureza; a obediência; a dedicação aos estudos; a honra
aos mais velhos; o afastamento dos pecados capitais; o empenho no trabalho e o
distanciamento do ócio; o reconhecimento dos heróis nacionais; o aprendizado
da história do Brasil; e o senso de dever no cumprimento dos compromissos com
a pátria.
Para cumprir a missão de transmitir esses valores morais, apresenta-se em
Contos brazileiros duas estratégias narrativas: a representação dos bons exemplos,
como modelo a ser seguido, portanto, com histórias que sempre apresentam um
desfecho feliz ou digno; e a representação dos maus exemplos, como tipos de
comportamentos e sentimentos medíocres e abomináveis do ponto de vista moral
e religioso, por isso, histórias com desfechos trágicos, como a morte.
Na construção desse intento formativo de Contos brazileiros, cumpre-se
destacar, em relação ao foco narrativo e o discurso direto das personagens adultas,
a prevalência da voz feminina. Na grande maioria das situações, são mães, tias
ou madrinhas que ensinam as crianças sobre os sentimentos que devem cultivar,
sobre os comportamentos que devem ter e sobre os conhecimentos que devem
buscar aprender. O uso do discurso direto com vozes de personagens masculinas
é bastante pontual, em situação em que se trata dos ofícios e dos produtos decor-
rentes da lavoura, que se associam ao ideal de modernidade do Império brasileiro
da segunda metade do século XIX.
Esse aspecto reforça a ideia da mulher como aquela “predestinada” a educar
e instruir as crianças, como “extensão da maternidade” (LOURO, 2004), espe-
cialmente no que tange às lições morais e religiosas. Também confirma o ideal
pedagógico presente nas prescrições de ensino da legislação oitocentista, sobre
o entendimento de que alguns saberes eram de interesse mais direto do públi-
co masculino (comércio, indústria, história nacional, lavoura...), enquanto outros
eram característicos da “natureza” feminina (bordado e cuidados domésticos).
Também a observação do espaço representado em Contos brazileiros revela
aspecto importante de seu projeto instrutivo. Todas as histórias se passam em
ambientes domésticos, sobressaindo-se o espaço micro do interior das casas. Esse
tipo de representação reforça a ideia do lar como espaço privilegiado de forma-
ção moral e religiosa das crianças, sendo as mães as principais responsáveis pela
tarefa de orientação dos filhos, de preparação dos futuros homens da nação e de
manutenção da família distante dos distúrbios e perturbações do mundo exterior
(LOURO, 2004).
Outro aspecto importante de se notar na construção narrativa das histórias
presentes em Contos brazileiros é o uso do diminutivo, sobretudo no nome ou no
173
trato das personagens crianças. Esse artifício linguístico age como símbolo de
refoçamento da menoridade da infância, enfatizando a importância da constante
vigilância, da orientação e da instrução por parte dos adultos para se evitar desvios
de caráter ou formação de “maus pensamentos”.
Em face dos aspectos aqui apresentados, pode-se afirmar que a “boa ins-
trucção” preterida pelas lições morais e religiosas de Contos brazileiros se mostra
alinhada ao ideal de educação do povo e de construção do futuro da nação tal
como almejada o Governo Imperial, haja vista a sua aprovação e adoção oficial
como “antídoto” aos “maus livros”. Dessa maneira, também pode-se afirmar que
Contos brazileiros representa, em grande medida, os valores culturais e ideológicos
inerentes à sociedade brasileira oitocentista, reforçando um modelo de instrução
primária calcada nos princípios morais e religiosos e na manutenção da ordem e
dos costumes vigentes à época.
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de Janeiro, 1827. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-
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Rio de Janeiro, 1854. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/
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115292-pe.html
FARIA FILHO, L. M. Instrução elementar no século XIX. In: LOPES, E.; VEIGA,
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(1854-1889). 2002. 280f. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2002.
SILVA, Alexandra Lima da. As redes dos livros didáticos: autores, livreiros, editores e
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TELLES, N. Escritoras, escritas, escrituras. In: DEL PRIORI, M. (Org.). História das
mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
176
7. OS MÉTODOS DE SOLFEJO NA EDUCAÇÃO
MUSICAL NAS ESCOLAS PRIMÁRIAS DO ESTADO
DE SÃO PAULO (1890 – 1920)
Introdução
98 Dentre os autores de livros didáticos de música no contexto europeu defensores do ensino mútuo,
Emanuele Imbimbo, professor de música vocal nascido em Nápoles, publica em 1821 o livro Observa-
tions sur l’enseignement mutuel appliqué à la musique, uma apologia ao uso do método com observações
técnicas de sua aplicação nos contextos da música escolar. Alexis de Garaudé, autor explorado aqui
posteriormente, coloca-se em diálogo com o método corrente, escrevendo e seu Methode complete de
chant, um excerto introdutório destinado às escolas de música, denominado Réflexions générales sur
l’enseignement du chant, et moyens de faire usage de cette méthode dans les diverses écoles de musique, dites
enseignement mutuel, méloplaste, &c.
177
no Empirismo, teoria do conhecimento que visava ao domínio da natureza pelo
homem, estabelecendo o conhecimento como capacidade humana de conhecer
racionalmente o mundo sensível.
Os propositores do método intuitivo na Europa e nos Estados Unidos
acreditavam na capacidade de reverter a ineficiência do ensino, sendo que a prin-
cipal falha apontada por eles seria a de uma ênfase na aprendizagem a partir da
memorização e da abstração, impondo a repetição ao invés da valorização da
compreensão. Essas críticas vão para além do aspecto metodológico, buscando
na escola uma função política de estabilização do regime republicano, possuindo
uma função vital na difusão dos valores burgueses e da organização cultural, social
e econômica (VALDEMARIN, 2004, p.104.).
Há, portanto, dentro dos pressupostos epistemológicos do método intui-
tivo, uma busca por um “[...] ideal de formação humana socialmente elaborado, a
seleção de valores culturais e políticos a serem consolidados, a disposição do co-
nhecimento em sequências de atividades” (VALDEMARIN, 2004, p.24), sendo
o papel da escola:
[a] formação de tipos específicos de raciocínios e na construção
da cultura escolar, com ênfase nos aspectos filosóficos, nortea-
dores das prescrições sobre o que e como ensinar, que se con-
substanciam no processo de transposição didática. (VALDE-
MARIN, 2004, p.25)
178
autores presentes no Annuario de ensino do Estado de São Paulo (1907-1908) e
no estabelecimento pela Lei nº 1.341, de 16 de dezembro de 1912, sendo eles o
Método Completo per la Divisione, de Pasquale Bona, Solf ège des Enfants op.27, de
Alexis de Garaudé e O Ensino da musica pelo Methodo Analytico, de João Gomes
Junior e Carlos Alberto Gomes Cardim.
179
A proposta de educação musical à infância de Jean-Jacques Rousseau pode
ser analisada também em Emílio ou da educação. Marques (2002) aponta para as
reminiscências sobre a educação musical presente no trabalho de Rousseau. Para
o autor, a música passa a desempenhar um papel fundamental em seu sistema
filosófico por sua íntima ligação com a linguagem, sendo que o início da educação
musical se emparelha com o início da educação, da fala e da dicção. Portanto, há
em Rousseau, uma análise de que, antes mesmo do reconhecimento da existência
de objetos, a criança está mergulhada no universo de sons que ela ouve e produz.
Porém, há uma necessária arbitrariedade na determinação da iniciação às práticas
musicais, pois a propedêutica para estas práticas envolve o aprendizado da de-
licada teia de relações que se estabelecem entre eles e o repertório das emoções
(MARQUES, 2002, p.10).
O conceito de unicidade de melodia e, principalmente, da música enquan-
to ligada à educação da fala e da dicção, apresenta uma profunda ligação entre o
ensino musical e a alfabetização. O solfejo, enquanto prática de vocalização das
notas musicais e de sua divisão métrica, seria, portanto, o elo de ligação entre o
universo de sons em que o aluno está envolvido e sua sistematização para a lin-
guagem musical, onde a voz seria o veículo de expressão do conhecimento dessa
linguagem.
As ligações entre o ensino musical e a alfabetização não se encontram
somente no campo da epistemologia, mas também nas abordagens dadas pelas
diferentes metodologias de ensino. Aqui, a palavra método assume o significado
de conjunto de procedimentos e técnicas aplicadas à propedêutica do ensino. Para
Mortatti (2006), há quatro momentos onde se evidenciam as disputas em torno
das tematizações, normatizações e concretizações em torno do ensino da leitura
e da escrita. Dentre eles, cabe aqui evidenciar os dois primeiros movimentos, dos
quais o ensino musical sofrerá grande influência, abarcando tais disputas.
O primeiro momento evidenciado pela autora trata-se da “metodização”
no ensino da leitura. A partir da segunda metade do século XIX, passam a se
reproduzir materiais impressos sob a forma de livros, materiais editados ou pro-
duzidos na Europa. Iniciando-se com as “cartas de ABC”, desenvolviam-se na
leitura e cópia dos documentos manuscritos. Utilizava-se nestes manuais os mé-
todos de marcha sintética, partindo da “parte para o “todo”, ou seja, iniciando o
ensino da leitura pela apresentação das letras e seus nomes, seus sons ou famílias
silábicas, para posteriormente reuní-las em palavras, seguido pelas frases isoladas
e agrupadas. (MORTATTI, 2006, p.5)
A partir do ano de 1890, com a implementação da reforma da instrução
pública no estado de São Paulo, dá-se origem ao segundo momento dentre as
disputas metodológicas do ensino da leitura e da escrita, caracterizada pela insti-
tucionalização do método analítico. Esse método, tornado obrigatório nas escolas
180
públicas do estado de São Paulo, e sob forte influência da pedagogia norte-ame-
ricana, deveria ser iniciado pelo conhecimento do “todo”, para posteriormente
partir ao conhecimento de suas partes constitutivas. A partir do documento Ins-
trucções praticas para o ensino da leitura pelo methodo analytico – modelos de lições.
(Diretoria Geral da Instrução Pública/SP – [1915]), estabelece-se o todo priori-
zando as historietas, ou seja, um conjunto de frases relacionadas entre si por um
nexo lógico, como um dos pontos de partida para o ensino da leitura e da escrita.
(MORTATTI, 2006, p.8)
Nesse cenário descrito por Mortatti (2000), no campo do ensino da mú-
sica nas escolas paulistas da Primeira República, duas abordagens metodológicas
aparecem de forma mais clara: a primeira, ligada ao ensino nos conservatórios,
possui um caráter mais tradicionalista, enquanto a outra, voltada à escola regular,
assimila os debates ocorridos nesta na aplicação de métodos renovados do ensino
da música, assumindo um teor pedagógico, além de assumir um propósito “civi-
lizador” (GILIOLI, 2003, p.197). Tal propósito é ligado diretamente ao papel
político-social da educação na instalação dos ideais republicanos.
No caso do método sintético, um dos grandes expoentes brasileiros era
Samuel Arcanjo dos Santos, professor no Conservatório Dramático e Musical
de São Paulo. E seu livro Lições elementares de Teoria Musical, o autor busca uma
formação técnico-musical dos músicos, partindo-se do ensino dos conceitos teó-
rico-musicais, sendo que somente na 14ª lição de seu livro é abordada uma peça
musical de fato.(GILIOLI, 2003, p.184)
Essa disputa ocorrida no campo do ensino da música na primeira Re-
pública explicitam um debate já anteriormente existente no campo da música,
desde a Querelle des antiques et des modernes, em que se pensa o confronto entre
a necessidade de um ensino técnico e metódico dos conceitos musicais, e uma
perspectiva que abrange uma maior ênfase na expressão dos sentimentos a partir
da vocalização e da expressão poética. As questões em relação à propedêutica
do ensino musical, nessas duas abordagens metodológicas expostas por Gilio-
li (2003), evidenciam também as disputas no campo das concepções estéticas e
epistemológicas da Querelle des Bouffons.
181
[...] expressões educacionais e, ao mesmo tempo, uma respos-
ta pedagógica às necessidades de apropriação sistematizada do
conhecimento científico em um dado momento histórico re-
presentando um processo dialético de produção. [...] significa
caminho para chegar a um fim; conjunto de procedimentos
técnicos e científicos; ordem pedagógica na educação; sistema
educativo ou conjunto de processos didáticos. (LACANALLO
ET. AL., 2007, p.582)
99 Dentre os manuais que utilizam essa definição, cabe aqui ressaltar alguns exemplos, como o próprio
metodo completo per la divisione, de P. Bona e o methodo de música, de Elias Alvares Lobo. A utilização
do termo aparece não somente nas obras de teoria e solfejo, mas também em obras relacionadas ao
ensino dos instrumentos musicais, como é o caso do Novo método para violino e Novo método para piano
de A. Schmoll, Método prático para violino, de Nicolas Laureux, Método de trombone para iniciantes, de
Gilberto Gagliardi, Método de pistão, trombone e bombardino, de Amadeu Russo, Método para o estudo do
piano, de B. Cesi, dentre uma série de outros que circularam no Brasil para o ensino prático de música.
182
ensino eram de grande efervescência na educação brasileira, podendo gerar certa
ambiguidade no domínio das metodologias.
Amplamente divulgado e conhecido em diversos âmbitos da educação
musical, o Método Completo de Divisão de Pasquale Bona perpassa tanto o meio
do ensino de música especializado, como o caso dos conservatórios, quanto o
ensino de música de professores particulares, ensino religioso e a educação nas
escolas regulares, possuindo reedições circulando em território nacional a mais
de um século100.
Nascido no ano de 1808 na cidade de Cerignola, uma pequena comuna
italiana da província de Foggia, Pasquale Bona foi um teórico, pedagogo e com-
positor de óperas líricas. Suas obras perpassam por numerosos estudos teóricos,
métodos de estudo, solfejo e exercícios. Formou-se em composição e canto no
ano de 1830, pelo Real Collegio degli Spersi a Palermo, sob a guia do Maestro I.
Gatti.(ROMAGNUOLO, 2012, p.3)
Sua presença como músico e compositor de música sacra - em particular a
obra “Dixit Dominus”, a três vozes com orquestra - dedicou-se também à ópera
teatral italiana. No ano de 1832, apresentou no Teatro Nuovo di Napoli, sua ópera
cômica Il tutore e il diavolo. Tal obra obteve tanto sucesso que, posteriormente,
mudou-se para Milão. Em pouco tempo, no ano de 1838, foi nomeado como
professor de Teoria e Solfejo do Conservatorio di Musica di Milano, tendo pos-
teriormente assumido a cadeira de Harmonia e Canto para mulheres, no ano de
1851, e a de Canto para homens, no ano de 1859. (ANTONELLIS, 1979, p.44)
Porém, é com seus métodos e exercícios que Pasquale Bona passou a ad-
quirir fama internacional, principalmente a partir de seu amplamente traduzido
Metodo completo per la divisione espressamente composto per uso degli allievi del R.
Conservatorio di Musica di Milano, traduzido no Brasil como Método Completo de
Divisão. Na ocasião, o método foi desenvolvido por Pasquale Bona de modo a
balizar o ensino nas aulas de Teoria e Solfejo do Conservatório de Milão, e usado
como aparato didático em suas próprias aulas.
Como professor de Teoria e Solfejo do Conservatório de Música de Mi-
lão, Bona foi compositor de diversas obras de cunho cômico, absorvendo uma es-
tética própria da linguagem expressiva da música italiana, dando grande enfoque
à melodia, tal qual se pode ver, por exemplo, em seu Metodo completo per la divi-
sione. No prefácio à quarta edição, Pasquale Bona aponta para o direcionamento
educativo de sua obra:
100 Dentre os trabalhos que enfocam a relevância do método de Pasquale Bona em território nacional,
estão os trabalhos de CHAGAS e LUCAS(2014); ALVES (2014); PALHETA (2012); BRITTO
(2020); BARBOSA (2014); e FREIRE (2002).
183
Se há uma coisa de maior importância no ensino musical, sem
dúvida é aquela de fazer aprender aos pequenos alunos o modo
prático de dividir as notas singulares que compõem os compas-
sos de um tema musical. [...] Tal ensinamento, assumido sob o
nome de Metodo per la divisione, era em nossa escola italiana no
ano passado muito raro. [...] Seria inútil aqui falar das vantagens
que produzem um bom método de divisão, seja para conhecer
a relação que se passa entre as notas que compõem um tema
musical, seja para conhecer sua natureza intrínseca, seja para fa-
cilitar da parte do executor de detectar à primeira vista o valor
das próprias notas. (BONA, 1875, p.1, tradução própria.)
184
vocalização. A ideia inerente aos exercícios de solfejo está no treino à golpe de
vista por parte dos alunos à escrita musical, adequando a fluidez, interpretação e
entonação à leitura das notas musicais em uma partitura.
Há também a possibilidade de se denotar uma primazia, dentro desta téc-
nica de ensino, à relação de uma educação mais fortemente ligada à melodia
do que à harmonia. Neste sentido, os exercícios aplicados por Pasquale Bona
assemelham-se mais à concepção estética dos partidários da escola italiana na
Querela dos Bufões, já que expressa um modelo vocal, simples e natural, sem a
necessidade de grandes composições harmônicas, fator que não é dado enfoque
dentro das lições de Pasquale Bona, mesmo naquelas de teor mais avançado de
seu método. Aplica-se, portanto, a regra utilizada por Rousseau, da unicidade da
melodia, e que esta seria então a forma de expressão direta, por meio da voz, dos
sentimentos da alma. Tal fator pode ser analisado a partir da definição de música
que pode ser encontrada em edições posteriores, a partir do excerto Nozioni teo-
riche elementari della musica, adicionado por Onofrio Altavilla:
A música é a arte dos sons tratados na forma de melodia e har-
monia. Nasceu com a fala para expressar os sentimentos hu-
manos. O seu progresso ao longo dos séculos deu-nos formas
vocais e instrumentais cujas obras-primas são monumentos de
beleza imperecível. (BONA, s/d, p.6, tradução própria)
185
semelhante a Bona, Garaudé teve seu nome muito conhecido a partir do de-
senvolvimento de seu método de solfejo, Solf ège des Enfants, oeuvre 27.(DE LA
MONTAGNE, s/d).
O método de Garaudé, por sua vez, busca estabelecer o ensino de solfejo às
crianças a partir do ensino progressivo dos conceitos musicais. Há uma busca pela
enfatização da melodia como princípio norteador do ensino do solfejo, tal como
é explicitado no prefácio à sétima edição:
Bons estudos de solfejo são extremamente necessários, mas a
aridez e a ausência de melodia distingue-a da maior parte destas
obras, compostas com muita pressa, tornando-as extremamente
entediantes aos jovens alunos. Sua própria harmonia é muita das
vezes ou comum ou de uma pretensão à ciência, que é deslocada
neste tipo de obra. [...] [as obras] devem inspirar e desenvolver
o gosto pela arte, acostumando pouco a pouco o aluno a apreciar
os diversos estilos usados pelos melhores compositores. A inte-
ligência musical é assim formada, e assim o estudo de uma arte
que é quase inteiramente por prazer, não provocando mais as
lágrimas da infância. (GARAUDÉ, 1843, p.4, tradução própria)
186
Devem ser divididos em várias classes, de acordo com o grau de
conhecimento musical que teriam adquirido. Aqueles que ainda
não conhecem suas notas devem estudar os primeiros exercicios
que lhes darão o hábito de lê-las bem[...]. Em geral, é útil fazer
com que a classe ouça cada nova lição, resolvida por um ou mais
alunos inteligentes, antes de repeti-la em coro e até fazer cantar
sozinho aqueles cujo progresso seria muito tardio. (GARAU-
DÉ, 1843, p.5, tradução própria)
187
Carlos Alberto Gomes Cardim, por sua vez, era filho do maestro João
Pedro Gomes Cardim. Tornou-se professor pela Escola Normal de São Paulo
no ano de 1894. No ano de 1825, foi convidado por Miss Marcia Browne para
trabalhar na escola modelo Prudente de Morais, sendo fortemente influenciado
pela pedagogia estadunidense. No ano de 1908, foi convidado pelo governador
do Espírito Santo para reformar o ensino primário e secundário do estado. Foi
nomeado, em 1913, para a cadeira de Psicologia da Escola Normal Caetano de
Campos, sendo também catedrático do curso dramático do Conservatório Musi-
cal e Dramático do Estado de São Paulo. (GILIOLI, 2003, p.102)
João Gomes Junior, também aluno do Real Conservatório de Milão, possui
grande notoriedade no âmbito das prescrições e dos métodos de ensino de música
do período analisado. Sua obra, realizada em conjunto com Carlos Alberto Go-
mes Cardim, denominada O ensino da música pelo Methodo Analytico. Estabelecido
pela lei nº 1.341 de 16 de Dezembro de 1912, passa a ser adotado nas escolas
normais secundárias, primárias e modelo, o método analítico-simbólico, possivel-
mente referindo-se ao respectivo método. ( JARDIM, 2003, p.47)
O autor estudou composição no conservatório de Milão durante os anos
de 1884 até o ano de 1888, sob a orientação de Cesare Dominicetti, assim como
seu pai, João Gomes de Araújo. Apesar de não possuir aulas diretamente com
Pasquale Bona, devido a sua ida à Itália ter se dado posteriormente ao falecimen-
to do autor, o mesmo evidencia a influência de Bona sobre seu trabalho, afirman-
do que seu trabalho se resumia a uma compilação e adaptação dos trabalhos deste,
dentre outros autores, sendo que sua contribuição estaria no campo do método e
da feição pedagógica dada às lições ( JARDIM, 2003, p.65).
O método proposto por João Gomes Junior e Carlos Alberto Gomes Car-
dim foi publicado em 1912, sob o título Ensino da música pelo Methodo Analytico.
Já no início do manual, João Gomes Junior e Carlos Alberto Gomes Cardim
explicitam claramente as suas escolhas de abordagens metodológicas:
methodo em que se parte do geral para o particular, do todo
para as partes, dos efeitos para as causas é, exactamente, o que
applicamos geralmente, no nosso ensino primario. [...] Esse
methodo tornou-se extensivo a quasi todas as disciplinas sem,
entretanto, attingir a musica. Não há motivo que justifique esta
excepção pois que os principios basicos do ensino da leitura e
da linguagem são os que servem de fundamento ao ensino da
musica (GOMES JR; CARDIM, 1919, p.3).
188
Na linguagem temos os symbolos formando as palavras e as
palavras formando as proposições; na musica temos os signaes
formando os compassos e os compassos constituindo a phrase e
a phrase compondo o pensamento musical. Ressalta a paridade
entre essas duas disciplinas; não é possivel, pois, a disparidade
em methodo (GOMES JR; CARDIM, 1919, p.3).
189
dos sons bem como repellir a dissonancia (GOMES JR;
CARDIM, 1919, p.8)
Considerações finais
190
Referências
ALVES, Jizele Santana. Motivações para evasão e permanência de alunos de uma banda
do estado de Mato Grosso (2010 – 2014). 2014. 49 f. Monografia (Licenciatura em
Música)—Universidade de Brasília, Universidade Aberta do Brasil, Paranatinga-MT,
2014
BONA, Pasquale. Metodo completo per la divisione espressamente composto per uso degli
allievi del R. Conservatorio di Musica in Milano. F. Lucca, Milano, 4ªEd., 1875.
CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte.
Educação e pesquisa, v. 30, 2004.
GARAUDÉ, Alexis. Solf èges des enfants et des écoles primaires, oeuvre 27 (avec accp.t de
piano) Paris, l’Auteur, 1843, 7ªed. Disponível em <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/
bpt6k9637060j> Acesso em 16/01/2022.
191
GILIOLI, Renato de Sousa Porto. Civilizando pela música: a pedagogia do canto orfeônico
na escola paulista da Primeira República (1910-1930). 2003. Dissertação (Mestrado) -
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2003.
GOMES JR, João; CARDIM, Carlos Alberto Gomes. O ensino da musica pelo methodo
analytico. São Paulo, Nage, Salles & Rocha, 4ªed., 1919.
JARDIM, V. L. G. Os sons da República: o ensino da música nas escolas públicas de São Paulo
na Primeira República – 1889-1930. Dissertação (Mestrado em Educação: História,
Política, Sociedade)–Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003.
PALHETA, Bruno Daniel Monteiro. Prática de ensino nas bandas de música do Pará:
uma tonalidade secular. EPISTEMOLOGIA E EDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE
TEMAS EDUCACIONAIS, 2012.
192
8. VIRGÍNIA MELLE DA SILVA LEFÈVRE (1907-
1987): CONTRIBUIÇÕES DE UMA INTELECTUAL
MEDIADORA PARA O CAMPO DA LITERATURA
INFANTIL E DA EDUCAÇÃO
Considerações iniciais
193
Sem fugir a essa regra, Virgínia Melle da Silva Lefèvre, após concluir os
seus estudos no Rio de Janeiro, retornou a São Paulo e passou a lecionar no Ex-
ternato Higienópolis, em 1926.
Sobre o magistério feminino, Almeida (1998) afirma que
[...] possibilitou às mulheres, notadamente da classe média que
se alicerçava no panorama socioeconômico do país, a oportu-
nidade de ingressar no mercado de trabalho. A possibilidade
de aliar ao trabalho doméstico e à maternidade uma profissão
revestida de dignidade e prestígio social fez que “ser professora”
se tornasse extremamente popular entre as jovens e, se, a prin-
cípio, temia-se a mulher instruída, agora tal instrução passava a
ser desejável, desde que normatizada e dirigida para não ofere-
cer riscos sociais. Ensinar crianças foi, por parte das aspirações
sociais, uma maneira de abrir às mulheres um espaço público
(domesticado) que prolongasse as tarefas desempenhadas no lar
– pelo menos esse era o discurso oficial do período. (ALMEI-
DA, 1998, p. 28).
194
Pró-Educação e Saúde (SPES), entidade mantida por meio de mensalidades pa-
gas por associados e rendas de eventos populares, a qual ela se dedicou ao longo
de sua vida.
Depois disso, na década de 1970, escreveu sua série juvenil, as aventuras de
Ana Selva, composta por seis livros: Ana Selva (1974), Ana Selva em perigo (1974),
Ana Selva na cabana do Índio Velho (1974), Ana Selva contra a doença (1975), Ana
Selva e a pescaria (1975) e Ana Selva, a rebelde em sociedade (1975), firmando seu
nome definitivamente no campo da literatura infantil brasileira.
Considerando a importância de Virgínia Melle da Silva Lefèvre como
importante representante do público feminino no contexto do magistério e da
produção literária ao longo do século XX, este capítulo tem por objetivo compre-
ender sua participação na criação da Sociedade Pró-Educação e Saúde e as con-
tribuições de sua produção literária para a formação da infância brasileira. Para
tanto, faz-se uso dos contributos da História Cultural, com enfoque na História
dos Intelectuais, com vistas a problematizar o papel de Virgínia Melle da Silva
Lefèvre como mediadora e produtora cultural.
101 Até o momento de escrita desse texto, não foi possível identificar quem eram essas amigas de Virgínia
Melle da Silva Lefèvre.
195
terial humano com o qual eu gostaria de trabalhar: ali estava o
protótipo do Brasileiro com seus defeitos gritantes e com suas
qualidades magníficas. Era um índio mal civilizado. Suas poten-
cialidades para um progresso socio-econômico pareceram-me
dignas do sacrifício de desenvolvê-las. (LEFÈVRE, s/d, p. 1).
102 Nesse mesmo ano, a Sociedade Pró-Educação e Saúde foi registrada oficialmente, no 4º Cartório de
Títulos (Cartório Medeiros), em São Paulo, com a sigla de SPES.
103 Em 1963, a escola do bairro de Itaguá passou a ser Grupo Escolar e funcionou por mais 8 anos no local
construído pela SPES até que, em 1971, o Governo entregou o prédio novo situado em outro local.
196
pau a pique, às margens do rio Acaraú, literalmente no meio do mato. A SPES
custeava o uniforme, o material didático, o registro de nascimento das crianças, o
tratamento médico e odontológico, a sopa escolar, inclusive o aluguel da sala e o
salário das professoras.
Apesar de a SPES arcar com todos os gastos dos centros sociais/escolas,
presume-se que alguns dos associados provenientes de São Paulo não concorda-
vam com a ajuda aos caiçaras de Ubatuba, pois consideravam-nos preguiçosos e
malandros, como se estivessem em condições sociais e sanitárias alarmantes por
opção. Esse aspecto pode ser verificado num dos relatórios de Virgínia Lefèvre
sobre a SPES:
[...] Não era fácil obter-se recursos financeiros entre nossos
amigos da Capital. Já estava fundada a Sociedade Pró Educação
e Saúde – SPES que dava assistência direta à um certo número
de famílias, mas nossos contribuintes não sentiam o mesmo en-
tusiasmo que eu e tachavam o Caiçara de preguiçoso, malandro
e indiferente. (LEFÈVRE, s/d., p. 2).
Dessa forma, a escola passou a se chamar Altimira Silva Abirached, em homenagem à esposa do chefe
político de Taubaté, Wilson Abirached.
197
O nosso problema foi arranjar professor. Trabalhamos com um
leigo durante 3 anos. Os formados só aceitavam a escola para
trampolim. Sofremos com as professoras formadas. Ou elas
mesmas carregavam os objetos da Escola ou largavam a casa
aberta e iam embora sem nos avisar. (LEFÈVRE, s/d, p. 3).
198
Em 1972, a SPES foi reconhecida como utilidade pública Municipal105.
No ano de 1975, a SPES criou uma Pré-Cooperativa de produção de artesanato,
com 22 cooperadores e, à época, 100 aprendizes. O Centro Artesanal teve seus
produtos apresentados em encontros regionais e em exposições no Serviço Social
do Comércio (SESC) de São Paulo e de Campinas.
Em vista desses aspectos, compreende-se a atuação de Virgínia Lefèvre,
presidente da Sociedade Pró-Educação e Saúde, na filantropia e na defesa da
educação e do saneamento como direitos inerentes à infância. Mas, sua atuação e
interesse no cuidado com os pequenos não se restringia à filantropia, sua projeção
para além das ações no litoral norte de São Paulo se deu, sobretudo, pelas tradu-
ções, adaptações e escrita de livros de literatura infantil.
106 Por meio dos procedimentos de localização, recuperação, reunião, seleção, ordenação e análise de refe-
rências de textos de Virgínia Melle da Silva Lefèvre e de outros autores que se propõem a estudar sua
vida pessoal e profissional, bem como a sua produção intelectual, tem sido desenvolvido o documento
Produção de e sobre Virgínia Melle da Silva Lef èvre (1907-1987): um instrumento de pesquisa (EBIZE-
RO, 2022).
199
tais como: A casa do anjo da guarda; Braz e a primeira comunhão; Meninas exempla-
res; Um bom diabrete. Coelho (1983) afirma que Virgínia Lefèvre “[...] retratou
com fidelidade o clima e os valores da segunda metade do século XIX, época em
que a Condessa de Ségur escreveu sua obra, e quando os valores do Romantismo
forçavam ainda caminho para se consolidarem, como mentalidade, nas relações da
vida real.” (COELHO, 1983, p. 898, grifos da autora).
Virgínia Melle da Silva Lefèvre, ainda na década de 1940, traduziu o livro
Papai pernilongo, de Alice Jane Chandler Webster, autora do fim do século XIX,
mais conhecida por meio de seu pseudônimo107 Jean Webster.
Em 1945, Virgínia Lefèvre teve publicados, pela Editora o Brasil, livros
de sua autoria para a coleção O mundo e suas maravilhas, conforme apontado
anteriormente. Coelho (1983) afirma que essa coleção é composta por narrativas
romanceadas e destinadas, principalmente, ao uso nas escolas, cujo objetivo era o
de “[...] transmitir informações, através da recreação” (COELHO, 1983, p. 898).
No Egito antigo; O romance da terra, O homem e a natureza, O romance do mar, Co-
mer para viver, Insetos: amigos ou inimigos e Viagens do mundo antigo são os livros
escritos por Virgínia Lefèvre para a coleção.
Até os anos 1970, Virgínia Lefèvre continuou exercendo trabalho como
tradutora e adaptadora, tendo traduzido títulos de Johanna Spyry, como Heidi e
Outra vez Heidi; além da obra Sem família, de Hector Henry Maloe.
Conforme afirma Coelho (1983), Virgínia Lefèvre foi, por anos, autora
exclusiva da Editora do Brasil S/A. De fato, a maioria das referências de textos
encontradas foi publicada por essa editora. Entretanto, outras grandes editoras
também fizeram parte de sua trajetória profissional. Os livros escritos por ela
para a coleção O mundo e suas maravilhas foram publicados pela Editora Anchie-
ta em 1945. Também foram encontrados alguns títulos publicados pela Editora
Tecnoprint108, sobretudo na década de 1970, época de lançamento e publicação
da série Ana Selva.
Virgínia Lefèvre traduziu e adaptou obras do Inglês, como as de Hans
Christian Andersen; de Alice Jane Chandler Webster (pseudônimo Jean Webs-
ter); de Nina Wilcox Putnam, de Ethel Fairmont, entre outros.
107 De acordo com Telles (2004), no século XIX era comum que as escritoras adotassem um pseudônimo
masculino para serem aceitas pelo público leitor.
108 Fundada em 1939, pelos irmãos Antonio e Jorge Gertum Carneiro, como uma importadora de livros
técnicos e universitários, sob o nome de Publicações Pan-Americanas, a Editora Tecnoprint consoli-
dou-se como a maior produtora de livros de bolso do Brasil na década 1970. Após isso, transformou-se
nas Edições de Ouro e, anos mais tarde, converteu-se nas Empresas Ediouro Publicações. Para mais
informações sobre a história da Editora Tecnoprint, consultar Labanca (2009) ou o site das Empresas
Ediouro Publicações, disponível em www.ediouro.com.br. Acesso em 10 jan. 2022.
200
Também traduziu e adaptou obras do Francês, como as de Hector Henri
Malot; de Sophie Rostopchine Ségur (Condessa de Ségur) e de Jean Pierre Claris
de Florian. Traduziu, ainda, obras do alemão, de autoria de Johanna Spyry.
Depois de uma primeira experiência como autora e depois de anos de-
dicando-se à tradução e adaptação, entre os anos 1974 e 1975, Virgínia Lefèvre
teve publicada a série Ana Selva, pela editora Tecnoprint (algumas edições levam
o nome da editora como Edições de Ouro).
A série Ana Selva é composta por narrativas que se desenvolvem em torno
da personagem principal, Ana Selva: uma menina que vive em uma chácara no
interior de São Paulo, que tenta conciliar a vida do campo (simples e natural)
com a vida da cidade (a vida dita civilizada). Trata-se de histórias permeadas
por conflitos, mistérios, viagens, aventuras, enfermidades e sobretudo, de muitos
aprendizados, que estão intimamente ligados à educação e à formação moral das
“mocinhas” brasileiras.
Embora a série tenha sido publicada na década de 1970, são representados
nas narrativas aspectos relacionados à primeira metade do século XX, sobretudo
no que concerne à educação, ao comportamento e ao lugar da mulher na socie-
dade. É somente no 4º livro da série, Ana Selva contra a doença, por exemplo, que
o leitor pode inferir por meio da fala das personagens que o tempo da narrativa
se passa entre as décadas de 1940 e 1950: “Todos tomavam muito cuidado para
não falar na guerra recém-terminada, com o terrível evento da bomba atômica.”
(LEFÈVRE, 1975, p. 68).
Pode-se dizer que do modo como a autora conduziu a temática da edu-
cação da mulher ao escrever a série Ana Selva, confere-lhe uma estética literária
para crianças própria, que articula comportamentos e costumes que aludem ao
final do século XIX e à primeira metade do século XX.
Nesse sentido, a série pode ser considerada como romance de costumes
(COELHO, 1983), pois apresenta aspectos da vida social de pessoas comuns,
de uma família comum, mas que ao mesmo tempo representa um processo civi-
lizatório da menina Ana Selva; os comportamentos esperados para uma mulher,
que deve ser educada, sábia, elegante, de bons modos; além de representar que as
meninas têm valores e educação diferentes dos meninos.
201
Gomes e Hansen (2016, p. 10) afirmam que os intelectuais são “[...] ho-
mens da produção de conhecimentos e comunicação de ideias, direta ou indire-
tamente vinculados à intervenção político-social.”. Nesse sentido, ainda com base
nas proposições de Gomes e Hansen (2016), o intelectual mediador muitas vezes
[...] ocupa um cargo estratégico numa instituição cultural, pú-
blica ou privada, numa associação ou organização política, ou
atua desde um lugar privilegiado numa rede de sociabilidades,
de onde protagoniza projetos de mediação cultural de enormes
impactos políticos. (GOMES; HANSEN, 2016, p. 18).
202
Desse modo, compreende-se que Virgínia Lefèvre exerceu papel não so-
mente como mediadora, mas como criadora cultural, dada a sua extensa produ-
ção escrita de obras traduzidas para o português brasileiro. Na medida em que
produziu novos significados ao se apropriar de termos, ideias, conhecimentos de
pelo menos três línguas e culturas diferentes, ao traduzir e adaptar, cria “um outro
produto”, “um bem cultural singular” (GOMES; HANSEN, 2016, p. 18).
Considerações finais
Referências
ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e Educação: a paixão pelo possível. São Paulo:
Editora Unesp, 1998.
203
COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil/juvenil brasileira
(1882-1982). São Paulo: Edições Quíron, 1983.
LEFÈVRE, Virgínia Melle da Silva. Ana Selva contra a doença. Rio de Janeiro:
Tecnoprint, 1975.
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary del (Org.);
BEZZANEZI, Carla (coord. de textos). História das mulheres no Brasil. 7. ed. São
Paulo: Contexto, 2004, p. 443-481.
NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. 3 ed. São Paulo: Editora
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PRIORE, Mary del (Org.); BEZZANEZI, Carla (coord. de textos). História das
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TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORE, Mary del (Org.);
BEZZANEZI, Carla (coord. de textos). História das mulheres no Brasil. 7. ed. São
Paulo: Contexto, 2004, p. 401-442.
204
9. “ASSUMPTOS QUE CONCORRAM PARA A
FORMAÇÃO DE SEUS SENTIMENTOS”: A
INFÂNCIA REPRESENTADA NAS OBRAS
FRANCISCO FURTADO MENDES VIANNA (1908)
Introdução
109 A investigação proposta é uma derivação da dissertação de mestrado: Um mundo de pura manifestação
dos sentimentos: A trajetória de Francisco Vianna e a representação de infância em suas obras (1876-1935).
110 A série “Leituras infantis” é composta pelas seguintes obras: Cartilha: Leituras Infantis (1911?); Pri-
meiros passos na leitura (1915); Leitura preparatória (1908); Primeiro Livro de Leituras Infantis (1908b);
Segundo Livro de Leituras Infantis (1908c); Terceiro Livro de Leituras Infantis (1908d); e Quarto Livro
de Leituras infantis: apanhados e factos históricos (1919).
205
leitora, são objetos divulgadores e mediadores de concepções e comportamentos
sociais. Compreender o que deve ser publicizado para o consumo infantil, iden-
tificar a delimitação do que é considerado apropriado para a criança e, a partir
desses conteúdos, localizar indícios sobre as concepções e ideias de determinadas
sociedades é um dos temas de interesse da História da Infância.
Para Gouvêa (2008), recorrer às fontes literárias contribui para a análise da
história da infância e da criança, além de permitir o acesso às representações que o
adulto tem sobre o universo infantil e identificar pistas sobre expressões culturais
para essa fase humana.
Os livros da série Leituras infantis foram publicados no início do século
XX, um período demarcado por uma nova demanda no campo da educação111,
que careceu de profissionais de diferentes áreas do saber: especialistas da área da
política e do direito, médicos e sanitaristas, arquitetos, principalmente docentes
empenhados com as novas mudanças, com conhecimento dos métodos de ensino
para a elaboração de materiais escolares, dentre eles, os livros didáticos. Quanto
aos conhecimentos a serem lecionados, foi possível identificar algumas modifi-
cações:
[...] os programas de ensino para a escola elementar se limi-
tavam ao ensino inicial das habilidades da leitura, da escrita e
do cálculo, progressivamente se foram constituindo conteúdos e
saberes específicos para serem ensinados pela instituição escolar;
também progressivamente os saberes compreendidos como “lei-
tura” e “escrita” ganham novas dimensões, respondem a novas
exigências e demandas sociais, assumem formas mais complexas
de escolarização (BATISTA; GALVÃO; KINKLE, 2002, p.28).
111 Para maiores informações, ler João Köpke e a escola republicana: criador de leituras, escritor da modernidade
(PANIZZOLO, 2006) e Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de
São Paulo (SOUZA, 1998).
206
menores ocupados o tempo todo: no interior das escolas particulares ou na esfera
do lar, para os ricos, nas instituições assistenciais ou nos patronatos e orfanatos,
no caso dos pobres” (p. 122).
Quanto às ações de idealização do povo republicano, Câmara (2010) apon-
ta uma urgência na formação da identidade nacional, visando a padronização da
população. Dentre as ações realizadas, criar símbolos de identificação para uma
nação era indispensável, considerando necessário transmitir um ideal de civili-
zação nacionalista “[...]e de reforma social do país, tendo em vista incorporar o
“todo social”, com suas diferenças e individualidades, aos ideais modernizantes de
transformação da sociedade” (p.119). Quanto à mobilização para invenção dessa
nacionalidade, a autora diz que:
Os intelectuais, ao intencionar produzir a identidade nacional
do povo brasileiro, cindiram os ideais de sua integração política,
cultural e moral como partes constitutivas da ideia de naciona-
lidade. A partir dessa sutura entre o político, moral e o cultural
estabeleceram não só os aspectos constituintes dos direitos e dos
deveres do povo, mas também mapearam as diferenças no seu
interior, a fim de suprimi-las (CÂMARA, 2010, p. 121).
207
possuem um papel importante para o processo de civilização, pois proporcionam
às crianças uma série de “espaços de sua existência e expressão, que funcionam
reorganizando simbolicamente os lugares ocupados por públicos que detêm sua
propriedade ou apropriação conformada a certa prática (TOZZI, 2013, p. 137).
Assim, considerando as peculiaridades do livro escolar e a sua magnitude
discursiva, foram adotados os seguintes procedimentos metodológicos: análise
da materialidade e do conteúdo das obras escolhidas (histórias, temas, imagens e
estrutura de narrativa), além do contexto no qual estão inseridas as obras.
Além dos livros do autor, houve uma escolha procedimental em utilizar
a obra Modernas directrizes no enzino primario: escola activa do trabalho ou nova
(1930), com alguns artigos publicados por Francisco Vianna durante o seu pe-
ríodo de produção intelectual. A opção por utilizar mais de um tipo de fonte
também entra em consonância com os estudos de Bourdieu (2004) sobre as pro-
duções culturais e sua relação com a noção de campo. De acordo com o autor, há
perigo em analisar somente o texto ou o texto com o contexto, em uma relação
biunívoca, provocando assim um “erro de curto-circuito”. Para que esse problema
não ocorra, é necessário identificar e analisar diferentes universos que permeiam
essas obras, ou seja, o “campo literário, artístico, jurídico ou científico, isto é, o
universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, repro-
duzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência” (BOURDIEU, 2004, p.20).
A fim de subsidiar a análise, nesta pesquisa utiliza-se o conceito de “in-
fância” apresentado por Faria Filho e Fernandes (2007); Kuhlmann e Fernandes
(2004); e Gouvêa (2004, 2007), como uma categoria flexível e mutável, pois varia
de acordo com as experiências culturais e sociais, em determinados momentos
cronológicos e espaciais nos quais discursos e materiais são produzidos como
forma de diferenciação à fase adulta. Portanto, o estudo não pretende delimitar a
concepção de infância republicana do início do século XX, mas sim a infância di-
vulgada por Francisco Furtado Mendes Vianna, professor normalista, que atuou
em grupos escolares e ginásios do estado de São Paulo, foi inspetor e superinten-
dente de ensino do Rio de Janeiro, escreveu artigos educacionais, elaborou cursos
de preparação para o acesso ao ensino Normal, defensor dos ideais positivistas e
do ensino pela observação dos fenômenos naturais, como também “[...]da expe-
riencia e comparação pela propria creança, sobre os seres e mesmo os phenome-
nos que lhe são accessiveis” (VIANNA, 1930, p. 70).
Além do conceito de infância, optou-se pelo de “representação” proposto
por Chartier (1990), para a operacionalização de análise das obras citadas. No que
diz respeito aos diferentes discursos produzidos em suas materialidades, Chartier
(1990) defende que as representações “[…] têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou
tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu
208
domínio” (p. 17). Assim, é necessário compreender que essa tentativa de “formu-
lação” do real parte da ideia de que a sociedade está caracterizada por processos
de classificação, diferenciação e delimitação; ações essas que são elaboradas pelos
grupos sociais que a forjam, com o desígnio de produzir discursos que não podem
ser considerados neutros, pois produzem estratégias e práticas e estão constante-
mente em um campo de concorrências, em uma relação permanente entre poder
e dominação.
Assim, o texto está organizado em duas seções, além das considerações fi-
nais. A primeira denominada Série Leituras infantis: “porque exprimimos bem aquilo
que conhecemos e sentimos bem” pretende apresentar, de forma breve, a vida do autor
e as obras selecionadas para análise, considerando a materialidade e a estrutura
narrativa. A segunda parte, “Assumptos que concorram para a formação de seus sen-
timentos”: a infância representada nas obras Francisco Furtado Mendes Vianna, visa
apresentar a representação da infância concebida por Francisco Vianna nas obras
selecionadas.
112 Após completar quatro anos desde sua formação pela Escola Normal de São Paulo (1895), Francisco
Furtado Mendes Vianna retorna à instituição, entre 1899 e 1900, para cursar as matérias que foram
integradas pela reforma da instrução pública aprovada por Gabriel Prestes.
209
Leituras Infantis (1908); Segundo Livro de Leituras Infantis (1908); Terceiro Livro
de Leituras Infantis (1908); Novo methodo de caligraphia vertical (1909?); Cartilha:
Leituras Infantis (1911?); Primeiros passos na leitura (1915); Quarto Livro de leitu-
ras infantis: apanhados e factos historicos (1919); Pequena Historia do Brazil (1922);
Novo methodo de calligrafia americana (inclinada) (1890?); Cadernos illustrados
(s.d.) e Novos cadernos de linguagem (s.d).
As obras escolhidas para a análise, Primeiro livro de leituras infantis, Se-
gundo livro de leituras infantis e Terceiro livro de leituras infantis, fazem parte da
série graduada Leituras infantis e foram publicadas por meio da Livraria Fran-
cisco Alves & Comp. A série graduada é um conjunto de livros para o ensino
elementar, composta por sete obras: duas cartilhas com métodos diferentes para
a alfabetização, um livro preparatório para leitura, três livros de leitura e um livro
com contos pátrios. Essas obras possuem a característica de “(...) uma progressão
tanto no interior dos livros quanto em suas relações com os demais livros da série,
em geral baseada na extensão e na complexidade dos textos utilizados (BATISTA
et al, 2002, p. 35).
O Primeiro Livro de Leituras Infantis destinava-se ao ensino de leitura cor-
rente nos primeiros anos do ensino primário, para utilização após as obras Carti-
lha e Leitura Preparatória. Quanto ao conteúdo, foi possível localizar na 9ª edição,
de 1911, um total de sessenta e uma lições, contendo: poemas (dentre esses há três
que estão utilizando uma tipografia diferenciada), uma mistura dois tipos textuais
(carta e conto) e desse total de lições, dezesseis possuem continuação das tramas,
com uma média geral de dois a três contos por história. Todas as lições propostas
contêm, em média, duas páginas.
Sobre a comunicação entre as figuras e os textos, constata-se que as fo-
tografias conseguem “dialogar” melhor em detrimento das gravuras que acom-
panham as narrativas ou os ornados que separaram uma história da outra e que
geralmente representam cenas voltadas para o campo (paisagens, casas localizadas
em florestas ou pássaros) e não possuem relação direta com o conteúdo dos textos.
Entende-se que essas imagens estão pautadas numa visão fantasiada da realidade,
abrindo a possibilidade da imaginação infantil.
210
Figura 1 – Capa e lição da obra Primeiro Livro de Leituras Infantis
Capa e página 11 da 9ª edição da obra Primeiro Livro de Leituras Infantis, publicada em 1911. Fonte: Biblio-
teca Nacional de Maestros – BNM.
211
Figura 2 – Capa e lição da obra Segundo Livro de Leituras Infantis
Capa e página 70 da 5ª edição da obra Segundo Livro de Leituras Infantis, publicada em 1911. Fonte: Biblio-
teca Nacional de Maestros – BNM.
212
Figura 3 – Folha de rosto e lição do Terceiro Livro de Leituras Infantis
Folha de rosto e 50 do Terceiro Livro de Leituras Infantis, 21ª edição publicada em 1917. Fonte: Biblioteca
Nacional de Maestros – BNM.
Quanto à forma narrativa dos livros, identifica-se que, quase em sua to-
talidade, possui um narrador em terceira pessoa, definido como heterodiegético,
pois “possui um distanciamento da história narrada” (FRANCO JUNIOR, p. 40),
conferindo uma participação de grau zero. No que diz respeito ao foco narrativo,
considera-se como onisciente neutro:
Esse foco narrativo caracteriza-se pelo uso da 3ª pessoa do dis-
curso. Tende ao uso do sumário, embora não seja incomum que
use a cena para a inserção de diálogos e para a dinamização da
ação e, consequentemente, do conflito dramático. Reserva-se,
normalmente, o direito à caracterização das personagens, des-
crevendo-as e explicando-as para o leitor (FRANCO JUNIOR,
2009, p. 43).
213
tamentais ou físicas dos personagens podem estar relacionadas ao nó ou ao fecho
da narrativa, comprovando uma causalidade já em suposição pelo leitor.
Além disso, ao mesmo tempo em que o narrador conta o que irá acontecer
na trama, também decide quais são os personagens capazes de realizar tais com-
portamentos, fazendo com que a criança-leitora (com o apoio do professor) iden-
tifique quais são as ações que precisam ser evitadas e o que se espera de pessoas
que possuem certa forma de pensamento, tipo físico ou condição social.
214
desenvolvimento psicológico. Importante destacar que essa alteridade delimita
somente as características naturais e não culturais.
Além de diferenciar as capacidades da criança em relação ao adulto, o próprio
autor compreende que as crianças também são diferentes entre elas. É possível lo-
calizar historietas com assuntos diversos, com a finalidade de não focalizar em uma
classe social específica, mas na fase compreendida por infância e suas possíveis varia-
ções. Abaixo, a tabela aponta a quantidade de personagens principais nas narrativas
das obras estudadas. Observa-se a centralidade da criança no Primeiro Livro, porém,
nas obras seguintes, o adulto possui também narrativas principais, com a função de
demonstrar como os mais velhos lidam com as questões altruístas e egoístas.
Fonte: Dados coletados por meio da revisão bibliográfica de obras didáticas publicadas por Francisco Fur-
tado Mendes Vianna. (editado)
Fonte: Dados coletados por meio da revisão bibliográfica de obras didáticas publicadas por Francisco Fur-
tado Mendes Vianna. (editado)
215
Já na tabela abaixo, foi possível constatar a presença da família com muitas
ocorrências nas tramas, com a função de demonstrar à criança valores como: a
bondade, empatia, o apego e o respeito. A escola e o trabalho, representados pelo
professor/mestre e o patrão, aparecem menos. O motivo reside na compreensão
do autor de que a família é instituição de maior importância e capaz de apresentar
os valores morais pautados no controle dos comportamentos. Vale ressaltar que o
autor defende que é pela família que se aprende esses ideais, a segunda instituição
responsável seria a Pátria.
Pai 21 14 19
Mãe 29 16 25
Avô 1 2 1
Avó 2 - -
Tios/Padrinhos 7 6 2
Outros familiares - 1 1
Empregada 1 1 -
Vizinho - - 1
Desconhecidos 2 9 3
Patrão - 3 8
Professor/Mestre 8 5 3
Fonte: Dados coletados por meio da revisão bibliográfica de obras didáticas publicadas por Francisco Fur-
tado Mendes Vianna. (editado)
Ainda sobre a educação dos infantes, para o autor, as crianças que fre-
quentam o ensino primário, na verdade, precisariam aprender as noções morais e
outras inteligências por meio da educação materna, excluindo a necessidade do
ambiente institucional educacional. Além de poucas narrativas com a presença da
escola (citando-a indiretamente), sua concepção de ensino se faz presente tanto
na conferência realizada por ele em 1919, a qual possui o item 1ª ilusão – Suppôr-
-se a escola a instituição mais adequada para o ensino primario (VIANNA, 1930, p.
99), quanto no artigo A questão do analphabetismo, publicado na revista educacio-
nal A Escola Primaria, no dia 14 de março de 1924. Porém, o autor entende que a
forma de ensino familiar só seria possível caso a sociedade conquistasse certo grau
de “positividade”, eliminando instituições responsáveis por regular os sujeitos e
transferindo a responsabilidade para os próprios indivíduos:
216
Mas, embora eu continue a considerar a escola primaria como
instituição transitória, destinada a desapparecer no dia em que
a organização social permita ás mães assumirem integralmente
o verdadeiro papel de educadoras de seus filhos até os 14 annos,
reputo a transformação da escola primaria actual para como de
alta relevância, porque ella irá concorrendo para a transforma-
ção dos cérebros capazes de repetir bem o que os outros fizeram,
em cérebros verdadeiramente pensantes por si, creadores, ser-
vindo a indivíduos dotados de largo sentimento de fraterninade
e verdadeiros habitos de acção.(VIANNA, 1930, p. 20)
217
algum ensinamento pautado em castigos, consequências ou recompensas, defini-
do por narrativas “neutras”.
Negativas 28 20 15
Positivas 15 10 16
Fonte: Dados coletados por meio da análise das obras Primeiro Livro de Leituras Infantis (1911ª), Segundo
Livro de Leituras Infantis (1911b) e Terceiro Livro de Leituras Infantis (1917). (editado)
113 Considera-se o termo “defeito” como contrário à virtude de acordo com um trecho da lição O automó-
vel (1917): “Renato, porém, tinha um grande defeito - era muito vingativo.” (VIANNA, 1917, p. 11)
218
ao identificar sentimentos destrutivos no cotidiano, possa repreendê-los. Para o
autor, a criança que tem acesso aos seus livros, por meio da observação dos senti-
dos, irá refrear vontades como mentir, roubar, ser preguiçoso ou malcriado.
Quanto às histórias altruístas, estão em maior recorrência os valores prin-
cipais pautados por Vianna, destinadas à formação de uma nova humanidade:
caridade, empatia e respeito aos animais. Seguidamente, aparecem o gosto pelos
estudos, a busca ou amor pela profissão/trabalho, abnegação, coragem e ouvir os
mais velhos.
O altruísmo presente nas obras de Francisco Vianna é voltado para a crian-
ça que está em formação, e que precisa aliar o controle dos sentimentos destruti-
vos com vistas ao aprimoramento da observação e das teorias. Também é preciso
compreender o elemento positivista de formação da humanidade: a fraternidade
entre os indivíduos. Assim, as narrativas altruístas demonstram as iniciativas das
crianças nos conflitos narrados e suas respectivas recompensas pelas boas ações,
projetando, assim, um ideal de infância.
Considerações finais
219
Foi possível identificar as recorrências sobre o trabalho e a escola nas tra-
mas das duas últimas obras, ainda que a família mantenha centralidade nos três
livros. A opção do autor por conceber a família como a primeira e principal insti-
tuição formativa dos infantes entra em consonância com o ideal positivista com-
tiano, que considera a educação materna como a única necessária para a formação
dos indivíduos até os 14 anos. Contudo, de acordo com os artigos de Francisco
Vianna, a escola ainda seria imprescindível, até que a sociedade atingisse a sua po-
sitividade114 e autonomia sobre qualquer instituição que a rege. Ou seja, a escola
seria provisória na formação da criança, até que a sociedade fosse substituída pela
família, na educação dos infantes.
A maneira como Francisco Vianna, um profissional da área da educação
que confiava na filosofia comtiana, esboçou em suas obras uma concepção de in-
fância que também foi difundida em palestras e comercializada através dos seus
livros, permitiu que suas idealizações formassem diversas crianças e professores
que tiveram contato com o ensino primário. Estudar a representação de infân-
cia concebida por Francisco Vianna proporciona indícios para a compreensão
de uma das muitas idealizações de criança republicana em disputa, fornecendo
subsídios para a história da infância e do livro no Brasil.
Referências
BOURDIEU. P. Os usos sociais da ciência. São Paulo: Editora Unesp, 2004, p. 17-47.
220
FRANCO JUNIOR, A. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI, T; ZOLIN,
L. O. (org). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3ª ed.
Maringá, Eduem, 2009, pp. 33-58.
PANIZZOLO, C. A arte de civilizar-se por meio dos livros de leitura: um estudo das
séries graduadas da escola primária paulista (1890-1904). Revista Perspectiva, v. 37, n.3.
Florianópolis: 2019. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/
article/view/2175-795X.2019.e54124/pdf. Acesso em: 04 jan. 2022.
221
TOZZI,J.B.Educação,infância e leitura:contribuição da teoria dos processos civilizadores
de Norbert Elias. Pro-Posições, v. 24, n.2, p. 127-145. Campinas, 2013. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/pp/a/hFPY4zBMT9j3r9M9dvfNZsw/?lang=pt. Acesso em:
04 jan. 2022.
Fontes
VIANNA, F. F. M. Segundo livro de leituras infantis. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1911b. (Série “Leituras Infantis”).
VIANNA, F. F. M. Terceiro livro de leituras infantis. 21ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1917. (Série “Leituras Infantis”).
222
10. O ERRO EM MATEMÁTICA: SUBSÍDIOS PARA A
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
Considerações iniciais
115 Uma análise detalhada da produção dessas diferentes vertentes da história da educação matemática
poderá ser lida, por exemplo, no texto Valente (2010).
223
na Introdução de sua obra, Chartier menciona como pensa a história cultural: “A
história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o
modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social
é construída, pensada, dada a ler”. (1990, p. 16-17).
E como a realidade social é construída, pensada, dada a ler? Chartier vai
desenvolver em seu livro uma categoria fundamental para essa análise. Trata-se
do conceito de representação. A elaboração desse conceito passa inicialmente por
aquilo que ele não é. Pela contraposição àquilo que já estava posto numa histo-
riografia anterior àquela da História Cultural. Assim, o conceito de representação
supera os debates historiográficos que contrapunham a
objetividade das estruturas (que seria o terreno da história mais
segura, aquela que, manuseando documentos seriados, quantifi-
cáveis, reconstrói as sociedades tais como eram na verdade) e a
subjetividade das representações (a que estaria ligada uma outra
história, dirigida às ilusões de discursos distanciados do real).
Tal clivagem atravessou profundamente a história, mas também
outras ciências sociais, como a sociologia ou a etnologia, opon-
do abordagens estruturalistas e perspectivas fenomenológicas,
trabalhando as primeiras em grande escala sobre as posições e
relações dos diferentes grupos, muitas vezes identificados com
classes, e privilegiando as segundas o estudo dos valores e dos
comportamentos de comunidades mais restritas, frequentemen-
te consideradas homogêneas (CHARTIER, 1990, p. 18).
224
zer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira pró-
pria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto
e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objeti-
vadas graças às quais uns “representantes” (instâncias coletivas
ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada
a existência do grupo, da classe ou da comunidade. (CHAR-
TIER, 1990, p. 23).
Pensar assim a relação com o mundo social, isto é, através das representa-
ções, coloca em cena, de acordo com Chartier, a discussão sobre como lidamos
com as representações. Se ao nos relacionarmos com a realidade fazemos isso
através das representações, como operamos com elas? Como fazemos uso das
representações?
Para responder a tais questões, Chartier traz para seu trabalho o que ali-
cerçou empiricamente as suas investigações: os estudos históricos sobre o livro e
a leitura:
A problemática do “mundo como representação”, moldado
através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam,
conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como
uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos
textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real. Daí, nes-
te livro e noutros, mais especificamente consagrados às práticas
de leitura, o interesse manifestado pelo processo por intermédio
do qual é historicamente produzido um sentido e diferenciada-
mente construída uma significação. (CHARTIER, 1990, p. 24).
225
teórica que possa evidenciar a articulação existente entre representações e práti-
cas. Este texto lança-se a esta tarefa, mesmo que de modo inicial, ao tratar do erro
em matemática.
De modo a melhor circunscrever o tratamento sobre o erro em matemá-
tica, abordaremos as representações orientadoras dos ensinos nos primeiros anos
escolares. E, ainda, trataremos mais particularmente do cálculo. A problemática
de pesquisa irá ater-se ao âmbito dos estudos históricos, entendido como necessi-
dade de elaboração de uma narrativa explicativa sobre os processos de mudança a
respeito do modo de tratar o erro nos ensinos de matemática. Como foram cons-
truídas e modificadas as representações sobre o erro em matemática? A resposta
a tal interrogação permitirá compreender a passagem da valorização do cálculo
exato, vinda de tempos longínquos ao cálculo aproximado para os primeiros anos
escolares, orientação mais atual da Educação Matemática116.
116 Em finais da década de 1980, surge um novo campo disciplinar e profissional: a Educação Matemática.
A emergência desse novo campo tem, no Brasil, como marcos referenciais, a realização do I ENEM –
Encontro Nacional de Educação Matemática, em 1987, em São Paulo; e, no ano seguinte, no Paraná,
a reunião entre professores que criaram a Sociedade Brasileira de Educação Matemática – SBEM.
226
-faire eruditos, provenientes de meios profissionais específicos.
(HÉBRARD, p. 70, 1990).
227
mesmo Professor Proença, justificou a sua posição sobre a exatidão nos exercícios
e problemas escolares:
Em hypothese alguma se deve aceitar um resultado sem a devi-
da verificação, seja por meio de prova, seja pelo exame dos dados
do problema. Na vida do mundo não se aceitam valores falsos,
porque aceita-los na vida da escola? (PROENÇA, 1930, p. 212).
117 Um conjunto de mais de três mil provas de exames de admissão ao Ginásio do Estado de São Paulo,
no período de 1930 a 1969 foram digitalizadas e podem ser consultadas no endereço: https://repo-
sitorio.ufsc.br/handle/123456789/1769
228
Os exames constavam de exercícios de cálculo e, ainda, de problemas como
os mencionados acima. Por certo, como é possível notar, os problemas não eram
elaborados necessariamente a partir de situações da realidade, indicavam contex-
tos, com dados por vezes artificiais, em que prevalecia a necessidade de cálculos.
E a correção levava em conta a exatidão dos resultados.
Para além de problemas como os mencionados anteriormente, com dados
fictícios, moldados para a verificação do calcular de modo exato, todos os exames,
durante décadas, sempre fizeram constar do rol de questões da prova de matemá-
tica do exame de admissão, os chamados “carroções”. Tal termo designava exer-
cícios de cálculo numérico a serem resolvidos como os exemplos que se mostra
abaixo:
229
Determinações legais passaram a ser emitidas buscando garantir o caráter
eliminatório dos exames, revelando que as transformações da cultura escolar se
direcionavam a um novo significado para o erro, que não adequado para o caráter
eliminatório dos exames. Exemplo dessas determinações é dada pela Circular No.
13 de 3 de dez. de 1940:
Aos Exames Escritos, de caráter eliminatório, deve ser dada a
maior importância, pois são de fato os que permitem aferição
mais exata das condições reais do candidato ao curso secundário.
A prova escrita de Matemática visa, de modo especial, apurar o
domínio das operações fundamentais e o desembaraço no cál-
culo. Os problemas e exercícios propostos devem, portanto, ve-
rificar, realmente estes dois pontos, evitando-se os de exposição
intrincada e fácil resolução, como são geralmente os chamados
“quebra-cabeças”.
230
escolas, de modo a que o ensino se tornasse científico, para que houvesse uma
pedagogia científica.
Lourenço Filho, personagem central da divulgação da pedagogia científica
no Brasil, assim sintetiza esse tempo escolar:
A escola nova proclama a necessidade da verificação objectiva
dos elementos da educação e de cada passo do aprendizado. Ao
envez da apreciação subjectiva do alumno e de seu trabalho por
parte do mestre, ella pretende larga introducção de processos de
verificação objectiva, ou seja da medida. É o ideal da pedagogia
que se veio a chamar de experimental, conjunto de processos
tendentes a essa verificação, sob base estatística. Na sua forma
pratica, é a questão dos testes (LOURENÇO FILHO, 1930,
p.48, grifos do autor).
231
Essas novas ideias levaram autores a elaborarem manuais pedagógicos e
livros didáticos para o ensino de aritmética nos primeiros anos escolares de forma
diferente daqueles publicados até então. Como a elaboração “científica” dos testes
era algo especializado, vindo dos ditames da psicologia experimental, aos quais os
professores não estavam afeitos, novas obras surgiram, agora fornecendo ao pro-
fessor sequências cuidadosamente planejadas, de modo a que seguissem o desen-
volvimento considerado natural dos alunos. Ao utilizar tais obras, os professores
apenas deveriam guiar o trabalho dos alunos por entre as etapas e sequências, de
modo que, sozinhos, os alunos aprenderiam matemática, cálculos.
Um exemplo desse tipo de material didático foi elaborado por Lourenço
Filho. O título de um dos seus livros é significativo: “Aprenda por si!”118 (LOU-
RENÇO FILHO, 1941, 1942). O autor previne os leitores sobre a sua obra con-
siderando que:
APRENDA POR SI! é um novo tipo de material de ensino
que visa facilitar o trabalho de professores e alunos. O mate-
rial compreende séries de cartões impressos e cadernos de papel
transparente, organizados separadamente para as variadas disci-
plinas a que se possa aplicar, e segundo a graduação do ensino
que, a cada uma, convenha. Seu emprêgo é facílimo: o aluno co-
loca, sob o papel transparente, o cartão voltado na face que traz
impressas as questões ou exercícios; interpreta essas questões
e as resolve, escrevendo então os resultados no lugar indicado.
Voltando depois o cartão, compara êle próprio os resultados do
que produziu, com os resultados exatos, que figuram na outra
face do cartão. O arranjo tipográfico faz aparecer junto da res-
posta do aluno, a resposta exata, em cada caso (LOURENÇO
FILHO, 1941, s/p.).
232
todos os exercícios sejam corrigidos rapidamente, sem maior
esforço do professor; c) evita que, nos exercícios de treino ou
verificação, os alunos possam fraudar os resultados; para isso, um
sinal bastante visível existe na face do cartão em que aparecem
os exercícios, permitindo discreta fiscalização por parte dos pro-
fessores e dos escolares entre si (LOURENÇO FILHO, 1941,
s/p., grifos do autor).
233
A matemática moderna: o cálculo pouco importa, o erro era outro...
234
A primeira contribuição coletiva dessa Comissão materializa-se na obra
L´enseignement des mathématiques, que reúne textos de J. Piaget, E. W. Beth, J.
Dieudonné, A. Lichnerowicz, G. Choquet e G. Gattegno, publicada em 1955.
O primeiro capítulo da obra é escrito por Piaget: Les structures mathématiques et
les structures opératoires de l´intelligence. No texto, o autor aborda o que caracteriza
como questão antiga da filosofia ocidental: “saber se as conexões matemáticas são
engendradas pela atividade interna da inteligência ou se elas provêm da ação in-
teligente sobre o mundo exterior” (PIAGET et al., 1955, p. 11). Para Piaget, se a
questão é tratada em termos da psicologia genética, há uma renovação do proble-
ma, com a contribuição dos matemáticos do grupo Bourbaki, que trazem como
papel fundamental, a noção de estrutura. Desse modo, o texto busca precisar em
que sentido as estruturas matemáticas fundamentais consideradas pelos matemá-
ticos, correspondem às estruturas elementares da inteligência, sendo as primeiras
um prolongamento formalizado e não a expressão direta das segundas (PIAGET
et al., 1955, p. 17). Por fim, o estudo de Piaget considera que: “Se o edifício mate-
mático repousa sobre estruturas, que correspondem além do mais às estruturas da
inteligência é, então, sobre a organização progressiva dessas estruturas operatórias
que é preciso estar baseada a didática matemática” (PIAGET et al., 1955, p. 32).
Não é objetivo deste texto nos alongarmos em discutir o MMM. Interessa-
nos, de modo sintético, observar que essa vaga pedagógica que atinge os ensinos
de matemática teve por uma de suas características, fazer prevalecer os ensinos
de álgebra, relativamente àqueles de aritmética e geometria. Talvez, melhor seria
dizer que os ensinos de álgebra deveriam subsumir aqueles da aritmética e da
geometria. Por meio da Teoria dos Conjuntos, aritmética e geometria passariam
a ser tratadas no âmbito das estruturas matemáticas.
A obra “O Movimento da Matemática Moderna – história de uma revolu-
ção curricular” (OLIVEIRA et al., 2011) mostra-nos que a formação continuada
de professores – à altura designada pela expressão “treinamento de professores” –
constituiu um dos temas mais relevantes desse tempo. E, ao que parece, a necessi-
dade de “treinar” professores já atuantes como docentes, para a nova matemática,
inaugurou a própria concepção de formação continuada no país.
Nos cursos dados a professores, cursos de férias, de finais de semana, pela
televisão e toda uma sorte de encontros com professores, havia o objetivo de di-
vulgar a nova matemática. Dentre muitas iniciativas, secretarias da educação de
estados e de municípios brasileiros promoveram cursos, “treinamentos” de pro-
fessores.
Em São Paulo, por iniciativa da Secretaria da Educação do estado, por
meio da então Chefia do Ensino Primário, a partir de finais da década de 1960,
houve cursos para professores sobre matemática moderna. Eles, a princípio, cons-
tavam de leituras de textos internacionais, traduzidos por professores designados
235
pelo estado, lotados em órgãos de apoio à Secretaria. Um desses textos origi-
nou material para professores intitulado ‘Matemática na Escola Elementar”. Tal
material era uma tradução para o português de parte do trabalho escrito por
Howard Fehr, para a UNESCO, em 1966, intitulado New Trends in Mathematics
Teaching. Dessa referência orientadora interessa-nos destacar um trecho que, de
modo esclarecedor, informa os leitores sobre a nova matemática, e o novo papel
que deveria ser assumido pelo cálculo na escola elementar.
A MATEMÁTICA QUE DEVE SER ENSINADA – Na
escola elementar, a instrução tradicional tem estado quase que
somente limitada à memorização do Sistema de Numeração
Decimal e dos processos de cálculo nesse sistema. Nenhuma
atenção é dada à estrutura e à compreensão. Somos de opinião
de que somente uma estrutura compreensível da aritmética dos
números cardinais e dos números racionais positivos, com as
propriedades fundamentais das operações destes números, de-
vem ser ensinadas e ensinadas a todas as crianças desta maneira.
Este é o caminho para estabelecer a fundamentação para estu-
dos subsequentes de álgebra assim como para as aplicações da
Matemática às Ciências. (FEHR, 1969, p. 4)
236
tura do campo aritmético, conhecer as suas propriedades, como a comutativa, era
o que importava.
Como se pôde verificar, as propostas vindas do MMM, em termos de se-
cundarizar o cálculo, levaram a desconsiderar como finalidade educativa para o
ensino de matemática os resultados exatos, e mesmo a ideia de que resolvendo
listas de exercícios de mesma natureza, poderiam contribuir com a aprendizagem
matemática. Não será por meio de contas, de acertos e memorização de algorit-
mos que ocorrerá a aprendizagem das relações, das estruturas matemáticas. O
erro, existindo, será de encadeamento lógico, não de resultado numérico. O erro
era outro...
Chegamos neste item ao tempo mais recente. Novo ideário, novas con-
cepções sobre ensino e aprendizagem da matemática. Novas perspectivas sobre
o erro em matemática. O cálculo aproximado ganha espaço no âmbito das ideias
pedagógicas atuais. E, nestes novos tempos, há uma presença intensa das novas
tecnologias no cotidiano social. Esse fato faz ressurgir o cálculo. Esse saber re-
toma seu status no âmbito do campo disciplinar matemático. Os computadores
estão presentes e o trabalho matemático do cálculo, no teste de conjecturas, a
todo tempo é realizado na programação das máquinas. O cálculo agora subsumiu
a álgebra...
Na obra de Gilles Dowek intitulada Les metamorphoses du calcul é possível
ter-se uma noção desse processo, quando o autor menciona que: “A ideia de que
uma demonstração não se constrói unicamente com axiomas e regras de dedução,
mas também com regras de cálculo, apareceu via informática, em particular num
domínio que a tecnologia tem chamado de “demonstração automática”’ (2007,
p. 141). Das demonstrações automáticas surgem derivações que apontam para a
construção de inteligências artificiais...
Do ponto de vista escolar, essa espécie de renascimento do cálculo para a
matemática, via novas tecnologias, leva ao trato de situações em que a matemática
possa ser ferramenta para a solução de problemas os mais próximos da vida tanto
dos alunos quanto dos adultos. E isso significa considerar desde os primeiros anos
escolares o uso dessas tecnologias.
Sobre esse tema, a professora Michelle Artigue, um dos ícones do que
poderemos chamar de movimento internacional da Educação Matemática, assim
se pronunciou:
237
A oposição entre cálculo exato e cálculo aproximado remete às
representações estabelecidas entre matemática pura e matemá-
tica aplicada. (...) O jogo do cálculo entre “aproximado/exato”
deve ser ensinado desde os primeiros anos escolares. E o trato
com a tecnologia poderá ajudar nessa tarefa. A capacidade de
estimar valores liga-se ao trabalho com o cálculo mental, na ava-
liação de ordem de grandeza (ARTIGUE, 2002, p. 206).
Considerações finais
238
laboratórios de psicologia. O erro do aluno passou a ser visto como fracasso do
trabalho do professor.
O erro em matemática, em boa medida, para os primeiros anos escolares,
ligou-se ao desempenho dos alunos no cálculo. Com a chegada do MMM, secun-
darizando o cálculo, tanto em nível universitário, da produção matemática, quan-
to nas propostas de transformação curricular, em favor da álgebra, das relações,
o erro passou a ter outra natureza: tratava-se de levar o aluno à compreensão do
encadeamento lógico das proposições e justificativas, progredindo até o aprendi-
zado das estruturas algébricas.
Tempos atuais, de Educação Matemática, mais e mais se intenta elaborar
situações em que a matemática se faz necessária para tomada de decisões em
qualquer nível. Desde os anos 1990, pelo menos, tem-se diretrizes que valorizam
a resolução de problemas. Ainda: a incorporação dos meios informáticos devol-
veu ao cálculo um status importante no âmbito do saber matemático. De discipli-
na menor, em tempos do MMM, o cálculo renasceu para a pesquisa matemática.
Isso colocou o desafio para as práticas pedagógicas nos primeiros anos escolares
de articular as calculadoras e os resultados obtidos, com estimativas, com cálcu-
lo mental, na resolução de situações problema. O cálculo aproximado passou a
ser referenciado como conteúdo importante para a aprendizagem da matemática
pelo aluno. Ao cálculo exato caberá a referência de uso das calculadoras. O erro
passa a ter, desse modo, uma nova representação.
Referências
239
CHARTIER, R. Escribir las prácticas – Foucault, de Certeau, Marin. Buenos Aires,
Argentina: Manantial, 2006.
240
MACHADO, R. C. G. Uma análise dos Exames de Admissão ao Secundário (1930-1970):
subsídios para a História da Educação Matemática no Brasil. Dissertação (Mestrado em
Educação Matemática). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
2002, 140p.
MONARCHA, C. Brasil arcaico, Escola Nova – ciência, técnica e utopia nos anos
1920-1930. São Paulo: Editora da UNESP, 2009.
241
3ª PARTE
A ESCOLA SEUS SUJEITOS E SUAS PRÁTICAS
242
11. CELEBRAR A ESCOLA: AS INSTITUIÇÕES
PRÉ-ESCOLARES EM SOROCABA (1954 - 1994)
Introdução
243
cidade. Para este capítulo daremos ênfase ao primeiro Parque Infantil “Antônio
Carlos de Barros”.
246
da cidade como o aprendizado de bons costumes, noções de ordem e disciplina, a
prática de esporte e a disseminação de hábitos de higiene.
Frequentando esse centro de diversões, a criança estaria enri-
quecendo-se insensivelmente de bons costumes: seguindo ho-
rário pré-estabelecido teria desde logo noção de ordem e de dis-
ciplina: exercitando-se nos vários aparelhos estaria praticando
esporte suave e de acordo com suas condições físicas; compare-
cendo limpinho e em ordem, teria contato mais íntimo com a
higiene. (p. 01)
247
E, não encontrando motivos para essa ogerisa, para esse pavor
de tomarmos a peito a reeducação dos pequeninos transviados
que temos, não compreendemos também o porque do pavor de
responsabilidade nascido no nosso espírito, com relação aos me-
nores abandonados e entregues aos seus destinos. (p. 01)
119 “Abrigos – ou orfanatos, educandários e casas-lares – são instituições responsáveis por zelar pela in-
tegridade física e emocional de crianças e adolescentes que tiveram seus direitos desatendidos ou vio-
lados, seja por uma situação de abandono social, seja pelo risco pessoal a que foram expostos pela
negligência de seus responsáveis.” (SILVA E AQUINO, 2005, p. 186)
120 José Carlos de Almeida era, no período em que antecede a criação dos parques, estudante de Educação
Física na Universidade de São Paulo. Conheceu os parques infantis na cidade de São Paulo e achou
interessante e útil levar a ideia para Sorocaba. Iniciando uma campanha no principal jornal da cidade,
Jornal Cruzeiro do Sul, para a implantação das instituições. (OLIVEIRA, 2010).
248
educacionais do prefeito, que tinha como finalidade atender a
uma parcela da população quase que totalmente excluída das
políticas públicas de educação infantil. (OLIVEIRA, 2010, p.
48)
249
VEIRA, 2010) como, por exemplo, a faixa etária que fora escolhida para o aten-
dimento, as orientações para a construção do prédio e a adoção de propostas de
ensino semelhantes considerando a tríplice: educar, assistir e recrear. A retomada
da criação dos Parques Infantis na cidade de São Paulo se justifica pelo fato dos
Parques Infantis de Sorocaba receberem orientações técnico pedagógicas da Se-
cretária Municipal de Educação da cidade de São Paulo até meados da década de
1970 (MARTINEZ, 2005).
250
instituição, principalmente por não terem formação específica
em educação infantil. (OLIVEIRA, 2010, p. 47).
251
O Regimento Interno dos Parques Infantis de Sorocaba foi publicado sob
o decreto nº 266 em 05 de novembro de 1958 no Jornal do Cruzeiro Do Sul. Este
documento dividido em três capítulos dos quais o primeiro não tem título e trata
de orientações quanto aos dias e horários de abertura dos prédios e sobre a forma-
ção de turmas, apresenta no segundo capítulo cujo título é do quadro de funcionário
as atribuições de cada funcionário, já o terceiro denomina-se disposição gerais e
completa as informações oferecidas nos outros itens. Esta publicação estabelece
normas para as instituições orientando-as tanto em sua esfera organizacional,
quanto pedagógica.
O documento transcrito nas páginas do Jornal trazia como incumbências
da diretoria no art. 15, item 9, a determinação para a realização das festas escola-
res nas unidades apontando a necessidade de uma formação cívica e estética das
crianças: “Promover comemorações de datas nacionais e outras por meio de festas
infantis, que servindo a educação cívica e estética das crianças, contribuem para
despertar o interesse das famílias pelo Parque” (Jornal Cruzeiro do Sul, 1958, p.
04). Em outro excerto, ao instituir normas regulamentando a vida funcional dos
funcionários, permite o chamamento destes em ocasião de realização de festas.
Artigo 22: Qualquer funcionário dos Parques Infantis poderá
ser convocado pelas respectivas diretoras independentemente de
qualquer gratificação para prestar serviços extraordinários por
ocasião de festa ou quando se torne necessário. (Jornal Cruzeiro
do Sul, 1958, p. 04)
252
aos ideais na conduta da civilização brasileira, mediante as ten-
dências educacionais do país e os preceitos legislativos e educa-
cionais. (OLIVEIRA, 2010, p. 60).
253
consequências para educação infantil uma vez que estabelece que “os sistemas
de ensino velarão para que as crianças de idade inferior recebam educação em
escolas maternais, jardins-de-infância e instituições equivalentes” (art.19, § 1°),
transferindo para uma educação pré-escolar de baixa qualidade a solução dos
problemas da escola primária (KUHLMANN JR, 2001).
Já no ano de 1974 mais uma mudança é estabelecida e as instituições ga-
nham o nome de EMEI – Escola Municipal de Educação Infantil. Essa mudança
foi decretada pela lei nº 1796, de 29 de outubro de 1974. A partir desse momento
algumas mudanças são percebidas, como a faixa etária a ser atendida, que passa
então a se concentrar nas crianças de quatro a seis anos. Essa mudança é marcada
também pelas desvinculações das instituições Sorocabanas do DEF- SP, caben-
do então a esfera municipal a formação dos profissionais para as instituições da
infância.
De acordo com Oliveira (2005), a partir de 1977 houve uma modifica-
ção da concepção pedagógica das instituições pré-escolares que passaram então a
priorizar a formalização do trabalho pedagógico numa tentativa de compensar o
déficit da educação básica, objetivando então uma preparação das crianças a etapa
posterior do ensino.
Nesse mesmo período, os Parques Infantis e outras modalidades
de instituições educativas públicas foram abandonando a edu-
cação informal das crianças em idade de escolarização regular
básica e abrindo suas vagas apenas para o atendimento daquelas
em idade pré-escolar. Expandiram-se as escolas municipais de
educação infantil, que abrangiam o trabalho anteriormente feito
em parques infantis e jardins de infância, e também as classes
pré-primárias nas escolas de ensino fundamental. Em relação
ao trabalho pedagógico, no início da década de 80, muitos ques-
tionamentos eram feitos pelos técnicos e professores acerca dos
programas de cunho compensatório e da abordagem da priva-
ção cultural na pré-escola. Acumulavam-se evidências de que as
crianças das classes populares não estavam sendo efetivamente
beneficiadas por esses programas. Ao contrário, eles estavam
servindo apenas para uma discriminação e marginalização mais
precoce delas. As programações pedagógicas estabelecidas de-
finiam frequentemente as crianças por suas carências ou difi-
culdades com o padrão das camadas médias exigido nas esco-
las — vocabulário diferente, dificuldades de comunicação, má
condição física, dificuldades de controle e orientação espacial e
de discriminação visual e auditiva, auto-imagem negativa, de-
satenção, dificuldade de relacionamento, apatia e irritabilidade.
Contudo, as pré-escolas continuaram limitadas a práticas recre-
ativas e assistenciais em virtude da falta de oportunidades reais
para seus professores absorverem as programações propostas.
(OLIVEIRA, 2005, p. 114–115).
254
Em conjunto com as EMEIs, no ano de 1978 um novo projeto surgiu
na cidade com o propósito de pré-alfabetizar as crianças em prédios ociosos da
cidade chamado de CECOPES (Centro de Convivência do Pré-Escolar). Nestes
espaços “[...]as crianças eram atendidas por professoras treinadas em ação comu-
nitária e com especialização em educação pré-escolar.” (MARTINEZ, 2005, p.
25).
255
No ano de 1981, em entrevista concedida a Revista Cidades, o então se-
cretário de Educação na cidade de Sorocaba, Luiz Almeida Marins, relata os
benefícios do projeto CECOPE com relação às EMEIs, pontuando que os custos
com funcionários nessas instituições são muito menores, uma vez que só havia
uma professora para cada 100 alunos. O secretário afirma também que a partici-
pação da comunidade no dia a dia é benéfica para as crianças pois possibilita que
convivam em um ambiente similar ao familiar o que não acontecia nas EMEIs:
É para evitar que haja um distanciamento entre a criança e sua
família, ou seja, a sua realidade. Numa escola tradicional, a pro-
fessora é toda melosa, falsamente afetiva. E a criança ao com-
parar as atividades dela com a de suas mães, verá que em casa
apanha, é ofendida, Aos seus olhos ela enxergará apenas uma
mãe embrutecida, cheia de problemas e com pouco tempo para
elas. O mesmo problema ocorre em relação a merenda escolar,
que é farta e variada, geralmente melhor que da sua casa. (Revis-
ta Cidades, 1981, p.02)
A reportagem cita ainda que até o ano de 1978 só haviam dez EMEIs
na cidade de Sorocaba que atendiam um total de 2.385 crianças, com a criação
dos CECOPES foi então possível atender um total de 6.300. Fica evidente na
reportagem que a maior vantagem com a criação das CECOPES é a economia
aos cofres públicos. A utilização de mão de obra não qualificada e os prédios
improvisados proporcionaram o atendimento a um maior número de crianças a
um custo baixo.
No ano de 1984, as EMEIs e os CECOPES passaram a utilizar uma mes-
ma nomenclatura, PEM-SO – Pré Escola Municipal de Sorocaba, esta mudança
foi marcada pela adoção de uma concepção diferente de ensino que de acordo
com Nogueira e Martinez (2005) se caracterizava por:
Com isso, a divisão de educação da época resolveu adotar a filo-
sofia pedagógica de Carl Rogers, educação centrada na criança
e para isso foi contratada a assessoria do Centro de Aperfei-
çoamento de Assessória de Pré-escola (CATAPE), surgindo
também a supervisão pedagógica e as reuniões pedagógicas de-
vido à necessidade de um acompanhamento mais efetivo. Essas
supervisoras tinham como objetivo auxiliar as professoras que
apresentavam dificuldades na linha da pedagogia adotada pela
prefeitura e, com isso, mantinha-se em toda a rede uma única
proposta pedagógica. (p. 14)
256
como foco do processo educativo, tendo garantido seu direito à educação formal.
(CARVALHO E BAZZO, 2018)
Neste contexto, as associações de bairro, os sindicatos e grupos
feministas, os movimentos sociais e grupos políticos de oposi-
ção à ditadura militar, as mulheres nos congressos (aquelas que
ocupam cargos políticos), os profissionais de órgãos públicos
que solidarizam com os anseios populares, ocorridas no perío-
do que antecedeu a elaboração da Constituição de 1988, como
pressão sobre o poder público, da luta pela democratização pela
escola pública, possibilitaram a conquista do reconhecimento da
educação em creches e pré-escolas como um direito da criança
e um dever do Estado a ser incorporado aos sistemas de ensino.
(CARVALHO E FERREIRA, 2014, p. 209)
Considerações Finais
257
contextualizar o momento da criação do primeiro Parque Infantil da cidade, en-
fatizando as campanhas empreendidas para sua instalação e as normativas que
traziam informações sobre seu funcionamento. Podemos dizer que essas institui-
ções foram criadas com a função de atender as crianças cujos pais trabalhavam
durante o dia e não tinham com quem deixá-las. As campanhas que precederam
a instalação do primeiro Parque Infantil enfatizavam que sem ter onde ficar as
crianças poderiam perambular pelas ruas sem a assistência necessária. Outros ob-
jetivos para a criação dos Parques Infantis eram o aprendizado de bons costumes,
noções de ordem e disciplina, a prática de esporte e a disseminação de hábitos de
higiene.
As festas escolares ocorridas nos Parques Infantis funcionavam como uma
espécie de vitrine das instituições de ensino, elas tinham como algumas de suas
finalidades: disseminar ideias que remetem aos símbolos religiosos e ao aprendi-
zado de valores e comportamentos desejados, reafirmar ideais de patriotismo e de
civismo. Além de ser uma possibilidade de a sociedade conhecer as instituições e
seu trabalho. Kuhlmann Júnior (2001), ao analisar as Exposições Didáticas, indi-
ca que esses momentos serviram como vitrine, ou seja, oportunidades que tinham
a pretensão de mostrar a educação e a escola como produtora de civilização e
progresso que deveriam ser cultuados e representados.
A produção da festa escolar como ritual nas práticas escolares vai desde a
sua preparação (que envolve o planejamento) até sua concretização, que permeia
tanto as apresentações feitas nos Parques Infantis quanto as atividades trabalha-
das pelas educadoras e outros momentos específicos, como os desfiles e as come-
morações internas. Todas essas ações compõem o contexto pedagógico em que as
festas se inserem nas instituições, que não se constituem apenas no momento da
festa, mas também no conjunto de práticas que as datas comemoradas desenca-
deiam. Julia (2001) indica que a maneira como a cultura escolar é construída con-
tribuí para o remodelamento dos comportamentos e para a “profunda formação
do caráter e das almas que passam por uma disciplina do corpo e por uma direção
das consciências” (p. 22).
Referências
258
GALLEGO, Rita de Cassia; CÂNDIDO, Renata Marcílio. Uma discussão sobre os
sentidos da integração de feriados, festas e comemorações cívicas no calendário das
escolas primárias paulistas (1890-1930). Educação em revista, v. 31, p. 17-36, 2015.
CUNHA, Humberto Pereira da. Da Escola de Saúde a Parques Infantil: Santos (1931-
1952) Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Educação da Universidade Católica de Santos. 2018.
LIMA, Ana Lucia de Almeida. A educação em Sorocaba - do final do século XIX até
a criação da Escola Normal Livre de Sorocaba em 1929. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, UNISO. Sorocaba/SP, 2005.
LIMA, Priscila Carriel de. As Festas Escolares nos Parques Infantis Sorocabanos: memórias
e Imagens (1954 - 1988). Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-
Graduação em Educação, Guarulhos, Universidade Federal de São Paulo, 2021.
259
MARTINEZ, Sandra Lembo Fernandes. Educação infantil: reflexões sobre a
participação dos pais. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-
Graduação em Educação, Universidade de Sorocaba/SP, 2005.
SILVA, Enid Rocha Andrade da. AQUINO, Luseni Maria Cordeiro de. OS ABRIGOS
PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES E O DIREITO À CONVIVÊNCIA
FAMILIAR E COMUNITÁRIA. Boletim de políticas sociais - acompanhamento e
análise – IPEA - 11 ago. 2005.
260
12. NOS TEMPOS DA CRECHE: MEMÓRIAS DAS
INFÂNCIAS EM FOCO (DÉCADA DE 1970 A 1990)
Introdução
121 Suzana Pimenta- entrevistada em 28 de fevereiro de 2018. Foi chefe da secretaria acadêmica da Escola
Paulista de Enfermagem, irmã de Rosa Aparecida Pimenta- professora da EPE, e mãe das duas pri-
meiras crianças da creche.
261
Depois de muitas negociações a instituição começou a funcionar de forma
cuidadosa, porém muito caseira, sob a supervisão da Enfermagem Pediátrica. As
mães foram responsáveis por toda organização desde a contratação das pajens,
mobiliário e alimentação, inclusive foram elas que deram o primeiro nome à ins-
tituição, o de Comunidade Infantil. Os relatos revelam que as mães não queriam
que aquele espaço fosse chamado de creche, planejavam uma organização dife-
rente das demais creches, já existentes, em locais de trabalho como nas fábricas.
Diziam que “[...] queriam passar um sentido de família, extensão da casa e não
algo totalmente institucional e frio” (Entrevista de Suzana).122
Segundo Vieira (2016), em meados do século XX, o termo creche carrega-
va estigma social, não somente pelo atendimento precário oferecido na maioria
das vezes, como também pela falta de profissionais qualificados, falta de recursos
e ausência de políticas eficazes. Fatores que contribuíram para a associação da
creche ao mal atendimento e à pobreza. Sobre esse assunto, Kuhlmann Jr (1998)
e Rosemberg (2002), apontam que havia uma divisão declarada entre as institui-
ções que atendiam as crianças pequenas. A creche era destinada aos filhos das ca-
madas mais pobres, lugar de cuidados básicos e alimentação; e a escolinha, muitas
vezes chamada de jardim ou pré-escola, era destinada às camadas médias e altas
da sociedade, considerada como local de ensino e aprendizagem.
Passados cerca de um ano e meio do início do atendimento da Comunidade
Infantil, outras mães passaram a buscar esse direito. Momento em que a professo-
ra do Curso de Enfermagem, Marianna Augusto123, foi convidada, pela diretoria
da EPE, a assumir a tarefa de ampliação dessa assistência.
Marianna era altamente qualificada para este trabalho, frequentava um cír-
culo de amizades com pessoas influentes politicamente e de alto poder aquisitivo
que contribuíram financeiramente com seus projetos filantrópicos, possibilitando
a transformação do refeitório da antiga residência das alunas do Curso de En-
fermagem em uma creche. A instituição funcionou neste prédio até os finais da
década de 1980, quando foi necessário o aluguel de duas casas e a construção de
um imóvel próprio para este fim, para melhor atendimento das crianças, e então
passou a ser chamada de Paulistinha.
122 Projeto de Pesquisa aprovado no Conselho de Ética em Pesquisas- CEP/UNIFESP sob o Parecer de
número:1559/2017, na data de 01 de fevereiro de 2018.
123 Marianna Augusto - entrevistada em 02 e 24 de fevereiro de 2018. Foi uma das fundadoras da cre-
che - Era enfermeira especializada em Pediatria e Puericultura pela École de Puericulture de Faculté de
Medicine de La Universidade de Paris- França, estudou na Suíça com Jean Piaget, no período de 1955
a 1956. Durante os anos 1970, fundou os Cursos de Pós-Graduação stricto e lato sensu da Disciplina de
Enfermagem Pediátrica e Puericultura na EPE. Diante de sua qualificação profissional foi convidada a
assumir o projeto institucional da Creche.
262
O limite temporal deste estudo compreende desde 1971- ano em que a
instituição foi criada, até 1996- ano em que também passou a atender ao Ensino
Fundamental e adquiriu nova configuração estrutural. Tem como objetivo apre-
sentar as representações das infâncias vividas em três décadas na Creche, que tra-
zem as representações de espaço, propostas pedagógicas, valores sociais e morais.
Para tanto, foram realizadas entrevistas com ex-funcionárias e ex-alunos, agora já
adultos na faixa etária de 20, 30 e 40 anos, que trouxeram em suas memórias de
criança o cotidiano do tempo em que frequentaram a instituição. As entrevistas124
foram realizadas em dias, horários e lugares escolhidos pelos entrevistados, na
maioria vezes no aconchego e segurança de suas próprias casas, regadas a café e
bom humor:
As entrevistas se iniciaram timidamente, com perguntas e respostas
curtas, mas aos poucos nasceu uma relativa harmonia entre entre-
vistadora e entrevistados, com mútuo interesse. A entrevistadora em
descobrir novos fatos que contribuíssem com a pesquisa e o entrevis-
tado na oportunidade de relatar as experiências significativas de seu
tempo, marcas de conquistas, de alegria, de construção e mesmo de
frustrações, recolhidas e deixadas à margem em nome de uma história
institucional oficial. [...] a história da Paulistinha foi ganhando vida
e se materializando pelas narrativas, como pelas fotografias, livros e
documentos revelados em colaboração com a pesquisa (OLIVEIRA,
2019, p. 101).
124 Para as transcrições das entrevistas se utilizaram os recursos gráficos sugeridos por MARCUSCHI
(2007), referência brasileira para análise da conversação. Nos fragmentos de entrevistas, quando se
tratar de fala literal dos entrevistados, foram utilizados: fonte itálica tamanho 12 em até 3 linhas
no corpo do texto e entre aspas; com mais de 3 linhas, fonte itálica tamanho 10 com recuo de 4
centímetros. Ainda os seguintes recursos: colchetes[...] para supressão de trecho no mesmo turno
de fala; ponto (.) indica pausa, e letras maiúsculas para destaque nas palavras ou expressões quando
dada ênfase pelo entrevistado.
263
compreende-se os fazeres pedagógicos, a organização e funcionamento, condi-
ções materiais, espaços, estrutura, arquitetura, ações em processo, regulamentos
e normas de funcionamento. A apropriação se refere “[...] às aprendizagens, ao
modelo pedagógico, ao ideário, à identidade dos sujeitos e da instituição, aos des-
tinos da vida” (MAGALHÃES, 2004, p. 139). E a representação se refere ao grau
de aplicação das pedagogias, relativas aos currículos, estatutos, ações dos agentes
e conteúdo das bibliografias que subsidiam as atividades cotidianas.
Na segunda categoria de memória social foram utilizadas as referências
de Halbwachs (2006) e Bosi (1994). Segundo Halbwachs (2006) a memória in-
dividual é formada por meio das memórias coletivas formadas a partir de com-
binações complexas dos quadros sociais estabelecidos de acordo com as relações
vividas, isto é, dos meios sociais efervescentes. Ressalta que o esquecimento de
determinado período está relacionado à perda de contato com os que o rodea-
vam, assim, novos quadros sociais se constituem e formam outras combinações
complexas e dialéticas. Para Bosi (1994) as memórias são apresentadas por meio
de narrativas, que não são parte do confinamento de um livro, mas de recriação
de vibrações transformadas e produzidas com amplitude de experiências que per-
mite ao ouvinte se colocar em uma situação aberta de interpretação, cuidadosa e
rigorosa.
Por fim, foi eleita como terceira a categoria de lugar referenciada em Cer-
teau (1976, 2014) que afirma que toda narração integra um lugar de origem,
como parte da prática cotidiana. Os fatos narrados produzem um campo de atu-
ação, espelham a vida, organizam e transformam os lugares em espaços, os quais
situam o leitor quanto às caminhadas traçadas e suas transformações.
Além da introdução, o texto está organizado em duas seções: na primeira
Comunidade Infantil: criação e implementação - serão apresentadas as representa-
ções acerca dos tempos em que a creche era chamada de Comunidade Infantil,
contadas por meio das narrativas que apresentaram suas representações em tem-
pos distintos, desde a criação até meados da década de 1980. A segunda seção
Memórias de Infância: era bom cantar, dançar, brincar e escrever? - apresenta as prá-
ticas que foram reconfiguradas e encaminhadas para uma educação pré-escolar,
respaldadas pelos documentos orientadores da Creche e pelas políticas para a edu-
cação das crianças pequenas do período e por fim as considerações finais.
264
Hugo, filho da professora Gaby. Quando chegou à creche ainda era bebê, com
cerca de quatro meses, e no início da entrevista disse que quase não se recordava
do que viveu naquele tempo. Mas, se lembrava das diferentes histórias que lhe
contaram ao longo da vida. Frequentou a creche até o ano de 1977, quando sua
mãe mudou de emprego e passou a cursar o ensino primário em um “colégio de
freiras”, depois disso, voltou a instituição somente para visitar sua tia que conti-
nuou como professora da Escola Paulista de Enfermagem (OLIVEIRA; PANI-
ZZOLO, 2020).
Não se recorda precisamente da creche ou dos colegas, mas guarda vagas
lembranças que não tem certeza de que se são memórias daquele tempo ou fo-
ram criadas representações depois de ouvir os adultos contar a mesma história
repetidas vezes. De acordo com Halbwachs (2006), as memórias são sistemas de
classificações sociais e mentais que sempre tomam como base os “meios sociais
efervescentes” ao passo que, se há o afastamento desses meios sociais as memórias
passam a ser substituídas por outras criadas coletivamente a partir do que se vive.
Ainda, o mesmo autor afirma que “Não lembramos da nossa primeira infância
porque nossas impressões não se ligam a nenhuma base enquanto ainda não nos
tornamos um ser social” (p. 43). De acordo com o autor, a criança é capaz de
criar memória quando se reconhece pertencente a um grupo específico, seja como
membro de uma comunidade, da igreja, da família, da escola, entre outros.
Durante a narrativa Alessandra conta que ia para a creche de ônibus com
sua mãe que a carregava em um braço e no outro a sacola de marmitas para o dia,
além de segurar a mão de sua irmã Daniele que também era pequena. No entanto,
destaca que algumas coisas a marcaram profundamente, como a situação de ter
sua tia Rosa como professora da escola. Lembra-se que havia um murinho e uma
janela de onde observava o movimento da escola.
A gente ia muito visitar minha tia. Enquanto ela dava aula nós
olhávamos pela porta e pela janela. Ela estava sempre presente nos
momentos em que eu estava na escola. [...] Eu sentia muita alegria,
com a “Taia” era sempre alegria, é um orgulho que existiu a vida
inteira, desde muito pequenininha. Mesmo pequena, eu a olhava
sempre ensinando as outras pessoas, e ela tinha uma fala BONITA, e
eu já tinha uma noção de que era uma pessoa ensinando as outras, ela
sempre foi muito querida (Entrevista de Alessandra).
265
até atingir uma forma boa. Investe sobre o objeto e o transforma”. As alunas da
enfermagem e as demais funcionárias se encantavam com a presença das crianças.
Olha, sempre foi festa, e me pegavam no colo e beijavam muito. Mi-
nha mãe comentava que eu era a mais gordinha e mais simpática.
Ela fala que eu era uma “bebê muito simpática!”, e ela precisava até
ficar me limpando... porque era muito beijada. Eu era muito sorri-
dente, de sorriso fácil (Entrevista de Alessandra).
266
podem ser retomadas e reconstruídas ao passo que são utilizadas uma composição
artificial, que aqui se configuram por meio de perguntas e imagens que ajudaram
a entrevistada a compor suas memórias e apresentar suas representações vividas
na instituição.
267
forma importante de evidência histórica” (p. 25). Dito isso, é possível afirmar que
a imagem ou neste caso, a fotografia, representa o olhar de determinada pessoa
em determinado tempo e sob um ponto de vista específico. O cenário da foto-
grafia é composto por recortes e posições que compõem um quadro não ingênuo,
que expressa representações de uma época, não necessariamente uma realidade.
Alessandra frequentou a Creche até 1977, devido sua pouca idade trouxe
poucas recordações, a maioria delas afloradas com a intervenção de imagens ou
situações contadas por outros entrevistados. De acordo com Halbwachs (2006), o
esquecimento de determinado período está relacionado à perda de contato com
os que o rodeavam, diante disso, novos quadros sociais se constituem e formam
outras combinações complexas e dialéticas que podem ser ressignificadas à medi-
da que retomadas em contexto significativo. A memória e o esquecimento mar-
cam as reconstruções das histórias, desse modo, o esquecimento é tão necessário
quanto a memória.
Daniel Silva de Oliveira126 começou a frequentar a Creche em 1984, já
em um período de implementação das propostas institucionais. Iniciou logo que
sua mãe voltou da licença-maternidade e permaneceu até 1990, quando ingressou
no primeiro ano em um “colégio cristão”. Apresenta suas memórias de infân-
cia daquele cotidiano escolar, que segundo ele, são de um tempo em que “já era
maiorzinho”. Entre suas lembranças, guarda as questões alimentares, dilema que
acompanhou sua permanência na creche:
Eu mamei no peito até muito tarde, acho que por conta disso para
poder suprir essa alimentação! [...] Minha mãe tentou, com três pe-
diatras, docentes aqui da escola, dietas diferentes para que eu pudesse
comer. Porque se podia não crescer direito ou alguma coisa do tipo.
E então, minha mãe acabou suprindo com a amamentação, como eu
tive uma irmã quatro anos depois e a outra com oito anos de diferen-
ça, minha mãe não parou de dar leite, então eu tomei até o final do
infantil (Entrevista de Daniel).
268
De acordo com Oliveira (2019), naquele tempo a Creche ainda não for-
necia alimentação para as crianças. “Daniel revela que sempre foi muito seletivo
para se alimentar. Sua mãe preparava sua comida de forma saudável, mas ele co-
mia basicamente alface e cenoura, e rejeitava os demais alimentos” (p.153). Havia
uma situação que o desagradava muito durante os horários das refeições e revela:
“[...] às vezes eu ficava no refeitório, acho que poucas vezes, mas me marcou também de
ter que ficar sozinho no refeitório, com prato de comida esperando até ser vencido pelo
cansaço” (Entrevista de Daniel).
Se recorda que permanecia sentado no refeitório, com o prato na sua fren-
te, durante muito tempo, sempre procurava uma maneira de se “livrar da comida”.
Revela que não comia e sempre dispensava um pouco no lixo, escondendo embai-
xo dos papéis, quando não tinha ninguém olhando.
Lembra-se das professoras que o acompanhavam e de que as chamava de
“tias”, o que era comum para a época, dada a falta de formação específica para
exercício da profissão. Recorda-se que algumas “[...] eram bem bravas, bem rígidas,
mas a parte com as crianças era muito legal” (Entrevista de Daniel). Segundo ele,
a rigidez se apresentava na maneira incisiva de falar das professoras ou quando
chamavam sua atenção, situações que o faziam achar que eram “mais bravas”. Re-
corda-se com clareza de detalhes do prédio e afirma que não havia muito espaço
para suas brincadeiras.
Daniel se recorda do espaço e o descreve como “[...] meio cinza, nada muito
colorido que se parecia mais com um hospital do que com uma escola” (Entrevista de
Daniel). Relata que era pequeno para as brincadeiras das crianças, e se recorda de
situações vividas ali, como o acompanhamento dos médicos e dentistas, das ati-
vidades de costura e de outras situações que considera de “utilidade para a vida”.
As memórias de Daniel revelam sua familiaridade e as relações afetivas
constituídas naquele espaço. Nesse sentido, Certeau (2014) alerta para a distinção
entre lugar e espaço nas relações de coexistência. Segundo o autor, lugares são
comuns e não estabelecem familiaridade, portanto, não definem identidade, mas
uma configuração espacial que a priori não pressupõe vínculo, é inerte, implica
ordem. O espaço não indica nenhuma estabilidade, mas se dá vida ao lugar pelas
ações dos sujeitos. As práticas cotidianas se operam no espaço, que com as especi-
ficidades constroem e estruturam histórias distintas associadas a um movimento
e transformação. “Em suma, o espaço é um lugar praticado” (CERTEAU, 2014,
p. 184).
As práticas reveladas durante a narrativa estavam em consonância com
os documentos orientadores da instituição. De acordo com Oliveira (2021), a
creche de iniciativa privada, mantida pela Escola Paulista de Medicina e dirigida
pela Escola Paulista de Enfermagem, não era vinculada a nenhum órgão oficial
da Educação ou da Saúde. No entanto, seguia os mesmos pressupostos teóricos
269
da época para instituições educativas de crianças pequenas, com o diferencial de
funcionar também como campo de estágio e atuação da Enfermagem Pediátrica.
Diante disso, foi considerada necessária a criação de orientações para o funciona-
mento dessa instituição. Marianna Augusto, responsável pela Creche, organizou
a escrita dos manuais Comunidade Infantil Creche, 1ª e 2ª edição (AUGUSTO
1979, 1985)127.
A edição de 1979 é fruto das práticas que já vinham acontecendo na Cre-
che, composto por 100 páginas. A segunda edição de 1985, composta por 164 pá-
ginas apresenta atualizações sobre a concepção de educação, que segundo a autora
“[...] cuja finalidade é ampliar e analisar melhor alguns aspectos da assistência à
criança” (AUGUSTO, 1985, Prefácio).
Os Manuais tinham como objetivo “[...] orientar para a organização e fun-
cionamento das creches que atendam às exigências da pediatria contemporânea e
ofereçam melhor assistência à criança” (AUGUSTO, 1979, Prefácio).
127 Este texto não tem como objetivo a análise detalhada deste material, (AUGUSTO, 1979, 1985), e sim
utilizá-lo como parte de um compósito das representações cotidianas das memórias vividas na Creche.
Para saber mais consultar: OLIVEIRA, Rosana Carla. Paulistinha, a creche universitária da UNIFESP:
a construção identitária de uma história multifacetada (1971 a 1996). Disponível em: https://reposito-
rio.unifesp.br/handle/11600/59534
270
Figura 3- Manual Comunidade Infantil - Creche, 1985
271
materno aparece como prescrição até os 12 meses de idade, no entanto, a creche
garantiu o direito da amamentação de Daniel até quase os 7 anos de idade.
A seguir serão apresentadas as memórias de Daniel e Patrícia relativas ao
período considerado pré-escolar que também estarão em consonância com os
documentos orientadores da creche.
128 A lambada nasceu da junção de ritmos brasileiros, do forró nordestino, do carimbó amazônico, da
cumbia e do merengue latino-americanos. Foi grande sucesso popular no Brasil em meados da década
de 1980, sucesso internacional no ano de 1989. Disponível em https://www.infoescola.com/
musica/lambada/ - Acesso em 05/01/2022.
272
nação, chegando até a idealizar um casamento. As festas comemorativas guiavam
as práticas, tanto nas atividades ditas de coordenação motora como para as apre-
sentações para as mães, que eram muito valorizadas pela comunidade escolar.
273
Figura 6- Daniel, Festa de Carnaval- 1988
274
Eu me recordo que estava sempre fantasiando coisas nas brincadei-
ras, eu era uma outra coisa que não eu! Era um super-herói, na época
eu era bem pequeno e bem magro, até porque não comia nada, então
acabava me imaginando sempre assim MAIS FORTE, MAIS PO-
DEROSO. Então, eu assistia às vezes filme do Schwarzenegger, e
ficava fantasiando que eu era daquele jeito, daquele tamanho que era
forte e grande. Sempre estava envolvido em uma fantasia (Entre-
vista de Daniel).
275
Aprendi a ler no pré, e quando eu fui para o primeiro ano já
sabia ler. Me lembro que toda semana a gente ia até a biblioteca
e pegava livrinhos emprestados. Tinha livros desde o pré até o
quarto ano.
A gente podia trazer os livros para casa, e acho que podia fi-
car por uma semana. Me lembro que eles anotavam o nome de
quem pegava atrás do livro e era como uma biblioteca mesmo
(Entrevista de Patrícia).
276
De acordo com Oliveira (2019) as festas viraram uma tradição da Paulis-
tinha, por volta do ano de 1995, passou-se a alugar um clube no mesmo bairro
para a realização das festas junina e de encerramento anual. Os eventos contavam
com apresentação das crianças de diversas faixas etárias, barracas de comidas, be-
bidas e brincadeiras. Também se cobrava um valor pelos ingressos de entrada. As
narrativas revelam que os valores arrecadados eram doados a Associação de Pais e
Mestres que revertia todo o dinheiro em benefício das crianças.
As transformações são apontadas na organização dos espaços, quando pa-
redes, portas e corredores se renderam às decorações infantis, o que tornava o am-
biente ainda mais acolhedor para as crianças e suas famílias. As cores, os desenhos
decorativos, alfabetos, os varais com atividades, os desenhos na lousa, as mesinhas
nas salas e o uniforme são algumas marcas que indicavam a materialização da
nova proposta e educação pré-escolar da Paulistinha (OLIVEIRA, 2019).
Observa-se que o bem-estar das crianças, o atendimento para além dos
cuidados, a preocupação com o desenvolvimento, a aprendizagem e as relações
estabelecidas sempre foram uma preocupação dos responsáveis pela creche.
E´ importante destacar que alterações, transformações e mudanças acom-
panham a história das instituições escolares que não são estáticas, mas dotadas
de sentidos e movimentos. Magalhães (2018) afirma que a implantação das ins-
tituições educativas reconfigura, integra, transforma e deixa marcas profundas no
local em que elas se encontram, em uma relação dialética entre indivíduos, local e
instituições, “[...] os indivíduos reconhecem-se, organizam-se, participam, cum-
prem funções, crescem, educam-se” (p. 46).
Até o ano de 1995 a Paulistinha atendeu até a pré-escola, em 1996 iniciou
o atendimento das crianças até 4ª série. A partir desta data a escola adotou uma
estruturação muito peculiar. A creche foi instituída como autarquia federal e o
ensino fundamental, tempos depois, foi registrado como escola particular, su-
pervisionada pela Diretoria de Ensino do Estado de São Paulo, subsidiados com
recursos da Associação de Pais e Mestres, Associação Paulista para o Desenvolvi-
mento da Medicina e Governo Federal.
Considerações finais
277
A creche foi chamada de Comunidade Infantil durante o período em que
funcionou no prédio da Enfermagem. Ali ficaram as memórias, as boas recorda-
ções, também algumas frustrações de um tempo em que os envolvidos buscaram
acertar e oferecer o melhor atendimento dentro de suas possibilidades. “Comuni-
dade Infantil, a gente queria dar uma ideia de valorização das relações, de aconchego,
comunidade é tudo que te aproxima do outro” (Entrevista Conceição).130
As narrativas revelaram os diferentes lugares de fala dos entrevistados
(CERTEAU, 1976), com apropriações diferentes acerca da mesma institui-
ção formadas pelas distintas identidades constituídas. As condições materiais,
os modos como eram organizados os espaços e as estruturas de funcionamento
indicavam a materialidade das propostas pedagógicas dessa instituição (MAGA-
LHÃES, 2004). O referencial de Halbwachs (2003) ajudou a compreender que as
memórias construídas coletivamente foram responsáveis pelas tradições passadas
de geração em geração, no entanto, é preciso destacar que os esquecimentos tam-
bém são parte da memória coletiva e causam a descontinuidade das experiências
históricas. Grande parte das pessoas que chegou à instituição, após a década
de 1980, desconhece a história vivida do prédio da Enfermagem. Contudo, as
memórias apontam para as rupturas e principalmente para as permanências de
uma história iniciada ainda na década de 1970, que seu reconhecimento permite
entender a identidade multifacetada dessa instituição educativa.
Fontes
-Entrevistas
- Documentos institucionais
130 Conceição Vieira da Silva Ohara - entrevistada em 16 de julho de 2018. Foi professora do curso de
Enfermagem Pediátrica durante a década de 1980 e acompanhou os estágios na Paulistinha.
278
AUGUSTO, M. Comunidade Infantil Creche. Rio de Janeiro. Ed. Guanabara Koogan
S.A., 1979.
-Fotografias
Alessandra, área externa da Creche – 1972 (Fonte: acervo particular de Suzana Pimenta,
apud OLIVEIRA, 2019, p. 114).
Daniel, Festa junina – 1985 (Fonte: acervo particular Daniel Oliveira apud OLIVEIRA,
2019, p. 154)
Daniel, Festa de Carnaval- 1988 (Fonte: acervo particular de Daniel Oliveira apud
OLIVEIRA, 2019, p.155)
Patrícia, Festa de encerramento de ano – 1995 (Fonte: acervo particular de Sidnéia Vogel
apud OLIVEIRA, 2019, p. 204).
Referências
BARTHES, R. Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Lisboa: Edições 70, 2009.
BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
279
HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo:
Centauro, 2006.
280
ROSEMBERG, F. Organizações Multilaterais, Estado e Políticas de Educação
Infantil. Cadernos de Pesquisa- Fundação Carlos Chagas, n. 115, pp. 25-63, março,
2002.
281
13. VESTÍGIOS DA CULTURA ESCOLAR
OITOCENTISTA EM SÃO PAULO: O CASO DA
ESCOLA DE PRIMEIRAS LETRAS DE SANTA
IFIGÊNIA
(1832-1846)
Introdução
131 A pesquisa vem sendo desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da
282
O texto aqui apresentado tem como objetivo analisar a constituição de
aspectos da cultura escolar oitocentista na organização e desenvolvimento da ins-
trução pública paulista. A partir das contribuições da História Cultural, tem-se
como corpus de análise seis relatórios elaborados pelo professor Carlos Jozé da
Silva Telles, no período de 15 de abril de 1832 a 06 de agosto de 1846, quando
atuou como mestre da Escola de Primeiras Letras da Freguesia de Santa Ifigênia.
O texto organiza-se em cinco partes. Na primeira, “São Paulo e a instru-
ção pública Oitocentista”, discorro sobre o desenvolvimento da instrução pública
na Província de São Paulo, com a preocupação de evidenciar que a pobreza, o
isolamento, o analfabetismo, a centralização política e as burocracias inibiam as
iniciativas locais e os investimentos para o desenvolvimento da instrução primá-
ria. Na segunda parte, “Do interior das escolas para os discursos sobre a instrução:
organização, práticas de ensino e o alunado da Escola de Primeiras Letras de
Santa Ifigênia” busco compreender as estratégias de Carlos Jozé da Silva Telles
para constituir-se mestre, ao mesmo tempo, analisa-se aspectos da cultura escolar
daquele estabelecimento. Na terceira parte “Cultura material na Escola de Pri-
meiras Letras de Santa Ifigênia” apresenta-se a provisão material e seu papel na
configuração da cultura escolar daquela instituição. Na quarta parte, “Indisciplina,
vigilância e repressão na Escola de Primeiras Letras de Santa Ifigênia” aponto as
estratégias do professor Telles para manter a ordem e a disciplina em sua tur-
ma. Nas considerações finais, busco demonstrar que investigar a prática desse
professor permite apreender parte do desenvolvimento e organização da instru-
ção pública e da cultura escolar em São Paulo, contribuindo para a compreensão
contribuindo para a compreensão da organização e desenvolvimento de parte da
instrução primária no oitocentos paulista.
Universidade Federal de São Paulo E ao NIPELL – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Ensino
de Língua e Literatura, sob orientação do Prof. Dr. Fernando Rodrigues de Oliveira.
283
essenciais para a formação de um modelo de cidadão que deveria conduzir a ad-
ministração de toda a sociedade ocidental. Para ele, caberia ao Estado propiciar
de maneira gratuita e ao alcance de todos os cidadãos a instrução pública: ricos ou
pobres, citadinos ou camponeses, burgueses ou trabalhadores, homens e mulhe-
res. Para que essa igualdade pudesse ser atingida “[...] como princípio da justiça
eterna [...] em sua plenitude”. (p. 19).
Condorcet foi o precursor na proposta de uma instrução pública, gratuita,
obrigatória, universal e laica, sem discriminação, tendo influenciado as concepções
de escolarização primária na Europa do século XVIII, especialmente na França,
assim como suas ideais também contribuíram para a organização e estruturação
da escola pública no Brasil.
Pode-se afirmar que no Brasil, o desenvolvimento da instrução pública
nos moldes propostos por Condorcet se funda, ao menos sob o ponto de vista da
legislação, com a carta Outorgada de 1824 que instituiu o ensino fundamental
público e gratuito e, sobretudo, com a promulgação da Lei de 15 de outubro de
1827, primeira lei geral da instrução pública, em que o Estado assumia seu papel
na promoção e criação de instituições educacionais. A lei preconizava que prédios
escolares apropriados e utensílios para o ensino deveriam ser preocupações das
autoridades e prescrevia em seu Art. 6º o que deveria ser ensinado:
Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações
de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as
noções mais gerais de geometria prática, a gramática de língua
nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina da reli-
gião católica e apostólica romana, proporcionados à compreen-
são dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do
Império e a História do Brasil (BRASIL, 1827, Art. 6º).
285
Os alunos estudavam as lições durante as cinco horas de aula
e o professor ou um aluno adiantado as tomava à última hora,
armado de palmatória. Era um vozerio confuso: cantava-se a ta-
boada, fazia-se exercícios de soletração e decoração em voz alta.
Os castigos físicos eram comuns: a vara de marmelo, o coque, o
puxão de orelhas sobre grãos de milho; a prisão no recreio e após
as aulas, os xingamentos não faltavam (p. 166-167).
De acordo com Egas (1926, p. 47), para Raphael Tobias de Aguiar, pre-
sidente da Província de São Paulo, de 17 de novembro de 1831 a 11 de maio
de 1835, “a instrucção primária, os socorros públicos e os estabelecimentos de
caridade mereciam a melhor attenção por serem elementos de civilisação”. Na
tentativa de reunir informações sobre os diversos ramos da administração pú-
blica, o presidente decretou a Lei Provincial de 11 de abril de 1835 e incumbiu
desse serviço o engenheiro Daniel Pedro Muller, que em seu Ensaio d’um quadro
Estatístico da Província de São Paulo (1838), apontava existir na Província, em
286
1836, nove escolas de primeiras letras masculinas; quatro nacionais com 125 dis-
cípulos e três provinciais, com 132; uma feminina nacional, com 49 alunas, e uma
provincial, com 14.
Considerando o recorte espacial da Província de São Paulo, o bairro de Ifi-
gênia, assim referida pelos ruões e pelas mulheres do comércio ambulante, contou
no primeiro quartel do século XIX com alguns mestres régios, o professor Luiz da
Costa Faria que lecionava em uma modesta casa defronte ao Hospital Militar, o
Pe. Joaquim Monteiro que ministrava os primeiros ensinamentos na rua Nova de
São José e a mestra Maria Francisca, cujos ensinamentos ocorriam em sua própria
residência à rua do Rosário. Esses mestres ensinavam a uma ínfima população
infantil, pois os pequenos filhos dos notáveis aprendiam as bases da leitura e das
contas no recesso familiar ( JORGE, 1999).
Em observância à Lei de 15 de outubro de 1827, providenciou-se a ins-
talação da Escola de Primeiras Letras de Santa Ifigênia. Em hábil documento,
Dom Manuel Gonçalves de Andrade, bispo diocesano e vice-presidente da Pro-
víncia, nomeou, em 16 de outubro de 1830, João Francisco dos Santos como o
primeiro professor dessa escola. Entretanto, em junho de 1831, o mestre solicita-
ria demissão motivando nova provisão no dia 11 do mesmo mês. Foi escolhido,
então, Carlos Jozé da Silva Telles, antigo mestre na Freguesia de Nazareth, que
em 27 de agosto, em requerimento à Câmara, pedia “attestação para receber o seu
ordenado” ( JORGE, 1999, p. 112).
Segundo Taunay (1977), o professor Carlos Jozé da Silva Telles era ho-
mem respeitável e de idade madura. Nascera em 1786, filho de Jaime da Silva
Telles, português, figura de destaque no meio paulistano e um dos maiores par-
tidários de Francisco Inácio de Souza Queiroz. Era irmão de João Batista Telles
de Queiroz, panfletista político que redigia A Matraca, uma das mais exaltadas
folículas políticas dos anos regenciais e de Jaime Telles, vereador da Câmara de
São Paulo e envolvido em prol da Santa Casa de Misericórdia. A literatura aponta
que o mestre assumira a escola de Santa Ifigênia aos 45 anos e passado um tempo
de sua assunção, a cadeira teria sido vaga, e um único candidato apresentou-se ao
seu preenchimento, o próprio professor Carlos, que examinado perante o Conse-
lho do Governo vira-se aprovado ao cargo. Algumas evidências da trajetória do
professor Silva Telles podem ser identificadas em seus relatórios. Nesse propósito,
toma-se, aqui, seis mapas elaborados pelo mestre.
No que concerne sua estrutura gráfica, os relatórios dos professores das
escolas de primeiras letras produzidos nas décadas de 1820, 1830 e até meados
dos anos 1840 eram chamados de mapas. Esses documentos eram manuscritos
e, segundo Barra (2001, p. 19), “tinham medidas relativamente grandes: alguns
podiam chegar a 0,50m de largura por 1,00m de altura”. Em sua maioria, esses
documentos eram acompanhados por ofícios que informavam remetente e des-
287
tinatário e em alguns casos, a lei, portaria ou ordem que estava se cumprindo.
Os seis mapas do professor Carlos Jozé da Silva Telles examinados aqui tinham
como destinatário o Dr. Diogo de Mendonça Pinto, Inspetor Geral da Instrução
Pública. Contata-se que, na parte superior de cada mapa, o mestre registrava o
nome da escola seguido da expressão “relação dos escolares”, mês e ano corrente.
Abaixo, identificam-se colunas com a indicação de algumas categorias criadas
pelo mestre, como: “número”; “nomes”; “idade”; “ano e dia da matrícula”; “o que
sabia quando se matriculou” e “frequência”. Essas categorias foram sendo progres-
sivamente substituídas por termos mais simples como “dia da matrícula”, “exame
da entrada”, “aproveitamento”, “comportamento”. Em alguns mapas foram acres-
centados os termos “o que estão aprendendo”, “estado actual”, “faltas”. Na parte
inferior de cada mapa, o professor cria um campo de “observações” e, nele, expõe
informações sobre o ensino, condições estruturais da escola, suas dificuldades no
exercício docente seguida da quantidade de crianças da turma, data e assinatura
do mestre.
Figura 1: Relação dos escolares da Escola de Primeiras Letras de Santa Ifigênia desta
Cidade – 1834.
288
poder público. Foi observado que os mapas explicitavam ao menos cinco conjun-
tos de dispositivos:
a) contabilidade, expresso na numeração crescente incluída na
primeira coluna ou no artifício de informar o número de alunos
frequentes ao final do mapa (como realizado para os anos de
1832, 1833, 1837, 1838 e 1839); b) identificação, manifesto no
cuidado em especificar nome e idade, além de filiação, natu-
ralidade, condição e cor; c) gestão, perceptível no registro de
dia de matrícula ou entrada e faltas, evidenciando o início do
trabalho docente com cada aluno e suas interrupções; d) avalia-
ção pedagógica, incluída no campo aproveitamento ou no das
diversas disciplinas; e) avaliação social e comportamental, em
geral emergente na forma de observações gerais, outras infor-
mações ou observações e procedimento (VIDAL, 2012, p.58,
grifos da autora).
289
de Santa Ifigênia. Pode-se inferir que seus mapas funcionavam como reguladores
de “dispositivos pedagógicos” e evidenciavam o que Escolano (2017), denominou
de “cultura política”, uma vez que esses documentos apontavam para uma prá-
tica gerada nas grandes burocracias que administravam os sistemas educativos
e revelavam “todo o jargão por meio do qual se veicula a linguagem das normas
(estrutura, dispositivos de governo e controle, reformas, inovações curriculares e
didáticas, relações com os atores do sistema)” (p. 122).
Nessa conjuntura, como produto de uma “cultura política”, além de siste-
matizarem dados sobre as burocracias e a prática escriturística da escola, os mapas
sinalizavam o aproveitamento de cada criança, dava visibilidade aos conhecimen-
tos apreendidos, a aplicação de procedimentos e método de ensino utilizado, além
de apontarem critérios para a qualificação e a indicação da naturalidade, filia-
ção e condição dos alunos, implicando um minucioso registro das características
pessoais dos discípulos. Tomadas como “dispositivos pedagógicos”, as categorias
revelavam que o registro do professor extrapolava a determinação legal e a forma
como ele organizava seus mapas traz indícios sobre a formalidade do desenvolvi-
mento da instrução pública, indicando que além da frequência dos alunos, caberia
ao regente da turma um registro burocrático, disciplinar e pedagógico, pois:
Era na confluência dessas três ordens de fazeres que os docentes
construíam sua experiência profissional. ao mesmo tempo, cons-
tituíam o que era ou deveria ser a experiência discente, consig-
nada em rubricas que iam da definição dos caracteres biológicos,
sociais e jurídicos dos alunos ao estabelecimento de hierarquias
de conteúdos e modos de aprendizagem (VIDAL, 2012, p. 59).
290
quentava as aulas no período da tarde. Antônio Maria Guartin, 9 anos, filho do
Tenente Antônio Guartin, matriculado no dia 22 de junho de 1831: “soletrava
algumas syllabas e fazia algumas letras, tudo mal”. De acordo com o professor, o
aluno, “esta recordando grammática, reage oraçoens muito fáceis, faz companhias
simples, e quebrados de ordinários, e poucos problemas de geometria, pouco
adiantamento em escrita” (TELLES, 1834, p.1). Referente à frequência, o pro-
fessor asseverava que Antônio Maria Guartin “há quinze dias não vêm à escola”.
Observa-se no mapa de 1834 que os alunos João Maria de Araújo Pinto, 6 anos;
Antônio José, João Pedroso e Gregório de Oliveira, 7 anos, “nada sabiam”. Ape-
nas, João Ribeiro de Escobar, 6 anos “lia nomes” e “está principiando arepartir e
vai escrevendo ainda mal” e era um aluno frequente. Apesar de o professor indicar
que o aluno João Maria de Araújo Pinto “nada sabia”, no campo de referência “o
que aprende”, atestava-se que a criança “esta no ABC, poucas letras, escreve na
louza” e apresentava “muito pouca frequência” (TELLES, 1834, p.1).
Os apontamentos desse mapa não permitem afirmar a simultaneidade no
ensino da leitura e da escrita, contudo, comprovam o cuidado do mestre em re-
gistrar o nível de aprendizagem da leitura e da escrita de seus alunos, identificado
os estágios de conhecimento dos discípulos, como, por exemplo, “está no ABC
e poucas lettras escreve nas louzas”; “já faz nas louzas sofrivelmente, as letras da
carta e do ABC grande e pequeno”; “escrevia muito mal e lia livro sofrivelmente”;
“principiava ler nomes, mas poucas letras fazia”.
Referente ao ano de 1837, o mapa produzido pelo professor Telles apre-
senta informação de que o aluno Bernardino Lopes de Camargo, 13 anos, filho
de Maria Miquelina das Dores, matriculado no dia 19 de setembro, “lê e escreve
sofrivelmente e faz as 4 operações com números inteiros e quebrados e compa-
nhia não bem”. O aluno João Monteiro Barbosa, de 8 anos, “principia analisar a
gramática, faz as 4 operações com números inteiros e quebrados [...] ainda mal
pouco de geometria, letra sofrível”. Além disso, as informações trazem indícios
sobre o modo como se ensinava, pois, sinaliza a lousa como suporte para o ensino
da escrita, o que implicava outros materiais e um princípio de método de escrita
conhecido como debuxar: “exercício que treinava os movimentos da mão para o
exercício com os traslados, exemplares de escrita usados pelos alunos nas escolas
e que serviam de modelo no talhe da letra” (BARRA, 2001, p. 29).
Sabe-se que pela Lei de 1827, o ensino dava-se pelo método mútuo ou
lancasteriano. A defesa de tal método residia no fato dele ser útil para a amplia-
ção do processo de instrução das massas correspondendo ao ideário civilizatório
iluminista que se irradiava a partir da Europa. Nesse contexto, o sistema do mé-
todo mútuo aparecia, segundo Faria Filho (2000, p. 141), como “[...] poderosa
arma na luta para fazer com que a escola atingisse um maior número de pesso-
as.”. Entretanto, ao longo do Oitocentos, o ensino mútuo sobreviveu, pelo menos
291
nas intenções e nos registros, sendo criticado pela brevidade da permanência do
docente com cada aluno e pela morosidade do aprendizado. Conforme apontou
Marcílio (2014, p. 70), tanto na escola de primeiras letras da Sé quanto na de
Santa Ifigênia, seus professores “[...] não sabiam como executá-lo, não dispu-
nham do material escolar necessário para viabilizá-lo e mantinham seus métodos
tradicionais de ensino individual”. Este fato pode ser comprovado pelo formato
de listas com que o professor Telles registrava as informações de seus alunos
nos mapas indiciando um enfoque individual e a heterogeneidade dos graus de
aprendizado dos seus discípulos. Quando se tratava de meninos mais adiantados,
o mestre descrevia a situação como “leitura, escrita aritmética, gramática” e, para
os discípulos iniciantes, ele relatava que estavam lendo “carta de nomes” ou “em
ABC” e “principiando a escrever”, sem, no entanto, mencionar outras disciplinas.
É possível inferir que o registro daquilo que o aluno sabia ou não sabia de-
marcava na prática do professor Telles sua preocupação em atender o tripé escolar
da escola do início do século XIX, “ler, escrever e contar”; ademais, expressava o
cuidado com a “boa” letra e os exercícios de aritmética, indo da soma à divisão.
Observando o conjunto de mapas, verificou-se que as turmas do professor
Telles eram numerosas. A turma de 1832 contava com 43 alunos; a de 1834 era
composta por 33 alunos; a de 1837 era composta por 36 alunos; a turma de 1838
era composta por 41 alunos; a de 1839 era composta por 51 alunos e a de 1846
era composta por 52 alunos. As faixas etárias demonstraram tratar-se de agrupa-
mentos multisseriados. À título de exemplos, os meninos Gabriel Friz Coutinho;
Francisco Antônio Maria e Guartin e Francisco de Paula Mendes, da turma de
1833, tinham 6 anos; Jozé Alpino e João Antônio Maria Rangel, da mesma classe,
tinham 16 anos. Completavam essa turma outros meninos com idade entre 12,
13, 14 e 15 anos. Essa diversidade etária foi averiguada nos seis mapas examina-
dos. Além das características pessoais, o professor sinalizava as condições sociais
de seus discípulos. O mapa de 1840 indicava que o mestre tinha quatro alunos
de famílias da elite, sete de filhos legítimos de camadas inferiores, dez ilegítimos,
um exposto e um escravo. Apenas cinco discípulos estavam há mais de um ano na
escola, os demais haviam entrado ao longo de 1840.
Destarte, a Escola de Santa Ifigênia sofria com a baixa frequência de seus
alunos. No mapa de 6 de agosto de 1846, por exemplo, o discípulo Domingos José
de Freitas teria se ausentado naquele ano 58 vezes; Benedito José de Amparo, fi-
lho de Luciano José de Amparo, possuía 44 faltas; Francisco José de Toledo, filho
de José Manoel de Toledo, ausentara-se 36 vezes. A heterogeneidade dos grupos
e a baixa frequência dos discípulos levantam hipóteses sobre as dificuldades en-
frentadas pelo mestre na condução do ensino. Independentemente do nível de
conhecimento de cada criança, qual estratégia utilizava para contemplar todos os
292
alunos? Como ele organizava sua classe? Como administrava a gestão do tempo?
Havia materiais suficientes para todos os seus discípulos?
Os relatórios do mestre indicam que na Escola de Santa Ifigênia, as precá-
rias condições estruturais, somada ao desinteresse das famílias, dificultava o de-
senvolvimento da instrução. No mapa de 8 de outubro de 1837, o professor Telles
justifica a ausência do registro de oito crianças: “não fiz menção de mais oito
meninos porque em razão do tempo que não apparecem, os supunho em outras
escolas, pois hé costume, entre mesmo pessoas de educação polida, a tirarem os
filhos da escola sem a menor attenção aos mestres” (TELLES, 1837, p.2). Em se-
guida, reclamava da falta de materiais para o ensino de Geometria: “como minha
aula nunca teve os utencílios necessários ao ensino de geometria com especiali-
dade, não tem sido possível aproveitamento neste ramo” (TELLES, 1837, p. 2).
293
transmitidos e aprendidos na escola, bem como as rotinas, os métodos de ensino
e a materialidade escolar.
A partir desse entendimento, a cultura material desempenha um papel
importante pelas quais a rotina escolar une objetos e ações. Na acepção de Souza
(2007, p. 169), a cultura material escolar corresponde ao conjunto dos artefatos
necessários ao funcionamento das escolas envolvendo “[...] mobiliários e aces-
sórios, infraestrutura do prédio escolar, equipamentos e utensílios destinados ao
ensino das disciplinas”. Entende-se que a cultura material é parte da cultura es-
colar e considerar esses artefatos como elementos constituintes da cultura escolar
pressupõe reconhecê-los como indispensáveis ao fazer pedagógico e para a com-
preensão do funcionamento e organização das instituições educativas.
Escolano (2017), aponta os objetos, imagens, escritas e vozes como defi-
nidores da cultura material e essa como elemento da cultura da escola. Por esta
acepção, Escolano (2017, p. 122-123) aponta que a provisão material da escola
constitui fontes e símbolos pelo qual é possível entender os “silêncios” da me-
mória histórica da escola, “o logos que governa a gramática interna do escolar, o
intricado e labiríntico conjunto de dispositivos e rotinas, que se impõem como
práticas ordinárias”.
Desse modo, os efeitos das ações do uso dos objetos, a configuração física
da escola, a sua organização espacial e temporal e a simbologia que a materialida-
de ocupa no contexto escolar permitem que se fale em uma dimensão empírica da
cultura escolar. É nesse âmbito da cultura escolar que se configura a cultura mate-
rial amparada pelas práticas escolares, que segundo Escolano (2017, p. 120) “[...]
são um reflexo funcional e simbólico das formas de entender e governar a prática”.
Sobre este aspecto, foi possível constatar nos mapas do professor Telles di-
versas reclamações sobre a ausência de utensílios destinados ao ensino, demons-
trando que a precariedade estrutural e a falta de recursos materiais eram uma
constante na escola de Primeiras Letras de Santa Ifigênia. O fato contrasta com a
afirmação de Hébrard (2001), ao indicar a necessidade de três fatores para que o
fenômeno da instrução se concretizasse: mestres capazes de ensinar a escrita; um
corpo de doutrina pedagógica e,
enfim, os instrumentos que possam permitir a escolarização
dessa aprendizagem que durante muito tempo foi artesanal, li-
mitada à relação dual do mestre com o aprendiz: tal será o papel
da ardósia e do quadro negro para os iniciantes: ou do caderno
para os que já têm a mão mais treinada; e também, a partir de
1860 o papel da pena metálica que libera mestres e alunos da
servidão limitadora da pluma de ganso (HÉBRARD, 2001, p.
117).
294
No mapa de 10 de julho de 1837, o professor Telles encaminhou uma
solicitação de “objectos” para a escola de Santa Ifigênia. Conforme se observa na
figura 2, é possível identificar quais objetos a lista incluía:
Figura 2: Relação dos objetos precisos para a Escola de Santa Ifigênia – 1837.
295
“louzas”, “massos de lápis de pedra”, “canivetes para as penas”, “canetas”, “tintei-
ros de chumbo”; o ensino e aprendizagem pela oralidade, repetição e memori-
zação mediados pelos suportes que regiam as atividades de leitura: “diccionário
de Moraes”, “exemplar do encino mútuo”, os objetos que denunciavam as péssi-
mas condições da escola e eram destinados à melhoria e comodidade do espaço
escolar: “vidros p. as janelas”, os artefatos que tinham por finalidade manter a
disciplina impondo comportamentos e valores que se articulavam em torno de
práticas repressivas comprovando o espaço escolar como lugar de autoridade e
anulação das diferenças: “fechadura para a prisão” e aqueles materiais relacio-
nados diretamente às condições de saúde e higiene do ambiente escolar: “pote”,
“barril”, “gamela”, “latrina”.
Os utensílios solicitados pelo professor aduzem a dinâmica de um modo
adequado do magistério, evidenciam os modos de fazer, de adaptar e de produzir
uma cultura escolar, porém evidenciam também os percalços na constituição da
instrução paulista naquele contexto. A falta absoluta de condições de higiene, a
carência de material didático, a falta de água e até mesmo de materiais para que
os discípulos pudessem satisfazer suas necessidades fisiológicas atestam para o
descaso do governo em providenciar espaços adequados para a concretização da
instrução pública. Além da ausência de objetos para o ensino, o professor aponta-
va que na Escola de Santa Ifigênia faltavam:
Pote ou barril para água, coco de beber e uma gamela para
receber os restos de água, uma pia de cal e tijolo, para os
meninos verterem águas que escoe para a latrina; a latrina
necessita ser rebocada r caiada para ter mais luz e os bura-
cos devem ser diminuídos e uma porção de parede que sirva
para dar luz deve ser tapada porque se comunica ou devassa
o seminário. O local da escola tem dois grandes defeitos. O
primeiro, ser escura a metade das tarde, e muito escura nas
tardes de inverno e só pode receber alguma luz pelo lado do
quintal do seminário; o segundo é o insuportável mau cheiro
da latrina, em mudança de tempo, só quem sofre pode saber
o que padece com dores de cabeça, transtornos de estômago
(Mapa do professor Carlos Jozé da Silva Telles da escola de
Santa Ifigênia, 10 de julho de 1837) – Arquivo Público do
Estado de São Paulo – APESP.
296
Indisciplina, vigilância e repressão na Escola de Primeiras Letras de
Santa Ifigênia
297
“muito teimoso”, “gênio forte”, “comportamento sofrível”, e quando observamos
as queixas de falta de respeito e insulto. Por fim, é preciso ressaltar o caráter
delator que os mapas do professor Carlos Jozé da Silva Telles testemunham, es-
pecialmente, aquele que aponta informações sobre as suas condições de saúde. No
mapa de 30 de setembro de 1840, o mestre assinalava: “o mau estado de saúde em
que me acho por atacar-me o cérebro e todo o sistema nervoso me impediu de
dar a relação no tempo compreendido, do que peço desculpas” (TELLES, 1840,
p.2). O apontamento do professor denota o papel denunciativo que ele atribuiu
ao mapa, já que faz uso deste instrumento para explicitar sua condição física em
decorrência do exercício no magistério. Queria ele, talvez, relacionar o enfraque-
cimento de sua higidez às urdiduras do ofício docente?
Considerações finais
O objetivo deste texto foi analisar alguns dos aspectos da cultura escolar
oitocentista na organização e no desenvolvimento da instrução pública paulista.
Com este propósito tomou-se como fonte privilegiada um conjunto de seis ma-
pas de frequência elaborados pelo professor Carlos Jozé da Silva Telles, entre 15
de abril de 1832 a 06 de agosto de 1846, período em que ele atuou como mestre
da Escola de Primeiras Letras da Freguesia de Santa Ifigênia.
O exame desses mapas permite localizar vestígios de como se constituiu
parte da cultura escolar paulista no início do século XIX. Para além de uma fun-
ção burocrática de escrituração, feita para o poder público com o objetivo de
comprovação do efetivo exercício docente, essa documentação contribui para se
pensar a propagação de ideias, princípios, critérios e normas sedimentadas ao
longo do tempo nas instituições educativas. Enquanto objetos culturais, na acep-
ção de Chartier (2002), esses mapas sinalizam elementos úteis na compreensão
de como a realidade social é construída a partir de um determinado contexto
temporal e espacial, partindo das representações que se constituem em uma de-
terminada cultura.
O formato em listas com colunas que indiciam um registro individual de
cada aluno e as categorias utilizadas pelo professor para quantificar e qualificar
seus discípulos apontam para uma produção que buscou uma racionalidade ad-
ministrativa para a época, uma logicidade identitária dos sujeitos e uma coerência
pedagógica. A análise aqui apresentada possibilita desenhar aspectos da experiên-
cia docente no início do século XIX evidenciando as relações de hierarquia esta-
belecidas entre professor seus discípulos e famílias, a preocupação do registro do
“adiantamento” dos alunos quanto à aprendizagem do ler, escrever e contar, bases
298
da instrução pública primária no oitocentos e as condições estruturais e culturais
em que se desenvolveu a instrução pública em São Paulo.
Os mapas também oferecem pistas sobre as formas como o professor exer-
cia o seu ofício, revelando um modus operandi do magistério, identificando di-
mensões imbricadas no saber-fazer pedagógico, enfatizando o papel do mestre
como agente da construção do Estado Imperial e partícipe da cultura escolar.
À vista disso, os relatórios fornecem indícios da organização dos tempos e dos
espaços escolares e da função que a materialidade ocupou nas práticas educativas
daquela época. Sobre este aspecto, volta-se às contribuições de Escolano (2017),
ao referenciar os objetos escolares como artefatos que não são autônomos e atem-
porais, mas sim produções culturais que falam de nossas tradições, de nossos mo-
dos de pensar e sentir e de nossa memória individual e coletiva. Desse modo, os
objetos escolares não podem ser vistos como neutros, já que sua incorporação
às práticas escolares comporta significados e valores que são adicionados à sua
materialidade física e funcional, definem modos de pensar o ensino e contribuem
para a manifestação da cultura escolar. É essa materialidade que permite entender
os objetos físicos como elementos importantes para compreender os processos
históricos.
Portanto, concluí-se que os mapas apontam aspectos da cultura escolar
da Escola de Primeiras Letras de Santa Ifigênia evidenciando o intercambio das
relações e práticas do professor Carlos Jozé da Silva Telles, o modo como ele
ensinava e organizava as suas diferentes classes e as iniciativas que buscou para
ultrapassar as adversidades que comprometiam o desenvolvimento da instrução
pública em São Paulo no período oitocentista.
Referências
BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1827
– Primeira parte. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional 1878, p. 71-73. Disponível em:
299
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38398-15-outubro-
1827-566692-publicacaooriginal-90222-pl.html. Acesso em: 23 dez. de 2021.
JORGE, C. de A. História dos Bairros de São Paulo: Volume 23: Santa Ifigênia.
Departamento do Patrimônio Histórico. São Paulo, 1999.
MARCÍLIO, M.L.S. História da Escola em São Paulo e no Brasil. São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo. Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial,
2014.
300
SOUZA, R. F. História da Cultura Material escolar: um balanço inicial. In:
BENCOSTTA, M. L. (org.). Culturas escolares, saberes e práticas educativas: itinerários
históricos. São Paulo: Cortez: 2007.
TAUNAY, A. História da cidade de São Paulo sob o Império. Volume VI. (1842-1854).
Coleção da Secretaria Municipal de Cultura Departamento do Patrimônio Histórico
Divisão do Arquivo Histórico. São Paulo, 1977.
301
14. “INSTRUINDO E DOUTRINANDO A INFÂNCIA”:
A AMPLIAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO ENSINO
NAS ESCOLAS DE PRIMEIRAS LETRAS EM SÃO
BERNARDO (1865-1889)
Adriana Santiago
Claudia Panizzolo
Introdução
132 Indica-se a leitura dos trabalhos sobre esta temática de PANIZZOLO, C. João Köpke e a Escola Re-
publicana: criador de leituras, escritor da modernidade. 359 f. Tese (Doutorado em Educação) Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP, São Paulo, 2006. SOUZA, R. F. Templos de civilização:
a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo: (1890-1910). São Paulo: Funda-
ção Editora da UNESP, 1998. SOUZA, R. F. Alicerces da pátria: História da escola primária no Estado
de São Paulo (1890-1976). Campinas, SP: Mercado das Letras, 2009.
133 Ver a respeito da natureza do trabalho dos mestres de Primeiras Letras VIDAL, D. G. Mapas de fre-
quência a escolas de primeiras letras fontes para uma história da escolarização e do trabalho docente em São
302
Conviviam de perto com reivindicações de melhores salários e condições
de trabalho adequadas. Acrescenta-se ainda que quem se aventurava ao exercício
da função não era o mais preparado professor, necessitando de formação (VI-
DAL, 2008; VILLELA, 2016).
A fim de sanar a necessidade formativa, foi criada em São Paulo, ainda na
primeira metade do século XIX, a primeira Escola Normal paulista em 1846134.
A escola funcionou por 21 anos, de 1846 a 1867, e após esse período a Província
de São Paulo ficou sem a Escola Normal até 1874, quando foi criada a segunda
Escola Normal paulista. Contudo a escola deixou de funcionar no ano de 1878,
sendo reaberta em 1880 pela terceira vez, por Laurindo Abelardo de Brito, egres-
so do colégio. Nesse hiato de tempo, muitos sacerdotes exerceram a função de
mestres de Primeiras Letras, que passavam por exames, geralmente aprovados
mais por questões práticas e de relações do que por mérito.
No dia 13 de janeiro de 1876, o jornal A Província de São Paulo realizou
uma matéria em que citava a condição das escolas e dos professores de Primeiras
Letras:
Enquanto ao que respeita às condições materiais das escolas, o
que há, só é digno de lástima e censura. [...] Nomeia o professor,
dá-lhe um ordenado que mal chega para não morrer de fome,
e impõe-lhe a obrigação de abrir uma aula em tal rua ou tal
bairro, sem perguntar se o professor tem casa, sem indagar por
que meios há dele prover-se de uma sala. O professor procede
em consequência. Como é pobre, e escasso o ordenado, instala
a escola em uma saleta qualquer, com tanto que seja barata e
lhe não absorva o ordenado. A título de mobília procura dois
ou três bancos de pau, uma cadeira para si, uma mesa onde ao
menos possa encostar os cotovelos (A PROVÍNCIA DE SÃO
PAULO, 1876, p. 1)
Paulo na primeira metade do século XIX. Revista Brasileira de História da Educação, n° 17, maio/ago.
2008.
134 Em 9 de novembro de 1846 foi instaurada a primeira Escola Normal de São Paulo. Localizada em um
prédio junto à Catedral da Sé (prédio pertencente aos religiosos), a escola se destinava à formação de
professores primários e possuía como regente e único professor o Dr. Manoel José Chaves. Mais infor-
mações, consultar https://univesp.br/noticias/escola-normal-de-sao-paulo. Acesso em: 09 out. 2021.
303
retórica e português no Colégio Americano. Também esteve nos holofotes no
campo político.
As críticas realizadas pelo jornal convergem para apontar fragilidades na
Instrução Pública imperial, com vistas a uma nova proposição educacional, que
dialogasse com os pressupostos defendidos pelos republicanos, uma vez que as
mudanças se apresentavam de forma iminente, em especial no tocante à situação
dos professores.
Dessa forma, na segunda metade do século XIX algumas das mudanças na
Instrução Pública paulista se deram no âmbito da legislação, com criação de or-
denamentos legais que normatizaram o funcionamento das escolas de Primeiras
Letras, sendo uma época marcada por criação de regulamentos.
Além disso, foi um período também marcado pela expansão do ensino
primário em São Paulo, havendo necessidade de criação de novas cadeiras de
Primeiras Letras. Uma das justificativas para o aumento da demanda pode ser
atribuído ao processo imigratório, que aumentou consideravelmente a população
e a procura por escola.
O recenseamento geral do Império de 1872 e os recenseamentos de 1890
e 1920135 demonstram o crescimento da população brasileira e são essenciais para
uma reflexão sobre a necessidade iminente de ampliação de escolas, impactando
na criação de novas cadeiras de Primeiras Letras.
A Freguesia136 de São Bernardo, atual município de São Bernardo do
Campo, localizado na região metropolitana do estado de São Paulo, não esteve
à parte no tocante às diretrizes da Instrução Pública paulista, em especial em
relação à ampliação de escolas, em boa parte também relacionado ao grande fluxo
imigratório ocorrido em toda Província.
O presente estudo se propõe a compreender como as escolas de Primeiras
Letras foram estabelecidas no contexto local, com vistas a problematizar o per-
curso trilhado pela Instrução Pública são-bernardense durante a segunda metade
do século XIX, bem como refletir sobre a expansão de oferta de ensino com a
criação de novas cadeiras a partir da análise das fontes no tocante aos métodos,
materiais e estrutura física dos locais onde as escolas de Primeiras Letras foram
estabelecidas.
O excerto que dá título a este trabalho foi retirado de um relatório de um
professor, escrito no ano de 1880. A escrita retrata de forma clara a visão do mes-
136 Freguesia era uma divisão territorial urbana estabelecida a partir de uma paróquia erigida, equivalendo
à menor divisão administrativa que poderia existir.
304
tre de Primeiras Letras acerca da necessidade de uma melhor estruturação das
escolas, conforme redação na íntegra:
[...] Só tive em vista desempenhar a minha missão quase sacer-
dotal, instruindo e doutrinando a infância. Segundo diz Dali-
gault137: o professor deve evitar na presença de seus alunos todo
e qualquer modo indeciso, de por em prática qualquer exercí-
cio, porém para assim ser, é preciso que esta escola seja bem
montada e que também as circunstâncias do lugar lhe sejam
favoráveis (PROFESSOR DA ESCOLA DE PRIMEIRAS
LETRAS DO SEXO MASCULINO DO ALTO DA SER-
RA, 1880, p. 1, grifo nosso).
137 O francês Jean Baptiste Daligault foi responsável pela criação do manual Cours Pratique de Pédagogie,
distribuído aos inspetores e aos professores de Instrução Pública elementar pelo governo provincial,
na segunda metade do século XIX. Recomenda-se a leitura do artigo O papel do professor de primeiras
letras no manual de pedagogia de Jean Baptiste Daligault: reflexões sobre a formação de virtudes e valores
(ROCHADEL, O.; SCHMIDT, L. L., 2017, p. 139-157). Disponível em: https://periodicos.sbu.
unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8645836. Acesso em: 26 ago. 2021.
305
sário atentar para aspectos que dificilmente seriam identificados em uma análise
de escala maior.
Com base no conceito ‘história vista de baixo’ (SHARPE, 2011), interes-
sou verificar a organização das escolas, sobretudo no tocante aos espaços, mobílias
e materiais, com vistas a compreender como era o atendimento das crianças, em
especial das menos abastadas, a partir da categoria analítica “pessoas comuns”.
Para Sharpe (2011) entender a constituição das camadas populares que, ao longo
de anos, não foi centro de atenção de historiadores, faz com que recordemos “que
a nossa identidade não foi estruturada apenas por monarcas, primeiros-ministros
ou generais” (p. 60).
O texto foi organizado em duas seções e considerações finais, sendo a pri-
meira nomeada A expansão das escolas de Primeiras Letras em São Bernardo – 1865
a 1889, que aborda a expansão das escolas a partir da criação de novas cadeiras na
Freguesia ao longo da segunda metade do século XIX, de 1865 a 1889. A segunda
seção “Sem o competente material é absolutamente impossível o ensino primário” – as
condições e espaços escolares da freguesia de São Bernardo realiza um estudo de como
estavam organizadas as escolas, em especial em relação a espaços, materiais e
mobília.
138 A Calçada do Lorena foi construída no século XVIII. Tratava-se de um projeto determinado pelo
governador da Província de São Paulo, Bernardo José Maria Lorena, e possuía 50 quilômetros de
extensão calçados em rochas, que eram escolhidas e trabalhadas manualmente, ligando a cidade de
Santos à cidade de São Paulo (SESC São Paulo, 2021).
139 Recomenda-se a leitura do artigo A escola, a pobreza, a distância e o trabalho infantil: o desafio da frequên-
cia na escola de primeiras letras da freguesia de São Bernardo (1830 - 1864). Santiago, A.; Panizzolo, C.
Revista Educação & Linguagem, v. 24, p. 289-307, 2021. Acesso em 11 jan. 2022.
306
De acordo com a série São Paulo do Passado: Dados Demográficos, organiza-
do pelo Núcleo de Estudos de População (NEPO), da Universidade Estadual de
Campinas - UNICAMP (2000), levantamentos realizados por MARTINS (1988)
e dados dos censos dos anos de 1872 e 1890, publicados pelo IBGE, São Bernardo
ao longo dos anos apresentava os dados populacionais constantes na tabela 1:
Ano População
1804 1.620
1836 1.407
1838 1.347
1854 2.020
1872 2.687
1890 7.276
Fonte: São Paulo do Passado: Dados Demográficos (2000); MARTINS (1988); Recenseamentos 1872 e
1890 (IBGE).
307
de meninos a qual me parece possuir as habilitações necessárias
para exercer o referido cargo. O que levo ao conhecimento de
vossa senhoria, esperando que mereça sua aprovação e que serão
dados por vossa senhoria os passos precisos a fim de tornar-se
efetiva a minha proposta (BONILHA, 1863, p.1).
140 A Lei n.º 34 de 16 de março de 1846 previa em seu artigo 8.º que “A frequência promiscua de ambos os
sexos em uma escola, só é permitida nos lugares onde não existam escolas diversas para ambos” (SÃO
PAULO, 1846).
308
Cecília Fortunato Toledo assumiu a docência da primeira escola de Pri-
meiras Letras para o sexo feminino da Freguesia de São Bernardo no ano de 1865,
sendo que nessa ocasião apenas 20 alunas das 38 matriculadas frequentaram a es-
cola (SANTOS, 1992). Com o passar dos anos novas escolas de Primeiras Letras
foram estabelecidas na Freguesia de São Bernardo durante o período imperial.
A fim de melhorar a compreensão de como compuseram-se as escolas ao
longo da segunda metade do século XIX, foi realizada a organização de dados
de forma cronológica, considerando-se, ainda, a localização dos bairros da época,
conforme quadro 1 e tabela 1, respectivamente.
Frequentes
documento
Frequência
Professor
Data
Sexo
Ano
Ernesto Antonio de
1873 São Bernardo (sede) Masc. 15/10/1873 44 26 59%
Andrade
Leopoldina Augusta de
1873 São Bernardo (sede) Fem. 15/10/1873 20 18 90%
Andrade
Ernesto Antonio de
1874 São Bernardo (sede) Masc. 1/11/1874 32 18 56%
Andrade
309
Matriculados
Localização
Frequentes
documento
Frequência
Professor
Data
Sexo
Ano
%
Leopoldina Augusta de
1874 São Bernardo (sede) Fem. 1/11/1874 18 14 78%
Andrade
Estação de São João Visterbo de Santa não
1876 Masc. 06/09/1876 10 ---
Bernardo Rosa informado
1878 São Bernardo (sede) Fem. Antonio Franco da Rocha 23/11/1878 12 10 83%
1878 São Bernardo (sede) Masc. Antonio Franco da Rocha 23/11/1878 28 26 93%
Estação de São
1878 Masc. Antonio Franco da Rocha 23/11/1878 24 22 92%
Bernardo
1879 São Bernardo (sede) Fem. Antonia Vidal Domingues 31/10/1879 11 10 91%
Gabriella Emilia de
1883 Alto da Serra Fem. 1/6/1883 18 16 89%
Menezes
Gabriella Emilia de
1883 Alto da Serra Fem. 2/11/1883 20 17 85%
Menezes
Isabel Maria de Oliveira
1883 São Bernardo (sede) Fem. 23/11/1883 24 24 100%
Salles
Joaquim Lobo Bastos
1883 São Bernardo (sede) Masc. 23/11/1883 26 21 81%
(substituto)
Gabriella Emilia de
1884 Alto da Serra Fem. 2/6/1884 20 13 65%
Menezes
Izabel Maria de Oliveira
1884 São Bernardo (sede) Fem. 2/6/1884 24 23 96%
(substituta)
310
Matriculados
Localização
Frequentes
documento
Frequência
Professor
Data
Sexo
Ano
%
Gabriella Emilia de
1885 Alto da Serra Fem. 1/6/1885 14 12 86%
Menezes
Gabriella Emilia de
1885 Alto da Serra Fem. 23/11/1885 27 20 74%
Menezes
Gabriella Emilia de
1886 Alto da Serra Fem. 3/11/1886 20 17 85%
Menezes
não
Francisco das Chagas
1888 Rio Grande Masc. 19/11/1888 27 infor-
Alvarenga
mado
Fonte: Tabela elaborada pela autora a partir de consulta aos ofícios e relatórios redigidos pelos professores
311
Quadro 2: Escolas de Primeiras Letras do sexo masculino em 1885
312
pulação é avultada, sendo só de estrangeiros superior a vinte, além dos filhos de
pais brasileiros” (SALLES, 1886, p. 2).
No ano de 1893, em 18 de julho, já no período republicano, foi realizado
um levantamento dos estabelecimentos de Instrução Pública de São Bernardo,
verificando-se um número de 12 escolas públicas e 4 particulares. As informações
estão contidas em um documento escrito por Manoel Jorge de Oliveira Catta
Preta e Ítalo Setti, que assinam em nome do Conselho de São Bernardo. O docu-
mento foi encaminhado pela Câmara Municipal de São Bernardo para o diretor
geral da Instrução Pública. Os dados foram organizados em uma tabela, a fim de
facilitar a visualização e compreensão.
Paranapiacaba – Distrito de
16 Alto da Serra Masculino 22 Pública
S. André
Fonte: Tabela elaborada pela autora com base em PRETA; SETTI (1893)
313
Nota-se, dessa forma, um crescimento do número de escolas em São Ber-
nardo, que nos primeiros anos republicanos passou a ser de 12 escolas públicas.
Observa-se a menção às escolas particulares, no total de 4 estabelecimentos, sen-
do que uma delas funcionava no período noturno.
A próxima seção mostrará com mais detalhes as condições de funciona-
mentos das escolas de Primeiras Letras da Freguesia de São Bernardo.
É possível identificar que com o passar dos anos houve mudanças na Ins-
trução Pública de São Bernardo, desde o aumento de escolas de Primeiras Letras
até as alterações nos conteúdos escolares desenvolvidos pelos professores. No en-
tanto, no que diz respeito aos espaços onde as escolas funcionavam, constata-se
que o locus permaneceu sendo a casa dos mestres de Primeiras Letras.
Os locais onde as escolas funcionavam estiveram em pauta no Brasil ao
longo do século XIX, sendo que ambientes domésticos e improvisados preva-
leciam no caso das escolas de Primeiras Letras. Outra situação que se somava a
esse cenário era a existência de escolas masculinas e femininas, cujos espaços eram
organizados, prioritariamente, de forma apartada, apesar da existência de escolas
mistas em São Paulo, que atendiam a ambos os sexos.
Essas discussões apontavam para a necessidade da construção de espaços
específicos para as escolas. Faria Filho (2016) afirma que “No Brasil, a educação
escolar, ao longo do século XIX, vai progressivamente, assumindo as característi-
cas de uma luta do governo do estado contra o governo da casa” (p. 145).
Todavia, essa discussão levou muito tempo para se concretizar em ações
em alguns locais, como foi o caso da Freguesia de São Bernardo. Mesmo após o
advento da República a estrutura arquitetônica permaneceu de forma inalterada
durante anos.
A pobreza da maior parte da população são-bernardense aparece de forma
recorrente nos documentos analisados, indicando que as crianças não conseguiam
trazer utensílios para as aulas e que não tinham condições de adquirir material.
O professor de Primeiras Letras da sede, João de Viterbo Santa Rosa, as-
sim escreveu ao inspetor geral da Instrução Pública sobre a situação de escola, em
relatório redigido em 19 de março de 1877:
Tenho a honra de levar ao respeitável conhecimento de V.Sa.
que hoje aqui entrei em exercício do meu cargo, como indigno
professor de Primeiras Letras desta Freguesia.
314
O deplorável estado em que encontra a escola deste lugar, sem
móveis nem utensis de qualidade alguma, força-me a rogar a
V.Sa. se digne providências a respeito. Julgo escusado dizer que,
sem o competente material é absolutamente impossível o en-
sino primário, ora, sendo isto um perfeito axioma, espero que
V.Sa., a bem do primeiro sucesso do público serviço se dignará
providenciar, sem demora (SANTA ROSA, 1877, p. 1, grifo
nosso).
315
que não sendo possível retirar os móveis e livro de matrículas do antigo local onde
funcionava a escola, fez adaptações para continuar a lecionar.
Em Alto da Serra, o mestre de Primeiras Letras relatou em um documento
escrito em 1880 que pediu ajuda das pessoas da região para improvisar bancos
para as crianças sentarem-se. Responsabilizou a falta de condição material por
não conseguir implementar outro método de ensino que não fosse o individual.
Nas palavras do professor:
Porém eu que desde os primeiros passos que dei já tive de hesi-
tar ante um poderoso obstáculo: a falta de mobília, não obstante
procurei remediar este inconveniente, recorrendo-me à algumas
pessoas do lugar e não fui servido, não porque faltasse vontade
de servirem-me, pois mesmo não podiam auxiliar-me, senão em
a assistência de seus filhos em minha escola. Resolvi-me pois,
e consegui arranjar uma mesa pequena e uma cadeira, e como
assentos dos alunos arranjei algumas tábuas, sustentadas nas
extremidades por caixões, porém para os exercícios escritos
dos alunos, luto sempre com dificuldade. Em minha escola
tenho 16 alunos frequentes, como consta os livros de matrícula
e pontos e o mapa que junto a este tenho a honra de remeter
a V.Sa. Com estes 16 alunos gasto só em escrita quase o tem-
po todo, de que posso dispor, porque tenho guia-los indivi-
dualmente por falta de mesas (PROFESSOR DA ESCOLA
DE PRIMEIRAS LETRAS DO SEXO MASCULINO DO
ALTO DA SERRA, 1880, p. 2, grifos nossos).
316
mos recursos que o professor da escola de Primeiras Letras do sexo masculino,
passou a ser alvo de desconfiança.
Cabe mencionar que os professores de Primeiras Letras recebiam valores
por parte da Província de São Paulo para adquirir utensis até meados de 1870,
conforme consta no Livro de Moveis e Utensis (Distribuição de 1854 a 1872)142.
A partir de 1872, havia participação do Inspetor do Tesouro e a Coletoria para
aquisições dos materiais escolares. Alcântara (2019) realizou um estudo sobre os
investimentos da administração de São Paulo e deflagrou que, apesar dos recursos
que eram dispostos pela administração pública, “a professora ou o professor se
responsabilizavam pela compra do material e mobiliário escolar, quando não com
o dinheiro da Província, com o seu próprio” (p. 7).
A escrita da professora Gabriella Emilia de Menezes deixa claro que a
escola onde lecionava estava funcionando em condições precárias, tendo a situ-
ação se agravado com a melhoria da escola masculina, pois agora estava sendo
comparada, sendo necessário dispor de quantias do “próprio bolso” para sanar
algumas necessidades da escola. Observa-se nessa situação que os pais, os quais
outrora foram chamados de “desleixados”, uma vez que não valorizavam o ensino,
na verdade fiscalizavam o que ocorria no interior das escolas, a ponto da profes-
sora dignar-se a investir seus poucos recursos em papel, pena e tinta para atender
suas alunas.
Com o passar dos anos, os documentos revelaram que a situação continu-
ava preocupante quanto aos recursos materiais escolares, a exemplo do relatório
escrito em 1.º de junho de 1886 pelo professor substituto Manoel Eduardo de
Almeida ao inspetor geral da Instrução Pública, Arthur Cesar Guimarães, em
que afirmou que:
A escola está funcionando na casa de minha residência que
presta-se perfeitamente a esse fim. Está provido e muito peque-
no número de móveis, e estes em mau estado; pois que constam
apenas de 3 bancos e 6 bancos pequenos aliás insuficientes para
o grande número de alunos que conta esta escola (ALMEIDA,
1886, p. 1).
142 Cf. mencionado por Wiara Rosa Alcântara (2019) no artigo Obrigatoriedade escolar e investimento na
educação pública: uma perspectiva histórica (São Paulo, 1874-1908). Arquivo Público do Estado de São
Paulo. Livro de Móveis e Utensis (Distribuição de 1854 a 1872). Secretaria da Instrução Pública de
São Paulo. Ordem 1124.
317
minha residência que a isto presta-se perfeitamente. Quanto a móveis, os poucos
que existem, e em mau estado são insuficientes para as aulas, cujo número tende
sempre a crescer” (SALLES, 1886, p. 1).
A professora Antonia Vidal Domingues, ainda escreve, em 2 de novembro
de 1886 ao inspetor geral da Instrução Pública, que “A escola funciona em uma
sala da casa de minha residência, inteiramente independente da escola do sexo
masculino. Os móveis que possui esta cadeira já estão em mau estado e insuficien-
tes para o número de alunos” (DOMINGUES, 1886, p. 1).
Pode-se inferir que a defesa da permanência das aulas na residência dos
professores seria uma forma de economizar no aluguel de um espaço próprio para
lecionar. Todavia, há algo em comum nas escritas, desde Lustosa em 1830 até me-
ados da década de 1890: as condições de funcionamentos das escolas de Primeiras
Letras eram precárias, não havendo mobília e materiais adequados.
Considerações Finais
318
foi cumprida em São Bernardo, ofertando educação pública para crianças de di-
ferentes condições sociais.
Contudo, apesar de novas cadeiras de Primeiras Letras terem sido criadas
na Freguesia ao longo da segunda metade do século XIX, identificou-se que pou-
cas crianças foram atendidas, pois a distância, a pobreza e, consequentemente, a
necessidade de trabalho infantil, foram fatores que impactaram a frequência à
escola. Somados a esses fatores, está a precariedade de materiais, locais e condi-
ções de trabalho dos mestres de Primeiras Letras, sob os quais pousava a respon-
sabilidade de gerir sua sala com os poucos recursos que recebiam da Província e,
quando não, assumiam com recursos próprios as demandas para garantir que as
aulas acontecessem.
Os avanços obtidos acerca da expansão da oferta escolar em consequência
do aumento de cadeiras de Primeiras Letras ao longo da segunda metade do sé-
culo XIX são notórios, ainda que lá permanecessem os mesmos problemas quanto
às condições de funcionamento das escolas no tocante à estrutura e materiais. A
partir da perspectiva da História vista de baixo, é possível afirmar que a condi-
ção social e econômica foram fatores preponderantes para que a escola não fosse
acessada pela maioria das crianças são-bernardenses, sendo que os registros dos
professores apontam que as que conseguiram frequentar não tinham condições
de adquirir material adequado.
Fontes documentais
319
DOMINGUES, A. V. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da
Província de São Paulo pela professora da Freguesia de São Bernardo, em 2 de novembro de
1886, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.
320
SALLES, M. O. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da Província
de São Paulo pela professora substituta da Freguesia de São Bernardo, em 1 de junho de
1886, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.
SÃO PAULO. Relatório sobre o estado da Instrução Pública Provincial, 1861, Arquivo
Público do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/
site/acervo/repositorio_digital/relatorios_educacao. Acesso em: 17 fev. 2021.
Referências
321
MARTINS, J. S. A escravidão em São Bernardo, na colônia e no império. São Bernardo
do Campo: CEDI, 1988.
SHARPE, J. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História:
novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 2011.
322
15. OS IDEAIS RENOVADOS DE ENSINO ASSOCIADOS
À EXPERIÊNCIA FESTIVA NAS ESCOLAS
PRIMÁRIAS PAULISTAS (1900-1960)
323
primárias143. As festas escolares constituíram-se, inicialmente, propaganda do sis-
tema de ensino público gratuito, laico e republicado que se desejava para todos e
todas, função prevista especialmente para as festas de inauguração, aniversário e
encerramento do ano letivo, para em um segundo momento, a partir da década de
20 do século XX, associarem-se aos ideais de renovação dos métodos de ensino
preconizados pelos reformadores da Escola Nova.
Por meio das festas, as crianças poderiam construir uma representação ini-
cial do que significava ser aluno de uma determinada instituição escolar em um
contexto social e histórico específico, muitas participaram das comemorações an-
tes mesmo de estarem regularmente matriculadas, como assistentes dos eventos,
elaborando a partir da experiência imagens sobre o que era ser estudante, qual era
o trabalho da escola e a sua função social. As solenidades eram ocasiões públicas
nas quais os alunos poderiam se apropriar de maneiras diferentes dos espaços e
dos saberes escolares (decorando as classes e a escola, apresentando-se nos pátios
e espaços externos, estudando poetas e os simbolismos das datas), ou seja, atri-
buindo a essas ocasiões, significados diferentes dos rotineiramente vivenciados na
escola, os festejos eram situações de ruptura da rotina escolar.
Por outro lado, há que se considerar que a realização das festas no âmbito
escolar não se deu de forma homogênea e direta ou sem equívocos e contradições,
tampouco sem mudanças de sentidos, mas o mesmo evento utilizado em outros
âmbitos sociais e para outros fins precisou se adaptar ao seu novo contexto de
idealização e concretização, reestruturar seus elementos e técnicas que deveriam
servir a partir daquele momento (final do século XIX) a um propósito eminente-
mente educativo. Caberiam às comemorações, assim como a todas as atividades
realizadas no contexto escolar, funções de ensino e de aprendizagem, além da
divulgação de um saber característico da escola moderna, considerada, naquele
momento, o modelo ideal de escolarização.
Neste sentido, o capítulo pretende discutir como foram construídas as jus-
tificativas que contribuíram para a criação da concepção de festa pedagógica nas
décadas iniciais do século XX até meados do mesmo século, a partir da seleção
143 A escolarização primeira das crianças naquele contexto poderia acontecer em diferentes instituições de
ensino, a saber: os grupos escolares (escolas graduadas cujo método de ensino é o simultâneo), criados
em 1893, marcaram a organização dos sistemas públicos e estatais de ensino, especialmente por estabe-
lecerem mudanças importantes na organização administrativa e pedagógica da escola primária, dentre
estas a organização das festas; as escolas-modelo (criadas pela reforma de 1890 para a realização da
prática de ensino dos estudantes normalistas); escolas reunidas (cujo número de alunos não era sufi-
ciente para se formar um grupo escolar) e escolas isoladas (com um único professor e alunos de dife-
rentes idades e níveis de ensino no mesmo espaço). Além dessas distinções, existem aquelas percebidas
entre os estabelecimentos localizados na zona urbana e na zona rural (SOUZA, 1998; GALLEGO,
2003)
324
de textos e argumentos de alguns dos principais pedagogistas144 representantes da
Escola Nova, de autores de manuais pedagógicos utilizados nas escolas de for-
mação de professores, as Escolas Normais, e de artigos publicados em periódicos
de ensino. Considera-se que para se compreender o discurso pedagógico faz-se
necessária a apreensão de uma trama tecida a partir de discursos provenientes
de diferentes campos e agentes (BOURDIEU, 1990, 1996), que influenciam e
determinam as ações e discursos do campo, considerando sua característica he-
terônoma (BOURDIEU, 2004). A escolha dos autores teve como critério a inci-
dência dos mesmos nas publicações da época (periódicos e manuais de ensino),
assim como suas inserções em um projeto mais amplo que pretendeu a instituição
da modernidade pedagógica em escolas do mundo todo, prevendo para todas elas
um mesmo modelo de ensino fundamentado em discursos científicos de áreas
distintas como a medicina, a psicologia e a própria pedagogia, que então se cons-
tituía enquanto ciência (SCHRIEWER; NÓVOA, 2000).
A modernidade pedagógica caracterizou-se por um conjunto de ideias que
se organizaram no decorrer do século XIX acerca dos melhores meios de instruir
e “governar” as novas gerações, considerando o papel preponderante da escola na
produção de ‘sistemas de governo’ (NÓVOA, 2000). Entendia-se que o governo
da população passava pelo governo dos indivíduos e pelo incentivo a um compor-
tamento plenamente submetido às regras sociais, aprendidas desde a mais tenra
idade no microcosmo escolar. O período considerado desde o último quartel de
oitocentos até meados do século XX é indicado pelos historiadores da educação
como de importância fundamental para a compreensão do processo de arran-
cada do projeto sociopolítico de escolarização massiva por meio, por exemplo,
das escolas graduadas, e da constituição de uma unanimidade científico-social
representada pelo domínio da psicopedagogia de base experimental e, posterior-
mente, pelo movimento da Educação Nova nas primeiras décadas do século XX
(CARVALHO; Ó, 2009).
A ideia de modernidade no ensino esteve associada à busca do controle
e do aprendizado maximizado em todas as lições escolares, inclusive nas festas,
que se constituíram em ocasiões oportunas para a retomada dos conteúdos das
diversas matérias aprendidos nas salas de aulas, agora de maneira mais “ativa”, dos
modos e métodos de organizar e realizar as comemorações e suas funções e por
último, dos saberes e comportamentos desejados pelos professores para os estu-
dantes para apresentação ao público nessas ocasiões. Entretanto, não podemos
deixar de lembrar que:
[...] embora a modernidade, de acordo com Einsenstadt, repre-
sente um novo tipo de civilização global, isto não implica que
144 Sobre a discussão e diferenciação dos termos pedagogos e pedagogistas, ver Chateau (1978)
o fenômeno da modernidade seja automaticamente sinônimo
de uma adoção mundial de padrões uniformes de significação e
organização. Aliás, a investigação inter-civilizacional tem mos-
trado o desenvolvimento de ‘variantes básicas de modernidade’
ou de ‘programas múltiplos de modernidade’ (SCHRIEWER,
2000, p. 110-111).
145 O conceito de habitus é definido por Bourdieu (1986; 2010) como um conjunto de esquemas de per-
cepção, pensamento e ação, capazes de orientar ou coagir práticas e representações. Para a elaboração
do termo, retoma de Aristóteles a noção de hexis que foi convertida pela escolástica em habitus, cuja
definição desejou por em evidência as capacidades criadoras, inventivas, ativas do habitus e do agente;
o habitus indica a disposição incorporada, “quase postural”, de um agente em ação (BOURDIEU,
2010, p. 61), além disso, a noção serviria para referir o funcionamento sistemático do corpo socializado
(idem).
326
A atividade e a centralidade da criança nas festas educativas
146 Em linhas gerais, o programa divulgado pelos escolanovistas, foi tido mais como um conjunto de ideais
desconectas do que um efetivo conjunto de princípios de ação, segundo NÓVOA (1995), contemplan-
do 30 características que podem ser agrupadas em torno de cinco ideias centrais: 1) a escola nova é
um laboratório de pedagogia prática, devendo funcionar, preferencialmente, em regime de internato
e situar-se numa zona rural, já que ela procura criar uma ambiência saudável e de proximidade com a
natureza (excursões, acampamentos, criação de animais, trabalhos agrícolas, ginástica natural, celebra-
ção da natureza, etc.); 2) a proposta renovada pressupõe o sistema de coeducação dos sexos; 3) destaca-se,
também, uma particular atenção aos trabalhos manuais; todo o ensino deve organizar-se a partir de
métodos ativos, que estimulem o gosto pelo trabalho e a criatividade; 4) o desenvolvimento do espírito
crítico deve acontecer por meio da aplicação do método científico; 5) o cotidiano da escola nova alicer-
ça-se no princípio da autonomia dos educandos, que devem ser corresponsáveis no processo de ensino.
327
ma geral, a aplicação das leis da psicologia à educação das crianças: “dum lado, a
sociologia, e doutro lado, a psicologia genética estudando o desenvolvimento dos
seres, eis as ciências-mães desta ciência aplicada ou desta arte que é a educação”
(FERRIÈRE, 1934, p. V). O aprendizado real e efetivo só seria possível, na visão
destes autores, com a participação e envolvimento da criança em todo o processo
educativo - “o verdadeiro meio de direção, ou controle social das atividades dos
educandos, é a sua participação com outras pessoas em atividades comuns, cujo
sentido e finalidade eles adotem plenamente” (DEWEY, 1936, p. 24). Ao edu-
cando não era mais requerida a passividade da escola tradicional, mas sim uma
atuação ativa em todas as ações escolares de modo a possibilitar o pleno desenvol-
vimento de suas capacidades cognitivas, psicológicas e sociais.
A aprendizagem concebida na perspectiva do ensino ativo consistia na
aquisição gradual e individual de habilidades por cada criança, que deveria ser
levada a aprender, pelo seu educador “vigilante” e perspicaz, capaz de garantir o
meio e mobilizar os interesses dos seus educandos. Para cada educando deveria
ser afiançado os recursos para aprender por meio da observação, da pesquisa, do
trabalho, da construção, do pensamento e da resolução de situações problemáticas
relacionadas à sua própria vida. Era imperativo, desse modo, oferecer, no am-
biente educacional, oportunidades para que os alunos sentissem a necessidade e o
interesse em solucionar situações difíceis, aprender com estas situações e por fim,
resolvê-las pelo seu próprio esforço (LOURENÇO FILHO, 1963). O envolvi-
mento absoluto da criança na atividade educativa deveria ser capaz de desenvol-
vê-la integralmente, garantindo não somente o aprendizado dos conteúdos das
diferentes disciplinas, mas também de atitudes e de valores relacionados ao ato
de aprender. O interesse nas atividades escolares seria mantido pela retomada e
problematização de situações da própria vida da criança, tanto intelectual quanto
social, sendo os festejos, realizados em outros âmbitos, como por exemplo, o reli-
gioso, parte da vida social das crianças a ser retomada no ambiente escolar.
O termo atividade, considerado como o eixo articulador entre o ensino
e aprendizagem na nova proposta de ensino, esteve presente em quase todos os
estudos dos pedagogos escolanovistas, que atribuem ao conceito um significado
distinto do utilizado nos moldes tradicionais. Segundo os teóricos, o conceito
atividade já estaria presente nas metodologias de ensino tradicionais, o que não
queria dizer que essas escolas fossem ativas, já que para receberem essa deno-
minação, a atividade do educando deveria ocupar o lugar central no ensino e
ser compreendida na sua acepção mais completa, ou seja, nos seus dois sentidos
O impacto das teses e das práticas da Educação Nova sobre as realidades escolares foi relativamente
limitado e seguiu os contornos impostos pelas condições concretas de aplicabilidade em cada país, que,
de certa forma, explicou o desalento dos educadores paulistas nos anos de 1930, caracterizado pela
perda do entusiasmo inicial e da capacidade de produzir as modificações condizentes.
328
complementares assim como propunha Claparède (1933): o primeiro sentido do
conceito estaria relacionado ao caráter funcional do termo; é uma ação ou reação
que corresponde a uma necessidade, despertada por um desejo e tendo como
ponto de partida o indivíduo que age. Já a segunda acepção da palavra ‘atividade’,
relacionar-se-ia a ideia de efetivação, expressão, produção, processo centrífugo,
mobilização de energia, trabalho. Aqui, atividade se opõe a recepção, ideação,
sensação, impressão e imobilidade” (CLAPARÈDE, 1933, p.196).
As duas definições se complementariam, mas a segunda sem a primeira
não foi característica da escola ativa. O primeiro sentido estava associado às ideias
de necessidade, interesse, desejo, disciplina interior, móveis interiores, consenti-
mento do indivíduo, espontaneidade, liberdade e atenção espontânea. Já o segun-
do, significou expressão, produção (ou reprodução), exteriorização, reação, proces-
so centrífugo, invenção, movimento, trabalho (escola-oficina), ambas contrárias à
ideia de desgosto, indiferença, disciplina exterior, móveis extrínsecos, resistência,
constrangimento, obediência, desatenção, atenção voluntária (com esforço), pro-
cesso centrípeto, imobilidade, leitura (escola livresca) da escola tradicional, que
não estaria completamente desprovida da atividade do aluno, mas somente não a
compreendia de forma tão abrangente como indicavam os pedagogos renovados.
Sendo assim, não eram todas as atividades escolares que se transformaram em
aprendizado eficaz para os educandos (CLAPARÈDE, 1933):
A atividade dos alunos não basta para tornar uma escola ‘ativa’,
enquanto não se tiver dado à palavra ‘atividade’ o seu sentido
completo. A palavra ‘ativo’ é uma palavra vaga. Para muitos ‘ati-
vo’ quer dizer que se move, se agita, que executa um trabalho,
que escreve, que desenha, que faz alguma coisa em lugar de se
limitar a escutar. [...] Pergunto-me, porém, (peço perdão ao meu
amigo Bovet que o formulou por primeiro) se o termo ‘escola
ativa’ não é também ambíguo. Figura-se que ativo significa ‘que
age exteriormente’; que a atividade desenvolvida é proporcional
ao número de atos visíveis executados. Ora, digo que um indi-
víduo que pensa, sem se mexer no fundo de sua cadeira, pode
ser muito mais ativo do que um aluno que faz uma tradução de
latim (CLAPARÈDE, 1933, p.186).
329
(1978), consiste em uma experiência inteligente, na qual participa o pensamento
e existe a possibilidade de percepção das relações e continuidades não percebi-
das: “todas as vezes que a experiência for assim reflexiva, isto é, que atentarmos
no antes e no depois do seu processo, a aquisição de novos conhecimentos, ou
conhecimentos mais extensos do que antes, será um dos seus resultados naturais”
(DEWEY, 1978, p. 07). Em outras palavras, a realização de atividades previa-
mente organizadas acarretaria “naturalmente” o aprendizado pleno de todos os
estudantes. Todos os saberes escolares poderiam, desse modo, serem ensinados e
aprendidos de forma plena e eficaz.
As festas escolares como experiências educativas deveriam garantir por
meio da participação e atividade do aluno, o efetivo aprendizado tanto dos con-
teúdos escolares, quanto das normas e dos valores implícitos aos temas de cada
festa. Neste sentido, a festa alargava-se para antes e depois do próprio ato, de dois
modos distintos e complementares: em um momento anterior representado pelo
conhecimento que a festa exigia acerca dos modos próprios de organizá-la (pre-
visto nos regulamentos, circulares, experiências escolares anteriores), no estudo
dos temas dos festejos e suas relações com os outros saberes curriculares, bem
como o seu significado para a vida escolar e social.
Na organização duma festa escolar deverão tomar parte todos
os alunos. E para não alimentar vaidades nem quebrar estímu-
los, não deverá o professor marcar despoticamente atribuições
pessoais nos trabalhos de organização. Deixará que a classe se
manifeste livremente sobre a distribuição de funções, para ele
só depois objetar no que tiver por conveniente. Tendo ouvido
as opiniões dos próprios alunos, ficará o professor mais apto a
acertar na distribuição dos papéis. Depois duma festa escolar
deverá o professor organizar trabalhos práticos com ela relacio-
nados, à maneira do que fez em relação aos passeios e excursões
escolares (LAGE, 1945, p. 203-204).
330
conservar e desenvolver as energias úteis e construtivas do aluno para fazer dele
uma personalidade autônoma e responsável (FERRIÈRE, 1934, p. V). Acredita-
se que tudo que se ensina de fora ou se impõe ao educando, sem contato com as
energias interiores, tende a desequilibrar e a prejudicar o ser e por este motivo a
escola ativa procurou fazer predominar o espírito, isto é, a intuição, o coração, a
razão e a vontade na sua essência qualitativa no processo educativo.
As comemorações escolares foram apresentadas como atividades educati-
vas exemplares da concretização das premissas renovadas que colocam o educan-
do no lugar central no processo de ensino e aprendizagem, capaz de ao mesmo
tempo desenvolvê-lo cognitivamente e emocionalmente. Ela deveria ser a ocasião
privilegiada para o educando ser visto e se fazer ver, de incitar o interesse da
criança pelo evento que estava sendo comemorado, despertar seu intelecto, seus
sentimentos e suas emoções e, dessa forma, garantir o desenvolvimento integral
do estudante. As crianças sentiriam maior interesse em realizar atividades autên-
ticas e que trariam a marca da responsabilidade, sendo sua participação conside-
rada a única forma capaz de integrar o educando à escola no sentido de levá-lo a
querer e viver a vida escolar:
As atividades extraclasses propiciam essa possibilidade, uma vez
que funcionam sob responsabilidade do educando, com base na
participação em empreitadas comuns com seus colegas e profes-
sores, instituições sociais e pessoas outras da comunidade, em
atividades de verdade, que podem ser apreciadas como contri-
buições efetivas para a vida escolar e social (NÉRICI, 1960, p.
413).
331
processos mentais considerando-os, não somente em si mesmos, mas também
quanto a sua significação biológica, à sua utilidade para a ação presente ou futura,
ou seja, sua utilidade para a vida. A “educação funcional é a que toma a necessi-
dade da criança, o seu interesse em atingir um fim, como alavanca da atividade
que se lhe deseja despertar!” (CLAPARÈDE, 1933, p. 02). A sua funcionalidade
não poderia ser resumida na sua atratividade, já que nem tudo que se faz atraente
possui um valor educativo, mas naquela que teria utilidade. Infere-se a partir das
considerações deste autor, que as comemorações, ao mesmo tempo em que de-
veriam ser atrativas e garantir o envolvimento e participação de todos os autores
escolares, deveriam ser permeadas pelo seu caráter educativo.
As festas assumiriam a função de autonomizar a criança, quando ela dei-
xava de ser o mero espectador e tornava-se o protagonista do seu aprendizado, o
responsável pelo sucesso do “teatro da festa”, demonstrando os conteúdos e valo-
res aprendidos no contexto escolar. A centralidade da criança nas comemorações
é reconhecida em solenidades dedicadas exclusivamente a elas, como aconteceu
nas denominadas “festas das crianças” levadas a efeito nas décadas de 1920 e
1930, período que poderíamos considerar de consolidação dos ideais renovados
no contexto paulista.
Em São Paulo, as notícias e comentários sobre as comemorações das crian-
ças concentram-se nas páginas da Revista Escolar, que circulou no campo edu-
cacional paulista entre os anos de 1925 e 1927 e está associada à divulgação dos
princípios da escola nova nesse contexto. Ao todo são registrados cinco textos do
mesmo periódico, do qual se destacam alguns. O primeiro trata da comemoração
do dia 12 de outubro, já instituído “Dia da Criança”, no Teatro Municipal de São
Paulo para um público composto de três mil crianças das nossas escolas, onde “o
palco será adaptado de modo a bem acomodar tão numeroso corpo de cantores,
talvez o maior que se tenha organizado até aqui”. “O programa, otimamente or-
ganizado, é todo composto de músicas de reputados autores brasileiros, adaptadas
às vozes infantis” e segundo autor da notícia, seria “de prever o brilhantismo da
festa, dada a competência do seu organizador, o maestro João Gomes Junior, ins-
petor especial de música nas escolas públicas do Estado”, que não havia poupado
“esforços no sentido de conseguir os mais surpreendentes efeitos corais e a maior
disciplina musical do conjunto” (Revista Escolar, setembro de 1926, p. 86).
Por outro lado, apesar de caracterizar-se uma festa da criança, a partici-
pação da mesma é restrita a execução de cantos previamente escolhidos e, ainda
quem sabe, sofridamente ensaiados pelos alunos com o mestre. Às crianças, mui-
tas vezes, caberia uma participação passiva, restrita ao programa e com poucas
oportunidades de livre expressão, como denuncia o artigo intitulado “Conceito
Infantil” elaborado por Ephigenia C. Teixeira (1927) e publicado no mesmo pe-
riódico alguns meses depois:
332
Isto é que me dá raiva! Esta coisa é que me dana!
Já viram que espalhafato numa festa tão brilhante?!
E dizem:- Festas das Crianças! ...Eu sou criança. Sou peque-
no. Na minha cachola pequenina, só tenho gravado: - papai,
mamãe; dê-me um tostão, papai; dê-me um doce, mamãe. E,
mesmo assim, venho para a minha festa sem caber na pele, de
alegria. Mas, chego aqui, dou com meus coleguinhas a recitar
versos e poesias de Coelho Netto, Olavo Bilac ... Não sei de
quem mais. Por isso ouvi D. Francisca perguntar ao Dr. Francis-
co se ele entendeu o que disse o Chico ... Versos!... Não entendo
patavina! Nem a prosa entendo!... Poetas!... São uns aborrecidos.
Não os entendo. Não gosto deles! ... Não gosto, mesmo. Tam-
bém não gosto do Lulú, quando me ganha as bolinhas. Poetas!...
Se eles falassem a minha língua! ... Fizessem versinhos alegres,
e eu gostaria deles. Gostaria deles, tanto como da minha profes-
sora, porque fala a minha língua para que eu possa entendê-la...
Ora também eu não hei de ser sempre pequeno! E quando eu
for gente, entrarei para a academia dos poetas. Serei poeta para
vingar-me dos poetas. Farei versos que eles não entendam (Re-
vista Escolar, fevereiro de 1927, p.62-63).
333
almejou-se que, assim como as outras atividades escolares, os festejos escolares
contribuíssem com o aprendizado dos saberes escolares.
334
Não existiriam estratégias possíveis ao educador para manter o interesse
do aluno, de acordo com Dewey (1978), somente a consideração das necessidades
variáveis dos educandos e de suas características individuais poderia garantir o
êxito do aprendizado. No âmbito escolar, se o professor conseguisse despertar o
interesse do educando, sua atenção para uma série de fatos ou ideias, seria quase
certo que o aluno empregaria todas as suas energias em compreendê-los e assimi-
lá-los: “se provocarmos esse interesse para certa tendência moral ou determinada
linha de conduta, estaremos igualmente certos de que nessa orientação é que se
encaminharão as atividades infantis (...)” (DEWEY, 1978, p. 83).
Os interesses poderiam mudar no decorrer da vida escolar do educando
conforme o seu amadurecimento, ou ainda com relação às suas preferências, bem
como nas relações com o seu contexto histórico e social. Ao educador renovado
sugeria-se a não proposição de atividades preconcebidas, mas que ele permitisse
que os alunos, “livremente” escolhessem suas atividades, pois somente assim se
formaria o sentimento da disciplina, ou “o hábito de lidar com coisas sérias, tão
necessário à vida futura da criança” (DEWEY, 1978, p. 87).
Se em alguns autores percebia-se a indicação vaga das atividades a serem
desenvolvidas pelos alunos de acordo com os seus interesses, ou seja, as atividades
mudariam de escola para escola e de educando para educando, em outros, as
sugestões sobre as formas de garantir e fomentar o interesse das crianças eram
indicadas de forma explícita. Este foi o caso das produções do pedagogo Adolpho
Ferrière (1934), que concebeu o interesse como a força propulsora da atividade
educativa que, organizada de forma atraente e diversificada pelo educador, pode-
ria impedir a fadiga escolar e a distração e garantir o desenvolvimento de todas as
faculdades do educando: “fazei-a alternadamente observar, anotar, experimentar,
desenhar, construir, discutir, resumir oralmente, redigir, corrigir, e as horas passa-
rão rápidas e alegres” (FERRIÈRE, 1934, p. 110).
Ao mesmo tempo em que a atividade festiva deveria ser interessante, por
ser uma atividade diferente das rotineiramente realizadas no cotidiano escolar,
esperava-se que essas garantissem o interesse para outras questões escolares. Não
era incomum, em manuais escolares escritos por educadores na época, orientações
sobre as formas de organizar os festejos e a utilidade que os mesmos possuiriam
para o desenvolvimento do processo de ensino.
Nada mais belo do que uma festa de crianças das escolas, reuni-
das em um jardim ou em um parque, sob às vistas dos professo-
res, ora obedecendo à disciplina a que se habituaram nas classes,
ora em plena liberdade entregando-se aos folguedos próprios da
infância e confraternizando com os coleguinhas de outras esco-
las” (REVISTA DE ENSINO, Julho de 1906, p.781).
335
A recreação não deveria ser o único fim da comemoração, mas também o
ensino, e “isto obriga o professor a uma escrupulosa seleção dos motivos das co-
memorações. Devem merecer preferência os motivos patrióticos, morais e sociais,
ficando em segundo plano, os de natureza científica, técnica etc.” (LAGE, 1945,
p. 203-204). Os festejos garantiriam, desse modo, suas funções pedagógicas, “vis-
to proporcionar uma excelente oportunidade de ensinar muitas noções úteis, a rir,
a brincar ou a cantar” (VIANA, 1946, p. 396-398). Durante o período de prepa-
ração das festas, os educandos poderiam aprender literatura, história e geografia
“(matérias relacionadas com as poesias, monólogos, diálogos, etc., que fazem par-
te do programa); música (pelo menos educam o ouvido); estudariam a pronúncia
exata das palavras, e até poderiam adquirir maneiras menos grosseiras” (VIANA,
1946, p. 396-398). Ou seja, é possível assinalar que o conceito de comemoração,
para os escolanovistas, era composto das suas duas funções principais: recreativa
e pedagógica.
Em qualquer tipo de festa, o aluno já teria um comportamento melhor
do que o dos recreios escolares, segundo os autores. Nestas ocasiões, ele sentiria
a responsabilidade de ter de mostrar as habilidades adquiridas nos ensaios e de-
monstrá-las de forma satisfatória para o público que o prestigiava. Os professores,
sabendo aproveitar este fato, conseguiriam, até mesmo nos casos de alguns alunos
cujo interesse pelo estudo era fraco, a melhora substancial do desempenho escolar.
Para isso, bastaria que os educadores soubessem equilibrar o interesse dos alunos
e o aprendizado por meio das solenidades, não consentindo que o interesse pela
festa se sobrepusesse aos estudos.
O professor que organize qualquer festa escolar, deve dispor de
três qualidades fundamentais: paciência, prudência e persistência.
A festa escolar deve dignificar a Escola; de maneira alguma deve
transigir com os gostos da multidão, caindo na palhaçada ou na
bobice. Por outro lado, os programas devem ser curtos. Os peda-
gogos recomendam festas que não excedam cinquenta minutos.
É preferível efetuar três ou quatro festas pequenas, do que uma
festa de três ou quatro horas. Em conclusão: ‘a festa escolar é um
meio de ação que oferece um certo interesse, mas do qual não convém
abusar’. (LOUREIRO, 1950, p. 209-211, itálicos do autor)
336
tos elementos capazes de delinear o projeto pedagógico das comemorações no
âmbito escolar.
Considerações finais
337
relevantes que não podem ser desconsideradas quando tratamos das histórias das
escolas públicas paulistas.
Referências:
BOURDIEU, P. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 1996.
BOURDIEU, P. Os usos sociais das ciências: por uma sociologia clínica do campo
científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: A história
cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História
da Educação, n. 1, jan.-jun/2001, p. 09-43.
338
LOURENÇO FILHO, M. B. Introdução ao estudo da Escola Nova. São Paulo: Editora
Melhoramentos, 8ª edição, 1963.
NÓVOA, A. Uma educação que se diz nova. Candeias, et al. Sobre a Educação Nova:
cartas de Adolfo Lima a Álvaro Viana de Lemos. Lisboa: Educa, p. 25-41, 1995.
SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de Civilização: a Implantação dos Grupos Escolares
no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
339
16. “TEM HAVIDO NAS DISCUSSÕES UM AZEDUME,
UMA ACRÉMONIA TAL, QUE TEM SE TORNADO
DE GRANDE INCONVENIENCIA”: DISPUTA E
CONSTRUÇÃO DO HABITUS PROFESSORAL A
PARTIR DE UM PROCESSO DISCIPLINAR (1895)
Gabriel Meneses Barros
Introdução
147 Explorar esses conflitos requereria outro texto, numa abordagem mais alinhada com a sociologia e a
psicologia da educação, e que fugiriam do intento deste artigo.
148 O termo utilizado foi bem mais pejorativo, que não reproduzo aqui.
340
da? Talvez a promessa de falarem no dia seguinte teria provocado o silêncio? E o
que o silêncio tem a dizer sobre a condição docente?
Diante dessas inquietações, e enquanto tentava compreender o que aconte-
cia no interior da escola, recordei-me de minha pesquisa de mestrado (BARROS,
2020), que discorreu sobre processos disciplinares contra os professores paulistas
no fim do século XIX, em específico um impetrado contra o professor Francisco
Xavier Galvão de Moura Lacerda – então lente de Inglês na Escola Normal de
São Paulo, instituição essa de extremo prestígio na sociedade paulistana, que se
tornou referência para vários estados no Brasil (DEGANI, 1973; MONARCHA,
1999) –, no ano de 1895, e das convergências entre essas duas histórias que me
chegaram por relatos de outros, separados por mais de um século.
O que chama a atenção no processo é que Gabriel Prestes, diretor da Escola
Normal, naquela ocasião, realizou uma assembleia com os docentes e durante toda
a ata – o documento que foi anexado na abertura do processo contra Lacerda –,
impede que o professor se expresse até concluir sua linha de raciocínio, enquanto
mencionava o lente, acusando-o de estar atrapalhando o bom clima da instituição.
Lopes (2017), afirma que a repetição dos discursos tem uma função, o que
indica que as permanências históricas na forma como dois diretores tratam os
professores, distantes em mais de cem anos, possuem uma função, que é política,
sobretudo. Para a autora, a educação é cheia de pregnâncias, conceito pautado em
Merleau-Ponty, que transcende a mera ideia de continuidade das coisas, é uma
continuidade sim de hábitos passados, mas embrenhado com o contemporâneo, é
uma espécie de passado que se atualiza. Nesse sentido, o discurso dos diretores e a
reação dos professores, no espaço de mais de um século, não significa a repetição
pura e simples, apresenta uma atualização das coisas, uma permanência que se
moderniza. Tal conceito tem eco na ideia de habitus (BOURDIEU, 2004; 2011),
que será explorado ao longo deste texto.
Assim, o presente artigo, não querendo debruçar-se sobre similaridades
entre os acontecimentos, mas partindo de um ponto de inquietação do presente
para retornar ao processo de 1985, divide-se em três tópicos de análise: o primei-
ro procura interpretar a postura de Gabriel Prestes, interligando suas ações com
os conceitos de soberano e de interdição, trabalhados por Foucault (2010; 2015) e
o de mandatário, utilizado por Bourdieu (2004); o segundo trata da postura do
professor Lacerda em desferir um soco contra a mesa, em sinal de desaprovação a
reunião que estava sendo realizada, tal movimento remete ao conceito de autodefe-
sa de Dorlin (2020); por último, é analisada a reação dos professores presentes na
assembleia convocada por Gabriel Prestes, com base na ideia de habitus, pautado
em Bourdieu (2004; 2011), focando, especificamente na ideia de habitus professoral.
Ponderação inicial: O processo aqui analisado foi utilizado por mim em
outros dois textos (BARROS 2020; 2022), a partir de perspectivas diferentes e
341
com abordagens teóricas distintas. Com isso, quer se evidenciar a polissemia de
discussões possíveis a partir desse tipo de documento, salientando a relevância do
mesmo para o campo da História da Educação. É também, por esse processo já
ter sido escrutinado e pormenorizado em outros contextos, que aqui, neste artigo,
serão resgatados apenas alguns pontos centrais para o debate.
149 Base no Decreto de nº 247, de 23 de julho de 1894, que dispõe sobre o regimento da Escola Normal
de São Paulo.
151 O processo encontra-se dentro de uma Caixa no Arquivo Público de São Paulo (APESP), que também
contém vários outros documentos da mesma natureza. A partir das próximas citações ao processo, a
fim de objetivar a fruição do texto, será abreviado o nome de Lacerda apenas com suas iniciais, ficando
assim: FXGML.
O descontentamento de Prestes dá-se, aparentemente, pelo fato do lente
ao sair das reuniões prosseguir debatendo e demonstrando seu desacordo fora
do espaço de discussão. O que chama a atenção nessa situação, descrita na ata, é
que o diretor toma ciência por terceiros desses comentários que Lacerda estaria
fazendo. O restante da ata não indica que Gabriel Prestes chamou o professor
para conversar e alertar sobre essa ocorrência, fazendo apenas essa repreensão em
público.
A ata prossegue sinalizando que o diretor continuou expondo os fatos: o
docente além de estar colaborando para o “azedume” nas reuniões, e de prosseguir
com as discussões fora do âmbito privado que elas solicitam, também teria tido
atrito com os estudantes, por conta de reprovações, recebendo inclusive uma carta
de ameaça dos estudantes retidos. Esses fatos somados, para Prestes, depunham
contra todo um trabalho que a equipe estava realizando em prol do ensino públi-
co. Isso significa que o diretor colocou o grupo todo contra as ações realizadas por
Moura Lacerda, em clara desaprovação à conduta do mesmo.
Durante toda essa explanação, consta que o professor tentou intervir e de-
fender-se, alegando, inclusive, que estava em um “processo inquisitorial” (PRO-
CESSO FXGML, 1895, p. 10), sendo impedido pelo Prestes, uma vez que este
procurava concluir sua linha de raciocínio, para assim, dar o direito de resposta
ao professor – embora, no documento, essa possibilidade de resposta não apareça,
mas faz pressupor que haveria.
Na continuidade da explanação, o diretor menciona que Lacerda o ha-
via procurado diante de uma suposta ameaça recebida pelos estudantes e que o
professor procuraria seus direitos, indo num jornal prestar queixas dessa carta
anônima e “muito mal escripta” (PROCESSO FXGML, 1895, p. 10). Diante
disso, Prestes ironiza a situação, alegando que os alunos da Escola Normal jamais
fariam uma carta daquela natureza, colocando em descrédito o material, dando a
entender que o professor incitava tudo aquilo para gerar tumulto entre os colegas.
Tudo isso teria levado o lente a desferir um soco contra a mesa, quebrando-a.
Imediatamente, Prestes anuncia que a reunião estava suspensa. Por sua vez, Mou-
ra Lacerda se retira afirmando que buscaria seus direitos.
Quais as possibilidades de interpretação das ações de Prestes? Dentre al-
gumas possíveis, mas que não esgotam o debate, focarei em dois conceitos traba-
lhados por Michel Foucault (2010; 2015): soberano e interdição, e no conceito de
mandatário, de Pierre Bourdieu (2004).
O primeiro conceito, soberano, aparecerá nas reflexões do filósofo a respei-
to do Estado, e do poder controlador do mesmo que se manifesta na figura do
soberano. Para Foucault (2010), essa figura detinha o poder de vida e de morte.
Era o soberano quem possuía o “fazer morrer”. Ainda assim, tal poder, por volta
dos séculos XVII e XVIII, diante do advento do Estado Moderno e toda a buro-
343
cratização que ocorre, começa a sofrer modificações, graças à técnica da disciplina.
Depois, em meados do século XX, se constitui uma nova técnica de poder, que é
chamada pelo autor de biopoder. Ambas, disciplina e biopoder, não extinguem o
soberano, mas faz com que o mesmo ganhe outros contornos.
É possível pensar que o soberano agora é essa figura, revestida de autorida-
de, que faz com que a disciplina e o biopoder se instaurem, sejam resguardados e
que se perpetuem. Assim, o soberano não é mais um agente único e exclusivo, que
está à frente da nação, mas está espalhado por diferentes áreas, diferentes lugares,
são os chefes que vão ocupando postos chave na sociedade, determinando os que
podem morrer ou não. Entretanto, aqui cabe uma ressalva crucial: socialmente
a morte se estabelece em diferentes níveis, até chegar à morte física de fato. A
fala/escrita, a expressão, o colocar-se diante das ocasiões é uma forma legítima
de existência. Cercear ou controlar isso, significa, em alguma medida, impedir
que a vida do indivíduo aconteça ou que se dê em sua plenitude, uma vez que
a pessoa se relaciona e se apresenta a partir do que fala/escreve. O controle ou
cerceamento encontram-se nas reflexões do filósofo a partir da ideia de interdição
(FOUCAULT, 2015).
Segundo o autor:
Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedi-
mentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também,
é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer
tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância,
que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. [...]
(FOUCAULT, 2015, p. 84).
344
o governo que o colocou lá. Como elemento que demonstra ainda mais a tensão
em jogo, o diretor tinha abandonado o cargo de deputado estadual para assumir
a direção da Escola. Assim, ser mandatário, nessa condição, tem um peso ainda
maior, pois qualquer ocorrência dentro da instituição seria indagada por diversos
outros órgãos estatais e institucionais.
Nesse sentido, cabe interpretar a reação do professor Moura Lacerda, em
contraponto a postura adotada por Prestes.
152 Por minorias sociais, a autora toma especificamente os negros e as mulheres, ao longo da obra. O con-
ceito pode ser alargado e incluir grupos estrangeiros, ocupantes de terra e moradores do interior, por
exemplo.
345
na ideia do “campo de visibilidade racialmente saturado” (DORLIN, 2020, p. 21),
que significa que previamente as pessoas já tendem a se portar condenando o
negro por seus movimentos, mesmo que esses sejam defensivos.
O trabalho da autora permite um desdobramento, para que se reflita que
há um campo de visibilidade socialmente saturado para as minorias de modo
geral, uma vez que toda reação contra os atos abusivos do Estado por parte des-
sas pessoas e grupos, são vistos e entendidos como violentos e ilegítimos. Por
exemplo, na continuidade da ata aqui analisada, os demais professores da Escola
Normal prestam solidariedade ao diretor Gabriel Prestes:
A Congregação da Eschola Normal de São Paulo, lamentando o
excepcional e inqualificavel desacato que com ella soffreu o Di-
rector, e manifestando á este seu pleno apoio em desaggravo jus-
to que o caso exige, passa a funccionar segundo a ordem de seus
trabalhos ordinarios (PROCESSO FXGML, 1895, p. 13-14).
346
Reação dos professores: considerações sobre o habitus professoral
Considerações finais
347
dentro das escolas são complexas, densas e de disputas, permeadas pelo poder que
circula entre os agentes. A ideia aqui não é esgotar a temática, muito pelo contrá-
rio, ainda há uma carência de pesquisas para que se notem como essas disputas
constituem o habitus professoral. Ainda assim, o processo contra Moura Lacerda
permite retornar ao acontecimento em novembro de 2021 e questionar: seria o
silêncio dos professores, naquela reunião em que apenas a diretora se deu o direi-
to de falar, parte do habitus professoral? Quantos silêncios e, consequentemente,
apagamentos políticos de agentes educacionais, se dão a partir desse habitus? Será
que o soco na mesa, a “fala atravessada” ou ríspida, as ações reativas diante dos
exercícios de autoridade, ainda são vistos e entendidos pelos pares como agres-
sivos e desmedidos? O quanto a autodefesa dos indivíduos ainda é interpretado
erroneamente ainda hoje e condenado pelos colegas de forma muito mais sutil e
perversa, quando este tenta defender seu direito a expressão?
Olho para mim mesmo, quando comecei a receber os relatos dos colegas
sobre a reunião e toda a inércia que fui acometido diante de uma injustiça que foi
legitimada pela autoridade. Falhei com o grupo em silenciar-me e colaborando
para o silenciamento deles. Parece-me que este escrito foi à forma de tentar, não
só pelas minhas ponderações pessoais, olhar científica e historicamente e perce-
ber que nossa história é feita de vários emudecimentos. Essa, com todos os riscos
que estão implícitos em uma pesquisa científica, de forma sucinta e certamente
insuficiente, é uma maneira de romper com esse silêncio prolongado. Essa foi à
forma de responder à questão levantada por Álvaro de Campos, heterônomo de
Fernando Pessoa, que está na epígrafe deste texto. Foi a forma que encontrei de
desferir o meu soco contra a mesa.
Referências
BARROS, Gabriel Meneses. “Há mister de saber que os subalternos também têm o direito
de ser ‘respeitados’”: processos disciplinares contra professores paulistas (1887–1896).
348
Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. UNIFESP –
EFLCH, 2020.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Tradução: Mariza Côrrea.
Campinas, SP: Papirus, 2011.
LOPES, Eliane Marta Teixeira. Da sagrada missão pedagógica. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2017
MONARCHA, Carlos. Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 1999.
349
17. PRÁTICAS LIBERTÁRIAS EM EDUCAÇÃO
- A ESCOLA MODERNA N. 1 (1913-1919)
Para falar sobre educação libertária é necessário que, antes, sejam esclareci-
dos dois termos relativos aos princípios que a norteiam: anarquismo e libertaris-
mo. De maneira geral, os anarquistas apresentam uma crítica à ordem existente,
rejeitando todas as formas coercitivas de autoridade externa a fim de conquistar
uma sociedade livre e igualitária. Peter Marshall (2008) explica que o anarquismo
é como um rio de muitas correntes e redemoinhos, tanto do ponto de vista das
ideias quanto do das estratégias: as principais vertentes são a mutualista-federa-
lista, a coletivista, a comunista e a sindicalista. Como o anarquismo é antidogmá-
tico, não há uma apenas uma vertente aceita nem uma rigidez na interpretação da
realidade ou no plano de ação revolucionária. O libertarismo é algo mais abran-
gente, compreendendo diferentes posições dentro do campo anticapitalista, tendo
a liberdade como um valor supremo e buscando os poderes governamentais o
mínimo possível (Marshall, 2008). É ligado “às lutas antiautoritárias que têm por
base a oposição à dominação e a aspiração à liberdade [...] pautadas em princípios
mais amplos” (Corrêa, 2015, p. 91).153
Seja para anarquistas, seja para os libertários, a liberdade é entendida como
negação da autoridade e possibilidade de pensar e agir segundo a própria consci-
ência ou as leis naturais; ela só se realiza à medida que se coloca fim às hierarquias
e às instituições coercitivas que buscam controlar as pessoas (Estado, Capital,
Igreja), respeitando as individualidades e as diferenças de cada grupo ou comu-
nidade.
No meio anarquista, a educação possui destaque, pois é entendida como
ação direta, principal ferramenta de crítica e conscientização, fundamental para
153 O termo libertário é tratado, geralmente, como sinônimo de anarquista, cuja origem remonta às discus-
sões que dividiram a Primeira Internacional em 1872: de um lado, os comunistas adeptos das teorias
e propostas de Karl Marx (“socialismo autoritário”); de outro, os anarquistas alinhados ao pensamento
de Mikhail Bakunin (“socialismo libertário”). Enquanto a “anarquia” possui carga semântica de ne-
gação (sem governantes; sem patrões; sem hierarquias), “libertário” possui carga semântica afirmativa
(defesa da liberdade, controle da própria vida, autogestão). Como alerta Felipe Corrêa (2015), o termo
anarquista é anterior ao termo libertário, e, ao longo da história do movimento, libertários viriam a ser
chamados de anarquistas.
350
realizar a transformação política e social almejada. Para os anarquistas, a educação
é vista de maneira ampla, abrangendo tanto a educação formal (oferecida pelas
escolas e universidades populares) quanto a informal (jornais, revistas, teatros,
cinemas, centros de cultura, ateneus, festas, palestras, conferências, cursos em sin-
dicatos etc., além de mobilizações como boicotes e greves serem também, por
assim dizer, “educativas”).
Segundo Félix G. Moriyón (1989), os anarquistas estavam plenamente
conscientes de que, para modificar a sociedade, não bastava a educação crítica e
engajada – a classe trabalhadora precisaria romper com a ignorância para poder
enfrentar a ordem social capitalista –, somente a revolução efetivaria a abolição
da propriedade privada e do Estado. A educação, por assim dizer, “prepararia o
terreno”, ativaria as consciências, formaria homens novos (indivíduos comple-
tos, intelectual e moralmente, autônomos, livres e solidários) que promoveriam a
instauração de uma sociedade distinta, totalmente libertária. A educação escolar
e as questões pedagógicas e gestionárias vão, pouco a pouco, ganhando forma
e definindo o que se passou a chamar de pedagogia libertária, cujos principais
elementos são:154
• Autogestão – subtrair ao Estado o controle de certas instituições sociais,
que passam a ser mantidas e organizadas pelos próprios trabalhadores. Especi-
ficamente na educação, compreende a) autogestão institucional: administração
de organizações fundadas e geridas coletivamente por seus membros, cujas deli-
berações, como rumos, obtenção e aplicação de recursos, são tomadas coletiva e
horizontalmente; b) autogestão pedagógica: trata-se de uma “educação negativa”,
ou seja, um método de aprendizagem no qual o professor renuncia a seu papel
de autoridade que simplesmente transmite conhecimentos, e passa a organizar
as aulas na qualidade de um “consultor” que orienta os grupos de alunos em seus
estudos, tarefas e pesquisas, respeitando seus interesses, vontades e limites; por
vezes, os próprios alunos definem o que e como estudar.
• Antiautoritarismo – compreende a não aceitação de uma autoridade im-
posta, pois é ilegítima e se impõe diante do grupo por meios opressivos. O an-
tiautoritarismo pedagógico segue a tendência não diretiva de ensino, assumindo
os princípios da liberdade infantil presentes em Rousseau, mas vai além. Trata-se,
por um lado, da: a) negação da obediência, que se manifesta enquanto recusa à
heterodeterminação e à imposição de ordens, somada à visão de que se deve pro-
piciar a centralidade pedagógica no aluno, encorajando-o a ser espontâneo, soli-
dário e exercer a liberdade; por outro lado, observa-se a b) negação do controle,
ou seja, uma crítica ao monopólio e ao consequente abuso do poder por parte do
154 Os elementos sobre a pedagogia libertária foram extraídos de Moriyón (1989), Pey (2000), Gallo
(2007), Lipiansky (2007), Marshall (2008), Santos (2009), Chahin (2013), Castro (2014) e Leutprecht
(2018).
351
professor, não mais visto como dono do saber, infalível, mas alguém que contri-
buirá para o aprendizado das crianças e servirá de guia do saber e da moralidade,
sem com isso ter de apelar para recursos como “prêmios” ou “castigos”.
• Educação integral – pressupõe o melhor ensino que se pode garantir a
todos os indivíduos a fim de desenvolverem suas potencialidades e tornarem-se
completos e autônomos, rompendo com a ideia então hegemônica de que à clas-
se trabalhadora caberia uma educação voltada essencialmente para o trabalho.
Contempla, de maneira harmônica, os aspectos a) físicos (desenvolver músculos
e cérebro, por meio de atividades recreativas, exercícios físicos, esportes, trabalhos
manuais, ensino técnico e prático voltados ao trabalho), b) intelectuais (desenvol-
ver o pensamento por meio do conhecimento teórico, racional, científico, livre de
dogmas, saber formular uma opinião e argumentar) e c) morais (valorização da
autonomia do indivíduo, estímulo à solidariedade e à responsabilidade, somando-
se as críticas anticapitalista, antiestatal e anticlerical). A educação integral, por-
tanto, é a solução anarquista frente ao ensino religioso e estatal, a fim de preparar
o indivíduo para o trabalho, para compreender o mundo e para agir no mundo.
• Coeducação de sexos e classes – parte do princípio de que compor tur-
mas com alunos de ambos os sexos e de diferentes classes sociais promove um
ambiente plural e igualitário. Meninos e meninas, independentemente de suas
origens, podendo receber a mesma educação, terão direito de escolha, definirão
seu futuro de acordo com suas aptidões e interesses, não sendo limitados pelo
papel social que deveriam cumprir, pela imposição de normas sociais ou por não
terem privilégios de estudo exclusivos de um grupo.
155 Dentre seus expoentes destaco J. Dewey (1859-1952), defensor da aprendizagem através de atividades
livres enquanto experiências, formou-se em Filosofia; M. Montessori (1870-1952), pioneira na ela-
boração de recursos, materiais e mobiliários adequados às crianças para situações relacionadas à vida
prática, especializou-se em Pediatria e Psiquiatria; W. H. Kilpatrick (1871-1965), reconhecido pelo
método de projetos, inicialmente graduou-se em Matemática e Física; J.-O. Decroly (1871-1932),
precursor do espontaneísmo (centros de interesse) e de um modelo de ensino não autoritário e não
religioso, formou-se em Medicina; É. Claparède (1873-1940), atento a uma educação individualizada,
sem negar sua importância socializadora, formou-se em Medicina e Psicologia; J. Piaget (1896-1980),
que muito contribuiu para a investigação da natureza do desenvolvimento da inteligência infantil,
formou-se em Biologia e Psicologia; R. Cousinet (1881-1973), que desenvolveu o método de trabalho
por equipes, graduou-se em Letras (Di Giorgi, 1992).
352
com o objeto do conhecimento, sendo este articulado com a vida e o contexto no
qual a criança está inserida. O saber pode ser adquirido por meio do raciocínio
durante a realização de experiências (“trabalho”, projetos, atividades práticas, pre-
ferencialmente manuais, jogos, excursões ou estudos do meio, observação direta:
métodos ativos e criativos que instiguem ou satisfaçam uma curiosidade). Novos
espaços, novos recursos, nova relação professor-aluno e aluno-aluno são reconhe-
cidos. A autodisciplina e o apreço à democracia eram princípios elementares e se
desenvolveriam, naturalmente, no ato e na convivência.
Em comum, a Escola Nova e a Pedagogia Libertária buscavam, em termos
gerais:
• Orientar os estudos a partir do “ativismo”, do interesse e da participa-
ção, ou seja, dar ênfase a atividades práticas que permitam aos alunos
aprender mediante a curiosidade, jogos, passeios ou saídas de campo,
reflexão, pesquisa, levantamento de hipóteses, de forma a apresentar
suas próprias conclusões. O aprendizado seria essencialmente ativo
e colaborativo, pois demanda a interação dos alunos entre si e com o
objeto em estudo.
• Respeitar o desenvolvimento natural das crianças para que as ativida-
des propostas e os assuntos trabalhados sejam mais bem assimilados.
Há também o reconhecimento das particularidades de cada criança,
com programas e prazos flexíveis a fim de que ela aprenda de acordo
com seu interesse, capacidade e ritmo, valorizando a liberdade, a cria-
tividade, a espontaneidade e a individualidade. O professor não deve
ser um sujeito opressor ou disciplinador, mas atento, bom ouvinte, pa-
ciente, que não exige a obediência da criança ou a mera reprodução de
conteúdos e valores, mas que procura despertar suas possibilidades e
desenvolver suas virtudes.
• Eliminar o sistema de premiações e castigos, pois as notas e menções
honrosas são entendidas como formas de hierarquizar e destacar os
“melhores”, que mereceriam ser admirados, em detrimento dos “fra-
cos” ou “inferiores”; os castigos provocam medo, obediência garantida
pela exposição vexatória, sofrimento físico, cerceamento da liberdade.
• Garantir a coeducação dos sexos, de forma oferecer às meninas os
mesmos conteúdos e métodos dispensados aos meninos. Ao dividirem
o mesmo espaço e realizarem as mesmas tarefas, meninas e meninos
convivem e respeitam-se mutuamente, contrapondo uma relação so-
cial que coloca os homens em posições hierarquicamente superiores às
mulheres, exercendo papéis sociais específicos, como se suas aptidões
ou capacidades fossem determinadas pelo gênero.
353
Libertários, progressistas e outros grupos, por compartilha-
rem o mesmo clima de renovação pedagógica, fizeram uso dos
mesmos instrumentos de ensino e, em certos casos, inclusive
de uma mesma linguagem educativa. A questão central, funda-
mental para entender um e outro discurso, é o reconhecimento
dos objetivos para os quais cada qual lançou suas propostas de
educação (CHAHIN, 2013, p. 190).
354
educação livresca através de um ensino ativo, baseado na curiosidade, na espon-
taneidade, na observação e na livre conversa e composição. Buscavam valorizar o
repertório e as vivências das crianças. Preocupavam-se com o desenvolvimento
pleno dos alunos, suas virtudes e aptidões, a formação para o trabalho e a socie-
dade. Para tanto, a liberdade deveria ser a máxima educativa (liberdade das ideias
e dos corpos, dos horários, dos programas, das normas de conduta, somando-se
ao antiautoritarismo dos professores e à eliminação do sistema de prêmios e cas-
tigos). Lutavam para garantir a coeducação de meninos e meninas, apostavam na
ciência e estimulavam a solidariedade entre as crianças.
355
na operação de máquinas, baixos salários, longas jornadas, disciplina rigorosa,
ausência de férias, entre outros problemas. Para a classe operária, ficava cada vez
mais claro que a conquista de melhores condições de trabalho e vida somente
viria por meio das lutas diárias. Não restava alternativa a não ser se organizarem
em associações, sindicatos e partidos operários.
Nas duas primeiras décadas do século XX, cerca de metade da mão de obra
empregada na indústria paulistana era composta por imigrantes, muitos deles
simpatizantes da causa libertária. As principais formas de ação direta eram mobi-
lizações coletivas como passeatas, comícios, greves e propaganda de seus princí-
pios e táticas (sindicatos, jornais, dramaturgia, livros, centros de cultura, escolas).
A educação escolar teria papel fundamental no processo de formação dos valo-
res das novas gerações – formar-se-ia uma “barricada permanente” (CASTRO,
2014) até que as consciências e as condições sociais estivessem prontas.
O modelo educacional mais difundido nos meios libertários naqueles anos
foi justamente o racionalismo pedagógico proposto por Francisco Ferrer y Guar-
dia na Escola Moderna de Barcelona.156 A educação racionalista proposta por
Ferrer (2014) está pautada em oito conceitos: a educação é inseparável da re-
volução; a educação deve desenvolver-se na e para a liberdade; a educação deve
desenvolver o ser humano integralmente; a educação deve promover o específico
de cada pessoa; a educação deve fazer um ser humano moral e solidário; uma nova
educação exige um meio social livre; a educação não reduz sua ação à infância; a
educação não está circunscrita a algumas instituições escolares.
O ensino racionalista foi defendido abertamente pelos anarquistas, pois ia
ao encontro de muitos dos valores libertários, tais como anticapitalismo, anticle-
ricalismo, antiestatismo, antiautoritarismo, autonomia e emancipação do indiví-
duo e transformação social. Outros elementos da Escola Moderna de Barcelona
que eram caros aos educadores libertários consistiam na coeducação das classes e
dos sexos e na disseminação do conhecimento científico, seja por meio de perió-
dicos e livros, seja por eventos e aulas abertas.
Os editores d’A Lanterna, jornal anticlerical paulistano, procuravam man-
ter a imagem de Ferrer atrelada à ideia de livre-pensador comprometido com
uma educação emancipadora e libertadora, com ideias avançadas e revolucioná-
rias para o contexto espanhol. Isso teria gerado a reação da realeza, das elites e do
clero espanhol, e Ferrer foi por isso condenado e executado. Por meio desse peri-
156 A Escola Moderna de Barcelona despertou reações hostis dos setores mais conservadores da Espanha,
em particular das autoridades governamentais, da alta burguesia e da Igreja Católica. Em 1906, após
um julgamento claramente político por suposto envolvimento no atentado da Calle Mayor, Ferrer foi
duplamente punido: sua escola foi fechada e sua prisão decretada. Devido a dificuldades financeiras,
a Escola Moderna não pôde ser reaberta. Ferrer seria novamente acusado de liderar os atos violentos
da “Semana Trágica” e, dessa vez, sentenciado à pena de morte (1909) – foi condenado sem que se
apresentassem provas factuais e sem direito a testemunhas de defesa (SILVA, 2013).
356
ódico se organizaram campanhas para obter recursos para a fundação de escolas
modernas (racionalistas) em São Paulo.
A Escola Moderna n. 1,157 que funcionou em São Paulo entre 1913 e
1919, tornou-se a escola libertária brasileira de maior destaque e longevidade
(LEUTPRECHT, 2018). Ela foi
criada e gerida por um comitê composto por dirigentes e mi-
litantes do movimento operário e também por representantes
de outros segmentos da sociedade, como profissionais liberais
e maçons. Os anarquistas exerceram hegemonia sobre o gru-
po. [...] Com ideias simples, porém contundentes, os libertários
atacaram os fundamentos da ideologia dominante, criticaram a
educação fornecida pelo Estado e pela Igreja. Para os libertários,
a luta pela instrução se inseria no contexto das demais batalhas
que se desenrolavam no sentido de recuperar instrumentos de
atuação social historicamente monopolizados pelas classes diri-
gentes. Insistiam na necessidade da educação como instrumento
de atuação social (CALSAVARA, 2004, pp. 139 e 152).
157 Antes da fundação da Escola Moderna n. 1 (1913), surgiram no Brasil diversas escolas fundadas por
princípios pedagógicos libertários: Escola União Operária (Porto Alegre, 1895), Escola Libertária
Germinal (São Paulo, 1903), Escola Sociedade Internacional (Santos, 1904), Escola Emílio Zola
(1904), Escola Elisée Reclus (Porto Alegre, 1906), Escola Germinal (Fortaleza, 1906), Escola União
Operária (Franca, 1906), Escola Noturna (Santos, 1907), Escola Livre (Campinas, 1909), Escola Ra-
cionalista da Água Branca (São Paulo, 1909), Escolas da Liga Operária (Sorocaba, 1911), Escola Ope-
rária 1º de Maio (Rio de Janeiro, 1912), Escola da União Operária (Franca, 1912) e Escola Moderna
(Petrópolis, 1913), entre outras.
357
se no Belenzinho, próximo à Mooca e ao Brás, um bairro operário cujos setores
econômicos mais comuns eram o vidreiro, o têxtil, o comerciário e o tipográfico.
A obra realizada por esta benefica instituição, se bem que mo-
desta, não deixa de ser digna de interessar todos os espíritos
elevados e todas as inteligecias esclarecidas que se preocupem
seriamente com o renovamento social operado nas consciências,
pela escola.
Obra modesta dissemos, porque sem dispor dos meios neces-
sários para proporcionar, em larga escala, ensino racional e in-
tuitivo a toda infância que dele carece, é apezar de tudo uma
tarefa que tende a alargar-se, a firmar-se no espirito publico e
a conquistar os seus incontestáveis direitos á consideração dos
homens de saber e de pensamento.
A Escola Moderna é um ideal a realizar-se. Como o vejetal que
nasce duma simples semente, primeiro débil e frágil, sem dar
nas vistas de alguem, depois se vai desenvolvendo e robuste-
cendo, até se tornar planta copada e frutifera, proporcionando
nos sombra, frutos, lenha, madeira e embelezando a paizagem,
assim também a Escola Moderna, hoje obra humilde, amanhã
sé robustecerá, se alargará e se imporá á consideração publica
quando com a criação de escolas em todos os bairros de S. Paulo
e por todo o interior for espalhando os beneficios do seu ensino,
disciplinando os espiritos, elevando as inteligencias, estofando o
entendimento, enfim orientando e libertando.
O que é preciso é que todos que compreendam o alcance deste
empreendimento não neguem seu concurso a esta obra em que
andamos empenhados e concorram com o seu grão de areia para
o edificio colectivo.
E todos, por modestos que sejam seus conhecimentos, podem
ajudar a criar uma mentalidade nova na infância e concorrer para
o alargamento da obra da Escola Moderna (A LANTERNA,
9 ago. 1914, p. 2).
158 Sua manutenção dependia das mensalidades, da colaboração de militantes anarquistas e simpatizantes
do ensino racionalista, bem como das doações em eventos e do auxílio de sindicatos e lojas maçônicas.
358
Busca por autonomia pedagógica: práticas libertárias na Escola
Moderna n. 1
Ainda que houvesse esforços por parte das autoridades educacionais pau-
listas em prescrever (ou conformar) programa, modelo pedagógico, saberes, roti-
nas e práticas – sob a forma de leis, regulamentos ou doutrinas –, no interior de
cada unidade escolar ocorriam inúmeros procedimentos de apropriação e trans-
formação dessas prescrições em práticas singulares. Nesse sentido é pertinente
questionar: “o que é que as pessoas fazem com os modelos que lhes são impostos
ou com os objetos que lhes são distribuídos?” (BOURDIEU apud CARVALHO,
2003, p. 260). Se não há uma mera aplicação das prescrições é porque as determi-
nações impostas pelos agentes externos sobre determinado campo (que refletem
pressões de ordem política e econômica) são refratadas pelos agentes internos ao
campo enquanto práticas distintas (aquilo que é feito).
Para melhor compreender como teorias, diretrizes, modelos, métodos, pro-
gramas e prescrições educacionais são “consumidas” e se efetivam em práticas pe-
dagógicas, é preciso recorrer ao conceito de apropriação, desenvolvido por Roger
Chartier (2002), que considera a tensão existente entre “a irredutível liberdade
dos leitores e os condicionamentos que pretendem refreá-la”. Do contrário, cor-
159 O artigo 30 da lei n. 1.579 atrelava o funcionamento das escolas particulares à autorização da Diretoria
Geral da Instrução Pública, mediante a apresentação de títulos que comprovassem a capacidade técni-
ca e moral dos professores e diretores e de documentos que atestassem as condições higiênico-pedagó-
gicas do edifício escolar, além da garantia de que as aulas fossem ministradas por professores brasileiros
em língua portuguesa (exceto no caso das aulas de línguas estrangeiras).
359
re-se o risco de tomar a produção intelectual, o texto, como uma realidade que se
impõe soberana sobre todos os agentes, que por sua vez simplesmente a reconhe-
cem como legítima e a aplicam tal como foi concebida por seu autor, sem levar em
consideração as muitas possibilidades de aplicação de tais ideias.
[...] a leitura de um texto pode assim escapar à passividade que
tradicionalmente lhe é atribuída. Ler, olhar ou escutar são, efeti-
vamente, uma série de atitudes intelectuais que – longe de sub-
meterem o consumidor à toda poderosa mensagem ideológica
e/ou estética que supostamente o deve modelar – permitem na
verdade a reapropriação, o desvio, a desconfiança ou a resistência
(CHARTIER, 2002, p. 59-60).
Portanto, o texto não possui um sentido único, estático, atribuído pelo seu
autor, pois, ao circular em determinados meios, passa a ser compreendido de for-
mas variadas, tendo em vista que o leitor faz uso da liberdade interpretativa e pos-
sui suas próprias intenções de uso do texto. Na visão de Marta M. C. de Carvalho
(2003, pp. 277-8), “uma vez produzido e distribuído, o impresso de destinação
escolar pode ganhar vida própria, sendo objeto de usos não previstos pelas regras
que presidiram a sua produção”, alertando os historiadores sobre a ênfase que
deve ser dada às práticas em relação ao texto em si.
Nas instituições escolares, gestores, alunos e professores, em suas práticas
cotidianas, não são meros consumidores, mas também produtores, pois interagem
(recebem, filtram, reinterpretam, resistem, propõem) com ideias, conceitos, recur-
sos, objetos, espaços etc. e lhes dão novo significado e usos de acordo com seus
interesses, motivações e valores. Apropriação pressupõe a interdependência entre
criação/produção e recepção/consumo do texto. Aquele que se apropria passa a
ser também um produtor cultural, posto que (re)cria o produto cultural conforme
seus interesses e suas capacidades, dando-lhe um novo sentido e fazendo dele os
mais variados usos.
A Escola Moderna n. 1 desenvolveu diversas práticas pedagógicas
alternativas às realizadas pelas demais escolas e, apesar das circunstâncias
por vezes adversas, encontrou soluções coerentes com os valores e princípios
pedagógicos libertários. Samira Chahin (2013) afirma que, para a implantação
da Escola Moderna n. 1, “houve a adaptação de um contexto teórico às condições
e propósitos próprios das circunstâncias políticas enfrentadas pelos libertários
em São Paulo” (CHAHIN, 2013, p. 31). Douglas Leutprecht (2018) defende
que, da mesma forma que João Penteado se valeu de diferentes referenciais
(doutrina espírita, obras de Tolstói, modelo de Ferrer, pensamento anarquista) e
os ressignificou num projeto coerente de vida e de condução da Escola Moderna
n. 1, aqueles que lhe serviram de referência também haviam realizado, a seu
modo, suas apropriações.
360
A Escola Moderna n. 1 parece não ter sofrido interferência direta da So-
ciedade “Escola Moderna”, nem mesmo do próprio governo em seus anos iniciais.
A conformação de seu programa e as práticas ali desenvolvidas possivelmente
foram frutos da própria experiência pretérita de João Penteado como professor
primário em Jaú e das suas influências acerca do ensino libertário (sendo Ferrer
a mais facilmente identificável), em conformidade com as determinações legais
para a garantir seu funcionamento.
O programa com que foram iniciados seus trabalhos consta de
portuguez, aritmetica, geografia, historia e principios de scien-
cias naturais.
O seu programa, todavia, como está determinado, será ampliado
de acordo com as necessidades futuras e com a aceitação que o
ensino racionalista for merecendo da parte dos homens livres da
capital e do interior do Estado.
O director, Prof. João Penteado (A LANTERNA, 20 jun.
1914, p. 4).
361
dinarios da vida diaria. Entre as série de estudos, a gramatica, a
zoologia, a geometria, a geografia, a fisica e a quimica, também
existe o ensino de francês, solfejo o trabalho manual e a bo-
tanica. Os livros foram escritos expressamente para a escola, e
para o fim exclusivamente racionalista para que ela foi fundada
(HEAFORD, 1910, p. 47).
160 Os primeiros expoentes do método intuitivo foram pensadores como Francis Bacon, John Locke, Jean
Jacques-Rousseau; pedagogos como Johann Heinrich Pestalozzi, Norman Calkins e Ferdinand Buis-
son dariam contribuições para sua aplicação escolar.
362
O exercício que se segue é ilustrativo não apenas da composição de um
texto descritivo, que informa o trajeto, os elementos da paisagem urbana e as
situações “inusitadas” dignas de registro, mas também de uma atividade que re-
flete outros aspectos do ensino libertário ministrado na Escola Moderna n. 1: a
solidariedade e reciprocidade (interação entre os alunos das escolas) e o respeito
(apesar de não descrever se houve uma reprimenda ou advertência, o desenten-
dimento entre um aluno e um rapaz na rua não foi bem aceito pelo professor).
Segue o exercício:
NOSSA VISITA Á ESCOLA N. 2
363
observação atenta e de seu próprio raciocínio. A maneira como a aula é descrita
revela a liberdade que se pretendia garantir aos alunos:
UM PASSEIO À MARGEM DO RIO TIETÊ
364
Outra modalidade de composição eram os exercícios epistolares. Os alu-
nos eram instigados a refletir sobre questões da atualidade, desenvolvendo a sen-
sibilidade e o poder de crítica à ordem estabelecida. Um tema particularmente
grave naqueles tempos era o da Primeira Grande Guerra, tratado pelo aluno João
Bonilha nos seguintes termos:
A GUERRA EUROPEA
O aluno argumenta que a guerra foi conduzida pelo Estado a partir dos
interesses burgueses e promove um massacre sem sentido, deixando famílias de-
samparadas. Como salienta Rogério Castro (2014, p. 195), “o internacionalismo
dos libertários se contrapunha ao nacionalismo dos setores conservadores”, um
sentimento de solidariedade entre os membros da classe trabalhadora, que, in-
dependentemente de sua nacionalidade, não devem lutar entre si, mas se unirem
para promover a revolução, derrubando a sociedade de classes capitalista e cons-
truindo uma sociedade fraterna e igualitária. O antimilitarismo se coloca enquan-
to um princípio básico do “anarquismo cristão”, que advoga as transformações
pela via não violenta, cuja grande referência foi Liev Tolstói, muito influente na
formação intelectual e moral de João Penteado (LEUTPRECHT, 2018).
Os quatro registros acima evidenciam algumas práticas pedagógicas da
Escola Moderna n. 1 análogas ao método racional propugnado pela Escola Mo-
derna de Barcelona, cujo intuito era “evocar, desenvolver e cultivar as aptidões
particulares de cada aluno, a fim de fazer evoluir a capacidade latente de cada
creança, tornando-o capaz de ser um componente util da sociedade” (Heaford,
1910, p. 46). Como mencionado anteriormente, esses registros se encontram no
periódico escolar O Início, sendo um recurso amplamente empregado por diversas
365
escolas libertárias, como a revista Iasnaia Poliana, o Bulletin La Ruche e o Boletín
de la Escuela Moderna, que serviram para divulgar os princípios pedagógicos e
as práticas escolares desenvolvidas nessas instituições, ou ainda para divulgar as
atividades produzidas pelos alunos.
João Penteado, escritor prolífico da imprensa operária, com grande expe-
riência em tipografia e editoração, empregou esses conhecimentos na divulgação
das atividades desenvolvidas na Escola Moderna n. 1 e das ideias pedagógicas
racionalistas por meio dos periódicos O Início (1914-1916) e Boletim da Escola
Moderna (1918-1919). As dificuldades financeiras enfrentadas pela escola impos-
sibilitaram que as publicações fossem mensais, intenção anunciada nos primeiros
números de cada periódico, justificada nas edições seguintes. O Início teve apenas
três números (5 set. 1914, 4 set. 1915 e 19 ago. 1916), e o Boletim da Escola Moder-
na quatro (13 out. 1918, 18 mar. 1919 e 1º maio 1919 – edição correspondentes
aos números 3 e 4).
Nos três números do periódico estudantil O Início,162 foi possível identifi-
car quatro artigos sobre festividades das quais os alunos da escola participaram;
um balancete de festa; três informativos com a relação dos alunos matriculados;
cinco artigos de conteúdo moralizante (antimilitarismo e antialcoolismo); e 34
“exercícios escolares” (relatos sobre passeios, com textos descritivos e reflexivos
sobre o que os alunos observavam; exercícios epistolares e descritivos), entre ou-
tros. Essa publicação, em que predominavam conteúdos pedagógicos (52% do to-
tal dos textos), tinha como escopo “cultivar os sentimentos de amor pela paz, pela
instrução, pelas letras e pela humanidade, fazendo despertar na infância o desejo
de uma vida fraternal, humana, livre dos prejuízos resultantes das convenções so-
ciais” (O Início, 5 set. 1914). Segundo seu editorial, visava “exercitar os alunos na
imprensa, a fim de se habilitarem para a luta do pensamento na sua cooperação
para o progresso moral e intelectual da Humanidade” (Ibid.).
Como observou Tatiana Calsavara, as informações contidas n’O Início as-
seguram que ambas as escolas modernas de São Paulo eram “escolas mistas, sem
exames, sem promoções, sem castigos, combinando um currículo convencional
com a difusão dos princípios anarquistas” (2004, p. 179), e que desenvolveram
práticas pedagógicas semelhantes às da Escola Moderna de Barcelona.
Nos quatro números do periódico Boletim da Escola Moderna, observa-se
uma grande mudança em relação à forma e ao conteúdo do que era publicado
n’O Início – os editores indicavam ter intenção de manter ambos os jornais ativos,
mas O Início não pôde mais ser produzido por razões financeiras. As práticas
162 Vale destacar que o periódico O Início publicava os textos escritos pelos alunos e tinha alguns deles na
comissão de redação. Dessa forma, possibilitava-lhes o ativismo pedagógico e contemplava o que se
defendia como “ensino integral”, bem como um ambiente de colaboração e horizontalidade na relação
aluno-professor, sendo todos corresponsáveis pela (auto)gestão do veículo.
366
educativas desenvolvidas pelos alunos aparecem de maneira indireta, quando se
menciona a participação em eventos festivos da escola, ou em alusão ao ensino
racionalista ministrado pela escola, mas sem apresentar as atividades dos alunos
ou explicitar mais claramente as práticas que eram desenvolvidas. Foi possível
contabilizar cinco artigos em defesa do ensino racionalista; dois artigos em de-
fesa dos valores libertários (crítica ao capitalismo e às escolas religiosas oficiais);
seis artigos sobre festas realizadas para arrecadação de recursos para a escola; sete
artigos sobre efemérides (13 de outubro – memória de Ferrer na data de seu fale-
cimento, 1º de maio – Dia do Trabalhador, 18 de março – aniversário da Comuna
de Paris); quatro balancetes de festas e doações à escola; e quatro quadros sobre
a escola (cursos ofertados, programas, alunos matriculados, frequência, horários),
entre outros. O objetivo do periódico passa a ser o de
prestar valiosissima contribuição para a obra de propaganda ra-
cionalista, que temos emprehendido, servindo de vehiculo para
a disseminação das modernas correntes de ideias que tendem a
rehabilitar a humanidade para a vida, redimindo-a e tornando-a
livre e feliz (BOLETIM DA ESCOLA MODERNA, 13 out.
1918).
367
Conclusões
Cientes dos limites impostos pela educação oferecida pelo Estado e pela
Igreja, escolanovistas e pedagogos libertários propuseram, cada qual à sua manei-
ra, uma escola renovada, que superasse o modelo tradicional e fosse alicerce para
uma nova sociedade. Semelhantes em alguns aspectos, desenvolveram-se com
princípios, meios e fins bastante distintos.
Para Francisco Ferrer y Guardia, diretor da Escola Moderna de Barcelona,
e João Camargo Penteado, diretor da Escola Moderna n. 1, o ensino racionalista
poderia colaborar para a elevação intelectual e moral das pessoas em um processo
que levaria à transformação social e à superação da lógica capitalista, desumaniza-
dora. Ambos criticavam a maneira com a qual a Igreja e o Estado se utilizavam da
educação para seus próprios interesses e estavam comprometidos com a educação
das classes populares, emancipatória, livre e libertária.
A Escola Moderna n. 1 foi, em muitos aspectos, tributária da Escola Mo-
derna de Barcelona. Alguns dos elementos que reforçam essa relação: são cons-
tantes as referências ao racionalismo pedagógico, a introdução de passeios educa-
tivos, o incentivo à produção escrita, o princípio de que não se educa por punição
ou premiação, a defesa da coeducação dos sexos, a ausência de exames, o esforço
para que a comunidade se aproxime e se envolva com a escola, o laicismo e o
antiestatismo – registros presentes nos exercícios e artigos publicados n’O Início e
no Boletim da Escola Moderna.
Autores como Samira Chahin (2013) e Douglas Leutprecht (2018) apon-
tam para a independência programática da Escola Moderna n. 1 e para práticas
que, se não eram originais (pois tomavam como referência o racionalismo peda-
gógico desenvolvido na Escola Moderna de Barcelona, mas também o método
de “lição de coisas”, amplamente difundido entre as escolas primárias paulistas),
eram inovadoras para o contexto em que a escola estava inserida.
As apropriações, ou seja, os crivos, as intepretações e as aplicações de prá-
ticas pedagógicas são escolhas que se operam em um campo de disputa entre
manter-se fiel aos princípios e práticas do modelo em questão – seja por con-
vicção pessoal, seja por conta das expectativas que os agentes internos e externos
depositavam na escola – e comprometer-se a ponto de sofrer perseguições e re-
presálias (como tantas outras escolas libertárias sofreram), ou ter de abandonar
tais princípios e práticas para poder manter a escola em funcionamento, mesmo
que descaracterizada dos seus propósitos originais. João Penteado procurou as-
segurar a autonomia e a autogestão institucional e pedagógica, promovendo um
ensino antiautoritário sob o método racionalista, desenvolvendo a coeducação
368
dos sexos e das classes e buscando desenvolver o espírito crítico, a solidariedade
e o sentimento de justiça.
Se se pretende superar o ensino reprodutivista (tanto no sentido social,
quanto no sentido dos saberes), passivo, autoritário, centrado no livro e no profes-
sor, dentro de um sistema excludente, classificatório e punitivo; se se entende ser
possível transformar a atual forma escolar e promover um modelo capaz de efeti-
var uma relação ao mesmo tempo científica, crítica, prazerosa e significativa, tam-
bém capaz de promover a autonomia do sujeito e emancipá-lo intelectualmente,
nesse processo construindo uma sociedade mais solidária e justa, é fundamental
debruçar-se sobre as ideias pedagógicas e as experiências escolares libertárias.
A Pedagogia Libertária é, portanto, radicalmente transformadora, pois
buscou fazer contraposição à escola dita tradicional (religiosa ou estatal) e à “es-
cola burguesa” (que apropriou elementos do escolanovismo) de seu tempo, que
em que vez de romper com os interesses dos grupos dominantes serviam para
atendê-los. Trata-se de defender um modelo de ensino que possa contribuir para
a construção de uma sociedade livre: quando as consciências tiverem sido eman-
cipadas de quaisquer preconceitos, que hierarquizam ou definem os papéis sociais
por conta de gênero, cor, etnia, origem etc.; quando a sociedade tiver abolido as
hierarquias sociais, definidas pela posse de capitais, para organizar a produção
de base coletivista; quando o Estado for superado por um sistema autogestio-
nário, em que as decisões sejam definidas pelos membros da sociedade, autono-
mamente, conforme a máxima “o homem estará verdadeiramente livre apenas
entre homens igualmente livres” (BAKUNIN apud MARSHALL, 2008, p. 299
– tradução livre).
Referências
BASTOS, Maria Helena Camara. Introdução: Método intuitivo e lições de coisas por
Ferdinand Buisson. In: História da Educação, Porto Alegre, v. 17, n. 39. jan./abr. 2013.
pp. 231-253.
CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A Escola e a República e outros ensaios. Bragança
Paulista: USF, 2003.
369
CASTRO, Rogério Cunha de. Nem prêmio, nem castigo!: a escola moderna como ação
revolucionária dos sindicatos operários durante a Primeira República (São Paulo,
1909-1919). 2014. 233 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo: Edusp, 2009.
370
PEY, Maria Oly (Org.). Esboço para uma história da escola no Brasil: algumas reflexões
libertárias. Rio de Janeiro: Achiamé, 2000.
SANTOS, Luciana Eliza dos. A trajetória anarquista do educador João Penteado: leituras
sobre educação, cultura e sociedade. 2009. 298 f. Dissertação (Mestrado em História
da Educação e Historiografia) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2009.
SILVA, Rodrigo Rosa da. Anarquismo, ciência e educação: Francisco Ferrer y Guardia
e a rede de militantes e cientistas em torno do ensino racionalista (1890-1920). 2013.
379 f. Tese (Doutorado em História da Educação e Historiografia) – Faculdade de
Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
371
18. A CONSTITUIÇÃO DA FUNÇÃO DA COORDENAÇÃO
PEDAGÓGICA EM SÃO BERNARDO DO CAMPO:
AS ESTRATÉGIAS DAS PROFISSIONAIS (1998 A
2009)
163 O termo Escola de Annales não se refere a uma escola, mas a um movimento de estudo da história a
partir de problemas e considerando o papel dos indivíduos e grupos. A revista dos Annales teve origem
em 1929 na França, dirigida por Lucien Febrve e Marc Bloch, e ficou conhecida pelo fato de criticar
a historiografia recorrente em que o foco de pesquisa eram, predominantemente, jogos de poder e a
narrativa dos fatos de grandes figuras e grandes nações. Os grupos e indivíduos ficavam em segundo
plano nessa forma de fazer história.
372
Nessa perspectiva, reconhecemos as PAPs164 como um grupo de docentes165
que, no final dos anos 1990, esteve à frente das ações de formação de professo-
res em um contexto de mudanças legislativas com implicações para o cotidiano
escolar. As primeiras ações de coordenação da HTPC166 realizadas por essas pro-
fissionais nos permitem compreender, a partir da legislação educacional vigente e
das resoluções da Secretaria de Educação e Cultura (SEC), como o processo de
emersão da PAP provocou novas configurações no campo da história da profissão
docente (reconfigurações de tempos, espaços e dispositivos de formação docente).
E, para isso, discutimos temas como memória, esquecimento e identidade docente.
Para analisar as artes criativas do fazer cotidiano, Certeau (2017) propõe
uma distinção entre estratégia e tática. A estratégia é o lugar do poder estabeleci-
do, que dita as regras do jogo e delineia as interações. A tática, por sua vez, é uma
produção silenciosa, que recria o espaço definido pelo outro que detém o poder.
Para operar no terreno do adversário, conforme Certeau (2017, p. 95): “tem que
utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigi-
lância do poder [...] aí vai caçar. Cria ali surpresas, consegue estar onde ninguém
espera. É astúcia”. Isso nos instiga a observar nos meandros das alterações legisla-
tivas os caminhos encontrados pelas instâncias de poder para configurar essa nova
função do magistério. No caso das PAPs, detemo-nos nas estratégias elaboradas
pela SEC para que pudessem ocupar um lugar no campo educacional.
No que tange à Educação Infantil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei 9394/1996) passa a reconhecer esse nível de ensino como etapa da
Educação Básica, aponta a necessidade de horas de trabalho do professor — fora
da sala de aula — em estudo e preparação e retira o caráter puramente assisten-
cialista das instituições que acolhiam crianças pequenas, colocando em evidência
a discussão pedagógica dos aspectos do cuidar e do educar no atendimento às
crianças de zero a seis anos.
As escolas de Educação Infantil no município de São Bernardo do Cam-
po tiveram origem no projeto dos jardins de infância167, sob a administração do
165 Na pesquisa de mestrado Cenas inéditas da vida das professoras de apoio pedagógico: Um estudo da emersão
da função de professor coordenador em São Bernardo do Campo: 1998 a 2009 (Freitas, 2020), de nossa auto-
ria, o grupo docente ao qual nos referimos era composto por quatro mulheres professoras que estiveram
na função de professora de apoio pedagógico no período de 1998 a 2009 e participaram da pesquisa
por meio de entrevistas.
167 O município de São Bernardo do Campo é situado na região metropolitana de São Paulo e, segundo
projeção de dados do IBGE (2019), conta atualmente com população em torno de 833.000 habitantes,
ocupando a 16º posição no ranking nacional quanto ao PIB. De acordo com informações do site oficial
da cidade, a Secretaria de Educação conta com cerca de 80 mil alunos em todos os níveis de ensino
373
prefeito Lauro Gomes de Almeida (PTB), para oferecer atendimento escolar às
crianças de zero a seis anos. O Jardim da Infância Santa Terezinha (primeiro jar-
dim da infância da cidade), situado onde hoje funciona o Arquivo Municipal, foi
inaugurado em agosto de 1960 pelo Departamento de Educação e Cultura, sob a
coordenação da professora Tirza Martins Ribeiro Magdalena.
Em 1979, o município assumiu o serviço das creches — até então condu-
zidas por instituições sociais — por meio do Departamento de Promoção Social.
O atendimento foi ampliado para crianças na faixa etária dos quatro meses até
três anos e onze meses de idade. Nesse mesmo ano, os Jardins de infância foram
denominados Escolas Municipais de Educação Infantil168 (EMEIs), nomencla-
tura que permaneceu até o primeiro edital de seleção de PAP, em 1999. Essa
organização perdurou até que novos debates educacionais fossem colocados em
campo. No contexto nacional, a Constituição Federal de 1988, no artigo 6º, anun-
cia o direito à educação como um direito social e define a competência legislativa
para o tema em seus artigos 22, inciso XXIV, e 24, inciso IX. No título da Ordem
Social, responsabiliza o Estado e a família quanto à educação, trata do acesso e
da qualidade, organiza o sistema educacional, vincula o financiamento e distribui
encargos e competências para os entes da Federação.
No bojo dessa discussão do acesso e da qualidade foram colocadas em
tela a discussão da Educação Infantil e suas funções de cuidar e educar frente à
característica assistencialista das instituições que acolhem crianças. A emenda
constitucional 53/2006 dirimiu a cisão entre cuidar e educar, indicando ser dever
do Estado a garantia de Educação Infantil em creche e pré-escola às crianças até
5 (cinco) anos de idade. Assim, a discussão tomou corpo no sentido de que as
crianças devem ser cuidadas e educadas, o que retira o caráter puramente assis-
tencialista dessas instituições.
As diretrizes educacionais no município sofreram alterações para se ade-
quarem aos padrões propostos, e nesse contexto é que emergiu a figura da Pro-
fessora de Apoio Pedagógico (PAP), coordenando os trabalhos pedagógicos no
interior das unidades escolares.
atendidos pela municipalidade (creche, pré-escola e Ensino Fundamental I e II), distribuídos em 202
escolas (180 unidades próprias e 22 creches parceiras), com cerca de nove mil colaboradores (SÃO
BERNARDO DO CAMPO, Portal da cidade. Disponível em: https://www.saobernardo.sp.gov.br/
Acesso em: 7 jan. 2022).
168 Quanto à constituição do campo educacional em São Bernardo, o site oficial do município de Santo
André aponta que o primeiro grupo escolar da região do ABC (Santo André, São Bernardo e São
Caetano) foi inaugurado em 1914, construído em forma de U e interligado por um alpendre, reunindo
várias salas de aula. A construção foi tombada pelos Conselhos de Defesa do Patrimônio Cultural
Municipal (1992) e Estadual (2002) devido à sua inserção na memória local e à importância como
remanescente da política educacional do começo do século XX. Disponível em: https://www2.san-
toandre.sp.gov.br/index.php/departamentos-seduc/33-secretarias/cultura-esporte-lazer-e-turismo/
184-museu-de-santo-andre-dr-octaviano-armando-gaiarsa Acesso em: 7 jan. 2022.
374
Sobre a coordenação pedagógica como um cargo — de investimento via
concurso público —, encontramos referências legais acerca da criação da função
na Rede Municipal de São Paulo na lei nº 9874, de 18 de janeiro de 1985, vigente
até os dias atuais. E, na Rede Estadual de São Paulo, o cargo foi extinto através
da lei complementar nº 836, de 30 de dezembro de 1997. Em São Bernardo do
Campo, a ideia de ter um professor coordenador começou a ganhar corpo durante
as discussões sobre a Proposta Curricular Integrada do ano de 1992, no decorrer das
reuniões entre a Secretaria de Educação e Cultura e as professoras para a elabo-
ração de um currículo que atendesse a Educação Infantil como direito constitu-
cional. Regina Poppa Scarpa169, uma das assessoras externas que participou das
discussões, trouxe relatos de sua prática profissional a respeito de professoras que
realizavam ações de organização dos trabalhos pedagógicos.
Como pode-se perceber no cenário acima apresentado, a incorporação da
Educação Infantil à Educação Básica, em âmbito nacional, colocou para o Mu-
nicípio de São Bernardo do Campo a obrigação de se reorganizar para a nova
demanda, incluindo a necessidade de dar continuidade às discussões com o grupo
de professoras para a atualização do currículo escolar. Nesse contexto, duas mu-
danças normativas no Município de São Bernardo do Campo criaram condições
para a emersão da PAP.
A primeira foi a instituição da designação para atividades educacionais
complementares pela lei municipal nº 4681, de 26 de novembro de 1998, que
abriu a possibilidade de atuação das professoras em outras atividades educacio-
nais, além das específicas de sala de aula — preparar e ministrar aulas:
Art. 10 Os Professores poderão ser designados para atividades
educacionais complementares:
I - pedagógicas;
II - de bibliotecas escolares, sob supervisão e acompanhamento
de bibliotecários;
III - de assistência à direção escolar;
IV - de programas especiais.
Parágrafo Único - As atividades de que trata o “caput” deste
artigo serão especificadas e reguladas por ato próprio elabora-
do pela Secretaria de Educação e Cultura (SÃO BERNARDO
DO CAMPO, 1998).
169 Graduada pela Faculdade de Psicologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
(1983) e com mestrado (1997) pela mesma instituição, fez doutorado em Educação na Universidade
de São Paulo (2014). Atualmente, é Diretora Pedagógica da Escola Vera Cruz. Tem experiência na área
de Educação, com ênfase em Alfabetização. Informações coletadas do Currículo Lattes.
375
especiais, o que na prática trouxe a possibilidade de as professoras — além de
ministrarem aulas — desempenharem outras atividades relacionadas ao ensino.
A segunda se deu pela reorganização da carga horária de trabalho das
professoras em função do período reservado a estudos, planejamento e avaliação
através da Resolução SEC170 nº 008/99, 26 de fevereiro de 1999, que atribuiu à
PAP a coordenação dessas horas, em conjunto com outros profissionais ou na
ausência deles. Nessa Resolução SEC, a PAP não é a única profissional à qual se
atribuem a coordenação da HTPC e o acompanhamento do trabalho das escolas
de São Bernardo do Campo. Ela compartilha essas atribuições com o orientador
pedagógico (OP), uma categoria profissional já existente no quadro do magis-
tério171 do Município de São Bernardo do Campo, que atua realizando ações de
supervisão, orientação e formação tanto de professoras quanto de equipe gestora.
Uma das diferenças entre esses dois profissionais reside no fato de que o orien-
tador pedagógico é lotado na SEC e possui um cargo no quadro do magistério,
enquanto a PAP é lotada nas unidades escolares e designada para a função, ou
seja, ela não possui um cargo.
Neste ponto, recorremos ao conceito de campo, como definido por Bour-
dieu (2004), para caracterizar a atuação das professoras de apoio no âmbito das
EMEIs172 de São Bernardo do Campo.
A noção de campo está aí para designar esse espaço relativa-
mente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias.
Se, como macrocosmo, ele é submetido a leis sociais, essas não
são as mesmas. Se jamais escapa às imposições do macrocosmo,
ele dispõe, com relação a este, de uma autonomia parcial mais ou
menos acentuada (BOURDIEU, 2004, p. 20).
171 De acordo com o art. 9 do estatuto de 1998, são atribuições do orientador pedagógico a orientação, o
planejamento e a supervisão ao ensino. No art. 14 § único, tais atribuições são entendidas como fun-
ções do magistério. Com relação à organização, o referido estatuto garante que haverá um orientador
pedagógico para cada 50 classes de Educação Infantil.
376
Lei municipal nº 4688, de 26 de novembro de 1998 (que dispõe sobre o ensino
público municipal de SBC e sobre o Estatuto do Magistério).
A mudança de lugar no campo experimentada pelas PAPs deslocou essas
profissionais para um lugar de fala diferenciado em um contexto que pouco se
modificou, pois elas continuaram a circular no interior da escola, saindo para
receber as formações e orientações da SEC e voltando para trazê-las ao interior
da escola. Houve um período de transição, em que a PAP foi assumindo a coorde-
nação da HTPC, mas o cargo de orientador pedagógico não desapareceu, apenas
assumiu outras configurações.
Para Fusari (1988), a ideia de treinamento para educadores passa a vigorar
com grande força a partir da década de 1960, priorizando técnicas, métodos e
relações, incluindo dinâmicas de grupo. A partir dos anos 1970 tem início a as-
sociação da ideia tecnicista à ideia de eficiência. Com isso, a própria escola é im-
pulsionada a organizar-se de maneira racional e produtiva, e o treinamento tem
um forte apelo relacionado aos temas planejamento e objetivo. As habilidades que
se perseguem são a de bem planejar e a de integrar artefatos tecnológicos. Para
Fusari (1988, p. 20), tal tipo de treinamento aliena a atividade educativa das ques-
tões sociais, pois coloca a escola como um lugar onde se investe tempo, estudando,
para colher benefícios futuros no mercado de trabalho.
O texto de Fusari (1988, p. 24) aponta a necessidade de novos pressupos-
tos para uma política de educação de educadores: “o processo de indicação das
necessidades de educação em serviço deverá ser encaminhado, com a participação
efetiva dos educadores, discutindo os problemas que enfrentam no cotidiano do
seu trabalho”.
Atuar nessas frentes gerou desafios iniciais. Por exemplo, como seria para
as primeiras professoras na função de PAPs solicitar que o grupo de professores
submetesse seu planejamento à apreciação de outro professor?
Retomamos Nóvoa (2013), sobre as quatro condições que precisam estar
presentes para a existência de uma profissão: 1) dedicação em tempo integral;
2) legislação específica que regulamente a profissão; 3) formação específica ga-
rantida pelas escolas Normais, Cursos Magistérios e Faculdade de Pedagogia; e,
por fim, 4) a criação de associações e sindicatos. Observando essas condições, a
situação da PAP era frágil, considerando que esses elementos ainda não haviam
se consolidado, e que suas atividades esbarravam no que antes estava designado
apenas ao professor realizar, como, por exemplo, os estudos para aprimoramento
e planejamento e a avaliação do próprio trabalho.
377
As PAPs, a profissão e a carreira docente: o que dizem as normativas?
378
Edital nº 01/99, de11 de junho de 1999 Este é o primeiro edital de seleção para as
Normatização e inscrição de conformidade com o disposto na resolu- atividades educacionais complementares.
ção 7019/99. Nanci Luglio Censon, na qualidade de coordenadora da Esboça como a Rede se organiza quanto à
comissão de normatização das atividades educacionais complemen- quantidade de professoras fora da sala de
tares, torna pública aos integrantes do quadro do magistério da Rede aula, exercendo funções do magistério, para
Municipal de ensino a normatização do artigo 10 da lei municipal nº que os alunos não sejam prejudicados; e
4681/98. traz os contornos do perfil desse profissio-
nal quanto aos pré-requisitos, seleção e per-
manência na função, mas silencia quanto às
atribuições. Limita em 2 anos o tempo de
permanência em designação.
Fontes: Publicações das normativas na imprensa oficial — Notícias do Município (1997-90) — que regula-
mentavam e davam exequibilidade às alterações do estatuto do magistério.
379
que em relação à chamada feminização do magistério e ao seu
outro a desmasculinização, [...] a legislação é pródiga em exem-
plos (FARIA FILHO,1998, p. 115).
380
possibilidades abertas no campo pela utilização dessa categoria de análise, desde
que se tenha o cuidado de não produzir estudos historiográficos baseados apenas
nas reformas educacionais.
Observamos que tanto Viñao Frago (2002) quanto Faria Filho (2001) alu-
dem ao fato de que a legislação por si só não permite uma análise completa do
campo educacional. Viñao Frago (2002) indica a necessidade de análises mais
complexas, que podem ser agrupadas na categoria das culturas escolares. O autor
afirma inclusive que há várias culturas escolares, da mesma forma que há várias
escolas.
As resoluções emanadas pela Secretaria de Educação e Cultura conferi-
ram legitimidade à PAP, proporcionando sua inserção no cenário educacional
do Município de São Bernardo do Campo. Nas Resoluções SEC, a PAP é uma
profissional que se submete a uma seleção interna pela escrita de um projeto e
que, ao final do ano letivo, precisa ter suas práticas validadas por seu grupo para
continuar atuando, pois havia a possibilidade de ela não ser validada ao final de
um ano de trabalho. Ao participar da seleção, ela aceitava a incerteza tanto da
continuidade, que perdurava, caso ela fosse selecionada, até o final do ano letivo,
quanto das atribuições, com as quais ela só teria contato efetivo quando ingres-
sasse na função.
381
mas, antes, é a representação que deles faz o sujeito e, dessa for-
ma, pode ser transformadora da própria realidade (CUNHA,
1997, p. 39).
173 Sobre o conceito de “enquadramento”, Pollak (1989) cita Henry Rousso como autor do termo me-
mória enquadrada em lugar de memória coletiva. Como um exemplo de enquadramento da memória,
cita o trabalho dos historiadores no campo político: historiadores gauleses, historiadores socialistas,
sindicalistas etc. cuja tarefa de enquadramento da memória ajudou a constituir a história nacional da
herança do século XX na França.
174 Entrevista concedida por Margarida. Entrevistadora Rubia Armelini de Freitas. São Bernardo do
Campo, 23 de julho de 2019. A entrevista encontra-se transcrita na íntegra em Freitas, 2020.
382
alternativas de escola, mediante a localização que você preferia. Eu
coloquei três alternativas e as duas primeiras eram pertinho da mi-
nha casa. Bem pertinho da minha casa. Mas, as professoras que que-
riam ser PAP já eram da escola, então, elas foram escolhidas primeiro
e elas ficaram como PAP e eu fiquei com a minha terceira opção que
era no Bairro das Flores: a EMEB Vitória Régia. 175
175 Entrevista concedida por Miosótis. Entrevistadora Rubia Armelini de Freitas. São Bernardo do Cam-
po, 10 de julho de 2019. A entrevista encontra-se transcrita na íntegra em Freitas, 2020.
177 Entrevista concedida por Azaleia. Entrevistadora Rubia Armelini de Freitas. São Bernardo do Cam-
po, 23 de julho de 2019. A entrevista encontra-se transcrita na íntegra em Freitas, 2020.
383
você não tem mais como ser do grupo. Eu tinha ali... Porque eu che-
guei em 1989. Eu tinha nove anos de escola. Minhas colegas tinham
20/25 anos de escola, então era complicado. E aí, conversando uma
vez com uma colega, eu falei: “Olha, a Diretora quer que eu assuma o
lugar da PAP anterior”. Ela virou para mim e disse assim: “Olha, se
você não quiser nunca mais falar com ninguém nessa escola, assuma
como PAP”179.
180 Entrevista concedida por Lisianto. Entrevistadora Rubia Armelini de Freitas. São Bernardo do Cam-
po, 29 de julho de 2019. A entrevista encontra-se transcrita na íntegra em Freitas, 2020.
384
“o que a memória individual grava, recalca, exclui é um trabalho de organização”,
ou seja, um fenômeno construído e influenciado pela memória coletiva ou social.
Assim, compreendemos que as experiências vividas e relatadas por cada uma das
profissionais nas escolas não são apenas percepções da PAP, são memórias que
sofrem influências das políticas e dos julgamentos sobre o vivido.
Além disso, observamos a preocupação com a escolha dessas profissionais
expressa também na legislação. Foram necessárias três resoluções sobre a consti-
tuição da comissão para estabelecer os critérios da designação de professoras para
as atividades complementares181: a resolução SEC nº 11/93, de 26 de março de
1999, que instituiu a comissão sem nomear nenhum membro e indicou o assunto
do qual iriam tratar; a Resolução SEC nº 03/99, de 19 de abril de 1999, que indi-
cou os membros, entre os quais professoras, diretores, orientadores pedagógicos e
ocupantes de cargos em comissão; e a resolução SEC/SEDESC 02/99, de 23 de
abril de 1999, que considerou a participação de membros de outras Secretarias,
como a de Desenvolvimento Social (SEDESC), para a elaboração dos critérios
de seleção.
Faria Filho (1998), ao criticar a corrente historiográfica que entende a
legislação como expressão da classe dominante, nos oferece duas chaves de lei-
tura. A primeira permite olhar a lei como estratégia de intervenção de diferen-
tes grupos no campo educativo, e a segunda como materialização prática de um
pensar pedagógico. Considerando que há presença de integrantes do quadro do
magistério na comissão que discute os critérios de seleção para PAP (conforme
comentários acerca do quadro 1), um elemento de compreensão possível é que a
figura da PAP emerge não por intervenção do pensar da classe dominante, mas
por expressão do pensar pedagógico182 da própria categoria das professoras:
[...] assim, se conceber também a lei como materialização, ou
como prática de um determinado “pensar pedagógico”, pode-
rei perceber outros ângulos até então não pensados antes, por
exemplo, muito mais do que temos pensado, a lei está intima-
mente ligada a determinadas formas de concepção da escola,
concepções estas que são produzidas no interior dos parlamen-
tos ou de alguma outra instância do Estado, mas apropriadas de
maneiras as mais diversas pelos diferentes sujeitos ligados à pro-
dução e à realização da legislação. Talvez seja essa, também, uma
boa chave de leitura para uma aproximação das inúmeras leis e
reformas de ensino como estratégia de intervenção, de diferen-
tes grupos, no campo educativo (FARIA FILHO, 1998, p. 115).
181 Nome dado pela lei municipal nº 4681, de 26 de novembro de 1998, para as atividades que o professor
pode desempenhar além de ministrar aulas em turmas de alunos.
182 Faria Filho (1998), ao falar em pensar pedagógico, refere-se ao método mútuo, pois está tratando da
legislação dos anos 20 e 30 do século XIX.
385
O primeiro edital de seleção (1999) apontava apenas duas condições para
participar do processo seletivo. A primeira era atender aos requisitos de provi-
mento para o cargo de professor, estabelecidos de acordo com o quadro XIV,
anexo 6, da lei 4681/98: habilitação específica em magistério em nível básico
infantil e de ensino médio com habilitação em pré-escola, ou curso superior em
Pedagogia com licenciatura plena e habilitação em pré-escola e cursos em nível
superior com formação para a docência que habilitem ao desempenho profissio-
nal nessa área educacional, nos termos da legislação. A segunda condição era ter
experiência mínima de três anos na função.
Ouvir as vozes das PAPs por meio das entrevistas instigou a discussão
(embora breve), de temas como memória, esquecimento e identidade docente,
considerando as lições de Bourdieu (1996, p.186) quanto ao fato de que o relato é
uma representação do vivido e que está condicionado a uma visão de si e ao lugar
do discurso.
Considerações finais
386
diretores —, mesmo antes de participarem do processo de seleção, consultando o
grupo, preparando-se para escrever o projeto e, assim, demonstrar seus saberes.
Ao recuperar sua constituição nos meandros das normativas e as memórias
de suas ações, podemos perceber a partir de quais bases constituíram um conjunto
de saberes criador dos contornos do futuro cargo de coordenador pedagógico.
Não obstante os desafios, a função de PAP não naufragou, ao contrário, constituiu
terreno fértil, abrindo caminho para sua transformação em cargo, via concurso
público de ingresso no ano de 2009. Todas as elaborações discutidas até aqui pos-
sibilitam-nos perceber as dificuldades, resistências e superações das profissionais
que, primeiramente, assumiram a função de professoras de apoio pedagógico.
Villela (2000, p. 96), ao retomar a descrição do mestre-escola realizada por
Manuel Antônio de Almeida na obra Memórias de um sargento de milícias, comen-
ta que entre o professor de hoje e o mestre-escola de outrora há estranhamentos
e familiaridades reveladores de traços que os distinguem e, ao mesmo tempo, os
aproximam. E então questiona: O que mudou na história da profissão docente?
Quais traços de seu ofício têm se mantido? É possível perceber continuidade na
configuração dessa atividade?
Villela (2000) fala de outra configuração de escola, diferente da que co-
nhecemos. Com estas reflexões finais, não pretendemos ligar eventos afastados no
tempo para construir uma narrativa histórica, mas trazer aspectos que permitam
a continuidade do debate sobre a emersão da coordenação pedagógica, a partir de
elementos recorrentes em nossa recente história da profissão docente.
Referências
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1: Artes de fazer. 22. ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 2017.
387
CUNHA, Maria Isabel da. Conta-me agora! As narrativas como alternativas
pedagógicas na pesquisa e no ensino. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v.
23, n. 1/2, p. 185-95, jan.-dez. 1997. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfe/
article/view/59596/62695 Acesso em: 8 jan. 2022.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. A legislação escolar como fonte para a história
da educação: uma tentativa de interpretação. In: ______. (Org.). Educação, modernidade
e civilização. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. p. 89-125.
FREITAS, Rubia Armelini de. Cenas inéditas da vida das professoras de apoio pedagógico:
um estudo da emersão da função de professor coordenador em São Bernardo do Campo:
1998 a 2009. 2020. 163 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal de São Paulo, São Paulo, 2020.
MIGNOT, Ana Chrystina V. Um objeto quase invisível. In: ______ (Org.). Cadernos
à vista: escola, memória e cultura escrita. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2008. p. 261-
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NÓVOA, António. Os professores e as histórias da sua vida. In: ______. (Org.). Vidas
de professores. 2. ed. Porto: Porto Editora, 2013. p. 18-30.
388
VILLELA, Heloísa de Oliveira. O mestre-escola e a professora. In: LOPES, Eliana
Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive (Org.).
500 anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica. 2000. p. 95-134.
389
AUTORAS E AUTORES
CLAUDIA PANIZZOLO
Estágio pós-doutoral na Universidade de Caxias do Sul/ Università degli Studi del
Molise- Itália (2018-2019). Professora Associado III da Unifesp desde 2011. Líder
do Grupo de Estudos e Pesquisa Infância, Cultura, História- GEPICH; membro
pesquisadora do Grupo “História da Educação, Imigração e Memoria” - GRUPHEIM
e do Grupo “TRANSFOPRESS BRASIL - Grupo de Estudos da Imprensa em
língua estrangeira no Brasil”; do Grupo de Estudos e Pesquisa História da Educação:
intelectuais, instituições, impressos. E-mail: claudia.panizzolo@unifesp.br
390
em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado em
Pedagogia. Atua como assistente técnico de educação na Divisão Pedagógica da
Secretaria Municipal de Educação do município de São Paulo. E-mail: edu10puntos@
gmail.com
391
produção e circulação de impressos pedagógicos nos Estados Unidos durante o século
XX. E-mail: leonardobetfuer.historia@gmail.com
392
ROSANA CARLA DE OLIVEIRA
Doutoranda e mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
sob orientação da Profª Drª. Claudia Panizzolo, Especialista em Docência do
Ensino Superior (PUC-SP), Pedadoga (UNICASTELO). Atualmente é formadora
responsável pela formação de professores alfabetizadores da Secretaria Municipal de
Educação de São Paulo. Desenvolve pesquisa no campo da História das Instituições
Educativas. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas: Infância, Cultura e História-
GEPICH. E-mail: rosanatts1@gmail.com
393
Este livro resulta de pesquisas desenvolvidas por do-
centes e pós-graduandos vinculados à linha História da
Educação – sujeitos, objetos e práticas, do Programa de
pós-graduação em Educação da Universidade Federal
de São Paulo. Tratam-se de textos decorrentes de inves-
tigações que se somam à renovação e ao alargamento
temático e teórico-metodológico que vem se desenvol-
vendo no campo nas últimas décadas, com especial at-
enção para os impressos escolares, os impressos de des-
tinação pedagógica e os processos escolares formais, seus
sujeitos e suas práticas.
Os Organizadores
ISBN 978-65-87312-52-1
9 786587 312521