Você está na página 1de 394

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO:

SUJEITOS, OBJETOS
E PRÁTICAS

Mirian Jorge Warde


Fernando Rodrigues de Oliveira
(Organizadores)

Coleção PPGE

1
Coleção PPGE
Volume 6

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO:
SUJEITOS, OBJETOS E PRÁTICAS

Mirian Jorge Warde


Fernando Rodrigues de Oliveira
(Organizadores)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
ESCOLA DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

Reitor Prof. Dr. Nelson Sass


Vice-Reitora Profª. Drª. Raiane Patrícia Severino Assumpção
Diretor da EFLCH-Guarulhos Prof. Dr. Bruno Konder Comparato
Vice-Diretora da EFLCH-Guarulhos Profª. Drª. Sandra Regina Leite de Campos

Conselho Editorial do Programa de Pós-Graduação em Educação

Presidente
Luiz Carlos Novaes (Universidade Federal de São Paulo, Brasil)

Conselheiros:
Luiz Carlos Novaes (Universidade Federal de São Paulo, Brasil) (Presidente)
Adriana Lia Friszman Laplane (Universidade Estadual de Campinas, Brasil)
Alberto Barausse (Università degli Studi del Molise, Itália)
Allan Patrick Olivier (Université de Nantes, França)
César Tello (Universidad Nacional de Tres de Febrero, Argentina)
Denise Braga (Universidade Estadual de Campinas, Brasil)
Fernando Bárcena (Universidad Complutense de Madrid, Espanha)
Jefferson Mainardes (Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil)
Laurinda Souza Ferreira Leite (Universidade do Minho, Portugal)
Luanda Rejane Soares Sito (Universidad de Antioquia, Colômbia)
Márcia Jacomini (Universidade Federal de São Paulo, Brasil)
Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo (Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil)
Rosa Fátima de Souza Chaloba (Universidade Estadual Paulista, Brasil)
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo (Universidade Estadual de Campinas, Brasil)
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO:
SUJEITOS, OBJETOS E PRÁTICAS

Mirian Jorge Warde


Fernando Rodrigues de Oliveira
(Organizadores)

Coleção PPGE
Volume 6

Programa de Pós-Graduação em Educação


Universidade Federal de São Paulo
2022
Copyright © 2022 - Universidade Federal de São Paulo

PROJETO GRÁFICO
Alcindo Donizeti Boffi

DIAGRAMAÇÃO
Marcos Lourenço | MC&G Design Editorial

CAPA
Alcindo Donizeti Boffi

REVISÃO
O conteúdo dos textos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de responsabi-
lidade dos respectivos autores.

Dados Intrenacionais de catalogação na Publicação (CIP)


Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

História da Educação [livro eletrônico] : sujeitos, objetos e práticas


/ Mirian Jorge Warde, Fernando Rodrigues de Oliveira, (organi-
zadores). — São Paulo, SP : Universidade Federal de São Paulo,
2022. — (Coleção PPGE ; 6).
PDF
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN: 978-65-87312-52-1

1. Educação - História I. Warde, Mirian Jorge Warde. II. Oliveira,


Fernando Rodrigues de. III. Série.

22-117212 CDD: 370.9

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB - 8/9380

Índices para catalogação sistemático :


1. História da Educação : 370.9
SUMÁRIO
PREFÁCIO
CAMINHOS DA EDUCAÇÃO, VEREDAS DE PESQUISA 9
Vera Teresa Valdemarin

APRESENTAÇÃO 13
Mirian Jorge Warde
Fernando Rodrigues de Oliveira

1ª PARTE
IMPRESSOS EDUCACIONAIS

1. REVISTAS DE EDUCAÇÃO E ENSINO NA HISTORIOGRAFIA


DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA (1988 A 2021) 16
Mirian Jorge Warde

2. FALAR PARA OU FALAR COM OS PROFESSORES: O DISCURSO


DOS COLABORADORES DA REVISTA DE EDUCAÇÃO DE
SÃO PAULO (1930-1960) 49
Regina Cândida Ellero Gualtieri

3. “HABILIDADES FÍSICAS E MENTAIS DO NEGRO AMERICANO”


NO JOURNAL OF NEGRO EDUCATION (1934) 73
Leonardo Laguna Betfuer

4. REVISTA ATUALIDADES PEDAGÓGICAS E A ‘NOBRE CRUZADA’


PELA UNIDADE NACIONAL (1950-1962) 91
Claudia Panizzolo

5 A FORMAÇÃO DO PROFESSORADO COMO ANTÍDOTO


PARA O BAIXO RENDIMENTO ESCOLAR. REPRESENTAÇÕES
VEICULADAS NA RBEP (1952-1961) 121
Fernanda Marques da Silva
Regina Cândida Ellero Gualtieri
2ª PARTE
IMPRESSOS DE DESTINAÇÃO PEDAGÓGICA

6 INSTRUIR A INFÂNCIA PELAS LIÇÕES MORAIS E RELIGIOSAS:


CONTOS BRAZILEIROS (1881), DE GABRIELLA DE
JESUS FERREIRA FRANÇA 150
Fernando Rodrigues de Oliveira

7 OS MÉTODOS DE SOLFEJO NA EDUCAÇÃO MUSICAL


NAS ESCOLAS PRIMÁRIAS DO ESTADO
DE SÃO PAULO (1890 – 1910) 177
Elias Moraes dos Santos Junior

8 VIRGÍNIA MELLE DA SILVA LEFÈVRE (1907-1987):


CONTRIBUIÇÕES DE UMA INTELECTUAL MEDIADORA PARA
O CAMPO DA LITERATURA INFANTIL E DA EDUCAÇÃO 193
Amanda Topic Ebizero

9 “ASSUMPTOS QUE CONCORRAM PARA A FORMAÇÃO DE


SEUS SENTIMENTOS”: A INFÂNCIA REPRESENTADA NAS
OBRAS FRANCISCO FURTADO MENDES VIANNA (1908) 205
Alessandra Melo Secundo Paulino

10 O ERRO EM MATEMÁTICA: SUBSÍDIOS PARA


A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO 223
Wagner Rodrigues Valente

3ª PARTE
A ESCOLA SEUS SUJEITOS E SUAS PRÁTICAS

11 CELEBRAR A ESCOLA: AS INSTITUIÇÕES PRÉ-ESCOLARES


EM SOROCABA (1954 - 1994) 243
Priscila Carriel de Lima
Renata Marcílio Cândido

12 NOS TEMPOS DA CRECHE: MEMÓRIAS DAS INFÂNCIAS


EM FOCO (DÉCADA DE 1970 A 1990) 261
Rosana Carla de Oliveira
13 VESTÍGIOS DA CULTURA ESCOLAR OITOCENTISTA
EM SÃO PAULO: O CASO DA ESCOLA DE PRIMEIRAS
LETRAS DE SANTA IFIGÊNIA (1832-1846) 282
Eduardo Bezerra de Souza

14 “INSTRUINDO E DOUTRINANDO A INFÂNCIA”:


A AMPLIAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO ENSINO NAS ESCOLAS
DE PRIMEIRAS LETRAS EM SÃO BERNARDO (1865-1889) 302
Adriana Santiago Silva
Claudia Panizzolo

15 OS IDEAIS RENOVADOS DE ENSINO ASSOCIADOS À


EXPERIÊNCIA FESTIVA NAS ESCOLAS PRIMÁRIAS
PAULISTAS (1900-1960) 323
Renata Marcílio Cândido

16 “TEM HAVIDO NAS DISCUSSÕES UM AZEDUME, UMA


ACRÉMONIA TAL, QUE TEM SE TORNADO DE GRANDE
INCONVENIENCIA”: DISPUTA E CONSTRUÇÃO DO
HABITUS PROFESSORAL A PARTIR DE UM
PROCESSO DISCIPLINAR (1895) 340
Gabriel Meneses Barros

17 PRÁTICAS LIBERTÁRIAS EM EDUCAÇÃO -


A ESCOLA MODERNA NO1 (1913-1919) 350
Renan Leocádio Souza

18 A CONSTITUIÇÃO DA FUNÇÃO DA COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA


EM SÃO BERNARDO DO CAMPO: AS ESTRATÉGIAS DAS
PROFISSIONAIS (1998 A 2009) 372
Rúbia Armelini de Freitas

AUTORAS E AUTORES 390


PREFÁCIO
CAMINHOS DA EDUCAÇÃO, VEREDAS DE PESQUISA

A diversidade e o volume dos estudos em História da Educação no Brasil


destacam-se em eventos internacionais e apresentam linhas investigativas conso-
lidadas. Nos encontros nacionais, é possível verificar temáticas e períodos escru-
tinados por grupos que se firmaram nas diferentes regiões do país, por meio dos
quais percebe-se diacronias, sincronias e variações nos projetos de implantação e
desenvolvimento de sistemas educacionais.
Pesquisadores em início de carreira nos anos de 1990, como é meu caso,
não poderiam vislumbrar que a bibliografia sobre História Cultural (então deno-
minada nova História Cultural), que começava a chegar ao país, apenas parcial-
mente disponível em língua portuguesa, impulsionaria um volume tão grande de
estudos e de abordagens interpretativas. Avidamente lida e discutida nos Pro-
gramas de Pós-Graduação que foram sendo, paulatinamente, criados nos esta-
dos brasileiros, essa vertente historiográfica modificou, e continua modificando, a
compreensão sobre os processos educacionais, suas características regionais, bem
como as semelhanças estruturais. Um conjunto de autores e textos, em constante
ampliação, tornaram-se referência comum e incrementaram o diálogo concei-
tual e o esforço analítico. Operando com esses conceitos, ao longo das últimas
décadas, os estudiosos brasileiros introduziram neles variações interpretativas e
apontaram diferenças contextuais e conjunturais e formaram novas gerações de
pesquisadores.
Os ciclos educacionais deixaram de ser analisados apenas com base nas
sucessivas mudanças legais – em geral, identificadas pelo nome de seus proposi-
tores – e seu contexto político-econômico e incorporaram um grande acervo do-
cumental, um dos pilares da nova vertente interpretativa: impressos, fotografias,
edificações, instituições, memórias, correspondência e, claro, o “redemoinho das
práticas” (prescritas, previstas ou efetivadas) e seus suportes incontáveis materiais.
O estudo sobre os intelectuais da educação se desvencilhou de um certo caráter
voluntarista para compreendê-los a partir de redes que, por sua vez, franquearam
a descoberta e a inclusão de sujeitos que, sem serem protagonistas, desempenha-
ram múltiplas e decisivas funções no sistema, cuja visibilidade se dava por meio
de dispositivos textuais e normativos.

9
No entanto, a intenção interpretativa antevista nas possibilidades do arca-
bouço conceitual demandava operações mais formais: a organização/criação de
acervos e bancos documentais já que havia poucos em condições otimizadas de
uso à disposição dos pesquisadores. Esse trabalho foi capitaneado por grupos
de pesquisa alocados em quase todas as universidades, com predomínio daquelas
públicas, sem prescindir da iniciativa particular.
Grandes projetos coletivos, inclusive com vínculos internacionais, volta-
ram-se para a elaboração de inventários documentais, tarefa que se mostrou es-
sencial para impulsionar e multiplicar o número de pesquisas. Simultaneamente
à análise de periódicos específicos que circularam em diferentes regiões do país, a
imprensa pedagógica e educacional foi recenseada, localizada e, principalmente,
se tornou acessível para novos estudos, ora tomada como objeto, ora como fonte
para o conhecimento de processos, métodos de ensino, conteúdos escolares, dis-
cussões curriculares e dos intelectuais que nela atuaram e por meio dela adquiri-
ram algum tipo de projeção como autores, formuladores ou atuação em diferentes
níveis da hierarquia do sistema educacional.
Trabalho semelhante foi feito com a legislação educacional promulgada
nos diferentes estados, tornando visível diacronias, semelhanças de propósitos e
adesão a vertentes pedagógicas e, notadamente, o ritmo da inovação educacional
e suas particularidades. Sob um mesmo propósito nacional, tornaram-se eviden-
tes as diferenças na organização de sistemas e graus de escolaridade, modalidades
de instrução, formação de professores, o atendimento ou não das demandas so-
ciais e a contradança entre desenvolvimento urbano e rural.
Os livros didáticos e escolares, em geral, menosprezados nos acervos regu-
lares, adquiriram status e espaços próprios e, inventariados a exemplo dos grandes
projetos internacionais, contribuíram para o entendimento dos processos de cir-
culação, editoração, autoria e produção de conteúdos escolares. E, nesses acervos,
os livros dedicados ao ensino da leitura e da alfabetização adquiriram lugar de
destaque. O movimento mais recente desse tema ocorre com a organização e o
estudo de bibliotecas particulares ou específicas, mesmo que institucionais, ou
provenientes de editoras e associações. A mudança de perspectiva – dos acervos
institucionais para os acervos especializados e particulares – abre horizontes para
o conhecimento do consumo e apropriação desse material, aspecto que, muitas
vezes, ficava à sombra e sobre o qual pouco podia ser dito.
O incremento mais recente nos inventários e na catalogação de fontes pos-
tos à disposição dos pesquisadores tem se dado no âmbito da cultura material
escolar. Objetos banais, mas imprescindíveis ao funcionamento escolar, deman-
dam maior esforço de catalogação. Previstos na legislação, reivindicados por pro-
fessores, essenciais ao desenvolvimento de diferentes propostas metodológicas,
esses materiais acabam sendo arrolados nas denúncias dos problemas que sua

10
ausência acarreta e no enxugamento orçamentário que acompanha todas as ini-
ciativas educacionais. No entanto, tornam-se visíveis em outros setores que não o
educacional propriamente dito: acervos patrimoniais, documentos de compras e
prestação de contas, entre outros, dificultando, mas não impedindo, o trabalho de
pesquisadores que têm demonstrado sua importância no trabalho cotidiano em
sala de aula, em diferentes períodos.
Os estudos sobre as instituições educacionais, arquitetura escolar e foto-
grafia, embora com referenciais teóricos específicos e interpretações originais,
aparecem entrecruzados com outros temas e colaboram nos recenseamentos aqui
indicados. Ilustram, revelam e delimitam espaços de atuação e de práticas peda-
gógicas, bem como a adesão, a resistência e a originalidade na concretização de
diferentes práticas e processos.
Parece-me ser esse o contexto de desenvolvimento dos estudos em His-
tória da Educação no Brasil com o qual os trabalhos que se seguem nesse livro
colaboram e ampliam. Originários de Instituição universitária e de Programa de
Pós-Graduação, cuja atuação na área de Ciências Humanas é mais recente, a lógi-
ca adotada na organização do volume articula dois grandes núcleos de estudo - os
impressos e a escola - e em seu interior, as diferentes fontes documentais tomadas
para as análises estabelecem diálogos com períodos, graus e ramos de instrução,
formação de professores, práticas pedagógicas e objetos escolares.
Com relação aos periódicos educacionais, os textos voltam-se para a aná-
lise da conformação de diferentes questões em periódicos específicos (Revista de
Educação, Atualidades Pedagógicas e Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos), mas
também apresentam aos leitores brasileiros periódico norte-americano dedicado
à discussão das questões raciais. A introdução a essas análises particularizadas
apresenta um balanço da produção historiográfica que tomou as revistas educa-
cionais como objeto, exercício analítico imprescindível para captar o sentido da
produção e constituir-se como base a partir da qual novos análises possam ser
desenvolvidas.
As pesquisas sobre impressos de destinação educacional, mais uma vez,
testemunham a versatilidade e a proficuidade dessa tipologia de material. O con-
teúdo neles tratado revela seu vínculo com conteúdos escolares específicos, dos
mais tradicionais, àqueles que, pela intermitência, atuaram como coadjuvantes do
currículo e da prática pedagógica. A autoria desses impressos revela sujeitos que,
em determinados períodos e regiões, deixaram marcas formativas na escolariza-
ção.
O eixo do livro dedicado à escola, sujeitos e práticas foi organizado com
base nos graus e modalidades escolares, indicando as particularidades que carac-
terizam cada um deles. A criação de instituições dedicadas à educação infantil,
que toma memórias, fotografias e legislação como fontes, descendam as dificul-

11
dades para sua instauração e manutenção, bem como sua necessidade social. Os
artigos sobre a escola primária (cujo denominação foi modulada por diferentes
políticas educacionais ao longo do tempo) focalizam o trabalho cotidiano e ro-
tineiro desenvolvido em instituições desse nível de escolarização, os materiais
necessários ou a ausência deles para o desenvolvimento do ensino e um conjunto
de atividades escolares que, embora não sendo cotidianas, constituem dispositi-
vos para o alcance dos objetivos, por vezes, tensionados entre as demandas e seu
atendimento.
Estão presentes também estudos que têm ligação forte com a formação de
professores em seus aspectos simbólicos e não, necessariamente, curriculares. Re-
lações hierárquicas, normas, espaços de controle e de exercício da profissionaliza-
ção são objeto de reflexão e análise. Indicam, portanto, de quantas circunstâncias
e iniciativas é constituída essa formação.
Parece-me que os avanços nos estudos historiográficos brasileiros, vistos
em perspectiva geral ou particularizados em linhas de pesquisa específicas, ainda
não conseguiram desvendar a tal caixa preta da escola (se é que isso é possível),
embora estejam num caminho promissor, dadas sua versatilidade e variedade.
Faltam-nos fontes mais precisas, há lacunas documentais a serem preenchidas,
mas sabemos hoje com quantas coisas, sujeitos e indícios das práticas a escola
tem sido modelada. A visão de conjunto dos estudos que compõem esse volume
indica quão lento é o processo de mudança educacional; indicam também que o
avanço no seu conhecimento, provavelmente, virá da capacidade de trabalho em
diferentes frentes, como indicado nos capítulos: estudos descritivos, pormenori-
zados e delimitados (por períodos, séries documentais, dispositivos educacionais)
e balanços analíticos e compreensivos que apontem os sentidos do que já foi feito
e as possiblidades abertas aos pesquisadores.

Vera Teresa Valdemarin


Verão, 2022.

12
APRESENTAÇÃO

Os autores reunidos nesta coletânea estão ligados à linha de pesquisa His-


tória da Educação: sujeitos, objetos e práticas do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos.
Há um tempo acalentamos o desejo de lançá-la a um público amplo de
sorte e nos apresentarmos como um grupo que já conquistou organicidade em
torno de temas e abordagens de pesquisa. Não o fizemos antes pelos motivos há
muito conhecidos dos pesquisadores brasileiros: sobrecarga de trabalho e carência
de recursos.
A esses motivos, obviamente, somaram-se os surtos virais que nos acome-
tem com mais gravidade há dois anos, coincidentes com o processo sistemático
de rebaixamento civilizacional a que temos sido sujeitos há três anos em média. É
sabido que a cultura brasileira está sendo golpeada de uma maneira geral, mas os
ataques às universidades, aos centros de pesquisa e aos organismos que lhes dão
suporte estão produzindo efeitos deletérios de longa duração.
Por isso mesmo, manter viva a atividade científica e lhe dar publicidade
constituem-se, hoje, como em outros tempos sombrios, esforço colossal que só
é possível realizar pela soma de energias e a esperança que o novo poderá surgir
com a nova geração que estamos formando, aqui representada por por 12 autoras/
autores em processo de formação como mestres e doutores. A elas/eles se soma-
rão muitas/os outras/os formadas/os e formandas/os da linha que não puderam
participar nesta oportunidade por uma série de fatores.
Sobre os capítulos, alguns esclarecimentos. Os trabalhos das/os 12 dou-
torandas/os, mestrandas/os e mestres aqui reunidos foram definidos, com seus
respectivos orientadores e orientadoras, a partir de suas pesquisas em andamento
ou já concluídas e defendidas. Em conjunto também decidiram pela autoria in-
dividual ou pela coautoria. Quanto aos capítulos assinados pelos seis docentes,
três são originais - de Fernando Rodrigues de Oliveira, Renata Marcílio Cândido
e Wagner Rodrigues Valente - e os outros três - de Claudia Panizzolo, Regina
Gualtieri e Mirian Warde - são versões de artigos originalmente publicados no
dossiê Journals for teachers, children and youth as a transnational phenomenon. Direc-
tions and experiences of the periodical press in Italy, Brazil, Spain, France and United
States between political, social and cultural changes in 19th and 20th Centuries, or-
ganizado por Alberto Barausse, Claudia Panizzolo, Roberto Sani e Mirian Jorge
Warde, em número recente da revista History of Education & Children’s Literature
(HECL), 2021-2.

13
Aos e às colegas da linha de História da Educação do campus Guarulhos,
aos nossos orientandos e orientandas aqui presentes, os nossos agradecimentos
pelos esforços gigantescos que dispenderam para concluir seus capítulos, em um
curto espaço de tempo, comprometendo o tempo de convívio familiar e de férias
ou mesmo adiando outros compromissos.
À coordenação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unifesp,
agradecemos toda atenção e apoio.

São Paulo, verão chuvoso e pandêmico de 2022


Mirian Jorge Warde
Fernando Rodrigues de Oliveira

14
1ª PARTE
IMPRESSOS EDUCACIONAIS
1. REVISTAS DE EDUCAÇÃO E ENSINO COMO
OBJETO DE HISTORIADORES DA EDUCAÇÃO
(BRASIL, 1988-2021)1

Mirian Jorge Warde

Introdução

Os sinais de que novas tendências historiográficas estavam circulando en-


tre os historiadores da educação foram percebidos em meados da década de 1980,
beneficiadas pelos novos ambientes de pesquisa nas universidades. Pesou de ma-
neira especial, o processo - ainda que lento e não completo - de encerramento da
ditadura civil-militar que havia se instalado em 1964.
Em um balanço realizado por Warde (1984) foi constatada na historiogra-
fia da educação brasileira a predominância de duas vertentes temáticas, nas quais
a poucos sujeitos eram atribuídos poderes extraordinários: de um lado, o estado e
suas (más) intervenções na sociedade civil por meio de leis, regulamentos, decre-
tos, programas de ensino etc.; o estado, portanto, como o sujeito da política; de
outro, a vida e a obra dos “pensadores da educação”, senhores da teoria e autores
das (melhores) prescrições pedagógicas; o estado como demiurgo das instituições
socais e os “pensadores” como produtores de si mesmos - pequenos barões de
Münchausen em face do estado leviatã.
Essas tendências, de origens diversas, foram se enfraquecendo no processo
de “distensão lenta e gradual’ entre fins dos anos 1970 e começos dos anos 1980,
quando o campo da educação foi tomado, de alto a baixo, pelas expectativas de
encerramento da ditadura civil-militar e a retomada do estado de direito. A disse-
minação dos escritos carcerários de A. Gramsci, à época, contribuiu grandemente
para introduzir a “cultura” como elemento novo capaz de romper a polaridade
estado-indivíduo então predominante na historiografia educacional.
O certo é que novas preocupações, novos interesses, novas sensibilidades
abriram espaço para novas abordagens, novos problemas, novos objetos. Em poucas

1 Este texto foi originalmente publicado no dossiê Journals for teachers, children and youth as a trans-
national phenomenon. Directions and experiences of the periodical press in Italy, Brazil, Spain, France,
and United States between political, social and cultural changes in 19th and 20th Centuries, para a
revista History of Education & Children’s Literature (HECL), 20221-2, com organização de Alberto
Barausse, Claudia Panizzolo, Roberto Sani e Mirian Jorge Warde.

16
palavras: deslocamento das atenções dos produtos para os processos e as práticas;
do alto para o baixo; do familiar para o estranho.
O interregno entre as predisposições para uma historiografia renovada e o
aparecimento dos primeiros trabalhos com a imprensa periódica foi relativamen-
te curto. Assim que se afirmou nas pesquisas de história da educação, a imprensa
periódica se apresentou tanto como fonte quanto como objeto (WARDE; CAR-
VALHO, 2000).
Contemporâneo a esse movimento, verificou-se uma tendência ao alar-
gamento dos focos temporais aos quais a historiografia educacional conferia até
então maior atenção. Se antes eram os anos pós-1930 que cativavam os histo-
riadores da educação, a partir de fins dos 1980, o século XVIII ganhava algum
interesse e o século XIX e início do século XX ganhavam muito mais atenção
(WARDE, 2003). Nesse novo movimento historiográfico, a década de 1930 não
foi relegada a segundo plano; ao contrário, foi enfaticamente revisitada, reinter-
pretada, mas não no âmbito exclusivo do estado e sim da perspectiva das disputas
intraestatais que envolviam defensores de diferentes padrões escolares, como, por
exemplo, católicos e liberais em relação à “Escola nova”. Em outros termos, em
relação ao século XIX e início do século XX ganharam proeminência os estudos
que buscavam a gênese da forma escolar; as práticas e os discursos que amalga-
maram a cultura da escola moderna2.
A disposição de “abrir a caixa preta” que se transformou com o tempo na
busca da “cultura escolar”, conduziu muitos pesquisadores a vasculhar materiais
e temas tradicionalmente não valorizados pelos historiadores da educação. Nes-
sa direção, foram defendidas teses sobre livros didáticos, manuais e compêndios
escolares, livros de leitura, cartilhas, dentre outros. Foi dessa forma inicial que os
impressos periódicos educacionais foram ocupando espaço3. Eram já expressão de
um interesse crescente pelas práticas para além das legislações e normas oficiais
de ensino.
O alargamento temático e temporal mobilizou o interesse por outros tipos
de impressos, para além daqueles diretamente destinados à ou apropriados pela
sala de aula. Estudos relevantes sobre jornais escolares e não-escolares; jornais
ligados a movimentos sociais mais amplos ou mais restritos vieram a público,

2 São bons exemplos dessas pesquisas, C. Monarcha, A reinvenção da cidade e da multidão: dimensões
da modernidade brasileira: a Escola Nova (1989); L. M. Faria Filho, Dos pardieiros aos palácios:
cultura escolar e urbana em Belo Horizonte na Primeira República (2000); R. F. Souza, Templos de
civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo (1998).

3 Um dos primeiros e mais destacados títulos nessa linhagem: Circe M. F. Bittencourt, Pátria, civilização
e trabalho (1917-1939) (1990).

17
juntando-se a estudos de panfletos, boletins, revistas, magazines e outras modali-
dades de impressos periódicos4.
Embora as condições de pesquisa no Brasil tenham melhorado desde os
anos 1980 para cá, ainda estão longe de oferecer facilidades ao pesquisador, des-
tacadamente ao historiador da educação. A quase totalidade de arquivos, biblio-
tecas e instituições correlatas não mantém banco de dados informatizados e de
acesso aberto5. Além disso, as políticas nacionais e estaduais de preservação e
acesso continuam desastrosas.
Assim, como seria de esperar, a imprensa periódica não escapou e não es-
capa a essas mazelas. Poucos pesquisadores ou grupos de pesquisa se dispuseram
até o momento a realizar o levantamento de impressos periódicos de educação e
de ensino lançados no Brasil a partir do início do século XIX e posterior publica-
ção de catálogos, tais como guias e repertórios. Àquelas limitações de acesso que
dificultam as pesquisas nos estados, acrescente-se a extensão territorial do Brasil
que exige um empreendimento de larga escala, custoso e de longo prazo6.
O Catálogo da Imprensa Periódica Educacional Paulista (1890-1996), orga-
nizado por Denice B. Catani e Cynthia P. Sousa (1999), é um raro empreendi-
mento de catalogação de revistas de ensinos criadas e editadas em um único es-
tado, o de São Paulo. Em cinco anos de trabalho, a equipe comandada pelas duas
pesquisadoras identificou 456 títulos. Por São Paulo ser o estado com a maior
concentração de capital e com grande concentração populacional, o Catálogo...
certamente cobre uma parcela significativa das revistas postas em circulação no
Brasil entre os séculos XIX e XX; portanto, já se tem aí uma amostra relevan-
te. Um levantamento complementar a esse foi realizado por Carlos Monarcha
(2004), que mapeou um segmento das revistas de educação e ensino editadas no
estado de São Paulo no período 1892-1944. Em dois anos (2003-2005), Monar-

4 Citarei aqui apenas exemplos dos primeiros trabalhos: M. T. Duarte. O trabalho de ensinar pedagogia
para a professora (1988), dissertação de mestrado orientada por Carlos R. Jamil Cury; D. B. Catani,
Educadores à meia-luz (um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professo-
rado Público de São Paulo: 1902-1908) (1989), tese de doutorado; D. Vidal e M. J. G. de Camargo, A
imprensa periódica especializada e a pesquisa histórica: estudos sobre o Boletim de Educação Pública
e a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1992); D. B. Catani e M. H. C. Bastos (orgs), Educação
em Revisa: a Imprensa periódica e a História da Educação (1997).

5 Cite-se, como relevantes exceções: A Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional que permite consulta
de mais de cinco mil títulos (https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ ) e o Repositório Digital
de Jornais e Revistas do Arquivo do Estado de São Paulo (http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/
acervo/repositorio_digital/jornais_revistas).

6 Monarcha (2004) localizou entre os trabalhos mais remotos no âmbito da História da educação e da
cultura: Carlos Silveira, Apontamentos para uma história do ensino público em São Paulo  revistas
de ensino, Educação, São Paulo, vol. ii, n. 3, p. 323-332, jun. 1929 e de Antonio Barreto do Amaral,
Nossas revistas de cultura. Ensaio histórico-literário, Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, n.
clxxiv, p.127-175, 1968.

18
cha rastreou 14 títulos. Amarílio Ferreira Neto e colaboradores (2002) organi-
zaram o único repertório disponível com cobertura nacional relativo à Educação
Física e Esporte, de 1930-2000; em quase quatro anos de trabalho, localizaram
36 periódicos nessa área7.
Além desses, alguns pesquisadores deram a conhecer outras modalidades
de impressos educacionais, como o que Maria Helena C. Bastos coordenou sobre
os jornais de estudantes no estado do Rio Grande do Sul (2015). Outros levan-
tamentos de menor alcance também foram realizados com base em revistas de
educação e ensino, aos quais não se teve acesso.
Assim, como se pode inferir, apesar do grande interesse pelos impressos
periódicos e pelas revistas em particular, poucos foram os investimentos bem-su-
cedidos de levantamento e catalogação desses títulos no Brasil. Não casualmente,
os estudos de história da educação que consideram revistas como objeto/fonte de
pesquisa apresentam um espectro relativamente pequeno de temas, abordagens,
autores, distribuição geográfica e temporal.
O levantamento realizado que dá base a este artigo apoia-se em uma con-
cepção ampla de revista de educação e de ensino: aquelas editadas ou mantidas
por professores para professores; de estudantes para seus colegas; de editores para
pais e professores; de inspetores para diretores e professores; de órgãos de estado
para professores ou outros níveis da hierarquia; de instituições de ensino para seus
docentes; de associações docentes para seus membros; de uma igreja para seus
seguidores ou para fatias da população a serem conquistada; de uma categoria
social para seus pares-docentes; de editoras comerciais que vendem seus produtos
em bancas de jornal para membros do magistério.
Para esse artigo, foram considerados 308 trabalhos que apresentam uma ou
mais revistas de educação e de ensino como objeto e, por decorrência, como fonte
privilegiada de pesquisa. São títulos tornados públicos entre 1988 e 20218. Entre

7 Nos escritos consultados de história dos impressos periódicos educacionais se encontram, com muita
frequência, referências a alguns trabalhos que teriam contribuído para a afirmação dessa temática entre
os historiadores da educação brasileira. Destacam-se: A. L. Martins, Revistas em revista: práticas
culturais em tempos de República, 1890-1922 (2008); H. F. Cruz (org.), São Paulo em Revista: catálogo
de publicações da imprensa cultural e de variedades paulistana, 1870-1930 (1997); A. Nóvoa, A imprensa de
educação e ensino - Repertório analítico (séculos XIX e XX) (1993); P. Caspard (org.). La presse d’éducation
et d’enseignement, XVIIIe siècle-1940. Répertoire analytique (1981- 1991); P. Caspard-Karydis (org.).
La presse d’éducation et d’enseignement. 1941-1990. Répertoire analytique (2000-2005); G. Chiosso
(org.), La stampa pedagógica e scolastica in Italia (1820-1943) (1997); M. De Vroed, Bijdragen tot de
Geschiedenis van het Pedagogisch leven in België in de 19de en 20ste eeuw. De Periodieken (1973-1987).

8 Os 308 títulos foram localizados em bancos de dissertações e teses da CAPES/MEC; repositórios das
bibliotecas universitárias; sítios Domínio Público e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
Tecnologia (IBICT); revistas especializadas em História da educação: Cadernos de História da edu-
cação; Revista Brasileira de História da educação; História da educação-UFPel; plataforma Lattes/
CNPq, os próprios autores e orientadores. R. Darnton (1990), referindo-se aos Estados Unidos, diz
que não sabe de onde novas tendências historiográficas aparecem, mas, uma vez que aparecem, são

19
os títulos selecionados estão: 155 dissertações de mestrado e teses de doutorado
(109 dissertações e 46 teses); 96 artigos de revistas e 57 capítulos de coletâneas.
Esses trabalhos ocupam-se de 123 diferentes revistas, que serão apresentadas, no
próximo tópico, pelo nome, ciclo de vida, local de publicação e seu responsável
(pela criação ou pelo financiamento)9.
No Quadro único em anexo, estão reunidas todos as 123 revistas estudadas
nos trabalhos de história da educação selecionados; seus títulos, ciclos de vida,
cidades aonde foram ou são editadas e os responsáveis pela concepção, pela edição
ou pelo financiamento.
Elas foram classificadas em 12 categorias criadas mediante a soma de dois
critérios: os criadores/mantenedores, ou seja, os responsáveis, e por algum traço
distintivo que merecia ganhar algum relevo10. São elas: “Revista Oficial, mantida
por órgão de Governo”; “Revista de associação docente e outros membros do ma-
gistério; sindicato de professores e outros profissionais da educação, professores
individualmente ou em pequeno grupo”; “Revista de instituição ou unidade de
ensino”; “Revista de centro de estudo, fundação e instituto de pesquisa”; “Revista
de movimento estudantil e de agremiação de estudantes”; “Revista criptocomer-
cial”; “Revista confessional e de educação religiosa”; “Revista comercial”; “Maga-
zine”; Revista de cultura”; “Revista de imigrantes” e “Revista de pais”.

apropriadas primeiramente pelos estudantes de doutorado; em seguida aparecem em cursos, então, se


difundem por revistas “mais estabelecidas”, inicialmente “as especializadas e de vanguarda. No Brasil,
o caminho que tem sido percorrido apresenta alguma modulação: os estudantes de mestrado têm sido
numericamente mais significativos do que os doutorandos na apresentação de novidades historiográfi-
cas, uma vez que aqui a pesquisa de mestrado tem sido crivada das mesmas exigências procedimentais
e têm servido como “momento preliminar” de uma trajetória que se completa e adensa no doutorado.
Quanto à difusão em revistas “mais estabelecidas”, o mesmo não ocorreu no Brasil no que tange à
História da educação: as revistas especializadas nessa disciplina nasceram basicamente sob o influxo
daquelas novas tendências historiográficas dos anos 1980 e ’90.

9 Para fins deste artigo foram deixados de lado os jornais e outras modalidades de impressos que não
se enquadram na categoria de “revista”. Mesmo admitindo que nuanças devem ser consideradas, para
esse artigo foi adotada a definição de G. Barbosa e C. A. Rabaça (1987, p. 516-517): «Revista: publi-
cação periódica que trata de assunto de interesse geral ou relacionado a uma determinada atividade ou
ramo de conhecimentos (literatura, ciência, comércio, política etc.) Produzida em forma de brochura,
a revista apresenta-se geralmente em formato menor que o jornal, maior número de páginas e capa
colorida, com papel mais encorpado. Veículo impresso, de comunicação e propaganda, quase sempre
ilustrado, que atinge a um público determinado, de acordo com suas características específicas e sua
linha editorial ou doutrinária, artísticas, literárias, educativas, culturais, científicas, de humor etc. Os
gêneros mais comuns de revistas destinadas ao grande público (ou a faixas determinadas desse grande
público) são: as noticiosas, as de interesse geral, as masculinas, as femininas, de moda, de fotonovela, as
infanto-juvenis, de histórias em quadrinhos (gibis), de esportes, de automobilismo etc. As revistas no-
ticiosas, geralmente semanais ou mensais, seguem uma linha relativamente próxima à dos jornais, mas
o tratamento das notícias é mais livre e interpretativo, a apresentação gráfica e o estilo redacional mais
amenos e dá-se mais destaque a artigos, críticas, notas, entrevistas, fotorreportagens e foto-legendas».

10 Uma vez definidas, as nomenclaturas das 12 classes foram reformuladas à luz da tipologia adotada por
D. Catani e C. Sousa no Catálogo por elas organizado (1999).

20
Cabem alguns esclarecimentos sobre essa tipologia: “Revista de imigran-
tes” e “Revista de pais” são dois exemplos de tipos criados para dar destaque à
origem e destinação: imigrantes e pais; do contrário, poderiam ser classificadas
em “Revista de instituição ... de ensino” e “Revista comercial”, respectivamente.
A classe “Revista criptocomercial” foi aberta para dar lugar às revistas comerciais
envoltas em uma aura acadêmica, seja porque se valeram de “especialistas” seja
porque evitaram a venda em bancas de jornal, por meio da venda por assinaturas
ou distribuição gratuita ou, ainda, porque mantiveram um regime de propagan-
da em suas páginas circunscrito ao ambiente educacional ou cultural. Por fim, a
inclusão da categoria “Magazine” se deve pela ênfase conferida pelos autores dos
respectivos trabalhos ao caráter educativo desses periódicos exclusivamente des-
tinados à “educação feminina”.

Revistas de educação e ensino como objeto dos historiadores da


educação (1988 a 2021)

Em matéria de comunicação, os títulos das revistas de educação e ensino


não primam pela originalidade, ao menos até as primeiras décadas do século XX;
especialmente aquelas mantidas por órgãos oficiais e por agrupamentos do ma-
gistério. Até os anos 1930, é visível a repetição de títulos, como “Revista do/de
ensino”; no Quadro único, aparecem 9 de oito estados diferentes: Alagoas, Ama-
zonas, duas em Minas Gerais, Pará, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul
e São Paulo, mas há registros - ainda incompletos - do mesmo título em outros
estados11. Só aparentemente se pode dizer que essa não era uma preocupação dos
seus editores que copiavam um dos outros o título e frequentemente também o
formato dos seus periódicos. A referência direta ao âmbito temático veiculado,
“ensino” e “pedagogia”, sugere a tarefa de afirmar um domínio ou “locus” específi-
co do “fazer” e do “saber”, assim como o termo “educação” o distingue em relação
às letras, à literatura e outros assuntos nos quais esteve envolvido, no Brasil, du-
rante praticamente todo o século XIX.

11 As revistas que já foram estudadas, mas que não aparecem com informações completas, foram deixadas
fora do Quadro único. Por ex., Revista do ensino da Bahia cujo ciclo de vida completo e o responsável
ainda não foram confirmados. Não foram incluídas, também, as revistas abordadas por trabalhos que
não estavam acessíveis enquanto eram localizadas as fontes deste trabalho. Por ex., uma dissertação de
mestrado que estuda a revista Em aberto criada e mantida pelo INEP/MEC desde 1981. Por fim, não
foi incluída a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, de 1896 a 2004, criada pelo
referido Instituto (IHGSP), posto que uma tese e um artigo a respeito só foram acessados quando este
artigo já estava concluído. Ver a respeito: M. A. Pereira, Subsídios para a história da educação no Brasil:
um estudo da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (2013), tese de doutorado
orientada por A. Ferreira Junior e M. A. Pereira, M. Tolentino, A. Ferreira Junior, M. C. P. I. Hayashi.
História da Educação nas páginas da revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (2016).

21
Por outro lado, os intercâmbios formais e programáticos entre os estados
se intensificaram a partir de fins do século XIX, ou seja, quando já proclamada
a república. Em quase todos os estados foram desencadeadas reformas quer no
sentido de extensão da escolaridade primária a um conjunto maior da população
quer visando a modernização administrativa e pedagógica das escolas públicas; a
formação, o preparo, a qualificação dos professores primários ganharam proemi-
nência, naquele momento, uma vez que a quase totalidade de docentes em exer-
cício não tinha qualquer formação específica, e um número considerável sequer
tinha concluído a escolaridade elementar.
Quando foram adotados no Brasil, os impressos periódicos de destinação
pedagógica ou os educacionais já circulavam nos Estados Unidos e na maioria
dos países europeus, servindo como ferramenta de comunicação das autoridades
com as demais instâncias hierárquicas, especialmente professores, visando instru-
mentá-los para a sala de aula; com isso, é quase certo que no Brasil os títulos das
revistas tenham se inspirado nos seus equivalentes estadunidenses e europeus,
assim como esses se copiavam.
De qualquer modo, para futuros estudos a esse respeito, há que se consi-
derar o peso da função atribuída ao impresso periódico pelos seus criadores no
momento da definição do seu nome.

Ciclo de vida

Os periódicos de educação e ensino estudados pelos historiadores da edu-


cação têm, em grande parte, vida curta; 40 (32,5%) não ultrapassaram o terceiro
ano de existência e 13 (10,6%) não foram além do sétimo ano de vida; ou seja,
53 (43,1%) dos periódicos estudados não conseguiram atravessar a crise dos sete
anos que, segundo a lenda, atinge o setor editorial. As demais 70 revistas, apre-
sentam uma grande variação: 21 (17,1 %) circularam mais uma década, 10 (8,1 %)
circularam mais duas décadas, 20 (16,3 %) atingiram mais três décadas e 5 (4,1
%) completaram mais quatro décadas12. Apenas 14 (11,4%) das revistas estudadas
alcançaram cinquenta anos ou mais de duração, tendo a mais longeva 182 anos -
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (1839) - seguida de outra com
166 anos desde sua criação, porém com 72 anos de circulação dadas as interrup-
ções - Revista Brazileira-Jornal de Sciencias, Letras e Artes (1855). Ambas, criadas
no período imperial, ainda em circulação e, hoje se pode dizer, não especializadas
em educação ou ensino, mas aqui incluídas por manterem por décadas matérias
relativas ao campo educacional e, por isso, fontes relevantes para o estudo da edu-

12 Ou seja, foram de 8 a 18 anos; de 19 a 29 anos; de 30 a 40 anos; de 41 a 50 anos e mais de 50 anos.

22
cação e do ensino entre os séculos XVI e XIX. Elas fazem parte do grupo de 27
(22%) revistas historiadas que ainda estão em circulação13.
Na Tabela 1, onde está registrado o tempo de duração dos diferentes tipos
de revistas. Nela, merece atenção a tendência a ciclos de vida curtos das revistas
de associações docentes; 20 (77%) não ultrapassaram sete anos de existência e
nenhuma continua em circulação. Essa tendência deve estar associada aos ciclos
de vida das próprias associações, também elas, com algumas exceções, fadadas
ao desaparecimento em curtos intervalos de tempo. Nesse grupo, também estão
incluídas as iniciativas de indivíduos, e nesses casos a circulação dos seus periódi-
cos variou entre um e três anos. Curioso é que esse tipo de revista parece ser um
fenômeno do século XIX e de começos do século XX: 46,2% dessa modalidade se
situam entre 1872 e 1894 e 34,6% circularam entre 1900 e 1920. A distribuição
das revistas de associações docentes etc. também podem ser pensadas a partir de
outros critérios, por exemplo: 8 (30,8%) são pré-republicanas; 13 (50 %) nascem
com as primeiras iniciativas de reformas republicanas do ensino nas quais exten-
são das matrículas primárias, a qualificação do professorado e o aperfeiçoamento
dos sistemas de controle e inspeção são as tônicas. Com exceção de uma, todas
encerram seus ciclos de vida no mesmo período. Essas concentrações sugerem
dois movimentos: o primeiro, no qual a urbanização e dinamização do mercado
de trabalho de algumas das principais cidades do país na segunda metade do
século XIX pressionaram as precárias redes de ensino por mais e melhor aten-
dimento; sem contar com a contrapartida dos governos locais e muito menos
do governo central, houve um movimento associativista no seio do professora-
do visando sua autoproteção profissional, assim como a sua autoafirmação como
postulante legítimo de métodos e de conteúdo de ensino. Sem nítida solução
de continuidade, um segundo movimento associativista nasce coetâneo das pri-
meiras reformas republicanas, mantendo seus dois focos, mas introduzindo uma
tônica corporativista não tão nítida anteriormente, reativa ao crescimento da in-
tervenção do estado sobre a escola e o professor, em especial14.

13 Ver sobre elas, por exemplo: C. A. A. Toledo e J. P. Neto. Os jesuítas e a educação no programa da Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1939) (2010); C. A. A. Toledo e M, A. Barboza. A atuação
educativa, missionária e pastoral dos franciscanos no Brasil colonial nas páginas da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) (2020), e. M. T. Leher, A ‘Revista Brazileira’ (1879-1881) e os
debates sobre ciência, língua, literatura e educação (2002), tese de doutorado orientada por N. Piletti.

14 Ver a respeito, por exemplo, G. B. Teixeira, A imprensa pedagógica no Rio de Janeiro: os jornais e as revistas
como agentes construtores da escola (1870 a 1919) (2016), tese de doutorado orientada por A. Schueler,
autora de Representações da docência na imprensa pedagógica na Corte imperial (1870-1889): o exemplo da
Instrução Pública (2005); M. M. C. Carvalho, Da pedagogia como arte de ensinar à pedagogia científica:
a Revista de Ensino e a difusão de modelos pedagógicos estrangeiros (1902-1918 (2018); A. C. B. Nery, A
Sociedade de Educação de São Paulo: embates no campo educacional (1999), tese de doutorado orientada por
D. B. Catani.

23
A modalidade “revista oficial”, que se apresenta em maior número, forma
uma distribuição curiosa a ser observada relacionando-se tabela 1 ao Quadro úni-
co: a maioria das revistas oficiais foi criada por órgãos dos estados ou do Distrito
Federal (17; 63%); são essas que tendem a ciclos de vida mais curtos; enquanto
as 10 restantes, criadas por algum órgão do Ministério da Educação, ligado ao
governo federal, têm uma duração mais prolongada, sendo que duas delas estão
em circulação há mais de 50 anos. Além disso, com exceção de uma revista do
Rio Grande do Sul, encerrada em 1992, e de uma revista lançada e encerrada na
primeira década do século XXI por uma secretaria municipal da educação, a his-
toriografia não registra nenhuma outra iniciativa municipal, estadual ou do Dis-
trito Federal dos anos 1990 para cá. Essas instâncias governamentais desistiram
dessa modalidade de comunicação e migraram para outros tipos de comunicação
via internet? Ou os veículos de comunicação dessas instâncias de governo ainda
não entraram no radar dos historiadores?
As revistas oficiais estudadas são todas posteriores à Proclamação da Re-
pública, ou seja, datam de quase duas décadas depois das primeiras criadas por
associações ou grupo de professores. Curioso é que a historiografia aponta uma
primeira leva de 5 revistas criadas entre 1890 e 1907, e 9 criadas entre 1920 e
1934; essas, acrescidas de 3 em circulação há três ou quatro décadas, sinalizam
aquele momento em que estados estavam empenhados em reformas moderniza-
doras, especialmente tangidas por princípios e valores dos movimentos de “escola
nova” europeu e estadunidense. Essas duas levas de revistas oficiais são as que há
mais tempo têm ocupado a atenção dos historiadores da educação e sobre as quais
se concentra o maior número de estudos aqui abordados15.
A quase totalidade das revistas de instituições de ensino pode ser acresci-
das às revistas oficiais, resguardadas as suas especificidades: essas, em regra, veicu-
lam ou veiculavam mensagens, políticas e orientações legais, governamentais ou
legitimadas pelos órgãos responsáveis destinadas aos sistemas de ensino corres-
pondentes; aquelas, em regra, eram ou são endereçadas a públicos mais restritos,
não muito mais amplos do que os das próprias instituições de ensino responsáveis
ou de instituições de ensino equivalentes. Das 14 revistas de instituições de en-
sino, 12 (85,7%) eram e são mantidas com recursos públicos, ou seja, do estado.
Dentre essas, 6 eram de responsabilidade de escolas normais ou equivalentes; 4

15 T. M. P. Santos, Sensibilidades e ambivalências em periódicos educacionais paulistas: (1902-1911) (2018),


tese de doutorado orientada por K. Munakata; J. Gondra, O veículo de circulação da pedagogia oficial da
república: a Revista Pedagogica (1997); S. C. Andrade, Estratégia de divulgação do campo educacional: a
Revista do Ensino em Minas Gerais (1886-1889) (2011), dissertação de mestrado orientada por M. S.
Biccas; M. C. Vilela, Discursos, Cursos e Recursos: autores da revista Educação 1927 – 1961 (2000), tese
de doutorado orientada por L C. Barreira; L. H. F. Pereira, Os discursos sobre a matemática publicados na
revista do ensino do Rio Grande do Sul – (1951 – 1978) (2010), tese de doutorado orientada por M.H.C.
Bastos.

24
de unidades universitárias, também destinadas à formação do magistério e 1 de
responsabilidade do Exército16.
Chama a atenção, por outro lado, a contemporaneidade das revistas de
centros de estudo, fundações e institutos de pesquisa; com exceção da Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil lançada de 1839, as demais revistas datam
do início dos anos 1970 para cá, estando a maioria em circulação (75%). O surgi-
mento mais recente desse tipo de impresso periódico reflete, no Brasil, o cresci-
mento a partir dos anos 1960 de institutos de estudos e pesquisas que buscaram
afirmar seus estudos e pesquisas com autonomia em relação ao estado - como,
por exemplo, a Fundação Carlos Chagas e o Centro de Estudos Educação &
Sociedade - ou buscaram consolidar e difundir profissões específicas e os saberes
especializados que produzem - exemplos, a Associação de Leitura do Brasil e a
Sociedade Brasileira de História da educação.

Tabela 1: Tipos de revistas de educação e ensino estudadas pelos historiadores da educação


brasileiros (1988-2021)
Até 7 8 a 18 19 a 29 30 a 40 41 a 50 Mais 51 Em
Tipo Total
anos anos anos anos anos anos circulação

Revista oficial, mantida por


27 12 5 1 7 - 2 4
órgão de Governo
Revista de assoc. docente
e outros membros do 26 20 3 1 1 1 - -
magistério...
Revista de instituição ou
14 9 2 - 1 - 2 2
unidade de ensino
Revista de centro de
estudo, fundação e instituto 12 - 1 3 4 3 1 9
de pesquisa
Revista de mov. estudantil
e de agremiação de 10 4 3 1 1 - - 1
estudantes
Revista criptocomercial 10 4 3 2 1 - - 2
Revista confessional de
8 1 1 1 1 - 4 4
educação religiosa
Revista comercial 7 1 1 - 3 - 2 4
Magazine 4 - 1 - 1 1 1 -
Revista de cultura 3 1 1 - - - 1 1

Revista de imigrantes 1 - - 1 - - - -

Revista de pais 1 - - - - - 1 1
Total 123 53 21 10 20 5 14 27

Fonte: Dissertações/teses; artigos e capítulos de livros (308). Elaborada por M. J. Warde

16 C. Monarcha, Revista do Jardim da Infância: uma publicação exemplar (2001); E. B. Dias, Revista da
Escola Normal de São Carlos (1916-1923): um estudo sobre idéias e práticas educacionais (2009) disserta-
ção de mestrado orientada por C. Monarcha; F. Marques da Silva, A Escola Seletiva Como Problema
Educacional. Uma Leitura da Revista Brasileira De Estudos Pedagógicos (1952–1961) (2020) dissertação
de mestrado orientada por R. C. E. Gualtieri, autora de trabalho também incluído na base deste texto:
Leituras de formação: raça, corpo e higiene em publicação pedagógica do início do século XX (2008).

25
Por fim, ainda sobre o ciclo de vida das revistas de educação e ensino pes-
quisadas pelos historiadores da educação, há forte indícios de que elas apresentem
em média ciclos de vida mais longos do que o universo das revistas lançadas. De
um lado, porque os pesquisadores certamente optaram por estudar periódicos que
oferecem um mínimo de informações materiais necessárias para se constituírem
em objeto/fonte de investigação; daqueles periódicos que restam apenas algumas
páginas internas de um ou dois números, por exemplo, não haveria muito o que se
dizer; de outro lado, porque várias fontes de distintas épocas mencionam revistas
e seus criadores das quais não se tem ainda vestígios de suas presenças em biblio-
tecas ou arquivos, mas sobre as quais há muitos testemunhos da existência; como
os arquivos estaduais e municipais estão desigualmente organizados e, como já
dito, a maioria ainda não tem sua documentação catalogada e acessível, então é
provável que ainda se levará um bom tempo para se produzir uma exaustiva car-
tografia dos impressos educacionais.

Distribuição geográfica

A disposição pelo território brasileiro das revistas de educação e ensino


pesquisadas expressam tanto as circunstâncias políticas e sócioculturais dos es-
tados e do Distrito Federal quanto as incidências de pesquisas de história da
educação sobre este tema.
A tabela 2, dá a ver a proeminência do Rio de Janeiro; constam 10 revistas
criadas no município do Rio de Janeiro na condição de Distrito Federal - antigo
Município Neutro - e 36 criadas no estado do mesmo nome, cuja capital também
se chama Rio de Janeiro17; numa condição e noutra, o Rio de Janeiro responde
por 46 títulos examinados, ou seja, 37,4% do total, seguido por São Paulo com 39
títulos (31,7%). Não resta dúvida de que o índice superior obtido pelo -Rio de
Janeiro se deve à centralidade de que gozou desde que convertido em Município
Neutro, também chamado de Município da Corte18.

17 Foram mantidos os registros, do local de publicação das revistas, efetuados pelos autores dos estudos
consultados. Ou seja, a distinção entre Rio de Janeiro como Município Neutro, Distrito Federal ou
estado não é de Warde e sim dos autores originais. Optou-se por manter esses registros por não ser
possível no momento conferir caso a caso a sua correção. Ver na tabela 2 as entradas coloridas em tom
cinza-claro.

18 O Município Neutro foi uma unidade administrativa criada no Império do Brasil, que existiu no
território correspondente à atual localização do município do Rio de Janeiro entre 12 de agos-
to de 1834 (quando foi proclamado o Ato Adicional à Constituição de 1824) e 15 de novem-
bro de 1889, quando foi proclamada a república no Brasil. Mas só deixou de existir oficialmente com
a promulgação da Constituição de 1891. Pela constituição republicana, esta unidade administrativa
tornou-se o Distrito Federal, em 1891, cuja situação política mudou novamente quando tornou-se o
estado da Guanabara, em 1960 e, posteriormente, com a fusão deste com o estado do Rio de Janeiro,
em 1975. A capital do estado tem o mesmo nome: Rio de Janeiro. Em 1961, o Distrito federal foi

26
Tabela 2: Distribuição geográfica das revistas de educação e ensino estudadas pelos historiado-
res da educação brasileiros (1988-2021) historiadores da educação brasileiros (1988-2021)

Revista Revista
Revista Revista de Revista Revista
de associação de centro
Oficial instituição estudantil Criptocomercial
docente de estudo

DF/RJ 3 RJ 13 SP 6 SP 6 RJ 4 SP 5

DF/RJ
3 SP 5 DF/RJ 3 RJ 3 RS 4 RJ 3
e Brasília
DF/
RJ 3 MG 3 RJ 2 1 SP 2 MG 2
Brasília
DF/
3 PA 2 PA 1 PR 1
Brasília
SP 5 PR 1 BA 1 RS 1
MG 2 RN 1 RS 1
MT 1 BA 1
SC 1
PB 1
AL 1
AM 1
PA 1
RS 1
ES 1
Total 27 26 14 12 10 10
Revista Revista Revista de Revista de Revista de
Magazine
Confessional Comercial cultura Imigrantes pais
DF/
SP 5 SP 5 RJ 3 RJ 2 RS 1 1
Brasília
RJ 2 DF/RJ 1 MT 1 SE 1
RS 1 RJ 1
Total 8 7 4 3 1 1

Fonte: Dissertações/teses; artigos e capítulos de livros (308). Elaborada por M. J. Warde

Por um Ato Adicional à Constituição, datado de 1834, a instrução pública


primária e secundária ficou sob a responsabilidade das províncias, enquanto o go-
verno central se incumbia do ensino superior de toda a nação e de todo a instrução
pública no Município Neutro. Certamente por ser sede da Corte e de todos os
órgãos do governo central o Rio de Janeiro já gozava de enormes vantagens perante
outros municípios e províncias; sob os cuidados diretos do governo imperial, sua
instrução pública haveria de gozar de regalias materiais, financeiras e de pessoal
especiais. Essa condição vantajosa perdurou enquanto o Rio de Janeiro se manteve

transferido para Brasília onde permanece. https://pt.wikipedia.org/wiki/Munic%C3%ADpio_Neu-


tro. Acesso em: 20 jun 2021.

27
sede do governo central (1961), uma vez que as constituições federais firmadas em
1891, 1934, 1937 e 1946 mantiveram o ensino primário e secundário sob a respon-
sabilidade dos estados, assim como a educação infantil e o ensino normal.
Em dois tipos de revistas o Rio de Janeiro, portanto, ganha proeminência:
entre os periódicos mantidos por órgãos oficiais - daí, a maior concentração ocor-
re pela condição de Distrito Federal - e nas revistas criadas por associações/agru-
pamentos docentes e assemelhados, modalidade em que o Rio de Janeiro antece-
de as demais províncias em todos os sentidos, pela anterioridade e pelo número.
Nesse caso, são 7 revistas criadas antes da Proclamação da República de 1872 a
1884; duas criadas na década seguinte entre 1894 e 1900 e, ainda, e quatro criadas
entre 1913 e 1919. Elas remetem a ambientes de grande efervescência cultural e
política nos quais professores e inspetores de ensino se misturam a intelectuais e
publicistas para produzir um clima propício ao debate de ideias e de projetos para
a nação tracionada em direções opostas e profundamente dividida socialmente.
Segue-se São Paulo que aparece à frente do Rio de Janeiro e dos demais
estados em cinco tipos de revistas; não casualmente, São Paulo tem uma entrada
na cena dos periódicos educacionais bem despois do Rio de Janeiro, mas ganhará
impulso a partir da Proclamação da República nas revistas de órgãos públicos
de ensino, posteriormente nos periódicos de centros de pesquisa e equivalentes,
bem como e principalmente nos aqui denominados comerciais e criptocomer-
ciais. Segundo R. Morse, São Paulo passou de um “burgo de estudantes” no sé-
culo XIX a “metrópole” no século seguinte (MORSE, 1970). Esse salto se deveu
centralmente ao superavit produzido pela exportação do café que tanto permitiu
uma acelerada substituição da mão de obra escrava pela mão de obra assalariada
alimentada por grandes levas de imigrantes europeus e, posteriormente, asiáticos
e árabes, assim como ancorou o vertiginoso processo de urbanização e de indus-
trialização, esse mais lento e por substituição de importações. Centralizando o
capital, São Paulo se tornou o epicentro da modernização da cultura e da instru-
ção pública, além da conquista de espaço definitivo na cena política nacional; com
isso, tornou-se polo de atração de fábricas de celulose, livrarias, e principalmente
de editoras interessadas em conquistar e ampliar o público leitor, além de capturar
os corações e mentes de dirigentes do ensino e donos de escolas.
Essas são as possíveis razões que explicam a concentração de revistas de
educação e ensino em dois estados da região Sudeste do Brasil. Essas razões re-
metem à condição privilegiada ocupada pela região em geral e pelos dois estados
mencionados em particular. Neles, estava concentrado o maior volume de capital
econômico o que lhes confere grande margem de poder na cena política19. Por

19 Desde os anos 1960, o Rio de Janeiro vem perdendo a relevância econômica, mas mantém forte pre-
sença política no jogo político nacional e relevância cultural nacional e internacional.

28
outro lado, há que se atentar para o fato de que as revistas aqui tratadas com-
porem uma amostra encontrada na historiografia sobre o assunto. São aqueles
mesmos fatores se reapresentando: a maioria dos 306 trabalhos consultados são
originários do Sudeste; a título de exemplo, entre as 155 dissertações e teses, 107
(69,0%) foram defendidas em universidades dessa região e a maior parte desses
trabalhos aborda revistas da região de residência e trabalho dos autores ou revistas
de circulação nacional menos identificadas com os locais de publicação; e como já
dito, as condições dos arquivos e bibliotecas no país não são em regra boas, mas
são melhores nos estados do Sudeste.
O Sul é também um polo economicamente aquecido e culturalmente di-
nâmico. No campo específico do ensino e da pesquisa, as taxas de escolaridade
são historicamente altas comparadas às médias nacionais e, desde os anos 1970
a universidades da região têm se destaco muito, em várias áreas e na História
da educação em particular. As universidades do Sul respondem por 23 (14,8%)
dissertações e teses aqui registradas. Seguem as regiões Nordeste com 14 (9,0%),
bastante ativa na historiografia da educação, Centro-Oeste com 9 (5,8) com pro-
gramas mais tradicionais e o Norte com apenas 1 (0,6%) de incursão mais recente
na área.

Algumas revistas educacionais no foco das atenções

As revistas oficiais e as revistas de associações de professores representam


quase a metade das 123 revistas aqui classificadas, por isso, têm merecido maior
atenção neste artigo; no entanto, apenas algumas constituem os focos das aten-
ções de vários historiadores da educação aqui reunidos, são elas: Revista Brasileira
de Estudos Pedagógicos» (20); Revista do Ensino de Minas Gerais (12); Revista do
Ensino do Rio Grande do Sul (8) e Revista de Ensino de São Paulo (7).
A Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) criada em 1944 é um
caso raro de revista especializada em educação e ensino de ciclo de vida longo.
Em circulação há 77 anos, a atração exercida pela RBEP sobre os historiadores
da educação se explica por várias razões, dentre as quais a própria longevidade e
a facilidade de acesso, uma vez que coleções físicas completas se encontram em
praticamente todas as bibliotecas universitárias, senão escolares, do país, e está
atualmente disponível on-line20. Mas há muitos atrativos intrínsecos ao periódico.
Ela está vinculada a um dos órgãos mais longevos e estratégicos do Ministério da
Educação - hoje denominado Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educa-
cionais Anísio Teixeira (INEP), criado em 1938 - e se associa aos mais destacados
nomes e movimentos da educação no Brasil do século XX. Por isso, a RBEP não

20 Consultar http://www.rbep.inep.gov.br/ojs3/index.php/rbep/issue/archive.

29
diz respeito apenas ao seu período de circulação; ela é depositária de iniciativas
que a antecederam e nela se decantam projetos fermentados, no curto prazo, pe-
los reformadores “escolanovistas” desde os anos 1920, e no médio prazo, pelos
republicanos de primeira ou última hora; não por acaso um dos primeiros nomes
cogitados para o INEP foi “Pedagogium”, órgão federal, criado com a reforma
republicana de Benjamin Constant, em 1890 e extinto em 191921. Por outro lado,
o INEP é também produto da conjuntura política cujos sinais autoritários e cen-
tralizadores se manifestavam desde, pelo menos, 1935, e que culminaram no gol-
pe de estado de 1937, desferido por Getúlio Vargas com apoios civis e militares.
Os estudos amostrados sobre a RBEP datam de 1990 a 2020, e recobrem
abordagens, objetivos e recortes temáticos muito distintos. Na e a partir da re-
vista foram examinados temas tais como: relações intelectuais - estado; conexões
psicologia - educação; fracasso escolar; estatísticas escolares; conhecimento peda-
gógico e escola; recepção do pragmatismo; espaço escolar; avaliação e qualidade
da educação; representações sobre desenvolvimento; escola; organização da edu-
cação nacional; ensino primário e lei de diretrizes e bases; aprendizagem; escola
seletiva; escola secundária; cidadania. Esses estudos evidenciam como a RBEP
tem funcionado como suporte de discursos que nela se legitimam. Há, ainda, dois
trabalhos de uma mesma autora, - dissertação e tese - que examinam a gênese da
RBEP, sua materialidade, sua configuração, as representações que nela se apresen-
tam e as lutas que nela e por meio dela são travadas22.
Nenhum dos trabalhos se dispôs a estudar todo o ciclo de vida da RBEP;
concentraram-se nas suas duas primeiras décadas e o que chegou mais perto,
cobriu de 1995 a 2013. Os focos das atenções são os períodos em que Lourenço
Filho (1938-1946) e Anísio Teixeira (1952-1964) presidiram o INEP, tendo o
primeiro criado a RBEP e respondido por sua publicação por dois anos; o segun-
do, Anísio Teixeira, respondeu por sua publicação por 12 anos, imprimindo-lhe
novas características.
Por que aqueles dois períodos atraem especial atenção? Primeiro, porque
Lourenço Filho e Anísio Teixeira são dois dos nomes mais importantes na con-
solidação do campo educacional no Brasil, com relevante produção intelectual, ao

21 No Quadro único, a primeira revista que aparece é a Revista Pedagógica órgão do Pedagogium, tam-
bém criado em 1890 e incorporado pouco depois ao Ministério da Instrucção Publica, Correios e
Telegrapho.

22 Referências aos trabalhos de mestrado e doutorado de A. Dantas na linha dos trabalhos de Bastos e
Biccas, orientandos por M. Carvalho, cujos escritos sobre impresso compõem a amostra aqui traba-
lhada. Ver A. M. L. Dantas, Crônica de uma Reforma Anunciada: uma análise da Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos nos anos de 1961/1962 e 1972/1973 (1997), a dissertação de mestrado orientada por
M. H. Granjo; A. M. L. Dantas, Urdidura da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos nos bastidores do
Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos: a gestão Lourenço Filho (1938–1946) (2001), a tese de douto-
rado, orientada por M. Carvalho.

30
mesmo tempo que ocupavam cargos político-administrativos de grande alcance.
Receberam a alcunha de “cardeais da educação” desde que despontaram como
lideranças do movimento de renovação educacional brasileira, de base escolano-
vista, nos anos 1920. Lourenço Filho é prestigiado tanto no campo da Educação
quanto no da Psicologia. Diferentes historiadores da educação associam a predo-
minância na RBEP de matérias de perfil psicológico e pedagógico às preferências
teóricas do chefe do órgão. Por outro lado, sobre Lourenço Filho pesa um estra-
nhamento por ter aceitado participar do governo Vargas, nele permanecer após
flagrante instauração da ditadura e, ainda, declarar-se simpático a intervenções
autoritárias e centralizadora, o que aliás teria patenteado no desenho interven-
cionista e centralizador que conferiu ao INEP e à RBEP, por decorrência. Anísio
Teixeira, por seu turno, é associado às teses mais democráticas, às administrações
mais liberais, às práticas mais inclusivas dentre os líderes do movimento renova-
ção educacional no Brasil; a ele também se confere a responsabilidade de ter dado
a conhecer a pedagogia social deweyana, traduzindo e pondo em circulação seus
escritos. Vítima do autoritarismo do governo Vargas - foi deposto do cargo de
diretor do ensino do Distrito Federal em 1935 - e vítima da ditadura civil-mili-
tar que se instaurou em 1964 - que o depôs de todos os cargos que ocupava no
governo federal, inclusive da direção do INEP; a Anísio Teixeira são destinadas
muitas glórias e pouquíssimos equívocos.
Pelas mãos de Lourenço Filho, a RBEP ganhou a função de orientar as
práticas dos professores e administradores dos sistemas regionais e locais de en-
sino, bem como subsidiá-los com indicações de leituras prioritariamente diri-
gidas para o ensino na sala de aula e a gestão das escolas, legislação de ensino
e documentação oficial e informes. Anísio Teixeira distribuiu as funções antes
conferidas à RBEP, ao criar outras revistas com patrocínio do INEP, nas quais re-
sultados de estudos e pesquisa eram divulgados; a RBEP, por sua vez, ganhou um
perfil mais internacionalizado com temas mais largos sobre sistemas de ensino e
políticas educacionais.
As décadas mais recentes da RBEP carecem de estudos mais minuciosos
e mais abrangentes considerando que desde os anos 1980 esse periódico teria
perdido praticamente todos as características conferidas por Lourenço Filho, na
sua gênese, quanto por Anísio Teixeira no seu anseio de mobilização nacional via
educação. A RBEP é hoje uma revista científica que faz avaliação cega dos artigos
que lhe são encaminhados pelos acadêmicos.
Três estudos sobre as revistas do/de ensino se tornaram matriciais, referên-
cias obrigatórias em praticamente todos os escritos de história de revistas de edu-
cação e ensino. São as teses de doutorado de D. B. Catani, Educadores à meia-luz:
um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado Público
de São Paulo (1902-1918), defendida em 1989; de Maria Helena C. Bastos, O

31
Novo e o Nacional em revista: a Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1939-
1942), de 1994 e de Maurilane S. Biccas, O impresso com estratégia de formação
de professores(as) e conformação do campo pedagógico em Minas Gerais: o caso da
Revista do Ensino (1925-1940), de 200123.
Catani reconstrói todo o ciclo de vida da Revista de Ensino, criada por
uma associação docente, portanto, um organismo privado, apoiado financeira-
mente pelo órgão estadual responsável pela direção geral da instrução pública.
Para a autora, o estudo permitiu que caracterizasse o campo educacional - é
preciso dizer, campo em constituição no Brasil - de modo a flagrar o come-
ço do movimento profissional de professores e suas demandas por melho-
res condições de trabalho e salário; a construção discursiva sobre qualidade
de ensino, trabalho docente, organização do sistema de ensino; a emergência
de “questões de ensino” tais como disciplina, avaliação, interesse e motivação.
Para Catani, os discursos são instauradores do campo, portanto, expressões das
disputas que nele e contra ele se travam, para instauração e controle das regras
de seu funcionamento (CATANI, 2003). Nas palavras da autora:
Emprestava-se de Pierre Bourdieu a lógica de análise que
permite conceber o espaço educacional como lugar de lutas.
Constatava-se, então, que as disputas se estabelecem pela
autoridade e legitimidade para falar sobre a educação e fa-
zer valer posições na condução da política educacional e das
questões de ensino, de modo geral (Bourdieu...)
Buscava-se assim, compreender na lógica das lutas pela do-
minação do espaço profissional, o significado das iniciativas
de produção e circulação dos discursos sobre o ensino e a
constituição progressiva de uma imprensa periódica educa-
cional (CATANI, 1996, p. 120).

A tese de M. H. C. Bastos sobre a Revista do Ensino do Rio Grande do


Sul, editada pela Secretaria da Educação e Saúde Pública, cobre a primeira
fase da revista da sua criação em 1939 a 1942; em outros escritos, Bastos - e
outros autores - retorna ao periódico em suas fases posteriores (1951-1978 e
1989-1992). Defendida em 1994, a tese de Bastos é um marco de referencia-
ção no conceito de “representação” de R. Chartier e no uso intensivo dos seus
protocolos de leitura de impressos nos quais o suporte que dá a ler - livros,
revistas, panfletos... - é a peça-chave na decifração dos textos (dado a ler); ou

23 As três teses foram publicadas posteriormente como livros: D. B. Catani, Educadores à meia-luz:
um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação Beneficente do professorado público de São Paulo
(1902-1918) (2003); M. H. C. Bastos, A Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1939-1942): o
novo e o nacional em revista (2005) e M. S. Biccas, O impresso como estratégia de formação: Revista do
Ensino de Minas Gerais (1925-1940) (2008).

32
seja, com Chartier, a materialidade do objeto e é a via pela qual se pode ter acesso
às representações e as lutas inscritas nos textos.
Os quatro primeiros anos da revista examinada por Bastos transcorrem in-
teiramente sob o “Estado Novo”, e são guiados pela campanha de “reconstrução
nacional” desencadeada por Getúlio Vargas, também ele originário do Rio Grande
do Sul. A respeito, diz Bastos “empenhada no programa de ‘renovação educacional’,
[a Revista do Ensino] assume a bandeira da ‘patriótica cruzada’ pela educação, que
visava a construir uma nova identidade nacional pela disseminação da cultura e do
ensino” (BASTOS, 1994).
A tese, bem como os escritos posteriores de Bastos a respeito da Revista
de Ensino, desvenda na sua primeira fase um periódico empenhado no amolda-
mento do professor exemplar, no seu engajamento com o estado, imbuído dos
deveres moral e profissional perante a pátria, como dimensões constitutivas da
profissão docente24. A revista dirige-se ao professor-leitor como se o colocasse em
contato direto com o estado; o privilegiamento dessa relação, portanto, implica
para os editores da Revista o mascaramento de conflitos e a construção de uma
imagem harmoniosa do professorado. Nos textos em que adentra os períodos
subsequentes da Revista, Bastos torna ao exame da sua materialidade e, a partir
dela, examina os deslocamentos discursivos produzidos pelos diferentes editores
responsáveis. São deslocamentos provocados, nos anos 1950, pelo fim do “Estado
Novo”, por uma nova direção técnico-pedagógica imprimida por Anísio Teixeira
na direção do INEP, em cujo projeto a Revista será inicialmente engajada; nos
anos 1980, quando inaugura a sua terceira e última fase, a Revista já está envolta
em uma nova conjuntura pós-ditatorial, em que novas demandas sociais, políticas
e profissionais emergiam.
A tese de M. Biccas aborda a Revista do Ensino de Minas Gerais, periódico
oficial “mais representativo da história da educação mineira» que teve um ciclo de
vida longo, mas interrompido duas vezes além de circulação irregular principal-
mente na última fase; a revista foi criada em 1892 e interrompida no mesmo ano;
reapareceu em 1925 e parou em 1940; em 1946 retornou e foi definitivamente
interrompida em 1972. O foco de M. Biccas é sempre o período 1925-1940; a pro-
pósito, das 12 publicações registradas que abordam essa revista mineira, apenas um
faz um exame do seu último período (1950-1970) e não há registros dos números
lançados em 1892.
Na tese, a atenção de M. Biccas se dirige à materialidade da revista no
período indicado, os conteúdos veiculados, as mudanças às quais foi submetida
e seus significados. Para tanto, examina a Revista como “suporte de texto”, os

24 Além dos dois títulos já citados de M. H. C. Bastos, ver também As Revistas Pedagógicas e a atualização
do professor: a Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1951-1992) (1997).

33
próprios textos veiculados e a “apropriação” que dela/deles é feita, enfocando o
discurso produzido a partir dos sentidos e deslocamentos provocados pelo ato da
leitura, no qual a forma do impresso e a forma que o texto nele assume exercem
uma função fundamental (BICCAS, 2008).
Nessa breve descrição do trabalho de Biccas já se patenteiam com niti-
dez seus débitos com os conceitos de “apropriação” e “materialidade”, aos quais é
conjugado o conceito de “representação” de R. Chartier. E é também na tese de
Biccas que M. de Certeau se apresentará com suas ferramentas conceituais para
decifração das lutas que se travam em, e por meio, de um impresso; Biccas se re-
fere em especial ao conceito de “estratégia” para pensar a Revista como um campo
de forças em disputa. Em Biccas, como nos trabalhos que se sucederam a esses
aqui chamados de “matriciais”, P. Bourdieu é também mobilizado para compor o
referencial teórico por meio do seu conceito de “campo”. A propósito, a Revista de
ensino se afigura, na tese, como “o impresso pedagógico oficial mais representativo
da história da educação mineira, não só pelo seu longo ciclo de vida, mas pelo
papel significativo no processo de formação de professores e de conformação do
campo educacional mineiro” (p.12).
Dito de outro modo, a Revista do Ensino mineira é compre-
endida como estratégia de conformação do campo pedagógico,
por meio das práticas e representações que eles produzem ou
põem em circulação. Assim, a “Revista do Ensino” é tomada
como objeto de investigação sob dois aspectos: como dispositi-
vo de normatização pedagógicas e como suporte material para
ampliar a cultura educacional e subsidiar as práticas escolares
dos professores (p. 12).

Embora recebam bastante atenção dos historiadores da educação, as revis-


tas acima mencionadas não são, até o momento, as mais estudadas. No topo da
escala de interesse dos historiadores da educação está a revista Nova Escola sobre
a qual foram registrados 33 trabalhos, dos quais 90,9% são dissertações e teses25.
Os trabalhos consultados sobre a revista datam de 1995 a 2018. Naqueles cujos
autores decidiram examinar um período determinado do ciclo de vida da revista,
a maioria decidiu iniciar em 1986, ano do seu lançamento, até um ou dois anos
antes da pesquisa ser iniciada; nenhum dos estudos registrados cobriu os seis
últimos anos26.
A Nova Escola é o tipo de revista comercial contemporânea sucedâneo/
corruptela das antigas revistas oficiais, de agremiações docentes, ou ainda das

25 Foram localizados mais de 100 títulos a respeito da revista Nova Escola produzidos em diferentes áreas
das Ciências Humanas.

26 A Nova Escola circula hoje em um novo formato e consta como responsáveis Associação Nova Escola/
Fundação Lemann.

34
posteriores aqui chamadas de “Criptocomerciais”. A Nova Escola foi lançada
com o objetivo de “fornecer à professora informações necessárias a um melhor
desempenho do seu trabalho”, bem como “proporcionar uma troca de experiên-
cias e conhecimentos entre todas as professoras brasileiras do 1º grau”, ou seja,
a instrumentar o professor (dos anteriores níveis de ensino, primário ou secun-
dário) para a sala de aula27. Lançada em outro ambiente sociopolítico e cultural,
imediatamente posterior ao último governo ditatorial, a Nova Escola se dispensa-
va de tarefas supostamente já realizadas: qualificar o professorado leigo e atualizar
o professor saído das escolas normais ou instrumentá-los para se pensarem como
membros de uma categoria profissional e como membros (instauradores) de um
campo.
A Nova Escola se tornou um sucesso entre os professores pelo seu apelo
midiático, por sua linguagem leve, por seus recursos gráficos, pela facilidade de
aquisição nas bancas de jornal ou por assinatura. Mas nada teria sido mais deci-
sivo para seu amplo consumo do que os investimentos nela feitos pela Fundação
Victor Civita, seu criador; pela Editora Abril, pertencente ao mesmo grupo em-
presarial, e o convênio firmado em 1986 e renovado em 1991 entre essa Fundação
e o Ministério da Educação, que implicava cobertura de 70% dos custos da revista
pelo erário28.

Para finalizar, alguns comentários sobre as revistas estrangeiras

A historiografia da educação no Brasil centrada em periódicos educacio-


nais colocou em cena além das nacionais, revistas estrangeiras, quer como objetos
únicos ou como elementos de comparação com equivalentes nacionais; foram re-
gistrados 19 títulos nessa modalidade e a maioria de perfil comparatista. O apelo
mais recente por abordagens transnacionais também tem alimentado o interesse
por impressos periódicos estrangeiros, particularmente revistas vindas do século
XIX e começo do século XX com ciclos de vida longos e de preferência acessíveis
à distância.
Dentre as revistas estrangeiras, constam cinco portuguesas - Revista Edu-
cação e Ensino, Revista Escolar, Educação, Escola Portuguesa e Lumen; uma pe-
ruana - Amauta; uma argentina - Anales de la Educación Común de la Provincia

27 Um bom exemplo de pesquisa historiográfica do tipo “criptocomercial” é a dissertação de mestrado de


C. Panizzolo da Silva, Atualizando pedagogias para o ensino médio: um estudo sobre a revista Atualidades
Pedagógicas (1950-1962) (2001), dissertação de mestrado orientada por M. J. Warde.

28 Seu próprio criador, Victor Civita, já havia tentado uma equivalente, a revista Escola (para professores)
que circulou por poucos anos, de 1971 a 1974. Sobre as revistas Escola e Nova Escola, D. Revah. Escola e
Nova Escola: faces de um velho sonho (2013) e M. R. A. Toledo e D. Revah, A indústria cultural e a política
educacional do regime militar: o caso da revista Escola. Revista Brasileira de História (2010).

35
de Buenos Aires; uma espanhola - Pedagogia - e quatro estadunidenses - Ame-
rican Journal of Education, Child Study, Teachers College Record e Yearbook of
International Institute-Teachers College29.
Com esses estudos parece ocorrer o mesmo que se verificou nos demais
relativos às revistas brasileiras: eles não compõem necessariamente programas
investigatórios dedicados, centrados, no exame de impressos periódicos em geral
e de revistas em particular. Ou seja, ainda não parece ser uma tendência no âm-
bito da história da educação no Brasil pesquisadores com dedicação exclusiva às
revistas educacionais e nem a impressos periódicos em sentido mais amplo. Essa
tendência também se verificou em relação aos estudos relativos a revistas estran-
geiras. Aparentemente, são eventuais nas carreiras dos pesquisadores, resultantes
das mais diversas circunstâncias, a serem devidamente contextuadas.
Assim como, foram encontrados autores que persistem no objeto - uma
única revista ou um conjunto de revistas brasileiras -, três dos trabalhos seleciona-
dos que abordam revistas estrangeiras, resultam de um programa de investigação
de periódicos educacionais estadunidenses postos em circulação no século XIX e
primeiras décadas do século XX30.
Destaque-se ainda, que há variantes em meio à massiva referência a R.
Chartier e M. de Certeau em estudos sobre impressos, impressos periódicos e
revistas de educação e ensino, que também precisam ser contextuadas. As referên-
cias a M. Foucault são frequentes; salientam-se, em estudos de revistas de Edu-
cação Física, em pesquisas sobre o corpo, sobre práticas eugênicas e higiênicas. F.
Sirinelli também comparece, ainda que pouco, mas principalmente em pesquisas
que abordam revistas como elementos de agregação e amalgamação de redes in-
telectuais e políticas. Sirenelli é frequente nos estudos de M. J. Warde, conjugado
com W. Lepenies e R. Collins, que também operam no âmbito da história dos
intelectuais.
Ficam, assim, registradas pistas promissoras para os historiadores da edu-
cação investirem em pesquisas de impressos periódicos; revistas em particular.

29 Ver por exemplo: A. L. C. Fernandes, A santa causa da instrução e o progredimento da humanidade. Re-
vistas Pedagógicas e construção do conhecimento pedagógico no Brasil e em Portugal no final do século XIX
(2004), tese de doutorado orientada por A. W. P. C. Mendonça (em outra versão, esta tese foi defendida
na Univ. Lisboa, em 2006, sob orientação de A. Nóvoa; L. C. Barreira, Circulação de modelos sóciopedagó-
gicos: experiências em educação escolar em Portugal no início do século XX (2014); V. T. Valdemarin, Modelos
para a formação de professores nas páginas do Teachers College Record (1900-1921) (2016).

30 M. J. Warde, G. Stanley Hall e o child study: Estados Unidos de fins do século XIX e começo do século
XX, «Revista Brasileira de História de Educação», vol. 14, n. 2, 2014, pp. 243-270; M. J. Warde, O
International Institute do Teachers College, Columbia University, como epicentro da internacionalização do
campo educacional, «Cadernos de História da Educação», vol. 15, n. 1, 2016, pp. 190-221; M. J. Warde,
Periodismo educacional: Estados Unidos, do século 19 às primeiras décadas do século 20, «História da Edu-
cação», vol. 20, 2016, p. 95-120.

36
Referências

ANDRADE, Stela Cabral de. Estratégia de divulgação do campo educacional: a Revista


do Ensino em Minas Gerais (1886-1889). Dissertação (Mestrado) - Universidade de
São Paulo. São Paulo, 2011.

BARBOSA, Gustavo; RABAÇA, Carlos Alberto. Dicionário de Comunicação. São


Paulo: Ática, 1987.

BARREIRA, Luiz Carlos. Circulação de modelos sóciopedagógicos: experiências


em educação escolar em Portugal no início do século XX. Cadernos de História da
Educação, vol. 13, n. 2, p. 647-670, 2014.

BASTOS, Maria Helena C. A Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1939-1942): o


novo e o nacional em revista. Pelotas: Seiva, 2005.

BASTOS, Maria Helena C. Impressos e cultura escolar: percursos da pesquisa sobre


a imprensa estudantil no Brasil. In: HERNANDÉZ DIAS, José Maria. (org.). La
prensa pedagógica de los escolares y estudiantes. Su contribución al patrimonio histórico
educativo. Salamanca, Es: Ediciones Universidad de Salamanca. 2015, vol. 1, p. 21-43.

BASTOS, Maria Helena C. Professorinhas da Nacionalização: a representação do


professor rio-grandense na Revista do Ensino (1939-1942). Em Aberto, vol. 14, n. 61,
p. 134-143, jan/mar 1994.

BASTOS, Maria Helena C. As Revistas Pedagógicas e a atualização do professor:


a Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1951-1992). In: CATANI, Denice B.;
BASTOS, Maria Helena C. (orgs.). Educação em Revista: a Imprensa periódica e a
História da Educação. São Paulo: Escrituras, 1997, pp. 47-75.

BICCAS, Maurilane. O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas


Gerais (1925-1940). Belo Horizonte: Argumentum, 2008.

BITTENCOURT, Circe M. F. Pátria, civilização e trabalho (1917-1939). São Paulo:


Loyola, 1990.

CARVALHO, Marta M. C. de. Da pedagogia como arte de ensinar à pedagogia


científica: a Revista de Ensino e a difusão de modelos pedagógicos estrangeiros (1902-
1918). In: Nery, Ana Clara B.; Gondra, José. (org.). Imprensa pedagógica na ibero-
américa: local, nacional e transnacional. São Paulo: Alameda, 2018.

CASPARD, Pierre. (org.). La presse d’éducation et d’enseignement, XVIIIe siècle-1940.


Répertoire analytique. Paris: INRP, 1981- 1991.

37
CASPARD-KARYDIS, Pénélope. (org.). La presse d’éducation et d’enseignement.
1941-1990. Répertoire analytique. Paris: INRP, 2000-2005.

CATANI, Denice B. A imprensa periódica educacional: as revistas de ensino e o


estudo do campo educacional. Educação e Filosofia, vol. 10, n. 20, p. 115-130, jul/dez
1996.

CATANI, Denice B. Educadores à meia-luz (um estudo sobre a Revista de Ensino


da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo: 1902-1908). 1989.
Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 1989.

CATANI, Denice B. Educadores à meia-luz: um estudo sobre a Revista de Ensino da


Associação Beneficente do professorado público de São Paulo (1902-1918). Bragança
Paulista: USF, 2003.

CATANI, Denice B.; BASTOS, Maria Helena C. (orgs.). Educação em Revisa: a


Imprensa periódica e a História da Educação. São Paulo: Escrituras, 1997.

CATANI, Denice B.; SOUSA (orgs). Catálogo da Imprensa Periódica Educacional


Paulista (1890-1996). São Paulo: Plêiade, 1999.

CHIOSSO, Giorgio. (org.). La stampa pedagógica e scolastica in Italia (1820-1943).


Brescia, It: La Scuola, 1997.

CRUZ, Heloisa F. (org). São Paulo em Revista: catálogo de publicações da imprensa


cultural e de variedades paulistana, 1870-1930. São Paulo: Arquivo do Estado, 1997,
(Coleção Memória, Documentação e Pesquisa, 4).

REVAH, Daniel. Escola e Nova Escola: faces de um velho sonho. História da Educação,
v. 17, p. 79-99, 2013.

DANTAS, Andréa M. L. Crônica de uma Reforma Anunciada: uma análise da Revista


Brasileira de Estudos Pedagógicos nos anos de 1961/1962 e 1972/1973. 1997.
Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo,
1997.

DANTAS, Andréa M. L. Urdidura da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos nos


bastidores do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos: a gestão Lourenço Filho (1938–
1946). 2001. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São
Paulo, 2001.

DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo:


Companhia das Letras, 1990

38
DE VROED, Mauritis. Bijdragen tot de Geschiedenis van het Pedagogisch leven in België
in de 19de en 20ste eeuw. De Periodieken. Grand Louvain, Be: Rijksuniversiteit te
gente/Universtié Catholique de Louvain, 6 vols., 1973-1987.

DIAS, Enéias B. Revista da Escola Normal de São Carlos (1916-1923): um estudo sobre
idéias e práticas educacionais. 2009. Dissertação (Mestrado). Universidade do Estado
de são Paulo. Araraquara, 2009.

DUARTE, Marina T. O trabalho de ensinar pedagogia para a professora. 1988. Dissertação


(Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1988.

FARIA Filho, Luciano M. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e urbana em Belo
Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2000.

FERNANDES, Ana Lucia C. A santa causa da instrução e o progredimento da


humanidade. Revistas Pedagógicas e construção do conhecimento pedagógico no Brasil e
em Portugal no final do século XIX. 2004. Tese (Doutorado). Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2004.

FERREIRA NETO, Amarílio et al. Catálogo de periódicos de educação física e esporte


(1930-2000). Vitória: Proteoria, 2002.

GONDRA, José. O veículo de circulação da pedagogia oficial da república: a Revista


Pedagogica. Revista brasileira de estudos pedagógicos, vol. 78, n. 188/189/190, p. 374-
395, 1997.

GUALTIERI, Regina C. E. Leituras de formação: raça, corpo e higiene em publicação


pedagógica do início do século XX. Revista Brasileira de História da Educação, vol. 8,
n. 3, p. 49-67, 2008.

LEHER, Elizabeth M. T. A ‘Revista Brazileira’ (1879-1881) e os debates sobre ciência,


língua, literatura e educação. 2002. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de
São Paulo. São Paulo, 2002.

MARQUES DA SILVA, Fernanda. A Escola Seletiva Como Problema Educacional. Uma


Leitura da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1952–1961). 2020. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2020.

MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: práticas culturais em tempos de República,


1890-1922. São Paulo: EDUSP, 2008.

MONARCHA, Carlos. A reinvenção da cidade e da multidão: dimensões da


modernidade brasileira: a Escola Nova. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1989.

MONARCHA, Carlos. Produção acadêmica vinculada ao Repertório de revistas de


educação e ensino (relatório de pesquisa). São Paulo: FAPESP-CNPq-Unesp, 2004.

39
Monarcha, Carlos. Revista do Jardim da Infância: uma publicação exemplar. In:
MONARCHA, Carlos (org.). Educação da infância brasileira (1875-1983). Campinas:
Autores Associados/FAPESP, 2001.

MORSE, Richard. Formação histórica de São Paulo (De comunidade à metrópole). São
Paulo: Difel, 1970.

Nery, Ana Clara B. A Sociedade de Educação de São Paulo: embates no campo educacional.
1999. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999.

NÓVOA, António. A imprensa de educação e ensino - Repertório analítico (séculos XIX


e XX», Coleção Memórias da Educação. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional,
1993.

PANIZZOLO DA SILVA, Claudia. Atualizando pedagogias para o ensino médio: um


estudo sobre a revista Atualidades Pedagógicas (1950-1962). 2001. Dissertação (Mes-
trado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2001.

PEREIRA, Maria Aparecida et al. História da Educação nas páginas da revista


do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Revista Brasileira de História da
Educação, v. 16, n. 3 [42], p. 59-122, 2016.

PEREIRA, Maria Aparecida. Subsídios para a história da educação no Brasil: um estudo da


Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. 2013. Tese (Doutorado em
Educação) – Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, 2013.

SANTOS, TAINÃ M.A P. Sensibilidades e ambivalências em periódicos educacionais


paulistas: (1902-1911). 2018. Tese (Doutorado em Educação) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. São Paulo, 2018.

SCHUELER, Alessandra F. M. Representações da docência na imprensa pedagógica


na Corte imperial (1870-1889): o exemplo da Instrução Pública. Educação e Pesquisa,
v. 31, p. 379-390, 2005.

SOUZA, Rosa F. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no


Estado de São Paulo. São Paulo: Unesp, 1998.

TEIXEIRA, Giselle B. A imprensa pedagógica no Rio de Janeiro: os jornais e as revistas


como agentes construtores da escola (1870 a 1919). 2016. Tese (Doutorado em
Educação) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2016.

TOLEDO, Cézar A. A. de; BARBOZA, Marcos A. A atuação educativa, missionária


e pastoral dos franciscanos no Brasil colonial nas páginas da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Revista Brasileira de História da Educação,
vol. 20, n. 1, p. 1-23, 2020.

40
TOLEDO, Cézar A. A. de; NETO, Juscelino P. Os jesuítas e a educação no programa
da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1939). Cadernos de História
da Educação, vol. 9, n. 2, p. 397-411, 2010.

TOLEDO, Maria Rita A.; REVAH, Daniel. A indústria cultural e a política


educacional do regime militar: o caso da revista Escola. Revista Brasileira de História,
vol. 30, p. 77-95, 2010.

VALDEMARIN, Vera T. Modelos para a formação de professores nas páginas do


Teachers College Record (1900-1921). História da Educação, vol. 20, p. 55-73, 2016.

VIDAL, Diana; CAMARGO, Marilena J. G. de. A imprensa periódica especializada


e a pesquisa histórica: estudos sobre o Boletim de Educação Pública e a Revista
Brasileira de Estudos Pedagógicos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, vol. 73, n.
175, p. 407-430, 1992.

VILELA, Marize C. Discursos, Cursos e Recursos: autores da revista Educação 1927 –


1961. 2000. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São
Paulo, 2000.

PEREIRA, Luiz Henrique F. Os discursos sobre a matemática publicados na revista do


ensino do Rio Grande do Sul – (1951 – 1978). Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010.

WARDE, Mirian J. G. Stanley Hall e o child study: Estados Unidos de fins do século
XIX e começo do século XX. Revista Brasileira de História de Educação, vol. 14, n. 2, p.
243-270, 2014.

WARDE, Mirian J. Anotações para uma historiografia da educação brasileira. Em


Aberto, vol. 3, n. 23, p. 1-7, 1984.

WARDE, Mirian J. Historiografia da educação brasileira: mapa conceitual e


metodológico (dos anos 1970 os anos 1990). Revista do Mestrado em Educação-UFS,
vol. 1, p. 45-50, 2003.

WARDE, Mirian J.; Carvalho, Marta M. C. Política e cultura na produção da história


da educação no Brasil. Contemporaneidade & Educação, vol. 5, n. 7, p. 9-33, 2000.

WARDE, Mirian J. O International Institute do Teachers College, Columbia


University, como epicentro da internacionalização do campo educacional. Cadernos de
História da Educação, vol. 15, n. 1, p. 190-221, 2016.

WARDE, Mirian J. Periodismo educacional: Estados Unidos, do século 19 às primeiras


décadas do século 20. História da Educação, vol. 20, p. 95-120, 2016.

41
Anexo

42
Quadro 1: Revistas de educação e ensino brasileiras estudadas por historiadores da educação brasileiros entre 1988-202131
Tipo Título (105) Ciclo de vida Cidade/Estado Responsável

Revista Oficial, mantida 1 Revista Pedagógica 1890-1896 Distrito Federal/RJ Pedagogium/Ministério da Instrucção Publica, Correios e Telegraphos
por órgão de Governo 1892-1892
2 Revista do Ensino 1925-1940 Belo Horizonte/MG Diretoria de Instrucção Publica de Minas Gerais
27 1946-1971
Educação e Ensino – Revista
3 1897-1897 Distrito Federal/RJ Diretoria Geral da Instrução Pública Municipal do Distrito Federal
Pedagogica
Escola – Revista Official do
4 1900-1935 Belém/Pa Diretoria Geral da Instrução Pública do Estado do Pará
Ensino (A)
Annuario do ensino do Estado Directoria Geral da Instrucção Publica/
5 1907-1937 São Paulo/SP
de São Paulo Departamento de Educação do Estado de São Paulo
6 Revista do Ensino 1920-1920 Manaus/Am Diretoria Geral da Instrução Pública do Estado do Amazonas
7 Revista de ensino primário 1922-1922 Florianópolis/SC Directoria Geral da Instrucção Publica do Estado de Santa Catarina
8 Revista Escolar 1925-1927 São Paulo/SP Directoria Geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo
9 Revista do Ensino 1927-1931 Maceió/Al Orgam Official da Directoria Geral da Instrucção Publica de Alagoas
1927-1930 Directoria Geral da Instrução Pública/Sociedade de Educação de São Paulo
10 Educação
1930-1931 Diretoria Geral da Instrução Pública de São Paulo
Escola Nova
1933-1943
Revista de Educação Diretoria Geral do Ensino de São Paulo
1944-1947 São Paulo/SP
Educação
1951-1952, Diretoria Geral do Ensino do Estado de São Paulo /
Revista de Educação
1961 Departamento de Educação do Estado de São Paulo
Diretoria Geral de Instrução Pública do Distrito Federal/
11 Boletim de Educação Pública 1930-1935 Distrito Federal/RJ
Departamento de Educação do Distrito Federal
Revista Nacional de
12 1932-1934 Rio de Janeiro/RJ Museu Nacional do Rio de Janeiro/Ministério da Educação e Saúde Pública
Educação
13 Revista do Ensino 1932-1942 João Pessoa/Pb Diretoria do Ensino Primário o Estado da Paraíba
Secretaria do Interior e da Justiça/Secretaria da Educação e Saúde Pública
14 Revista de Educação 1934-1937 Vitória/ES
do Espírito Santo
1939-1942
15 Revista do Ensino 1951-1978 Porto Alegre/RS Secretaria de Educação e Saúde do Rio Grande do Sul
1989-1992
16 Revista de Educação Pública 1943-1958 Rio de Janeiro/RJ Secretaria Geral de Educação e Cultura do Rio de Janeiro
Revista Brasileira de Estudos Distrito Federal/RJ e
continua... 17 1944- INEP/Ministério da Educação e Cultura
Pedagógicos Brasília
continua...
43

31 Ver a nota 15..


44

Tipo Título (105) Ciclo de vida Cidade/Estado Responsável

Boletim Interno da Divisão de


18 1947-1957 São Paulo/SP Secretaria de Educação e Cultura do Município de São Paulo
Educação, Assistência e Recreio
Distrito Federal/RJ e
19 Boletim Informativo da Capes 1952- Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de nível Superior (CAPES/MEC)
Brasília
Distrito Federal/RJ e
20 Escola Secundária 1957-1963 Campanha de Aperfeiçoamento do Ensino Secundário (CADES)/MEC
Brasília
21 Pesquisa e Planejamento 1958-1975 São Paulo/SP Centro Regional de Pesquisa Educacional/SP-INEP
Revista Brasileira de Educação
22 1968-1984 Distrito Federal/Brasília Divisão de Educação Física/MEC
Física e Desportos
Revista de Histórias em
23 1971-1978 Distrito Federal/Brasília Departamento de Educação Física e Desportos (DED)/MEC
Quadrinhos Dedinho
Revista Educação em Mato
24 1978-1986 Cuiabá/MT Secretaria do Estado da Educação
Grosso
25 Revista Criança 1982- Distrito Federal/Brasília Ministério da Educação e Cultura (MEC)
Espaço-Informativo técnico-
26 1990- Rio de Janeiro/RJ Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES)/MEC
-científico do INES
27 Educadores em ação 2002-2009 Uberlândia/MG Secretaria Municipal de Uberlândia
Instrução Publica - Publicação
Revista de associação 1 1872-1889 Rio de Janeiro/RJ Professores Públicos Primários
Hebdomadária
docente e outros
membros do magistério; Instrucção Nacional: revista de
2 1873-1874 Rio de Janeiro/RJ (Dois) Professores públicos da Corte
sindicato de professores pedagogia, sciencias e letras
e outros..., professores Escola: Revista Brasileira de
(individualmente ou em 3 1877-1878 Rio de Janeiro/RJ (Dois) Professores
Educação e Ensino (A)
pequeno grupo) 4 Ensino Particular (O) 1883-1883 Rio de Janeiro/RJ Associação dos Professores Particulares
26 5 Revista do Ensino 1883-1885 Rio de Janeiro/RJ Um professor-padre. Um dono de editora
6 Revista da Liga do Ensino 1884-1884 Rio de Janeiro/RJ Sociedade Liga do Ensino no Brazil
7 Ensino Primário (O) 1884-1885 Rio de Janeiro/RJ Grupo de professores
8 Revista do Ensino 1886-1889 Ouro Preto/MG Prof. Alcides Catão da Rocha Medrado
9 Revista de Educação e Ensino 1891-1893 Belém/Pa Grupo de Professores
10 Revista do Ensino Primário 1892-1893 Salvador/Ba Três professores
1893-1894
11 Eschola Publica (A) São Paulo/SP Grupo de Professores
1896-1897
12 O Progresso Educador 1894-1894 Rio de Janeiro/RJ Mulheres (professoras)
13 Eschola (A) 1900-1900 Rio de Janeiro/RJ Associação dos Professores do Brazil

continua... 14 Educação 1902-1903 São Paulo/SP Associação Beneficente de Educação


continua...
Tipo Título (105) Ciclo de vida Cidade/Estado Responsável
Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo e Directoria
15 Revista de Ensino 1902-1919 São Paulo/SP
Geral da Instrucção Publica
16 Escola (A) 1906-1921 Curitiba/PR Grêmio dos Professores Públicos do Estado do Panará
1911-1912
17 Revista de Ensino Belém/PA Desembargador com apoio do governo estadual
1918-1919
18 Educação e Pediatria 1913-1915 Rio de Janeiro/RJ Grupo de intelectuais
Revista do Magisterio:
19 periódico didactico, pedagógico 1915-1916 Rio de Janeiro/RJ Centro dos Professores Municipaes
e litterario
20 Escola Primária (A) 1916-1938 Rio de Janeiro/RJ Inspetores Escolares do Distrito Federal/Sociedade Anônima
Ensino – órgão da Liga dos
21 1919-1920 Rio de Janeiro/RJ Liga dos Professores
Professores (O)
22 Revista Pedagogium 1921-1927 Natal/RN Associação dos Professores do Estado do Rio Grande do Norte
Revista da Sociedade de
23 1923-1924 São Paulo/SP Sociedade de Educação
Educação
24 Revista do Professor 1934-1965 São Paulo/SP Centro do Professorado Paulista CPP)
25 Revista Educando 1940-1945 Belo Horizonte/MG Associação dos Professores Primários de Minas Gerais
26 AMAE Educando 1967-2014 Belo Horizonte/MG Associação Mineira de Ação Educacional
1 Revista do Jardim da Infância 1896-1897 São Paulo/SP Escola Normal da Capital/Caetano de Campos
2 Boletim da Escola Moderna 1912-1919 São Paulo/SP Escola Moderna (operária)
Revista da Escola Normal de
3 1916-1922 São Carlos/SP Professores da Escola Normal de São Carlos
São Carlos
4 Revista de Educação 1921-1922 Piracicaba/SP Professores da Escola Normal de Piracicaba
Escola Normal (A) - Revista Orgão dos corpos docente e discente da Escola Normal do Districto Federal e de
5 1924-1925 Distrito Federal/RJ
de Educação suas congêneres nos Estados
6 Revista de Educação 1927-1928 Caitité/Ba Orgam da Escola Normal de Caetité-Bahia
Revista de instituição Escola Argentina da Diretoria Geral de Instrução Pública do Distrito Federal/
7 Revista Escola Argentina 1929-1935 Distrito Federal/RJ
ou unidade de ensino Departamento de Educação do Distrito Federal
8 Revista de Educação Física 1932-2002 Rio de Janeiro/RJ Escola de Educação Física do Exército/Estado Maior do Exército
Arquivos do Instituto
14 9 1934-1936 Distrito Federal/RJ Escola de Professores do Instituto de Educação do Rio de Janeiro
de Educação
Archivos do Instituto
10 1935-1937 São Paulo/SP Instituto de Educação da Universidade de São Paulo
de Educação
Cadeira de Didática Geral e Especial da Faculdade de Filosofia, Ciências e Le-
11 Revista de Pedagogia 1955-1967 São Paulo/SP
tras da Universidade de São Paulo
12 Revista Curriculum 1962-1976 Rio de Janeiro/RJ Colégio Nova Friburgo/Fundação Getúlio Vargas
Educação -Revista do Centro
13 1970- Santa Maria/RS Centro de Educação -Universidade Federal de Santa Maria.
de Educação
45

14 Revista da Educação Física/UEM 1988- Maringá/Pr Departamento de Educação Física da Universidade Estadual de Maringá
continua...
46

Tipo Título (105) Ciclo de vida Cidade/Estado Responsável


Revista do Instituto Histórico
1 1839- Rio de Janeiro/RJ Instituto Histórico e Geográfico do Brasil
e Geográfico do Brasil
2 Cadernos de Pesquisa 1971- São Paulo/SP Fundação Carlos Chagas
3 Educação & Sociedade 1978- Campinas/SP Centro de Estudos Educação & Sociedade
4 Revista de Ensino de Física 1979-1992 São Paulo/SP Sociedade Brasileira de Física
Revista Brasileira de Ciências
5 1979-2017 Porto Alegre/RS Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE)
Revista de centro de estudo, do Esporte
fundação e instituto de 6 Cadernos Cedes 1980- Campinas/SP Centro de Estudos Educação & Sociedade
pesquisa 7 Ciência Hoje 1982- Rio de Janeiro/RJ Instituto Ciência Hoje
8 Leitura: Teoria & Prática 1982- Campinas/SP Associação de Leitura do Brasil
12 9 Psicopedagogia 1982-2006 São Paulo/SP Associação Brasileira de Psicopedagogia
Revista Brasileira de (Política)
10 e Administração da Educação 1983- Distrito Federal/Brasília Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE)
(RBAE-RBPAE)
11 Revista Brasileira de Educação 1995- Rio de Janeiro/RJ Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
Revista Brasileira de História da
12 2001- Maringá/Pr Sociedade Brasileira de História da Educação
Educação
Magistério: revista pedagógica, Associação dos Professores do Brazil (associação formada por alunos da Escola
1 1909-1909 Rio de Janeiro/RJ
didactica e litteraria (O) Normal do Rio de Janeiro, com apoio de docentes e prof. primários)
2 Estudo (O) 1922-1931 Porto Alegre/RS Grêmio de Estudantes da Escola Complementar/Normal de Porto Alegre/RS
Órgão das alunas do Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, de Itu, da
3 Patrocínio (O) 1924-1955 Itu/SP
Revista de movimento Congregação das Irmãs de São José de Chambéry
estudantil e de agremiação 4 Revista Acadêmica 1933-1948 Rio de Janeiro/RJ Estudantes da Faculdade Nacional de Direito
Estudantes da Escola Normal “Padre Anchieta” (com colaboração de
de estudantes 5 Biologia Educacional 1938-1941 São Paulo/SP
especialistas)
6 FEUPA 1945-1946 Porto Alegre/RS Federação dos Estudantes Universitários de Porto Alegre.
10
7 Voz da Serra (A) 1946-1950 Cerro Azul (Largo)/RS Alunos da Escola Normal Rural La Salle
8 Eco do Estudante (O) 1957-1983 Três de Maio/RS Escola Normal Rural Getúlio Vargas
9 Vitória Colegial 1951-1959 Rio de Janeiro/RJ Alunos do Colégio Santo Inácio
10 Movimento 1962- Rio de Janeiro/RJ União Nacional dos Estudantes
Educação Nacional: educação, Livraria Francisco Alves com participação de pessoas com projeção na educação
1 1907-1907 Rio de Janeiro/RJ
ensino, administração local e na cultura.
Companhia Editora Melhoramentos de São Paulo – Weiszflog Irmãos
2 Revista Nacional 1921-1923 São Paulo/SP
Incorporado
Oficinas Gráficas de Infância e Juventude, de propriedade de Renato
Revista Criptocomercial 3 Infância e juventude 1936-1937 Rio de Janeiro/RJ
Americano
Revista Brasileira de Educação
4 1944-1952 Rio de Janeiro/RJ Chancela de “A Noite”
10 Física
5 Atualidades Pedagógicas 1950-1962 São Paulo/SP Companhia Editora Nacional
6 Revista do Magistério 1952-1963 São Paulo/SP Livraria Francisco Alves
7 Revista da Editora do Brasil 1961-1980 São Paulo/SP Editora do Brasil S/A (EBSA)
8 Educação Hoje 1969-1971 São Paulo/SP Editora Brasiliense
continua...
Tipo Título (105) Ciclo de vida Cidade/Estado Responsável
Dois Pontos - Teoria & Prática
9 1983- Belo Horizonte/MG Grupo Pitágoras - Empresa de escolas
em Educação
10 Presença Pedagógica 1995- Belo Horizonte/MG Editora Dimensão [iniciativa da FAE-UFMG
Revista confessional e 1 Ordem (A) 1921-1990 Rio de Janeiro/RJ Departamento Editorial do Centro Dom Vital (Católico)
de educação religiosa 1922-1966
2 Bem-te-vi São Paulo/SP Imprensa Metodista
8 1967-
3 Pequeno Luterano (O) 1930-1966 Pelotas/RS Sínodo de Missouri
4 Revista Família Cristã 1934- São Paulo/SP Irmãs Paulinas
5 Revista Brasileira de Pedagogia 1934-1938 Rio de Janeiro/RJ Confederação Católica Brasileira de Educação (CCBE)
6 Pro Aris et Foci 1954-1962 Campinas/SP Faculdades Campineiras
Vargem Grande
7 Cidade Nova 1957- Editora Cidade Nova/Movimento Focolares
Paulista/SP
8 Revista Diálogo 1995- São Paulo/SP Grupo Paulinas
1 Tico-Tico 1905-1962 Distrito Federal/RJ Sociedade Anonyma “O Malho” (intelectuais a concebem)
Revista Comercial 2 Pais & Filhos 1968- Rio de Janeiro/RJ Bloch Editores S.A./Vários
7 1969-1981
3 Recreio São Paulo/SP Editora Abril-Victor Civita
2000-2018
4 Escola (para professores) 1972-1974 São Paulo/SP Editora Abril-Grupo Abril
Editora Abril- Grupo Abril-Fundação Victor Civita
5 Nova Escola 1986- São Paulo/SP
Associação Nova Escola/Fundação Lemann
6 Superinteressante 1987- São Paulo/SP Editora Abril-Grupo Abril
7 Carta na Escola 2005- São Paulo/SP Editora Confiança
1 Jornal das Moças 1914-1965 Rio de Janeiro/RJ Editora Jornal das Moças Ltda
Magazine
4 2 Violeta (A) 1916-1950 Cuiabá/MT Grêmio Literário “Júlia Lopes”
3 Vida Doméstica 1920-1963 Rio de Janeiro/RJ Jesus Gonçalves Fidalgo/Sociedade Gráfica Vida Doméstica
4 Querida 1954-1971 Rio de Janeiro/RJ Rio Gráfica Editora
1855-1855
Revista de cultura 1857-1861
3 1879-1881
Revista Brazileira - Jornal de 1895-1899
1 Rio de Janeiro/RJ Vários (Atualmente, Academia Brasileira de Letras)
Sciencias, Letras e Artes 1934-1935
1941-1948
1958-1966
1975-
2 Revista Litteraria 1890-1891 Maroim/Se Gabinete de Leitura de Maroim
3 Informação Goyana (A) 1917-1935 Rio de Janeiro/RJ Grupo de intelectuais goianos.
47

continua...
48

Tipo Título (105) Ciclo de vida Cidade/Estado Responsável


Revista de Imigrantes
1 Das Schulbuch (o livro escolar) 1917-1938 São Leopoldo/RS Editora Rotermund
1

Revista de pais Federação Nacional das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais
1 Mensagem da APAE 1963- Distrito Federal/Brasília
1 (FAPAEs)

Fonte: Dissertações/teses; artigos e capítulos de livros (308). Elaborado por M. J. Warde


2. FALAR PARA OU FALAR COM OS PROFESSORES:
O DISCURSO DE COLABORADORES DA REVISTA DE
EDUCAÇÃO DE SÃO PAULO (1930-1960)32
Regina Cândida Ellero Gualtieri

Introdução

A imprensa pedagógica tem sido considerada importante fonte de pes-


quisa por historiadores da educação pela potencialidade revelada para estudos de
processos educativos como evidenciam, por exemplo, os estudos de Nóvoa (2002)
e Caspard & P. Caspard (2002). Um dos aspectos que Nóvoa destaca como de
grande significado é o fato de a imprensa ser “o lugar de uma afirmação em grupo”
dado que um periódico sempre envolve debates, discussões, polêmicas e conflitos;
é um “espaço de afirmação de correntes de acção e de pensamento educacional”
(NÓVOA, 2002, p. 13 e 14). Caspard & Caspard, por sua vez, sublinham o papel
da imprensa pedagógica na formação contínua dos professores, ou “a formação
contínua de professores destinados a ensinar 30 ou 40 anos depois de sua passa-
gem pelo ‘molde’ (ou supõe-se isto) das escolas normais” (CASPARD & CAS-
PARD, 2002, p. 33).
No Brasil, Carvalho (2000), com perspectiva convergente, ressalta a im-
portância dos impressos, a partir do final do século XIX e nas primeiras quatro
décadas do século XX, para a compreensão dos modelos de formação docente que
circularam no período para a pretendida renovação educacional.
Esses aspectos apontados foram especialmente considerados para selecio-
nar, como fonte da pesquisa que embasa este capítulo, a Revista de Educação,
também intitulada Educação, dependendo do ano de impressão. Além disso, a

32 Este capítulo é uma republicação do artigo GUALTIERI, R.C.E. Métodos de ensino para a inovação
pedagógica nas décadas de 1930 a 1950. O que a “Revista de Educação” de São Paulo divulga? His-
tory of Education & Children’s Literature, XVI, 2 (2021), pp. 269-291, que integra o dossiê Journals for
teachers, children and youth as a transnational phenomenon. Directions and experiences of the periodical press
in Italy, Brazil, Spain, France and United States between political, social and cultural changes in 19th and
20th Centuries, edited by Alberto Barausse, Claudia Panizzolo, Roberto Sani and Mirian Jorge Warde.
Os dados apresentados e discutidos no artigo foram obtidos na pesquisa realizada entre 2017 e 2021
“O ethos da escola seletiva numa perspectiva histórica (1930-1960)” e financiada pela Fundação de
Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp). Na presente versão do texto, houve alteração do título do
artigo original e algumas modificações na forma escrita.

49
historiografia assinala que essa publicação, para a época, “se configura como uma
das publicações mais duradouras e significativas no âmbito da imprensa periódica
educacional do país” (MELLO, 2007, p. 91).

Uma revista oficial

A Revista de Educação é uma publicação oficial de um órgão da admi-


nistração pública do Estado de São Paulo, entre 1927 e 1961, com interrupções
em sua produção, entre 1948 e 1950 e entre 1953 e 1960 sob a justificativa de
dificuldades financeiras.
Houve mudanças no nome da publicação que alternou, principalmente
entre Educação e Revista de Educação e, por um curto período, também foi de-
nominada Escola Nova. Essas mudanças coincidem com substituições ocorridas
nos ocupantes da direção do órgão público que a editava e, certamente, expressam
a vontade desses diretores em deixar marcas de sua passagem pela direção. Assim,
entre 1930 e 1931, período em que Manuel Bergström Lourenço Filho (1897-1970)
esteve à frente da Diretoria de Ensino, o periódico deixou de chamar Educação,
título com que a série foi iniciada em 1927, para se chamar Escola Nova. Em
meados de 1931 até o final de 1932, sob administração de Sud Mennucci (1892-
1948), o título voltou para Educação, mas a partir de 1933, Fernando de Azevedo
(1894-1974), o novo diretor, a renomeou como Revista de Educação. Em 1944,
quando Sud Mennucci estava novamente na direção e até 1947, mais uma vez,
passou a se chamar Educação. Entre 1947 e 1950 não houve publicação, mas
quando tornou a ser publicada, em 1951, foi renomeada Revista de Educação até
ser extinta em 1961. 33
Não se trata de um único projeto editorial como bem assinala Mello
(2007), quando escreve sobre a trajetória do periódico em seus vários rearranjos,
entre 1927 e 1943, e evidencia a dificuldade em manter uma proposta editorial
dadas as constantes trocas administrativas.
É possível, porém, verificar que, durante todo o período de vida até sua
extinção, em 1961, manteve-se atrelada à administração pública do ensino em São
Paulo e isso significou algum compromisso em publicar “orientação oficial do en-
sino”. 34 Era vendida a interessados, em números avulsos ou assinaturas e em 1935
passou a ser distribuída gratuitamente aos “professores públicos do Estado” 35, con-

33 Considerando essa alternância de nomes entre «Revista de Educação» e «Educação», neste capítulo,
ao se referir a ela no período entre 1931 e 1961, será registrado, por facilidade, Revista ou Revista de
Educação.

34 Expressão utilizada na apresentação da Revista Educação, Vol. II, n.º 3, Mar. 1928, verso da capa.

35 Essa informação consta no verso da contracapa da Revista de Educação, Vol. IX e X, n.º 9 e 10, Mar.

50
dição que predominou com o passar dos anos, reforçada por decisão nos anos 1940
de que “todos os institutos oficiais de ensino” passariam a receber um exemplar da
revista36. Isso dá a dimensão de sua abrangência, embora, evidentemente, não do
real impacto daquilo que tencionava fazer em relação às escolas e aos educadores
com quem pretensamente dialogava. Esse aspecto de ser um veículo oficial com
tal abrangência interessa para os propósitos deste capítulo que visa compreender a
natureza dessa interlocução.
A periodicidade variou de mensal a anual, passando, ao longo do tempo,
por várias outras possibilidades37, em função de alegadas crises financeiras asso-
ciadas à instabilidade institucional. Houve mudanças constantes nos titulares da
Secretaria de Educação à qual a Diretoria de Ensino, responsável pelo periódico,
era vinculada, como também houve mudanças na titularidade da própria Dire-
toria.
As trocas frequentes dos administradores na década de 1930 e parte da de
1940, de certa forma, espelham as mudanças políticas que ocorreram nesses anos
com a ascensão de Getúlio Vargas no âmbito da administração federal do Brasil e
as consequentes alterações nos espaços de poder nos Estados, tudo agravado pe-
los acontecimentos em âmbito internacional, até meados dos anos 1940. Getúlio
Vargas assume a chefia do governo provisório no início de novembro de 1930 e,
como afirma Monarcha (2010, p. 70), a partir de então, “abria-se no Estado de
São Paulo um ciclo conflagrado caracterizado por uma sucessão vertiginosa de
interventores federais”, seguida de acomodações nos cargos dirigentes dos vários
setores da administração estadual, e os da instrução pública não constituíram
exceção. Tal situação de interventores federais administrando o estado paulista
somente é revertida a partir de meados dos anos 1940, com a redemocratização
do país e, de fato, no início de 1947, quando assume um governador eleito.38
No Quadro 1, em que há o registro dos administradores no período entre
1931 e 1961, é possível constatar as descontinuidades, com situações em que em
apenas um ano há três dirigentes que se sucedem na Diretoria de Ensino.

1935.

36 Escrito no verso da contracapa da «Revista de Educação», Vol. XXX, Jul. Dez.1943.

37 Mensal entre 1927 e 1930; bimestral, entre 1931 e 1932; trimestral, entre 1933 e 1934; quadrimestral
em 1951; semestral entre 1935 e 1937, em 1944, 1945 e 1961; anual entre 1938 e 1944; 1946-1947 e
1952.

38 Cabe assinalar que, entre abril de 1935 e dezembro de 1936, assumiu um governador eleito, mas o
período, conhecido como período constitucional, durante a era Vargas, foi curto - entre 1935 e 1937.

51
Quadro 1: Administradores da Secretaria e do Departamento de Educação nos anos de publi-
cação da Revista de ensino no período 1931-1961.

Quadro dos Administradores 1931-1961

Secretário da Educação (Secretaria de Estado da Diretor Geral do Ensino (1931,1932 e parte de


Educação e Saúde Pública de março de 1931 até junho de 1934) Diretor do Departamento de Educação
Ano
1947; Secretaria de Estado dos Negócios da Educação de (1933 e 1938 a 1961) Diretor do Ensino (parte de
1947 a 1961) 1934 a 1937)

Antonio de Almeida Prado; Floriano de Vasconcelos


1931 Sud Mennucci
Linhares; Francisco de Sales Gomes Júnior

Francisco de Sales Gomes Júnior; José Rodrigues Alves Sud Mennucci; João Toledo; Fernando de
1932
Sobrinho; Augusto de Meireles Reis Filho Azevedo

Augusto de Meireles Reis Filho; Waldomiro Silveira; Fernando de Azevedo; Sud Mennucci;
1933
Christiano Altenfelder Silva Francisco Azzi
Christiano Altenfelder Silva; Augusto Meireles Ramos;
1934 Francisco Azzi; Luiz da Motta Mercier
Adalberto Bueno Neto; Márcio Pereira Munhoz

1935 Márcio Pereira Munhoz; Cantídio de Moura Campos Luiz da Motta Mercier; Almeida Júnior

1936 Cantídio de Moura Campos Almeida Júnior


Cantídio de Moura Campos; Augusto de Meireles Reis
1937 Almeida Júnior
Filho; Francisco de Sales Gomes Júnior
Francisco de Sales Gomes Júnior; Mariano de Oliveira
1938 Joaquim Álvares Cruz
Wendel; Álvaro de Figueiredo Guião
1939 Álvaro de Figueiredo Guião; Humberto Pascale Dario Dias de Moura
Alduino Strada; Dario Moura; Antenor
1940 Humberto Pascale; Mario Guimarães de Barros Lins
Romano Barreto
Mario Guimarães de Barros Lins; Aluizio Lopes de Antenor Romano Barreto; Israel Alves dos
1941
Oliveira; José Rodrigues Alves Sobrinho Santos
José Rodrigues Alves Sobrinho; Teotônio Monteiro de
1942 Israel Alves dos Santos
Barros Filho
Teotônio Monteiro de Barros Filho; Aluízio Lopes de
1943 Israel Alves dos Santos; Sud Mennucci;
Oliveira; Sebastião Nogueira Lima
1944 Sebastião Nogueira Lima Sud Mennucci

Sebastião Nogueira Lima; Jorge Americano; Antônio Sud Mennucci ; Milton Camargo da Silva
1945
Ferreira de Almeida Júnior Rodrigues

Antônio Ferreira de Almeida Júnior; Plinio Caiado de Luiz da Mota Mercier; Milton Camargo da
1946
Castro Silva Rodrigues
Plinio Caiado de Castro; Francisco Malta Cardoso;
1947 Luis Gonzaga Noveli Júnior; Aloísio Lopes de Oliveira; Thales Castanho de Andrade
Fernando de Azevedo; Francisco Brasiliense Fusco
948 a
Não houve publicação da Revista
1950
Ary Albuquerque; Juvenal Lino de Matos; Francisco
1951 Thales Castanho de Andrade
Antonio Cardoso; Juvenal Lino de Matos
1952 Antonio de Oliveira Costa Thales Castanho de Andrade
1953 a
Não houve publicação da Revista
1960
1961 Luciano Vasconcelos de Carvalho Jair de Moraes Neves

Fonte: Elaboração da autora


O recorte temporal do presente estudo tem início em 1931 porque o ciclo
da Revista de 1930-1931, período em que Lourenço Filho comandou a publi-
cação então intitulada Escola Nova, já foi objeto de análise de Gualtieri (2013).
Com a saída de Lourenço Filho da diretoria, começam, então, outros ciclos da
Revista que serão aqui examinados.
Desde os primeiros números, os editores solicitam a “colaboração dos mais
adiantados pedagogistas do país” 39, mas essa informação nem sempre está in-
dicada nos volumes do período em análise, ou indicada dessa forma, já que a
apresentação gráfica vai se modificando ao longo dos ciclos. Chama a atenção,
por exemplo, que, em plena ditadura Vargas, nos volumes publicados em 1938 e
1939, na orelha da contracapa, pode-se ler que “Esta Revista, mantendo-se acima
de divergências doutrinárias, acolhe com imparcialidade a colaboração de todos
quantos queiram assim distingui-la”. Já no verso da capa dos volumes de 1951
da Revista de Educação, pós-redemocratização do país, identificada como “Nova
Fase”, estão registradas várias orientações, entre as quais a de que o periódico
“deseja mobilizar todos os Professores e estudiosos, solicitando-lhes colabora-
ções originais e informes”, desde que obedeçam às diretrizes estabelecidas pela
Revista. Ainda há o alerta de que “a Revista não se responsabiliza por conceitos
emitidos em artigos assinados ou em matéria transcrita”. As significações desses
aspectos do periódico ainda estão para ser exploradas e, uma vez exploradas, am-
pliarão o entendimento das contribuições desse impresso para o debate educa-
cional do período. No entanto, o que já foi possível compreender é que, ao longo
desse tempo, há convergências no modo com que determinados autores dialogam
com seu potencial leitor – o professor –, mesmo considerando as várias rupturas
administrativas e os contextos de produção, aspecto a ser discutido no próximo
item deste capítulo.
Nos vários números, nessas três décadas, entre 1931 e 1961, os autores
colaboradores são representados por professores dos vários graus de ensino, dire-
tores e inspetores de escola e técnicos do ensino, isto é, educadores ocupando pos-
tos na administração pública educacional. Ao longo do tempo, também contou
com autores estrangeiros cujos textos eram traduzidos. Essas características são
comuns aos autores de periódicos educacionais entre o século XIX e meados do
século XX, como mostram Caspard & Capard (2002) e, no caso do Brasil, estudos
como os de Catani (2003) e Biccas (2005) são dois exemplos que confirmam tal
caracterização, sobretudo, para as primeiras décadas do século XX.
Sobre esse aspecto, Monarcha (s/d) ainda chama a atenção para o fato de
que, especificamente no estado de São Paulo, o periodismo especializado em edu-
cação e ensino, nessas décadas, se beneficiou da existência de um parque gráfico

39 Solicitação impressa no verso da capa da Revista Educação, Vol II, n.º 3, Mar 1928.

53
e da presença de professores primários, formados nas escolas normais, que atua-
ram como “teorizadores de modelos de educação e métodos de ensino e autores
de obras didáticas de larga repercussão” (MONARCHA, s/d, p. 2). No caso do
periódico em análise, de fato, esses “teorizadores” de modelos e métodos, alguns
dos quais autores de obras didáticas, são os que partilham suas experiências e con-
vicções nas páginas do periódico como será mostrado mais adiante neste texto.
Na estrutura da Revista, os textos desses colaboradores aparecem na pri-
meira seção. Outras seções especializadas integram a organização do periódico e,
apesar de sofrerem alterações, durante as décadas de existência, de modo geral,
elas se destinam a informar sobre normas legais, reproduzindo decretos e resolu-
ções expedidas pela Diretoria de Ensino, como também dar publicidade a ações e
realizações da administração pública e ainda divulgar resenhas de livros, eventos
educacionais, indicações ou reproduções de textos já publicados em periódicos
nacionais e internacionais.
A ambição desse periódico é ampla e inclui oferecer orientações oficiais,
auxiliar o trabalho do professor, veicular debates educacionais sem exclusividade
para qualquer grau de ensino, embora a interlocução com o curso primário seja a
maior até o final dos anos 1950.
Vilela (2000), conforme apontado por Mello (2007), ao estudar os discur-
sos veiculados nos artigos que considera representativos – pela projeção que seus
autores têm no cenário educacional da época ou pela frequência com que publi-
cam no periódico –, avalia que essa ambição se realizou com ênfases diferentes ao
longo do tempo, ora se tornando mais explicitamente a voz oficial, ora promoven-
do com mais força o debate educacional, ora auxiliando o trabalho pedagógico do
professor, circunstância que Vilela interpreta como mudanças de escopo.
Mortatti (2000, p. 182) também concorda que se trata de diferentes orien-
tações que acabaram por produzir, ao longo do tempo, diferentes revistas, mas re-
conhece que guardam um traço comum – o de se apresentarem como pertencente
à Diretoria de Ensino ou Departamento de Educação.
Mudanças nas ênfases e orientações são esperadas, em especial, no caso
desse periódico que conta com tantas descontinuidades administrativas nessas
três décadas. No entanto, para os propósitos deste capítulo, interessam exatamen-
te o apontado como traço comum e o fato de que a interlocução com professores
é mantida ao longo dos anos, seja por meio de textos que atualizam normas e re-
gulamentos referentes à organização e ao funcionamento da escola e da profissão
docente em São Paulo, seja por artigos reproduzidos de educadores, já publicados
em outras revistas e jornais nacionais ou estrangeiros de interesse para a escola, ou
ainda, por meio de textos relacionados a práticas pedagógicas.
Ligados a matérias do currículo escolar, os textos sobre práticas pedagó-
gicas abrangem conteúdos e estratégias de ensino, abordagens teóricas, materiais

54
didáticos específicos, além de tratarem de problemas que podem estar associados
a essas práticas como disciplina do aluno e rendimento escolar. São textos publi-
cados na seção dos colaboradores do periódico e que se destinam, preferencial-
mente, à escola primária, mas também há os voltados para a escola secundária.
Considerando as publicações entre 1931 e 1961, a análise recairá sobre alguns
desses textos que tratam de práticas pedagógicas, formas de fazer do professor
primário, identificados neste artigo sob o título geral de “métodos de ensino”.
Os autores desses textos, ao discutirem inovações pedagógicas, baseadas
em suas experiências, leituras e ou em obras didáticas escritas por eles, se dirigem
diretamente ao professor. Tal circunstância combinada com o fato de a Revista
contar com colaboradores, atuando dentro e fora do espaço escolar sustentam
o critério de escolha para análise desses textos. Assim, ser ou não autor de livro
didático, atuar profissionalmente, dentro ou fora da escola, trazem especificidades
na forma de os colaboradores abordarem o professor? Em outras palavras, suas
abordagens traduzem a “particularidade” de seus “lugares de fala”? (CERTEAU,
2008, p. 65) De que modo? O que isso pode representar para a época? Em que
contribui para compreender os fazeres educacionais?
Pode parecer imprópria a opção por examinar as publicações nesse arco de
tempo relativamente amplo e no interior de um periódico cuja administração foi
acidentada em termos de troca de comando, projeto editorial, viabilidade econô-
mica, organização interna, escopo, características que levaram alguns historiado-
res da educação, como já mencionado, a considerarem não como uma revista, mas
várias. No entanto, levamos em conta a advertência de Certeau (1998, p. 311) de
que “o tempo que passa, separa ou liga” e, desse modo, a amplitude temporal favo-
receu, no presente estudo, a percepção de recorrências no modo como diferentes
colaboradores da Revista falam com o professor, ao visarem instaurar práticas
pedagógicas pensadas como exemplares.
As recorrências encontradas talvez ainda não possam ser compreendidas
como generalizáveis, mas apontam para uma possibilidade interpretativa a ser
discutida a seguir.

Alcance e limites dos “métodos de ensino”

A Revista, no período sob análise, publicou um pouco mais de 150 entre


os quase 600 textos de colaboradores (tabela 1) que abordam temas identificados,
conforme anteriormente justificado, como “métodos de ensino”.
Ao ler esses textos que se apresentam com a pretensa finalidade de orientar
os professores em sua ação cotidiana, é perceptível o destaque dado por certos
autores para situar quem aprende no centro do processo de ensino, na esteira dos
debates escolanovistas, presentes na Revista, nos anos 1930, mas também nas dé-

55
cadas seguintes. Referenciados, ou não, na Psicologia, destacam a importância de
que programas, planos de aula, estratégias de ensino e materiais didáticos sejam
produzidos e implementados, tendo em vista o que consideram ser as necessida-
des e os interesses de quem aprende, abordagem nada incomum nos anos 1930
e, na Revista, aparece como um princípio para vários autores, também em anos
posteriores.

Tabela 1: número de textos relativos a Métodos de Ensino da RE por volume publicado


(1931 a 1961)

N.º total
Métodos de
Ano/Vol./Num/Mês N.º volumes de artigos
ensino
publicados

1931 (Vol. IV n. º 1, 2 Ago Set) 1 8 0

1931 (Vol. V n.º 3, 4 e 5 Out Nov Dez) 1 5 2

1932 (Vol. VI n.º 1, 2 e 3 Jan Fev Mar) 1 13 3

1932 (Vol. VI n.º 4 e 5 Abr Mai) 1 16 2

1932 (Vol. VIII n.º 6 e 7 Jun Jul) 1 17 2

1932 (Vol. IX n. º 08 e 9 Ago Set) 1 5 1

1932 (Vol. X n. º 10 e 11 Out Nov) 1 24 2

1932 (Vol. XI n.º 12 Dez) 1 20 2

1933 (Vol. I n. º1 Mar) 1 18 3

1933 (Vol. II n. º2 Jun) 1 10 1

1933 (Vol. III n. º3 Set) 1 7 0

1933 (Vol. IV n. º4 Dez) 1 17 5

1934 (Vol. V, n.º 5 Mar) 1 8 3

1934 (Vol. VI, n.º 6 Jun) 1 17 3

1934 (Vol. VII, n. º 7 Set) 1 16 3

1934 (Vol. VIII n.º 8 Dez) 1 25 3

1935 (Vol. IX e X n.º 9 e 10 Mar Jun) 2 10 1

1935 (Vol. XI e XII n.º 11 e 12 Set Dez) 2 10 3

1936 (Vol. XIII e XIV n. º12 e 13 Mar Jun) 2 11 2

1936 (Vol. XV e XVI n.º 15 e 16 Set Dez) 2 12 4

1937 (Vol. XVII e XVIII n.º 17 e 18 Mar e Jun) 2 16 1

56
1937 (Vol. XIX e XX n.º 19 e 20 Set Dez) 2 11 3

1938 (Vol. XXI e XXII n.º 21 e 22 Mar e Jun) 2 13 3

1939 (Vol. XXIII a XXVI n.º 23 a 26 Set Dez 38 e Mar Jun 39) 2 10 2

1939 (Vol. XXVII n. º 27 Set Dez) 1 10 2

1940 (Vol. XXVIII n.º 29 a 32 Mar Jun Set Dez) 1 9 1

1941-1943 (Vol. XXIX n.º 30 a 39 Mar 1941 Jun 1943) 1 16 3

1943 (Vol. XXX n.º 40 e 41 Jul Dez) 1 25 09

1944 (Vol. XXXI n. º 42 e 43 Jan Jun) 1 28 12

1944 (Vol. XXXII n. º 44 e 45 Jul Dez) 1 15 10

1945 (Vol. XXXIII n. º 46 e 47 Jan Jun) 1 18 7

1945 (Vol. XXXIV n.º 48 e 49 Jul Dez) 1 19 6

1946 (Vol. XXXV n.º 50 a 53 Jan Dez) 1 23 10

Decreto n. 17.698, de 26 de
novembro de 1947
1947 (Vol. XXXVI n.º 54 a 57 Jan Dez) 1
(Consolidação das Leis do
Ensino)

1948 a 1950 Não houve publicação

1951 (Vol. XXXVII n.º 58 Mar) 15 4

1951 (Vol. XXXVII n.º 59 Jun) 1 18 7

1951 (Vol. XXXVII n.º 60 e 61 Set Dez) 22 9

1952 (Vol. XXXVIII n.º 62 a 65 Mar Jun Set Dez) 34 12

1953-1960 Não houve publicação

1961 n.º 66 1 10 6

1961 n.º 67 1 10 7

Total 46 592 159

Fonte: Elaboração da autora

Nesses textos, sem considerar as especificidades das abordagens que, sem


dúvida, são diversas, dado que o “escolanovismo” é uma “população de ideias” 40
e o entendimento sobre elas e a apropriação que se fez delas estão longe de ser

40 Expressão emprestada de M. Adams ao se referir à eugenia «as a complex population of ideas» em M.


Adams, Toward a Comparative History of Eugenics, in, M. Adams (edd.),The wellborn Science. Eugenics
in Germany, France, Brazil and Russia, New York, Oxford University Press, 1990, p. 218.

57
únicas e homogêneas, chama a atenção um aspecto que se revelou uma tendência
no âmbito do periódico. Ao longo dessas três décadas, o alcance das inovações
metodológicas, seu sucesso ou insucesso para atingir o pretendido, é diferente-
mente estimado pelos autores, mas suas perspectivas guardam relação com as
funções que ocupam na estrutura do sistema educacional e com os interesses daí
decorrentes.
Para exemplificar, são trazidos, a seguir, excertos de textos que tratam, es-
pecificamente, do ler e escrever e da matemática na escola primária. Os autores
são variados e ocupam funções diferentes no sistema educacional – atuam na
escola ou na administração regional ou central – e escrevem orientações ou su-
gestões para os professores.
No texto, publicado em 1932, de José Ferraz de Campos, ex-professor de
escola primária, ex-professor da Escola Normal de Itapetininga e, na época da
publicação, membro do corpo de inspeção da Diretoria Geral do Ensino, ao dis-
cutir o ensino das frações, deixa claro que as dificuldades dos alunos seriam su-
peradas se ocorresse “o emprego de um novo método no ensino concretizado das
frações” (CAMPOS, 1932, p. 67).
O ensino das frações, avalia Campos (p. 66), “foi sempre e continua a ser
deploravelmente mal ministrado no curso preliminar” o que resulta em um “de-
sastre”.
Sentindo-se incapazes de um ensino objetivo bem feito, de po-
derem explanar e transmitir conhecimento raciocinado e cons-
ciente de multiplicação e divisão de quebrados às classes de 3o
e 4o anos do curso preliminar, professores há que tentam a in-
dução das regras, naqueles casos, pela teoria que se encontra nas
Aritméticas do curso secundário, absolutamente inadequada,
abstrata e fora do alcance da mentalidade ainda incipiente dos
seus alunos. O desastre é certo trazendo, a mais, por contrapeso,
além da tortura inútil [...]; o desinteresse, a desatenção e, pior,
que tudo, a ideia, a certeza (!) que ante os fracassos acumulados
se vai formando, cada aluno, de que “não tem jeito”, “não tem
queda”, “não dá para a Matemática”. (CAMPOS, 1932, p. 66)

Campos critica os professores que, por falta de preparo, acabam exigindo


dos alunos tão somente a memorização, mas “Deus lhe perdoe, porque ainda os
há piores...”. E, com os piores, é mais duro, pois julga que simplificam a teoria
para facilitar o ensino: “É a lei do esforço mínimo, a que só fazem exceção os
verdadeiros educadores” (p. 66 e 67).
Essa linguagem pouco amistosa permanece mesmo quando considera que
alguns colegas vão além do descrito, “infelizmente muito poucos”, diz, e, embora
aponte como insatisfatório, julga que é o que de melhor tem visto. Conclui seus

58
considerandos iniciais, justificando em seu texto que é para “evitar tantos males”
que “de longa data” vem aconselhando o emprego de um novo método (p. 67).
Na avaliação de Valente e Pinheiro (2015, p. 30), a vivência de José Ferraz
de Campos como inspetor geral de ensino deu-lhe oportunidade de verificar em
diferentes escolas como o ensino de Aritmética acontecia. Além dessa experiên-
cia, destacam os autores, a familiaridade com as discussões atualizadas sobre o
ensino de matemática contribuiu para que passasse a escrever orientações que iam
ao encontro das propostas da escola ativa, uma das quais é a obra “Cálculo para
principiantes”. Lançada em 1928, é destinada a professores e contém prescrições
sobre como trabalhar vários tópicos da aritmética, supostamente orientadas se-
gundo a pedagogia moderna.
Nessa obra didática, contudo, é possível constatar que os novos métodos
são referidos como solução para cessar os males decorrentes do ensino de cálculo
não ancorado na pedagogia moderna, mas a retórica é diferente, própria dos ma-
nuais didáticos, tal como aponta Valdemarin (2010, p. 132), “destinada à sedução,
ao convencimento e à conversão”. Assim, afirma Campos na introdução:
Corrigir todos os males acima apontados, segundo os preceitos
da moderna pedagogia, orientando o professor, foi o intuito que
tivemos, ao organizar este trabalho; nele encontrará o mestre, à
mão, o material necessário ao ensino da Aritmética, nas classes
iniciantes do curso preliminar. (CAMPOS, 1928, p. IX)

Essa retórica diversa remete a Certeau (1998, p. 252), quando diz “o lugar
de onde se fala é exterior ao empreendimento escriturístico” e faz pensar que, no
texto didático, Ferraz de Campos não fala do lugar do inspetor que avalia e julga,
mas do autor de um livro didático que quer seduzir e converter. De outro modo,
Campos, um ex-professor primário e ex-professor de Escola Normal, escreve na
Revista, identificando-se como inspetor geral do ensino e, imbuído dessa função
de fiscalizar e orientar, analisa o “desastre” dos resultados do ensino de matemá-
tica como sendo responsabilidade dos ex-colegas, que não inovam suas práticas, e
as crianças são suas vítimas. Ele escreve do lugar de inspetor para as autoridades
do sistema, talvez reivindicando a imposição de certos fazeres, mas certamente
justificando por que impor e não convencer já que de “longa data” aconselha os
professores.
No mesmo ano de 1932, mas em outro volume, Abel de Faria Sodré, di-
retor do Grupo Escolar de São Carlos, atuando, portanto, diretamente na escola,
escreve sobre a alfabetização que considera o “problema vital para o Estado de
São Paulo”, dado o grande número de crianças que repetem o primeiro ano e
não liberam suas vagas para novas matrículas. Para enfrentar a repetência, Sodré
(1932, p. 33) estimula os educadores, propondo “aventemos novos métodos ou
novos processos de alfabetização”, “estudemos juntos” para, em seguida, apresen-

59
tar o “nosso método”, desenvolvido quando era professor de escola isolada em São
Carlos. Sodré deixa entender que, no final do ano, se alguma criança ainda per-
manecer analfabeta o problema não será decorrente do método ou do professor.
Somente “a falta de frequência por moléstia ou anormalidade poderá justificar” (p.
34). Em suma, enfatiza que, acertado o método, se houver fracasso, a justificativa
se encontra na criança. É uma forma de valorizar a própria proposta e o trabalho
do professor que o seguir, responsabilizando a criança pelo eventual fracasso. O
problema da repetência, para esse autor, está nas inadequações do método e, uma
vez corrigidas, se ainda for registrado o fracasso, a causa deve ser buscada na
criança.
O diretor Sodré, quando escreve esse artigo na Revista, está no lugar de
quem deve convencer e converter os educadores da escola, de quem quer “fazer
crer”.
Uma credibilidade do discurso é em primeiro lugar aquilo que
faz os crentes se moverem. Ela produz praticantes. Fazer crer é
fazer fazer. Mas por curiosa circularidade a capacidade de fazer
se mover – de escrever e maquinar os corpos – é precisamente
o que faz crer. Como a lei é já aplicada com e sobre os corpos,
‘encarnados’ em práticas físicas, ela pode com isso ganhar cre-
dibilidade e fazer crer que está falando em nome do ‘real’. Ela
ganha fiabilidade ao dizer: ‘Este texto vos é ditado pela própria
Realidade’ 41. (CERTEAU, 1998, p. 241)

Mortatti (2000), discutindo a alfabetização no Brasil entre o final do sé-


culo XIX e final do XX, recupera os debates acontecidos em torno dos métodos
para o ensino da leitura e da escrita. Nesse trabalho, mostra que a proposta de
Abel Sodré se baseia na silabação, mas utiliza um processo particular, originado
da experiência profissional como professor em São Carlos, e que desenvolveu com
outra professora, Benedita Stahl Sodré, sua esposa. Alguns anos depois, Benedita
Sodré escreve a “Cartilha Sodré”, publicada em 1940 e organizada de acordo com
o “processo de alfabetização rápida” cuja autoria é atribuída a ambos na exposição
do plano da Cartilha, conforme registra Mortatti (2000, p. 204 e 205). Esse dado
não é de pouca importância para pensar a relação estabelecida com os professores
no texto da Revista, embora a época em que o diretor escreve é anterior à publi-
cação da cartilha. 42
Alvaro Soares, também diretor de grupo escolar, na cidade de Sorocaba,
escreve sobre o ensino de leitura e linguagem em outro volume do mesmo ano,
1932, reconhecendo, nas “apreciações preliminares” que aos professores tem sido

41 Certeau, A invenção do cotidiano, cit., p. 241.

42 Mortatti (2000, p. 204) também constata a secundarização do papel da cartlha em outro texto de Sodré.

60
imposto um dever de estudar a criança e observar suas necessidades espirituais.
Tanto quanto Sodré, ele se inclui entre os professores, nessas preliminares, para
afirmar que “aos poucos, iremos renovando nossos métodos de ensino” (SOA-
RES, 1932, p. 131). Diferentemente, portanto, da aparente impaciência do ins-
petor Campos, que afirma virem “de longa data” os conselhos para os professores
mudarem de método.
Soares, ao expor suas convicções sobre o tema, apresenta o que identificou
como causa dos resultados irregulares no ensino da leitura com a aplicação do
método analítico. Depois de pesquisar em sua escola e em escolas vizinhas, afir-
ma reconhecer que o método analítico funciona diferentemente nos meios rural
e urbano.
Foram notáveis os resultados do método analítico nos meios
adiantados, onde a criança costuma ir à escola já de posse de
grande traquejo de linguagem [...]. Agora, no sítio, onde o tra-
quejo de linguagem é quase nulo [...] a coisa foi outra, para-
doxalmente maiores foram os péssimos resultados do método.
(SOARES, 1932, p. 134)

Assim, desresponsabiliza os professores pelo insucesso e ainda justifica o


desânimo deles, pois julga que mesmo após muito preparo, eles observam que
“um a um, os alunos baqueiam ante as primeiras lições do livro” e completa que
“a criança de bairro tem dificuldade até no falar, em articular as palavras, e quanto
mais se exprimir em sentenças coordenadas!” (p. 135).
Como saída para o problema constatado, aponta a aprendizagem da lei-
tura, inicialmente, sem livros e, posteriormente, com um primeiro livro fácil, ou
mesmo, uma das cartilhas existentes por meio dos quais seria feita a recordação
do ensino. Importa destacar que, em meio às sugestões que faz, admite ter escrito
uma cartilha, no ano anterior, mas abandonou o processo porque encontrou em-
pecilhos para explicar e ensinar as letras de forma. Conclui a informação, reco-
mendando o que poderia ser feito, até com a possibilidade futura de retomada da
produção de sua cartilha: “A menos que o Governo resolva fornecer às escolas que
o requisitarem um jogo de tipos para essas letras, se torna impossível o ensino de
leitura sem livro.” (SOARES, 1932, p.136)
Baseado em suas experiências profissionais, Soares reinterpreta, de modo
próprio, um fazer pedagógico já estruturado pelo chamado método analítico.
Contra sua proposta, porém, o lente do ginásio de Estado de Ribeirão Preto,
Francisco Eusébio de Aquino Leite, se insurge, no volume do ano seguinte, 1933,
ao escrever que o prof. Soares, quando tenta atribuir “a falência do método, no
meio rural, à ‘inferioridade mental’ das crianças, em relação às das cidades” parece
esquecer as estatísticas que mostram a ineficácia do ensino tanto no meio rural
quanto urbano. Lembra que, se não estiver “enganado”, o grupo escolar que bateu

61
o recorde de repetências “(84%) foi exatamente um dos da capital” e conclui seu
raciocínio, argumentando que o prof. Soares “parece ligar demasiada importância
a ‘essa inferioridade’ e mesmo exagerá-la” (LEITE, 1933, p. 5 e 6).
A oposição de Leite, de fato, é relativa à defesa que Soares ainda faz do
método analítico para o ensino da leitura, um debate que vinha ocorrendo já há
alguns anos, bem documentado no trabalho de Mortatti (2000). Leite até con-
corda com a perspectiva de Soares de que os livros para a aprendizagem por esse
método contêm “linguagem elevada” que deixa a criança confusa, mas tanto a
criança do meio urbano quanto do rural e, por isso, tece longas críticas ao método,
apontando as falhas do processo, chamado por ele de “pernicioso em extremo”,
por estar em desacordo com o que seria a “lógica da criança” (LEITE, 1933, p.10).
O prof. Leite também critica o método global de O. Decroly cujo texto
traduzido foi publicado na Revista no ano anterior, embora concorde em parte
com o pedagogista belga, sobre o alcance do método.
Estamos perfeitamente de acordo com o Dr. Decroly, quando
diz que ‘entre crianças normais é perfeitamente possível obter a
leitura sem passar por exercícios sistemáticos sobre a decompo-
sição em sílabas e letras’, mas, somente quanto ao ensino INI-
CIAL da leitura de sentença por meio da aprendizagem das
palavras, e com a condição de acompanha-lo – livre de preocu-
pação – o ensino sistematizado das sílabas, – para conduzir à al-
fabetização INTEGRAL. (LEITE, 1933, p. 10, grifos do autor)

Leite tem outra proposta para o ensino de leitura e a descreve brevemente,


mas informa os leitores sobre a existência do “no nosso ‘Guia’ para o ensino da
leitura” (p. 14) 43.
Tanto o professor Leite quanto os diretores Soares e Sodré disputam pelo
melhor método e situam o problema do insucesso da criança nos primeiros anos
de escolarização e, por consequência, o problema dos elevados índices de repe-
tência, como decorrentes do emprego do método inadequado ou, pelo menos, de-
sajustado. No entanto, a despeito de revelarem compreensões diferentes de como
deve funcionar o mesmo método, no contexto da sala de aula, não divergem sobre
a conclusão de que, uma vez revisto ou ajustado o método, o problema estará
resolvido e eventual fracasso no processo de ensino deve ser procurado nas limi-
tações da própria criança. A atuação específica do professor não é, diretamente,
problematizada como faz o inspetor Ferraz de Campos, na mesma Revista, cul-
pabilizando os professores pelo “desastre” nos resultados, por não seguirem um
novo método que já está à disposição deles e considera as crianças suas vítimas.

43 Em relação ao “Guia”citado, trata-se de uma cartilha, Guia do ensino da leitura, que o próprio autor
informa, em texto de 1930, que aguarda a possibilidade de ser publicada, segundo Mello (2007, p. 209).

62
Esse contraste na abordagem dos efeitos e do alcance do método continua
perceptível em anos posteriores.
O texto de Luiz Gonzaga Fleury, do corpo técnico da Diretoria de Ensino,
publicado em 1936, trata do ensino da tabuada, de modo semelhante a Ferraz
de Campos, e entende que a aprendizagem de matemática depende de método
adequado. Baseando-se em sua experiência, relata o processo que adotava, quan-
do era professor em classes do 2º. Ano, para conseguir que os alunos aprendes-
sem a tabuada sem dificuldade e “com prazer”. Para isso, articulava o ensino com
historinhas e desafios para que os alunos a memorizassem. Reconhece que suas
práticas para memorizar a tabuada provocará “arrepio de horror pedagógico”, mas
se justifica, apoiando-se no escolanovista, autor de obras didático-pedagógicas,
nascido em Porto Rico, Alfredo Miguel Aguayo (1866-1948). Para corroborar
suas estratégias, cita Aguayo, quando afirma que os trabalhos e exercícios são in-
dispensáveis para adquirir práticas, formar hábitos e atitudes mentais (FLEURY,
1936, p. 38 e 39).
Ao expor suas estratégias, ressalta que, com ele, as crianças “aprendiam
com a maior facilidade, de sorte que, em pouco mais de uma semana, venciam,
com pequeninos esforços e com prazer intenso, toda a tabuada de multiplicar”
(FLEURY, 1936, p. 32). No entanto, ao mesmo tempo, afirma que o processo
de que lança mão não tem os mesmos efeitos com todos os professores, porque
“nem todos os professores conseguem comunicar-lhe igual intensidade de vida, e
o interesse da criança evapora-se” (p. 32). E conclui
os métodos e processos de ensino devem se adaptar, por um lado,
à psicologia das crianças, e, por outro, à psicologia dos mestres.
Mas, geralmente nos esquecemos que também a psicologia dos
mestres é uma realidade iniludível, que é inútil pretender forçar.
(FLEURY, 1936, p. 42)

Fleury, em suma, mesmo acreditando no método, entende que o êxito de-


pende do professor que nem sempre vai corresponder ao que lhe é demandado
44
. Quando escreve esse texto, é o Chefe do Serviço de Educação Primária da
Diretoria de Ensino, função que ocupa durante 1936 e 1937. Na Revista, desde
1928 até 1939, ano em que se aposenta, ele também assumiu a função de tradutor
de textos e, no magistério, ainda desempenhou funções de professor, diretor e
inspetor de ensino.
Goulart (2015), em estudo sobre esse educador, aponta que ele ocupou
vários cargos administrativos ao longo de sua carreira, mas “de forma mais con-
tundente, a partir de 1934” (p. 140), quando se torna presidente da comissão de
Obras Didáticas e da Comissão de Justiça e em 1935, Chefe do Serviço de Clas-

44 Essa mesma posição já havia sido exposta em texto anterior de Fleury (1930).

63
sificação e Promoção de Alunos do Departamento de Educação, do estado de São
Paulo e também presidente da Comissão de Concursos de Ingresso, Promoção e
Remoção.
A análise dessa autora sobre a produção escrita de Fleury na Revista, entre
outros aspectos, também destaca que o educador parece se apoiar na crença de
que o êxito do trabalho dos professores decorre de uma boa atuação e observa que
em relação aos alfabetizadores que não conseguem aplicar o método analítico, ele
os incentivava
para que se esforçassem em atingir os melhores resultados a par-
tir do uso de ‘bons métodos’ [...], seguindo as características de
sua psicologia individual, pois, segundo Fleury, era impossível
deixar de mencionar as influências e o peso da individualidade e
da ‘psicologia’ particular do professor [...]. (GOULART, 2015,
p. 148)

Os textos de Benedito Caldeira são ainda mais ilustrativos desse contraste


de abordagens que marca a relação com o lugar de fala, “marca indelével” (Cer-
teau, 2008, p.65), dado que Caldeira deixa de ser diretor de escola primária e
passa a inspetor escolar no período entre as duas matérias publicadas na Revista,
comentadas a seguir.
Em 1940, Benedito Caldeira, então diretor de escola primária, do Grupo
Escolar Dr. Cardoso de Almeida em Botucatu, escreve “Didática do Cálculo”, se-
gundo registra, como resposta à indagação da Delegacia Regional de Ensino, feita
para as escolas primárias da região, a respeito da existência de falhas na orientação
dessa disciplina. O autor, em sua resposta, reconhece que o ensino do Cálculo é
uma das muitas dificuldades que sobrecarregam as tarefas do professor primário,
“mesmo dentre os mais avisados”. Na sua visão, o que compromete o ensino dessa
disciplina é o “esquecimento” de que a criança é uma entidade psicológica e não
lógica e, por isso, “urge que se opere uma revolução coperniciana nesse importan-
te capítulo da didática” (CALDEIRA, 1940, p. 40).
Ele tece várias críticas aos processos que acontecem nas salas de aula com
a ressalva de que ainda se trata de um exame dito como “perfunctório”. Não cri-
tica diretamente o professor, pois entende que é necessário rever o programa da
disciplina e propõe um “programa mínimo” que, para Caldeira, “sem dúvida” pro-
duziria “resultados apreciáveis”. Na condição de diretor de escola e ex-professor, o
que prevalece, em sua exposição, é a segunda condição que o credencia para falar
aos “colegas” e convencê-los para aderir ao que propõe.
O que aconselho, já foi por mim praticado, anos seguidos, em
classes dos diversos graus de ensino primário. O contrário seria
professar um dogmatismo pedagógico, que não se coaduna com
o nosso modo de agir. Procuro apenas convencer os meus cole-

64
gas, estribado em autoridades as mais respeitáveis no assunto,
sem pretender estar dizendo novidades. Não faço imposições
como responsável pela orientação didática do estabelecimento,
pois penso que toda a orientação imposta discricionária e into-
lerantemente, por melhor que seja, torna-se antipática e produz
sempre resultados negativos. (CALDEIRA, 1940, p. 50)

O esforço para convencer os “colegas” já não é visível no texto de Caldeira,


igualmente denominado “Didática do Cálculo”, publicado mais de uma década
depois, em 1952, quando exerce a função de inspetor escolar. Nessa condição,
fala mais alto o profissional que quer conformar novas práticas pedagógicas. Suas
credenciais são anunciadas de outra forma, na epígrafe do texto: “O A. defende
umas tantas medidas necessárias ao ensino do cálculo, e esclarece: ‘O que neste
artigo se preconiza, está sendo praticado, com sucesso, em meu Distrito Escolar
(Botucatu)’”. Além disso, há uma nota de rodapé indicada no título que informa
ser o texto uma síntese das conclusões apresentadas e aprovadas “unanimemente”
no Congresso de autoridades escolares da região de Botucatu, ocorrido em abril
de 1952 (CALDEIRA, 1952, p. 29).
Como inspetor, Caldeira elogia a distribuição da matéria no programa
vigente de ensino da matemática, pois entende que acompanha o desenvolvi-
mento da maturidade psicológica da criança, mas critica determinados modos
de fazer do professor. Essas críticas estão distribuídas no texto com observações,
por exemplo, que atribuem ao docente o não estar atento para o que preconiza
a moderna didática do cálculo que valoriza a aritmética social em detrimento
da memorização árida e, assim, “o docente, o mais das vezes passa a VOO DE
PÁSSARO sobre assuntos de importância transcendente para o ensino”, “ensina
de atropelo”, ou, em vez disso, o oposto, e persiste nas “realidades concretas” e,
nesse caso, os docentes “pouco avisados” acabam por banalizar o ensino “à força
de tanto objetivar” (CALDEIRA, 1952, p. 29, 30 e 34, grifo do autor).
A mudança de ênfase na escrita de Caldeira, ao trocar o lugar de fala, pa-
rece um jogo e pode ser um jogo, mas, como argumenta Certeau, não apenas um
jogo porque a escritura difere em sua finalidade.
Uma série de operações articuladas (gestuais e mentais) – lite-
ralmente é isto, escrever, - vai traçando na página as trajetórias
que desenham palavras, frases e, enfim, um sistema. [...] esta
construção não é apenas um jogo. Sem dúvida, em toda a so-
ciedade, o jogo é um teatro onde se representa a formalidade
das práticas sociais efetivas. Pelo contrário, o jogo escriturísti-
co, produção de um sistema, espaço de formalização tem como
‘sentido’ remeter à realidade de que se distinguiu em vista de
mudá-la. Tem como alvo uma eficácia social. Atua sobre a sua
exterioridade. O laboratório da escritura tem como função ‘es-
tratégica’: ou fazer que uma informação recebida da tradição ou

65
de fora se encontre aí coligida, classificada, imbricada num sis-
tema e, assim transformada; ou fazer que as regras e os modelos
elaborados neste lugar excepcional permitam agir sobre o meio
e transformá-lo. (CERTEAU, 1998, p. 225 e 226)

No laboratório da escritura de Caldeira, convencer ou impor são suas es-


tratégias, dependendo do lugar, pois, “a estratégia postula um lugar suscetível de
ser circunscrito como algo próprio” (CERTEAU, 1998, p. 226).
Em outros volumes publicados nos anos 1940, 1950 e em 1961, podem ser
encontrados os mesmos contrastes discutidos até agora. Serão destacados apenas
mais dois autores para pontuar que parece subir o tom da fala de técnicos em seus
escritos para responsabilizar a atuação do professor pelas insuficiências no ensino
bem como o tom da fala de profissionais atuando na escola para responsabilizar o
estudante, sua família ou políticas educacionais.
O prof. Annibal Ferreira de Sousa, diretor do Grupo Escolar de Cara-
picuíba, escreve em 1952 o texto “Reorganização Técnica do ensino primário”
para discutir suas convicções a respeito dos problemas da escola primária e como
resolvê-los. Não se refere propriamente a métodos de ensino até porque não loca-
liza os problemas diretamente no professor, em seus conhecimentos pedagógicos
e de metodologia. Ao contrário, considera que, em geral, “o professorado jamais
cuidou tanto de sua cultura pedagógica, quanto nestes últimos 15 anos” (SOUSA,
1952, p. 14). Identifica, de outro modo, nas questões sociais que a escola vive e
nas normas técnicas que orientam o professor e a escola. Entre análise e proposta,
apresenta seu texto em 10 itens.
Logo no primeiro item, discorda da análise que têm feito imprensa, rádio,
autoridades e técnicos de educação para melhorar o rendimento escolar, pois a
abordagem vai na direção de responsabilizar o professor e sua capacidade técnica
pela “decadência do ensino primário”, expressão que julga imprópria e, por isso,
injusta. Já no segundo item, ressalta o problema social vivido nas escolas pelo fato
de que grande parte das crianças se ocupa dos afazeres domésticos ou está nas
ruas e os pais se desinteressaram da escola. “E as atitudes dos pais modernos, ante
os professores dos seus filhos, são tão diferentes atualmente, que nos dão, às vezes,
a impressão de que, quem precisa de escola são os professores e não a criança”
(SOUSA, 1952, p. 14).
Nos demais itens aponta a inadequação das políticas de formação e aper-
feiçoamento do magistério, de ingresso e remoção e situa nessas políticas a ori-
gem do problema de o ensino permanecer estacionário. O diretor de escola rei-
vindica, por isso, uma reforma técnica.
No volume publicado em 1961, Maria-Benira Olivan, ex-professora pri-
mária, técnica do setor de aperfeiçoamento do SEC (Serviço de Expansão Cul-

66
tural), do Departamento de Educação45 escreve sobre “Metodologia da Lingua-
gem no Primeiro Grau”. Como uma das responsáveis por orientações técnicas,
comenta as dificuldades que encontrou entre os que frequentaram os Cursos de
Metodologia que ministrou na capital e no interior do Estado, com a participa-
ção, segundo ela, de “perto de 200 professores, entre os quais alguns diretores e
inspetores escolares”. Entre os problemas, arrola “desconhecimento de métodos e
processos de ensino da leitura”; “dificuldades no estabelecimento de critérios para
a escolha de materiais de leitura”; “resistência a processos que, embora comprova-
damente eficientes, exigem do Professor real preparo técnico-pedagógico e maio-
res conhecimentos do comportamento infantil” (OLIVAN, 1961, p. 141-144).
Critica o professor primário “que não se sente na obrigação de estudar” e, por isso,
“verifica-se a situação cômoda e rotineira do emprego das mesmíssimas téc-
nicas, ano após ano, porque o sair dessa rotina implicaria estudos demorados,
planejamentos e confecção de material didático” (p. 143 e 144).
Em síntese, na Revista, durante e período analisado, inovações metodo-
lógicas são apresentadas como condição para transformar o ensino, posto que
podem transformar o modo de atuar do professor. Os textos que discutem as
inovações representam apenas uma parte das publicações na Revista e o que foi
aqui destacado resulta de uma seleção dessa parcela. Esse aspecto é suficiente
para indicar a importância de ter cautela para admitir qualquer generalização. No
entanto, a detecção de estratégias diferentes, mas repetidas, de convencimento
ou de imposição de formas de ensinar ou de formas de interpretar os problemas
educacionais, responsabilizando o professor ou alunos e familiares, dependendo
do lugar de quem fala, contam algo sobre a forma como interagem os agentes que
atuam na escola e nos órgãos da administração educacional. Esse aspecto será
problematizado a seguir.

Para concluir

O que pode significar para os processos educacionais da época essa dico-


tomia na abordagem das orientações metodológicas e dos problemas enfrentados
pela escola veiculada em um impresso oficial? Que efeitos podem ter produzido
nas práticas escolares?
Estudos como os de Arraes (1980), Mate (2002) e Santos (2019) que, es-
pecificamente, se dedicam a descrever e compreender a organização administra-
tiva dos serviços educacionais, em diferentes temporalidades, põem em evidência

45 O Serviço Expansão Cultural, Intercâmbio e divulgação, do Departamento de Educação (SECID) foi


criado oficialmente pelo Ato número 56, de 30 de junho de 1950 para coordenar todas as atividades
de formação docente, identificadas, na época como extracurriculares. A instituição do SECID está
descrita no verso da contracapa dos números editados em 1951 e 1952.

67
que, nos anos abrangidos pelo presente capítulo, as várias reformas técnico-admi-
nistrativas ocorridas nesses serviços vão na direção da progressiva burocratização,
divisão do trabalho e departamentalização.
Mudanças que visam incrementar a eficiência dos serviços, pela criação
de novas funções e novos cargos para a assistência técnica do ensino e pela am-
pliação dos serviços de inspeção escolares. Funções e cargos criados para intervir
racionalmente no processo educativo, conformar mentalidades, prescrevendo e
padronizando práticas. Esses estudos mostram de modo detalhado como essas
funções técnicas se diversificam e ampliam, por meio das reformas no interior da
Diretoria de Ensino ou do Departamento de Educação da Secretaria.
Assim por exemplo, em dezembro de 1930, ocorre a reorganização da Di-
retoria Geral da Instrução Publica e já nos “considerandos” do Decreto46, anun-
cia-se a necessidade de separação entre os serviços técnico e administrativo, sob
o argumento de que não estavam perfeitamente discriminados nem nas normas
legais nem nas praxes adotadas. Tal discriminação visa evitar, segundo ainda os
considerandos, a dualidade nos serviços e, consequentemente, obter “economia” e
“maior eficiência dos serviços”. Com essa reforma, cria-se, de acordo com o artigo
5º., um “Serviço de Assistência Técnica” com sete funcionários, no total (dois
Assistentes Técnicos do ensino primário, um para o ensino normal, um para o en-
sino profissional e vocacional, um de psicologia aplicada, um para educação física
e um para o ensino de música). Em seguida, ocorrem algumas outras reformas
que ampliam significativamente o número de técnicos e de serviços técnicos47. O
impacto financeiro decorrente dessa ampliação leva a nova reorganização em ju-
lho de 1935, com a finalidade de compactar e racionalizar a estrutura do órgão, na
qual os serviços técnicos passam a se distribuir em cinco chefias, conforme artigo
5º., a saber: Educação Secundária e Normal; Educação Primária e Pré-Primá-
ria; Ensino Particular; Estatística e Publicidade e Prédios Escolares.48 Em 1947,
ocorre a cisão da Secretaria de Educação e da Saúde Pública, por meio de novo
Decreto49 e nele ficou estabelecido que ao Secretário da Educação competiria
reorganizar a pasta.

46 Decreto N. 4795 de 17 de dezembro de 1930.

47 Por exemplo, Decreto nº 5335, de 7 de janeiro de 1932, amplia o número de funcionários para a As-
sistência Técnica e cria, de acordo com o Art. 5.º, o Serviço de Antropometria Pedagógica, com um
chefe, um técnico, um técnico adjunto, dois auxiliares e trinta professores em comissão e, pelo Art. 4.º,
o Serviço de Psicologia Aplicada que terá dois sub-assistentes, dois adjuntos e dois auxiliares efetivos
para as secções do estatística e arquivo, medidas mentais, medidas do trabalho escolar e orientação
profissional, sob a direção do assistente técnico de psicologia aplicada. O Decreto N. 5.828, de 4 de
fevereiro de 1933 cria um total de 15 Serviços Técnicos.

48 Decreto N. 7.339, de 5 de julho de 1935.

49 Decreto-Lei nº 17.339, de 28 de junho de 1947.

68
Segundo Santos (2019, p. 121-123), o Secretário da Educação da época
encaminhou ao governador do estado, o projeto de lei que reorganizava a Secre-
taria e, em seguida, enviou à Assembleia Legislativa de São Paulo, como previa o
regramento. No entanto, a pesquisadora não encontrou a lei originária resultante
desse projeto, mas identificou vários outros decretos que se sucederam ao de ju-
nho de 1947 e que foram configurando a reorganização do órgão educacional, aos
poucos. Em sua análise do projeto de lei e do conjunto de decretos que vieram
depois, destaca a nítida clivagem entre os aspectos administrativo e pedagógi-
cos e a implantação de uma estrutura organizada unicamente em departamentos
e diretorias e, no interior de cada departamento havia subdivisões em seções e
serviços. A autora ainda registra que uma ampla reorganização da Secretaria irá
ocorrer apenas em 1969.
A criação e a expansão dos serviços técnicos, como mostram Mate (2002)
e Santos (2019), tencionam, precisamente, incutir novas técnicas e princípios pe-
dagógicos, e, com o apoio da inspetoria geral e regional, controlar e garantir sua
aplicação. A Revista, mantendo-se vinculada a essa estrutura, corporifica esse
movimento.
Nessa circunstância, o professor ou diretor de ontem que se inclui entre os
colegas da escola para propor inovações, compartilhar experiências, convencê-los
e convertê-los é o mesmo inspetor ou assistente técnico de hoje, mas que, ao falar
desse outro lugar, não fala mais com eles, mas sim para eles e desse novo lugar,
avalia, desqualifica, responsabiliza para prescrever. “O lugar é o palimpsesto”, nos
alerta Certeau (1998, p. 310), metáfora perfeita para essa transmutação de discur-
so em função do lugar de onde se fala.
De outro modo, diretores ou professores que estão atuando na escola, falam
pela escola, valorizam seu próprio trabalho, evitam desqualificar o colega, pro-
curam seduzi-lo,consideram as inovações pedagógicas como possibilidades para
um novo fazer, porém, por vezes, tratam de responsabilizar, se houver insucesso,
os que estão diretamente implicados no processo educacional, os alunos, ou indi-
retamente, seus familiares, e até mesmo as instâncias superiores da administração.
Ao final, o que se observa é uma transferência de responsabilizações ou de
desresponsabilizações o que estimula a pensar o quanto essa estrutura hierarqui-
zada provoca o oposto do pretendido, ao crer ser possível padronizar currículos,
práticas, tempos, espaços e valores.
Assim, a análise de um impresso oficial como a Revista de Educação, que
atravessou três décadas, publicando debates, disputas e prescrições em torno do
que deve ser o melhor para escola, professor e criança permitiu apreender a hie-
rarquização, a burocratização e a fragmentação do trabalho educacional e efeitos
da tencionada racionalização.

69
Referências

ARRAES, R.A.V.J. O Estado e a Administração do Ensino Público paulista na Segunda


República, 1930-1945. Dissertação de Mestrado em Educação, Campinas, São Paulo,
Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, 1980.

BICCAS, M. de S. “Nossos Concursos” e “A Voz da Prática”: a Revista do Ensino


como estratégias de formação de professores em Minas Gerais (1925-1930). Cadernos
de história da educação, Jan-Dez, n. 4, 2005, p. 155-166.

CALDEIRA, B. Didática do Cálculo. Revista de Educação, v. XXVIII, Mar. a Dez., n.os


29 a 32, 1940, p.40-50.

CALDEIRA, B. Didática do Cálculo. Revista de Educação, v. XXXVIII, n.os 62 a 65,


Mar-Dez, 1952, p. 29-37.

CAMPOS, J. F. de. Das frações dobrando e rasgando papel. Educação. Vol. VI, n. os 1,
2 e 3, Jan-Mar, 1932, p. 66-73.

CAMPOS, J.F. de. Cálculo dos principiantes. São Paulo: Irmãos Ferraz, 1928, disponível
em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/159675

CARVALHO, M. M. C. de . Modernidade pedagógica e modelos de formação


docente. São Paulo Perspectiva, v. 14, n. 1, p. 111-120, disponível em: https://dx.doi.
org/10.1590/S0102-88392000000100013

CASPARD, P. & CASPARD, P. Imprensa pedagógica e formação contínua de


professores primários (1815-1939). In: D.B. Catani, M.H.C. Bastos (orgs.). Educação
em Revista. A imprensa Periódica e a História da Educação. São Paulo: Escrituras, 2002,
p. 33-46.

CATANI, D.B. Educadores à meia-luz: um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação


Beneficente do professorado público de São Paulo (1902-1918). Bragança Paulista, USF,
2003.

CERTEAU, M. de . A invenção do cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

CERTEAU, M. de . A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FLEURY, L.G. Sobre o ensino da leitura. Revista Educação, Vol. X, n.o 3, Jan-Mar,
1930.

FLEURY, L.G. O ensino da tabuada no 2º. Ano. Revista de Educação, Vols. XIII e
XIV, n.os 13 e 14, Mar.a Jun., 1936, p. 38-42

70
GOULART, I. do C. V. O ensino da leitura na produção escrita de Luiz Gonzaga
Fleury, entre 1922 a 1936. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá-PR, v.
15, n. 2 (38), maio/ago. 2015, p.133-158.

GUALTIERI, R.C.E. Liberdade esclarecida: a formação de professores nos anos 1930.


Revista HISTEDBR On-line. Campinas, SP, v. 13, n. 52, p. 198–214, 2013, disponível
em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640238.

LEITE, F. E. de A. O ensino da leitura. Revista de Educação, v. II, n. 2, Jun, 1933, p.


3-14.

MATE, C. H. Tempos Modernos na Escola. Os anos 30 e a racionalização da educação


brasileira. Bauru, São Paulo: EDUSC; Brasília: Distrito Federal, INEP, 2002.

MELLO, M.C.de O. A alfabetização na imprensa periódica educacional paulista (1927-


1943), Tese de Doutorado em Educação, Marília, São Paulo, Universidade Estadual
Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2007.

MONARCHA, C. Lourenço Filho. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora


Massangana, 2010.

MONARCHA, C. Revistas de Educação e Ensino – São Paulo – 1892/1944. (Apoio


CNPq e Fapesp), s/d, p. 1-6. , disponível em https://silo.tips/download/revistas-de-
educaao-e-ensino-sao-paulo-apoio-cnpq-fapesp

MORTATTI, M.R. L. Os sentidos da alfabetização, 1876/1994. São Paulo: Editora


Unesp, 2000.

NÓVOA, A. A imprensa de Educação e Ensino: Concepção e Organização do


Repertório Português. In: D.B. Catani, M.H.C. Bastos (orgs.). Educação em Revista.
A imprensa Periódica e a História da Educação. São Paulo: Escrituras, 2002, p. 11-31.

SANTOS, M.J. dos. Hibridismo Administrativo: Marcas da Estrutura Organizacional da


SEESP (1846-2018), Dissertação de Mestrado em Educação, Campinas, São Paulo,
Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, 2019.

SOARES, A. Os primeiros ensinamentos de leitura e linguagem, Educação, v. X, N. os


10 e 11, Out.-Nov., 1932, p. 131-140.

SODRÉ, A. F de. Alfabetização rápida. Educação, v. VIII, N. os 6 e 7, Jun-Jul 1932, p.


33-40.

SOUSA, A. F. de . Reorganização Técnica do Ensino Primário. Revista de Educação,


Vol. XXXVIII, n.os 62 a 65, Mar-Dez, p. 13-19.

71
VALDEMARIN, V.T. .História dos métodos e materiais de ensino: a escola nova e seus
modos de uso. São Paulo: Cortez Editora, 2010.

VALENTE, W. R.; PINHEIRO , N. V. L. Chega de decorar a tabuada! – as Cartas


de Parker e a árvore do cálculo na ruptura de uma tradição. Educação Matemática em
Revista, Rio Grande do Sul, Ano 16, v. 1, n. 16, 2015, p. 22-37.

VILELA, M. C. Discursos, cursos e recursos: autores da revista Educação (1927-1961),


Tese de Doutorado em Educação: História, Política e Sociedade. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2000.

72
3. “HABILIDADES FÍSICAS E MENTAIS DO
NEGRO AMERICANO” NO JOURNAL OF NEGRO
EDUCATION (1934)

Leonardo Laguna Betfuer

Introdução

Nos Estados Unidos da América, o campo educacional foi palco de diver-


sas lutas pelos direitos civis da população negra desde, pelo menos, o século XIX.
Pouco tempo após se tornar o primeiro país independente da América, entre os
anos de 1800 e 1835, a maioria dos estados do Sul dos EUA promulgou leis que
criminalizavam o ensino de crianças escravizadas. Em contraste, nesse mesmo
período, a maioria dos estados estabeleceram sistemas de escolas públicas. Ao
final do Antebellum – período que antecede a Guerra de Secessão (1860-1865)
– quase metade das crianças livres do país estavam recebendo alguma educação
formal (ANDERSON, 1988).
Segundo Anderson (1988), podemos estabelecer esse período como o
marco inicial da educação dos negros nos Estados Unidos, porém não pela sua
oferta, e sim pela sua negação. Um escravo que fosse apanhado lendo ou de posse
de um livro podia ser duramente castigado. Para o autor, essa repressão foi crista-
lizando neles uma forte associação entre o letramento e a liberdade, que lhes eram
negados (ANDERSON, 1988).
Foi apenas a partir da emancipação dos escravizados, em 1863, que a po-
pulação negra dos Estados Unidos experimentou alguns avanços na direção do
reconhecimento de sua cidadania como trabalhadores livres, cidadãos e eleitores.
As 13ª, 14ª e 15ª emendas da constituição dos Estados Unidos estabeleceram,
respectivamente, a abolição da escravidão, a concessão da cidadania aos libertos e
o direito ao voto aos negros.
Isso foi possível, em grande medida, durante o período da Reconstrução
(1863-1877), quando as tropas da União ocuparam os estados confederados do
Sul derrotados na Guerra de Secessão (1860-1865) e, de certa forma, garantiram
a implementação dessa legislação na região. A população negra do Sul começou
a construir escolas e a promover a educação com base no princípio da auto ajuda
(ANDERSON, 1988).
Em 1877, a retirada das tropas da União dos estados Confederados mar-
cou o fim da era da Reconstrução e o início da era da Segregação (1877-1963).

73
O retorno da elite sulista ao poder político nesses estados foi catastrófico para a
população negra. Os avanços obtidos na sua cidadania, a partir da emancipação
dos escravos (1863), passaram a ser restringidos por leis estaduais conhecidas
como Jim Crows (ANDERSON, 1988).
A legalidade dessas leis estaduais segregacionistas foi reconhecida pela
Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Plessy versus Ferguson - separados,
mas iguais - em 1896. Segundo essa decisão da Suprema Corte, a segregação
racial nos espaços públicos não feria a 14ª emenda, contanto que as condições
materiais oferecidas fossem iguais, o que não ocorria na prática. A tese do “sepa-
rados, mas iguais” passou a embasar a legislação segregacionista dos estados do
Sul e de alguns estados do Norte também, sendo a base jurídica que sustentou a
Era da Segregação.
Tal situação perdurou até pelo menos 1954, quando então a Suprema Cor-
te decidiu que a segregação na educação era inconstitucional no caso Brown vs
Board of Education. Essa decisão abriu caminho para o movimento dos direitos
civis e foi resultado de uma estratégia adotada pela National Association for the
Advancement of Colored People (NAACP) e que contou com o apoio do Journal of
Negro Education ( JNE) e de seu editor Charles H. Thompson (RAY, 2014).
O Journal of Negro Education ( JNE, daqui em diante) foi a primeira e mais
importante publicação especializada na educação dos negros nos Estados Unidos.
Fundada em 1932, por Charles H. Thompson, a revista ainda hoje continua sendo
editada pela tradicional Universidade de Howard – uma universidade historica-
mente negra e conhecida por formar grande parte dos intelectuais negros dos
Estados Unidos.
Acredita-se que o JNE oferece uma perspectiva privilegiada sobre o modo
como os intelectuais estadunidenses, que se reuniram em torno da revista, espe-
cialmente negros, mas também brancos liberais-progressistas, pensavam a edu-
cação e como incorporaram teorias pedagógicas e práticas escolares à luta por
direitos civis e, especificamente, contra a segregação educacional.
Todos os anos, o JNE publicava uma edição especial dedicada a debates
atuais de temas considerados relevantes para a educação da população negra dos
Estados Unidos. Nesses anuários, apenas especialistas eram convidados para pu-
blicar artigos. O anuário tinha como objetivo tornar o debate intelectual público
e contribuir para a formação de uma opinião pública. Tomados como objetos de
pesquisa, esses anuários podem revelar como a rede de intelectuais que se estabe-
leceu em torno da revista, apropriou-se de temas e os representou na medida em
que os considerava relevantes para a educação e para o avanço dos direitos civis
dos negros nos Estados Unidos.
Assim, minha pesquisa de doutorado toma como objeto 31 anuários pu-
blicados pelo JNE, entre os anos de 1932 e 1963, período no qual o fundador

74
Charles H. Thompson esteve à frente da revista como editor e no qual assinou a
maioria dos editoriais. Thompson foi o primeiro negro a obter o título de Philo-
sophy Doctor (PhD) em Psicologia da Educação pela University of Chicago e fez
sua carreira como professor na Howard University onde, em 1932, fundou o JNE.
Segundo Sirinelli (2003), uma das dificuldades de se estudar o grupo social
dos intelectuais está no seu caráter polimorfo, o que dificulta a própria definição
do significado do termo intelectual. As revistas aparecem como possibilidade de
superação dessa dificuldade, na medida em que conferem uma estrutura ao campo
intelectual, por meio de suas forças antagônicas de adesão. Assim, as revistas se
configuram como uma rede de relações que se define por meio de afinidades. Sob
esse aspecto, toma-se o JNE como um espaço de sociabilidade, de fermentação
intelectual e de relação afetiva.
Roger Chartier (1988) contribuí para superar os desafios relacionados a
análise e interpretação do texto contido em uma revista. Para ele, o sentido de
um texto só pode ser extraído na sua materialidade, pois trata-se de um produto
cultural. Os impressos estão sujeitos a uma série de procedimentos e restrições
característicos do seu campo. Desse modo, o impresso é entendido como um
instrumento de transmissão ideológica, na medida que cria representações e, tam-
bém, como um produto da indústria cultural, na medida em que está sujeito as
regras de um determinado campo. O JNE é entendido como um instrumento de
transmissão ideológica e está sujeito as regras do campo intelectual, na medida
em que é uma publicação acadêmica.
Neste texto, tem-se por objetivo apresentar ao leitor um dos 31 anuários
que serão analisados na pesquisa de doutorado, o anuário de 1934. Esta edição foi
escolhida por representar em suas páginas o debate intelectual acerca da eugenia,
hereditariedade e melhoramento da raça, que marcou os EUA durante as três
primeiras décadas do século XX.
Esse período foi marcado pela popularização de ideias sobre a hereditarie-
dade de características como preguiça, fraqueza mental, pauperismo, alcoolismo,
criminalidade e frouxidão sexual, bem como inteligência, economia, honestidade,
moralidade, laboriosidade e assim por diante. Isso era ensinado aos jovens nas
escolas e a seus pais em eventos estaduais e em revistas populares. Essas ideias
apresentavam a hereditariedade como fator determinante para o aprimoramento
da raça humana e sugeriam a procriação seletiva (SELDEN, 1999).
Argumento, aqui, que o anuário de 1934 reflete um esforço para descredi-
tar algumas ideias eugenistas que afirmavam a inferioridade do negro em relação
ao branco. Esse esforço se insere em um movimento maior de luta contra a se-
gregação escolar, tema que aparece no anuário do ano seguinte (1935). Para que
a segregação escolar fosse mitigada era necessário que o princípio eugênico de
inferioridade do negro fosse refutado.

75
Quem é quem no anuário de 1934 do JNE

O JNE começou a ser publicado em uma época em que havia poucos


periódicos acadêmicos negros. Além disso, muitos periódicos tradicionalmente
brancos excluíam artigos relacionados a negros, ou tendiam a publicar artigos
racialmente preconceituosos (HARPER, 2006). A revista foi criada com a inten-
ção de remediar uma grave falta de literatura sobre a educação afro-americana
(LOMOTEY, 2010).
Ao longo de sua existência o JNE publicou artigos de figuras eminentes
dos EUA e de autores do Canadá, de vários Países da África, Ásia, Europa e
Caribe. A lista de intelectuais negros que publicaram na revista ao longo dos 31
anos em que Charles H. Thompson foi editor é bastante longa e inclui nomes im-
portantes como Horace M. Bond, Ralph J. Bunche, Kenneth B. Clark, W. Mon-
tague Cobb, W. E. B. Du Bois, John Hope Franklin, E. Franklin Frazier, Charles
H. Houston, Charles S. Johnson, Alain L. Locke, Rayford W. Logan, Benjamin
E. Mays, Frederick D. Patterson, Dorothy B. Porter e Robert C. Weaver. Entre
autores brancos pode-se destacar os nomes de Pearl S. Buck (1942), romancista
laureado com o Prêmio Nobel, a primeira-dama Eleonor Roosevelt (1934) e o
sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1941) (HARPER, 2007).
A revista se estabeleceu na Howard University, em Washington, D.C. Na
época, Howard era uma das mais prestigiadas universidades negras dos EUA.
Na história de seu corpo docente, encontram-se acadêmicos notáveis como o
sociólogo E. Franklin Frazier, os historiadores Carter G. Woodson e John Hope
Franklin, o advogado Ralph Bunche e o juiz da Suprema Corte Thurgood Mar-
shall (LOMOTEY, 2010).
O JNE era publicado trimestralmente em janeiro, abril, julho e outubro.
Na década de 1930, a taxa de assinatura anual da revista era de US$ 2,50 e de US$
1,00 para edições avulsas. O anuário de julho avulso custava US$ 2,00. Seu pro-
jeto gráfico era muito semelhante ao de outras publicações acadêmicas da época,
como o Journal of Negro History e o Journal of Educational Sociology ( JNE, 1935).

76
Figura 1: Capa Journal of Negro Education

Fonte: FRONT MATTER. The Journal of Negro Education, v. 3, n. 1, Journal of Negro Education, 1934, http://
www.jstor.org/stable/2292134

Figura 2: Capa do Journal of Negro History

Fonte: VOLUME INFORMATION. The Journal of Negro History 19, n. 1 (1934): i–iv. http://www.jstor.
org/stable/2714653 .

77
A capa, publicada na primeira edição do ano, trazia o título da revista,
JOURNAL OF NEGRO EDUCATION, em caixa alta e centralizado, com in-
formações sobre a publicação; sem cores. A paginação era numerada sequencial-
mente durante todas as edições do ano, reiniciando a contagem no ano seguinte.
A ideia era que o leitor pudesse encadernar as edições de um ano em um único
volume.
Os objetivos declarados da revista eram facilitar a disseminação de in-
formações sobre a educação dos negros; apresentar discussões que envolvessem
avaliações críticas das propostas e práticas relativas à educação destes; estimular e
patrocinar pesquisas sobre sua educação (RECTOR, 2007).
Seu fundador e editor, Charles Henry Thompson, nasceu em 1895 na cida-
de de Jackson, Mississipi. Seus pais eram professores no Jackson College, um dos
raros locais de cooperação inter-racial no estado do Mississipi. Thompson fre-
quentou a Virginia Union University e se juntou ao Exército durante a 1ª Guerra
Mundial. Em 1919, obteve seu segundo bacharelado em Psicologia pela Chicago
University. Um ano depois, obteve o título de mestre com a dissertação A Study of
the Reading Accomplishments of Colored and White Children (RAY, 2014).
Thompson voltou à Virginia Union University como professor e iniciou
seu doutorado na Chicago University em 1921. Nos anos seguintes, instruiu pro-
fessores em formação na Escola Normal Estadual em Montgomery, Alabama.
Em 1925, obteve o doutorado em Psicologia da Educação com a tese: Objective
Determination of a Curriculum for the Training of Kindergarten Primary Teachers.
Um ano depois, Charles entrou na Howard University, recrutado por Dwight
Oliver Wendell Holmes, reitor do College of Education, se tornando professor
titular em 1929. Thompson era filiado à National Association of Teachers in Colored
Schools (1904) e à NAACP (1909), da qual participou do quadro de diretores
(RAY, 2014).
Em 1931, Thompson apresentou o projeto do JNE para a Howard; obtida
a aprovação, a revista foi lançada no ano seguinte. Mesmo ano em que ocorreu o
III Congresso Internacional da Eugenia e foi iniciado o famigerado experimento
de Tuskegee, cujo objetivo era observar a evolução da sífilis não tratada em negros
adultos, sem seu consentimento. O JNE foi lançado em um momento em que as
ideias eugenistas se tornaram um movimento mundial e no qual haviam conquis-
tado grande popularidade nos Estados Unidos (RAY, 2016; SELDEN, 2019)
No que se refere a educação, havia uma grande disparidade entre a educa-
ção do Norte e do Sul dos Estados Unidos. O Sul apresentava os piores índices.
Havia uma diferença ainda maior entre a educação oferecida aos brancos e aos
negros, uma vez que os investimentos públicos no Sul se concentravam nas es-
colas que atendiam apenas a população branca. A educação dos negros sulistas

78
contava com a ação de filantropos do Norte e com seus próprios esforços, estabe-
lecendo-se lentamente, em condições bastante precárias (ANDERSON, 1988).
Durante a Grande Migração (1915-1940), centenas de milhares de pes-
soas negras fugiram de um sistema de exploração do trabalho rural degradante,
da violência dos linchamentos a quais eram submetidos no Sul e migraram para
as cidades industriais do Norte, atraídos pelos postos de trabalho criados com a I
Guerra Mundial (1914-1918). Jornais como o Chicago Defender estimularam os
negros do Sul a buscarem uma vida melhor no Norte. O crescimento da popula-
ção negra nas cidades – estima-se que até 1910 cerca de 80% dos negros dos Es-
tados Unidos viviam nas áreas rurais do Sul – fez crescer a ação de supremacistas
brancos e gerou revoltas raciais contra os negros. A Grande Migração alterou as
características das grandes cidades do Norte, como Chicago, Detroit e Nova York
e transformou problemas raciais, até então tratados como regionais, em questão
nacional (CREW, 1987).
Em meados da década de 1930, estados do Norte também estavam apro-
vando leis de segregação racial nas escolas. Nesse período, em 17 estados e no
distrito de Columbia, onde se situa a Capital Federal, a segregação era compulsó-
ria - Alabama, Arizona, Arkansas, Delaware, Florida, Georgia, Kansas, Kentucky,
Louisiana, Maryland, Mississipi, Missouri, Carolina do Norte, Carolina do Sul,
Oklahoma, Tennessee e Texas. Em 3 estados ela era permitida - Indiana, Nova
York e Wyoming. Apenas 12 estados haviam banido a segregação - Colorado,
Connecticut, Idaho, Illinois, Massachusetts, Michigan, Minessota, New Jersey,
Pennsylvania, Rhode Island, e Washington. Nos outros 14 estados, a legislação
era omissa (PETERSON, 1935).
O ambiente ideológico no qual se dava o crescimento da legislação segre-
gacionista era marcado pelas ideias eugenistas. Essas ideias se tornaram populares
durante as três primeiras décadas do século XX nos Estados Unidos e deram
suporte a leis segregacionistas, de esterilização compulsória e antimiscigenação,
como é o caso da Lei de Integridade Racial do estado da Virginia - que proibia
casamentos interraciais - instituída em 1924 e derrubada pela Suprema Corte dos
Estados Unidos apenas em 1967 (DORR, 2008).
Nos Estados Unidos, o movimento eugênico foi bastante marcado por
influências mendelianas. Gregor Mendel (1822-1844) foi um frade e biólogo co-
nhecido por realizar experiências com ervilhas que elucidaram características da
hereditariedade. Os eugenistas mendelianos acreditavam em uma forma extrema
de hereditariedade determinista, que determinaria traços como o patriotismo, o
alcoolismo, a indolência e o pauperismo (SELDEN, 1999).
É interessante destacar que na virada do século XIX as ideias do naturalis-
ta francês Lamarck (1744-1829), que afirmavam a herança dos caracteres adqui-
ridos e justificavam melhorias no ambiente, estavam caindo em descrédito. Isso

79
impulsionou as ideias eugenistas mendelianas, que aplicavam as noções de Men-
del a todos os traços humanos complexos e defendiam que as qualidades morais,
intelectuais e sociais poderiam ser explicadas por referência ao funcionamento
da hereditariedade. Eles acreditavam na reprodução seletiva dos indivíduos mais
aptos e rejeitavam políticas ambientais para melhorar os seres humanos, pois aos
seus olhos, ela não teria um efeito duradouro nas gerações seguintes (SELDEN,
1999).
Por meio do quadro abaixo, pode-se perceber o crescimento de organiza-
ções para a discussão e para a propaganda da eugenia nos Estados Unidos nas
três primeiras décadas do século XX. O nome do biólogo Charles B. Davenport,
se destaca na liderança do movimento eugenista americano. Ele acreditava que
traços humanos como preguiça, desejo de viajar e pauperismo eram hereditários
e que seus padrões de transmissão precisavam de pesquisa. Para promover a pes-
quisa e popularizar as ideias eugenistas, ele criou a American Breeders Association
(1903), o Eugenics Reccord Office (1911) e a Galton Society (1918), todas financia-
das pelo Carnegie Institution (SELDEN, 1999).

Quadro 1: Organização e Evolução do Movimento Eugenista nos EUA

1903 The American Breeders Association (ABA)

1914 First National Conference on Race Betterment

1915 Second National Conference on Race Betterment

1918 Galton Society

1921 Second International Congress of Eugenics

1924 The Eugenical News (1924-1931)

1925 The American Eugenics Society

Third National Conference on Race Betterment


1928
The AES Journal, Eugenics (1928-1931)

1932 The Third International Congress of Eugenics

Fonte: SELDEN (1999).

A eugenia também foi apoiada por intelectuais negros como W. E. B. Du


Bois, Thomas Wyatt Turner, além de outros acadêmicos da Howard University.
Porém, de um modo geral, eles acreditavam que os melhores negros eram tão
bons quanto os melhores brancos e não se opunham à miscigenação. Du Bois,
por exemplo, acreditava que o décimo talentoso de todas as raças deveria cruzar.
A Howard University, ofereceu a seus alunos opções de cursos sobre eugenia. O

80
primeiro ano em que Howard ensinou eugenia teve como objetivo apresentar
as contradições inerentes à eugenia em relação à hierarquia racial (GINTHER,
2015). Ginther (2015) argumenta que as ideias eugenistas foram adotadas e sub-
vertidas por figuras intelectuais negras. Para ele, a eugenia negra não deve ser
condenada imediatamente como um fracasso moral, mas deve ser considerada em
um contexto maior de luta por direitos civis.
A publicação do anuário de 1934 do JNE insere-se nesse contexto de
amplo debate acerca da eugenia. No pano de fundo da maioria dos artigos dos
anuários, mais claro em alguns do que em outros, está a desigualdade de oportu-
nidades com base na raça e na classe. O quadro a seguir apresenta os artigos do
anuário, seus autores e instituições de filiação e as partes que compõe o anuário.

Quadro 2: título dos artigos, seus autores e instituição de filiação

Título Autor/Filiação

PARTE 1 - INTRODUÇÃO

THE PROBLEM OF RACE PSYCHOLOGY: A T. R. GARTH/ Professor of Experimental Psychology,


I
GENERAL STATEMENT University of Denver

CHARLES S. JOHNSON/ Director, Department of


THE INVESTIGATION OF RACIAL DIFFE-
II Social Science, Fisk University
RENCES PRIOR TO 1910
HORACE M. BOND, Dean, Dillard University

PARTE 2 – UM EXAME CRÍTICO A PARTIR DE 1910

THE PHYSICAL CONSTITUTION OF THE W. MONTAGUE COBB/ Associate Professor of


III
AMERICAN NEGRO Anatomy, School of Medicine, Howard University

A CRITICAL DISCUSSION OF THE “MULAT- MELVILLE J. HERSKOVITS/ Associate Professor of


IV
TO HYPOTHESIS” Anthropology, Northwestern University

JOSEPH PETERSON/ Professor of Psychology, Jesup


BASIC CONSIDERATIONS OF METHODO-
V Psychological Laboratory, George Peabody College for
LOGY IN RACE TESTING
Teachers

NEGRO-WHITE DIFFERENCES IN NON-IN-


ROBERT P. DANIEL/ Director, Department of E
VI TELLECTUAL TRAITS, AND IN SPECIAL
ducation, Virginia Union University
APTITUDES

NEGRO-WHITE DIFFERENCES IN GENE- J. ST. CLAIR PRICE, Associate Professor of Educa-


VII
RAL INTELLIGENCE tion, Howard University

RACIAL DIFFERENCES IN SCHOLASTIC DOXEY A. WILKERSON, Professor of Secondary


VIII
ACHIEVEMENT Education, Virginia State College

81
PARTE 3 – O STATUS DO PROBLEMA NO PRESENTE

CULTURAL FACTORS IN INTELLIGENCE- OTTO KLINEBERG, Department of Psychology,


IX
TEST PERFORMANCE Columbia University

RACIAL DIFFERENCES IN THE INCIDENCE SOLOMON P. ROSENTHAL, Teacher, Public


X
OF MENTAL DISEASE Schools, New York City

THE CONCLUSIONS OF SCIENTISTS RELA- CHAS. H. THOMPSON, Professor of Education,


XI
TIVE TO RACIAL DIFFERENCES Howard University

INTELLIGENCE DIFFERENCES BETWEEN R. PINTNER, Professor of Education, Teachers Colle-


XII
AMERICAN NEGROES AND WHITES ge, Columbia University

THE INTERPRETATION OF TEST RESULTS


FRANK N. FREEMAN, Professor of Educational
XIII WITH ESPECIAL REFERENCE TO RACE
Psychology, University of Chicago
COMPARISONS

A NEW APPROACH TO THE PROBLEM OF C. E. SMITH, Research Assistant, Department of


XIV
RACIAL DIFFERENCES Educational Research, University of Toronto

WALTER F. DEARBORN, Director, Psycho-Educa-


THE PHYSICAL AND MENTAL ABILITIES tional Clinic, Graduate School of Education, Harvard
XV OF THE AMERICAN NEGRO: A CRITICAL University
SUMMARY HOWARD H. LONG, Assistant Superintendent in
Charge of Research, Public Schools, Washington, D.C.

Fonte: FRONT MATTER. The Journal of Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal of Negro Education,
1934 Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2292374 Acesso em : 22 dez 2021

Uma análise preliminar dos colaboradores da publicação vai ao encontro


da perspectiva que toma o JNE uma rede de relações de afinidades estabelecida
pelas posições tomadas, os debates suscitados, bem como de cisões. A edição do
anuário de 1934 reuniu, entre autores negros e brancos, psicólogos educacionais,
antropólogos e educadores que tinham em comum o fato de serem críticos da
eugenia mendeliana e da hereditariedade determinística.
Entre os psicólogos, pode-se destacar os trabalhos dos Thomas Russell
Garth (1872-1939) e Otto Klineberg (1899-1992), que criticaram visões heredi-
tárias sobre as diferenças raciais nas pontuações de QI. Os estudos sobre as pon-
tuações nos testes de inteligência de estudantes negros de Klineberg ajudaram
a ganhar o caso histórico de dessegregação escolar da Suprema Corte em 1954.
Garth foi uma autoridade mundial em psicologia racial. Seus estudos o levaram a
conclusão de que a superioridade racial era um mito, que todos os seres humanos
começaram basicamente iguais e que as diferenças se deviam em grande parte ao
ambiente (DENVER UNIVERSITY, s/d; PICKREN, 2013). Outro psicólogo
de destaque é Walter F. Dearborn (1878-1955), professor de Educação e Psico-

82
logia Educacional Clínica da Harvard University entre 1917 e 1947. Dearborn
realizou pesquisas sobre problemas de leitura, a relação entre o desenvolvimento
físico e a inteligência, e testes de inteligência (HARVARD LIBRARY, s/d).
De origem judáica, o antropólogo Mellville J. Herskovits foi aluno de gra-
duação e de doutorado de Franz Boas na Columbia University. A antropologia
cultural boasiana é marcadamente antirracista e Herskcovits foi um grande estu-
dioso sobre os negros nos Estados Unidos. Um de seus principais trabalhos foi
The Myth of the Negro Past (1941), onde ele destrói mitos raciais sobre os traços do
negro americano (NORTHWESTERN UNIVERSITY, s/d).
Entre os intelectuais negros, destacam-se o sociólogo Charles S. Johnson
(1893-1956) e Horace M. Bond (1904-1972). Johnson foi um proeminente autor,
educador e Presidente da Fisk University, um dos principais centros de pesquisa
sobre relações raciais no Sul dos EUA. Bond foi um historiador da educação
e um grande crítico da interpretação racial dos testes de inteligência aplicados
pelas Forças Armadas dos EUA (U.S Alpha Tests). Ele observou que os resulta-
dos inferiores nos testes de inteligência obtidos pelos negros do Sul, comparados
aos do Norte, deviam-se ao baixo investimento em educação que esses recebiam.
O desempenho dos negros do Norte era superior ao de muitos brancos do Sul.
Bond refutou a ideia de inferioridade do negro e estabeleceu uma correlação entre
gastos em educação e desempenho nos testes de inteligência ( JACKSON, 2005;
FISK UNIVERSITY, s/d).
Essa análise prévia dos intelectuais que publicaram no anuário de 1934,
permite perceber que se tratavam de autoridades do campo intelectual e que con-
gregavam ideias progressistas, quando comparados aos eugenistas mendelianos.
A teoria de que uma revista funciona como um campo magnético, que cria uma
rede de relações por afinidades e exclusões, proposta por Sirinelli (2003), pode ser
confirmada por essa análise até aqui apresentada. Muitos dos artigos publicados
nesse anuário criticaram as pesquisas do eugenista mendeliano Charles B. Da-
venport. Portanto, a revista atrai intelectuais com afinidades e repele outros dis-
cordantes. Ela revela cisões no campo intelectual, bem como as instaura, muitas
vezes para além de suas próprias páginas.

O desempenho dos negros nos testes de inteligência

Trato nesta parte do conteúdo dos artigos públicos no anuário de 1934,


utilizando-se do conceito de representação de Chartier (1988). O conteúdo é
entendido como uma representação ideológica construída por esse grupo de in-
telectuais que se reuniu na publicação. O anuário divide-se em três partes, intro-
dução, um exame crítico a partir de 1910 e o status do problema no presente. No

83
editorial Thompson afirma que o terceiro anuário do JNE é dedicado a apresentar
um sumário crítico dos estudos relativos as habilidades físicas e mentais do negro
americano. Ele afirma que essa decisão se deve, por um lado, ao interesse do pú-
blico sobre essas questões e por outro as evidências científicas dos últimos 15 anos
que haviam lançado luz a essas questões (THOMPSON, 1934a).
Em seu editorial, Thompson (1934a) ainda aponta que as dúvidas quan-
to as capacidades raciais são controversas desde o “início da história”, mas que
a investigação sistemática havia começado há apenas 200 anos. Destaca que a
introdução dos testes, a partir de 1910, constituíram um novo e mais preciso
instrumento de medição e que isso estimulou novas pesquisas, as quais o anuário
de 1934 se propôs a abordar.
Ainda segundo Thompson (1934a), o anuário se divide em quatro partes.
A introdução consiste em um enunciado geral sobre o problema das diferenças
raciais e um breve sumário histórico que aborda a questão até a criação dos testes
de inteligência. A parte 2 divide-se em duas sessões, uma examina as a literatura
sobre as habilidades físicas e outra as mentais, a partir de 1910. A terceira parte
é uma tentativa de definir tão cientificamente quanto possível o exato estágio
em que estava o problema das diferenças raciais. A quarta parte apresentava um
referencial bibliográfico. Um ponto importante de se destacar é que Thompson
(1934a) afirma no final do editorial que o anuário foi concebido como uma uni-
dade, embora possam ocorrer lacunas entre os artigos.
Na introdução, Johnson e Bond (1934), traçam um sumário histórico sobre
as diferenças raciais. Afirmam que a consciência racial não é de origem antiga,
mas um produto dos tempos modernos. Os gregos enfatizavam o contraste cul-
tural, não a raça. A cor da pele se torna um fator relevante a partir do estabeleci-
mento do tráfico negreiro pelos britânicos no século XVI.
As primeiras tentativas de explicar as diferenças raciais tentavam perma-
necer fiéis à literalidade da bíblia. A maldição de Noé sobre Cam foi a primeira
justificativa para existência da raça negra e da escravidão. Essa perspectiva acom-
panhou os primeiros missionários europeus na América, que por sua vez influen-
ciaram os primeiras trabalhos dos naturalistas do século XVIII. No século XIX,
a teoria da evolução ganhou espaço e adeptos. O conde de Gobineau foi quem
primeiro sistematizou uma hierarquia racial e suas ideias se tornaram a base da
instituição da escravidão nos Estados Unidos ( JOHNSON; BOND, 1934).
Johnson e Bond (1934), prosseguem afirmando que a craniologia e a cra-
niometria foram marcantes nas primeiras abordagens científicas. Na época desses
trabalhos, supunha-se que os traços mentais estavam relacionados com o tama-
nho e a forma do crânio. Com o descrédito desses trabalhos, o peso do cérebro
passou a ser enfatizado como o meio mais confiável de inferir sobre mentalidade.
Com o tempo, o peso do cérebro deu lugar aos estudos da topografia do cérebro,

84
especialmente as diferenças no lobo frontal. A teoria de que o fechamento pre-
coce da sutura coronal do negro suprimia o crescimento de seu cérebro ganhou
adeptos.
Enquanto o século XIX esteve centrado principalmente na anatomia e
fisiologia diferencial, a virada do século chamou a atenção para à psicologia dife-
rencial. Inicialmente, esses psicólogos cometeram os mesmos erros de amostra-
gem (12 ou menos) que caracterizaram os anatomistas. Johnson e Bond (1934)
concluem que as investigações psicológicas anteriores a 1910 apenas criaram mais
confusão para a psicologia racial.
Ainda na introdução, Garth (1934) ao tratar da psicologia racial no mesmo
período apontam que dificuldade mais comum no estudo das diferenças raciais
é a falha em assumir e manter uma mente aberta. O autor afirma que o cerne do
problema gira em torno da mobilidade ou mutabilidade da raça. O problema é
determinar se as diferenças mentais detectáveis são nativas ou devidas ao meio.
Ele prossegue argumentando que a população geralmente aceita as realizações
como um critério de superioridade racial, porém as raças ascendem à eminência
e retrocedem enquanto outras raças tomam seu lugar. Ele questiona a realização
como critério realização, pois muitas vezes a realização de uma raça resulta da
exploração insensível e imoral de outras raças e que tal exploração não pode ser
considerada uma conquista real no sentido mais elevado e nobre.
Na segunda parte do anuário, Cobb (1934) apresenta uma revisão da lite-
ratura contemporânea da época sobre a constituição física do negro. O capítulo é
composto por oito seções que abordam: Antropometria, Características Externas,
Músculos, Órgãos Internos. Particularmente interessante é a falta de apoio à ale-
gação de Davenport e Steggerda de que os cruzamentos entre negros e brancos
exibem uma estrutura anatômica desarmônica, como pernas longas e braços cur-
tos. Coob (1934) conclui que as pesquisas analisadas não comprovavam efeitos
eugênicos e nem disgênicos no cruzamento interracial.
Hersckovits (1934) ao tratar desses cruzamentos interracias, conhecidos
na época como mulatto hypothesis aponta que em verdade existiam duas hipóteses
diametralmente opostas. Um sustenta que os cruzamentos raciais são disgênicos
e o outro sustenta que são eugênicos. O autor define raça como grupos da huma-
nidade cujos membros se assemelham suficientemente em certas características
físicas que podem ser marcadas como distintas dos membros de outros desses
grupos. Ele diz que, na época, os antropólogos reconheciam três raças: mongoloi-
de, caucasiana e negroide, porém, para o autor, a classificação não explicava nada
do ponto de vista biológico. Para ele, os traços pelos quais os animais domestica-
dos e selvagens são diferenciados eram os mesmos que diferenciavam a humani-
dade em raças: (a) habitat restrito, (b) alimentos diferentes, (c) proteção contra o

85
clima e feras, e (d) a reprodução é controlada. A cultura e a tradição entre os seres
humanos seriam limitações e proteções comparadas a esses elementos listados.
Peterson (1934) aponta que no estudo das diferenças raciais, é um erro
comparar o QI ou outra pontuação dos negros com aquelas crianças brancas nas
quais os testes foram padronizados. Alguns eugenistas mendelianos tinham como
hipótese a correlação entre bons resultados obtidos pelos negros nos testes de
inteligência com algum grau de sangue branco, como se houvesse uma heredita-
riedade da inteligência transmitida pelo sangue branco. Peterson (1934), afirma
que não existe correlação entre o grau de sangue branco e a pontuação de inte-
ligência dos negros e que faltavam mais informações sobre as influências exatas
dos fatores ambientais. Price (1934) também crítica o fato de que esses testes de
inteligência eram exógenos à cultura negra e destaca a futilidade das tentativas de
medir diferenças raciais.
Klineberg (1934) vai ao encontro de Price (1934) e Peterson (1934), ao in-
dicar que os testes de inteligência estavam cada vez mais enfatizando a importân-
cia de fatores ambientais sobre o resultado dos testes. As condições de oportuni-
dade e de competição dos negros eram desfavoráveis. Um ambiente melhorado e
escolarização mostraram ter resultados positivos nos testes de inteligência. Kline-
berg (1934) aponta os resultados dos testes de inteligência aplicados pelas Forças
Armadas dos EUA, onde os negros do Norte obtiveram melhores resultados que
os do Sul, como uma prova da interferência do ambiente no resultado dos testes.
Ele ainda cita um estudo bastante interessante feito com crianças de uma mesma
faixa etária e mesma série de uma escola primária do Harlem. Todas elas haviam
nascido no Sul e diferiam apenas quanto ao tempo de residência no Norte. As
crianças com mais tempo de residência no Norte tiveram melhores resultados,
enquanto as recém chegadas do Sul tiveram os piores resultados. Essa seria uma
evidência clara da influência do ambiente no resultado dos testes de inteligência.
A terceira parte do anuário, que se propõe a discutir o status do deba-
te da década de 1930, pode ser sintetizada no artigo de Charles H. Thompson
(1934b) que é uma representação do debate intelectual sobre as diferenças raciais.
Thompson (1934b) enviou um questionário sobre diferenças raciais a um grupo
de 100 psicólogos, 39 educadores e 30 sociólogos e antropólogos. Nomes impor-
tantes como os de C. B. Davenport (Carnegie Institution), John Dewey (Colum-
bia), Willian. H. Kilpatrick (Columbia), Franz Boas (Columbia), Henri Pieron
(Sorbonne), Jean Piaget (Geneva) responderam ao questionário (THOMPSON,
1934b).
Primeiro foi apresentada uma classificação de três grupos: (1) aqueles que
aceitavam a hipótese da desigualdade racial, (2) aqueles que consideravam a de-
sigualdade racial possível e (3) os considerados céticos, mas que tendiam a crer
na igualdade racial. Quatro por cento consideravam a hipótese da desigualdade

86
racial, 46% consideravam a desigualdade racial possível e 30% tendiam a crer na
igualdade racial – 20% dos entrevistados foram colocados em um 4º grupo, que
estaria situado entre as posições 2 e 3 (THOMPSON, 1934b).
Questionados sobre o quanto as pesquisas recentes concluíam que os ne-
gros eram mentalmente inferiores ou iguais aos brancos, 62% julgavam que as
pesquisas eram inconclusivas, 19% acreditavam na inferioridade do negro e ou-
tros 19% acreditavam na igualdade racial. Thompson (1934b), nas suas considera-
ções, destacou que os dados indicam inegavelmente que os cientistas concordam
que os experimentos da época não comprovavam nenhuma diferença entre as
habilidades mentais dos negros e dos brancos (THOMPSON, 1934b).
Os participantes também foram questionados sobre se as evidências cien-
tificas davam suporte ou refutavam a mulatto hypothesis , de que mais sangue bran-
co resultaria em uma mentalidade superior. Setenta por cento dos entrevistados
responderam que os experimentos eram inconclusivos, 15% apoiavam a hipótese
e 15% a refutava. Isso mostrava que a grande maioria dos intelectuais entrevista-
dos não acreditavam no valor científico dessa hipótese. Thompson (1934b) encer-
ra seu artigo destacando que as diferenças entre os negros e brancos da América
deviam-se aos efeitos do ambiente, aproximando-os ou os afastando.

Considerações finais

Em face da análise do anuário de 1934 do JNE, concluo que essa edição


funcionou como um campo magnético que atraiu intelectuais do campo pro-
gressista, que refutavam as ideias deterministas dos eugenistas mendelianos e,
diante disso, defendiam a interferência do ambiente nos resultados dos testes de
inteligência. Esses trabalhos ressaltaram a dificuldade de controlar o fator cultural
nas pesquisas que utilizaram testes de inteligência e, acima de tudo, o anuário
salienta claramente a falta de evidência cientifica de hipóteses que consideram a
inferioridade mental dos negros.
Como reagiram os refutados, excluídos das páginas da JNE, é assunto para
futuras pesquisas.

Referências

ANDERSON, James. The Education of Blacks in the South, 1860-1935. Chapel Hill:
University of North Carolina Press, 1988.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Trad. de


Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editora, 1988.

87
COBB, W. Montague. “The Physical Constitution of the American Negro.” The Journal of
Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal of Negro Education, 1934, pp. 340–88, Disponível
em: https://doi.org/10.2307/2292378 Acesso: 22/12/2021

CREW, Spenser R. The Great Migration of Afro-Americans, 195-40. Monthly Labor


Review, March, 1987.

DEARBORN, Walter F.; LONG, Howard H. “The Physical and Mental Abilities of the
American Negro: A Critical Summary.” The Journal of Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal
of Negro Education, 1934, pp. 530–47, Disponível em: https://doi.org/10.2307/2292390
Acesso: 22/12/2021

DENVER UNIVERSITY. Thomas Russell Garth Papers. Archives @ DU Catalog,


Disponível em: https://duarchives.coalliance.org/repositories/2/resources/719 Acesso
em: 22/12/2021

DORR, Gregory, M. Segregation’s Science: Eugenics and Society in Virginia.


Charlottesville: University of Virginia Press, 2008.

FISK UNIVERSITY. A Guide to the Charles S. Johnson Collection (1-27), 1935-


1956. Fisk University Archives, Disponível em: https://www.fisk.edu/wp-content/
uploads/2020/06/johnson-charless.collection1-271935-1956.pdf Acesso em:
22/12/2021

FRONT MATTER. The Journal of Negro Education, vol. 3, no. 1, Journal of Negro
Education, 1934, Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2292134 Acesso:
22/12/2021

FRONT MATTER. The Journal of Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal of Negro
Education, 1934 Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2292374 Acesso:
22/12/2021

GARTH, Thomas R. “The Problem of Race Psychology: A General Statement.” The


Journal of Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal of Negro Education, 1934, pp. 319–
27 Disponível em: https://doi.org/10.2307/2292376 Acesso: 22/12/2021

GINTHER, Matthew A. The Cult of Quality: White Eugenics and Black Responses
in United States, 1900-1934. University of Saskatchewan Undergraduate Research
Journal Volume 1, Issue 2, 2015, 52-61.

HARPER, Frederick D. “Editor’s Comment.” The Journal of Negro Education, vol. 76, no.
3, Journal of Negro Education, 2007, pp. 195–195, Disponível em: http://www.jstor.org/
stable/40034562 Acesso: 22/12/2021

88
HARVARD LIBRARY. Papers of Walter Fenno Dearborn. HOLLIS for Archival
Discovery, Disponível em: https://hollisarchives.lib.harvard.edu/repositories/4/
resources/11599 Acesso em: 22/12/2021

HERSCOVITS, Melville J. “A Critical Discussion of the ‘Mulatto Hypothesis.’” The


Journal of Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal of Negro Education, 1934, pp. 389–402,
Disponível em: https://doi.org/10.2307/2292379 Acesso: 22/12/2021

JACKSON, John P. Science for Segregation. Race, Law, and the Case Against Brown
vs. Board of Education. New York and London: New York University Press, 2005.

JOHNSON, Charles S; BOND, Horace M. “The Investigation of Racial Differences


Prior to 1910.” The Journal of Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal of Negro Education,
1934, pp. 328–39 Disponível em: https://doi.org/10.2307/2292377 Acesso: 22/12/2021

KLINEBERG, Otto. “Cultural Factors in Intelligence-Test Performance.” The Journal


of Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal of Negro Education, 1934, pp. 478–83,
Disponível em: https://doi.org/10.2307/2292384 Acesso: 22/12/2021

LOMOTEY, Kofi. Encycolpedia of African American Education. California: SAGE


publications, 2010.

NORTHWESTERN UNIVERSITY. Melville J. Herskovits (1895-1963) Papers.


Northwestern University Archives, Disponível em: https://files.library.northwestern.
edu/findingaids/herskovits.pdf Acesso em: 22/12/2021

OHLES, John F. Biographical Dictionary of American Educators. Greenwood


Publishing Group, 1978.

PETERSON, Joseph. “Basic Considerations of Methodology in Race Testing.” The


Journal of Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal of Negro Education, 1934, pp. 403–
10, Disponível em: https://doi.org/10.2307/2292380 Acesso: 22/12/2021

PICKREN, Wade E. 2013. Klineberg, Otto. The Encyclopedia of Cross-Cultural


Psychology, pp 798-799.

PRICE, Clair J. St. “Negro-White Differences in General Intelligence.” The Journal of


Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal of Negro Education, 1934, pp. 424–52, Disponível
em: https://doi.org/10.2307/2292382 Acesso: 22/12/2021

RAY, Louis. Charles H. Thompson: Policy Entrepreneur of the Civil


Rights Movement. Maryland: Fairleigh Dickinson University Press,
2014.

89
RECTOR, Theresa L. A. My Time With “The Journal of Negro Education”. The
Journal of Negro Education Vol. 76, No. 3, Celebrating the Legacy of “The Journal”:
75 Years of Facilitating Excellence in Black Education (Summer, 2007), p. 402-407.
Acesso em: 25/05/2020.

SELDEN, Steven. Inheriting Shame: the story of eugenics and racism in America.
New York: Teachers College Press, 1999.

SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. in: RÉMOND, René. Por uma história
política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996.

THOMPSON (a), Charles H. Editorial Note. The Journal of Negro Education, vol. 3,
no. 3, Journal of Negro Education, 1934, pp. 317–18 Disponível em: http://www.jstor.
org/stable/2292375 Acesso: 22/12/2021

THOMPSON (b), Charles H. “The Conclusions of Scientists Relative to Racial


Differences.” The Journal of Negro Education, vol. 3, no. 3, Journal of Negro Education, 1934,
pp. 494–512, Disponível em: https://doi.org/10.2307/2292386 Acesso: 22/12/2021

VOLUME INFORMATION. The Journal of Negro History 19, no. 1 (1934): i–iv.
Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2714653 Acesso: 22/12/2021

90
4. REVISTA ATUALIDADES PEDAGÓGICAS E A
‘NOBRE CRUZADA’ PELA UNIDADE NACIONAL
(1950-1962)50

Claudia Panizzolo

Atualidades Pedagógicas, veículo de divulgação dos educadores


brasileiros, será um espelho das aspirações, das experiências, dos
anseios da escola brasileira reivindicando para si o lema de bem
servir e bem informar a quantos, nos setores do poder público ou da
iniciativa privada, se incluem entre os lavradores dos campos da
educação e do ensino em nossa terra

(ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, n. 1, 1950, p. 1).

Considerações iniciais

A epígrafe de abertura deste texto foi retirada da revista Atualidades Pe-


dagógicas publicada pela “Companhia Editora Nacional’, à época, uma das mais
importantes editoras do país, que teve suas raízes fincadas, em março de 1919, por
“Monteiro Lobato e Companhia”, uma sociedade entre Lobato e Octalles Mar-
condes Ferreira, o que segundo Hallewell (1985) significou uma profícua união
entre o idealismo super otimista de Lobato e o realismo comercial de Ferreira.
Em 1924, a “Monteiro Lobato e Companhia” foi reorganizada como “Compa-
nhia Gráfica Monteiro Lobato S/A”, com um setor gráfico com modernas má-
quinas de impressão, o que provavelmente tenha contribuído para a falência em
1925. Nesse mesmo ano, uma nova sociedade entre Lobato e Ferreira deu origem
à “Companhia Editora Nacional”, que perdurou até 1929, ano em que com a
quebra da bolsa de Nova Iorque, Lobato que era investidor foi à falência, e vendeu
suas ações para o irmão de Ferreira, Themistocles Marcondes Ferreira.
Em 1932, a “Companhia Editora Nacional” (de agora em diante denomi-
nada CEN) em franca expansão adquiriu a casa editora “Civilização Brasileira”

50 Este texto foi originalmente publicado no dossiê Journals for teachers, children and youth as a trans-
national phenomenon. Directions and experiences of the periodical press in Italy, Brazil, Spain, France
and United States between political, social and cultural changes in 19th and 20th Centuries, organiza-
do por Alberto Barausse, Claudia Panizzolo, Roberto Sani e Mirian Jorge Warde, na revista History
of Education & Children’s Literature (HECL), 20221-2, em artigo denominado “Bem servir e bem
informar: a revista «Atualidades Pedagógicas» e a ofensiva cultural da Companhia Editora Nacional
(1950-1962)”.

91
e criou uma livraria, com lojas no Rio de Janeiro e em Lisboa. De acordo com
Rodrigues, Miranda e Toledo (2015), o livro brasileiro conseguiu conquistar o
mercado português por algum tempo, mas com a estratégia de barateamento ado-
tada pelas editoras portuguesas, a situação ficou insustentável, e em 1944 a loja
em Lisboa foi vendida.
Na década de 1930, a CEN já era a maior editora de livros de São Pau-
lo, apesar de todas as adversidades advindas do Golpe de estado de 193051 e do
Movimento Constitucionalista de 1932, que impingiram respectivamente dois e
quatro meses de trabalho perdidos. Em 1931, a produção da CEN correspondia a
82% de toda a produção do Estado de São Paulo; em 1938, a produção de livros
da CEN correspondia aproximadamente a um terço de toda a produção do país,
que era de dez milhões de exemplares por ano; e em 1940, a “Companhia” exercia
a liderança entre as editoras nacionais.
O crescimento da CEN continuou até meados da década de 1950, mo-
mento em que a empresa ainda ocupava o primeiro lugar entre as editoras brasi-
leiras. Nessa década, a CEN atingiu o auge de sua produção, oscilando entre cinco
e sete milhões de exemplares por ano. Hallewell (1985) afirma que o crescimento
da CEN se deu em relação direta com o desenvolvimento do ensino secundário52,
marcadamente a partir da década de 40 com a ampliação da rede de ginásios, in-
tensificando-se, no entanto, na década de 50, por meio da criação de novas unida-
des escolares, bem como pelo aproveitamento dos estabelecimentos já existentes.
Ao longo da década de 1960, a produção da editora, embora estável, en-
frentava a crescente concorrência dos novos empreendimentos editoriais. Para
acompanhar as transformações no mercado, “passou a publicar guias de professo-
res e livros em formatos maiores, mais coloridos e com letras maiores. As mudan-
ças se deram nos livros didáticos e nas obras voltadas ao mercado universitário”
(RODRIGUES, MIRANDA, TOLEDO, 2015, p. 66).

51 Em 1930 houve um golpe de estado pelo qual Getúlio Vargas chegou à presidência da república, nela
permanecendo até 1945. De 1937 a 1945, Vargas instituiu uma ditadura denominada “Estado Novo”;
foram anos de forte aliança civil-militar, de intensa intervenção nos diferentes graus de ensino, com
ênfase no secundário, superior e na modalidade profissionalizante.

52 No Brasil, ao longo da década de 1950 o ensino era organizado em quatro anos de escolaridade no nível
primário; quatro anos de escolaridade no nível ginasial, e três anos de escolaridade no ensino médio. O
ensino médio dividia-se no ramo secundário e em várias modalidades do ramo técnico-profissional. “É
importante marcar a distinção profunda que então se fazia entre o ensino secundário e outras formas
de ensino médio. O ensino secundário deveria ter um conteúdo essencialmente humanístico, estaria
sujeito a procedimentos bastante rígidos de controle de qualidade, e era o único que dava acesso à
universidade. Aos alunos que não conseguissem passar pelos exames de admissão para o ensino se-
cundário, restaria a possibilidade de ingressar no ensino industrial, agrícola ou comercial, que deveria
prepará-los para a vida do trabalho” (SCHWARTZMAN, S.; BOMENY, H. M. B.; Costa, V.M.R.
Tempos de Capanema, Rio de Janeiro/ São Paulo, Paz e Terra/EDUSP, 1984, p. 189).

92
Com o falecimento do proprietário Octalles Marcondes Ferreira, em 1973,
a editora foi dividida entre herdeiros sem experiência de administração de empre-
sa e muito menos em gerenciamento do campo editorial. O declínio da editora
foi muito rápido:
...em 1974, a carioca José Olympio fez um empréstimo junto
ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e comprou
a editora paulista. Todavia, não conseguiu honrar as dívidas e
tanto a José Olympio como a CEN passaram ao controle do
BNDE. Em 1980, a CEN foi adquirida pelo Instituto Brasileiro
de Edições Pedagógicas [...], para onde foi transferido todo o
material editorial (Ibid, p. 66).

A intenção neste texto é empreender um estudo sobre a revista Atualidades


Pedagógicas publicada pela CEN, entre 1950 e 1962, por meio da análise de seu
ciclo de vida, do estabelecimento de suas recorrências temáticas, e da compreen-
são dos sujeitos mediadores que produziram e fizeram circular o periódico.
A pesquisa sobre imprensa periódica educacional, formada por jornais, bo-
letins, revistas e outras modalidades equivalentes, qualquer que seja a sua origem
(estado, partidos políticos, sindicatos, igreja, associações de classe), e escrita por
professores e alunos constitui fonte historiográfica privilegiada para a apreen-
são dos modos de funcionamento do campo educacional, à medida que permite
conhecer e analisar as lutas por legitimidade travadas pelos agentes produtores
dos periódicos na organização do sistema de ensino e instauração das práticas
exemplares.
Inserida em um processo de alargamento temático do campo da História
da Educação, desde a década de 1980, o estudo de impressos pedagógicos, con-
forme afirmam Warde e Carvalho (2000, p.14) “sela a morte da velha história da
pedagogia”, muito explorada a partir do papel do estado e de renomados educa-
dores e pouco explorada quanto às iniciativas locais, institucionais e socioprofis-
sionais.
Buscando compreender as orientações e as ambições da imprensa periódica
educacional e o papel desempenhado pelos diferentes atores - professores do ensino
primário, médio e universitário, inspetores, médicos, políticos, dentre outros.
Caspard tece as seguintes considerações sobre as possibilidades da pesquisa em
impressos:
Escrever a história da educação de um outro modo: menos
centrado no papel do Estado ou dos grandes pedagogos e mais
atento à riqueza das iniciativas locais, institucionais, ideológicas,
socioprofissionais e também ao atendimento de expectativas de
vez que, diferentemente do livro, a imprensa periódica é uma
mídia interativa na orientação da qual os leitores participam de
um modo ou de outro, quer escrevendo para ela, quer assinando-

93
-a ou deixando de fazê-lo (CASPARD IN CATANI; SOUSA,
1999, p.14).

Nesta mesma direção Nóvoa (1997) destaca a relevância de se estudar


as revistas de ensino pela possibilidade privilegiada de apreensão dos modos
de funcionamento do campo educacional - as reivindicações do magistério, a
organização dos sistemas, as práticas docentes, os debates - e pela característica
intrínseca dos impressos de manifestar os projetos e anseios dos diferentes atores.
Diz o autor:
A análise da imprensa permite apreender discursos que articulam
práticas e teorias, que se situam no nível macro do sistema, mas
também no plano micro da experiência concreta, que exprimem
desejos de futuro ao mesmo tempo do presente. Trata-se por
isso, de um corpus essencial para a história da educação, mas
também para a criação de uma outra cultura pedagógica (p.11).

Para Nóvoa (1997) há três razões fundamentais que justificam a relevância


do estudo da imprensa de educação e ensino. A primeira razão reside na possi-
bilidade de a imprensa ilustrar a diversidade que perpassa o campo educacional,
como os cursos, os programas e os currículos, além do papel desempenhado pe-
las famílias e outras instâncias de socialização para o processo de aprendizagem
das crianças. A segunda razão, expressa-se na proximidade entre as reflexões e
os acontecimentos, o que permite um melhor entendimento da relação entre as
orientações do Estado e as práticas na sala de aula. E, por fim, a terceira razão,
refere-se à possibilidade de compreensão dos debates, das discussões, das polêmi-
cas e dos conflitos presentes no periódico, considerando que a imprensa é local de
permanente regulação coletiva.
Ancorado nos referenciais da História Cultural, compreende-se a revista
Atualidades Pedagógicas como uma instância privilegiada para a apreensão da or-
ganização do sistema de ensino, do aperfeiçoamento das práticas docentes, das
reivindicações do magistério, do ensino específico das disciplinas, bem como, para
o reconhecimento das lutas por legitimidade travadas no campo educacional, da
participação dos agentes produtores do periódico e da elaboração dos discursos
instituintes das práticas exemplares.
A revista foi objeto de investigação de Silva (2001) intitulada Atualizando
pedagogias para o ensino médio; um estudo sobre a Revista Atualidades Pedagógicas
(1950-1962) que buscou identificar e analisar a destinação da revista, as prescri-
ções e as orientações adotadas ao longo do ciclo de vida, bem como as estratégias
editoriais adotadas. Panizzolo (2019, 2011, 2003) publicou ainda diversos textos
sobre esse impresso e as possibilidades de investigação do periódico para a Histó-
ria da Educação, a profissão docente e o ensino secundário. A pesquisa realizada

94
por Pereira e Rios (2016) elegeu as imagens das capas na investigação sobre a
construção de uma estética escolar associada aos valores vinculados à escola bra-
sileira da década de 1950.
O corpus documental da pesquisa é composto pelos 54 números publicados
da revista Atualidades Pedagógicas, localizados em dois acervos diferentes. O pri-
meiro na biblioteca da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande,
Mato Grosso. O segundo na biblioteca da Faculdade de Educação da Universi-
dade de São Paulo. O recorte temporal obedece a marcos definidos pelo ciclo de
vida da própria revista, entre o primeiro número lançado em janeiro de 1950 e o
último, em janeiro de 1962.
Toma-se, a revista Atualidades Pedagógicas como objeto cultural, o que im-
plica na investigação de suas características gerais do ponto de vista da concepção
e da materialidade, visto que, como afirma Chartier (1990) “não existe nenhum
texto fora do suporte que o dá a ler” (p.127). Esse procedimento implicou no
levantamento e análise dos artigos que constituem a revista, dos autores que nela
escreveram, de seus destinatários, enfim, no estudo das mudanças e permanências
no perfil da revista ao longo de sua existência.
Na abordagem dos sujeitos que produziram a revista, considerando edito-
res e autores buscou-se em Sirinelli (1996) uma melhor compreensão acerca do
termo intelectual. Em artigo intitulado Os intelectuais, o autor apresenta tanto o
caráter polissêmico da definição quanto o aspecto polimorfo do meio intelectual,
o que acarreta a imprecisão de critérios definidores do termo, além, é claro, da
evolução gerada pelas próprias mutações societárias. Assim defende “uma defi-
nição de geometria-variável, mas baseada em invariantes” (p. 242), apresentando
para tal duas acepções de intelectual.
A primeira, de caráter mais amplo e sociocultural, abrange os criadores,
ou seja, todos os que “participam na criação artística e literária, ou no progresso
do saber” (p.261) e os mediadores culturais, categoria composta pelos que con-
tribuem para “difundir e vulgarizar os conhecimentos dessa criação e desse sa-
ber” (p.261). A segunda acepção, de caráter mais restrito, refere-se à noção de
engajamento na vida da cidade como autor, através da intervenção do intelectual
em questões que lhe legitime ou privilegie, tomando-as a serviço das causas que
defende.
Ainda que se apresente como bastante operacional é preciso, no entanto,
evitar o estabelecimento de fronteiras rígidas entres os criadores e mediadores
culturais. Segundo Gomes e Hansen (2016) a distinção não reside entre os sujei-
tos criadores e mediadores, que podem inclusive desempenhar simultaneamente
as duas funções, mas sim nas práticas culturais e nos projetos políticos “com os
quais um intelectual (individualmente ou em grupo) atua em determinado con-
texto, constantemente de forma múltipla” (p. 27).

95
Dessa forma, pergunta-se quem eram os sujeitos mediadores que produzi-
ram e fizeram circular a revista Atualidades Pedagógicas? Como foi recrutado o
coletivo de sujeitos envolvidos com a produção dos artigos da revista? Quais es-
tratégias editoriais foram adotadas pela Revista visando atingir seu público-alvo?
O texto está organizado em três seções, na primeira seção são descritas as
condições materiais de sua produção, as capas, tiragem e distribuição; na segunda
seção são apresentados os sujeitos mediadores culturais que criaram, produziram
e fizeram circular a revista Atualidades Pedagógicas; a terceira seção problematiza
o projeto editorial da revista.

Mapeamento da revista Atualidades Pedagógicas

Atualidades Pedagógicas apresentou, ao longo de seus 54 números, alte-


rações quanto à periodicidade, sendo bimestral entre os números 1 e 36 (1950-
1955), passando a ser quadrimestral entre os números 37 e 52 (1956-1961). O
número 53, penúltimo da série, foi octomestral e seu último número, o 54, anun-
cia o retorno à bimestralidade.
Ao longo de todo ciclo de vida manteve as dimensões - 21 cm de altura
e 13,5 cm de largura -, a mesma paginação - na parte inferior da folha, com os
números pares do lado esquerdo e os ímpares do lado direito. Até 1958, foi utili-
zado o papel tipo jornal e a partir de 1959, o papel branco. O número de páginas
sofreu alteração, oscilando entre 32 e 84 páginas, que parece estar relacionado à
periodicidade, ou seja, as publicações bimestrais apresentam número reduzido de
páginas se comparadas às quadrimestrais e a octomestral, cabendo uma ressalva
para o último da série, que apesar de bimestral é o exemplar com maior número
de páginas. As oscilações nos números de páginas e a periodicidade da revista
podem ser visualizadas no Quadro 1.

QUADRO 1: Atualidades Pedagógicas segundo o número de páginas

ANO NÚMERO PERÍODO Nº DE PÁGINAS

1950-1951 1-12 Bimestral 48

13 Bimestral 40
1952
14-18 Bimestral 48

19-22 Bimestral 40
1953
23-24 Bimestral 32

25 Bimestral 48

1954 26-28 Bimestral 40

29-30 Bimestral 48

96
ANO NÚMERO PERÍODO Nº DE PÁGINAS

31 Bimestral 32

1955 32-33 Bimestral 48

34 Bimestral 56

35-36 Bimestral 72

37 Quadrimestral 46
1956
38 Quadrimestral 48

39 Quadrimestral 56

40 Quadrimestral 44
1957
41-42 Quadrimestral 56

43 Quadrimestral 48

1958 44 Quadrimestral 52

45 Quadrimestral 56

46 Quadrimestral 48

1959 47 Quadrimestral 64

48 Quadrimestral 68

49 Quadrimestral 64

1960 50 Quadrimestral 72

51 Quadrimestral 64

52 Quadrimestral 62
1961
53 Octomestral 68

1962 54 Bimestral 84

Fonte: Atualidades Pedagógicas, 1950-1962.

O layout da capa manteve-se inalterado em 53 números, sendo composto


basicamente por duas cores, a preta, em todas as capas, juntamente com uma cor
que alternava entre azul, marrom, cinza, vermelho, verde e lilás. Dois terços da
capa são ocupados por uma foto sangrada, ou seja, sem moldura, e o terço restante
com o nome “Atualidades” em letra cursiva minúscula e “Pedagógicas” em letra
imprensa maiúscula. No número 54, ou seja, o último, há uma mudança expres-
siva da capa; a imagem é do planisfério terrestre, logo abaixo em destaque, a lista
dos principais artigos e, ao centro, “atualidades pedagógicas” em letra imprensa
minúscula.
Dentre as imagens ilustradas nas capas, 43 são de instituições educacio-
nais, duas de pessoas proeminentes na área educacional, duas de congressos, duas
de monumentos, uma de material didático, uma da fachada da CEN, uma do
prédio da S. P. Editora-Gráfica e uma da Livraria da CEN.

97
A opção por dedicar a maior parte das capas para fotos de instituições
educacionais foi constante ao longo de todo o ciclo da revista, provavelmente por
ser essa a melhor forma de exprimir os objetivos das Atualidades Pedagógicas, es-
tampando nas capas e divulgando em suas páginas experiências modelares instau-
radoras de práticas pedagógicas e configuradoras da formação e aperfeiçoamento
docente. A Figura 1 estampa o colégio Dante Alighieri:

Figura 1: O Colégio Dante Alighieri

Fonte: Atualidades Pedagógicas, jan/fev, nº 7, 1951.

98
A capa corresponde à matéria intitulada Colégio Dante Alighieri, uma glória
maior para a cultura latina». O colégio é apresentado com adjetivos enaltecedores
das suas qualidades físicas, arquitetônicas, didáticas e docentes. A respeito dos
cursos oferecidos, desde o jardim de infância, primário, secundário, até os diversos
ramos do médio, em comércio e química industrial, sempre com tom laudatório
e de divulgação:
Em todos eles o mesmo espírito de trabalhar ao máximo a terra
virgem e fértil da juventude. Em todos eles, o mesmo padrão
de seriedade, a mesma tradição de eficiência [...] Do ponto de
vista pedagógico, o estabelecimento pode ser considerado tam-
bém como um dos mais modernos e eficientes de todo o país
[...] No setor esportivo, também se distingue a grande casa de
ensino [...] Já deixou há muito de ser um centro cultural para os
italianos e seus descendentes. Hoje é uma das glórias da cultura
latina em todo o mundo e um braço forte que coopera com o
Brasil para um Brasil melhor (ATUALIDADES PEDAGÓ-
GICAS, 1951, p. 26).

Tal como essa capa, as demais reproduzem a mesma lógica, antecipando,


mediante uma imagem grandiosa, as qualidades modelares que intenciona divul-
gar.
O item “sumário” ou “neste capítulo” é constituído pelo título das matérias,
a autoria e o número da página onde podem ser localizados e consta de 37 dos 54
exemplares da revista. As informações sobre o local da redação, da administração
e da sucursal; o número do volume, do mês e do ano; o preço avulso e anual e a
relação do pessoal envolvido na elaboração da revista encontram-se em todos os
exemplares, com exceção do número 17 de 1952, e compõem a penúltima página
da revista, com exceção dos seis primeiros números, que apresentam esses dados
na segunda página.
Em nenhum dos números da revista constam dados relativos à tiragem;
em apenas um editorial Autocrítica por ocasião do 4º aniversário, publicado em
1954, foi feita uma referência genérica à tiragem da revista, segundo a qual, as
Atualidades Pedagógicas teriam ultrapassado “várias dezenas de milhares” (ATU-
ALIDADES PEDAGÓGICAS,1954, p.1). A ausência dessa informação seria,
segundo o editor José de Arruda Penteado53, uma estratégia editorial adotada por
Ênio Silveira para não tornar pública a tiragem relativamente pequena da revista,
de início em torno de 1.500 exemplares, e mais tarde, 10.000, ocultando dessa
forma, a abrangência limitada desse periódico da CEN.

53 A entrevista cedida pelo professor José de Arruda Penteado, responsável pela redação da revista Atuali-
dades Pedagógicas entre 1953 e 1959 e no ano de 1962, e diretor entre 1959 e 1961 à Claudia Panizzolo
ocorreu em 25 de outubro de 2000, nas dependências da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.

99
Em busca de melhor compreensão sobre a tiragem da revista, pode-se co-
tejá-la com dados disponíveis sobre a Revista do Professor, periódico oficial do
Centro do Professorado Paulista, publicado entre 1934-1939, e de 1949-1965, pas-
sando depois a chamar-se O Professor entre 1964 e 1975. No ano de 1952, a Re-
vista do Professor informa a tiragem de 10.000 exemplares, crescendo três vezes
até 1962, o que sugere a circulação relativamente restrita das Atualidades Pedagó-
gicas. Apesar da tiragem restrita, a seção de cartas ao leitor indica a presença em
várias regiões do Brasil.
Atualidades Pedagógicas apresenta em seu expediente o valor para vendas
avulsas e assinaturas anuais, muito embora, segundo José de Arruda Penteado
essa teria sido mais uma estratégia editorial de Ênio Silveira, que colocava o preço
apenas para valorizar o produto, quando, em verdade, a revista teria sido distribu-
ída gratuitamente pelos ginásios, colégios e institutos de educação de todo o país.
Mesmo que essa estratégia tenha sido adotada, não seria impeditiva da aquisição
da revista com base no preço de capa. Em seus primeiros números, o preço avulso
era de Cr$4,00 e assinatura anual de Cr$20.00, interessante notar que no nú-
mero 13 há um aumento nos preços para Cr$5.00 e Cr$30,00, respectivamente
retornando no número 14 aos valores anteriores. O número 19 sofreu aumento
para Cr$5,00 e Cr$25,00, permanecendo inalterado até o número 36. Mais tar-
de, uma redução de preço, só que dessa vez, apenas na assinatura anual, entre os
números 37 e 44, que passou a custar Cr$15,00. Chamam à atenção os aumentos
consecutivos ocorridos no final de seu ciclo: no número 49, o preço avulso era de
Cr$20,00 e a assinatura, Cr$60,00; no número 51, Cr$35,00 e Cr$100,00, e no
número 54, Cr$50,00 e Cr$240,00, respectivamente. As variações nos preços da
revista podem ser claramente visualizadas no Quadro 2, por meio do preço do
principal lazer intelectual e instrumento de trabalho do professor, o livro, farta-
mente propagandeado nas páginas da revista.

QUADRO 2 - Preço de livros publicizados em Atualidades Pedagógicas.

NOME DO LIVRO ANO PREÇO


1950 1951 Cr$180,00
Dicionário Analógico da Língua Portuguesa
1952 1957 Cr$200,00
Atlas de Geografia Moderna 1950 1954 Cr$60,00
1952 1953 Cr$50,00
1954 Cr$60,00
1955 Cr$70,00
Comer Bem por Dona Benta (Culinária)
1956 1957 Cr$90,00
1958 Cr$120,00
1959 Cr$150,00
1955 Cr$40,00
O Velho e o Mar (Literatura)
1958 Cr$60,00

100
NOME DO LIVRO ANO PREÇO
1957 Cr$25,00
Moby Dick (Literatura)
1960 1961 Cr$120,00
1958 Cr$250,00
1959 Cr$280,00
Pequeno Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa
1960 Cr$320,00
1961 Cr$1.300,00

Fonte: Atualidades Pedagógicas, 1950-1962.

Ao examinar o Quadro 2, pode-se afirmar que o preço das Atualidades


Pedagógicas era módico; a título de exemplos: em 1955, a assinatura de 6 revis-
tas custava Cr$25,00 e o livro «O velho e o mar», de Hemingway Cr$40,00; em
1957, a assinatura era de Cr$15,00 e o livro «Moby Dick», de Melville custava
Cr$25,00.
Retornando ao expediente das Atualidades Pedagógicas constam ainda in-
formações sobre a redação e a produção gráfica. O escritório de redação perma-
neceu ao longo de todo o ciclo da revista, situado à rua dos Gusmões, 639, sendo
a produção gráfica na São Paulo Editora S.A., criada para atender exclusivamente
os serviços gráficos da CEN.

Atualidades Pedagógicas e seus mediadores culturais: editores e


colaboradores

Os diretores responsáveis pela publicação das Atualidades Pedagógicas fo-


ram Ary da Matta durante todo o ciclo, Ênio Silveira do número 1 até o número
47 (1950-1959), substituído por José de Arruda Penteado do número 48 até o 53
(1959-1961).
Ary da Matta foi professor catedrático da Faculdade de Filosofia do Ins-
tituto La-Fayette, no Rio de Janeiro, e lecionou na Pontifícia Universidade Ca-
tólica-RJ. Dentre as suas publicações didáticas destacam-se livros de História do
Brasil, História da América e História Geral, publicados na década de 1950 pela
CEN.
José de Arruda Penteado, responsável pela redação entre 1953 e 1959 e
em 1962, e diretor responsável pela revista entre 1959 e 1961, diplomou-se em
Ciências Sociais e Políticas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo - SP. Autor de vários editoriais e artigos, exercia do-
cência de Desenho Pedagógico no Colégio Estadual e Escola Normal de Mogi

101
das Cruzes e respondia pela área de desenho técnico, no Serviço de Medidas e
Pesquisas Educacionais do Departamento de Educação54.
Dentre os seus três diretores, seguramente Ênio Silveira foi o mais proe-
minente. Segundo Hallewell (1985), Silveira teria sido um radical, que expressou
sua política no trabalho editorial, tendo seus métodos administrativos, publici-
tários e de produção gráfica equiparados em importância aos promovidos por
Monteiro Lobato.
Ênio nasceu em 18 de novembro de 1925, na cidade de São Paulo, tendo
sua origem, conforme ele próprio costumava declarar, em uma família de classe
média, com longa tradição de gerações de bacharéis, profissionais ligados à litera-
tura, à pesquisa, ao magistério, ao comércio e à indústria.
A política, no sentido profissional da palavra, não teria seduzido sua famí-
lia, ainda que seu tio-avô, Alarico Silveira, tenha sido secretário da Presidência e
Ministro do Supremo Tribunal Militar no governo Washington Luís e seu avô,
Valdomiro Silveira, secretário de Educação e de Justiça no Governo Armando
Sales de Oliveira, contudo, segundo Silveira “um e outro, porém como todas as
demais pessoas de sua família, entenderam o exercício de cargos públicos como
tarefa, jamais como carreira” ( FÉLIX, 1998, p. 20).
Segundo o próprio Silveira, a experiência vivida na CEN e o convívio com
“alguns dos brasileiros mais dignos e competentes” (Ibid, p. 21) que conhecera,
como “Monteiro Lobato e Octalles Marcondes Ferreira, seus fundadores, Fer-
nando de Azevedo e Anísio Teixeira, seus assessores culturais” (Ibid, p. 21) foram
determinantes para a construção de seus valores culturais e políticos, e para a
escolha da profissão a qual se dedicaria por toda a vida.
De acordo com a descrição de Hallewell (1985) o “encanto pessoal, vi-
vacidade, energia, visão e impulso para a ação” (p. 446) foram complementados
por uma boa educação recebida por Ênio Silveira em São Paulo. Frequentou o
Ginásio do Estado, considerado o equivalente paulista do Colégio Pedro II no
Rio de Janeiro55, quer seja pela excelência dos professores, quer seja pelo rigor
com que eram ministradas as aulas. Cursou também a Escola Livre de Sociologia
e Política, contudo, não concluiu o curso, tendo apontado como impeditivos, a
necessidade de trabalhar, o casamento e a permanência de um ano nos Estados

54 A este respeito consultar ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, n. 4, 1950, p.11.

55 O Colégio Pedro II, criado em 1837, durante todo o período imperial foi considerado o padrão ideal
de ensino a ser ministrado no país. A esse respeito consultar M. de L. M Haidar, O ensino secundário
no Império brasileiro, São Paulo: Grijalbo/ EDUSP, 1972; G. B. Silva, A educação secundária; perspectiva
histórica e teoria, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969; G. B. Silva, Introdução à crítica do
ensino secundário, Rio de Janeiro: CADES, 1959; CASTRO, C. A (org). Ensino secundário no Brasil, São
Luís: EDUFMA, 2019.

102
Unidos, onde teve a oportunidade de trabalhar na Editora Alfred A. Knopf e
cursar editoração na Universidade de Columbia.
Ênio Silveira, além de ser promotor de autores nacionais como Fernando
Sabino, Adonias Filho, Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, Millor Fernandes,
Dalton Trevisan entre muitos outros, tornou a Civilização Brasileira importante
pela variedade de traduções da literatura moderna dos Estados Unidos, França,
Itália, Alemanha e Rússia; “disso resultou que, em 1970, controlava aproxima-
damente 20% de todo o mercado brasileiro de ficção” (HALLEWELL, 1985, p.
447).
Embora a maior parte de sua política editorial na área de ficção seja de
ótimo nível, procurou editar um número suficiente de best-sellers para garantir a
estabilidade financeira da Civilização Brasileira, lançando ou relançando autores
consagrados como Agatha Christie, Ian Fleming, Aldous Huxley, George Orwell
entre outros. Além de ficção, publicou na Civilização Brasileira títulos referentes
às ciências humanas, com especial destaque aos de Sociologia, Economia e Po-
lítica.
Com formação e interesses editoriais em Ciências Sociais, o que teria mo-
tivado Ênio Silveira a criar o projeto editorial de uma revista pedagógica destina-
da aos professores do ensino secundário?
Em seu primeiro número o editor apresenta a equipe da revista como co-
nhecedora da extensão e da profundidade dos problemas enfrentados pelo ma-
gistério nacional, tendo assim concebido Atualidades Pedagógicas com o objetivo
de discutir programas e currículos, técnicas e metodologias pedagógicas, mas,
sobretudo, oferecer aos seus leitores orientações referentes à vida profissional,
como obtenção de regularização de registros, esclarecimentos quanto à legislação,
por meio de uma seção específica destinada à transcrição de instruções, circula-
res, portarias, decretos e leis, e pela publicação de edições especiais denomina-
das “Suplementos de Legislação de Ensino”. Essas publicações, compostas por
orientações referentes à vida profissional e aos trâmites burocráticos nas suas re-
lações com o poder público e iniciativa privada eram produzidas pelo Serviço de
Assistência ao Professor56 (SEAP), subseção do Departamento de Relações Pú-
blicas da CEN, que dentre tantas orientações, encaminhava requerimentos para
a prestação de exames de suficiência, para que não licenciados pudessem obter
o registro para lecionar; auxiliava com a documentação para orientar as escolas
quando do processo de verificação do estabelecimento de ensino realizada pelos
órgãos fiscalizadores públicos.

56 Em 1961 o SEAP contava com 10 escritórios de atendimento em São Paulo, capital e interior, Rio de
Janeiro, Porto Alegre, Belém, Recife, Salvador, Curitiba, Florianópolis e Belo Horizonte.

103
Acompanhar os colaboradores das Atualidades Pedagógicas auxilia na com-
preensão das finalidades do periódico e das estratégias editoriais empreendidas
pelos editores, sobretudo por Ênio Silveira na diretriz que sustentou todo o ciclo
de vida do periódico. Durante seus anos de existência acolheu em suas pági-
nas figuras que desfrutavam de certa projeção nos meios educacionais, além de
professores, pesquisadores e especialistas que desejassem divulgar uma notícia
ou experiência empreendida, por meio de transcrições, de artigos, ou através de
matérias produzidas para o periódico.
Ao longo do ciclo de vida da revista foram publicados 772 artigos, que
podem ser organizados em torno de dois núcleos de colaboradores, um central e
um secundário. O núcleo central constituído por autores vinculados de diferentes
maneiras à CEN. A primeira vinculação, inclusive bastante expressiva é a presen-
ça de 174 artigos com autoria da própria Atualidades Pedagógicas; outra é a pre-
sença de 29 matérias de autoria explícita dos editores e redatores, tais como José
de Arruda Penteado e Ênio Silveira; outra participação é a de 113 matérias de
autores de livros didáticos publicados pela CEN, como Aroldo de Azevedo, Já-
como Stávale, Osvaldo Sangiorgi, J. L. Campos Júnior, Sidrack de Holanda Cor-
deiro, dentre outros. Este núcleo composto por um número reduzido de autores
é responsável por 316 matérias, o que representa 40,93% do conjunto de artigos.
Segundo José de Arruda Penteado, um importante critério para a seleção
dos autores a serem incluídos na revista era a condição de ser autor de livro pu-
blicado pela CEN ou pela Civilização Brasileira e a disponibilidade em ministrar
palestras e cursos para professores, procedendo assim, a divulgação do seu próprio
livro e da editora. Cabe ressaltar que na década de 50, os livros didáticos já repre-
sentavam um porto seguro para as editoras e uma razoável fonte de renda para
seus autores. Por meio de um exemplo, Hallewell (1985) auxilia na compreensão
da relevância das obras didáticas para as editoras:
A série de matemática de Osvaldo Sangiorgi, por exemplo, ini-
ciada em 1953, e destinada às quatro séries das escolas secundá-
rias, chegou a ter 300.000 exemplares vendidos em um ano, em
meados da década de 50, quando as tiragens de seus principais
concorrentes estavam por volta de 80.000 exemplares (p. 442).

O núcleo secundário, composto por 456 artigos, ou seja 59,06% do total,


apresenta três características bastante definidas. A primeira é a da publicação
de um a quatro artigos de um mesmo autor, o que é expressivamente inferior à
produção por colaborador no núcleo central. A título de exemplo, os colaborado-
res do núcleo central, Jácomo Stávale e Aroldo de Azevedo, publicaram 19 e 11
artigos respectivamente; enquanto autores do núcleo secundário, como Adelaide
Gomes Bueno, Itamar de Abreu Vasconcelos e Julio Nogueira, apenas 2.

104
A segunda característica, diretamente relacionada à primeira, diz respeito
ao lugar de atuação profissional. A maior parte desses colaboradores atuava den-
tro das escolas, como professores e diretores do ensino secundário, geralmente
oriundos dos cursos de licenciatura em Matemática, Letras, História e Geografia,
com preponderante atuação na escola pública.
A terceira característica é a presença pouco significativa do ponto de vista
numérico, mas muito expressiva, pela questão simbólica, da legitimidade e no-
toriedade de seus autores. Compõem esse núcleo secundário excertos de autores
brasileiros e estrangeiros pertencentes ao Movimento da Escola Nova, cujos li-
vros foram publicados pela CEN na coleção também denominada Atualidades
Pedagógicas, dentre esses autores encontram-se Lorenzo Luzuriaga, Lourenço
Filho, Roger Cousinet, Anísio Teixeira etc; e excertos de autores renomados da
literatura, como Graça Aranha, Humberto de Campos, Jorge Americano, José de
Alencar, Eça de Queiroz, Edmondo De Amicis etc.
Por meio de seu corpo editorial e da seleção que fizeram sobre quem pode-
ria colaborar com a revista foi levado ao termo e ao cabo um projeto político-pe-
dagógico que visava o preparo intelectual e técnico do magistério. As estratégias
editoriais adotadas, bem como, os núcleos temáticos que deram organicidade para
a revista serão discutidos na próxima seção.

O projeto editorial da revista Atualidades Pedagógicas

Em sua apresentação, a revista Atualidades Pedagógicas é colocada a serviço


da unidade nacional, sustentada pela educação como elo unificador, denominador
comum, de um projeto nacionalista, que tinha sua justificativa na necessidade
de um “programa de maior e melhor aproximação entre educadores brasileiros”
(ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, 1950, p. 2).
Para bem servir e bem informar, a revista tornou-se depositária da “nobre
cruzada” pela educação, objetivando a disseminação da cultura e do ensino. Re-
vestida de “todos os requisitos de mobilidade, autoridade, atualidade” (Ibid., p.
2) assume a função de acompanhar a evolução da escola brasileira, registrando
suas conquistas e colaborando na solução de todos os problemas, quer relativos à
atividade do magistério, quer aos percalços da vida profissional.
Comprometida com a boa divulgação, Atualidades Pedagógicas desempe-
nha o papel de intermediadora entre os poderes públicos e o magistério público
ou privado, tornando exequíveis programas e currículos, bem como subsidiando a
implementação de técnicas pedagógicas.
A revista Atualidades Pedagógicas foi engajada na campanha pelo
nacionalismo, com vistas a contribuir para a constituição da unidade nacional.
Empenhada na luta pela democratização do ensino, assumiu a bandeira da

105
ampliação e da reforma do ensino secundário, cuja premissa era construir uma
nova identidade nacional pela disseminação de princípios, de renovação e
experimentação pedagógica, que ganharam novo alento e nova configuração no
pós-Segunda Guerra Mundial.
O projeto editorial da revista buscou de modo incessante a padroniza-
ção. A presença reiterada ao longo das páginas da revista de artigos divulgadores
de escolas-modelo secundárias e técnicas e de faculdades-padrão; a preocupação
com os programas obrigatórios a serem seguidos; a uniformização das questões
espaciais e temporais da organização escolar, correspondem a um ideal de homo-
geneidade e conformidade. Nesse sentido, a unidade nacional seria alcançada por
meio de duas estratégias complementares. Uma pela perspectiva da unidade por
meio da padronização dos saberes pedagógicos e das práticas docentes; e outra
pela perspectiva do nacional, pelo grau de abrangência e penetração da revista em
todo o país. O processo de construção da unidade nacional, empreendido pelos
mediadores culturais a serviço da CEN, se deu nas páginas da revista por meio da
produção e divulgação de saberes pedagógicos, e, pela configuração do trabalho
docente.
A distribuição das matérias na revista Atualidades Pedagógicas, durante
todo o seu ciclo de vida, não obedece a uma sequência pré-determinada. Contu-
do, pode-se afirmar que seu projeto editorial é organizado em torno de três gran-
des núcleos temáticos: “disciplinas, divulgação e política educacional”. A análise
desses núcleos temáticos consubstanciados por artigos, séries e seções, nos permi-
te acompanhar de modo sistemático as preocupações pedagógicas, de formação
do magistério, as proposições teórico-metodológicas e as discussões sobre im-
plementações de práticas escolares. O Quadro 3 apresenta os núcleos temáticos:

Quadro 3-Núcleos temáticos das Atualidades Pedagógicas

NÚCLEO TEMÁTICO NÚMERO DE ARTIGOS PERCENTUAL

Disciplina 347 42%

Divulgação 245 35%

Política Educacional 180 23%

TOTAL 772 100%

Fonte: Criado pela autora

O maior núcleo temático aborda questões sobre disciplina com ênfase ao


preparo intelectual e técnico dos professores, operando assim uma adequação dos
enunciados oficiais, denominados na expressão de Anne-Marie Chartier e Jean
Hèbrard (1995) de “discursos pedagógicos intermediários”. Dentro desse núcleo

106
temático57, os artigos, séries e seções são abordados sob quatro diferentes aspec-
tos: divulgação científica (36%), orientação didático-metodológica (35%), pro-
posta curricular (22%) e teorias psicológicas (7%).
Os artigos destinados à divulgação científica discutem questões teóricas e
técnicas relacionadas à educação e ao ensino, valendo-se da publicação de auto-
res brasileiros contemporâneos, representantes de diversas tendências e posições.
Matemática é a disciplina contemplada com maior número de artigos (37), que
discorrem sobre temas tais como: teoremas e teorias de trigonometria: “Equa-
ções trigonométricas, tópicos de uma carta”58, “O denominado: método geral da
tangente da metade” 59, “Teorema de Pitágoras”60; Geometria: “Poliedros Regu-
lares”61, “Cálculo das áreas”62, “Serão isósceles todos os triângulos”63; e Álgebra:
“As equações do 2º e do 4º graus; variações sobre velhos temas”64, “O problema
do infinito no cálculo infinitesimal”65, “Somas dos quadrados e dos cubos dos n+1
primeiros números ímpares”66.
A Língua Portuguesa merece destaque dentro de um projeto, ainda bas-
tante frágil, de pavimentação de uma unidade nacional. O interesse pelo uso
adequado da língua materna visava a garantia de uniformidade e estabilidade
ao longo de todo território nacional. Dessa forma são 33 artigos que procuram
despertar no professor a relevância do estudo da Gramática, através do estudo da
morfologia, da fonética, da sintaxe etc.

57 Esse núcleo é composto por 347 artigos voltados ao tratamento das várias disciplinas do ensino médio,
com ênfase ao ensino secundário, escritos por 222 colaboradores. Esses em sua maioria, escreveram
apenas um artigo, enquanto 22 autores são responsáveis por 109 artigos.

58 LAPA, L. Equações trigonométricas, tópicos de uma carta. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 31, p.
9-10,1955.

59 QUINTELLA, A. O denominado: método geral da tangente da metade. Atualidades Pedagógicas, São


Paulo, n. 6, p.6, 1950.

60 CHUSTER, S. Teorema de Pitágoras, in Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 21, p-21,1953.

61 ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, Poliedros regulares. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 11, p.


4-6,1951.

62 BEZERRA, M. J. Cálculo das áreas. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 27, p. 27-28,1954.

63 VALLE, J do C. Serão isósceles todos os triângulos? Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 31, p.
7,1955.

64 FONTE, M. C. As equações do 2º e do 4º graus; variações sobre velhos temas. Atualidades Pedagógicas,


São Paulo, n. 17, p. 20-21,1952.

65 OLIVEIRA, F. P. de. O problema do infinito no cálculo infinitesimal. Atualidades Pedagógicas, São


Paulo, n.22, p. 22,1953.

66 CORDEIRO, S. de H. Somas dos quadrados e dos cubos dos n+1 primeiros números ímpares. Atua-
lidades Pedagógicas, São Paulo, n. 38, p. 35-36,1956.

107
Outros artigos, de Física (11), Geografia (6), História (6), Química (4),
Ciências (2), Arte (2), Canto Orfeônico (1) e Economia Doméstica (1), divulgam
conhecimentos específicos sobre a área do saber, como por exemplo: “Sobre a de-
finição de cinemática elementar do movimento harmônico simples”67, “Conceito
de região natural e sua aplicação na divisão regional do Brasil”68, apresentam uma
retrospectiva da situação educacional, como por exemplo “Evolução do canto or-
feônico no Brasil”69, “Comentários sobre o ensino de física e o desenvolvimento
tecnológico do Brasil”70; e apontam para novas perspectivas do ensino como em
“Novos rumos do ensino da física”71, “É preciso olhar a vida inteira com os olhos
de criança”72.
Mas é sobre as orientações didático-metodológicos que a revista faz um
grande investimento. Esse núcleo temático é apresentado mediante a organização
de gabinetes e salas ambiente, a elaboração de plano de aula e de provas, a organi-
zação de técnicas artísticas, o planejamento de excursões e visitas extracurricula-
res, a escolha de cantos escolares, de recursos audiovisuais, de procedimentos para
correção de textos e do uso de material didático. Esses artigos, além de pretende-
rem contribuir para superação dos “problemas dos planos de aula” (expressão cara
aos colaboradores da revista), buscam fixar um padrão de atuação do professor,
por meio de técnicas, métodos e iniciativas aconselháveis sobre como ensinar,
constituindo dessa forma um projeto nacional de educação através da promoção
de uma segura e uniforme prática didática-metodológica que resultaria em uma
melhor e maior aproximação entre os educadores. Os artigos enfatizam o planeja-
mento, a execução e avaliação da aula, mediante orientações minudentes dos pro-
cedimentos didáticos a serem adotados com vistas ao êxito no processo de ensino.
Os artigos “Como devemos ensinar” de autoria do Professor Doutor João
Ecsodi (1952) apresentam a educação em seu aspecto físico, intelectual e moral e,

67 PIERONI, R. R. Sobre a definição de cinemática elementar do movimento harmônico simples. Atua-


lidades Pedagógicas, São Paulo, n. 31, p.1,1955.

68 PICENA, M. L. Conceito de região natural e sua aplicação na divisão regional do Brasil. Atualidades
Pedagógicas, São Paulo, n. 38, p. 11-12,1956.

69 VALLE, R. O do. Evolução do canto orfeônico no Brasil. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 32, p.
3-6,1955.

70 CYRINO, H. Comentários sobre o ensino de física e o desenvolvimento tecnológico do Brasil. Atua-


lidades Pedagógicas, São Paulo, n. 41, p. 5-12,1957.

71 BRAMBILLA, A. Novos rumos do ensino da física. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 52, p. 47-
48,1961.

72 MATISSE, H. É preciso olhar a vida inteira com os olhos de criança. Atualidades Pedagógicas, São
Paulo, n. 39, p. 19-20,1956.

108
para alcançá-la, o autor propõe procedimentos a serem adotados pelos professores
em sala de aula:
1º) É aconselhável que o professor lecione de pé, pois poderá
perceber tudo o que se passa na classe muito melhor do que
assentado.
2º) É importantíssimo o olhar do professor com o qual poderá
manter a ordem indispensável em toda a classe.
3º) O professor deve falar sempre a toda a classe, dirigindo suas
perguntas a todos.
4º) Deve formular antes a pergunta para depois arguir um alu-
no, porque assim procedendo conseguirá a meditação de todos.
5º) Deve-se formular também perguntas secundárias à questão
principal, para envolver mais alunos no trabalho comum.
6º) O ensino deve ser um trabalho em comum, isto é, o pro-
fessor estabelecerá juntamente com os alunos as teses, temas,
argumentos e os resultados.
7º) A voz do professor deve ser bem audível, dando realce à
pronúncia.
8) O professor deveria falar tanto quanto for necessário à com-
preensão do assunto.
9º) O professor não deve corrigir as repostas erradas, porquanto
os erros devem ser corrigidos pelos alunos.
10º) O professor não deve só se ocupar dos bons e ótimos alunos.
11º) A exposição da matéria, a fala do professor, tudo deve ser
exemplo do correto e elegante uso da língua materna ou estran-
geira.
12º) É preciso exigir do aluno uma expressão gramatical per-
feita.
13º) O professor poderá, sempre que possível, dispensar o livro
didático durante as aulas, embora não deva abandoná-lo [...]
14º) Enfim, o professor deve sempre falar empregando o plural
(p. 34).

Como um verdadeiro receituário, os artigos prescrevem regras de conduta a


serem adotadas em sala de aula. Os artigos em torno das orientações didático-
-metodológicas publicados na revista expressam, de maneira contundente, a eclo-
são das dificuldades enfrentadas nos meios educacionais para definir os padrões
pedagógicos a serem adotados no ensino médio, especialmente no ramo secundá-
rio. Por certo que ao apontar essas dificuldades, ao mesmo tempo em que tentam
superá-las, acabam, inadvertidamente por alimentá-las.
Há um esforço nos artigos, em deslocar para o ensino pós-primário as
inovações pedagógicas há muito defendidas no ensino primário, como o ensi-
no por atividades, a valorização das experiências, o “aprender fazendo” e tan-
tos outros lemas didático-metodológicos que já grassavam desde meados do
século XIX, intensificaram-se com as “Lições de Coisas”, enriqueceram-se e se
diversificaram com o movimento da Escola Nova. Nos anos de 1950, o con-

109
senso em torno desses e de outros lemas já era relativamente alto nos meios
educacionais, mas difundi-los no ensino médio parecia se configurar o gran-
de desafio a ser enfrentado, especialmente em um ramo como o secundário,
herdeiro de mazelas pedagógicas datadas do século anterior, quando muitas
disciplinas foram incluídas como necessárias ao ensino pós-primário e pré-
-universitário. Exemplos eloquentes dos debates travados nas páginas da re-
vista, e que circulavam nos meios educacionais brasileiros à época, dizem res-
peito à manutenção ou não do Latim, bem como o lugar da Matemática no
currículo do secundário. Essas discussões já haviam ocupado os “curriculistas”
europeus e norte-americanos no início do século. Nesses países, já haviam se
confrontado seguidores de Herbart, de Thorndike e de tantos outros; já tinham
sido tecidos argumentos favoráveis e contrários às teses sobre o poder de trans-
ferência do Latim para o aprendizado das línguas modernas, assim como o papel
da Matemática não só para o aprendizado das ciências como também para o do
raciocínio lógico. Atualidades Pedagógicas registra, muitas décadas depois, esses
debates quando, então, eclodia no Brasil.
O espaço escolar também merece destaque nas páginas das Atualidades
Pedagógicas por meio de orientações sobre a organização das salas ambientes de
História, gabinete de Geografia, museu histórico-geográfico, sala de Inglês, sala
de Francês, enfim, a possibilidade de criação de espaços apropriados para várias
disciplinas do currículo escolar. Sob a alegação de acompanhar a moderna peda-
gogia, os alunos do ginásio e do colégio necessitariam ter à sua disposição, além
da sala de aula, outros ambientes que proporcionassem “a sensação de estarem
realizando alguma coisa útil para eles próprios e para sua escola” (MACEDO in
ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, nº 39, 1956, p.41), ao mesmo tempo que
permitissem oportunidades de construção.
Atualidades Pedagógicas publica também sugestões de organização do tem-
po escolar, com destaque para orientações acerca do uso do material didático,
considerado de capital importância para que o aluno parta de modelos concretos,
adquirindo de forma ativa as futuras abstrações.
Com relação às propostas curriculares podem ser encaradas como um mo-
vimento de resistência às mudanças que estavam sendo discutidas à época, ao
mesmo tempo em que, propostas de inclusões e revisões no âmbito dos compo-
nentes curriculares. Atualidades Pedagógicas promove uma verdadeira campanha
contra a restrição do número de aulas ou suspensão do Latim. Nessa perspectiva,
situa-se, por exemplo, o inquérito “Deve o Latim ser conservado nos currículos
do curso secundário?”73 respondido por José Cretella Júnior, professor da Escola

73 CRETELLA JUNIOR, J. Deve o Latim ser conservado nos currículos do curso secundário? Atuali-
dades Pedagógicas, São Paulo, n. 1, p. 24,1950.

110
Preparatória de Cadetes e do Ginásio do Estado de São Paulo, e autor de livros
didáticos publicados pela CEN, bem como por Lávio Sílvio Pereira de Lacerda74,
professor da Colégio São Luís de São Paulo.
Os Trabalhos Manuais também mereceram defesa veemente da revista,
por ser considerado uma disciplina promotora de desenvolvimento físico, moral e
social e motivadora da aprendizagem das demais disciplinas.
O canto orfeônico, por sua vez, é apresentado como imprescindível à di-
fusão da disciplina, civismo e educação artística. Um exemplo desse enfoque é o
artigo “O ensino do canto orfeônico na escola secundária”75 uma representação
de professores secundários de canto orfeônico do Estado de São Paulo enviada
ao Presidente da República e ao Presidente do Senado, que após circunscrever
as finalidades desta disciplina solicita sua permanência entre as matérias básicas
do curso ginasial, com atribuição de nota, em oposição à reforma que pretendia
reduzi-la à prática educativa, sem nota.
A Sociologia é apresentada como fundamental para que o aluno pudesse
conhecer a organização da sociedade e assim, compreender os processos de rela-
ções humanas; dessa forma, os vários artigos que versam sobre esse componente
curricular voltam-se para as razões que justificam sua inclusão no curso secundá-
rio. Assim, em “As Ciências Sociais no ensino de segundo grau”76 de autoria do
professor Manuel Diégues Junior (1952), a ausência da Sociologia no currículo
do curso secundário é interpretada como uma falha educacional responsável pelo
despreparo do educando para a vida coletiva e para o sentimento de grupo, for-
mando um ser “animado de um sentimento individualista absorvente, como se
fora um pequeno monstro, antissocial e anticristão” (p. 11-12).
Um conjunto de artigos era voltado principalmente à exposição de moti-
vos que justificariam mudanças nos programas de Filosofia, História, Espanhol
e Geografia. O mote partilhado por estas matérias é o da ampliação da carga
horária, sob a alegação de serem as Ciências Sociais e Humanas indevidamente
subjugadas pelas Ciências Naturais.
Atualidades Pedagógicas reservou, ainda que pequeno, espaço para a apre-
sentação de teorias psicológicas, como a série de trabalhos de autoria da pro-
fessora Irene Mello Carvalho, publicados entre 1951 e 1952. Os artigos foram
organizados como um verdadeiro curso de Psicologia da aprendizagem destinado

74 LACERDA, L. S. P. de. Deve o Latim ser conservado nos currículos do curso secundário? Atualidades
Pedagógicas, São Paulo, n. 9, p. 20-21, 1951.

75 ASSOCIAÇÃO DOS PROFESSORES DO ENSINO SECUNDÁRIO DO ENSINO SECUN-


DÁRIO E NORMAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. O ensino do canto orfeônico na escola
secundária. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 37, p. 35-36, 1955.

76 DIÉGUES JUNIOR, M. As ciências sociais no ensino de segundo grau. Atualidades Pedagógicas, São
Paulo, n. 16, p. 11-12, 1952.

111
aos professores que “devido a seus encargos, não podem fazer estudos minucio-
sos sobre o assunto, que é tão debatido quanto desconhecido” (CARVALHO
in ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, n. 8, 1951, p. 19-20). Estruturado de
modo a permitir a divulgação das conquistas no campo de estudo da Psicologia
e a favorecer a compreensão do professor, após a explanação teórica, os artigos
apresentam derivações práticas para os professores.
O segundo núcleo temático concentra 245 artigos voltados à “divulgação”77
e pode ser considerado a espinha dorsal de Atualidades Pedagógicas. Esses artigos
visavam a difusão de determinados saberes pedagógicos e a conformação das boas
práticas docentes, através da publicação e explicitação de padrões considerados
exemplares em uma escola de qualidade e tradição, através da divulgação e do es-
tímulo à constituição do espaço escolar e o desenvolvimento de práticas escolares
modernas; a publicação de cursos, conferências, congressos e seminários, o que
sugere uma preocupação com a organização profissional da categoria do magis-
tério; a recomendação de leituras, através das indicações bibliográficas, resenhas
e comentários que, além de divulgar as produções editoriais da CEN, definiam e
legitimavam a pauta das obras a ser consumidas.
A principal seção versa sobre “Instituições Educacionais”, presente em 47
números. Essa seção geralmente se apresentava como reportagem de capa, com-
posta sobretudo, do histórico de instituições escolares, públicas ou privadas, desti-
nadas ao ensino primário (25), aos vários ramos do ensino médio (33), ensino se-
cundário (35), normal (12), comercial (5), superior (4) e industrial (1), destacando
a estrutura física do prédio, a competência dos funcionários administrativos, a
formação do corpo docente e suas práticas pedagógicas modelares.
Para auxiliar na divulgação dessas instituições, o editor optou por apresen-
tar fotografias, aliás é exatamente esta a seção que mais fez uso desse recurso, no
qual são mostradas as escolas, principalmente as áreas externas, como fachadas e
quadras, salas internas, como bibliotecas, laboratórios e salas ambientes, além da
direção e do corpo docente.
A seção intitulada “Bibliografia” tem a finalidade de informar sobre o as-
sunto de um determinado livro, de modo a criar no leitor o desejo de lê-lo direta-
mente. As indicações bibliográficas são sempre constituídas de uma resenha sobre
a obra, contendo as referências bibliográficas, as credenciais do autor, o resumo
das ideias principais com as características da obra destacadas, as conclusões do
autor e a apreciação quanto às contribuições advindas de sua leitura. O exame
dessa seção permite vislumbrar o movimento editorial da CEN e da Civilização

77 Os artigos que constituem esse núcleo temático foram escritos por 84 autores. Em sua maioria, esses
autores escreveram apenas um único artigo; a redação da revista, por sua vez, assina 122.

112
Brasileira, uma vez que todas as bibliografias indicadas pertenciam a essas duas
casas editoras.
Por fim, a seção “Atualidades Pedagógicas Informa” presente entre os nú-
meros 25 e 30 (1954), depois denominada “Noticiário” entre os números 32 e 54
(1955-1962) fornece um amplo panorama educacional, nacional e internacional.
Pronunciamentos e entrevistas de autoridades eclesiásticas e governamentais a
respeito do magistério; projeto de revisão de lei do ensino; cursos, conferências,
congressos e seminários; revistas ofertadas à redação; relatos de experiências edu-
cacionais de vários países além da apresentação dos empreendimentos editoriais
da CEN, eram noticiados e comentados em suas páginas.
O terceiro núcleo temático é composto por 180 artigos que abordam ques-
tões relativas à “política educacional”78, cuja finalidade é expressar a posição da
revista Atualidades Pedagógicas no que diz respeito ao sistema de ensino.
A seção de “Legislação de Ensino” compreende transcrições de decretos,
portarias, circulares, resoluções e regulamentações referentes aos vários ramos do
ensino médio. Ocupam um número significativo de páginas - de 4 a 36 -, o que a
torna a maior seção da revista. Tendo por justificativa cooperar com professores,
diretores e alunos do ensino médio e atender às solicitações do magistério, são
publicados os programas de várias disciplinas do ensino médio, por exemplo Pro-
gramas do curso comercial, programa do ensino secundário, programas do curso
de formação profissional dos professores, entre tantos outros.
Os editoriais aparecem em 24 dos 54 números da revista (44%). A maio-
ria deles discute questões relacionadas à situação política-educacional do país
- reformas de ensino, orçamento para educação, as relações entre desenvolvi-
mento econômico e educação, construção de prédio escolares, exames orais,
situação da produção editorial no país-, enquanto outros apresentam os obje-
tivos da criação da revista e suas reformulações, bem como saudações ao ma-
gistério. Quinze editoriais contêm assinatura (62%), sendo treze de autoria
de José de Arruda Penteado, e dois de Ênio Silveira, além dos outros nove de
responsabilidade da redação da revista.
Merece destaque a série de 22 artigos publicados de modo intermiten-
te, que anunciam o próximo lançamentos ou as obras publicadas pela “Coleção
Atualidades Pedagógicas”, por meio de transcrições de excertos dos autores que
a própria Coleção havia contribuído para tornar renomado, constituindo, uma
“biblioteca de referência” do magistério. Essa opção editorial aponta para um
movimento de reordenação, reconfiguração, redistribuição da própria “Coleção” a
partir do empreendimento editorial da revista. Dito de outra maneira, parece que

78 Esses artigos foram escritos por 95 autores que, em sua maioria, escreveram apenas um único artigo;
sete autores, assinaram 26; e a redação respondeu por 48 artigos.

113
a “Coleção” é apropriada e redimensionada pela revista, gerando dentro dela uma
biblioteca da Biblioteca.
O estudo dos três núcleos temáticos indica que Atualidades Pedagógicas
configura o campo educacional através da difusão de saberes pedagógicos, nor-
matiza a organização do tempo e do espaço escolar e padroniza a atuação dos
professores, promovendo assim a unidade nacional, através da homogeneização
de saberes e práticas pedagógicas a serem difundidas e aplicadas em sala de aula
de norte a sul de um país de dimensão continental.

Considerações finais

Três fatores foram decisivos para a criação da revista Atualidades Pedagógicas


pela CEN, frente ao crescimento das matrículas do ensino médio e à significativa
ampliação da rede de escolas secundárias nas regiões mais desenvolvidas do país,
entre meados da década de 40 e os primeiros anos dos anos 60.
O primeiro fator refere-se à opção político-pedagógica dos editores que
representavam uma elite intelectual preocupada com a perda da qualidade do
ensino médio, especialmente com o ensino secundário, decorrente da sua am-
pliação quantitativa, incontestavelmente marcada pela ausência de recursos ma-
teriais necessários e de um magistério habilitado. Daí o interesse em editar uma
revista voltada aos professores daquele grau de ensino, que desempenhasse dupla
função: uma de regramento das práticas escolares por meio de artigos de orienta-
ção didático-metodológica, vulgarização de teorias pedagógicas e de matérias de
divulgação científica, e a outra função, de apoio administrativo-burocrático aos
estabelecimentos de ensino, bem como de suporte profissional ao magistério, com
orientações para a obtenção e regularização de registros já que, predominante-
mente, o docente do ensino secundário provinha de outros setores ocupacionais,
em regra, sem a devida formação e habilitação concedida pelas recém-criadas
Faculdades de Filosofia Ciências e Letras79.
O segundo fator, também expressa a opção político-pedagógica dos edi-
tores, que tentavam produzir, particularmente no professorado do ensino secun-
dário, a adesão a um projeto pedagógico. O empréstimo do nome da consagrada
“Coleção Atualidades Pedagógicas”80 para a revista, é um indicativo de que para

79 O ramo secundário é o que atraia o maior número de alunos, porque era o que dava acesso a todas as
carreiras do ensino superior. Com isso, nos anos cinquenta, o aumento da procura não foi acompanha-
do pela criação de escolas e muito menos de cursos superiores destinados à formação de professores
secundários. Daí, a revista entrar na campanha de qualificação/credenciamento docente.

80 A Coleção Atualidades Pedagógicas compunha uma das frentes da Biblioteca Pedagógica Brasileira, com-
posta por cinco séries: Literatura Infantil, Livros Didáticos em Geral, Atualidades Pedagógicas, Iniciação
Científica e Brasiliana. A esse respeito consultar SILVA, C. P. B da. Atualizando pedagogias para o ensino

114
além de uma questão de nomenclatura, há o intuito de inserir a revista em uma
tradição pedagógica ou, ao menos, tentar transferir para ela a legitimidade con-
quistada pela “coleção”.
O terceiro fator, refere-se à opção mercadológica, ancorada na expansão,
bem como na relevância social e política do ensino médio, especialmente do seu
ramo secundário. Para a editora seria bastante fértil, através das páginas da revista
Atualidades Pedagógicas, tornar esse professorado uma clientela cativa, em se tra-
tando de uma das poucas revistas disponíveis no mercado editorial81 de destina-
ção exclusiva para o ensino médio e em especial o secundário. O alvo mercadoló-
gico patenteia-se, além disso, através da intensa publicidade nas páginas da revista
de outras obras da mesma editora, de modo muito especial a “coleção Atualidades
Pedagógicas”, bem como dos livros didáticos da “Editora Nacional” 82.
Apesar do impulso tomado, o ensino médio no Estado de São Paulo, em
1950 – ano de criação da revista – apresentava uma taxa de matrícula de 1, 8%,
enquanto no ensino primário a taxa era de 8,8%. Esses índices não fragilizam o
peso conferido ao fator mercadológico, quando da criação da revista, posto que,
de um lado, a editora estava investindo com uma certa segurança na expansão
crescente deste nível de ensino e, de outro, o conjunto dos seus ramos comportava
uma grande diversidade de disciplinas e atividades. Deve-se considerar, ainda,
tratar-se de uma modalidade de ensino sobre a qual cresciam as exigências – tan-
to legais quanto acadêmicas – de maior e melhor formação e aperfeiçoamento.
Aqui, mais uma vez, não pode ser olvidado que a quase totalidade dos professores
absorvidos pelo ensino médio, à época, não tinha formação em licenciaturas es-
pecíficas.
Atualidades Pedagógicas foi apresentada em seu primeiro número, de janei-
ro de 1950, como “veículo de divulgação dos educadores brasileiros” (p. 1), seu
destinatário privilegiado seria o professor do ensino secundário. Vários indícios
permitem identificar esse destinatário: as referências explícitas em artigos, séries
e seções ao professor secundário; o número significativo de orientações didático-

médio; um estudo sobre a Revista Atualidades Pedagógicas (1950-1962).

81 Nesse período circulavam outras revistas pedagógicas, como a Revista Educação (1927), Revista do Pro-
fessor (1934), voltadas prioritariamente ao primário; a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1944)
que incluía o ensino secundário, além da Revista EBSA, documentário do ensino, do órgão de infor-
mações de interesse específico para o ensino médio, publicada pela Editora do Brasil S/A, de periodi-
cidade mensal circulou entre 1947 e 1972 e o Boletim da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo,
ligado ao Serviço de legislação e publicidade, circulou entre 1951 e 1952.

82 Não há dados disponíveis a respeito, mas é cabível supor que já houvesse um considerável público con-
sumidor dos livros didáticos da editora entre os alunos das escolas privadas de ensino médio. Segundo
Spósito (1992, p.28), em 1940 a iniciativa privada era responsável por 75,20% da oferta de vagas no
ensino médio. A esse respeito consultar: SPÓSITO, M. P. O povo vai à escola; a luta popular pela expan-
são do ensino público em São Paulo, São Paulo: Loyola, 1992.

115
metodológicas às disciplinas do currículo secundário; a divulgação de instituições
educacionais e legislação desse mesmo nível de ensino.
Os números publicados em 1961 evidenciam dificuldades, como assinatu-
ra avulsa e anual mediante pagamento antecipado, o acoplamento de números, e
a reestruturação do pessoal responsável pela redação e arte-gráfica. Parecem ter
sido dois os principais episódios deflagradores do encerramento do periódico.
Um relacionado ao desligamento de Ênio Silveira, idealizador da revista, e o ou-
tro relativo à saída de José de Arruda Penteado, seu editor, para assumir funções
junto a uma faculdade no interior de São Paulo. Mas esses desligamentos podem
ser remetidos às mudanças, nos anos 60, empreendidas pela CEN para enfrentar
o aumento da concorrência83. Assim, é admissível supor que o próprio plano de
reestruturação da “Nacional” incluísse o afastamento de Ênio Silveira; quanto
ao desligamento de Arruda Penteado, de porte distinto do seu companheiro no
comando da revista, é provável que tenha sido decorrência “natural” da perda de
lugar do periódico no interior dos novos planos editoriais da “Companhia”.
As mudanças estruturais introduzidas na Editora Nacional – prováveis res-
ponsáveis pelas saídas de Ênio Silveira, mentor da revista, e de Arruda Pentea-
do, seu operacionalizador – somadas às significativas transformações do ensino
médio nos anos 50 e início da década seguinte – aí incluindo a promulgação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação84 – tiraram o sentido dessas funções, antes
desempenhadas pela revista – especialmente as de padronização de condutas di-
dático-pedagógicas e de assessoria à vida profissional do magistério, são as mais
plausíveis razões encontradas para compreender o término da revista. Assim, quer
do ponto de vista ideológico, quer do ponto de vista mercadológico, especialmen-
te deste, a revista deixa de ter lugar nos novos planos editoriais da “Companhia”;
torna-se mais lucrativo substitui-la por um catálogo bem-organizado e signifi-
cativamente mais econômico, contendo referências às publicações da “Nacional”.

Fontes

ASSOCIAÇÃO DOS PROFESSORES DO ENSINO SECUNDÁRIO DO


ENSINO SECUNDÁRIO E NORMAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. O

83 Em setembro de 1958, a Livraria Francisco Alves em parceria com a Editora Paulo de Azevedo lançou
uma nova seção da Revista do Magistério, com distribuição gratuita e destinada aos professores do ensi-
no secundário e normal. Revista de caráter cultural e informativo, publicava além de noticiário sobre os
acontecimentos do ensino, as novidades pedagógicas e administrativas. Com uma tiragem significativa,
em torno de 35.000 exemplares, foram publicados apenas quatro números, com periodicidade irregular,
entre 1958 e 1960.

84 BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases, nº 4024 de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

116
ensino do canto orfeônico na escola secundária. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n.
37, p. 35-36, 1955.

ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, Apresentação. Atualidades Pedagógicas, São


Paulo, n. 1, p. 1,1950.

ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, Colégio Dante Alighieri, uma glória maior


para a cultura italiana. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 7, p. 23-26, 1951.

ATUALIDADES PEDAGÓGICAS. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 4,


p.11,1950.

ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, Poliedros regulares. Atualidades Pedagógicas,


São Paulo, n. 11, p. 4-6,1951.

ATUALIDADES PEDAGÓGICAS, São Paulo, Companhia Editora Nacional,


1950-1962.

BEZERRA, M. J. Cálculo das áreas. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 27, p. 27-
28,1954.

BRAMBILLA, A. Novos rumos do ensino da física. Atualidades Pedagógicas, São


Paulo, n. 52, p. 47-48,1961.

CARVALHO, I. da S. M. Conceito de aprendizagem. Atualidades Pedagógicas, São


Paulo, n. 8, p. 19-20,1951.

CHUSTER, S. Teorema de Pitágoras. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 21,


p-21,1953.

CRETELLA JUNIOR, J. Deve o Latim ser conservado nos currículos do curso


secundário? Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 1, p. 24, 1950.

CYRINO, H. Comentários sobre o ensino de física e o desenvolvimento tecnológico


do Brasil. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 41, p. 5-12,1957.

DIÉGUES JUNIOR, M. As ciências sociais no ensino de segundo grau. Atualidades


Pedagógicas, São Paulo, n. 16, p. 11-12,1952.

ECSODI, L. Como devemos ensinar? Contribuição ao problema dos planos de aula.


Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 17, p. 34-41,1952.

FONTE, M. C. As equações do 2º e do 4º graus; variações sobre velhos temas.


Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 17, p. 20-21,1952.

LACERDA, L. S. P. de. Deve o Latim ser conservado nos currículos do curso


secundário? Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 9, p. 20-21,1951.

117
LAPA, L. Equações trigonométricas, tópicos de uma carta. Atualidades Pedagógicas,
São Paulo, n. 31, p. 9-10,1955.

MACEDO, J. B. de. Museu histórico geográfico. Atualidades Pedagógicas, São Paulo,


n.39, p.41,1956.

MATISSE, H. É preciso olhar a vida inteira com os olhos de criança. Atualidades


Pedagógicas, São Paulo, n. 39, p. 19-20,1956.

OLIVEIRA, F. P. de. O problema do infinito no cálculo infinitesimal. Atualidades


Pedagógicas, São Paulo, n.22, p. 22, 1953.

PICENA, M. L. Conceito de região natural e sua aplicação na divisão regional do


Brasil. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 38, p. 11-12,1956.

QUINTELLA, A. O denominado: método geral da tangente da metade. Atualidades


Pedagógicas, São Paulo, n. 6, p.6, 1950.

R. R. PIERONI, Sobre a definição de cinemática elementar do movimento harmônico


simples. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 31, p.1,1955.

S. DE H. CORDEIRO, Somas dos quadrados e dos cubos dos n+1 primeiros números
ímpares. Atualidades Pedagógicas, São Paulo, n. 38, p. 35-36,1956.

SILVEIRA, Ê. Autocrítica por ocasião do 4º aniversário. Atualidades Pedagógicas, São


Paulo, n. 25, p. 1,1954.

VALLE, J. DO C. Serão isósceles todos os triângulos? Atualidades Pedagógicas, São


Paulo, n. 31, p. 7,1955.

VALLE, R. O. do. Evolução do canto orfeônico no Brasil. Atualidades Pedagógicas, São


Paulo, n. 32, p. 3-6,1955.

Referências

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases, nº 4024 de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da


Educação Nacional.

CASPARD, P. IN: CATANI, D. B; SOUSA, C. P. de. Imprensa periódica educacional


paulista (1890-1996): catálogo. São Paulo: Plêiade,1999. p.14.

CHARTIER A.; J. HÉBRARD, J. Discursos sobre a leitura; 1880 – 1980. São Paulo:
Ática, 1995.

CHARTIER, R. A história cultural; entre práticas e representações. Lisboa: Bertrand/


Difel, 1990.

118
FÉLIX, M. Ênio Silveira, arquiteto de liberdades. Rio de Janeiro: Berthand Brasil, 1998.

GOMES, A. DE C; HANSEN, P. S. Apresentação- intelectuais, mediação cultural


e projetos políticos: uma introdução para a delimitação do objeto de estudo. In:
GOMES, A. DE C.; HANSEN, P. S. (orgs.). Intelectuais mediadores: práticas culturais
e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.p. 7-40.

HAIDAR, M. DE L. M. O ensino secundário no Império brasileiro. São Paulo: Grijalbo/


EDUSP, 1972.

HALLEWELL, L. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: T. A. Queiroz/ EDUSP,


1985.

NÓVOA, A. A imprensa de educação e ensino; concepção e organização do repertório


português. In: CATANI D. B.; BASTOS, M. H. C. (orgs.). Educação em revista; a
imprensa periódica e a história da educação. São Paulo: Escrituras, 1997. p.11-31.

PANIZZOLO, C. Ênio Silveira e a Companhia Editora nacional: uma grande


ofensiva cultural. Quaestio, vol.5, p. 99-108, 2003.

PANIZZOLO, C. O ensino secundário nas páginas da Revista atualidades Pedagógicas.


In: CASTRO, C. C (org.). Ensino secundário no Brasil. São Luís: EDUFMA, 2019. p.
549-568.

PANIZZOLO,C. Imprensa Periódica: um estudo sobre a profissão docente a partir


de uma revista educacional. In: ZANATA, E. M. et ali (orgs). Formação docente e
universalização do ensino: proposições para o desenvolvimento humano. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2011. p. 665-672.

PEREIRA, M. V; RIOS, D. F. Uma análise de imagens de capa da Revista Atualidades


Pedagógicas: por uma estética escolar na década de 1950 no Brasil. História da Educação,
vol. 20, n. 40, p. 187-208, 2016.

RODRIGUES, J; MIRANDA, M. E; TOLEDO, M. R. DE A. O acervo da


Companhia Editora Nacional, negociação, organização e potencial para a pesquisa
histórica. Revista de fontes, vol. 2, n. 3, p. 61-69, 2015.

SCHWARTZMAN, S; BOMENY, H. M. B.; COSTA, V. M. R. Tempos de Capanema.


Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra/EDUSP, 1984.

SILVA, C. P. B da. Atualizando pedagogias para o ensino médio; um estudo sobre a Revista
Atualidades Pedagógicas (1950-1962). 2001. Dissertação de Mestrado, Educação,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001.

SILVA, G. B. A educação secundária; perspectiva histórica e teoria. São Paulo: Companhia


Editora Nacional, 1969.

119
SILVA, G. B. Introdução à crítica do ensino secundário. Rio de Janeiro: CADES, 1959.

SIRINELLI, J. F. As elites culturais. In : RIOUX, J. P ;SIRINELLI, J. F (orgs.). Para


uma história cultural. Lisboa: estampa, 1998. p.261.

SIRINELLI, J. F. Os intelectuais. In : REMOND, R (org). Por uma história política.


Rio de Janeiro: UFRJ / FGV, 1996. p.231-70.

SPÓSITO, M. P. O povo vai à escola; a luta popular pela expansão do ensino público em
São Paulo. São Paulo: Loyola, 1992.

WARDE, M. J; CARVALHO, M. M. C. de. Política e cultura na produção da História


da Educação no Brasil. Contemporaneidade e Educação, vol.5, n. 7, p. 9-33, 2000.

120
5. A FORMAÇÃO DO PROFESSORADO COMO
ANTÍDOTO PARA O BAIXO RENDIMENTO
ESCOLAR. REPRESENTAÇÕES VEICULADAS NA
RBEP (1952-1961)

Fernanda Marques da Silva


Regina Cândida Ellero Gualtieri

Introdução

Não podemos continuar a crescer do modo por que vamos crescendo,


porque isto não é crescer, mas dissolver-nos. [...] Assim é que não
podemos fazer escolas sem professores, seja lá qual for o nível das
mesmas, e, muito menos, ante a falta de professores, improvisar, sem
recorrer a elementos de um outro meio, escolas para o preparo de tais
professores. Depois, não podemos fazer escolas sem livros. E tudo isto
estamos fazendo, invertendo, de modo singular, a marcha natural
das coisas.

(Anísio Teixeira, Discurso de posse da direção do Inep, 1952)

A inversão da marcha natural das coisas é o que o Anísio Teixeira tenciona


cessar durante sua administração como diretor do Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos (Inep)85, pelo que declara em seu discurso de posse nessa instituição,
proferido em julho de 1952. Nesse discurso, é possível verificar que o educador
pretende interromper essa marcha invertida a partir de “estudos” e “inquéritos
objetivos” nos diferentes ramos e níveis de ensino com os quais visa traçar uma
radiografia do sistema, mas, principalmente, “estabelecer diagnósticos válidos e
aceitos”. Nele, Anísio ainda anuncia que “não será por leis, mas por tais estudos”
que a reforma de ensino se iniciará, reforma que “todos anseiam, mas temem [...]”
(TEIXEIRA, 1952, p. 78).
Vencer o temor da reforma pela contraposição com a ciência será sua for-
ma de intervir, será o “modo que o Instituto pensa se deixar conduzir pelo método
e espírito científico”, assegurando que “a ciência não nos vai fornecer receitas para

85 As atividades do Inep tiveram início em 1938, conforme organização dada pelo Decreto-Lei nº 580 de
30 de julho de 1938 (BRASIL, 1938).

121
as soluções dos nossos problemas, mas o itinerário [...]” (p. 79). Sua pretensão
é a de produzir uma “consciência educacional comum”, pois avalia que leigos e
profissionais apreciam e julgam diariamente a educação nacional com base em
“opinião pessoal”, o que tem de ser combatido e, para tanto, argumenta “temos
que nos esforçar por fugir a tais rotinas de simples opinião pessoal, onde ou sem-
pre que desejarmos alcançar ação comum e articulada” (p.77)
Mendonça (2008, p. 78)), citando Venâncio Filho86, entende que esse dis-
curso de posse não é um “simples discurso protocolar”, mas um “verdadeiro pro-
grama de governo” de Anísio Teixeira. A autora lembra que o próprio diretor
atribuía grande importância a esse discurso pois, além de publicá-lo na RBEP,
o republicou com algumas alterações, como Introdução, em dois de seus livros,
editados, respectivamente em 1956 e 1969.
De fato, há, em sua fala, convicções que parecem já antecipar os resulta-
dos de estudos e inquéritos futuros, como as presentes no texto escolhido para
a epígrafe: faltam professores, faltam professores formados em escolas especiali-
zadas para exercer o ofício e faltam livros, tanto os “experimentais de sugestões
e recomendações para a condução do trabalho escolar” quanto o “livro didático”
(TEIXEIRA, 1952, p.78). Em outro trecho, Teixeira identifica a escola primária
como “má escola de ler e escrever” (p. 74), mas nenhum segmento fica fora de suas
críticas. A escola secundária, em sua avaliação, tornou-se “a escola de passar de
uma classe social para outra” e, em relação ao ensino superior, dispara: “estamos
dissolvendo-o,” com a “multiplicação irresponsável” de escolas desse nível (p. 74).
Essa multiplicação de faculdades, para ele, decorre do fato de que faltam profes-
sores para as escolas secundárias e, portanto, é uma tentativa de correção, o que,
para ele, é mais uma distorção, pois não haverá professores capazes para preen-
cher tais vagas no superior.
Trata-se, portanto, de uma situação educacional bem analisada e criticada
pelo diretor recém-empossado para a qual pretende produzir e divulgar diag-
nósticos “válidos e aceitos” no meio educacional e, assim, conduzir as soluções,
seguindo o “itinerário” fornecido pela “ciência”. Os estudos do Inep, promete o
diretor, “deverão ajudar a eclosão desse movimento de consciência nacional indis-
pensável à reconstrução escolar” (p. 77).
O Inep dispõe desde 1944 de uma publicação oficial, a Revista Brasileira
de Estudos Pedagógicos (RBEP). O que figuram nos textos publicados na RBEP,
nos anos 1950, em relação à formação e à atuação dos professores, consideradas
uma das responsáveis pela “inversão da marcha natural das coisas”? Que diag-
nósticos e prognósticos são apresentados? É o que buscaremos na RBEP, fonte

86 Trata-se da obra VENÂNCIO FILHO, Alberto. A educação e a crise brasileira (Prefácio). In: TEI-
XEIRA, Anísio. A educação e a crise brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.

122
principal para o estudo e as reflexões apresentadas neste capítulo. E, embora a
disposição do diretor que assume o Inep nessa década é a de tratar as disfunções
do sistema, de todos os níveis de ensino, vamos nos ater às discussões que a RBEP
traz relacionadas apenas ao magistério primário, dados os limites deste capítulo.
O arco temporal abrange 1952, quando Anísio Teixeira se torna diretor do
Inep, até 1961, ano da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, LDB/61, cujas modificações introduzidas não serão examinadas neste
texto.
Os debates nos anos 1950, veiculados em uma revista pertencente a uma
instituição oficial, nos interessam porque permitem compreender os rumos das
políticas públicas a partir de como seus representantes e colaboradores identi-
ficam os problemas educacionais e apontam soluções. Conforme levantamento
realizado por Silva (2020), autores como Gouveia (1971), Araújo (2000) e Xavier
(2000) avaliam essa década como fecunda para a pesquisa educacional sobre os
problemas da ineficiência da escola e ressaltam o protagonismo de Teixeira nes-
sas discussões e na elaboração de projetos educacionais. Além disso, a pesquisa
coordenada por Mendonça e Xavier (orgs., 2008) atesta o empenho do Inep na
formulação de uma política de qualificação do magistério nacional. Daí a rele-
vância da RBEP, periódico do Inep, como fonte para este estudo.
A imprensa de educação e ensino, utilizada como fonte para a história da
educação, como aponta Nóvoa (2002, p. 11), permite apreender discursos que
“exprimem desejos de futuro ao mesmo tempo que denunciam situações do pre-
sente”. Esses dois aspectos, ressaltados por Nóvoa, são também relevantes para
este estudo: a denúncia do presente e os desejos de futuro, ou seja, o diagnóstico e
o prognóstico que circulam na RBEP relativamente ao sistema educacional, com
foco na escola primária.
A RBEP, como mencionado, foi criada em 1944, em plena Guerra, quando
o Inep estava sob a direção de Lourenço Filho. O editorial publicado no primeiro
número da revista traz sua finalidade e ressalta sua importância dado o momento
histórico.
Editada pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, a RE-
VISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS
não se destina a apresentar apenas o movimento desse órgão
técnico: deverá desenvolver mais amplo programa, aberto como
se vê, à colaboração dos especialistas de todo o país. Com este
propósito é que se apresenta esta publicação, animada do sin-
cero desejo de contribuir para a formação de uma esclarecida
mentalidade pública em matéria educacional; para dar reflexo
às ideias do professorado brasileiro de todos os níveis e ramos
do ensino; para registrar, enfim, os rumos da pedagogia brasi-
leira na fase, em que se encontra, de viva renovação e de clara
afirmação social. Se, nesta hora tão grave do mundo, por toda

123
a parte acrescem as responsabilidades dos educadores, verdade
é também que a consciência desses novos deveres bem clara se
apresenta ao professorado nacional (RBEP, EDITORIAL, vol.
I, no. 1, 1944, p. 6).

O propósito da RBEP de desenvolver amplo programa de renovação edu-


cacional está igualmente afirmado na apresentação do periódico feita pelo então
Ministro da Educação, Gustavo Capanema, também publicada no primeiro nú-
mero da Revista.
Forçoso é observar entre nós mesmos, no âmago da vida escolar
brasileira, as nossas direções e práticas, recolher cuidadosamente
os resultados de nossa própria experiência, e tentar fixar, à luz
dos princípios gerais hoje indiscutíveis e tendo em vista as ex-
periências de mais expressiva significação dos outros países, os
conceitos e normas especiais que devam reger o nosso trabalho
nos vários domínios da educação (CAPANEMA, 1944, p. 3).

Estruturada, portanto, para registrar rumos pedagógicos e fixar conceitos e


normas que deveriam reger o trabalho educacional, tal função não é secundariza-
da por Anísio Teixeira e, sob sua administração, a RBEP continua a publicar em
suas primeiras páginas, a seguinte informação:
REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGI-
COS, órgão dos estudos e pesquisas do Ministério da Educação
e Saúde, publica-se sob a responsabilidade do Instituto Na-
cional de Estudos Pedagógicos, e tem por fim expor e discutir
questões gerais da pedagogia e, de modo especial, os problemas
da vida educacional brasileira. Para isso aspira congregar os es-
tudiosos dos fatos educacionais no país, e refletir o pensamento
de seu magistério. REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS
PEDAGÓGICOS publica artigos de colaboração, sempre so-
licitada; registra, cada mês, resultados de trabalhos realizados
pelos diferentes órgãos do Ministério e dos Departamentos
Estaduais de Educação; mantém seção bibliográfica, dedicada
aos estudos pedagógicos nacionais e estrangeiros. Tanto quanto
possa, REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓ-
GICOS deseja contribuir para a renovação científica do traba-
lho educativo e para a formação de uma esclarecida mentalidade
pública em matéria de educação.

“Congregar estudiosos dos fatos educacionais no país” e “publicar artigos


de colaboração, sempre solicitada” são intenções que podem apontar para a for-
mação de uma rede de comunicação, tal como Darnton (2014) a concebe e que se
caracteriza pelo fato de que “os atos de transmitir e receber informação” fomen-
tam “uma consciência comum de envolvimento nas questões do país” (DARN-
TON, 2014, p. 148).

124
Trata-se de mais um aspecto que nos interessa compreender. Quem são os
colaboradores? Há entre os que publicam na RBEP, no período estudado, uma
“consciência educacional comum” sobre os problemas do magistério, capaz de
contribuir para a chamada “formação de uma esclarecida mentalidade pública”?
Se sim, qual é, como é modulada ou matizada? Que representações são veiculadas
a respeito do professor e de suas responsabilidades no processo de escolarização?
As representações sociais, como afirma Chartier (2002, p. 19), “à revelia
dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confron-
tados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é ou
como gostariam que fosse”. E, por isso mesmo, as práticas discursivas são carac-
terizadas como “produtoras de ordenamento, de afirmação de distancias, de divi-
sões” (CHARTIER, 2002, p. 27). Nessa perspectiva, diagnósticos e prognósticos
difundidos na RBEP nos informarão como a realidade educacional estava sendo
construída e dada a ler?
A RBEP tem periodicidade variável entre 1944 e 1950, mas de 1951 até
1961, mantém publicação trimestral. Está organizada em seções, mas a que é
explorada no presente estudo, por incluir os textos dos colaboradores, é a seção
Ideias e Debates – renomeada Estudos e Debates em 1960.
Em estudo anterior, Silva (2020) identificou, na RBEP, um conjunto de
textos que tratam da formação docente e ou de impactos da atuação de professo-
res despreparados na escola primária, no período entre 1952 e 1961, apresentados
no Quadro 1.

Quadro 1: Artigos e autores que discutem formação de professores da Seção Ideias e Debates
da RBEP (1952–1961)

N.º do N.º da
Ano Título do artigo Autor
Artigo Revista

O professor e sua função no sistema educacional dos


1 1952 46 Alan Manchester
Estados Unidos

2 1953 52 Preparação de pessoal docente para as escolas primárias Lourenço Filho

Tendências do ensino universitário da Pedagogia nos


3 1954 53 Lúcia Marques Pinheiro
países da Europa Ocidental

4 1955 57 Instituto de Educação do Distrito Federal Francisco Venâncio Filho

5 1955 57 A formação do professorado primário Lourenço Filho

6 1955 59 Alguns problemas do ensino da linguagem Ofélia Boisson Cardoso

7 1956 61 Alguns problemas do ensino da linguagem Ofélia Boisson Cardoso

125
8 1956 61 Caminhos que levam a aprendizagem Riva Bauzer

O exercício como procedimento de fixação de automa-


9 1956 62 Luiz Alves de Mattos
tismos

10 1956 64 O problema da formação de professores primários Eny Caldeira

11 1956 64 A escola elementar brasileira e o seu magistério Paulo de Almeida Campos

12 1957 66 O planejamento do ensino Luiz Alves de Mattos

13 1957 68 Palavras às professoras rurais do Nordeste Gilberto Freyre

Considerações em torno do ensino da linguagem na es-


14 1958 70 Juracy Silveira
cola primária

15 1958 72 Necessidade de observar os objetivos do ensino Joel Martins e Hilda Taba

16 1959 74 Educar é uma arte Mário de Brito

17 1959 75 Aspectos da educação pré-primária Lourenço Filho

18 1961 82 A educação e os estudos pedagógicos no Brasil Lourenço Filho

Fonte: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1952-1961)

A má formação ou a falta de formação dos professores são destacadas com


ênfases diferentes nesses vários artigos. Seus autores têm perfis variados – profes-
sores e pesquisadores universitários, professores e diretores de Institutos de Edu-
cação, pesquisadores de Centros de Pesquisas ligados ao Inep, técnicos educa-
cionais do Inep ou de outros órgãos da administração pública. Não discutiremos
todos os textos, mas, em função dos propósitos deste estudo, nos deteremos nos
que são de autoria de educadores ligados profissionalmente a Anísio Teixeira, isto
é, técnicos do Inep, diretores e pesquisadores dos Centros ou que são ou já foram
parceiros administrativos do diretor. Correspondem, no Quadro 1, aos artigos
numerados por 2, 8, 10, 11, 13, 14 e 15 e é sobre esses textos e seus autores que
trataremos no próximo item deste capítulo.

Centros formadores e professores improvisados e mal preparados

O discurso de posse de Anísio Teixeira, como visto na Introdução deste


capítulo, tem como um dos pontos chaves a preocupação com a formação do pro-
fessor: a falta dela ou sua inadequação ante as necessidades da escola.
Na década de 1950, a organização das escolas normais encarregadas da
formação dos professores primários obedece, de modo geral, ao que fora disposto

126
pela Lei Orgânica do Ensino Normal (Decreto-Lei nº 8.530/46) que determina
o Ensino Normal dividido em dois ciclos e, para Tanuri (2000)
A Lei Orgânica do Ensino Normal não introduziu grandes
inovações, apenas acabando por consagrar um padrão de ensino
normal que já vinha sendo adotado em vários estados. Em sime-
tria com as demais modalidades de ensino de segundo grau, o
Normal foi dividido em dois ciclos: o primeiro fornecia o curso
de formação de “regentes” do ensino primário, em quatro anos,
e funcionaria em Escolas Normais Regionais; o curso de se-
gundo ciclo, em dois anos, formaria o professor primário e era
ministrado nas Escolas Normais e nos Institutos de Educação.
(TANURI, 2000, p. 75–76)

A Lei Orgânica do Ensino Normal (citada) e a Lei Orgânica do Ensino


Primário (Decreto-Lei nº 8.529/46), ambas decretadas em 1946, firmam as di-
retrizes a serem seguidas pelos estados nesses ramos de ensino. A Constituição
de 1946 atribui aos estados a responsabilidade de organizar os seus sistemas de
ensino que, nesses dois ramos, contam com a colaboração financeira do Fundo
Nacional do Ensino Primário.
O Fundo é criado em 1942 e a partir de 1946, com a extinção da Divisão
de Ensino Primário do Departamento Nacional de Educação, por meio do De-
creto-Lei nº 9.018/1946, as atribuições da Divisão e a administração dos recursos
do fundo é encarregada ao Inep. A aplicação dos percentuais do fundo a serem
gastos, de acordo com o Decreto nº 19.513/1945, é a seguinte: 70% para constru-
ções escolares, 25% na educação primária de adolescentes e adultos analfabetos
e 5% para o aperfeiçoamento técnico de pessoal para orientação e inspeção do
ensino primário (BRASIL, 1945). Essa transferência de responsabilidade ao Inep
é um dado relevante para compreender as atribuições do órgão no que concerne
ao ensino primário, suas realizações, bem como as considerações dos autores que
escrevem na Revista, como mostraremos adiante.
A Carta Constitucional de 1946 afirma a educação como direito de todos
e o ensino primário como etapa obrigatória e gratuita.
I – o ensino primário é obrigatório e só será dado na língua
nacional;
II – o ensino primário oficial e gratuito para todos; o ensino
oficial ulterior ao primário sê-lo-á para quantos provarem falta
ou insuficiência de recursos (BRASIL, 1946d)

No entanto, para concretizar a obrigatoriedade estabelecida é necessário


vencer o déficit de vagas para as crianças em idade escolar, ainda muito alto nos
anos 1950, e uma das críticas recorrentes ao sistema educacional, considerado
ineficiente, nas páginas da RBEP.

127
Assim, de acordo com números veiculados na revista, em 1955, o Brasil
conta com uma população de oito milhões de crianças em idade escolar (de sete
a doze anos) e apenas a metade delas, cerca de quatro milhões, está matriculada
nas escolas primárias estaduais, municipais e privadas. E, ensinando nas escolas
públicas (municipais e estaduais), há 70.000 professores normalistas e cerca de
50.000 professores leigos.
Esses dados são citados por Eny Caldeira (1912-1992) no artigo “O pro-
blema da formação de professores primários”, publicado na RBEP em 1956. Esse
texto é resultado de um trabalho apresentado na XII Conferência Nacional de
Educação, realizada na cidade de Salvador, em 1956, promovida pela Associação
Brasileira de Educação (ABE), e tem a particularidade de apresentar diagnósticos
sobre a educação, denunciar seus desvios e, ao mesmo tempo, propor soluções aos
problemas apontados.
Eny Caldeira, segundo Silva (2012), em 1956, no momento em que parti-
cipou da conferência, desenvolvia, a convite de Anísio Teixeira, um levantamento
para o Centro Brasileiro de Pesquisa Educacional (CBPE) sobre as condições da
formação docente nos diferentes estados brasileiros. Tinha formação em Curso
Normal e em Pedagogia e realizou diversas especializações em uma viagem que
fez à Europa entre os anos de 1950 e 1952. Foi professora normalista e diretora
do Instituto de Educação do Paraná.
Em sua comunicação, Caldeira (1956) apresenta algumas considerações
sobre sua pesquisa em andamento e sublinha a importância do professor no su-
cesso das escolas primárias.
O elemento essencial de todo o sistema de educação é, sem dú-
vida, o professor. Daí a importância que lhe dão, especialmente
aos professores primários, os legisladores, governantes, educa-
dores e o público em geral, nos países adiantados. Realmente é
da formação, do número de mestres qualificados, da dedicação
e do devotamento dos professores em exercício, que dependem,
antes de tudo, os resultados da Educação. (CALDEIRA, 1956,
p. 39)

É interessante notar que a autora destaca a importância que é dada ao pro-


fessor primário “nos países adiantados” e, na sequência, apresenta números para
demonstrar que o Brasil não faz o mesmo. Quantifica, novamente, as crianças em
idade escolar que se encontram fora da escola, os professores leigos em atuação
nos diferentes estados, a quantidade de escolas normais existentes e a quantidade
de professores diplomados no ano de 1955 (dezesseis mil concluintes nas dife-
rentes unidades da federação). Usa como exemplo os estados do Maranhão, Piauí,
Rio Grande do Norte e Sergipe para evidenciar a disparidade entre a capacidade
de formação e a necessidade real de professores. Esses estados diplomaram, no

128
ano de 1955, segundo ela, um total de 400 professores nos cursos normais, mas
sua real necessidade era dez mil professores.
As proposições apresentadas por Caldeira (1956) relacionam diretamente
a precariedade da formação do professor com os problemas da escola primária.
Afirma que “é da qualidade de nossas Escolas Normais que irá depender o pro-
gresso das escolas primárias do país. [...] Nossas Escolas Normais precisam sair
do caos em que se acham mergulhadas” (p. 39). E o caos das Escolas Normais
é traduzido por situações consideradas regras nessas instituições como: falta de
ambiente próprio para funcionar; falta de equipamentos nas bibliotecas e labo-
ratórios; falta de ambientes para trabalho em equipe e campos de recreação; falta
de planos de estudos adequados à formação cultural e pedagógica dos futuros
mestres. Ainda menciona: programas inadequados com assuntos que não visam
à solução dos problemas pedagógicos; professores normalistas que desconhecem
a situação do Ensino Primário e Escolas de Aplicação – anexas aos Cursos Nor-
mais. E, para superar esse caos, Caldeira sugere várias iniciativas, entre as quais,
a revisão das leis que regulamentam as Escolas Normais e das exigências de for-
mação do professor dessa escola que, além da formação superior, deveria revelar
experiência de magistério realizada em uma boa escola primária. Sugere também
estabelecer as bases de um novo Plano de Estudos para as Escolas Normais bra-
sileiras e, para tanto, recorrer às contribuições dos Organismos Internacionais,
(UNESCO e BIE) e especialmente às recomendações da XVI Conferência Inter-
nacional de Instrução Pública realizada em Genebra em 1953 (p. 42 e 43).
Esses organismos internacionais acionam educadores de vários países
para realizar estudos sobre a escola primária, incluindo a formação docente.
Assim, Manoel Bergstrom Lourenço Filho (1897-1970) publica na RBEP,
ainda em 1953, um estudo feito por encomenda da UNESCO sobre a formação
de professores para as áreas rurais, com ênfase em duas experiências brasileiras:
Escola Normal Rural de Juazeiro do Norte (1934), no Estado do Ceará, e os
serviços de treinamento, formação e aperfeiçoamento da Fazenda do Rosário,
no município de Betim, Estado de Minas Gerais (1948). Nas regiões rurais, se
concentra o maior número de mestres leigos em atuação e é sobre o professor
leigo ou improvisado e as experiências das escolas normais regionais que trata
o texto de Lourenço Filho, intitulado “Preparação de pessoal docente para as
escolas primárias rurais”.
Quando escreveu o texto em análise, Lourenço Filho era professor de Psi-
cologia Educacional na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Bra-
sil, cargo em que se aposentou no ano de 1957. Sua larga experiência profissional
inclui parcerias administrativas anteriores, com Anísio Teixeira. Em 1932, a con-
vite de Anísio, então Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, assumiu a
direção do Instituto de Educação do Distrito Federal. O educador formou-se na

129
escola normal e lecionou como normalista nas cidades de São Paulo e Piracicaba.
Em 1929 graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais. Foi Diretor da Instrução
Pública do Ceará, na década de 1920, quando realizou uma reforma no sistema
de ensino que teve repercussão nacional. Foi Diretor da Instrução Pública de São
Paulo, em 1930. Trabalhou na implantação do Inep e foi seu primeiro diretor de
1938 a 1946. Criou a RBEP, em 1944, e a dirigiu até 1946. Assumiu a direção
geral do Departamento Nacional de Educação, entre os anos de 1947 e 1951.
(GANDINI; RISCAL, 2002, p. 746-754).
No artigo, Lourenço Filho faz um diagnóstico da situação da escola pri-
mária no Brasil e do seu magistério. Explica que, no Brasil, a atuação de mestres
leigos é da ordem de 48% do total de professores em atividade e há uma grande
diferença no percentual de leigos entre os estados. Nos do Sul e Sudeste, há cerca
de 10% de mestres “improvisados” e nos do Norte e Nordeste, em torno de 80%.
Depois de apresentar os números que retratam essa difícil situação, o edu-
cador pergunta: “A que se deverá esse fato, impeditivo de boa organização da
escola, e assim de seu maior rendimento pedagógico e social?” (LOURENÇO
FILHO, 1953, p. 62). Nessa indagação, fica clara a responsabilidade que atribui à
atuação de professores leigos pelo baixo rendimento pedagógico e social da escola
que, para Lourenço (1953), se expressa pelo déficit de vagas, baixa frequência e
alto índice de abandono.
O baixo rendimento escolar - elevado número de reprovações e repetências
nos anos iniciais, baixa frequência e alto índice de abandono - está, além da falta
de vagas, entre as denúncias frequentes nas páginas da RBEP, como veremos
mais adiante neste capítulo. Para o diretor do Inep, reverter esses indicadores é
condição para reconstruir e democratizar a escola brasileira, caracterizada por ele
como escola seletiva.
O ensino primário se vem fazendo um processo puramente
seletivo. [...] O característico da organização das escolas para
finalidade seletiva é o menosprezo às diferenças individuais,
ou a utilização das diferenças individuais apenas para elimi-
nar os reputados incapazes. Os que não se revelarem capazes,
são reprovados, tornando-se, ou repetentes, ou excluídos. [...]
Nada mais legítimo, se a escola visa realmente selecionar alguns
alunos para determinados estudos. E nada mais ilegítimo, se a
escola se propõe a dar a todos uma habilitação mínima para a
vida, a promover a formação possível de todos os alunos de acor-
do com as suas aptidões. Não será necessário estender-me mais
sobre a matéria, pois as reprovações maciças no ensino primá-
rio, respondendo pelo número de repetentes e, em parte, pelas
deserções, demonstram que esta é, realmente, a organização do
ensino primário. (TEIXEIRA, 1957, p. 5).

130
Lourenço Filho (1953) analisa o baixo rendimento da escola brasileira,
partindo das diferenças nas realizações educacionais nos diferentes estados bra-
sileiros e aponta dois motivos: primeiro, a dispersão demográfica do país que cria
“espaços não escolarizáveis”. Esse primeiro motivo refere-se ao fato de que em
algumas regiões, a distância entre os povoados e a baixa população não justifica a
criação de uma escola, tampouco atrai professores para atuar nesses locais. Segun-
do motivo é a diferença de capacidade econômica entre os estados, ocasionada
em grande parte pela forma de distribuição dos recursos destinados aos estados e
municípios. Assim, explica que o Fundo Nacional de Ensino Primário visa suprir
essa incapacidade financeira, custeando a construção de prédios escolares (escolas
primárias e normais) e provendo cursos de aperfeiçoamento destinados aos mes-
tres primários.
Ao analisar a década de 1950, as realizações do Inep e também de Anísio
Teixeira à frente do órgão, diferentes autores já atribuíram o vigor de suas inicia-
tivas ao poder do Instituto em gerir recursos financeiros que permitiram impor-
tantes realizações. Mendonça (2008) ressalta esse aspecto e acrescenta
A mera permanência de Anísio à frente do órgão durante 12
anos, marcados por sucessivas crises institucionais, que se refle-
tiram na passagem de 18 ministros, entre efetivos e interinos,
pela pasta da Educação, já é um indicativo da sua importância,
bem como da habilidade política de Anísio Teixeira e da sua
capacidade de estabelecer articulações, tanto no âmbito insti-
tucional, quanto no âmbito das relações internacionais, que lhe
garantiam, mesmo que de forma frequentemente instável, a via-
bilização financeira e técnica de seus projetos. (MENDONÇA,
2008, p. 79)

Não obstante a atuação do Inep na construção de prédios escolares, desde


1946, a situação quanto à quantidade de escolas no país na década de 1950 ain-
da é insuficiente e mal distribuída, tanto as escolas primárias, quanto as escolas
normais. Lourenço Filho (1953) afirma que a maioria das escolas normais está
localizada nas capitais dos estados, acentuando o problema da falta de professores
formados e a consequente atuação de mestres leigos, especialmente nas regiões
rurais, pequenas cidades e vilas.
De acordo com um quadro elaborado por Lourenço Filho (1953, p 72),
para demonstrar a disparidade na distribuição das escolas normais e cursos nor-
mais regionais pelos estados, territórios e distrito federal, com dados de 1951,
é possível observar que, em todo o país são 546 o total de escolas normais e
normais regionais. No entanto, São Paulo dispõe de 135, Minas Gerais 133 e
estados como Maranhão e Mato Grosso contam com duas e três escolas, respec-
tivamente. O estado de Santa Catarina conta com 50 escolas no total, sendo 38
escolas normais regionais e 12 escolas normais e, segundo Lourenço Filho, tais

131
cifras correspondem a um maior equilíbrio de matrículas na escola primária deste
Estado, comparando o contingente populacional das zonas rurais e urbanas. Ou
seja, em sua interpretação, as escolas normais regionais, por oferecerem o curso
normal de primeiro ciclo, de quatro anos de duração, e por serem locais, atendem
melhor a escola primária das diferentes regiões do estado, provendo professores e
promovendo, assim, uma melhor distribuição e menor desigualdade de matrículas
nas zonas rurais em comparação com outros estados.
A criação dos cursos normais regionais fora aventada pela lei orgânica do
ensino normal e há uma clara defesa, por parte de Lourenço Filho, da expansão
dessa iniciativa. No entanto, embora defenda a ampliação de escolas normais re-
gionais rurais, o educador demonstra não concordar com a formação do professor
nos moldes dos que propugnavam a ruralização do ensino e incluíam, por exem-
plo, dominar conhecimentos sobre técnicas agrícolas e uma clara exaltação do
meio rural. Propõe sim, uma atuação do professor mais identificada com o meio
em que atua, mas sua defesa parece incidir na proposta de equacionar de forma
mais pragmática e eficiente a falta de professores e a atuação de mestres leigos
nas zonas rurais. Assim, por exemplo, considera acertada a decisão da Fazenda do
Rosário em iniciar seus cursos com os professores em exercício, oferecendo-lhes
aperfeiçoamento e treinamento para adaptá-los “a uma nova filosofia e a uma
nova pedagogia de cunho acentuadamente social” e “recuperando” esses mestres
improvisados. Argumenta que embora ainda não existam estudos para avaliar o
rendimento das escolas rurais, nas quais atuam professores egressos dos cursos
ministrados na Fazenda do Rosário, já é possível verificar o “aumento da frequ-
ência dos alunos, observada em quase todas as escolas de que os mestres tenham
passado por cursos de treinamento, ou de formação em serviço, na Fazenda do
Rosário.” (LOURENÇO FILHO, 1953, p. 100-101) E conclui que o problema
da formação de professores rurais está intimamente ligado ao recrutamento des-
ses futuros profissionais: eles devem ser recrutados no meio rural.
Igualmente interessado nas questões que envolvem o meio rural e sua re-
lação com a educação está Gilberto Freyre (1900-1987), em artigo publicado na
RBEP, no ano de 1957, com o título “Palavras às professoras rurais do Nordeste”.
Ele faz uma entusiasmada exaltação aos meios rurais e sua importância na iden-
tidade brasileira. O intelectual evoca a relevância do professor rural, sublinhando
a exigência de ele compreender, se envolver e valorizar esse ambiente. No ano
de 1957, quando escreve o texto em questão, Freyre assume a direção do Centro
Regional de Pesquisas Educacionais, em Recife, a convite de Anísio Teixeira.
De acordo com Meucci (2015),
“[...] a aceitação”. deste cargo e de suas responsabilidades num
momento em que a carreira de Freyre se internacionalizava
pode estar relacionada com a afinidade entre os fundamentos

132
da criação do CBPE e dos Centros Regionais e as ideias do au-
tor. No discurso de posse do Centro Regional do Recife, Freyre
reivindica uma forma de educação escolar capaz de se adequar
às diferentes formas de vida regionais, o que nos leva a identifi-
cá-lo como parceiro de Teixeira na luta pela descentralização do
sistema de ensino. (p. 132)

Concordamos com Meucci (2015) quando diz que Freyre não tinha uma
trajetória de intimidade com a educação, mas que sua ligação com as ciências
sociais e seu modo de ver o Brasil e o regional o credenciam para atuar nas inicia-
tivas empreendidas pelo Inep e justificam sua nomeação como diretor do CRPE
do Recife.
A criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e dos
Centros Regionais de Pesquisas Educacionais (CRPEs), em 195587 está alinha-
da com os projetos de Anísio Teixeira que, reiteramos, desde sua posse no Inep,
revela intenção em fundar os estudos e os diagnósticos da educação nacional em
bases científicas.
Sempre que pudermos proceder a inquéritos objetivos, estabe-
lecendo os fatos com a maior segurança possível, teremos fa-
cilitado as operações de medida e julgamentos válidos. [...]. É
necessário levar o inquérito às práticas educacionais. Procurar
medir a educação, não somente em seus aspectos externos, mas
em seus processos, métodos, práticas, conteúdos e resultados re-
ais obtidos. (TEIXEIRA, 1952, p. 78)

A criação dos centros materializa, além disso, um propósito imperativo


de pensar a educação em seus aspectos regionais. De acordo com Mendonça e
Xavier (2008, p. 33)
É de fato com a criação do CBPE que Anísio Teixeira transfor-
ma o Inep em uma espécie de um cérebro pensante do Ministé-
rio, um verdadeiro ministério dentro do Ministério, como já se
disse, de onde partiam propostas de intervenção sobre o sistema
de ensino, fundamentadas nas pesquisas de ponta desenvolvidas
sob o seu patrocínio e nas experiências que vão ser promovidas

87 O Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e os Centros Regionais de Pesquisas Educa-


cionais (CRPEs) foram instituídos no final do ano de 1955, por meio do Decreto nº 38.460, de 28 de
dezembro de 1955 e instalados: CBPE no Rio de Janeiro, e os CRPEs nas cidades de Recife, Salvador,
Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre. Tal iniciativa exigiu articulações políticas, por parte de Aní-
sio, junto a Unesco, para viabilizar sua concretização. O projeto condensa propostas anteriores, como
o Centro de Documentação Pedagógica criado em 1953 e assume a Campanha do Livro Didático e
Manuais de Ensino (CALDEME), criada em 1952 e encarregada de produzir materiais para o ensino
e orientar o professorado quanto ao seu uso e a Campanha de Inquéritos e Levantamentos do Ensino
Médio e Elementar (CILEME), criada em 1953, com o objetivo de medir a eficácia do ensino nos
níveis médio e elementar.

133
pelo próprio Centro e pelos Centros Regionais de Pesquisas a
ele articulados. (MENDONÇA; XAVIER, 2008, p. 33)

As autoras, aliás, consideram como um dos principais feitos do diretor a


criação dos centros de pesquisa nos quais identificam a formação de uma “rede”
para operacionalizar diferentes estratégias e recursos e concretizar um plano na-
cional e regional de renovação do magistério. As autoras não explicitam o concei-
to de “rede” utilizado, mas é possível entender que se referem às conexões que o
aparato institucional do Inep possibilita aos centros.
Assim, acrescentaríamos a essa rede, a RBEP como instrumento essencial
de comunicação e de circulação de informações e, portanto, de fomento de uma
“consciência comum de envolvimento”, retomando Darnton (2014), nas questões
educacionais, que é o interesse do presente estudo.
O texto de Freyre (1957) demonstra sua conformidade com o propósito e
o modo de ver o regional intensificado pela criação dos centros. Trata-se de uma
conferência pronunciada no Curso de Treinamento de Professoras Rurais do Es-
tado de Pernambuco e é denominada pelo próprio autor como um “sermão socio-
lógico”. Freyre (1957) inicia sua explanação afirmando que “não se pode separar
o homem das condições sociais e de cultura nem da sua época nem da sua região”
(p. 41) e, nesses termos, a educação rural deve ser diferenciada nos seus objetivos
e princípios, bem como o mestre rural deve ser conhecedor de uma “sociologia da
vida rural” para compreender os problemas específicos dessas regiões e as relações
ali existentes. “Esse conhecimento é particularmente necessário ao professor ou
à professora rural. Tanto quanto o padre, eles têm que lidar com almas.” (p. 43).
Assim, sem prejuízo da formação técnica, qualquer profissional que atua no cam-
po deve valorizar e compreender os valores culturais, o conhecimento historica-
mente acumulado por meio das tradições e desempenhar suas funções como um
ato missionário e “em vez de se comportarem nessas comunidades como exilados
de olhos voltados nostalgicamente para meios urbanos, devem integrar-se o mais
possível nelas.” (FREYRE, 1957, p. 44)
Embora não faça diagnósticos sobre a educação e não indique soluções
pontuais para a formação de professores, no discurso de Freyre, fica clara a rele-
vância atribuída ao ensino rural, em consonância com as discussões aprofundadas
por outros autores que, na RBEP, dedicam várias páginas ao problema do ensino
primário nas zonas rurais e a dificuldade em encontrar professores com interesse
em atuar nessas regiões. Freyre (1957) coloca o professor como elemento funda-
mental para o sucesso da escola nessas áreas, apontando atitudes, procedimentos,
princípios e valores que devem guiar a atuação do professor rural. A publicação
do texto também é uma forma de dar a ver, ou seja, divulgar o curso de treina-
mento oferecido.

134
Mesmo demonstrando uma preocupação com o rural, Freyre (1957), assim
como Campos (1956), o qual trataremos mais adiante, e também Lourenço Filho
(1953) estão muito distantes de uma defesa da ruralização do ensino. De acordo
com Souza e Ávila (2014), entre os anos de 1930 e 1940 há um intenso movi-
mento de disputa em defesa, por um lado, da ruralização do ensino e, de outro, da
escola comum. Segundo as autoras as propostas de ruralização despontam desde a
década de 1920, tendo como porta-voz Sud Mennucci (1892-1948). Quanto aos
modelos em disputa a partir de 1930, cada um apresenta o seu “projeto” para a na-
ção. Vislumbravam “um Brasil que tomasse como base de sua economia a indus-
trialização ou um Brasil de vocação eminentemente agrícola: para cada projeto,
a defesa de um tipo de ensino” (SOUZA; ÁVILA, 2014, p. 23). Tal antagonismo
não é observado nos textos aqui estudados, sem uma aparente defesa de um mo-
delo de Brasil em detrimento de outro. A defesa que vemos é do desenvolvimento
por meio da educação e de uma escola primária para todos, embora se aceite, que
deva se adequar às necessidades e possibilidades de cada região.
Demonstrando preocupação com o bom rendimento da escola de forma
diretamente relacionada à atuação do professor e à formação que ele recebe estão
as considerações de Campos (1956). No artigo, “A escola elementar brasileira e o
seu magistério”, publicado na RBEP, em 1956, Campos produz um diagnóstico
contundente do ensino primário e denuncia as condições precárias dessa escola,
seu rendimento, formação inadequada do professor e a falta dela.
Paulo de Almeida Campos (1915-1991) foi assessor de Anísio Teixeira
e delegado do Brasil em diversas conferências internacionais promovidas pela
UNESCO. Quando escreveu o referido artigo, Campos atuava como técnico do
Inep e o texto publicado na RBEP foi preparado para a Conferência Regional
sobre Educação Primária na América Latina, realizada em Lima (Peru), em 1956,
no qual Campos compareceu como delegado do Brasil. Formou-se na escola nor-
mal em 1932, em Direito em 1939 e em Pedagogia em 1950. No estado do Rio
de Janeiro foi professor primário, diretor de Grupo escolar e ocupou cargos na
Inspetoria e Direção do Ensino. Foi professor universitário e participou de di-
versos congressos, conferências e simpósios de Educação, no Brasil e no exterior.
(LANKENAU, 2002, p. 888-892).
Campos (1956), como outros autores citados, chama atenção para o pro-
blema do déficit escolar, apesar da obrigatoriedade do ensino. A não permanência
dos alunos na escola, principalmente nas zonas rurais, é apontada por ele como
decorrente de fatores diversos: relacionados às condições econômicas desfavorá-
veis que tiram o aluno da escola e devido a distância entre o que a escola ensina
e as necessidades imediatas das classes populares e da população do campo. Para

135
ratificar seu argumento utiliza o conhecido estudo de Moysés Kessel88 para afir-
mar que a cada 10.000 crianças matriculadas na escola primária, 5.073 a abando-
nam antes de findar o primeiro ano escolar e elenca várias razões para essa evasão.
Para essa evasão escolar, concorrem, além de fatores de ordem
econômica, tal como o anteriormente referido, outros de ordem
pedagógica, facilmente identificáveis: pauperismo, regime de
“graduação”, rígido e inadequado, escola não adaptada às con-
dições regionais, escassez de recursos didáticos oferecidos, po-
breza de métodos adotados, professor não ajustado psicologica-
mente à comunidade em que se situa a escola, etc. (CAMPOS,
1956, p. 101)

Campos (1956) enfatiza, porém, que a situação é mais dramática nas zonas
rurais, onde a escola primária não consegue atingir outro objetivo além de apenas
alfabetizar e relaciona esse fato à falta de professores formados
É que nas zonas interiores não se pode contar senão ainda com
o elemento docente improvisado, porque nem contamos com
diplomados em número suficiente para a totalidade das escolas
existentes, nem estes se interessam pelas escolas longínquas e
de difícil acesso. De outro lado, nessas escolas um só professor
atende a um só tempo a turmas de cinco e seis níveis de aprovei-
tamento das três e quatro séries. É, de igual modo, escassamente
equipada a escola que também é parcamente assistida do ponto
de vista técnico-pedagógico. Pobre também é o seu currículo.
Já as escolas primárias das cidades são mais ricas em conteú-
do didático, melhor aparelhadas, de magistério com preparação
adequada, em maioria instaladas em prédios próprios, turmas
de alunos organizadas por critério menos empírico, contando,
inclusive, com professores especializados para educação física,
canto orfeônico e trabalhos manuais. (CAMPOS, 1956, p. 102)

Campos (1956) retoma a dificuldade apontada por outros autores em se


prover mestre para atuar nas zonas rurais. O impeditivo é que professores oriun-
dos das zonas urbanas ou que se deslocam até elas para estudar, não demonstram
o desejo de se transferir ou retornar para o ambiente rural. Argumenta também
sobre a aproximação do mestre com o seu meio, já esboçada por Lourenço Filho
(1953) e Freyre (1957) e quando apresenta exemplos de sucesso em que a escola
consegue ser eficiente nesse quesito, se envolvendo com a comunidade e sendo
útil a ela, justifica o bom êxito pelo fato de que, nessas escolas, atuam “professores
normalistas” ou “mestres de formação pedagógica”. Esclarece, no entanto, que
nas zonas rurais, de modo geral, e nas escolas municipais, tal concretização não

88 KESSEL, M. I. A evasão escolar no ensino primário (com nota preliminar de Anísio Teixeira e estudo
introdutório de Otávio Martins), Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 22, n. 56,
p. 53–72, out. / dez. 1954. Disponível em www.portal.inep.gov.br.

136
é possível. Referindo-se às escolas municipais e comparando às estaduais, relata
suas condições, de forma alarmante.
Mais pobremente equipada, e instalada em piores condições que
a do Estado, a escola mantida pela Municipalidade não pode
oferecer mais riqueza de ensino nem maior eficiência. Bem ao
contrário, pois. Entretanto, essa é a escola de penetração, a do
alto sertão e da longínqua restinga, desservida de rodovias e de
recursos de civilização: é a escola desbravadora. E seu dirigente
é a modesta professora não diplomada, ali nascida, ali vivendo
com sua família, e que numa sala da sua própria casa ensina o
que sabe aos meninos da redondeza. Faz, assim, obra de pionei-
rismo. A despeito das deficiências de organização dessa escola,
tudo que nela ainda se faz é obra da mestra leiga, cheia de boa
vontade, que reparte com as crianças o que sabe. E diante da
gigantesca massa escolarizável do Brasil, não dispondo de mais
vultosas somas para substituir da noite para o dia essa escola por
outra de mais alto padrão pedagógico, não podemos dispensar
ainda nas zonas interiores esse tipo de escola nem esse professor.
A má escola é, afinal, ainda, de certo modo, uma escola. E não se
podendo fazer melhor escola fazemos, no interior, aquela que é
possível, embora reconheçamos as suas debilidades. (CAMPOS,
1956, p. 108)

Os argumentos apresentados demonstram um esforço em validar duas


propostas recorrentes nos textos estudados: pensar o regional e suas necessidades
e equacionar o problema da falta de professores com a expansão de escolas nor-
mais regionais e cursos de aperfeiçoamento.
Campos (1956) conclui, afirmando que são necessários mais intensos in-
vestimentos para suprir as necessidades das escolas primárias e para superar o
problema da falta de professores diplomados. Sugere um novo modelo de fi-
nanciamento do ensino primário, cuja elaboração é de Anísio Teixeira, o qual
não detalharemos nesse texto, mas, em síntese, propõe uma distribuição menos
centralizada dos recursos “em fundos de educação, com administração especial e
autônoma” (CAMPOS, 1957, p. 118). Tal proposta prevê a municipalização do
ensino, a criação de um fundo conjugado entre a União, os estados e os municí-
pios, diferenciação entre verbas de investimento e de custeio, além da distribuição
dos recursos com base numa cota-aluno.
Quanto à formação inicial de mestres e a situação de professores leigos em
atuação, afirmando se tratar de uma realidade de difícil e prolongada superação,
propõe que a formação inicial possa ser aligeirada com curso “de nível médio
abreviado, de 4 anos de estudos, seguido de aperfeiçoamento continuado”, vi-
sando suprir a necessidade imediata de professores. Para os leigos em exercício,
preconiza a intensificação dos cursos de treinamento e aperfeiçoamento com o
objetivo de elevar “seu nível intelectual e pedagógico.” (CAMPOS, 1956, p. 127)

137
Nos argumentos apresentados nos excertos até aqui expostos é possível
identificar a “rede de comunicação” que se forma quando Lourenço Filho (1953)
e Campos (1956) apontam para a centralidade dos recursos e a conveniência dos
cursos normais regionais. Campos (1956) chega a citar trechos do estudo de Lou-
renço Filho de 1953. Fica evidente, também, a constituição dessa rede ao sugerir
o modelo de financiamento educacional proposto pelo diretor do Inep.
De igual modo, é interessante notar a estratégia discursiva dos autores que,
de forma recorrente, como Lourenço Filho (1953), Caldeira (1956) e Campos
(1956), apresentam, primeiramente, uma situação alarmante e, por meio de dados
estatísticos que tencionam ratificar seus argumentos, buscam revelar a realidade.
Depois de apresentar a realidade (diagnóstico), apontam causas e, não raramente,
descrevem um modelo ideal e assim propõem soluções para alcançá-lo.
O uso de dados estatísticos pode ser compreendido como estratégia de
“persuasão” e “justificação” (CHARTIER, 2002, p. 224-225). 89 As estratégias,
por sua vez, podem configurar um processo de representação em que os atores
descrevem a “sociedade tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse”
(CHARTIER, 2002, p. 19).
Há correspondência, como visto, nos diagnósticos até aqui apresentados,
tanto quanto nas principais inquietações. A preocupação com o rural, que se
sobrepõe em algumas discussões, reflete a insuficiência real das escolas nesses
ambientes, mas também abarca a dinâmica social de um período em que o país
vive um intenso movimento de urbanização e industrialização e que, ao mesmo
tempo, assiste à intensificação do êxodo rural.
Com a crescente urbanização e industrialização e as carências de desen-
volvimento e o êxodo nos ambientes rurais, as discussões expressam urgências de
um momento em que ao Inep, por meio de seus centros de pesquisa, é facultada
a possibilidade de pensar o social. No ambiente rural, faltam professores interes-
sados em atuar nesses locais, faltam professores habilitados e faltam escolas e, nas
zonas urbanas, há multiplicação de turnos, faltam prédios escolares e, também,
falta a formação adequada do professor.
Assim como a situação do professor em relação ao sistema (a falta deles
e o tipo de formação), a preocupação com questões práticas do ensino primário
é notável nos textos da RBEP que examinam a atuação do professor. São textos
que analisam atitudes e comportamentos docentes, objetivos e planejamento do

89 Nessa perspectiva, as reflexões a partir do trabalho de Paulilo e Gil (2017) também nos ajudam a
pensar o esforço dos autores da RBEP para legitimar e validar seus discursos que criticam a escola
primária e propõem soluções para a superar os problemas. Paulilo e Gil (2017) analisam a produção e a
utilização de estatísticas educacionais e a forma como constituíram legitimidade, nas primeiras décadas
do século XX, no Brasil, para direcionar políticas educacionais, colocando em evidência, ou não, os
problemas de rendimento escolar, de acordo com a condução dessas políticas.

138
ensino e métodos de ensinar. Esses textos deixam clara a relação que seus auto-
res estabelecem entre baixo rendimento escolar – dificuldades na aprendizagem,
reprovação, repetência e abandono escolar – e práticas ou atitudes docentes ina-
dequadas.
Com essa perspectiva está o texto de Riva Bauzer 90, técnica de educação
do Inep, que em 1956 publica na RBEP o artigo “Caminhos que levam a apren-
dizagem”. Nele, a autora indica de forma detalhada, atitudes, comportamentos e
procedimentos adequados ao professor, enfatizando que a escola deve sempre se
adaptar ao aluno para garantir seu interesse e consequente aprendizagem. Os dez
passos indicados por Bauzer (1956), dão a medida da representação do professor
ideal ou como “gostaria que fosse”.
I. O bom professor dá aos alunos trabalhos ao seu alcance, isto
é, onde possam obter sucesso.
II. O bom professor ajuda seus alunos a transformarem-se em
membros do grupo.
III . A saúde física e mental e indispensável ao bom desenvolvi-
mento dos processos de aprendizagem.
IV. Não procure fazer ninguém dar mais do que pode dar.
V. O medo como elemento de motivação deve ser completa-
mente abolido.
VI. Todo comportamento tem causa.
VII. As personalidades diferem sob vários aspectos.
VIII. Dez aprovações para uma negação.
IX. O bom professor ensina a seus alunos que os problemas de-
vem ser enfrentados e não evitados.
X. A segurança é um ponto médio situado entre a dependência
e a independência. (BAUZER, 1956, p. 132–139)

Com esse decálogo, observamos que, ao adentrar o espaço da escola e da


sala de aula, a autora busca descrever o “bom professor”, mas também o bom
ensino, evocando princípios científicos da Pedagogia e da Psicologia. Do mesmo
modo, Juracy Silveira que, preocupada com os problemas existentes no ensino da
leitura e da escrita, em função de práticas docentes avaliadas como inadequadas,
escreve o texto “Considerações em torno do ensino da linguagem na escola pri-
mária”, publicado na RBEP no ano de 1958.
Na ocasião da publicação desse artigo, Juracy Silveira (1898-1991) atuava
no Instituto de Educação do Distrito Federal, mas estava à disposição do Inep
como Orientadora do Ensino de Linguagem na Escola Experimental Guatema-
la. E, de acordo com Silva (2002), desde 1953, ministrava cursos organizados pelo
Inep, em diferentes estados, a convite de Anísio Teixeira. Silveira formou-se na

90 Não localizamos informações precisas sobre a trajetória de formação e profissional dessa autora. Em
publicações da RBEP há a menção de Riva Bauzer como “do Inep”.

139
Escola Normal do Rio de Janeiro, atuou no magistério primário como professora
e como diretora, foi assistente de Lourenço Filho no Instituto de Educação e,
em 1942, foi nomeada Chefe de Distrito Educacional do Distrito Federal onde
permaneceu até 1952. (SILVA, 2002).
Silveira (1958) aponta o “pequeno rendimento” no ensino de leitura e es-
crita e argumenta que essa defasagem na aprendizagem é responsável por gran-
de parte das sucessivas repetências ou, em suas palavras, “insucessos escolares”.
Aponta oito causas para o problema.
I. Dissociação entre pensamento e linguagem, entre conteúdo e
forma, consequência da permanência de certos conceitos origi-
nários de uma psicologia mais interpretativa que experimental.
As definições correntes de linguagem, incompletas e subjetivas,
respondem por essa dissociação;
II. Rotina;
III. Falsa concepção de aprendizagem, baseando-se em teorias
psicológicas obsoletas e inadequadas;
IV. Diferença de conceituação entre o que é matéria de ensino, para
o professor, e matéria de estudo, para a criança, dando origem a uma
distorção entre meios e fins educacionais;
V. Desconhecimento dos novos estudos a respeito das funções e usos da
linguagem, do domínio do significado e das investigações científicas,
principalmente no campo da fisiologia da leitura;
VI. Material didático deficiente e de má qualidade;
VII. Conceito de “série” sobrepujando a realidade das diferenças
individuais;
VIII. Horário escolar insuficiente. (SILVEIRA, 1958, p. 51–61,
grifos nossos)

Entre as causas apontadas, as quatro assinaladas estão relacionadas a prin-


cípios científicos e didáticos cujo domínio depende de formação específica para
a docência e nenhuma delas imputa responsabilidade ao aluno, a sua família ou a
seu modo de vida.
Ela dá relevo à ação inadequada do professor, embora não atribua a ele,
diretamente, essa responsabilidade, pois justifica que para uma ação adequada,
antes é preciso dispor de formação e recursos materiais apropriados, entre outros
fatores.
Percebemos, assim, que, na formulação do entendimento sobre as respon-
sabilidades do sucesso ou do insucesso escolar, a autora centra em fatores que
denominaríamos intrínsecos à escola, que dizem respeito à infraestrutura peda-
gógica, e não aos extrínsecos como as condições e os modos de vida da família e
do aluno91.

91 O que é considerado intrínseco ou extrínseco à escola segue o que está em CORBUCCI, P. R.; ZEN,
E.L. O IDEB à luz de fatores extrínsecos e intrínsecos à escola: uma abordagem sob a ótica do muni-

140
Os periódicos educacionais têm como pretensão guiar as ações educacio-
nais em situações distintas, de acordo com a sua especificidade e público alvo
– orientando a ação do professor em sala de aula, divulgando tendências pe-
dagógicas inovadoras, propagandeando realizações ou mesmo direcionando-as.
Gualtieri (2013) ao estudar a Revista Escola Nova, no início dos anos 1930, tam-
bém identifica um movimento de renovação da cultura pedagógica. Publicação da
Diretoria de Ensino de São Paulo, esse periódico é direcionado a orientar a atu-
ação dos professores. Naquele momento, em suas páginas, discutia-se que “o ato
pedagógico cientificamente controlado era condição para resolver os problemas
educacionais” (GUALTIERI, 2013, p. 206). E, um dos problemas era a repetência
decorrente das dificuldades que os alunos apresentavam, mas a natureza desse
problema era vista de outra forma pelos autores que indicavam a necessidade
de medir os alunos, medir, classificar e separar para homogeneizar as classes, os
processos educativos e assim oferecer uma “escola sob medida”. (GUALTIERI,
2013)
Diferentemente, os autores sob análise, dão destaque à infraestrutura pe-
dagógica – humana e material –, como Silveira (1958), que encerra o texto sin-
tetizando as sugestões para enfrentar os problemas apontados e afirmando que
levantar as causas profundas e talvez as mais frequentes do pequeno rendimento
do ensino do ler e escrever não é atitude derrotista, mas realista.
Do mesmo modo, Joel Martins e Hilda Taba, autores do texto “Necessida-
des de observar os objetivos do ensino”, publicado em 1958, na RBEP, analisam
os prejuízos que currículos e programas mal definidos pelos especialistas repre-
sentam para o público escolar. O artigo é resultado de um estudo realizado du-
rante o Curso de Especialistas em Educação para a América Latina, promovido
pelo CRPE de São Paulo com apoio da Unesco.
Joel Martins (1920-1993) atuou, entre os anos de 1956 e 1959, no CRPE
de São Paulo, a convite de Fernando de Azevedo – primeiro diretor deste centro
– quando trabalhou na coordenação dos Cursos de Especialistas em Educação
para a América Latina (MUSTAPHA, 2018). Os cursos oferecidos pelo centro
foram comentados na RBEP e, de acordo com Mustapha (2018, p. 147), tiveram
“grande repercussão na imprensa”. Martins formou-se em Pedagogia e Filosofia
pela Universidade de São Paulo (USP). Realizou mestrado nos Estados Unidos,
entre os anos de 1949 e 1950 e Doutorado em Psicologia da Educação, na USP,
de 1951 a 1953. O pesquisador foi importante personagem na implantação da
pós-graduação no Brasil.

cípio. In: BOUERI, R.; COSTA, M. A. (editores). Brasil em desenvolvimento 2013: estado, planejamento
e políticas públicas. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília: Ipea, 2013. p. 793- 816

141
Hilda Taba (1902-1967) foi uma professora e pesquisadora da educação,
de origem estoniana, a qual se atribui erroneamente a identidade de “professora
americana”. Formou-se como professora primária em 1921 e em Filosofia na
Universidade de Tartu (Estônia), em 1926. Realizou seus estudos de pós-gra-
duação nos Estados Unidos e se especializou em Currículos, sendo reconhecida
mundialmente nessa área.92
No artigo supracitado, os autores apresentam uma análise de currículos e
programas de ensino em vigor naquele momento e afirmam que os especialistas
em educação precisam dominar os conhecimentos necessários à elaboração desses
documentos para amparar o trabalho dos professores que, “muitas vezes”, não são
“dotados de uma preparação adequada”. Ressaltam que a definição de objetivos
deve ser realista, considerando tanto a faixa etária quanto o desenvolvimento e
o interesse da criança, além da real situação da escola, com carências diversas
“com o pouco tempo que a criança despende na escola, com a habitual carência
de materiais, e muitas vezes sem professores dotados de uma preparação adequa-
da, a validez do que deve ser obtido nessas condições precisa ser reconsiderada.”
(MARTINS, TABA, 1958, p. 45)
Os autores demonstram preocupação, para além da atuação do profes-
sor, alertando para a necessidade de formação e conhecimento adequados para
aqueles que orientam o trabalho pedagógico e são responsáveis por guiá-los na
elaboração de planos e programas de ensino. E, como outros educadores e pesqui-
sadores da RBEP, aqui estudados, descrevem a escola primária na década de 1950,
expondo seus reveses (diagnósticos) e formulam propostas na intenção de superá-
-los (prognósticos), tendo como foco da análise o que veiculam sobre a formação
e a atuação dos professores. Nessa busca, identificamos quem eram esses autores
e as posições que ocupavam.
Podemos afirmar que em um mesmo período, as explicações para o baixo
rendimento da escola ou seu insucesso podem não ser as mesmas. E, ainda que
propondo renovações pedagógicas, a justificativa para o insucesso escolar pode
incidir em diferentes fatores, dada a posição de quem a profere. É o que explica
Gualtieri (2021) ao analisar discursos sobre inovação pedagógica, nas décadas
de 1930 a 1950, proferidos por autores que ocupam posições diferenciadas no
sistema educacional, nos quais consegue identificar argumentos distintos e trans-
mutações de discursos “em função do lugar de que se fala” (GUALTIERI, 2021,
p. 290).

92 As informações obtidas sobre a trajetória de Hilda Taba foram extraídas do texto de Edgar Krull, dis-
ponível em: http://www.ibe.unesco.org/sites/default/files/tabas.pdf no qual não foi pos-
sível identificar a ligação de Hilda Taba com o Inep, embora tenha assinado o texto com Joel Martins,
não fica claro se sua participação no Curso de Especialistas em Educação para a América Latina se deu
diretamente em vínculo com o Inep ou apenas com a Unesco.

142
No entanto, na historiografia há um lugar comum que imputa um mesmo
discurso para a explicação do insucesso escolar em diferentes momentos. Patto
(2015) afirma que historicamente a responsabilização pelo fracasso escolar foi
atribuída ao aluno, à família e a seu modo de vida, até mesmo na RBEP, na déca-
da de 1950. Tal fato não foi confirmado por Silva (2020), ao estudar os discursos
sobre a escola seletiva na Revista, na década de 1950, bem como neste trabalho.
Um movimento diferente foi observado, ao analisarmos um conjunto de
textos da RBEP da década de 1950. Uma revista de natureza institucional, com
abrangência nacional, direcionada a um público amplo, em que as vozes dos auto-
res sugerem um esforço em convencer sobre a urgência dos problemas identifica-
dos na escola e no sistema de ensino, em demonstrar a centralidade do professor,
sua formação e atuação, em viabilizar as ações pretendidas, bem como dar a ver e
manter as já existentes: são também os “desejos de futuro”.

Considerações finais

Neste estudo, analisamos um conjunto de textos veiculados na RBEP, na


década de 1950, que caracteriza a escola primária a partir de suas insuficiências –
falta de professores apropriados, déficit de vagas para crianças em idade escolar –
e de suas ineficiências – baixo rendimento, com alta seletividade. Entre os autores
desses textos, ao discutirem as razões que levam à “má escola de ler e escrever”, há
os que põem foco no sistema, em sua incapacidade de resolver o problema do dé-
ficit de vagas, por formar mal o professor em centros que precisam ser atualizados
e reequipados e, na falta desse professor, autoriza o improviso, contratando leigos.
Há ainda os que põem foco na escola, dando proeminência ao impacto que tem
no sucesso do aluno, no rendimento escolar, o professor considerado desprepara-
do, utilizando metodologias de ensino e trabalhando com currículos e programas
tidos como inadequados para o público escolar. Todos, porém, priorizam a forma-
ção do professor como o principal antídoto para a “má escola”.
Os autores escolhidos têm em comum o fato de que produzem e defendem
os diagnósticos e os prognósticos sobre a educação a partir de posições institu-
cionais, de funções que executam e que os ligam e os mantêm com certa visão de
mundo. Em suas vozes, são nítidos os ecos das falas de Anísio Teixeira em seu
discurso de posse.
Fica nítido também o evidente esforço do diretor do Inep para “congre-
gar estudiosos dos fatos educacionais no país” e constituir uma rede, um sistema
de comunicação para fomentar uma “consciência comum” de envolvimento nas
questões do país, no caso, da escola e do ensino.
Essa consciência se traduz em representações que destacam os fatores in-
trínsecos ao processo educacional como principais responsáveis pelos prejuízos

143
ao bom funcionamento da escola. O peso que representa a criança e sua família
no baixo rendimento escolar é relativizado ou inexistente nos diagnósticos dos
técnicos e pesquisadores analisados.
Responsabilizar o sistema e a escola pelas disfunções educacionais marca
uma posição diferente se compararmos com o que veiculam outros impressos,
em outros momentos, em que família e criança estão entre as justificativas prefe-
renciais para o baixo rendimento escolar. É de se pensar o papel que essa rede de
comunicação teve na construção de outro entendimento.
Talvez caiba aqui traçar um paralelo com as reflexões de Darnton (1996)
quando chama a atenção para o fato de que os historiadores tratam a palavra im-
pressa como um registro e não como uma força ativa na história, um instrumento
para a criação de uma nova cultura política. No caso do impresso pedagógico
estudado, de criação de nova ou de outra cultura educacional.

Referências

ARAÚJO, M. M. Um capítulo da história intelectual dos anos de 1930 aos de 1950 e a


presença de Anísio Teixeira. Cronos, Natal-RN, v. 1, n. 2, p. 37–48, jul. / dez. 2000.

BAUZER, R. Caminhos que levam a aprendizagem. Revista Brasileira de Estudos


Pedagógicos, Rio de Janeiro, vol. 25, n. 61, 1956, p. 132–139. Disponível em www.
portal.inep.gov.br.

BRASIL. Decreto-Lei nº 580, de 30 de julho de 1938. Dispõe sobre a organização do


Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro,
30 jul. 1938. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.

BRASIL. Decreto-Lei nº 4.958, de 14 de novembro de 1942. Institui o Fundo Nacional


do Ensino Primário e dispõe sobre o Convênio Nacional de Ensino Primário. Diário
Oficial da União - Seção 1 - Página 16657 (Publicação Original), 14 de novembro de
1942. Disponível em: https://www2.camara.leg.br.

BRASIL. Decreto nº 19.513, de 25 de Agosto de 1945. Disposições regulamentares


destinadas a reger a concessão do auxílio federal para o ensino primário. Diário Oficial
da União - Seção 1 - Página 14234 (Publicação Original), 30 de agosto de 1945.
Disponível em: https://www2.camara.leg.br.

BRASIL. Decreto-Lei nº 8.529, de 2 de janeiro de 1946. Lei Orgânica do Ensino


Primário. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, Seção 1, p. 113, jan. 1946a.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br.

144
BRASIL. Decreto-Lei nº 8.530, de 2 de janeiro de 1946. Lei Orgânica do Ensino Normal.
Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, Seção 1, p. 116, jan. 1946b. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br.

BRASIL. Decreto-Lei nº 9.018, de 25 de fevereiro de 1946. Extingue a Divisão de


Ensino Primário do Departamento Nacional de Educação, do Ministério da Educação
e Saúde, e dá outras providências. Diário Oficial da União - Seção 1 - Página 2993
(Publicação Original), 27 de fevereiro de 1946c. Disponível em: https://www2.camara.
leg.br.

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, decretada pela Assembleia


Constituinte. Diário Oficial da União - Seção 1 - Página 13059 (Publicação Original),
19 de setembro de 1946d. Disponível em: https://www2.camara.leg.br.

BRASIL. Decreto nº 38.460, de 28 de dezembro de 1955. Institui o Centro Brasileiro de


Pesquisas Educacionais e centros regionais. Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1955.
Diário Oficial da União – Seção 1 –24/1/1956, Página 1337. Disponível em: https://
www2.camara.leg.br.

BRASIL. Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da


Educação Nacional. Brasília, 20 de dezembro de 1961. Diário Oficial da União (página.
11429, col. 1) 27 de dezembro de 1961. Disponível em: https://www2.camara.leg.br.

CALDEIRA, E. O problema da formação de professores primários. Revista Brasileira


de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, vol. 26, n. 64, 1956, p. 28–43. Disponível em
www.portal.inep.gov.br.

CAMPOS, P. de A. A escola elementar brasileira e o seu magistério. Revista Brasileira


de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 26, n. 64, 1956, p.94–131. Disponível em
www.portal.inep.gov.br.

CAPANEMA, G. Apresentação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de


Janeiro, v. 1, n. 1, p. 3–4, jul. 1944. Disponível em www.portal.inep.gov.br.

CARVALHO, M. M. C. de C; TOLEDO, M. R. de A. Os sentidos da forma: análise


material das coleções de Lourenço Filho e Fernando de Azevedo. In: OLIVEIRA,
Marcus Aurélio Taborda de (org.). Cinco estudos em História e Historiografia da Educação.
Belo Horizonte: Autêntica, 2007, pp. 89-110.

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Algés, Portugal:


DIFEL, Difusão Editoria, S.A. 2002.

DARNTON, R. Introdução. In: DARNTON, R; ROCHE, D. (orgs.). Revolução


impressa. A imprensa na França. 1775-1800. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1996, p. 15-17.

145
DARNTON, R. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014.

EDITORIAL. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p.


5–6, jul. 1944. Disponível em www.portal.inep.gov.br.

FREYRE, G. Palavras às Professoras Rurais do Nordeste. Revista Brasileira de Estudos


Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 28, n. 68, p. 40–50, Out./Dez. 1957. Disponível em www.
portal.inep.gov.br.

GANDINI, R. P. C.; RISCAL, S. A. Manoel Bergstrom Lourenço Filho. In:


FÁVERO, M. de L. A., BRITO, J. de M. (organizadores). Dicionário de Educadores
do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/MEC-Inep-Comped, 746–754, 2002.

GOUVEIA, A. J. A pesquisa educacional no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n. 1, p.


1–48, jul. 1971. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?pid=S0100-
15741971000100001&script=sci_arttext.

GUALTIERI, R. C. E. Métodos de ensino para a inovação pedagógica nas décadas


de 1930 a 1950. O que a “Revista de Educação” de São Paulo divulga? History of
Education & Children’s Literature, XVI, 2 (2021), p. 269-291.

GUALTIERI, R. C. E. Liberdade Esclarecida: a formação de professores nos anos


1930. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 52, p. 198-214, set. 2013

LANKENAU, T. de J. G. Paulo de Almeida Campos. In: FÁVERO, M. de L. A.,


BRITO, J. de M. (organizadores). Dicionário de Educadores do Brasil. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ/MEC-Inep-Comped, p. 888–892, 2002.

LOURENÇO FILHO, M. B. Preparação de pessoal docente para escolas primárias


rurais. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 20, n. 52, p. 8–17 out./
dez. 1953. Disponível em www.portal.inep.gov.br.

MARTINS, J.; TABA, H. Necessidade de analisar os objetivos do ensino. Revista


brasileira de estudos pedagógicos, Rio de Janeiro, vol. 30, n. 72, out/dez, 1958, p. 39–52.
Disponível em www.portal.inep.gov.br.

MENDONÇA, A. W. C. P. “Reconstrução” da escola e formação do “magistério


nacional”: as políticas do Inep/CBPE durante a gestão de Anísio Teixeira (1952-
1964). In: MENDONÇA, A. W. C. P.; XAVIER, L. N. (orgs.) Por uma política de
formação do magistério nacional: o Inep/MEC dos anos 1950/1960. Brasília: Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2008, p. 75-125.

MENDONÇA, A. W. C. P.; XAVIER, L. N O Inep no contexto das políticas do


MEC (1950/1960) In: MENDONÇA, A. W. C. P.; XAVIER, L. N. (orgs.) Por uma

146
política de formação do magistério nacional: o Inep/MEC dos anos 1950/1960. Brasília:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2008, p. 19-
38.

MENDONÇA, A. W. C. P.; XAVIER, L. N. (orgs.) Por uma política de formação do


magistério nacional: o Inep/MEC dos anos 1950/1960. Brasília: Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2008

MEUCCI, S. Gilberto Freyre no comando do Centro Regional de Pesquisas


Educacionais do Recife: educação em debate (1957 – 1964). Sociologia & Antropologia,
Rio de Janeiro, v.05.01: 129–155, abril, 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
sant/a/YrZHQnxsLTQsvrvgyRQfStb/?lang=pt&format=pdf.

MUSTAPHA, S. A. dos S. Uma atuação ocultada: Joel Martins no Centro Regional de


Pesquisas Educacionais de São Paulo (1956-1959). Revista de História e Historiografia
da Educação, Curitiba, Brasil, v. 2, n. 5, p. 142-160, maio/agosto de 2018.

NÓVOA, A. A imprensa de educação e ensino: concepção e organização do Repertório


Português. In: CATANI, D.B.; BASTOS, M.H.C. A imprensa periódica e a História da
Educação. São Paulo: Escrituras, 2002, p. 11-31.

PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar. Histórias de submissão e rebeldia.


4ª. ed. São Paulo: Intermeios, 2015.

PAULILO, A. L.; GIL, N. de L. Rendimento do ensino no Brasil: os problemas que


os números configuram e os usos das estatísticas de educação (1910-1938). Currículo
sem Fronteiras, v. 17, n. 1, p. 35–59, jan. /abr. 2017.

SILVA, A. P. de O. e. Juracy Silveira. In: FÁVERO, M. de L. A., BRITO, J. de M.


(organizadores). Dicionário de Educadores do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ/MEC-Inep-Comped, p. 664–673, 2002.

SILVA, J. P. de S. da. Percurso entre modernidades: trajetória intelectual de Eny Caldeira


(1912-1955). Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Paraná.
Curitiba, 2012.

SILVA, F. M. da. A escola seletiva como problema educacional. Uma leitura da Revista
Brasileira de Estudos Pedagógicos (1952-1961). Dissertação de Mestrado em Educação.
Universidade Federal de são Paulo. Guarulhos, 2020.

SILVEIRA, J. Considerações em torno do ensino da linguagem na escola primária.


Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, vol. 29, n. 70, 1958, p. 51–63.
Disponível em www.portal.inep.gov.br.

147
SOUZA, R. F. de, ÁVILA, V. P. da S. de. As disputas em torno do ensino primário
rural (São Paulo, 1931–1947). História e Educação [Online], Porto Alegre, v. 18, n. 43,
maio/ago. 2014, p. 13–32.

TANURI, L. M. História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação.


n.º 14, mai./jun./jul./ago., 2000, p. 61-88.

TEIXEIRA, A. Discurso de posse do professor Anísio Teixeira no Instituto Nacional


de Estudos Pedagógicos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, VOL. XVII, abril-
junho, n.o 46, 1952, p. 69-79.

TEIXEIRA, A. S. A escola brasileira e a estabilidade social. Revista Brasileira de


Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v.28, n.67, p.3–29, jul. /set. 1957. Disponível em
www.portal.inep.gov.br.

XAVIER, L. N. A Educação no Debate Intelectual dos anos 50/60. In: I Congresso


Brasileiro de História da Educação, 2000, Rio de Janeiro. Educação do Brasil: História
e Historiografia, 2000. v. 1.

148
2ª PARTE
IMPRESSOS DE DESTINAÇÃO PEDAGÓGICA

149
6. INSTRUIR A INFÂNCIA PELAS LIÇÕES MORAIS
E RELIGIOSAS: CONTOS BRAZILEIROS (1881), DE
GABRIELLA DE JESUS FERREIRA FRANÇA

Fernando Rodrigues de Oliveira

Introdução

Logrando o status de um dos mais importantes instrumentos de disse-


minação de valores e de efetivação de projetos formativos identificados com a
instrução das elites e do povo em geral, os livros escolares ocupam espaço funda-
mental e decisivo na organização da escola moderna brasileira.
Após a independência do Brasil, em 1822, no conjunto das urgências e
necessidades que se impôs à nova nação para que essa se organizasse como Es-
tado, à instrução pública coube o papel civilizatório dos brasileiros, de maneira
a moldar os cidadãos e produzir um tipo de aculturação que tornasse viável a
governabilidade do país. Como explica Faria Filho (2000), “[n]essa perspectiva, a
instrução como mecanismo de governo permitiria não apenas indicar os melhores
caminhos a serem trilhados por um povo livre, mas também evitar que esse mes-
mo povo se desviasse do caminho traçado” (p. 137).
Com isso, na medida em que a escola oitocentista foi se constituindo e
dando forma à cultura escolar que pôs fim ao modelo formativo concebido nos
marcos do espaço doméstico (FARIA FILHO, 2000), se impôs a esse disposi-
tivo a necessidade premente de materiais destinados à realização da instrução
primária. O entendimento era de que os artefatos materiais, sobretudo os livros,
tinham importante papel na transmissão de valores e saberes responsáveis por
conferir unidade ao povo brasileiro, bem como viabilizar o disciplinamento e o
controle dessa massa de indivíduos heterogêneos, modelando a prática docente
(BITTENCOURT, 2008; SCHUELER, 2002).
Nessa direção, argumenta Teixeira (2008) que o livro passou a ser concebi-
do como veículo responsável pela viabilização e sustentação da política conserva-
dora do governo imperial, como defendia Martin Francisco Ribeiro de Andrada,
membro da Assembleia Constituinte e mestre na Província de São Paulo:
Os compêndios destinados para o primeiro grau de instrução
encerrando em si elementos mais, e princípios de verdade geral-
mente reconhecida, que nunca experimentam a influência das
novas descobertas, devem ser compostos debaixo da vigilância
e inspeção do estado, porque desta forma sua doutrina nunca

150
será desnaturalizada, pela superstição ou negligência, e por isso
hão de ser de necessidades melhores. Podem, portanto, ser fei-
tos ou pelos mestres encarregados deste ensino, ou por particu-
lares, que queiram entregar-se a estes gêneros de trabalho em
benefício de sua pátria, voluntariamente ou por ordem superior
ou por dinheiro; podem mesmo traduzir-se alguns, que há em
outras nações cultas, particularmente a alemã, que mais se tem
assinalado nesta espécie de instrução, apropriando-se ao sistema
estabelecido neste plano, e depois fazê-los examinar, por aque-
la corporacão ou pessoas literatas e sábias, a quem o soberano
haja de confiar iguais exames. (MACHADO apud MOACYR,
1936, p. 137-138).

Dessa defesa pela vigilância e inspeção dos livros, frequente entre políticos
e intelectuais ligados à Instrução pública, a partir da segunda metade do século
XIX, associadamente à expansão da atividade editorial e ao crescimento do nú-
mero de escolas públicas criadas no país, esse dispositivo didático tornou-se alvo
sistematizado de controle e ordenamento por parte do Estado, sendo obrigatória
a sua inspeção e aprovação pelos administradores da Instrução Pública. Em face
disso, o período foi marcado por disputas e debates em torno da aprovação ou não
de novos livros para uso nas escolas primárias, tornando-se a chancela do governo
objeto de amplo desejo, importante instrumento de validação e propaganda des-
ses impressos e fruto de intrincadas relações de poder.
Mediante o exposto, este texto tem como objetivo contribuir para a com-
preensão do modo como os livros escolares oitocentistas estiveram associados ao
propósito de civilização e (com)formação de seu público destinatário, ao mesmo
tempo em que viabilizaram o ensino dos saberes elementares instituídos para a
instrução primária pelo governo Imperial. Para tanto, o enfoque recai sobre o
livro Contos brazileiros: o livro de Antonico (primeira série), de autoria da pro-
fessora e escritora Gabriella de Jesus Ferreira França, publicado em 1881, pela
Typographia do Apóstolo, no Rio de Janeiro.
Esse livro, além de ter gozado do privilégio de integrar a relação dos im-
pressos autorizados para uso nas escolas da época, com finalidade de transmitir
aos pequenos aprendizes lições de leitura moral e cristã, compõe o conjunto das
obras que marcaram o movimento em defesa dos livros literários e escolares “ver-
dadeiramente nacionais”, em oposição ao predomínio dos livros portugueses e
franceses (TAMBARA, 2002), corroborando para a “origem” da literatura infantil
brasileira (ARROYO, 1968).
Pelas razões apresentadas, entende-se que Contos brazileiros possibilita re-
conhecer indícios importantes sobre os ideais de criança, família, instrução e a
vida em sociedade nas últimas décadas do período Imperial brasileiro, dado seu
alinhamento às políticas do governo e ao ideal de educação da infância.

151
Dinâmicas de controle sobre a circulação dos livros didáticos no
século XIX: caminhos para a aprovação oficial de Contos brazileiros

Conforme apontam diferentes pesquisas sobre a instrução elementar no


século XIX brasileiro, a constituição de um sistema público e gratuito de ensino,
embora ensejado ainda no final do Império Português, ganhou normatividade e
caráter de política nacional com a independência brasileira, especialmente com a
aprovação da primeira lei geral do ensino, a Lei de 15 de outubro de 1827.
Dentre as diferentes providências que se deu a partir dela, determinou-se
a criação das “escolas de primeiras letras em todas as cidades, villas e logares mais
populosos do Imperio” (BRASIL, 1827, s.p.) e estabeleceu-se o ensino, para os
meninos, da leitura, da escrita, das operações aritméticas, das noções gerais de
geometria, da gramática da língua nacional e dos princípios da moral cristã e da
doutrina religiosa católica. Para as meninas, essa lei determinava os mesmos con-
teúdos, com exceção da geometria e com o acréscimo das prendas de economia
doméstica.
Além de fixar esses conteúdos de ensino, a Lei de 15 de outubro estabe-
leceu que as escolas de primeiras letras fossem de ensino mútuo, método que
vinha sendo divulgado no país desde 1808, tornando-o oficial em todas as escolas
públicas a partir de 1827 (SAVIANI, 2014).
O método de ensino mútuo, proposto e difundido pelo inglês Joseph
Lancaster a partir do trabalho do pastor anglicano Andrew Bell, pressupunha
regras determinadas, disciplina rigorosa, aproveitamento dos alunos mais adian-
tados como auxiliares de ensino e supervisão constante do mestre, o que resultava,
segundo seus defensores, em importante economia de recursos, otimização de
tempo de formação e generalização da instrução. Dessa maneira, esse método
compreendia uma “[...] poderosa arma na luta para fazer com que a escola atin-
gisse um número maior de pessoas” (FARIA FILHO, 2000, p. 141) e cumprisse
o papel do Estado de controle dos domínios formativos antes exclusivamente
domésticos.
Apesar da grande aposta que o método de ensino mútuo pareceria repre-
sentar, sobretudo pelas vozes de seus divulgadores, a realidade vivida nas Provín-
cias e no município da Corte evidenciou a inviabilidade de sua aplicação, como
atesta o relatório do Ministro do Império Bernardo Pereira de Vasconcellos, pro-
duzido em 1837 e apresentado à Assembleia Geral Legislativa em 1838:
Todavia os resultados do System a Lencasleriano não corres-
pondem á expeclação publica, quer no tempo, quer na perfeição.
E não he só no nosso paiz que isto se observa [...] He sabido que
o methodo Lencasteriano limita-se a huma instrucção grosseira,
por assim dizer, própria para as ultimas classes da sociedade, e
não se estende ao apuro, á delicadeza, á correcção, e ao calculo,
que na Grammatica, na Religião, e nos outros conhecimentos,
a civilisação hoje exige na instrucção primaria de todas as clas-
ses superiores áquella, as quaes, pelo inverso do que acontece
na Europa, abrangem toda a nossa população. Seja como for,
o Governo está disposto a não estabelecer Escola alguma de
Ensino Mutuo, senão quando tiver edifício com todas as pro-
porções necessarias para ella se montar rigorosamente no plano
do Systema, fechando desfarte a porta ás desculpas, com que
os enthusiastas delle se defendem contra as arguições dos seus
antagonistas. (VASCONCELLOS, 1838, p. 18).

No conjunto dos problemas destacados por esse e por outros ministros


para justificar a ineficiência do método de ensino mútuo, destacam-se os associa-
dos à carência de materiais didático-pedagógicos, à ausência de espaço adequado,
ao despreparo dos professores, aos baixos salários pagos aos que se dedicavam ao
ensino e à ausência de fiscalização das escolas (SAVIANI, 2014; FARIA FILHO,
2000).
Especificamente em relação ao primeiro problema, a carência material,
Batista e Galvão (2009) explicam que os livros praticamente inexistiam nas esco-
las da época, sendo os documentos de cartórios, cartas, a Constituição do Impé-
rio, o Código Criminal, a Bíblia e alguns compêndios de aritmética os principais
dispositivos utilizados para o ensino. Entre os poucos livros que circulavam nas
escolas, prevalecia a defesa pela vigilância e fiscalização por parte do Estado, sob
o argumento de se garantir a formação moral e religiosa adequada ao povo. Esse
aspecto era recorrente entre os administradores da instrução pública da época,
como se vê no relatório do ministro Joaquim Vieira da Silva Souza, de 1834:
Concluirei esta parte do presente artigo, ponderando a neces-
sidade de se fixarem os Compêndios de que se deve usar em
todas as Academias, Aulas, e Escolas Publicas do Império, em
quanto se não organisa hum Plano Geral de estudos. Este ob-
jecto não he de pequeno momento: elle interessa não so á ins-
trucção em si, mas também aos estudantes em particular, e ao
Estado, áquella, desterrando das classes alguns livros, que ja não
estão a par da Sciencia, de que tratão, como acontece nas Au-
las de Philosophia Racional e Moral, e substituindo-lhes outros
, que tem merecido a acceitação das Nações mais cultas; aos
segundos, poupando-lhes os atrazos, que de ordinário soffrem,
quando por qualquer motivo mudão de Professor; e ao ultimo,
firmando a certeza de que se não corrompe o espirito débil da
juventude, imbuindo-o em doutrinas falsas, ou perigosas, ou por
qualquer motivo prejudiciaes a ella, ou á Sociedade. O receio
de semelhantes abusos parece digno der tanta attenção, que o
Governo não duvidaria propor que essa medida se estendesse
ás Aulas, e Escolas particulares. Reflictamos, Senhores, que os

153
futuros destinos do Brasil pendem inteiramente da boa, ou má
direcçáo que se der aos espíritos da geração que começa a desen-
volver-se. (SOUZA, 1835, p. 13-14).

Embora o reconhecimento da necessidade de se inspecionar e fiscalizar os


livros adotados nas escolas de primeiras letras fosse matéria consensuada entre os
envolvidos com a administração da Instrução Pública, a normativa de 1827 incidia
mais diretamente apenas sobre a prescrição dos conteúdos e a definição da doutrina
católica como base para a confecção desses materiais. A produção de uma regula-
ção mais diretiva foi ensaiada em anos subsequentes, com a promulgação do Ato
Adicional de 1834, que atribuiu às presidências de províncias a competência de le-
gislar sobre o ensino elementar (TEIXEIRA; SCHUELER, 2009). No entanto, a
legislação produzida pelas províncias nem sempre garantia a devida fiscalização dos
livros adotados no país, uma vez que elas apresentavam diferenças consideráveis a
depender da localidade e dos recursos disponíveis.
Nesse contexto, explica Bittencourt (2008) que:
Ficou evidente para as autoridades governamentais que não seria
suficiente definir normas para a confecção do livro didático. Os
administradores públicos deveriam permanecer vigilantes quan-
to à adoção das obras “adequadas” à idade e ao público escolar.
Os livros eram fundamentais porque evitariam que professores
usassem quaisquer textos impressos ou mesmo manuscritos que
poderiam tratar de assuntos “subversivos” aos desígnios educa-
cionais, além de causarem problemas metodológicos. (p. 53).

Com isso, em 1854, a administração central estabeleceu importante re-


forma na Instrução Pública no município da Corte, a qual ficou conhecida como
“Reforma Luiz Pedreira Coutto Ferraz”, fixada pelo Decreto nº. 1.331-A, de 17
de fevereiro desse ano. Essa reforma, embora relativa ao município da Corte,
tinha o papel de servir como modelo para as Províncias (SAVIANI, 2014), con-
tribuindo para que em muitas outras localidades se tomassem providências seme-
lhantes ou de mesmo teor.
A partir dessa reforma, dentre as diversas mudanças realizadas na Instru-
ção Pública na Corte, instituiu-se a obrigatoriedade da inspeção dos livros escola-
res oficialmente adotados nas escolas. Consta no artigo 4º do Decreto nº. 1.331-
A, de 1854, que competia ao Inspetor Geral e ao Conselho Diretor93 rever todos
os livros até então adotados no município do Rio de Janeiro, fazê-los corrigir e,
se necessário, substituí-los por novos livros. Somente a partir dessa fiscalização
os materiais aprovados e autorizados pela Inspetoria Geral da Instrução Primária

93 O Conselho Diretor era formado pelo Inspetor Geral, pelo Reitor do Colégio de Pedro II, por dois
professores públicos e um particular com distinguido exercício do magistério e mais dois membros
nomeados pelo governo (BRASIL, 1854).

154
e Secundária da Corte poderiam ser oficialmente admitidos para uso nas escolas
do Rio de Janeiro.
Em face dessa nova regulamentação, os livros escolares em circulação ou
que viriam a ser produzidos deviam se ajustar à definição das novas matérias de-
terminadas para o ensino primário elementar, conforme o estabelecido no artigo
47 do Decreto nº. 1.331-A, de 1854. Compreendiam essas matérias: instrução
moral e religiosa, leitura e escrita, noções essenciais de gramática e sistemas de
pesos e medidas. Apenas para as escolas voltadas ao ensino feminino, além dessas,
deveria ser acrescida matéria sobre bordados e trabalhos de agulha.
Em relação à avaliação e aprovação dos livros, o Decreto nº. 1.331-A, de
1854, estabeleceu rito que compreendia: análise dos originais por pessoas indica-
das pelo Conselho Diretor, normalmente professores “idôneos” e de “confiança”
do governo, com destacada atuação nas escolas primárias cariocas (TEXEIRA,
(2008); e parecer deliberativo do Conselho Diretor, publicado em jornais e veícu-
los de comunicação oficial. Para os livros devidamente aprovados após esse rito,
eram conferidos aos seus autores o pagamento de um prêmio por parte do go-
verno imperial, tal como previsto no artigo 95 do Decreto nº. 1.331-A, de 1854.
Como se pode verificar, esse processo de fiscalização dos livros e atribuição
de uma chancela governamental evidencia o controle e a importância desse tipo
de material didático no contexto da escolarização moderna, uma vez que o espaço
ocupado por ele, totalmente regulado e legitimado pela administração central, era
crucial para o sustento das práticas de ensino e de imposição de novos costumes
e cultura ao povo.
Mas, não era apenas o interesse instrucional e civilizatório que estava em
jogo na execução desse dispositivo legal. O processo também envolvia dinâmicas
políticas complexas, pois a posição ocupada pelos autores na esfera social, edu-
cacional e administrativa também concorriam para o aceite e circulação desses
materiais. Sobre esse assunto, identifica Bittencourt (2004) que os autores dos
livros escolares normalmente eram intelectuais ligados ao poder e pertenciam às
elites política e cultural do país. Dessa maneira, verifica-se que o direito à pena
ou a autorização de fala não era acessível a todos e todas, bem como demarcava
parcela restrita e privilegiada da sociedade.
Também as questões mercadológicas e o prestígio dos autores e editoras
influíam no processo de adoção e compra desses livros por parte do Governo.
Sobre isso, explica Teixeira (2008) que:
[...] no caso dos autores mais “renomados”, que possuíam suas
obras impressas por editoras mais prestigiadas, a negociação
geralmente era feita diretamente entre as respectivas editoras
e o governo [...] Já no caso dos menos “renomados”, a iniciati-
va de 50 impressão corria por conta dos próprios autores, que

155
recorriam às pequenas tipografias, livrarias e editoras menos
prestigiadas, sendo possível perceber que, neste caso, tendo o
livro aprovado, comumente o próprio autor vendia suas obras, ao
governo ou ao público avulso, tendo as obras, inclusive, preços
diferentes. (p. 50).

Essa segunda situação, dos autores menos renomados, parecer ter sido a
de Contos brazileiros, de Gabriella de Jesus Ferreira França. Impresso em sua 1ª
edição pela Typographia do Apóstolo, uma editora sem grande prestígio, ligada
às publicações religiosas instalada na Rua Nova do Ouvidor, n. 16 e 18, no Rio
de Janeiro, Contos brazileiros foi submetido pela autora, em 1881, para apreciação
do então Inspetor Geral da Instrução Pública, José Bento da Cunha Figueiredo,
como se verifica em carta-resposta por ele redigida:
Illma. e Exma. Sra. D. Gabriella Ferreira França
Corte, 1° de Março de 1881.
Acabo de receber, com muito agradecimento, o livrinho de que
se dignou fazer-me presente, acompanhado de sua presada carta
de hoje.
Começando a lêl-o, fui logo ao fim, attrahido pelos bons concei-
tos que a obra encerra, escriptos em linguagem simples, pura e
castiça, de certo mui própria para interessar e alimentar a curio-
sidade dos meninos, imprimindo-lhes na memória palavras e
usos especiaes da índole dos nossos incolas, que muito convém
zelar.
Estou certo que o Livro de Antoniço merecera, como me me-
receu, o mais benevolo acolhimento do Conselho de Instrucção.
Resta-me fazer mil votos para que V. Ex., não só por gloria
sua, como também para suscitar a emulação das nossas hábeis
patrícias, continue a cultivar seu bello talento nesse gênero de
litteratúra domestica, de que não temos ainda bastante fartura.
Sou com particular consideração
De V. Ex.
Humilde servo e respeitador
JOSÉ BENTO DA CUNHA FIGUEIREDO.
(FIGUEIREDO apud FRANÇA, 1893, p. 8).

Após receber o livro para análise e já externando posicionamento favorável


para a sua aprovação, Contos brazileiros foi oficialmente aprovado pelo Conselho
Diretor alguns meses depois, conforme nota publicada no Jornal do Commercio
(RJ), em junho de 1881: “O Ministério do Império approvou, a fim de ser adop-
tado nas escolas públicas de instrucção primária o trabalho escripto e publicado
por D. Gabriella de Jesus Ferreira França, denominado Livro de Antonico, contos
brazileiros.” (COMMERCIO, 1881, p. 1).
A partir dessa aprovação, o livro passou a ser propagandeado em diferentes
jornais com circulação no Rio de Janeiro, como o Jornal do Comércio e O Apóstolo:

156
O LIVRO DE ANTONICO

Contos brazileiros, por Gabriella de Jesus Ferreira França


approvados pelo conselho de instrução pública e adoptados pelo
governo para as escolas. Vendem-se na rua do Senado, n. 11,
sobrado; na rua de São José, n. 60, e n’esta typographia. Preço:
avulsos 1$500 em porção 1$000 (APÓSTOLO, 1881, p. 4).

Paralelamente a isso, Gabriella de Jesus Ferreira França efetuou pedido ao


Governo Imperial para que seu livro fosse adotado nas escolas públicas primárias,
apresentando quatro exemplares, conforme determinava o regulamento. Dentre
os pedidos que fez, em agosto de 1882, a autora apresentou à Assembleia Legisla-
tiva Provincial ofício para compra de 4 mil exemplares para as escolas da provín-
cia do Rio de Janeiro, o que parece não ter sido aceito de imediato por ausência
de recurso. De todo modo, nos anos subsequentes, foi possível identificar diver-
sos pedidos de compra de Contos brazileiros94, enviados pela autora ao governo
central, muitos dos quais respondidos com manifestação positiva da Assembleia
Legislativa Provincial, como é o caso do pedido efetuado em 1884:
O presidente da província fica autorizado pela verba consignada
no tit. 59 do orçamento 3,000 exemplares da obra, adoptada
para as escolas da província, Contos Brazileiros, de que é autora
D. Gabriella de Jesus Ferreira França. – Pedro Luiz Soares de
Souza (BRASIL, 1884, p. 548).

Com a autorização de compra e a gradativa ampliação de sua circulação,


Contos brazileiros passou a ser recomendado pelas autoridades da Instrução Públi-
ca como livro útil e de interesse às escolas primárias, como se verifica no relatório
sobre o ensino primária no município da Corte, datado de 1883:
Existe em depósito grande quantidade de livros que se eleva a
mais de 30.000 volumes. A maior parte, porém, não serve para
o ensino por tratarem de objetos que não lhe dizem respeito
diretamente, ou por serem redigidos sobre planos defeituosos.
[...] Dentre aquelles livros alguns existem mais interessantes,
os quaes reservo para entrarem na composição de bibliothecas
escolares, e são: A Fábulas de Lafontaine, traduzidas pelo Barão
de Paranapiacaba; Contos Brazileiros, da Snra. Ferreira França;
Os deveres do homem, de Sylvio Pellico, traducção do Dr. Castro
Lopes; Leitura em voz alta, de Legouvé, traducção do Barão de
Macaúbas. etc. (BRASIL, 1883, p. 342).

94 Esses pedidos de compra encontram-se registrados nos Annaes da Assembleia Legislativa Provincial.

157
Também em 1885, a Assembleia Legislativa Provincial determinou a
substituição dos livros até então em uso95 pelos de autoria de Gabriella de Jesus
Ferreira França, Francisco de Paula Barros e Félix Ferreira, pois não havia recurso
suficiente para comprar todos eles (TAMBARA, 2003).
Tendo conquistado esse espaço de prestígio no circuito dos livros escolares
no Rio de Janeiro, Contos brazileiros também circulou em outras localidades do
país, com adoção oficial em escolas primárias das províncias de Minas Gerais,
Pará, Pernambuco, Bahia, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No caso de Per-
nambuco, Galvão (2009) explica ter sido esse o único livro de autoria feminina
com circulação no século XIX, fato que permite compreender o lugar de impor-
tância conquistado por Gabriella de Jesus Ferreira França no âmbito dos impres-
sos com destinação escolar. Quem foi, então, essa mulher “infiltrada” nesse nicho
predominantemente masculino?

Uma mulher no circuito dos livros oitocentistas

Nascida presumivelmente na primeira metade do século XIX, Gabriella de


Jesus Ferreira França é originária de uma família de homens com relevante in-
fluência no Brasil oitocentista. Sua mãe, Isabel Helena Velloso de Oliveira Fran-
ça, era filha do desembargador Antonio Rodrigues Veloso de Oliveira. Seu pai,
Ernesto Ferreira França, filho do médico e deputado Antonio Ferreira França,
também foi deputado, senador, conselheiro do governo, embaixador do Brasil na
França e ministro do Supremo Tribunal de Justiça. Seu irmão mais velho, Ernes-
to Ferreira França Filho, foi professor da Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco e também desembargador, enquanto o mais novo, Henrique Ferreira
França, atuou presumivelmente como médico.
Embora os dados sobre a vida, formação escolar e atuação de Gabriella
de Jesus Pereira França sejam escassos, atesta Blake (1899) que ela foi “dotada
de educação esmerada” (p. 170), tendo recebido parte de sua formação, conforme
indicam alguns vestígios, na França.
Sobre esse aspecto, Louro (2004) explica que as filhas de famílias privile-
giadas do início do século XIX recebiam instrução sobre leitura, escrita, noções
básicas de matemática, piano e francês normalmente em suas próprias casas, com
professores particulares, ou em escolas religiosas. A finalidade dessa educação
centrava-se no cuidado do lar, do marido e dos filhos. Dessa maneira, prevale-
cia a ideia de que as mulheres deveriam ser mais “educadas” do que “instruídas”
(LOURO, 2004).

95 De acordo com Tambara (2003), eram esses livros: Contos de Schmidt; Segundo livro de leitura do Dr.
Abílio; Terceiro livro de leitura do Dr. Abílio; Catechismo de doutrina Cristã; e História Sagrada.

158
Na opinião de muitos, não havia porque mobiliar a cabeça da
mulher com informações ou conhecimentos, já que seu destino
primordial – como esposa e mãe – exigiria, acima de tudo, uma
moral sólida e bons princípios. Ela precisaria ser, em primeiro
lugar, a mãe virtuosa, o pilar de sustentação do lar, a educadora
das gerações do futuro. A educação da mulher seria feita, por-
tanto, para além dela, já que sua justificativa não se encontrava
em seus próprios anseios ou necessidades, mas em sua função
social de educadora dos filhos ou, na linguagem republicana,
na função de formadora dos futuros cidadãos. (LOURO, 2004.
p. 570).

Apesar da boa educação que recebeu, pelas esparsas informações localiza-


das, Gabriella de Jesus Ferreira França não se casou96, tampouco teve filhos, tendo
exercido sua “vocação” como “formadora dos futuros cidadão” na caridade e na
instrução primária.
Sobre a caridade, possivelmente em decorrência da educação recebida na
França, aproximou-se da ordem religiosa do Bom Pastor, tendo intercedido na
década de 1880 junto à Madre francesa para que a ordem pudesse vir para o
Brasil. Embora essa primeira investida não tenha dado certo, em 1891, Gabriella
de Jesus Ferreira França ajudou a fundar o asilo Casa Bom Pastor, destinado à
“regeneração de mulheres do bem e da virtude” (BRASIL, 1922), custeando parte
dos investimentos necessários para isso.
Sobre a instrução pública, Gabriella de Jesus Ferreira França foi proprie-
tária de estabelecimento de ensino (SILVA, 2007), tendo atuado também como
professora de instrução primária, de inglês, de francês e de italiano. Essa atuação
se deu mediante autorização do Inspetor Geral da Instrução Primária da Corte,
tendo sido ela dispensada do exame para comprovação de aptidão:
Capacidade profissional: foram dispensados das provas de capa-
cidade profissional, à vista da informação do inspector geral da
instrucção primaria e secundaria, de accôrdo com o parecer do
conselho director [...] D. Gabriella Ferreira França, para dirigir
collegio e ensinar as matérias da instrucção primaria, francez,
inglez e italiano. (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 1875, p.
2).

Em face desses aspectos, é possível notar que Gabriella de Jesus Ferreira


França, dada sua condição privilegiada e pertencimento à elite fluminense, repre-
sentou no século XIX brasileiro uma voz feminina relevante, não necessariamente

96 Dentre os vestígios que possibilitam essa afirmação, tem-se diversos registros em jornais, de pedidos
de pagamento de pensão à Gabriella de Jesus Ferreira França, em decorrência da morte de seu pai.
Também nas notas de falecimento dessa professora e escritora, não há qualquer menção a esposo ou
filhos. A assinatura dessas notas e dos convites para missa de 7º dia são dos irmãos, mãe, tios e primos.

159
contra a ordem estabelecida, mas como porta voz de mulheres católicas, dotadas
de instrução não recorrente para esse público, que agiram em defesa dos valores
morais, de certa manutenção do status quo e preservação do ideal cristão. Consta
em um de seus obituários que ela também atuou em prol da causa abolicionista,
bem como na defesa acirrada dos interesses católicos.
Sobre esse último aspecto, é exemplo a manifestação que ela e outras duas
mulheres encabeçaram em favor da alteração dos princípios que deram origem ao
Decreto nº. 181, de janeiro de 1890, que instituiu a lei sobre o casamento civil97,
como consta em notícia publicada no jornal Civilisação: periódico Hebdomada-
rio, ligado ao Órgão dos Interesses Católicos do Maranhão:
As senhoras fluminenses dignamente representadas pelas
Exmas. Viscondessa de Pirassinunga, D. Ilidia Drummond e
D. Gabriela Ferreira França dirigiram-se hontem ao palacete do
ilustre generalissimo chefe do governo provisório e despuzeram
nas mãos de S. Exe. uma representação pedindo que seja adiada
a execução do decreto sobre o casamento civil, até que o Con-
gresso Nacional delibere a respeito, de modo definitivo. [...] Eis
a representação: Ao Exm. Generalissimo chefe do governo pro-
visório. Generalissimo, confiando em que algumas medidas de
certo não emanaram do vosso coração recto e bem intencionado
seriam reconsideradas e abolidas, esperamos; mas eis se appro-
xima a éphoca que olhamos com toda a angustia que desperta
em nosso coração a ideia dessa medida a que dão o nome de
casamento civil. Chegará em poucos dias o prazo em que deverá
vigorar essa lei, que tem despertado em todo o nosso paiz o
mesmo sentimento de dôr e repulsão, como bem o manifestam
os inúmeros protestos contra elle dirigidos. Julgamos portanto
que também para nós chegou o momento em que devemos, nós
brazileiros desta capital elevar igualmente a nossa voz. Genera-
lissimo, essa lei offende a nossa consciência de catholicas, pois
nos obriga embora celebremos o nosso consorcio conforme as
leis da Igreja a passar por uma formalidade que opprime a nossa
delicadeza um juiz civil; e magôa dolorosamente o nosso cora-
ção, pois, se pela graça de Deus, protestamos não reconhecer
como verdadeiro se não o matrimonio-sacramento instituído
por Nosso Senhor Jesus-Christo e como ordena a Santa Igreja
Catholica Apostolica Romana, á qual nós também vós, cidadão
Generelissimo, temos a dita de pertencer, a nossa honra e o nos-
so decôro commum, estremecem com a lembrança dos grandes
males que vão recahir sobre a sociedade e sobre algumas que
talvez por ignorância se deixem illudir. Lembrae-vos que nós
formamos a parte a amis numerosa, e é pois a maioria do povo,

97 Entre as mudanças fixadas por esse decreto, que gerou o incomodo manifesto por Gabriella de Jesus
Ferreira França, está a determinação de pena para religiosos que realizassem uma celebração matrimo-
nial antes da efetivação do casamento civil.

160
que vos pede, reconsidereis essa medida aliás inutil. Ouvi pois o
clamor geral que todos os Estados se eleva, suspendei essa lei e
os catholicos brazileiros que gemem entrevendo o futuro a dis-
solução na família, a desmoralisação da sociedade e mil outros
males, abençoarão o vosso nome. (CIVILISAÇÃO...,1890, p.
4).

Em decorrência desse alinhamento aos interesses católicos, Gabriella de


Jesus Ferreira França se declarava opositora da maçonaria, dados os ideais an-
ticlericais dos maçons, especialmente no que tange à defesa desses pelo ensino
laico no século XIX. Esse aspecto, inclusive, parece perpassar o seu primeiro livro,
publicado em 1879, o romance Maria do Patrocínio ou Patrocínio de nossa Senhora:
romance original brazileiro por uma fluminense. Comenta Blake (1899) que “[...]
a autora, que é inimiga da maçonaria, mostra [nesse livro] quanto é salutar e va-
liosa a protecção da Virgem Maria.” (p. 170).
Em relação à publicação de Maria do Patrocínio ou Patrocínio de nossa Se-
nhora, cumpre destacar que com ela Gabriella de Jesus Ferreira França teve seu
nome registrado no seleto rol das mulheres romancistas do século XIX, contri-
buindo para romper com a interdição à fala e à escrita feminina que vigorava
no período. Como explica Telles (2004), até o século XIX, o campo literário era
exclusivamente masculino, sendo às mulheres reservado apenas o espaço e as fun-
ções do lar. A conquista do direito à voz e ao espaço público por parte delas em
muito se deveu à gradativa ampliação da escolarização feminina, que perimiu às
mulheres falar por si e fazer o uso da pena em jornais, revistas e livros (TAVA-
RES; TABAK, 2007).
No caso de Gabriella de Jesus Ferreira França, esse direito não se restringiu
ao romance com destinação ao público feminino. Ela também fez uso da pena
para “falar” com o público infantil, mediante a publicação do livro escolar Contos
brazileiros. Essa investida se deu com base em sua experiência como professora e
em consonância com a ideia de que a mulher tinha uma inclinação natural para
o trato com as crianças, portanto, educadora nata, a quem se podia (e devia) con-
fiar a educação escolar dos pequenos (LOURO, 2004). Sobre isso, explica Louro
(2004) que:
Se o destino primordial da mulher era a maternidade, bastaria
pensar que o magistério representava, de certa forma, “a exten-
são da maternidade”, cada aluno ou aluna vistos como um filho
ou uma filha “espiritual”. [...] Para tanto seria importante que o
magistério fosse também representado como uma atividade de
amor, de entrega e doação. A ele acorreriam aquelas que tives-
sem “vocação”. (p. 574-575).

161
Esse entendimento sobre o papel da mulher na esfera do magistério foi
também a justificava para a gradativa saída dos homens das salas de aula (LOU-
RO, 2004) e de outras funções associadas ao ensino, como a escrita de livros esco-
lares. Embora por um longo período ainda tenha prevalecido a autoria masculina
na publicação desse tipo de livro, gradativamente as mulheres foram também
ocupando esse espaço, algumas alçando certo prestígio no mercado dos impressos
com destinação escolar. E esse parece ser o caso de Gabriella de Jesus Ferreira
França, com as reedições de Contos brazileiros.
Após a 1ª edição, publicada em 1881 pela Typographia do Apóstolo, e a
2ª edição, publicada em 1882, pela mesma editora, em 1893, Contos brazileiros foi
reeditado em sua 3ª edição, pela Livraria Clássica de Alves & Comp. Essa mu-
dança de editora é um indício da projeção de Gabriella de Jesus Ferreira França
como autora de livro escolar, pois, diferentemente da Typographia do Apóstolo,
a Livraria Clássica de Alves & Comp. era uma das principais editoras do país
à época, responsável pela publicação da maioria dos livros adotados nas escolas
brasileiras até o início do século XX (BRAGANÇA, 2004).
Apesar do lugar de destaque de Gabriella de Jesus Ferreira França na es-
crita de um livro escolar, seu investimento maior como escritora se deu com os
romances. Depois da publicação de Maria do Patrocínio ou Patrocínio de nossa
Senhora e Contos brazileiros, essa professora fluminense teve publicado um novo
romance: Ernestina ou scenas da vida contemporânea, impresso na oficina dos pa-
dres Salesianos (FLUMINENSE, 1888). Sobre esse livro, também destinado ao
público feminino, o jornal O Apóstolo publicou a seguinte nota em 1888:
Ernestina ou scenas da vida contemporânea, escripto por D. Ga-
briela França, uma das mais intelligentes e illustradas senhoras
de nossa sociedade e publicado no collegio dos Salesianos. E’
um dos melhores romances que se têm publicado entre nós,
quer por suas scenas naturaes, quadros bem descriptos, lingua-
gem fácil e amena, quer pela mais escrupulosa moralidade. E’,
sem dúvida, um livro que honra a biblioteca de qualquer senho-
ra que se dê á literatura. (APÓSTOLO, 1888, p. 2).

A partir dessas três publicações, Gabriella de Jesus Ferreira França teve


seu nome registrado entre os “Litteratos, poetas, jornalistas, escriptores, autores
de livros, repórteres, collaboradores de jornaes e revistas” entre o final do século
XIX e início do século XX, conforme consta no Almanak Laemmert, publicado
em 1911. Dessa maneira, ainda que ela não tenha logrado o reconhecimento his-
tórico, como ocorreu com outras mulheres escritoras e autoras de livros didáticos
do século XIX, entende-se que a atuação de Gabriella de Jesus Ferreira França,
em especial a publicação de Contos brazileiros, representa “relevante serviço” à
instrução primária oitocentista na formação de “ideias positivas na cabeça dos

162
meninos”, mediante a transmissão de valores e princípios tidos como essenciais
para a época (CRUZEIRO; APÓSTOLO apud FRANÇA, 1893). Em face dis-
so, passo a apresentar, então, o projeto formativo da infância presente em Contos
brazileiros.

As lições de moralidade aos “jovens patrícios” em Contos brazileiros

Dedicado à Nossa Senhora da Conceição, Contos brazileiros é composto


por introdução, 28 contos e conclusão, perfazendo 144 páginas. O subtítulo –
“Livro de Antonico” – decorre do fato de o livro ter sido pensado como forma
de registro das histórias que a tia contava para seu sobrinho, Antonico, de modo
que os ensinamentos contidos nelas pudessem servir de exemplo a outros “jovens
patrícios”:
– Titia, eu desejava que os outros meninos ouvissem estas histo-
rias, porque eu, quando titia conta a de um bom menino procuro
ser tambem muito bom para me parecer com elle, e quando falla
de um máo menino digo: Eu não quero ser assim! Mas como se
há-de fazer para todos os outros ouvirem e aproveitarem?
– Espera, Antonico, respondeu a tia, esse desejo nasce de
um bom coração; hei-de procurar realizal-o. [...]
‘E este livrinho que apresento a meus jovens patrícios, de-
sejando que façam como Antonioco, isto é: fujam de ser
como os meninos mãos, e procurem imitiar os meninos
bons, cujas histórias lerem. (FRANÇA, 1893, p. 9-11).

Em função desse contexto, as narrativas de Contos brazileiros se dão por um


narrador heterodiegético, cuja voz se apresenta como a de uma mulher adulta, a
da tia de Antonico, com predominância do discurso direto: por parte das crianças,
para evidenciar a ingenuidade, a curiosidade e o desejo de aprender, por parte dos
adultos, para instruir e corrigir os pequenos.
No conjunto das 28 histórias apresentadas em Contos brazileiros, despon-
tam lições morais e religiosas, que visam a inculcar nas crianças determinados
valores considerados virtuosos para a época.
Dentre esses valores, destaca-se o temor a Deus e o reconhecimento da
bondade do criador, que são tratados já no primeiro conto, indicando a impor-
tância desses temas em relação aos demais. Nesse conto, a criança Arthur, que dá
nome à história, questiona a mãe sobre a criação do “céu dourado e cor-de-rosa”,
das “lindas árvores”, das “florezinhas roxas e amarelas”, das “laranjas tão doces”
e dos canários, de forma que ela responde ao filho que o responsável por essas
maravilhas é Deus. Não contente, Arthur ainda questiona sobre a criação dos
homens e sua mãe lhe explica que também o responsável foi Deus, com a apre-

163
sentação da teoria do criacionismo: “[...] Elle tomou um pouco de barro e com
elle tornou o primeiro homem, que se chamou Adão, e depois inspirou-lhe uma
alma immortal.” (FRANÇA, 1893, p. 14).
Diante das explicações da mãe, Arthur chega à conclusão de que a bonda-
de de Deus é infinita, pois permitiu a vida aos homens e as belezas da natureza,
motivo pelo qual todos deveriam ser tementes a ele:
– Então, mamãi, Deus é muito bom, não é? [...]
– Então, continuou o menino, nós demos ser muito bons para
Deus, pois Elle é tão bom para nós, não é assim, mamãi? [...]
– Sim, Arthur, devemos ser-lhes muito gratos e corresponder
á sua immensa bondade, procurando cumprir aquillo que para
Elle nos pôs no mundo, isto é: amando-o e servindo-o [...]
– Mamãi, eu hei de fazer o que Deus quer; hei de ser sempre
bom. (FRANÇA, 1893, p. 14-15).

Seguidamente a essa ênfase no temor e gratidão a Deus, como expressões


virtuosas de maior importância na vida das crianças, Contos brazileiros destaca a
dedicação aos estudos como atividade decisiva na formação do caráter dos “futu-
ros cidadãos”. No segundo conto, intitulado “A cada da vóvó”, os irmãos Augusto
e Rosinha iriam visitar a casa da avó, porém, Alberto, o terceiro dos irmãos, não
poderia ir, pois estava de castigo por estar em falta com as lições da escola.
– Fica? Porque, mamãi? Coitado! Pois elle ha de perder o bello
passeio no bond, a visita a vovó, as tangerinas, os bolinhos de
aipim tão gostosos que vovó faz? Que pena, mamãei!
– Eu também tenho pena, mas que queres, minha filha! Alberto
há tres dias que não sabe a lição, os mestres estão zangados, teu
pai descontente.
Elle deve saber que os meninos preguiçosos não são recompen-
sados como os bons e amigos de estudar! (FRANÇA, 1893, p.
16-17).

Como se pode verificar pelo diálogo entre as crianças e a mãe, o não cum-
primento das tarefas escolares é digno de punição, nesse caso, a perda do direito
ao passeio. Esse aspecto demonstra que o castigo aplicado a Alberto não apenas
tinha como finalidade “endireitar” um possível desvio de caráter futuro, como
também servir de exemplo para os demais. Nesse contexto, o conto evidencia um
outro tipo de lição moral, essa de natureza religiosa.
Informados do castigo de Alberto e cientes da vergonha e falta que repre-
sentava o descumprimento das tarefas escolares, a irmã, Rosinha, intercedeu por
Alberto, de modo a exaltar a nobreza do perdão.
– Porém, mamãi, disse Rosinha [...], se eu pedires por ele?
– Se pedires por ele? Respondeu a mãi pensativa, mas. [...]

164
– Sim mamãi? Continhou Rosinha [...] Perdôe por esta vez, e
Alberto se emendará, sou eu a fiadora.
– Pois bem, respondeu a mãi, está perdoado! Meu filho agradece
á tua irmã e não a deixes ficar mal. E tu, Rosinha, sê sempre boa;
quem é bom ganha por si e para os outros. (FRANÇA, 1893,
p. 17-18).

A atitude de Rosinha tem uma associação direta à da Virgem Maria, que,


conforme registra a tradição cristã, é quem intercede pelos homens diante de
Deus, pedindo pelo perdão em nome dos pecadores.
Nessa linha dos ensinamentos de moral religiosa, a caridade e a bondade
também são temas das histórias do “livro de Antonico”. Em “A esmola”, três
crianças decidiram comprar doces no tabuleiro de um menino. Enquanto esco-
lhiam os doces, perceberam o choro do vendedor, que havia sido engado por outra
criança, que comeu alguns dos doces e não quis pagar pelo consumo. Com medo
de apanhar, o vendedor-criança chorava copiosamente, sem saber como explicaria
o ocorrido em casa. Eis, então, que um dos meninos decidiu dar-lhe a moeda de
duzentos réis que portava, sem que os demais vissem:
Ernesto nada disse, mas sem que os irmãos o notassem, largou a
mãi-benta no tabuleiro, e mettendo o bonito nickel na mão do
rapaz disse-lhe baixinho:
– Não chores mais, não has-de apanhar! Este nickel é para pa-
gares o que te falta.
Ninguém vio a bôa acção de Ernesto, mas Deos que está no
Céo a vio e não a deixou sem recompensa, pois Elle nunca deixa
de galardoar os meninos compassivos e esmoleres. (FRANÇA,
1893, p. 51).

A atitude do menino busca dar ênfase à moral cristã em relação ao silêncio


sobre a caridade, bem como a crença de que os que doam com bondade são sem-
pre recompensados por Deus.
Ainda em relação à caridade e à bondade, talvez os principais símbolos da
fé cristã, outro conto se desenvolve com a finalidade de externar a importância de
se cultivar esses sentimentos. Em “Izabel ou a menina compassiva”, a protagonis-
ta, obediente e “amiga de fazer o bem”, demonstra sua preocupação em sempre
ajudar os pobres, ainda que seja com pequenas esmolas. Nesse conto, em certo
dia, a mãe de Izabel recebeu pedido por abrigo de uma “preta velha”, Joaquina,
que havia sido escrava de sua família. Vendo a situação da mulher, já próxima do
fim da vida, a mãe resolveu acolhe-la, dando-lhe comida e roupa. Izabel, contente
pelo gesto caridoso e exemplar da mãe, diariamente levava café para Joaquina,
como forma de retribuição pelo tempo em que essa “serviu tanto a vovó”. A atitu-
de de Izabel revela o ideal do aprendizado pelo exemplo, já que a menina, ao ver a
bondade e caridade da mãe, agia com o mesmo propósito. Também a narrativa re-

165
vela a intencionalidade de transmissão do princípio cristão da recompensa divina
pela caridade: “Deus recompensa a caridade, e as bênçãos dos pobres e desvalidos
são sempre por Elle ouvidas” (FRANÇA, 1893, p. 27).
Em meio à ênfase dada aos sentimentos de caridade e de bondade, como
responsáveis por aproximar os homens de Deus, o conto “Izabel ou a menina
compassiva” toca numa outra questão importante para a época: a construção de uma
ideia de igualdade entre pretos e brancos. Esse aspecto possivelmente se deve aos
princípios abolicionistas de que Gabriella de Jesus Ferreira França partilhava, bem
como a necessidade de se construir uma imagem de modernidade para o Brasil pós
abolição dos escravos. Essa temática, bastante cara e conflituosa para os políticos
e intelectuais da época, também está presente em outro conto, “Arthur”, em que o
protagonista questiona a mãe se o amigo André, um “pretinho”, também foi criação
de Deus. A resposta da mãe, reafirmando a ideia de igualdade, destaca que “Deus é
pai de todos, tanto dos bancos como dos pretos” (FRANÇA, 1893, p. 14).
Os pecados capitais também figuram como pano de fundo das lições
de Contos brazileiros. Exemplo disso é a o conto “A menina teimozinha”, que
retrata episódio trágico com Arlinda, que tinha “gênio de furiazinha”, era “tão
teimosa” e extremamente gulosa. Desobedecendo a todos, a menina comeu
em excesso numa festa, cometendo o pecado capital da gula, o que resultou
numa grave indigestão. A solução, segundo o médico, era óleo de rícino, mas
Arlinda se recusou de todas as maneiras a tomar. O desfecho dessa teimosia
foi o castigo fatal:
Por fim de contas, a menina continuou a teimar e não tomou
o remédio; veio-lhe um attaque de cabeça e convulsões e ficou
muito mal! Então a mãi arrependeu-se, mas era tarde, e d’ahi a
dous dias a bonita Arlinda estava enterrada! Eis ahi o que acon-
tece aos meninos teimosos e que abusam do carinho de seus
pais! (FRANÇA, 1893, p. 55).

Ainda no âmbito do reforçamento dos valores morais e cristãos, além do


temor a Deus, da caridade, do perdão e dos pecados capitais, tematizam-se em
Contos brazileilos a primeira comunhão, a confissão, a penitência e a oração diá-
ria como importantes símbolos da fé católica e da aceitação dos mandamentos
da igreja apostólica romana. Nesse sentido, as “histórias de verdade” ganham
relevância na instrução da meninada, em oposição às ficções centradas em seres
mágicos.
Esse tensionamento entre realidade x ficção é retratado no conto “D. Rita”,
em que as crianças solicitam à senhora que dá nome ao texto a contação de uma
história. No entanto, eles ponderam pela preferência por histórias reais, pois elas
são exemplares para eles:

166
– Uma história! uma história! gritaram os meninos todos a uma
voz.
– Mas qual há de ser? Perguntou D. Rita com toda a paciência;
querem a da – Bella e da féra? –
– Ora, essa não, disse Gaspar, é tão sabida!
– A da – Gata-borralheira? –
– Todos sabem essa, disse Mariquinhas, já não tem graça.
– A da – Capinha-roxa? –
– Tão antiga?
– Não, não senhora! Queremos uma historia que possa ter acon-
tecido, e não de gigantes e fadas.
– E a da Baratinha, - não querem?
– Ora, essa é para creanças pequeninas, disse o Julinho, que já
tinha sete annos [...]
– Pois então Sra. D. Rita, eu lhe peço o favor de contar uma his-
toria de quando a senhora era pequena; eu gosto tanto quando
nos diz: No tempo que eu era pequenina!
(FRANÇA, 1893, p. 84-85).

Diante do pedido das crianças, D. Rita contou suas experiências de me-


nina, de modo a exaltar os bons costumes e os bons sentimentos que aprendeu
com uma madrinha, servindo esses como exemplos para meninada que a ouvia
atentamente:
– [...] Emfim a minha madrinha dizia-me tanta cousa
bonita, que eu sempre sahia de junto dela com vontade de
ser muito boa [disse D. Rita]
– Tal e qual o que nos acontece quando eu estou com a senhora,
desse Quinóta.
(FRANÇA, 1893, p. 88).

Se, por um lado, Contos brazileiros delineia seu projeto formativo na repre-
sentação dos sentimentos virtuosos pelo bom exemplo, pelos comportamentos a
serem imitados ou seguidos, por outro, a punição severa também é por vezes o
caminho que se toma para moralizar os pequenos leitores. Exemplo disso é o des-
fecho fatal da gulosa Arlinda, no conto “A menina teimozinha”. Outro exemplo
é o conto “Bond”, em que os irmãos Julio e Henriquinho percebem uma movi-
mentação incomum na rua de casa e descobrem ser a razão o atropelamento de
um conhecido pelo bondinho. A vítima do atropelamento, Nhônhô, era filho do
charuteiro e teve a perna quebrada porque não cumpria as orientações de sua mãe
quando tomava o transporte.
Diante do acontecido, relata a tia de Julio e Henriquinho:
– E´o que acontece, disse a tia, a estes meninos que andam todo
o dia a correr pela rua; a pobre mulher ainda outro dia disse me
que não podia com o filho; que elle, quando voltava da escola em
logar de vir direto para casa, punha-se a vadiar pela rua, a correr

167
com os moleques e com os outros meninos ociosos como elle! A
pobre mãi bem dizia que alguma desgraça havia de acontecer!
(FRANÇA, 1893, p. 29).

Assustado com o atropelamento de Nhônhô e pensativo sobre a advertên-


cia da tia, Henriquinho reconhece e se arrepende de suas peraltices, prometendo
não mais descumprir os ensinamentos dos adultos:
Henriquinho ficou calado; elle lembrou-se que também sua mãi
sempre lhe recommendava que não pulasse do bond sem haver
parado de todo, e que elle algumas vezes tinha desobedecido e
pulado logo, e até ás escondidas d’ella, tinha procurado subir á
trazeira do bond estqndo elle a correr! Agora dava graças a Deus
por não lhe ter acontecido cousa alguma.
D’ahi em diante nunca mais desobedeceu e tomou sempre os
conselhos de sua mãi, e, quando via o pobre menino, seu vizinho,
arratando a perna de páu, dizia comsigo mesmo:
– Este aprendeu á sua custa; eu fui feliz em ter aprendido sem
me custar nada! (FRANÇA, 1893, p. 29).

Ainda nessa perspectiva da punição associada aos comportamentos e sen-


timentos indesejados, o conto “O lampeão de Kerosene” mostra a desobediência
de Américo em relação à orientação da mãe, de não mexer com o instrumento
inflamável, já que isso era muito perigoso para uma criança. Teimoso e desobe-
diente, o garoto contraria a advertência, ocasionando um desfecho trágico:

– Hei de mostrar a mamãi que não faz mal nenhum eu


bulir neste lampeão; ora vejam, que mal póde haver nisso?
E pronunciando estas palavras estende a mão para pegar
nelle; aconteceu porém, que um dos seus dedos tocou no
vidro que estava muito quente; o menino fugindo depres-
sa com a mão, bateu no lampeão, o qual cahindo, entrou o
kerosene incendiado sobre a mesa!
Americo assustado do que havia feito, em vez de correr
logo e chamar quem acudisse, pois sua mãi lhe perdoaria
tudo, quis ver se podia apagar o fogo, mas eis que a cham-
ma atêa-se na manga de sua jaquetinha e sobe, sobe. Ah!
Desgraçado menino! Já não foi mais tempo! A pobre mãi
acode aos gritos de angustia de seu filho; debalde porém o
infeliz Americo expirava no meio de cruellissimas dores,
dizendo com voz kjá quisi extincta, a seus irmãozinhos
que chorando rodeavamo seu leito de morte:
– Não desobedeçam nunca a mamãi! De eu tivesse obe-
decido não morria!. (FRANÇA, 1893, p. 91-93).

168
Essas situações radicais demonstram a severidade moral presente em Con-
tos brazileiros, de modo que as punições para as crianças que se aproximavam dos
comportamentos e sentimentos tidos como maus e não se arrependiam deles era
a morte. Esse tipo de artifício tinha como finalidade a tentativa de inibir qualquer
tipo de conduta que pudesse significar um “desvio” de caráter ou descumprimento
dos deveres morais e civis do bom cristão por parte das crianças.
Em meio a essas lições de moralidade, os contos de “Antonico” também
abordam questões com a explicita intenção instrutiva, tratando de temas relacio-
nados à natureza e aos símbolos de nossa cultura, que conferem uma espécie de
identidade nacional. Nesse intento, algumas histórias se configuram como lições
sobre temas variados, como: a mandioca, em que se explica o processo de extração
da farinha, do amido, do beiju, da goma e da tapioca; o algodão, em que se explica
a sua origem e sua importância na produção dos tecidos; o bicho da seda, em que
se explica sobre a extração dos fios que dão origem a esse tecido; a carnaúba, em
que se destaca sua função medicinal, sua importância na produção da cera, bem
como o uso da palha para confecção de chapéus; a seringueira, em que se destaca
sua importância para a produção de borra; a cana-de-açúcar, em que se explica
o processo de cultivo e extração do açúcar; o comércio, em que se explica sobre a
importância das transações comerciais para o progresso do país; e o café, em que
se explica também sobre o cultivo dessa fruta, sua origem e sua importância para
o país.
De modo geral, esses contos buscam demonstrar o valor da escolarização
como meio de instrução e desenvolvimento da inteligência e como forma diverti-
da de ocupação do tempo. Ou seja, verifica-se a prevalência da ideia da instrução
útil e agradável, com lições que educam e distraem ao mesmo tempo. Esse aspecto
fica evidente em diversos contos, como em “Algodão”:
[...] com o estudo, a observação e a indústria, não só se alcançam
muitas vantagens, como também se gozam muitas innocentes e
amenas distracções. Não são os vãos passatempos que entretem
o espírito; quase sempre produzem cansaço e inquietação. Ao
redor de nós temos innumeros objetos, que nos fornecem não
só a instrucção, mas tambem momentos de verdadeiro prazer.
Aprendam minhas filhas, a não procurar longe de si, o que po-
dem achar na vida domestica e no centro de suas famílias.

Ainda em relação aos contos com finalidade instrutiva, é importante des-


tacar que neles há uma prevalência majoritária de personagens masculinas. Esse
aspecto denota a explicita intenção de reafirmar que os assuntos de natureza ins-
trutiva, em especial os que se voltam à lavoura e à indústria, são de interesse mais
útil aos homens. No tocante às meninas, os contos em que a finalidade instrutiva
aparece isso se dá em decorrência das ocupações tipicamente femininas, como o

169
bordado. Exemplo é o conto “Algodão”, em que a protagonista se diz aborrecida
por ter que esperar duas horas para sair com pai, por conseguinte, é orientada pela
mãe a ocupar o tempo ocioso fazendo um bordado.
– Não se deve esperdiçar nem um minuto, quanto mais duas
horas, minha filha; o tempo perdido não aproveita a ninguem.
Toma o exemplo de tua irmã, ella também vai sahir e entretando
aproveita o tempo; olha para o seu trabalho; enquanto abres a
bocca, persegues o gato, atormentas o chachorro e te aborreces,
ella já bordou uma rosa toda inteira na linda almofada que está
fazendo. (FRANÇA, 1893, p. 29).

Na medida em que a menina realiza o bordado, a mãe a questiona sobre a


origem do algodão, transmitindo-lhe uma lição sobre a origem e a importância
desse produto para o ramo dos tecidos. Destaca a mãe da personagem que é o
algodão que permitia a produção de todas as vestimentas, bem como do tecido
que as mulheres bordavam.
Ainda nessa lógica das instruções tipicamente femininas, registra-se em
Contos brazileiros a importância de as pequenas cuidarem, desde cedo, de suas
vestimentas, da casa e dos objetos pessoais. Essas lições dão enredo ao conto “A
menina demazelada”, em que a pequena Eliza é alertada pela mãe sobre a neces-
sidade de a filha ser mais cuidadosa, evitando a negligência e o desmazelo. Para
isso, a mãe recomenda que a filha siga o exemplo da vizinha, Rosinha, que mesmo
sendo de família desabonada, vivia “aceadinha”, com vestidos sem “nódoas” ou
“rasgões”, não era “vadia” e sempre ajudava nos afazeres domésticos. Eliza, porém,
não seguiu os conselhos da mãe, sendo punida posteriormente com o impedi-
mento de receber um presente de sua madrinha.
Como se verifica, Contos brazileiros reforça os valores oitocentistas em re-
lação ao papel da mulher e do homem dentro da sociedade, especialmente no que
tange à formação e à instrução.
Retornando à linha das lições com finalidade instrutiva, verifica-se em
Contos brazileiros algumas narrativas que destacam a exaltação dos “heróis nacio-
nais” e da História do Brasil.
Em “Christovinho”, por exemplo, o protagonista, que dá nome ao texto,
revela à mãe e ao irmão que não mais irá brincar, pois tem nome de um grande
homem e como tal deve se portar. Nas trocas de farpas e provocações entre as
crianças, a mãe explica que ela e o pai escolheram para os filhos nomes de santos
e “homens virtuosos e ilustres”, pois já seria um começo para que se tornassem
pessoas de grandeza. Assim, recomenda a mãe ao pequeno Christovinho:
Procura, pois, meu filho, imitar a Christovão Colombo, que,
além de ser um grande navegane, foi também um varão cheio
de virtudes. Porém, para imital-o, não basta só desejar, é preciso

170
querer deverás e trabalhar; a vontade e o trabalho, ajudados pela
graça divina, vencem todas as dificuldades! (FRANÇA, 1893,
p. 24).

Em relação à História do Brasil, o conto “A gaveta da vovó” retrata episó-


dio em que a avó resolve arrumar uma de suas gavetas, contando, para isso, com
a ajuda dos netos. Após a arrumação, a avó resolve premiar os netos, mas esses
deveriam antes responder perguntas sobre História do Brasil. Com isso, a avó faz
perguntas sobre: a fundação da cidade do Rio de Janeiro; o descobrimento do
Brasil; e a designação do primeiro Governador Geral do Brasil.
Nesse conto é curioso notar que a perguntas de cunho histórico são feitas
apenas aos meninos. Para a única menina presente na narrativa, a avó não faz uma
pergunta de cunho instrutivo, mas afetivo, reforçando a ideia de que às meninas
era mais importante a boa educação que a boa instrução:
– Para uma boa menina chamada Maricota que é ainda peque-
nina para saber muito, mas que terá o moringue e os retalhinhos
de seda, se responder a uma pergunta que vou fazer.
– Qual é, vovó, qual é?
– Se gostas muito de tua vovozinha.
– Muito, muito, respondeu a amável menina, lançando-se nos
braços da avó e beijando-a termamente! (FRANÇA, 1893, p.
115).

A questão histórica é também retratada de forma sintética no conto “Ria-


chuelo”, em que se exalta os feitos dos brasileiros na Guerra do Paraguai.
Por fim, ainda no conto “Riachuelo”, o último do “livro de Antonico”, a
temática dos ofícios ganha destaque.
Nesse conto, quatro meninos conversam entre si sobre o ofício de solda-
do, de médico e de advogado e argumentam sobre as benesses, respectivamente,
de servir ao Estado Imperial, de salvar os moribundos e de defender inocentes.
Nesse debate, um dos meninos revela seu desejo pelo caminho do sacerdócio,
pois considerava essa a mais “sublime missão” de um homem. Dentre as razões
para isso, destaca o menino a importância dos missionários na catequização dos
indígenas, retirando esses da incivilidade e selvageria:
[...] Ministro de um Deus de bondade, elle reconcilia o peca-
dor, consola o moribundo com a esperança certa de uma vida
melhor, e. e.. acrescentou mais baixo, não é verdade, vôvô, que lá
longe, nos sertões, há ainda tantos índios, tantos selvagens que
não conhecem a Deus? Pois eu quero ir instruil-os, cathecisal-
-os, ensinar-lhes a conhecer e a amar a Deus. Oh! Que ventura
ser um apostolo! E além disso eu também sou brasileiro e amo
muito a meus patrícios, e não é uma obra boa, ir tornar ven-
turosos esses pobres índios que são brasileiros também? Não

171
acha, vôvô, que nós temos mais obrigação ainda de ir civilizar e
colonizar a esses do que aos outros? (FRANÇA, 1896, p. 135).

Ao exaltar o papel colonizador e civilizador dos padres católicos, também


se exalta a ideia da morte pela pátria como um tipo de dever civil. Dessa maneira,
pondera o avô, que acompanhada o debate entre os meninos, que não importava
qual seria o ofício escolhidos por eles, desde que prevalecesse “o cumprimento dos
deveres do Estado” e que se permitisse todo o resto à vontade de Deus.
Mediante esse conjunto de lições religiosas, morais e instrutivas, dedica-
das às “famílias que zelavam a boa instrucção de seus filhos”, Contos brazilileiros
encerra-se com síntese dos ensinamentos representados em suas histórias, com
indicação de um pedido da tia-narradora aos leitores e às leitoras do livro de
Antonico:
Promettei-me então, meus queridos meninos e meninas, an-
tes de nos apartarmos [...] Os meninos devem ser piedosos,
cheiso de santo temor de Deus, que os apartará do mal; devem
amar a religião e partical-a. Devem respeitar seus pais, os seus
superiores, e enfim, todos aquelles que ou pela sua idade, ou
pelo caracter que os reveste, são dignos de veneração. [...] Não
devem nunca mentir, e devem acostumar-se a ter palavra [...]
Devem amar o trabalho e o estudo, pois a ociosidade é mãe de
todos os vícios, e o estudo bem dirigido nos alcança muitos bens
[...] Devem enfim ser amáveis e polidos. Enquanto ás meninas
devem tambem ser piedosas, modestas e simples em suas ma-
neiras, alegres sem dissipação, porém, nunca se intromettendo
nas conversas dos outros. Deve procurar ser arranjadas, fugir do
desmazelo, occupar-se nos pequenos trabalhos próprios de sua
idade, ser humildes, meigas e pacientes, imitando assim a Maria
Santíssima, modelo perfeito das donzelas christãs [...] (FRAN-
ÇA, 1893, p. 140-142).

Um livro de leitura corrente para a “boa instrucção”: algumas


considerações finais

Produzido como impresso destinado à leitura corrente de meninos e meni-


nas que frequentavam a 1ª série da escola primária no final do século XIX, Contos
brazileiros se caracteriza, conforme categorização proposta por Batista e Galvão
(2009), como um livro de modelo formativo, centrado na transmissão de valores,
que associa as práticas de leitora a conteúdos, morais, cívicos e ideológicos. Ou
seja, trata-se de um tipo de livro escolar que utiliza-se do ensino da leitura para
inculcação de certos modos de pensar, querer e agir, coerentemente com os valo-
res morais da época.

172
Esses valores morais se apresentam em Contos brazileiros em lições com
finalidade explicita de “zelar pela boa instrução”, “inoculando” nos pequenos lei-
tores: o sentimento de temor e gratidão a Deus; a prática da caridade e o cultivo
da bondade; o respeito à natureza; a obediência; a dedicação aos estudos; a honra
aos mais velhos; o afastamento dos pecados capitais; o empenho no trabalho e o
distanciamento do ócio; o reconhecimento dos heróis nacionais; o aprendizado
da história do Brasil; e o senso de dever no cumprimento dos compromissos com
a pátria.
Para cumprir a missão de transmitir esses valores morais, apresenta-se em
Contos brazileiros duas estratégias narrativas: a representação dos bons exemplos,
como modelo a ser seguido, portanto, com histórias que sempre apresentam um
desfecho feliz ou digno; e a representação dos maus exemplos, como tipos de
comportamentos e sentimentos medíocres e abomináveis do ponto de vista moral
e religioso, por isso, histórias com desfechos trágicos, como a morte.
Na construção desse intento formativo de Contos brazileiros, cumpre-se
destacar, em relação ao foco narrativo e o discurso direto das personagens adultas,
a prevalência da voz feminina. Na grande maioria das situações, são mães, tias
ou madrinhas que ensinam as crianças sobre os sentimentos que devem cultivar,
sobre os comportamentos que devem ter e sobre os conhecimentos que devem
buscar aprender. O uso do discurso direto com vozes de personagens masculinas
é bastante pontual, em situação em que se trata dos ofícios e dos produtos decor-
rentes da lavoura, que se associam ao ideal de modernidade do Império brasileiro
da segunda metade do século XIX.
Esse aspecto reforça a ideia da mulher como aquela “predestinada” a educar
e instruir as crianças, como “extensão da maternidade” (LOURO, 2004), espe-
cialmente no que tange às lições morais e religiosas. Também confirma o ideal
pedagógico presente nas prescrições de ensino da legislação oitocentista, sobre
o entendimento de que alguns saberes eram de interesse mais direto do públi-
co masculino (comércio, indústria, história nacional, lavoura...), enquanto outros
eram característicos da “natureza” feminina (bordado e cuidados domésticos).
Também a observação do espaço representado em Contos brazileiros revela
aspecto importante de seu projeto instrutivo. Todas as histórias se passam em
ambientes domésticos, sobressaindo-se o espaço micro do interior das casas. Esse
tipo de representação reforça a ideia do lar como espaço privilegiado de forma-
ção moral e religiosa das crianças, sendo as mães as principais responsáveis pela
tarefa de orientação dos filhos, de preparação dos futuros homens da nação e de
manutenção da família distante dos distúrbios e perturbações do mundo exterior
(LOURO, 2004).
Outro aspecto importante de se notar na construção narrativa das histórias
presentes em Contos brazileiros é o uso do diminutivo, sobretudo no nome ou no

173
trato das personagens crianças. Esse artifício linguístico age como símbolo de
refoçamento da menoridade da infância, enfatizando a importância da constante
vigilância, da orientação e da instrução por parte dos adultos para se evitar desvios
de caráter ou formação de “maus pensamentos”.
Em face dos aspectos aqui apresentados, pode-se afirmar que a “boa ins-
trucção” preterida pelas lições morais e religiosas de Contos brazileiros se mostra
alinhada ao ideal de educação do povo e de construção do futuro da nação tal
como almejada o Governo Imperial, haja vista a sua aprovação e adoção oficial
como “antídoto” aos “maus livros”. Dessa maneira, também pode-se afirmar que
Contos brazileiros representa, em grande medida, os valores culturais e ideológicos
inerentes à sociedade brasileira oitocentista, reforçando um modelo de instrução
primária calcada nos princípios morais e religiosos e na manutenção da ordem e
dos costumes vigentes à época.

Referências

APÓSTOLO, O. O livro de Antonico...Rio de Janeiro, 20 de jul. 1881a.

APÓSTOLO, O. Ernestina...Rio de Janeiro, 21 de nov.1888.

ARROYO, L. Literatura infantil brasileira: ensino de preliminares para sua história e


suas fontes. São Paulo: Melhoramentos, 1968.

BATISTA, A. A. G.; GALVÃO, A. M. O. Livros escolares de leitura no Brasil: elementos


para uma história. Campinas: Mercado de Letras, 2009.

BITTENCOURT, C. Livro didático e saber escolar (1810-1910). Belo Horizonte:


Autentica, 2008.

BLAKE Sacramento. Diccionario biobliographico do Brasil. RJ: Imprensa Nacional,


1899.

BRAGANÇA, A. A Francisco Alves no contexto da formação de uma indústria


brasileira do livro. Anais... Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial, 1,
2004, Rio de Janeiro. São Paulo: Edusp, 2004.

BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827. Manda crear escolas de primeiras letras... Rio
de Janeiro, 1827. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-
1899/lei-38398-15-outubro-1827-566692-publicacaooriginal-90222-pl.html

BRASIL. Decreto nº 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854. Approva o Regulamento


para a reforma do ensino primario e secundario do Municipio da Côrte.

174
Rio de Janeiro, 1854. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/
decret/1824-1899/decreto-1331-a-17-fevereiro-1854-590146-publicacaooriginal-
115292-pe.html

BRASIL. Ministério do Império. Relatório da Repartição dos Negócios do Império. Rio


de Janeiro: Typographia Nacional, 1883.

BRASIL. Ministério do Império. Relatório da Repartição dos Negócios do Império. Rio


de Janeiro: Typographia Nacional, 1884.

BRASIL. Assistência pública e privada no Rio de Janeiro (Brasil). História e Estatística.


Commemoração do Centenário da Independência Nacional. Rio de Janeiro:
Typographia do Annuario do Brasil, 1922.

CIVILISAÇÃO. Periódico Hebdomadario. As mulheres fluminenses. Maranhão, n. 506.


28 de jun. 1890.

COMMERCIO, O. O Ministério do Império approvou... Rio de Janeiro, jun. 1881

DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO. Capacidade profissional... Rio de Janeiro, 12 de


fev. 1875.

FARIA FILHO, L. M. Instrução elementar no século XIX. In: LOPES, E.; VEIGA,
C.; FARIA FILHO, L. M. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica,
2000.

FLUMINENSE, O. Recebemos um volume... Rio de Janeiro, 21 de nov. 1888.

FRANÇA, G. J. F. Contos brazileiros: livro de Antonico (primeira série). 3. ed. Rio de


Janeiro: Livraria Clássica de Alves & Comp., 1893.

GALVÃO, A. M. O. A circulação e uso do livro escolar de leitura em Pernambuco no


século XIX. In: BATISTA, A. A. G.; GALVÃO, A. M. O. Livros escolares de leitura no
Brasil: elementos para uma história. Campinas: Mercado de Letras, 2009.

LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORI, M. (Org.). História das
mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

MOACYR, P. A instrução e o Império: subsídios para a história da educação no Brasil –


1823-1853. Vol. 1. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.

SAVIANI, D. O legado educacional do “Breve Século XIX Brasileiro. In: SAVIANI,


D.; ALMEIDA, J. S.; SOUZA, R. F.; VALDEMARIN, V. T. O Legado educacional do
século XIX. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2014.

175
SCHUELER, A. F. M. Forma e culturas escolares na cidade do Rio de Janeiro:
representações, experiências e profissionalização docente em escolas públicas primárias.
(1854-1889). 2002. 280f. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2002.

SILVA, Alexandra Lima da. As redes dos livros didáticos: autores, livreiros, editores e
público leitor na cidade do Rio de Janeiro (1854-1931). 2007. Mimeografado.

TAMBARA, E. A. C. Trajetórias e natureza do livro didático nas escolas de ensino

primário no século XIX no Brasil. História da educação. v. 6, n. 11, 2002.

TAMBARA, E. Livros de leitura nas escolas de ensino primário no século XIX no


Brasil. Anais... Reunião Anual da ANPEd. 26. 2003.

TAVARES, E. D.; TABAK, F. M.; Literatura e História no romance feminino


do Brasil do século XIX: Úrsula. In: SEMINÁRIO NACIONAL MULHER
E LITERATURA, 12.; SEMINÁRIO INTERNACIONAL MULHER E
LITERATURA, 3., 2007, Anais... Ilhéus, 2007.

TEIXEIRA, G. B.; SCHUELER, A. F. Livros para a escola carioca no século XIX:


produção, circulação e adoção de textos escolares de professores. Revista Brasileira de
História da Educação. n. 20. p. 136-164. Mai./ago. 2009.

TEIXEIRA, G. B. O grande mestre da escola: os livros de leitura para a escola primária


da capital do Império Brasileiro. 2008. 237f. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2008.

TELLES, N. Escritoras, escritas, escrituras. In: DEL PRIORI, M. (Org.). História das
mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

SOUZA, J. V. da S. Relatório da Repartição dos Negócios do Império apresentado à


Assembleia Geral Legislativa na sessão ordinária de 1835. Rio de Janeiro: Typografia
Nacional, 1835. Disponível em: < http://bndigital.bn.br/acervo-digital/brasil-
ministerio-imperio/720968>

VASCONCELOS, B. P. Relatório da Repartição dos Negócios do Império apresentado


à Assembleia Geral Legislativa na sessão ordinária de 1838. Rio de Janeiro: Typografia
Nacional, 1838. Disponível em: < http://bndigital.bn.br/acervo-digital/brasil-
ministerio-imperio/720968>

176
7. OS MÉTODOS DE SOLFEJO NA EDUCAÇÃO
MUSICAL NAS ESCOLAS PRIMÁRIAS DO ESTADO
DE SÃO PAULO (1890 – 1920)

Elias Moraes dos Santos Junior

Introdução

O período das primeiras reformas republicanas da instrução pública no


estado de São Paulo é marcado por um processo de renovação e progresso em re-
lação à educação do período monárquico. Mediante nova organização da escola-
rização primária, encontra-se também a proposição de novos métodos de ensino,
pautados em novos parâmetros e bases epistemológicas, que foram sendo incor-
porados no cenário paulista, na medida em que também se encontravam em plena
efervescência na Europa e nos Estados Unidos. Com isso, foram sucedendo-se
diversas reformas na instrução pública paulista, focadas tanto nas organizações
internas das escolas, quanto nos métodos de ensino nelas adotados (SOUZA,
2009, p.27).
Nesse contexto, para melhor compreender o debate metodológico instau-
rado no ensino primário paulista no início da República, faz-se necessário com-
preender discussões sobre os métodos na virada do século XVIII para o XIX.
Nesse período, houve um grande debate pedagógico, envolvendo os defensores
dos métodos individual, simultâneo e mútuo. Dentre estes, o método mútuo
passou a ganhar certo destaque a partir do entusiasmo da divulgação européia
sobre o método de André Bell e Joseph Lancaster. O método mútuo, adotando
uma concepção particular de classe, baseando-se na utilização de alunos como
monitores, organizando os alunos em pequenos grupos (SOUZA, 2009, p.38),
foi também assimilado e amplamente posto em prática e discutido nas aulas de
música, principalmente no contexto europeu98.
A partir da segunda metade do século XIX, a grande inovação pedagógica
que passou a entrar em voga é o método intuitivo. Possuindo base epistemológica

98 Dentre os autores de livros didáticos de música no contexto europeu defensores do ensino mútuo,
Emanuele Imbimbo, professor de música vocal nascido em Nápoles, publica em 1821 o livro Observa-
tions sur l’enseignement mutuel appliqué à la musique, uma apologia ao uso do método com observações
técnicas de sua aplicação nos contextos da música escolar. Alexis de Garaudé, autor explorado aqui
posteriormente, coloca-se em diálogo com o método corrente, escrevendo e seu Methode complete de
chant, um excerto introdutório destinado às escolas de música, denominado Réflexions générales sur
l’enseignement du chant, et moyens de faire usage de cette méthode dans les diverses écoles de musique, dites
enseignement mutuel, méloplaste, &c.

177
no Empirismo, teoria do conhecimento que visava ao domínio da natureza pelo
homem, estabelecendo o conhecimento como capacidade humana de conhecer
racionalmente o mundo sensível.
Os propositores do método intuitivo na Europa e nos Estados Unidos
acreditavam na capacidade de reverter a ineficiência do ensino, sendo que a prin-
cipal falha apontada por eles seria a de uma ênfase na aprendizagem a partir da
memorização e da abstração, impondo a repetição ao invés da valorização da
compreensão. Essas críticas vão para além do aspecto metodológico, buscando
na escola uma função política de estabilização do regime republicano, possuindo
uma função vital na difusão dos valores burgueses e da organização cultural, social
e econômica (VALDEMARIN, 2004, p.104.).
Há, portanto, dentro dos pressupostos epistemológicos do método intui-
tivo, uma busca por um “[...] ideal de formação humana socialmente elaborado, a
seleção de valores culturais e políticos a serem consolidados, a disposição do co-
nhecimento em sequências de atividades” (VALDEMARIN, 2004, p.24), sendo
o papel da escola:
[a] formação de tipos específicos de raciocínios e na construção
da cultura escolar, com ênfase nos aspectos filosóficos, nortea-
dores das prescrições sobre o que e como ensinar, que se con-
substanciam no processo de transposição didática. (VALDE-
MARIN, 2004, p.25)

Nesse cenário de mudanças epistemológicas e metodológicas no âmbito da


instrução primária, no que concerne especificamente sobre o ensino de música,
entre o século XVIII e XIX, verifica-se também uma grande efervescência do
debate sobre como promover o ensino musical. Expoente desse debate são os ver-
betes escritos por Jean-Jacques Rousseau e a abordagem dada por ele ao ensino
musical na obra Emílio, ou da educação, que resultaram em um debate no campo
epistemológico entre o autor e Jean-Philippe Rameau, episódio conhecido como
a Querelle des Bouffons. Este episódio, tendo por pano de fundo as discussões
epistemológicas do empirismo, deram base à elaboração do Solfejo como prática
de ensino. Consistindo no aprendizado da teoria musical por meio da vocalização,
onde o aluno pronuncia a nomenclatura das notas em relação ao vetor tempo,
realizando a subdivisão do valor das notas de acordo com a métrica apresentada,
o solfejo foi amplamente utilizado no ensino de música nas escolas primárias de
São Paulo do final do século XIX até a extinção do ensino musical das escolas
públicas pela lei nº 5.692/71.
Pelo exposto, o presente capítulo visa, em um primeiro momento, localizar
as disputas estéticas e epistemológicas ocorridas no campo musical a partir da
Querelle des Bouffons e a ênfase dada à vocalização no ensino de música. Em se-
guida, apresentar-se-á para uma análise dos materiais didáticos compostos pelos

178
autores presentes no Annuario de ensino do Estado de São Paulo (1907-1908) e
no estabelecimento pela Lei nº 1.341, de 16 de dezembro de 1912, sendo eles o
Método Completo per la Divisione, de Pasquale Bona, Solf ège des Enfants op.27, de
Alexis de Garaudé e O Ensino da musica pelo Methodo Analytico, de João Gomes
Junior e Carlos Alberto Gomes Cardim.

A Querelle des Bouffons e os métodos de ensino da linguagem musical

Para se compreender as disputas em torno dos métodos para o ensino de


música entre o final do século XIX e início do século XX, há a necessidade tam-
bém de se evidenciar uma disputa estético-musical ocorrida a partir da segunda
metade do século XVIII, e que pauta certas produções e disputas nas décadas se-
guintes, reverberando inclusive nas concepções musicais dos séculos posteriores:
a Querelles des Bouffons.
Protagonizada pelo músico e filósofo Jean-Jacques Rousseau em conjun-
to com os partidários da estética da música italiana, em contraposição com o
compositor Jean-Phillippe Rameau e os adeptos da estética da música francesa,
ocorreu principalmente após a apresentação em Paris da companhia italiana de
ópera bufa, liderada por Eustachio Bambini, em agosto de 1752.
Para Yasoshima (2020), o debate reacende antigas disputas ocorridas desde
a Querelle des antiques et des modernes, estabelecida no fim do reinado de Luís XIV,
em que se traça um grande debate entre as artes e as técnicas; o genial e o método;
a visão poética e a dedução lógica. Debates que foram circunscritos e evidencia-
dos no período do Iluminismo. Assim como a comparação entre as duas estéticas
musicais já se denota presente desde o início do século XVIII, com François
Raguenet e a publicação de Défense du parallèle des italiens et des françois, en ce qui
regarde la musique et les opéra (1702) (YASOSHIMA, 2020, p.104)
Ainda segundo Yasoshima (2020), este debate, que tem por perspectiva a
disputa estética entre a tradição musical francesa, que dá ênfase à harmonia em
detrimento da melodia, e a estética italiana, no qual os enciclopedistas, tais como
Rousseau, elogiam-na em seu poder de expressar as paixões. O autor ressalta o
debate exercido por Rousseau em sua Lettre sur la musique française, que ao expor
a oposição da “melodicidade” da música italiana frente a complexidade harmô-
nica francesa, caracteriza-se dentro de seus preceitos filosóficos, já que expõe um
modelo vocal, simples e natural, capaz de exprimir diretamente as emoções, à um
modelo extremamente articulado e intelectual, desenvolvendo então a sua regra
da unicidade de melodia (YASOSHIMA, 2020, p.114). Com isso, enfatiza-se que
a harmonia deve servir para dar ênfase e energia à melodia, sem a encobrir ou dei-
xar de enfatizar, buscando levar à alma os sentimentos que se querem expressar.

179
A proposta de educação musical à infância de Jean-Jacques Rousseau pode
ser analisada também em Emílio ou da educação. Marques (2002) aponta para as
reminiscências sobre a educação musical presente no trabalho de Rousseau. Para
o autor, a música passa a desempenhar um papel fundamental em seu sistema
filosófico por sua íntima ligação com a linguagem, sendo que o início da educação
musical se emparelha com o início da educação, da fala e da dicção. Portanto, há
em Rousseau, uma análise de que, antes mesmo do reconhecimento da existência
de objetos, a criança está mergulhada no universo de sons que ela ouve e produz.
Porém, há uma necessária arbitrariedade na determinação da iniciação às práticas
musicais, pois a propedêutica para estas práticas envolve o aprendizado da de-
licada teia de relações que se estabelecem entre eles e o repertório das emoções
(MARQUES, 2002, p.10).
O conceito de unicidade de melodia e, principalmente, da música enquan-
to ligada à educação da fala e da dicção, apresenta uma profunda ligação entre o
ensino musical e a alfabetização. O solfejo, enquanto prática de vocalização das
notas musicais e de sua divisão métrica, seria, portanto, o elo de ligação entre o
universo de sons em que o aluno está envolvido e sua sistematização para a lin-
guagem musical, onde a voz seria o veículo de expressão do conhecimento dessa
linguagem.
As ligações entre o ensino musical e a alfabetização não se encontram
somente no campo da epistemologia, mas também nas abordagens dadas pelas
diferentes metodologias de ensino. Aqui, a palavra método assume o significado
de conjunto de procedimentos e técnicas aplicadas à propedêutica do ensino. Para
Mortatti (2006), há quatro momentos onde se evidenciam as disputas em torno
das tematizações, normatizações e concretizações em torno do ensino da leitura
e da escrita. Dentre eles, cabe aqui evidenciar os dois primeiros movimentos, dos
quais o ensino musical sofrerá grande influência, abarcando tais disputas.
O primeiro momento evidenciado pela autora trata-se da “metodização”
no ensino da leitura. A partir da segunda metade do século XIX, passam a se
reproduzir materiais impressos sob a forma de livros, materiais editados ou pro-
duzidos na Europa. Iniciando-se com as “cartas de ABC”, desenvolviam-se na
leitura e cópia dos documentos manuscritos. Utilizava-se nestes manuais os mé-
todos de marcha sintética, partindo da “parte para o “todo”, ou seja, iniciando o
ensino da leitura pela apresentação das letras e seus nomes, seus sons ou famílias
silábicas, para posteriormente reuní-las em palavras, seguido pelas frases isoladas
e agrupadas. (MORTATTI, 2006, p.5)
A partir do ano de 1890, com a implementação da reforma da instrução
pública no estado de São Paulo, dá-se origem ao segundo momento dentre as
disputas metodológicas do ensino da leitura e da escrita, caracterizada pela insti-
tucionalização do método analítico. Esse método, tornado obrigatório nas escolas

180
públicas do estado de São Paulo, e sob forte influência da pedagogia norte-ame-
ricana, deveria ser iniciado pelo conhecimento do “todo”, para posteriormente
partir ao conhecimento de suas partes constitutivas. A partir do documento Ins-
trucções praticas para o ensino da leitura pelo methodo analytico – modelos de lições.
(Diretoria Geral da Instrução Pública/SP – [1915]), estabelece-se o todo priori-
zando as historietas, ou seja, um conjunto de frases relacionadas entre si por um
nexo lógico, como um dos pontos de partida para o ensino da leitura e da escrita.
(MORTATTI, 2006, p.8)
Nesse cenário descrito por Mortatti (2000), no campo do ensino da mú-
sica nas escolas paulistas da Primeira República, duas abordagens metodológicas
aparecem de forma mais clara: a primeira, ligada ao ensino nos conservatórios,
possui um caráter mais tradicionalista, enquanto a outra, voltada à escola regular,
assimila os debates ocorridos nesta na aplicação de métodos renovados do ensino
da música, assumindo um teor pedagógico, além de assumir um propósito “civi-
lizador” (GILIOLI, 2003, p.197). Tal propósito é ligado diretamente ao papel
político-social da educação na instalação dos ideais republicanos.
No caso do método sintético, um dos grandes expoentes brasileiros era
Samuel Arcanjo dos Santos, professor no Conservatório Dramático e Musical
de São Paulo. E seu livro Lições elementares de Teoria Musical, o autor busca uma
formação técnico-musical dos músicos, partindo-se do ensino dos conceitos teó-
rico-musicais, sendo que somente na 14ª lição de seu livro é abordada uma peça
musical de fato.(GILIOLI, 2003, p.184)
Essa disputa ocorrida no campo do ensino da música na primeira Re-
pública explicitam um debate já anteriormente existente no campo da música,
desde a Querelle des antiques et des modernes, em que se pensa o confronto entre
a necessidade de um ensino técnico e metódico dos conceitos musicais, e uma
perspectiva que abrange uma maior ênfase na expressão dos sentimentos a partir
da vocalização e da expressão poética. As questões em relação à propedêutica
do ensino musical, nessas duas abordagens metodológicas expostas por Gilio-
li (2003), evidenciam também as disputas no campo das concepções estéticas e
epistemológicas da Querelle des Bouffons.

Os “métodos” de ensino de música na Primeira República paulista: um


italiano e um francês entre nós

Cabe aqui, num primeiro momento, uma discussão acerca da utilização do


termo método. A definição apresentada por Lacanallo et. al. (2007) apresenta o
método didático como:

181
[...] expressões educacionais e, ao mesmo tempo, uma respos-
ta pedagógica às necessidades de apropriação sistematizada do
conhecimento científico em um dado momento histórico re-
presentando um processo dialético de produção. [...] significa
caminho para chegar a um fim; conjunto de procedimentos
técnicos e científicos; ordem pedagógica na educação; sistema
educativo ou conjunto de processos didáticos. (LACANALLO
ET. AL., 2007, p.582)

A apropriação do termo pelo ensino de música, propriamente, sugere um


alargamento de tal definição. Frequentemente, os manuais de ensino possuem
em seu título a palavra método99, expressão amplamente divulgada e que passou
a ser utilizada não somente nos materiais que possuíam este em seu nome, mas
também como referência a outros livros didáticos que tinham por função o ensino
prático e teórico de Música.
A definição aqui apresentada, portanto, recorre não somente ao entendi-
mento do método como um conjunto de sistematizações dos procedimentos téc-
nicos e científicos ao aprendizado e sua transposição didática ao fazer pedagógico,
como também aos materiais onde esse método se concretiza, como os manuais
didáticos.
Para Choppin (2004), há uma dificuldade por parte da maioria das línguas
em explicitar as características específicas de cada uma das denominações rela-
tivas ao “livro didático”, sendo este designado de inúmeras maneiras, sendo que
uma palavra quase sempre sobrevive àquilo que designaram por um tempo, ainda
que, inversamente, a utilização de uma mesma palavra não se refira sempre a um
mesmo objeto (CHOPPIN, 2004, p.549).
Compreendendo essas decorrências em relação à utilização do termo e sua
relação com o material didático de ensino de música, destaca-se, aqui, o método
proposto pelo italiano Pasquale Bona, em Método Completo de Divisão, ampla-
mente disseminado no Brasil e referência para outros métodos aqui desenvolvi-
dos e utilizados. A primeira menção oficial de adoção desse método no ensino
primário paulista consta no Annuário de Ensino do Estado de São Paulo de 1907.
Nela, o livro de Pasquale Bona é referido como “Tratado de Divisão de P.
Bona” (SÃO PAULO, 1907-1908, p.342). Porém não há, na língua vernácula de
Bona, registros de uma publicação com tal nome, sugerindo que a adaptação deve
ter sido feita no momento da tradução, já que a discussão sobre os métodos de

99 Dentre os manuais que utilizam essa definição, cabe aqui ressaltar alguns exemplos, como o próprio
metodo completo per la divisione, de P. Bona e o methodo de música, de Elias Alvares Lobo. A utilização
do termo aparece não somente nas obras de teoria e solfejo, mas também em obras relacionadas ao
ensino dos instrumentos musicais, como é o caso do Novo método para violino e Novo método para piano
de A. Schmoll, Método prático para violino, de Nicolas Laureux, Método de trombone para iniciantes, de
Gilberto Gagliardi, Método de pistão, trombone e bombardino, de Amadeu Russo, Método para o estudo do
piano, de B. Cesi, dentre uma série de outros que circularam no Brasil para o ensino prático de música.

182
ensino eram de grande efervescência na educação brasileira, podendo gerar certa
ambiguidade no domínio das metodologias.
Amplamente divulgado e conhecido em diversos âmbitos da educação
musical, o Método Completo de Divisão de Pasquale Bona perpassa tanto o meio
do ensino de música especializado, como o caso dos conservatórios, quanto o
ensino de música de professores particulares, ensino religioso e a educação nas
escolas regulares, possuindo reedições circulando em território nacional a mais
de um século100.
Nascido no ano de 1808 na cidade de Cerignola, uma pequena comuna
italiana da província de Foggia, Pasquale Bona foi um teórico, pedagogo e com-
positor de óperas líricas. Suas obras perpassam por numerosos estudos teóricos,
métodos de estudo, solfejo e exercícios. Formou-se em composição e canto no
ano de 1830, pelo Real Collegio degli Spersi a Palermo, sob a guia do Maestro I.
Gatti.(ROMAGNUOLO, 2012, p.3)
Sua presença como músico e compositor de música sacra - em particular a
obra “Dixit Dominus”, a três vozes com orquestra - dedicou-se também à ópera
teatral italiana. No ano de 1832, apresentou no Teatro Nuovo di Napoli, sua ópera
cômica Il tutore e il diavolo. Tal obra obteve tanto sucesso que, posteriormente,
mudou-se para Milão. Em pouco tempo, no ano de 1838, foi nomeado como
professor de Teoria e Solfejo do Conservatorio di Musica di Milano, tendo pos-
teriormente assumido a cadeira de Harmonia e Canto para mulheres, no ano de
1851, e a de Canto para homens, no ano de 1859. (ANTONELLIS, 1979, p.44)
Porém, é com seus métodos e exercícios que Pasquale Bona passou a ad-
quirir fama internacional, principalmente a partir de seu amplamente traduzido
Metodo completo per la divisione espressamente composto per uso degli allievi del R.
Conservatorio di Musica di Milano, traduzido no Brasil como Método Completo de
Divisão. Na ocasião, o método foi desenvolvido por Pasquale Bona de modo a
balizar o ensino nas aulas de Teoria e Solfejo do Conservatório de Milão, e usado
como aparato didático em suas próprias aulas.
Como professor de Teoria e Solfejo do Conservatório de Música de Mi-
lão, Bona foi compositor de diversas obras de cunho cômico, absorvendo uma es-
tética própria da linguagem expressiva da música italiana, dando grande enfoque
à melodia, tal qual se pode ver, por exemplo, em seu Metodo completo per la divi-
sione. No prefácio à quarta edição, Pasquale Bona aponta para o direcionamento
educativo de sua obra:

100 Dentre os trabalhos que enfocam a relevância do método de Pasquale Bona em território nacional,
estão os trabalhos de CHAGAS e LUCAS(2014); ALVES (2014); PALHETA (2012); BRITTO
(2020); BARBOSA (2014); e FREIRE (2002).

183
Se há uma coisa de maior importância no ensino musical, sem
dúvida é aquela de fazer aprender aos pequenos alunos o modo
prático de dividir as notas singulares que compõem os compas-
sos de um tema musical. [...] Tal ensinamento, assumido sob o
nome de Metodo per la divisione, era em nossa escola italiana no
ano passado muito raro. [...] Seria inútil aqui falar das vantagens
que produzem um bom método de divisão, seja para conhecer
a relação que se passa entre as notas que compõem um tema
musical, seja para conhecer sua natureza intrínseca, seja para fa-
cilitar da parte do executor de detectar à primeira vista o valor
das próprias notas. (BONA, 1875, p.1, tradução própria.)

O conhecimento das notas e da divisão musical, portanto, para Pasquale


Bona, percorre o próprio conhecimento da natureza intrínseca da música, facili-
tando a execução à primeira vista. Tal fator, anteriormente, era estudado apenas
nos grandes conservatórios, mas não era aplicado enquanto um princípio fun-
dante na educação musical da infância. O ensino da divisão musical era aplicado
através da técnica do solfejo, que consiste na vocalização das notas musicais, cada
uma em seu tempo. Segundo o próprio autor:
A divisão consiste em pronunciar o nome de cada uma das no-
tas do mesmo modo como se estivesse lendo as palavras, com
a diferença que a voz deve ser mantida pela duração de tempo
expressa pela figura da mesma nota, e se esta exprimir um valor
maior do que um quarto [de tempo], se repete a vogal, manten-
do-a, ligada tantas vezes quanto os quartos de duração. Para fa-
cilitar o movimento da língua em grupos de duas, três, quatro ou
mais notas, se pronunciam os diversos nomes ligando-os como
se estivessem lendo uma única palavra composta por várias sí-
labas, alertando para dar mais inflexão ao nome das notas que
ocupam os tempos fortes. (BONA, 1875, p.2, tradução própria.)

Nota-se, portanto, a direta relação entre o estudo do solfejo e o estudo da


vocalização e a dicção do aluno. Ao apontar o uso do solfejo aos alunos na in-
fância e não somente aos alunos avançados, trabalha-se a música a partir de sua
expressão vocal que, tal qual apontada por Rousseau, intercala-se com o próprio
conhecimento da fala e da dicção, aproveitando-se de sons que a criança assi-
mila e a mesma a produz. Trabalha-se a dicção e a divisão silábica como parte
intrínseca do conhecimento musical, a partir de uma relação arbitrária necessária
à propedêutica musical, estabelecendo conexões entre os sons assimilados e ex-
pressados pela criança e sua expressão de sentimentos e a divisão dos tempos da
música e da correta dicção e execução das notas musicais.
É possível notar também o ensino da música a partir do solfejo ao ensino
da leitura. A vocalização da escrita musical permite ao aluno utilizar da com-
preensão e da abstração da linguagem como forma de conhecimento da própria

184
vocalização. A ideia inerente aos exercícios de solfejo está no treino à golpe de
vista por parte dos alunos à escrita musical, adequando a fluidez, interpretação e
entonação à leitura das notas musicais em uma partitura.
Há também a possibilidade de se denotar uma primazia, dentro desta téc-
nica de ensino, à relação de uma educação mais fortemente ligada à melodia
do que à harmonia. Neste sentido, os exercícios aplicados por Pasquale Bona
assemelham-se mais à concepção estética dos partidários da escola italiana na
Querela dos Bufões, já que expressa um modelo vocal, simples e natural, sem a
necessidade de grandes composições harmônicas, fator que não é dado enfoque
dentro das lições de Pasquale Bona, mesmo naquelas de teor mais avançado de
seu método. Aplica-se, portanto, a regra utilizada por Rousseau, da unicidade da
melodia, e que esta seria então a forma de expressão direta, por meio da voz, dos
sentimentos da alma. Tal fator pode ser analisado a partir da definição de música
que pode ser encontrada em edições posteriores, a partir do excerto Nozioni teo-
riche elementari della musica, adicionado por Onofrio Altavilla:
A música é a arte dos sons tratados na forma de melodia e har-
monia. Nasceu com a fala para expressar os sentimentos hu-
manos. O seu progresso ao longo dos séculos deu-nos formas
vocais e instrumentais cujas obras-primas são monumentos de
beleza imperecível. (BONA, s/d, p.6, tradução própria)

Há registros anteriores da utilização do método de Pasquale Bona em en-


sinos de música particulares, adotados na política oitocentista. No trabalho de
Patrícia Amorim de Paula, é citado o caso de Theodolinda Gerly, no ano de 1858,
que foi professora da companhia de Ópera Lírica, instalado no Theatro Lyrico.
A professora havia realizado uma residência em sua casa, onde ministrava aulas
de música a partir do método aprendido diretamente com Pasquale Bona no
Conservatório de Milão. Tal residência era realizada tanto para meninas pagantes
quanto às meninas pobres que desejassem aprender a tocar piano e cantar gratui-
tamente (DE PAULA, 2020, p.59)
Outro autor que possui grande influência dentro dos manuais didáticos de
música brasileiros, sendo também apresentado no Annuário de Ensino do Estado
de São Paulo de 1907 como um dos livros que poderiam servir de guia aos pro-
fessores do ensino de música, assim como é o caso de Pasquale Bona, é Alexis de
Garaudé.
Nascido no ano de 1779 em Nancy, na França, faleceu aos 73 anos. In-
gressou no Conservatório de Paris logo após sua inauguração e, posteriormente,
a partir de 1816, passou a lecionar vocalização, assumindo também as aulas de
canto a partir de 1835. Seu nome também é ligado, assim como o caso de Pas-
quale Bona, à ópera cômica, de vertente italiana, sendo membro acompanhante
da Société des Concerts du Conservatoire et à l’Opéra-Comique. Também de forma

185
semelhante a Bona, Garaudé teve seu nome muito conhecido a partir do de-
senvolvimento de seu método de solfejo, Solf ège des Enfants, oeuvre 27.(DE LA
MONTAGNE, s/d).
O método de Garaudé, por sua vez, busca estabelecer o ensino de solfejo às
crianças a partir do ensino progressivo dos conceitos musicais. Há uma busca pela
enfatização da melodia como princípio norteador do ensino do solfejo, tal como
é explicitado no prefácio à sétima edição:
Bons estudos de solfejo são extremamente necessários, mas a
aridez e a ausência de melodia distingue-a da maior parte destas
obras, compostas com muita pressa, tornando-as extremamente
entediantes aos jovens alunos. Sua própria harmonia é muita das
vezes ou comum ou de uma pretensão à ciência, que é deslocada
neste tipo de obra. [...] [as obras] devem inspirar e desenvolver
o gosto pela arte, acostumando pouco a pouco o aluno a apreciar
os diversos estilos usados pelos melhores compositores. A inte-
ligência musical é assim formada, e assim o estudo de uma arte
que é quase inteiramente por prazer, não provocando mais as
lágrimas da infância. (GARAUDÉ, 1843, p.4, tradução própria)

Ao explicar a progressão em que são colocados os conceitos musicais, o


autor explicita:
Ao invés de acumular, desde o começo, os princípios por de-
mandas e respostas, não será feita menção de nenhum deles
quais forem, até a medida que a progressão das aulas farão sentir
a necessidade, tratando de novos artigos que o aluno não te-
ria ainda ouvido falar. [...] Esta progressão de atividades torna
quase imperceptível, e os alunos se tornarão bons leitores, na
metade do tempo, pela clareza dos planos, dos preceitos e dos
exemplos que são trazidos. (GARAUDÉ, 1843, p.4, tradução
própria)

Ao introduzir os alunos ao ensino da música, Garaudé optou por ensinar


primeiramente, de forma descritiva, a partir da pauta musical, os seus conceitos,
onde seriam inseridas as claves e, posteriormente, inseridas as notas musicais. Se-
gundo ele, o conhecimento desses conceitos é necessário para a compreensão dos
primeiros exercícios, sendo assim, a explicação sobre a forma da escrita musical
precede a aplicação das primeiras lições
Há, também, um importante ponto que distingue a obra de Garaudé da-
quela apresentada por Pasquale Bona. Enquanto que, no trabalho de Bona, as
notas devem ser subdivididas a partir da pronúncia do nome da respectiva nota
(do, ré, mi, fa, etc.), para Garaudé, as notas deveriam ser cantadas em seu respec-
tivo valor, primeiro ouvindo os alunos com maior experiência, depois, repetindo
as lições em coro e, por fim, cantando a lição de forma isolada:

186
Devem ser divididos em várias classes, de acordo com o grau de
conhecimento musical que teriam adquirido. Aqueles que ainda
não conhecem suas notas devem estudar os primeiros exercicios
que lhes darão o hábito de lê-las bem[...]. Em geral, é útil fazer
com que a classe ouça cada nova lição, resolvida por um ou mais
alunos inteligentes, antes de repeti-la em coro e até fazer cantar
sozinho aqueles cujo progresso seria muito tardio. (GARAU-
DÉ, 1843, p.5, tradução própria)

Em ambas as obras dos autores, portanto, há uma predileção pelo ensino


da melodia em detrimento da harmonia, buscando ligar a propedêutica do ensino
musical à expressão dos sentimentos humanos.
Nesse sentido, no método de solfejo de Bona, a pronúncia dos nomes das
notas alia o conhecimento musical ao da leitura, pronunciando o nome das notas
como as sílabas de uma palavra, como é expresso pelo próprio autor, enquanto
que, para Garaudé, esta subdivisão das notas em relação ao tempo deveria ser
feita de forma cantada, buscando uma maior relação do solfejo com a vocalização.
Mesmo com essa distinção, ambas os métodos propõem que o inicio da
música se inicie pela aplicação do conhecimento prévio de alguns conceitos mu-
sicais, como o pentagrama, a pauta, as claves e o valor das notas, o que proporcio-
naria aos aprendizes uma base para a iniciação nas primeiras lições.
A seguir, será analisado de que forma estes conceitos são trabalhados nos
métodos de ensino nacional, principalmente no trabalho de João Gomes Junior e
Carlos Alberto Gomes Cardim.

Os “métodos” de ensino nacionais e a marcha analítica

Dentre os autores brasileiros que produziram manuais didáticos de solfejo


durante o a Primeira República, destaco neste capítulo João Gomes Junior e Car-
los Alberto Gomes Cardim.
O primeiro, nascido no ano de 1868, filho do maestro João Gomes de
Araújo, um dos mais importantes maestros brasileiros no final do período Impe-
rial, viajou com o pai para a Itália no ano de 1884, onde passou a estudar com-
posição com Cesare Dominicetti, no Real Conservatório de Milão (GILIOLI,
2003, p.101). Apesar de estudar no mesmo conservatório onde Pasquale Bona
lecionou, sua estadia se deu posteriormente à morte do autor. João Gomes Junior
retornou ao Brasil no ano de 1888, sendo que no ano de 1893 tornou-se cate-
drático de Musica da escola-modelo do Carmo, e posteriormente catedrático de
Música da escola Prudente de Morais em 1894. Foi também professor da Escola
Normal “Caetano de Campos”, onde atuou até o ano de 1925. (GILIOLI, 2003,
p.101)

187
Carlos Alberto Gomes Cardim, por sua vez, era filho do maestro João
Pedro Gomes Cardim. Tornou-se professor pela Escola Normal de São Paulo
no ano de 1894. No ano de 1825, foi convidado por Miss Marcia Browne para
trabalhar na escola modelo Prudente de Morais, sendo fortemente influenciado
pela pedagogia estadunidense. No ano de 1908, foi convidado pelo governador
do Espírito Santo para reformar o ensino primário e secundário do estado. Foi
nomeado, em 1913, para a cadeira de Psicologia da Escola Normal Caetano de
Campos, sendo também catedrático do curso dramático do Conservatório Musi-
cal e Dramático do Estado de São Paulo. (GILIOLI, 2003, p.102)
João Gomes Junior, também aluno do Real Conservatório de Milão, possui
grande notoriedade no âmbito das prescrições e dos métodos de ensino de música
do período analisado. Sua obra, realizada em conjunto com Carlos Alberto Go-
mes Cardim, denominada O ensino da música pelo Methodo Analytico. Estabelecido
pela lei nº 1.341 de 16 de Dezembro de 1912, passa a ser adotado nas escolas
normais secundárias, primárias e modelo, o método analítico-simbólico, possivel-
mente referindo-se ao respectivo método. ( JARDIM, 2003, p.47)
O autor estudou composição no conservatório de Milão durante os anos
de 1884 até o ano de 1888, sob a orientação de Cesare Dominicetti, assim como
seu pai, João Gomes de Araújo. Apesar de não possuir aulas diretamente com
Pasquale Bona, devido a sua ida à Itália ter se dado posteriormente ao falecimen-
to do autor, o mesmo evidencia a influência de Bona sobre seu trabalho, afirman-
do que seu trabalho se resumia a uma compilação e adaptação dos trabalhos deste,
dentre outros autores, sendo que sua contribuição estaria no campo do método e
da feição pedagógica dada às lições ( JARDIM, 2003, p.65).
O método proposto por João Gomes Junior e Carlos Alberto Gomes Car-
dim foi publicado em 1912, sob o título Ensino da música pelo Methodo Analytico.
Já no início do manual, João Gomes Junior e Carlos Alberto Gomes Cardim
explicitam claramente as suas escolhas de abordagens metodológicas:
methodo em que se parte do geral para o particular, do todo
para as partes, dos efeitos para as causas é, exactamente, o que
applicamos geralmente, no nosso ensino primario. [...] Esse
methodo tornou-se extensivo a quasi todas as disciplinas sem,
entretanto, attingir a musica. Não há motivo que justifique esta
excepção pois que os principios basicos do ensino da leitura e
da linguagem são os que servem de fundamento ao ensino da
musica (GOMES JR; CARDIM, 1919, p.3).

Há, portanto uma ligação direta entre as concepções metodológicas do


autor e ensino da leitura. Existe também uma busca epistemológica de um co-
nhecimento empírico, partindo-se dos conhecimentos mais generalistas para o
posterior conhecimento das especificidades.

188
Na linguagem temos os symbolos formando as palavras e as
palavras formando as proposições; na musica temos os signaes
formando os compassos e os compassos constituindo a phrase e
a phrase compondo o pensamento musical. Ressalta a paridade
entre essas duas disciplinas; não é possivel, pois, a disparidade
em methodo (GOMES JR; CARDIM, 1919, p.3).

João Gomes Junior e Carlos Alberto Gomes Cardim buscam aproximar


sua abordagem ao método analítico empregado por João Kopke, não seguindo a
processuação do sistema Galin-Paris-Chevé, ou mesmo do sistema Tonic-Solfa,
elaborado pela educadora musical inglesa Sarah Ann Glover:
Convém deixar consignado, desde já, que, absolutamente, não
seguimos a processuação de Chevé, Gallin ou o conhecido pela
denominação Tonic sol-fa, por sermos contrarios, em absoluto, a
todo o processo cifrado no ensino da musica. Somos partidarios
do methodo natural, estudamos a musica pela musica. [...] Dar
nomes ás figuras e depois substituil-os por letras ou numeros
para, novamente, substituir as letras e os numeros pelos nomes
das figuras e disperdiçar esforço com um trabalho improficuo
(GOMES JR; CARDIM, 1919, p.5).

Há uma busca do estabelecimento da música a partir do conhecimento


empírico, evitando o processo de abstração dos conceitos para uma aplicação do
conhecimento a partir da percepção dos alunos às melodias comuns:
Em primeiro logar devemos começar o nosso trabalho com um
exercicio de respiração, isto é, devemos cuidar, primeiramen-
te, da gymnastica respiratoria e, em seguida, devemos cogitar
a emissão perfeita do som. [...] Em seguida daremos melodias
muito populares ou de prompta assimilação que os alunos deve-
rão cantar, dando, genericamente, a denominação de la a todas
as notas. Depois [...] passamos a mostrar que as melodias são re-
presentadas por meio de signaes e escrevemos no quadro negro
as melodias cantadas, mas sem clave e sem compasso (GOMES
JR; CARDIM, 1919, p.6)

A concepção da educação a partir dos sentidos também se mostra como


outro elemento presente na concepção do ensino musical, dando ênfase, prima-
riamente, na audição como sentido primário:

A musica é a combinação dos sons e o som só exis-


te para quem pôde receber a sua impressão no orgam
auditivo Ora, si a percepção só é feita pelo ouvido, é
claro que o ensino da musica deve ser iniciado pela
educação do ouvido. O alumno deve, primeiramente,
saber sentir, saber apreciar a combinação harmonica

189
dos sons bem como repellir a dissonancia (GOMES JR;
CARDIM, 1919, p.8)

O livro Ensino da música pelo Methodo Analytico apresenta uma inovação


na abordagem dada ao ensino da música e do canto da época, possuindo grande
influência do ensino intuitivo: a abordagem musical dada aos autores, portanto,
começaria pelos sentidos, partindo da audição dos alunos e da reprodução de can-
tigas conhecidas, para que, a partir daí, passe a se desenvolver os conceitos musi-
cais propriamente técnicos, de denominação das notas na escala e de subdivisão
métrica, se opondo à abordagem de ensino musical de base conservatorial que
era aplicada até então, em que o ensino dos conceitos precede o conhecimento e
desenvolvimento dos sentidos.

Considerações finais

As disputas estéticas e epistemológicas ocorridas durante a Querelle des


Bouffons, dando ênfase ao conceito da unicidade de melodia, deram base à elabo-
ração do solfejo como propedêutica do ensino musical. Partindo da vocalização
das notas musicais e de sua subdivisão rítmica, busca-se, portanto, uma relação da
música partindo do conhecimento empírico do aluno, já que o universo de sons os
quais ele estaria exposto desde o nascimento já comporia parte de seu repertório.
Os trabalhos de Pasquale Bona e Alexis de Garaudé buscam evidenciar
esta ligação entre o ensino da música e o ensino da linguagem. No caso de Bona,
inclusive, evidencia-se a correlação entre a pronúncia das notas musicais e a leitu-
ra da pauta musical. No caso de Garaudé, há uma maior correlação com a vocali-
zação das notas e a emissão dos sons os quais o aluno é exposto, ligando o solfejo
maiormente ao ensino do canto.
O método de João Gomes Jr. e de Carlos Alberto Gomes Cardim, por sua
vez, aproveitam a discussão corrente no cenário do ensino público no estado de
São Paulo e o emprego da marcha analítica nos manuais de ensino e aplicam-no
ao ensino de música a partir do solfejo, partindo, portanto, dos exercícios de res-
piração e das melodias conhecidas para, a partir deste conhecimento, estabelecer
as relações com a leitura das notas e das figuras musicais.
Em face do exposto, verifica-se, a partir das indicações dos métodos de en-
sino de música recomendados para o ensino primário paulista na Primeira Repú-
blica a prevalência do solfejo associado aos princípios epistemológicos da época,
como o método analítico e os pressupostos do método intuitivo.

190
Referências

ALVES, Jizele Santana. Motivações para evasão e permanência de alunos de uma banda
do estado de Mato Grosso (2010 – 2014). 2014. 49 f. Monografia (Licenciatura em
Música)—Universidade de Brasília, Universidade Aberta do Brasil, Paranatinga-MT,
2014

ANTONELLIS L., Cerignolesi illustri : repertorio biografico e bibliografico. Napoli :


Laurenziana, 1979.

BARBOSA, Joel Luis. Considerando a viabilidade de inserir música instrumental no


ensino de primeiro grau. Revista da ABEM, v. 3, n. 3, 2014.

BONA, Pasquale. Metodo completo per la divisione espressamente composto per uso degli
allievi del R. Conservatorio di Musica in Milano. F. Lucca, Milano, 4ªEd., 1875.

BONA, Pasquale. Metodo completo per la divisione. Carisch, Milano, s/d.

BRITTO, Mario Soares de. O violinista na música popular em salvador: um estudo


autoetnográfico de estratégias de inserção em alguns campos de atuação. Dissertação de
Mestrado, UFBA, 2020

CHAGAS, Robson Miguel Saquett; LUCAS, Glaura. Transmissão do saber e relações


sociais nas práticas musicais das bandas civis de música. In: São Paulo, SP (2014). 2014.

CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte.
Educação e pesquisa, v. 30, 2004.

DE LA MONTAGNE, Denis Havard. Prix de Rome (1840 - 1849). em Musica et


Memoire. Association Elisabeth et Joachim Havard de la Montagne, s/d. Disponível
em <http://www.musimem.com/prix-rome-1840-1849.htm#garaude>. Acesso em
06/12/2021.

DE PAULA, Patricia Amorim. Os modos de vida das musicistas nas entrelinhas da


imprensa oitocentista no Rio de Janeiro. Profissão Artista, 2020.

FREIRE, Vanda Lima Bellard. Um resgate da memória musical brasileira: O Projeto


Registro Patrimonial de Manuscritos do Arquivo de Obras Raras da Escola de Música
da UFRJ. OPUS, v. 8, n. 1, p. 144-155, 2002.

GARAUDÉ, Alexis. Solf èges des enfants et des écoles primaires, oeuvre 27 (avec accp.t de
piano) Paris, l’Auteur, 1843, 7ªed. Disponível em <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/
bpt6k9637060j> Acesso em 16/01/2022.

191
GILIOLI, Renato de Sousa Porto. Civilizando pela música: a pedagogia do canto orfeônico
na escola paulista da Primeira República (1910-1930). 2003. Dissertação (Mestrado) -
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2003.

GOMES JR, João; CARDIM, Carlos Alberto Gomes. O ensino da musica pelo methodo
analytico. São Paulo, Nage, Salles & Rocha, 4ªed., 1919.

JARDIM, V. L. G. Os sons da República: o ensino da música nas escolas públicas de São Paulo
na Primeira República – 1889-1930. Dissertação (Mestrado em Educação: História,
Política, Sociedade)–Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003.

LACANALLO, Luciana Figueiredo et al. Métodos de ensino e de aprendizagem:


uma análise histórica e educacional do trabalho didático. VII Jornada do Histedbr-O
trabalho didático na história da educação. Atas do Evento, Campo Grande, 2007.

MARQUES, J. O. de A. A educação musical de Emílio. Rapsódia, [S. l.], n. 2, 2002.

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. História dos métodos de alfabetização no


Brasil. Seminário Alfabetização e Letramento em Debate, p. 1-16, 2006.

PALHETA, Bruno Daniel Monteiro. Prática de ensino nas bandas de música do Pará:
uma tonalidade secular. EPISTEMOLOGIA E EDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE
TEMAS EDUCACIONAIS, 2012.

ROMAGNUOLO, Savino. Il musicista Pasquale Bona. La cittá Riscoperta, Cerignola,


n.766, 2012. Disponível em <http://www.pugliadigitallibrary.it/media/00/00/88/3318.
pdf>, acesso em 17/07/2021.

SÃO PAULO, Annuário de ensino do estado de São Paulo. 1907-1908.

SOUZA, R. F. Alicerces da Pátria; história da escola primária no Estado de São Paulo


(1890-1976). Campinas: Mercado de Letras, 2009.

VALDEMARIN, V. T. Estudando as Lições de Coisas: análise dos fundamentos filosóficos


do Método de Ensino Intuitivo. Campinas: Autores Associados, 2004.

YASOSHIMA, F. S. Luzes e farpas sob os camarotes: Rousseau, Rameau e a Querela


dos Bufões. Orfeu, Florianópolis, v. 5, n. 3, 2020.

192
8. VIRGÍNIA MELLE DA SILVA LEFÈVRE (1907-
1987): CONTRIBUIÇÕES DE UMA INTELECTUAL
MEDIADORA PARA O CAMPO DA LITERATURA
INFANTIL E DA EDUCAÇÃO

Amanda Topic Ebizero

Considerações iniciais

A primeira metade do século XX, no Brasil, foi marcada por mudanças


socioeconômicas e socioculturais resultantes, dentre outros, da implementação do
regime republicano, bem como dos processos de urbanização e industrialização,
das duas guerras mundiais e dos avanços das tecnologias e comunicação. Tais
mudanças ocasionaram novas perspectivas na mentalidade da sociedade à época,
como por exemplo, as primeiras reinvindicações das mulheres por igualdade de
direitos, educação e profissionalização (ALMEIDA, 1998, p. 27).
No bojo dessas transformações, em 17 de julho de 1907, em São Paulo,
nasceu Virgínia Melle da Silva Lefèvre, filha do engenheiro e professor universi-
tário Clodomiro Pereira da Silva e de Carolina Melle Pereira da Silva.
Em um contexto em que a educação das mulheres não era, ainda, priori-
dade, Virgínia Melle da Silva Lefèvre iniciou os seus estudos no Externato São
José, na cidade de São Paulo, e os concluiu no Colégio Batista Brasileiro, no Rio
de Janeiro. A educação ofertada para as meninas, para além do ler, escrever e con-
tar, esteve sempre voltada para os trabalhos manuais e as ocupações domésticas,
de modo a prepará-las para serem donas de casa, em prol da família. (NAGLE,
2009).
Fruto de muita luta e apesar das resistências enfrentadas numa jornada
de reinvindicações, entre o final do século XIX e início do século XX, as mu-
lheres começaram a exercer (parcos) papeis sociais que iam “além” das tarefas
domésticas. Elas podiam ser enfermeiras, parteiras e professoras que, por serem
profissões que não se distanciavam muito do lar e da família, socialmente exigiam
comportamentos que demandassem cuidado, generosidade, bondade e atenção.
O magistério, aliás, passou a ser, naquele momento, a profissão por excelência
da mulher, dado que era considerado a extensão da maternidade. (ALMEIDA,
1998; LOURO, 2004).

193
Sem fugir a essa regra, Virgínia Melle da Silva Lefèvre, após concluir os
seus estudos no Rio de Janeiro, retornou a São Paulo e passou a lecionar no Ex-
ternato Higienópolis, em 1926.
Sobre o magistério feminino, Almeida (1998) afirma que
[...] possibilitou às mulheres, notadamente da classe média que
se alicerçava no panorama socioeconômico do país, a oportu-
nidade de ingressar no mercado de trabalho. A possibilidade
de aliar ao trabalho doméstico e à maternidade uma profissão
revestida de dignidade e prestígio social fez que “ser professora”
se tornasse extremamente popular entre as jovens e, se, a prin-
cípio, temia-se a mulher instruída, agora tal instrução passava a
ser desejável, desde que normatizada e dirigida para não ofere-
cer riscos sociais. Ensinar crianças foi, por parte das aspirações
sociais, uma maneira de abrir às mulheres um espaço público
(domesticado) que prolongasse as tarefas desempenhadas no lar
– pelo menos esse era o discurso oficial do período. (ALMEI-
DA, 1998, p. 28).

Ressalta-se que a instrução das mulheres e a demarcação de espaço na


sociedade por meio das profissões de professora, enfermeira e escritora estavam
restritas às mulheres das classes privilegiadas e Virgínia Melle da Silva Lefèvre
foi uma delas. De acordo com Almeida (1998):
Para as mulheres do povo, a ausência de instrução e o trabalho
pela sobrevivência sempre foram uma dura realidade. O mesmo
pode ser dito a respeito da raça e, para as mulheres negras, o es-
tigma da escravidão perdurou por muito tempo, só lhes restando
os trabalhos de nível inferior e a total ausência de instrução.
(ALMEIDA, 1998, p. 35).

Já atuando como professora, em 1930, Virgínia Melle da Silva Lefèvre


casou-se com Valdemar Lefèvre e juntos tiveram três filhos: Maria Cecília, Au-
gusto e Dinah. O casamento não foi um impedimento para continuar exercendo
funções profissionais a que até então se dedicava. Pelo contrário, ela as ampliou.
Entre os anos 1930 e 1940, Virgínia Melle da Silva Lefèvre dedicou-se a
traduzir e a adaptar obras consagradas de literatura infantil. Como explica Telles
(2004), se no século XIX a “[...] não-afirmação social da mulher se repetia na
sua não-afirmação pela palavra” (p. 423), no século XX é justamente pela palavra,
pela pena e pela educação que a mulher vai conseguindo os seus direitos e vai
ganhando voz. Nesse contexto, também por volta dos anos 1945, Virgínia Melle
da Silva Lefèvre escreveu alguns livros para uma coleção intitulada O mundo e suas
maravilhas, publicada pela Editora do Brasil (COELHO, 1983).
Após suas primeiras investidas no campo da tradução e da escrita literária,
ainda na década de 1940, Virgínia Melle da Silva Lefèvre fundou a Sociedade

194
Pró-Educação e Saúde (SPES), entidade mantida por meio de mensalidades pa-
gas por associados e rendas de eventos populares, a qual ela se dedicou ao longo
de sua vida.
Depois disso, na década de 1970, escreveu sua série juvenil, as aventuras de
Ana Selva, composta por seis livros: Ana Selva (1974), Ana Selva em perigo (1974),
Ana Selva na cabana do Índio Velho (1974), Ana Selva contra a doença (1975), Ana
Selva e a pescaria (1975) e Ana Selva, a rebelde em sociedade (1975), firmando seu
nome definitivamente no campo da literatura infantil brasileira.
Considerando a importância de Virgínia Melle da Silva Lefèvre como
importante representante do público feminino no contexto do magistério e da
produção literária ao longo do século XX, este capítulo tem por objetivo compre-
ender sua participação na criação da Sociedade Pró-Educação e Saúde e as con-
tribuições de sua produção literária para a formação da infância brasileira. Para
tanto, faz-se uso dos contributos da História Cultural, com enfoque na História
dos Intelectuais, com vistas a problematizar o papel de Virgínia Melle da Silva
Lefèvre como mediadora e produtora cultural.

Virgínia Melle da Silva Lefèvre e a Sociedade Pró-Educação e Saúde:


da filantropia à criação de escolas

A Sociedade Pró-Educação e Saúde (SPES) foi criada em 1942 e seus


objetivos eram o de “[...] combater a ignorância, educar a classe desfavorecida
para não precisar de caridade e elevar-se pelo próprio valor e pelo próprio esforço”
(LEFÈVRE, s/d, p. 5).
Em princípio, esses propósitos eram alcançados por meio da criação de
jardins de infância que assistiam às crianças abandonadas.
Ainda em 1942, Virgínia Lefèvre e um grupo de amigas101 criaram a cha-
mada “Escola para crianças abandonadas”, que tinha como finalidade alfabetizar
e capacitar moças e adolescentes para os serviços domésticos, a educação familiar
e as boas maneiras (ESTEVES, 2014).
No ano de 1945, em uma viagem à Ubatuba, acompanhando o marido que,
à época, era chefe do Serviço Social do Estado de São Paulo, Virgínia Lefèvre
impressionou-se com a carência das famílias caiçaras e passou a se dedicar aos
trabalhos humanitários a fim de ajudá-las.
[...] Quando visitei o município de Ubatuba em 1945, senti
uma atração fulminante pelo Caiçara. Lá estava o valioso ma-

101 Até o momento de escrita desse texto, não foi possível identificar quem eram essas amigas de Virgínia
Melle da Silva Lefèvre.

195
terial humano com o qual eu gostaria de trabalhar: ali estava o
protótipo do Brasileiro com seus defeitos gritantes e com suas
qualidades magníficas. Era um índio mal civilizado. Suas poten-
cialidades para um progresso socio-econômico pareceram-me
dignas do sacrifício de desenvolvê-las. (LEFÈVRE, s/d, p. 1).

Evidencia-se, nessa passagem de um dos relatórios de Virgínia Lefèvre,


a presença de ideais higienistas consolidados desde o início do século XX, que
objetivavam, por meio da mudança de comportamentos sociais, a regeneração da
sociedade. Esses ideais, de acordo com Telles (2004), ajudavam a reforçar pre-
conceitos de classe e raça. Na citação acima, identificam-se esses princípios de
regeneração e mudança de comportamentos, a ponto de o caiçara ser comparado
a um “índio mal civilizado”, ou seja, alguém desprovido de cultura e educação.
Além disso, investir nas “potencialidades” do caiçara era algo digno de sacrifício,
pois isso se converteria em progresso socioeconômico.
Conforme explica Telles (2004),
O papel do médico foi fundamental nessas modificações. Hi-
gienistas, positivistas, correntes ilustradas, todas as vertentes do
pensamento tentavam redefinir comportamentos. No centro do
palco, mais uma vez, ficava a mãe; os positivistas a colocaram
num pedestal, semelhante ao que fazia a Igreja Católica, com a
diferença de que prometiam o céu aqui mesmo na terra através
do auto-sacrificio. (TELLES, 2004, p. 429).

Os princípios defendidos pelos higienistas de que à mulher (mãe) caberia a


função regeneradora da sociedade (ALMEIDA, 1998) estão presentes na atuação
de Virgínia Lefèvre para com os caiçaras, pois ela mesmo afirmara que: “[...] Eu
me sentia Mãe deles e sempre os amei com estranhado afeto” (LEFÈVRE, s/d., p.
2, grifos do autor). Como se vê, o discurso higienista, positivista e até eugênico da
época idealizava a mulher como mantenedora da instituição familiar e da pátria.
Calcada nesses valores e princípios, a SPES, pela falta de verbas e com-
preendendo que a assistência deveria estar voltada diretamente para as famílias
das crianças carentes, que passavam fome e estavam sujeitas a diversas doenças,
encerrou a criação de jardins de infância e ampliou as suas atividades para o setor
de “Assistência Direta à Família no Lar”. De modo a evitar que essas famílias se
desintegrassem, a SPES passou a criar centro-sociais em formas de escolas.
Com isso, em 1946102 foi criada a primeira Escola Mista103, localizada no
bairro de Itaguá, em Ubatuba, considerado zona rural à época. Era uma escola de

102 Nesse mesmo ano, a Sociedade Pró-Educação e Saúde foi registrada oficialmente, no 4º Cartório de
Títulos (Cartório Medeiros), em São Paulo, com a sigla de SPES.

103 Em 1963, a escola do bairro de Itaguá passou a ser Grupo Escolar e funcionou por mais 8 anos no local
construído pela SPES até que, em 1971, o Governo entregou o prédio novo situado em outro local.

196
pau a pique, às margens do rio Acaraú, literalmente no meio do mato. A SPES
custeava o uniforme, o material didático, o registro de nascimento das crianças, o
tratamento médico e odontológico, a sopa escolar, inclusive o aluguel da sala e o
salário das professoras.
Apesar de a SPES arcar com todos os gastos dos centros sociais/escolas,
presume-se que alguns dos associados provenientes de São Paulo não concorda-
vam com a ajuda aos caiçaras de Ubatuba, pois consideravam-nos preguiçosos e
malandros, como se estivessem em condições sociais e sanitárias alarmantes por
opção. Esse aspecto pode ser verificado num dos relatórios de Virgínia Lefèvre
sobre a SPES:
[...] Não era fácil obter-se recursos financeiros entre nossos
amigos da Capital. Já estava fundada a Sociedade Pró Educação
e Saúde – SPES que dava assistência direta à um certo número
de famílias, mas nossos contribuintes não sentiam o mesmo en-
tusiasmo que eu e tachavam o Caiçara de preguiçoso, malandro
e indiferente. (LEFÈVRE, s/d., p. 2).

Mesmo diante do relato, o trabalho social e educacional da SPES conti-


nuou e, no ano de 1950, foi fundada a Escola Mista da Praia de Caçandoca, como
instituição municipal, mas sem custos para a Prefeitura.
Em 1951, foi criada a terceira escola, a Escola Mista da Praia da Almada,
que ficava a duas horas e meia da cidade de Ubatuba e funcionava em uma capela.
Assim como as escolas anteriores, não havia custos para a Prefeitura ou para o
Estado. Em 1953, a SPES conseguiu comprar uma casa de pau a pique para fun-
cionar a Escola da Almada. Ao lado dessa casa, ficava o “puxadinho”, com uma
cozinha e um quarto para a professora responsável.
A quarta escola, nomeada Escola da Praia de Camburí, inaugurada tam-
bém em 1953, ficava perto da divisa com o Rio de Janeiro. Em um relatório da
Sociedade Pró-Educação e Saúde, datado de 1975, escrito por Virgínia Lefèvre,
a autora faz uma sinopse cronológica da atuação da SPES. Sobre essa escola de
Camburi, Virgínia Lefèvre escreve que houve problemas com a Delegacia de En-
sino Regional, pois só haviam conseguido um “mestre-escola” para atuar no local
que, por sinal, era de difícil acesso por terra e por mar. (SOCIEDADE..., 1975,
p. 2).
Em um outro relatório escrito por Virgínia Lefèvre, em que essa vai nar-
rando sobre o seu interesse em educar os caiçaras e sobre a atuação da SPES, cuja
data de escrita presume-se que seja entre o final da década 1960 e início dos anos
1970, ela afirma o seguinte sobre essa falta de professor para a escola:

Dessa forma, a escola passou a se chamar Altimira Silva Abirached, em homenagem à esposa do chefe
político de Taubaté, Wilson Abirached.

197
O nosso problema foi arranjar professor. Trabalhamos com um
leigo durante 3 anos. Os formados só aceitavam a escola para
trampolim. Sofremos com as professoras formadas. Ou elas
mesmas carregavam os objetos da Escola ou largavam a casa
aberta e iam embora sem nos avisar. (LEFÈVRE, s/d, p. 3).

Presume-se, por meio dessa passagem, que os professores não atuavam


muito tempo na escola de Camburí dada a situação precária em que se encontra-
va e, dessa forma, aceitavam o trabalho por experiência (trampolim para outras
escolas com melhores condições). Embora houvesse esse problema com os pro-
fessores, de acordo com o relatório de 1975, Virgínia afirma que “[...] o índice de
analfabetismo baixou a quase zero neste fim de mundo” (SOCIEDADE..., 1975,
p. 2).
A Sociedade Pró-Educação e Saúde, em 1953, foi reconhecida como uti-
lidade pública estadual104 pelo trabalho social de grande relevância que estava
sendo prestado até aquele momento.
Depois disso, ainda uma quinta escola foi fundada, em 1954. Nomeada de
Escola do Sertão de Ubatumirim, levava-se cerca de duas horas de barco até a
praia de Ubatumirim e mais duas horas a pé pela trilha no meio da mata, atra-
vessando-se dois rios andando. Presume-se que essa escola tenha funcionado por
pouco tempo, dado que foi fechada pela falta de alunos. Entretanto, em 1959, foi
reaberta, funcionando por mais dois anos tendo, inclusive, curso noturno.
Virgínia Lefèvre à frente da Sociedade Pró-Educação e Saúde, além do
trabalho de filantropia e da criação de escolas, promoveu outros serviços com o
intuito de ajudar as famílias caiçaras.
Em junho de 1963, foi inaugurada a Oficina Escola de Artesanato de Ita-
guá e, em novembro do mesmo ano, a SPES promoveu a primeira Exposição
de Artesanato, cujos produtos artesanais eram feitos pelos próprios caiçaras que
haviam se revelado como “[...] artesão por gosto e singular habilidade” (SOCIE-
DADE... 1975, p. 4). Em 1965, a Oficina Escola havia se transformado em um
Centro Artesanal de aprendizado em tear, bastidor, agulhas, cestaria etc.
Tendo em vista que um dos objetivos da SPES era o de promover a edu-
cação das famílias carentes, a fim de não “padecerem à espera por caridade”, o ar-
tesanato foi o meio pelo qual muitas famílias geraram suas rendas, pois os apren-
dizes do Centro Artesanal eram remunerados conforme produziam e vendiam.
Os principais produtos feitos no Centro Artesanal foram tapetes de trança de
embira, cestas, entalhes entre outros.

104 São Paulo. Decreto nº 2226, de 11 de agosto de 1953.

198
Em 1972, a SPES foi reconhecida como utilidade pública Municipal105.
No ano de 1975, a SPES criou uma Pré-Cooperativa de produção de artesanato,
com 22 cooperadores e, à época, 100 aprendizes. O Centro Artesanal teve seus
produtos apresentados em encontros regionais e em exposições no Serviço Social
do Comércio (SESC) de São Paulo e de Campinas.
Em vista desses aspectos, compreende-se a atuação de Virgínia Lefèvre,
presidente da Sociedade Pró-Educação e Saúde, na filantropia e na defesa da
educação e do saneamento como direitos inerentes à infância. Mas, sua atuação e
interesse no cuidado com os pequenos não se restringia à filantropia, sua projeção
para além das ações no litoral norte de São Paulo se deu, sobretudo, pelas tradu-
ções, adaptações e escrita de livros de literatura infantil.

Produção escrita de Virgínia Melle da Silva Lefèvre: adaptação,


tradução e obras originais para crianças106

Conforme apontado anteriormente, Virgínia Lefèvre atuou em diferentes


campos, como o da literatura infantil, o da educação e o da saúde. No que concer-
ne ao campo da literatura infantil brasileira, ela pode ser considerada como uma
das autoras mais importantes no que se refere à adaptação e à tradução de obras
para crianças.
Nesse percurso, de acordo com Coelho (1983), ela começou a sua carreira
com “[...] adaptações de contos maravilhosos, contos jocosos e fábulas, destinadas
às crianças, e publicadas a partir de fins dos anos 30 e início de 40” (COELHO,
1983, p. 897).
Com isso, Virgínia Lefèvre adaptou e traduziu diversos títulos que passa-
ram pelas crianças de diferentes gerações, como O pássaro azul; O gigante pregui-
çoso (reeditado até os dias atuais), Lagostinha encantada; O alegre sapateiro, Zé dos
bichos; Trombão, Trombinha e Serelepe etc. O renomado autor de livros infantis do
século XIX, Hans Christian Andersen, também teve alguns de seus livros tradu-
zidos por Virgínia Lefèvre, tais como Mamãe Sabugueiro e outras histórias bonitas;
A sereiazinha e outras histórias bonitas e A rainha da neve e outras histórias.
Além desses, entre os anos 1930 e 1940, Virgínia Lefèvre traduziu e adap-
tou algumas obras de Sophie Rostopchine Ségur, a conhecida Condessa de Ségur,

105 Ubatuba. Decreto nº 9892, de 13 de março de 1972.

106 Por meio dos procedimentos de localização, recuperação, reunião, seleção, ordenação e análise de refe-
rências de textos de Virgínia Melle da Silva Lefèvre e de outros autores que se propõem a estudar sua
vida pessoal e profissional, bem como a sua produção intelectual, tem sido desenvolvido o documento
Produção de e sobre Virgínia Melle da Silva Lef èvre (1907-1987): um instrumento de pesquisa (EBIZE-
RO, 2022).

199
tais como: A casa do anjo da guarda; Braz e a primeira comunhão; Meninas exempla-
res; Um bom diabrete. Coelho (1983) afirma que Virgínia Lefèvre “[...] retratou
com fidelidade o clima e os valores da segunda metade do século XIX, época em
que a Condessa de Ségur escreveu sua obra, e quando os valores do Romantismo
forçavam ainda caminho para se consolidarem, como mentalidade, nas relações da
vida real.” (COELHO, 1983, p. 898, grifos da autora).
Virgínia Melle da Silva Lefèvre, ainda na década de 1940, traduziu o livro
Papai pernilongo, de Alice Jane Chandler Webster, autora do fim do século XIX,
mais conhecida por meio de seu pseudônimo107 Jean Webster.
Em 1945, Virgínia Lefèvre teve publicados, pela Editora o Brasil, livros
de sua autoria para a coleção O mundo e suas maravilhas, conforme apontado
anteriormente. Coelho (1983) afirma que essa coleção é composta por narrativas
romanceadas e destinadas, principalmente, ao uso nas escolas, cujo objetivo era o
de “[...] transmitir informações, através da recreação” (COELHO, 1983, p. 898).
No Egito antigo; O romance da terra, O homem e a natureza, O romance do mar, Co-
mer para viver, Insetos: amigos ou inimigos e Viagens do mundo antigo são os livros
escritos por Virgínia Lefèvre para a coleção.
Até os anos 1970, Virgínia Lefèvre continuou exercendo trabalho como
tradutora e adaptadora, tendo traduzido títulos de Johanna Spyry, como Heidi e
Outra vez Heidi; além da obra Sem família, de Hector Henry Maloe.
Conforme afirma Coelho (1983), Virgínia Lefèvre foi, por anos, autora
exclusiva da Editora do Brasil S/A. De fato, a maioria das referências de textos
encontradas foi publicada por essa editora. Entretanto, outras grandes editoras
também fizeram parte de sua trajetória profissional. Os livros escritos por ela
para a coleção O mundo e suas maravilhas foram publicados pela Editora Anchie-
ta em 1945. Também foram encontrados alguns títulos publicados pela Editora
Tecnoprint108, sobretudo na década de 1970, época de lançamento e publicação
da série Ana Selva.
Virgínia Lefèvre traduziu e adaptou obras do Inglês, como as de Hans
Christian Andersen; de Alice Jane Chandler Webster (pseudônimo Jean Webs-
ter); de Nina Wilcox Putnam, de Ethel Fairmont, entre outros.

107 De acordo com Telles (2004), no século XIX era comum que as escritoras adotassem um pseudônimo
masculino para serem aceitas pelo público leitor.

108 Fundada em 1939, pelos irmãos Antonio e Jorge Gertum Carneiro, como uma importadora de livros
técnicos e universitários, sob o nome de Publicações Pan-Americanas, a Editora Tecnoprint consoli-
dou-se como a maior produtora de livros de bolso do Brasil na década 1970. Após isso, transformou-se
nas Edições de Ouro e, anos mais tarde, converteu-se nas Empresas Ediouro Publicações. Para mais
informações sobre a história da Editora Tecnoprint, consultar Labanca (2009) ou o site das Empresas
Ediouro Publicações, disponível em www.ediouro.com.br. Acesso em 10 jan. 2022.

200
Também traduziu e adaptou obras do Francês, como as de Hector Henri
Malot; de Sophie Rostopchine Ségur (Condessa de Ségur) e de Jean Pierre Claris
de Florian. Traduziu, ainda, obras do alemão, de autoria de Johanna Spyry.
Depois de uma primeira experiência como autora e depois de anos de-
dicando-se à tradução e adaptação, entre os anos 1974 e 1975, Virgínia Lefèvre
teve publicada a série Ana Selva, pela editora Tecnoprint (algumas edições levam
o nome da editora como Edições de Ouro).
A série Ana Selva é composta por narrativas que se desenvolvem em torno
da personagem principal, Ana Selva: uma menina que vive em uma chácara no
interior de São Paulo, que tenta conciliar a vida do campo (simples e natural)
com a vida da cidade (a vida dita civilizada). Trata-se de histórias permeadas
por conflitos, mistérios, viagens, aventuras, enfermidades e sobretudo, de muitos
aprendizados, que estão intimamente ligados à educação e à formação moral das
“mocinhas” brasileiras.
Embora a série tenha sido publicada na década de 1970, são representados
nas narrativas aspectos relacionados à primeira metade do século XX, sobretudo
no que concerne à educação, ao comportamento e ao lugar da mulher na socie-
dade. É somente no 4º livro da série, Ana Selva contra a doença, por exemplo, que
o leitor pode inferir por meio da fala das personagens que o tempo da narrativa
se passa entre as décadas de 1940 e 1950: “Todos tomavam muito cuidado para
não falar na guerra recém-terminada, com o terrível evento da bomba atômica.”
(LEFÈVRE, 1975, p. 68).
Pode-se dizer que do modo como a autora conduziu a temática da edu-
cação da mulher ao escrever a série Ana Selva, confere-lhe uma estética literária
para crianças própria, que articula comportamentos e costumes que aludem ao
final do século XIX e à primeira metade do século XX.
Nesse sentido, a série pode ser considerada como romance de costumes
(COELHO, 1983), pois apresenta aspectos da vida social de pessoas comuns,
de uma família comum, mas que ao mesmo tempo representa um processo civi-
lizatório da menina Ana Selva; os comportamentos esperados para uma mulher,
que deve ser educada, sábia, elegante, de bons modos; além de representar que as
meninas têm valores e educação diferentes dos meninos.

Virgínia Lefèvre: intelectual mediadora e produtora cultural

A partir da análise de aspectos da vida pessoal, profissional e da produção


escrita de Virgínia Lefèvre, é possível afirmar que a autora exerceu, ao longo de
sua trajetória, papel fundamental como intelectual mediadora e produtora cultu-
ral.

201
Gomes e Hansen (2016, p. 10) afirmam que os intelectuais são “[...] ho-
mens da produção de conhecimentos e comunicação de ideias, direta ou indire-
tamente vinculados à intervenção político-social.”. Nesse sentido, ainda com base
nas proposições de Gomes e Hansen (2016), o intelectual mediador muitas vezes
[...] ocupa um cargo estratégico numa instituição cultural, pú-
blica ou privada, numa associação ou organização política, ou
atua desde um lugar privilegiado numa rede de sociabilidades,
de onde protagoniza projetos de mediação cultural de enormes
impactos políticos. (GOMES; HANSEN, 2016, p. 18).

Virgínia Lefèvre atuou como intelectual mediadora à medida em que ocu-


pou um lugar de prestígio na sociedade, dada a sua condição social privilegiada, e
fez parte de uma organização social, a Sociedade Pró-Educação e Saúde (SPES),
que exerceu papel político e cultural importante na região de Ubatuba, a ponto
de ter sido reconhecida como utilidade pública, conforme apontou-se anterior-
mente.
Jean-François Sirinelli (2003, p. 248) afirma que “[...] o meio intelectual
constitui, ao menos para seu núcleo central, um ‘pequeno mundo estreito’, onde
os laços se atam”. Dessa forma, para esse mesmo autor, rede de sociabilidade pode
ser entendida de uma maneira “[...] na qual também se interpenetram o afetivo
e o ideológico. As ‘redes’ secretam, na verdade, microclimas à sombra dos quais a
atividade e o comportamento dos intelectuais envolvidos frequentemente apre-
sentam traços específicos” (SIRINELLI, 2003, p. 252).
Assim, pode-se afirmar que a trajetória profissional e pessoal de Virgínia
Lefèvre estiveram rodeadas de pessoas que se uniram em função de um mesmo
ideal, dado que seus amigos e familiares estiveram envolvidos em suas ações de
filantropia por meio da SPES. Ou seja, de certa forma, pode-se dizer que existiu
uma rede de sociabilidade de intelectuais (ainda que talvez não reconhecidos)
que contribuiu para que as ações filantrópicas de fato acontecessem, de modo a
promover serviços de assistência social e educacional.
No que diz respeito ao trabalho de tradução e adaptação de literatura in-
fantil, Raffaini (2016) afirma que,
[...] o tradutor, assim como o editor, pode ser visto como um
intelectual mediador, na medida em que transmite um saber
cunhado por outro, mas, ao mesmo tempo, atua como criador,
pois em última instância são dele as escolhas, as palavras e as
construções feitas. Lembremos também que, nesse processo de
mediação, o tradutor atua não somente transmitindo um deter-
minado conhecimento, mas age exercendo pressões renovadoras
sobre as estruturas de construção linguística de seu país. (RAF-
FAINI, 2016, p. 68, grifos nossos).

202
Desse modo, compreende-se que Virgínia Lefèvre exerceu papel não so-
mente como mediadora, mas como criadora cultural, dada a sua extensa produ-
ção escrita de obras traduzidas para o português brasileiro. Na medida em que
produziu novos significados ao se apropriar de termos, ideias, conhecimentos de
pelo menos três línguas e culturas diferentes, ao traduzir e adaptar, cria “um outro
produto”, “um bem cultural singular” (GOMES; HANSEN, 2016, p. 18).
Considerações finais

Neste texto, buscou-se compreender, por meio da análise dos aspectos da


vida e da atuação profissional de Virgínia Melle da Silva Lefèvre, como essa in-
telectual contribuiu para os campos da educação, da saúde e da literatura infantil
como mediadora e produtora cultural.
Gomes e Hansen (2016) afirmam que
[...] um mesmo intelectual pode ser “criador” e “mediador”;
pode ser só “criador” ou só “mediador”; ou pode ser “mediador”
em mais de um tipo de atividade de mediação cultural, sendo
seu valor conferido pelo reconhecimento de seu trabalho, quer
pelo público, quer pelo próprio campo intelectual com o qual
dialoga. (GOMES; HANSEN, 2016, p. 22).

No caso de Virgínia Lefèvre, conforme demonstrado anteriormente, con-


sidera-se que ela tenha desempenhado tanto a função de intelectual mediadora,
quanto a de criadora, dada a sua atuação profissional como tradutora, adaptadora
e escritora de obras de literatura infantil e juvenil, e como presidente da Socieda-
de Pró-Educação e Saúde, com seu trabalho social e filantrópico.
O reconhecimento desse papel como mediadora e produtora cultural pode
ser identificado na sua nomeação para ocupar uma das 40 cadeiras na Academia
Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil, fundada em 21 de março de 1978 e
idealizada por Lenyra Fraccaroli (OLIVEIRA, 2015). Virgínia Lefèvre ocupou a
20ª cadeira e seu patrono eleito foi Viriato Correa (OLIVEIRA, 2015). Também
o reconhecimento da Sociedade Pró-Educação e Saúde (SPES) como utilidade
pública é outro aspecto que atesta para a importância das ações desempenhadas
por essa escritora, tradutora e professora no campo das produções e das media-
ções culturais.

Referências

ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e Educação: a paixão pelo possível. São Paulo:
Editora Unesp, 1998.

203
COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil/juvenil brasileira
(1882-1982). São Paulo: Edições Quíron, 1983.

ESTEVES, Ricardo Grisolia. Virginia Lefèvre e a S.P.E.S. Núcleo de Documentação


Luiz Ernesto Kawall (Doclek), 2014. Disponível em: http://doclek.blogspot.
com/2014/11/virginia-lefevre-e-spes.html. Acesso em: 10 jan. 2022.

GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patricia Santos (Org.). Intelectuais mediadores:


práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

LEFÈVRE, Virgínia Melle da Silva. Ana Selva contra a doença. Rio de Janeiro:
Tecnoprint, 1975.

LEFÈVRE, Virgínia Melle da Silva Lefèvre. Relatório. s/d. 6 p.

LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary del (Org.);
BEZZANEZI, Carla (coord. de textos). História das mulheres no Brasil. 7. ed. São
Paulo: Contexto, 2004, p. 443-481.

NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. 3 ed. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2009.

OLIVEIRA, Fernando Rodrigues de. História do ensino da literatura infantil na formação


de professores no estado de São Paulo (1947-2003). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015.

PRIORE, Mary del (Org.); BEZZANEZI, Carla (coord. de textos). História das
mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

RAFFAINI, Patricia Tavares. A Livraria Garnier e a tradução e edição de livros para


infância (1890-1920). In: GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patricia Santos
(Org.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2016, p. 66-91.

RÉMOND, René. Por uma história política. 2. ed. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2003.

SOCIEDADE PRÓ-EDUCAÇÃO E SAÚDE. Relatório da Sociedade Pró-


Educação e Saúde - 1975. São Paulo: s. e. 1975.

SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René. Por uma história


política. 2. ed. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 231-269.

TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORE, Mary del (Org.);
BEZZANEZI, Carla (coord. de textos). História das mulheres no Brasil. 7. ed. São
Paulo: Contexto, 2004, p. 401-442.

204
9. “ASSUMPTOS QUE CONCORRAM PARA A
FORMAÇÃO DE SEUS SENTIMENTOS”: A
INFÂNCIA REPRESENTADA NAS OBRAS
FRANCISCO FURTADO MENDES VIANNA (1908)

Alessandra Melo Secundo Paulino

Introdução

O presente capítulo visa empreender uma análise sobre a representação


de infância nas obras de Francisco Furtado Mendes Vianna109, que foi professor
normalista, diretor escolar, inspetor e superintendente geral de ensino no início
do século XX.
O estudo está aportado nos referenciais da História Cultural, História da
Infância e História da Educação. O corpus documental selecionado são alguns dos
livros que compõem a série Leituras Infantis110: Primeiro livro de leituras infantis,
Segundo livro de leituras infantis e Terceiro livro de leituras infantis, todos com pri-
meira edição no ano de 1908, pela livraria Francisco Alves & Comp.
A finalidade de analisar a representação de infância utilizando como fonte
os livros de leitura justifica-se pela sua amplitude discursiva, capaz de atingir não
somente aqueles que estão inseridos na cultura escolar, mas também os sujeitos
que compõem a esfera social da qual a escola faz parte. Desta forma, os livros são
formulados, comercializados e utilizados com uma intencionalidade social e cul-
tural. Para Corrêa (2005), essas obras servem como um importante instrumento
de análise, considerando o papel de “mediação” que realizam entre os sujeitos em
formação com o restante da sociedade.
Os livros voltados para as crianças, considerados como literaturas infan-
tis, possuem um importante valor simbólico para a formação desses sujeitos. De
acordo com Hansen (2016), são bens culturais valorizados pelas sociedades con-
temporâneas desde o fim do século XVIII na Inglaterra e, a partir do século
XIX, em outros países da Europa e América. Além de proporcionar a capacidade

109 A investigação proposta é uma derivação da dissertação de mestrado: Um mundo de pura manifestação
dos sentimentos: A trajetória de Francisco Vianna e a representação de infância em suas obras (1876-1935).

110 A série “Leituras infantis” é composta pelas seguintes obras: Cartilha: Leituras Infantis (1911?); Pri-
meiros passos na leitura (1915); Leitura preparatória (1908); Primeiro Livro de Leituras Infantis (1908b);
Segundo Livro de Leituras Infantis (1908c); Terceiro Livro de Leituras Infantis (1908d); e Quarto Livro
de Leituras infantis: apanhados e factos históricos (1919).

205
leitora, são objetos divulgadores e mediadores de concepções e comportamentos
sociais. Compreender o que deve ser publicizado para o consumo infantil, iden-
tificar a delimitação do que é considerado apropriado para a criança e, a partir
desses conteúdos, localizar indícios sobre as concepções e ideias de determinadas
sociedades é um dos temas de interesse da História da Infância.
Para Gouvêa (2008), recorrer às fontes literárias contribui para a análise da
história da infância e da criança, além de permitir o acesso às representações que o
adulto tem sobre o universo infantil e identificar pistas sobre expressões culturais
para essa fase humana.
Os livros da série Leituras infantis foram publicados no início do século
XX, um período demarcado por uma nova demanda no campo da educação111,
que careceu de profissionais de diferentes áreas do saber: especialistas da área da
política e do direito, médicos e sanitaristas, arquitetos, principalmente docentes
empenhados com as novas mudanças, com conhecimento dos métodos de ensino
para a elaboração de materiais escolares, dentre eles, os livros didáticos. Quanto
aos conhecimentos a serem lecionados, foi possível identificar algumas modifi-
cações:
[...] os programas de ensino para a escola elementar se limi-
tavam ao ensino inicial das habilidades da leitura, da escrita e
do cálculo, progressivamente se foram constituindo conteúdos e
saberes específicos para serem ensinados pela instituição escolar;
também progressivamente os saberes compreendidos como “lei-
tura” e “escrita” ganham novas dimensões, respondem a novas
exigências e demandas sociais, assumem formas mais complexas
de escolarização (BATISTA; GALVÃO; KINKLE, 2002, p.28).

Além da busca por novos profissionais para realizar as modificações na


educação, compreendida como um projeto de nação, a classe dominante estabele-
ceu um discurso formativo característico para a infância, considerando que “[...]
os republicanos paulistas necessitam consolidar e divulgar o seu modelo escolar
por meio de conferências, escritos e livros didáticos, todos dirigidos aos profes-
sores com intenção de prescrever o que e como ensinar” (PANIZZOLO, 2019,
p. 822). Dessa forma, novas visões de educação e de infância foram elaboradas.
Rago (1985) identifica que os grupos dominantes projetavam as crianças
como sujeitos de fácil formação, ainda que tivessem os vícios latentes que deve-
riam ser aperfeiçoados pela Pedagogia. Quanto à rotina, era marcada pela urgên-
cia de um projeto nacional que tinha por estratégias uma suave disciplinarização
do corpo e da mente. Através da terapia do trabalho, pretendia “[...] manter os

111 Para maiores informações, ler João Köpke e a escola republicana: criador de leituras, escritor da modernidade
(PANIZZOLO, 2006) e Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de
São Paulo (SOUZA, 1998).

206
menores ocupados o tempo todo: no interior das escolas particulares ou na esfera
do lar, para os ricos, nas instituições assistenciais ou nos patronatos e orfanatos,
no caso dos pobres” (p. 122).
Quanto às ações de idealização do povo republicano, Câmara (2010) apon-
ta uma urgência na formação da identidade nacional, visando a padronização da
população. Dentre as ações realizadas, criar símbolos de identificação para uma
nação era indispensável, considerando necessário transmitir um ideal de civili-
zação nacionalista “[...]e de reforma social do país, tendo em vista incorporar o
“todo social”, com suas diferenças e individualidades, aos ideais modernizantes de
transformação da sociedade” (p.119). Quanto à mobilização para invenção dessa
nacionalidade, a autora diz que:
Os intelectuais, ao intencionar produzir a identidade nacional
do povo brasileiro, cindiram os ideais de sua integração política,
cultural e moral como partes constitutivas da ideia de naciona-
lidade. A partir dessa sutura entre o político, moral e o cultural
estabeleceram não só os aspectos constituintes dos direitos e dos
deveres do povo, mas também mapearam as diferenças no seu
interior, a fim de suprimi-las (CÂMARA, 2010, p. 121).

No que tange ao ato de implementar na sociedade um ideal republicano e


um “sentimento nacional”, seria importante a criação de diferentes dispositivos
de convencimento por meio do ensino e deleite, muito mais do que pelo castigo e
repressão (CÂMARA, 2010). Dessa maneira, foram escolhidas estratégias a fim
de colocar a instituição escolar como um espaço de fecundidade da nacionalida-
de e as principais ferramentas usadas no ambiente escolar para a consolidação
desse discurso foram os livros didáticos, sendo o mais difundido deles os livros
de leitura infantil. Sobre o projeto de formação para a infância, a autora expõe
a importância de um projeto de aprimoramento do indivíduo naquele período:
A ênfase direcionada à instrução das crianças associava-se ao
caráter essencial da educação para o aprimoramento da raça,
para o engrandecimento da pátria. Em uma clara alusão, desta-
caram o papel preponderante que essa assumia no processo de
“redenção nacional” que se esperava incrementar com a educa-
ção física e moral da criança. Incutir valores morais e cívicos, as
noções de ordem, de civilidade, desenraizando os hábitos perti-
nentes às camadas populares dos fazeres e pensares das crianças
constituiu-se a tônica dos discursos e ações enfeixadas em torno
da prerrogativa curativa da infância pobre (CÂMARA, 2010,
pp.126-127).

De tal modo, os livros de leitura foram os principais divulgadores de pro-


jetos de civilidade, proporcionando a educação do corpo e da mente, projetando
valores morais e comportamentais sob a forma de narrativas. Os livros infantis

207
possuem um papel importante para o processo de civilização, pois proporcionam
às crianças uma série de “espaços de sua existência e expressão, que funcionam
reorganizando simbolicamente os lugares ocupados por públicos que detêm sua
propriedade ou apropriação conformada a certa prática (TOZZI, 2013, p. 137).
Assim, considerando as peculiaridades do livro escolar e a sua magnitude
discursiva, foram adotados os seguintes procedimentos metodológicos: análise
da materialidade e do conteúdo das obras escolhidas (histórias, temas, imagens e
estrutura de narrativa), além do contexto no qual estão inseridas as obras.
Além dos livros do autor, houve uma escolha procedimental em utilizar
a obra Modernas directrizes no enzino primario: escola activa do trabalho ou nova
(1930), com alguns artigos publicados por Francisco Vianna durante o seu pe-
ríodo de produção intelectual. A opção por utilizar mais de um tipo de fonte
também entra em consonância com os estudos de Bourdieu (2004) sobre as pro-
duções culturais e sua relação com a noção de campo. De acordo com o autor, há
perigo em analisar somente o texto ou o texto com o contexto, em uma relação
biunívoca, provocando assim um “erro de curto-circuito”. Para que esse problema
não ocorra, é necessário identificar e analisar diferentes universos que permeiam
essas obras, ou seja, o “campo literário, artístico, jurídico ou científico, isto é, o
universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, repro-
duzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência” (BOURDIEU, 2004, p.20).
A fim de subsidiar a análise, nesta pesquisa utiliza-se o conceito de “in-
fância” apresentado por Faria Filho e Fernandes (2007); Kuhlmann e Fernandes
(2004); e Gouvêa (2004, 2007), como uma categoria flexível e mutável, pois varia
de acordo com as experiências culturais e sociais, em determinados momentos
cronológicos e espaciais nos quais discursos e materiais são produzidos como
forma de diferenciação à fase adulta. Portanto, o estudo não pretende delimitar a
concepção de infância republicana do início do século XX, mas sim a infância di-
vulgada por Francisco Furtado Mendes Vianna, professor normalista, que atuou
em grupos escolares e ginásios do estado de São Paulo, foi inspetor e superinten-
dente de ensino do Rio de Janeiro, escreveu artigos educacionais, elaborou cursos
de preparação para o acesso ao ensino Normal, defensor dos ideais positivistas e
do ensino pela observação dos fenômenos naturais, como também “[...]da expe-
riencia e comparação pela propria creança, sobre os seres e mesmo os phenome-
nos que lhe são accessiveis” (VIANNA, 1930, p. 70).
Além do conceito de infância, optou-se pelo de “representação” proposto
por Chartier (1990), para a operacionalização de análise das obras citadas. No que
diz respeito aos diferentes discursos produzidos em suas materialidades, Chartier
(1990) defende que as representações “[…] têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou
tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu

208
domínio” (p. 17). Assim, é necessário compreender que essa tentativa de “formu-
lação” do real parte da ideia de que a sociedade está caracterizada por processos
de classificação, diferenciação e delimitação; ações essas que são elaboradas pelos
grupos sociais que a forjam, com o desígnio de produzir discursos que não podem
ser considerados neutros, pois produzem estratégias e práticas e estão constante-
mente em um campo de concorrências, em uma relação permanente entre poder
e dominação.
Assim, o texto está organizado em duas seções, além das considerações fi-
nais. A primeira denominada Série Leituras infantis: “porque exprimimos bem aquilo
que conhecemos e sentimos bem” pretende apresentar, de forma breve, a vida do autor
e as obras selecionadas para análise, considerando a materialidade e a estrutura
narrativa. A segunda parte, “Assumptos que concorram para a formação de seus sen-
timentos”: a infância representada nas obras Francisco Furtado Mendes Vianna, visa
apresentar a representação da infância concebida por Francisco Vianna nas obras
selecionadas.

Série Leituras infantis: “porque exprimimos bem aquilo que


conhecemos e sentimos bem”

Francisco Furtado Mendes Vianna nasceu em 1876, no Rio de Janeiro


(Distrito Federal). Foi estudante da Escola Normal de São Paulo, um local privi-
legiado para as discussões sobre concepções educacionais, filosóficas e políticas
do período. A mesma instituição era composta por docentes defensores do ideal
positivista, dentre eles, o seu tio Godofredo José Furtado, que foi um dos funda-
dores do Centro Positivista de São Paulo e responsável legal por Francisco Vianna
desde os 12 anos. Após a sua formação na Escola Normal112, lecionou em escolas
do estado de São Paulo, tornou-se professor secundário e diretor interino do
Colégio Culto à Ciência, inspetor de ensino distrital no Rio de Janeiro e Superin-
tendente Geral do Ensino Elementar e Particular do Departamento de Educação
nos últimos anos de vida.
Além de atuar como inspetor e superintendente, Francisco Vianna es-
creveu diversos artigos educacionais em revistas de ensino como A Escola Pri-
mária (1910-1939) e a Revista de Ensino (1902-1918), publicou suas palestras
em escritos e ofereceu cursos preparatórios para as Escolas Normais. Dentre as
suas diferentes produções que envolvem poemas, palestras e artigos educacionais,
destacam-se os livros didáticos: Leitura preparatória (1908); Primeiro Livro de

112 Após completar quatro anos desde sua formação pela Escola Normal de São Paulo (1895), Francisco
Furtado Mendes Vianna retorna à instituição, entre 1899 e 1900, para cursar as matérias que foram
integradas pela reforma da instrução pública aprovada por Gabriel Prestes.

209
Leituras Infantis (1908); Segundo Livro de Leituras Infantis (1908); Terceiro Livro
de Leituras Infantis (1908); Novo methodo de caligraphia vertical (1909?); Cartilha:
Leituras Infantis (1911?); Primeiros passos na leitura (1915); Quarto Livro de leitu-
ras infantis: apanhados e factos historicos (1919); Pequena Historia do Brazil (1922);
Novo methodo de calligrafia americana (inclinada) (1890?); Cadernos illustrados
(s.d.) e Novos cadernos de linguagem (s.d).
As obras escolhidas para a análise, Primeiro livro de leituras infantis, Se-
gundo livro de leituras infantis e Terceiro livro de leituras infantis, fazem parte da
série graduada Leituras infantis e foram publicadas por meio da Livraria Fran-
cisco Alves & Comp. A série graduada é um conjunto de livros para o ensino
elementar, composta por sete obras: duas cartilhas com métodos diferentes para
a alfabetização, um livro preparatório para leitura, três livros de leitura e um livro
com contos pátrios. Essas obras possuem a característica de “(...) uma progressão
tanto no interior dos livros quanto em suas relações com os demais livros da série,
em geral baseada na extensão e na complexidade dos textos utilizados (BATISTA
et al, 2002, p. 35).
O Primeiro Livro de Leituras Infantis destinava-se ao ensino de leitura cor-
rente nos primeiros anos do ensino primário, para utilização após as obras Carti-
lha e Leitura Preparatória. Quanto ao conteúdo, foi possível localizar na 9ª edição,
de 1911, um total de sessenta e uma lições, contendo: poemas (dentre esses há três
que estão utilizando uma tipografia diferenciada), uma mistura dois tipos textuais
(carta e conto) e desse total de lições, dezesseis possuem continuação das tramas,
com uma média geral de dois a três contos por história. Todas as lições propostas
contêm, em média, duas páginas.
Sobre a comunicação entre as figuras e os textos, constata-se que as fo-
tografias conseguem “dialogar” melhor em detrimento das gravuras que acom-
panham as narrativas ou os ornados que separaram uma história da outra e que
geralmente representam cenas voltadas para o campo (paisagens, casas localizadas
em florestas ou pássaros) e não possuem relação direta com o conteúdo dos textos.
Entende-se que essas imagens estão pautadas numa visão fantasiada da realidade,
abrindo a possibilidade da imaginação infantil.

210
Figura 1 – Capa e lição da obra Primeiro Livro de Leituras Infantis

Capa e página 11 da 9ª edição da obra Primeiro Livro de Leituras Infantis, publicada em 1911. Fonte: Biblio-
teca Nacional de Maestros – BNM.

O Segundo Livro de Leituras infantis, com a 5ª edição no ano de 1911, con-


tém sessenta lições, destas: dez poemas, dois textos com dois gêneros, o primeiro
constitui-se por um conto e poema, e o segundo, por conto e carta, sendo que o
último está destacado por uma tipografia diferenciada; com uma média geral de
quatro páginas por lição proposta. Sobre a originalidade das narrativas, diferente-
mente do Primeiro Livro, o autor cita que quatro lições não foram escritas por ele,
ou seja, são traduções: O pastel magico, Um discurso bisado, Os ladrões e a machina
photographica e A carta e o selvagem (VIANNA, 1911b).
Quanto às ilustrações, houve uma diminuição em relação à obra anterior,
sendo assim, composta por sessenta e quatro gravuras, cinco fotografias e trinta
filetes. Foi possível identificar a presença de gravuras mais sofisticadas, em maior
escala, porém com uma menor relação com o texto, se comparadas com as do
Primeiro Livro.

211
Figura 2 – Capa e lição da obra Segundo Livro de Leituras Infantis

Capa e página 70 da 5ª edição da obra Segundo Livro de Leituras Infantis, publicada em 1911. Fonte: Biblio-
teca Nacional de Maestros – BNM.

O Terceiro Livro de Leituras Infantis, na 21ª edição do ano de 1917, possui


cinquenta e sete lições: doze poemas e trinta e sete contos, divididos em quinze
tramas. Desse total, sete não são originais: “O cão do engraxador, Um jogador
de vintém, Bancos de carne e osso, O dinheiro do cego, Um ladrão roubado, A
primeira prova e A quarta prova” (VIANNA, 1917, p. 206).
Com uma média geral de quatro páginas por lição, observou-se que as
gravuras ocupam a maior porção das páginas, apesar de surgirem em quantidade
menor, com um total de: quarenta e seis gravuras, um filete e nenhuma fotografia.

212
Figura 3 – Folha de rosto e lição do Terceiro Livro de Leituras Infantis

Folha de rosto e 50 do Terceiro Livro de Leituras Infantis, 21ª edição publicada em 1917. Fonte: Biblioteca
Nacional de Maestros – BNM.

Quanto à forma narrativa dos livros, identifica-se que, quase em sua to-
talidade, possui um narrador em terceira pessoa, definido como heterodiegético,
pois “possui um distanciamento da história narrada” (FRANCO JUNIOR, p. 40),
conferindo uma participação de grau zero. No que diz respeito ao foco narrativo,
considera-se como onisciente neutro:
Esse foco narrativo caracteriza-se pelo uso da 3ª pessoa do dis-
curso. Tende ao uso do sumário, embora não seja incomum que
use a cena para a inserção de diálogos e para a dinamização da
ação e, consequentemente, do conflito dramático. Reserva-se,
normalmente, o direito à caracterização das personagens, des-
crevendo-as e explicando-as para o leitor (FRANCO JUNIOR,
2009, p. 43).

Observou-se que muitas narrativas apresentam a descrição do personagem


por meio do narrador, como “Tinha, porém, o defeito de suppôr-se mais intelli-
gente e, sobretudo, melhor, só por ser filho de paes ricos” (VIANNA, 1917, p. 7);
ou “Pedro poude, então, apreciar a honradez de João, que fôra incapaz de apro-
veitar-se da sua patetice” (VIANNA, 1917, p. 33). Essas características compor-

213
tamentais ou físicas dos personagens podem estar relacionadas ao nó ou ao fecho
da narrativa, comprovando uma causalidade já em suposição pelo leitor.
Além disso, ao mesmo tempo em que o narrador conta o que irá acontecer
na trama, também decide quais são os personagens capazes de realizar tais com-
portamentos, fazendo com que a criança-leitora (com o apoio do professor) iden-
tifique quais são as ações que precisam ser evitadas e o que se espera de pessoas
que possuem certa forma de pensamento, tipo físico ou condição social.

“Assumptos que concorram para a formação de seus sentimentos”: a


infância representada nas obras Francisco Furtado Mendes Vianna

As narrativas da série de leitura foram elaboradas visando conteúdos vol-


tados para a realidade infantil, com a escolha das ações cotidianas vivenciadas
por crianças com seus pares ou com os adultos, sendo eles familiares ou desco-
nhecidos. Há também a interação com animais domésticos. A escolha por trazer
historietas não fantasiosas entra em consonância com a visão defendida pelo
autor sobre a criança:
Eis, porque, embora a psychologia da creança seja, quanto ás
faculdades elementares postas em jogo, fundamentalmente a
mesma do adulto, nós não a podemos tratar como si fosse um
adulto em que todas ellas se manifestassem reduzidas na mesma
proporção. Uma vez que a relação que há entre cada uma das fa-
culdades elementares no adulto e na creança não pode ser repre-
sentada pelo mesmo coeficiente, a combinação delas apresenta,
num e noutro caso, resultados aparentemente tão diversos que
se assemelham a muitos como oriundos de faculdades tambem
diversas (VIANNA, 1930, pp. 50-51).

Observa-se um embasamento da Psicologia nos artigos publicados por


Francisco Vianna. Para definir a criança em seu processo de desenvolvimento
físico e psicológico, o autor utiliza a citação da Sra. Johnson, presente na obra
Escola de Amanhã:
[...] A creança vive anciosa por mover-se, mental e physicamen-
te. Do mesmo modo que o crescimento physico tem de dar-se
juntamente com o mental, outrotanto ocorre nos factos isolados
da creança. O seu desenvolvimento corporal e a sua evolução
mental dependem mutuamente um do outro. ( JOHNSON
apud VIANNA, 1930, p. 28)

Compreende-se, portanto, que nas narrativas estruturadas por Francisco


Vianna existem elementos que legitimam a alteridade da criança em relação ao
adulto, não somente por sua idade ou características físicas, mas também pelo seu

214
desenvolvimento psicológico. Importante destacar que essa alteridade delimita
somente as características naturais e não culturais.
Além de diferenciar as capacidades da criança em relação ao adulto, o próprio
autor compreende que as crianças também são diferentes entre elas. É possível lo-
calizar historietas com assuntos diversos, com a finalidade de não focalizar em uma
classe social específica, mas na fase compreendida por infância e suas possíveis varia-
ções. Abaixo, a tabela aponta a quantidade de personagens principais nas narrativas
das obras estudadas. Observa-se a centralidade da criança no Primeiro Livro, porém,
nas obras seguintes, o adulto possui também narrativas principais, com a função de
demonstrar como os mais velhos lidam com as questões altruístas e egoístas.

Tabela 1 – Recorrências de personagens principais nas obras

Obras/Espaços Primeiro Livro Segundo Livro Terceiro Livro


Criança 60 45 52
Adulto 1 14 7
Animal - 1 -

Fonte: Dados coletados por meio da revisão bibliográfica de obras didáticas publicadas por Francisco Fur-
tado Mendes Vianna. (editado)

Francisco Vianna representava as crianças em uma faixa de idade entre 7


e 14 anos, considerando o ensino primário do período, ainda que algumas histo-
rietas também apresentassem personagens com idades a partir dos 3 anos. Con-
siderando a complexificação da trama para a infância e o leitor-criança que tem
contato com a Cartilha (entre 7 e 8 anos), as narrativas foram elaboradas de forma
mais simples, com poucos personagens coadjuvantes e com a presença constante
de pais ou familiares. Nos livros seguintes o leque de “indivíduos” passa a aumentar
em cada obra, adicionando vizinhos, patrões e desconhecidos, com status de per-
sonagens principais ou secundários. A tabela abaixo apresenta a complexificação
dessas relações nas obras estudadas:

Tabela 2 – Recorrências de relações entre personagens nas obras

Obras/Personagens Primeiro Livro Segundo Livro Terceiro Livro


Uma Criança 7 3 4
Criança/Criança 18 3 4
Criança/Adulto 30 36 39
Criança/Animal 2 - 2
Adulto/Adulto - 11 7

Fonte: Dados coletados por meio da revisão bibliográfica de obras didáticas publicadas por Francisco Fur-
tado Mendes Vianna. (editado)

215
Já na tabela abaixo, foi possível constatar a presença da família com muitas
ocorrências nas tramas, com a função de demonstrar à criança valores como: a
bondade, empatia, o apego e o respeito. A escola e o trabalho, representados pelo
professor/mestre e o patrão, aparecem menos. O motivo reside na compreensão
do autor de que a família é instituição de maior importância e capaz de apresentar
os valores morais pautados no controle dos comportamentos. Vale ressaltar que o
autor defende que é pela família que se aprende esses ideais, a segunda instituição
responsável seria a Pátria.

Tabela 3 – Adultos representados nas obras

Obras/Espaços Primeiro Livro Segundo Livro Terceiro Livro

Pai 21 14 19

Mãe 29 16 25

Avô 1 2 1

Avó 2 - -

Tios/Padrinhos 7 6 2

Outros familiares - 1 1

Empregada 1 1 -

Vizinho - - 1

Desconhecidos 2 9 3

Patrão - 3 8

Professor/Mestre 8 5 3

Fonte: Dados coletados por meio da revisão bibliográfica de obras didáticas publicadas por Francisco Fur-
tado Mendes Vianna. (editado)

Ainda sobre a educação dos infantes, para o autor, as crianças que fre-
quentam o ensino primário, na verdade, precisariam aprender as noções morais e
outras inteligências por meio da educação materna, excluindo a necessidade do
ambiente institucional educacional. Além de poucas narrativas com a presença da
escola (citando-a indiretamente), sua concepção de ensino se faz presente tanto
na conferência realizada por ele em 1919, a qual possui o item 1ª ilusão – Suppôr-
-se a escola a instituição mais adequada para o ensino primario (VIANNA, 1930, p.
99), quanto no artigo A questão do analphabetismo, publicado na revista educacio-
nal A Escola Primaria, no dia 14 de março de 1924. Porém, o autor entende que a
forma de ensino familiar só seria possível caso a sociedade conquistasse certo grau
de “positividade”, eliminando instituições responsáveis por regular os sujeitos e
transferindo a responsabilidade para os próprios indivíduos:

216
Mas, embora eu continue a considerar a escola primaria como
instituição transitória, destinada a desapparecer no dia em que
a organização social permita ás mães assumirem integralmente
o verdadeiro papel de educadoras de seus filhos até os 14 annos,
reputo a transformação da escola primaria actual para como de
alta relevância, porque ella irá concorrendo para a transforma-
ção dos cérebros capazes de repetir bem o que os outros fizeram,
em cérebros verdadeiramente pensantes por si, creadores, ser-
vindo a indivíduos dotados de largo sentimento de fraterninade
e verdadeiros habitos de acção.(VIANNA, 1930, p. 20)

As temáticas moralizantes que precisam ser apresentadas às crianças in-


serem-se na perspectiva de formar um bom indivíduo, com competência para
diferenciar o instinto “construtor” do “destruidor”, visando eliminar o segundo,
com o propósito de criar um sujeito mais altruísta e menos egoísta. Todos esses
ensinamentos seriam realizados por meio educação dos sentimentos, pautada no
positivismo comtiano:
Ora, o instincto constructor, a que Auguste Comte chamou
tambem industrial, é de uma indispensabilidade e um valor ex-
cepcionaes, porque é o seu exercício que assegura e facilita a
existência material dos indivíduos que compõem a humanidade.
Pois bem, é com o exercício regular, systematizado e continuo,
do instincto constructor, na indústria, na agricultura e mesmo
no commercio, que a quase totalidade dos indivíduos pode re-
almente colaborar de fórma eficiente para as sociedades em que
vivem, concorrendo, pelos productos, para a facilidade da vida
material, fonte de tantos atritos, e pela sympathia continua que
se desenvolve nos trabalhos para o progresso moral da Humani-
dade (VIANNA, 1930, p.90).

Essa educação dos sentimentos precisa ser abordada em níveis diferen-


ciados, considerando a idade da criança, e deve ser trabalhado, inicialmente, por
meio do ambiente familiar para, posteriormente, ser desenvolvido por meio da
escola, que “[...] consiste exatamente no desenvolvimento de todas as qualidades
que permitem a cada individuo dar uma feição moral á sua atividade, quer quanto
á origem, quer quanto aos meios, quer quanto aos fins” (VIANNA, 1930, p. 56).
No caso de o sentimento do egoísmo prevalecer sobre a criança, o autor
adverte que a sociedade tenderá a ser mais destrutiva, esquecendo os valores fra-
ternais. Abaixo, a relação de temáticas abordadas nas obras, considerando: pri-
meiro, as ações “negativas realizadas” pelas crianças; as ações de bondade, empatia
e respeito, presentes nas ações “positivas”; terceiro, uma tomada de consciência
do personagem ao perceber o seu erro e tentar agir de forma positiva, o que está
delimitado por “mudança repentina”; por fim, as que não são caracterizadas por

217
algum ensinamento pautado em castigos, consequências ou recompensas, defini-
do por narrativas “neutras”.

Tabela 4 – Atitudes interessadas nas obras

Atitudes interessadas Primeiro Livro Segundo Livro Terceiro Livro

Negativas 28 20 15

Positivas 15 10 16

Mudança repentina (- para + /recompensa ou aprendizado) 10 16 9

Neutra (natureza, inocência infantil/povo do interior, morais


6 13 14
sem castigos aparentes)

Fonte: Dados coletados por meio da análise das obras Primeiro Livro de Leituras Infantis (1911ª), Segundo
Livro de Leituras Infantis (1911b) e Terceiro Livro de Leituras Infantis (1917). (editado)

No Primeiro Livro, há ocorrências de leituras positivas, porém, as ações


negativas prevalecem nas narrativas. A presente obra possui um índice maior de
lições nas quais os personagens percebem seus erros e mudam as suas condutas,
ou seja, passam a compreender a diferença entre o certo e o errado. No Segundo
Livro, ocorre um aumento expressivo de lições consideradas neutras, a justifica-
tiva reside no aumento de historietas com continuações (Parte I, II e III), apre-
sentando as tramas negativas, positivas e de mudanças entre a parte II e III das
tramas. No Terceiro Livro, há quase uma equiparação entre as lições positivas,
negativas e neutras, sob a mesma perspectiva do Primeiro Livro no que concerne
à contextualização das tramas na parte I, e residindo os conflitos e as demonstra-
ções da moral nas partes seguintes.
Dentre as ações negativas, aparecem os “defeitos”113: furto, vaidade, menti-
ra, preguiça, não ouvir conselhos, maltrato ou preconceito social. Quando o autor
elabora uma representação da infância, apresenta, assim, problemáticas em comu-
nicação direta com a criança, porém, também utiliza personagens como o adulto,
animais, amigos cometendo os erros e demonstrando arrependimento ou alguma
consequência que possa “castigar” pelos atos errôneos.
Observa-se que a infância compreendida por Vianna lida com constantes
aprendizados, proporcionados por conflitos que estimulem o personagem princi-
pal a fazer escolhas, seja com o apoio dos mais velhos assumindo o papel de “cons-
ciência externa”, ou uma maior autonomia das próprias crianças em identificarem
os seus próprios erros. Dessa maneira, Francisco Vianna projeta uma infância que,

113 Considera-se o termo “defeito” como contrário à virtude de acordo com um trecho da lição O automó-
vel (1917): “Renato, porém, tinha um grande defeito - era muito vingativo.” (VIANNA, 1917, p. 11)

218
ao identificar sentimentos destrutivos no cotidiano, possa repreendê-los. Para o
autor, a criança que tem acesso aos seus livros, por meio da observação dos senti-
dos, irá refrear vontades como mentir, roubar, ser preguiçoso ou malcriado.
Quanto às histórias altruístas, estão em maior recorrência os valores prin-
cipais pautados por Vianna, destinadas à formação de uma nova humanidade:
caridade, empatia e respeito aos animais. Seguidamente, aparecem o gosto pelos
estudos, a busca ou amor pela profissão/trabalho, abnegação, coragem e ouvir os
mais velhos.
O altruísmo presente nas obras de Francisco Vianna é voltado para a crian-
ça que está em formação, e que precisa aliar o controle dos sentimentos destruti-
vos com vistas ao aprimoramento da observação e das teorias. Também é preciso
compreender o elemento positivista de formação da humanidade: a fraternidade
entre os indivíduos. Assim, as narrativas altruístas demonstram as iniciativas das
crianças nos conflitos narrados e suas respectivas recompensas pelas boas ações,
projetando, assim, um ideal de infância.

Considerações finais

O começo do século XX foi demarcado por diferentes mudanças sociais,


devido à Proclamação da República, instaurada antes da virada do século. Com a
urgência de uma nova representação sobre o cidadão e a nação, a educação trans-
formou-se a principal propagadora dos valores a serem ensinados, principalmente
sobre a criança, a família, a escola e o trabalho.
Durante os anos de 1896 e 1922, Francisco Furtado Mendes Vianna pro-
duziu uma gama diversificada de obras didáticas, tanto compêndios de matemá-
tica e história, quanto manuais para docentes e livros destinados ao ensino da
leitura. Dentre os citados, o último é qualificado pelo tipo formativo, tornando-se,
assim, fonte profícua de análise da representação que o autor tem sobre o mundo
infantil. Sendo assim, foram escolhidas partes das obras que compõem a série
Leituras Infantis, os livros: Primeiro, Segundo e Terceiro Livro de Leituras Infantis.
A série segue uma estrutura de pequenas narrativas, com a presença de
imagens para auxiliar na “observação” dos acontecimentos narrados. Com os tex-
tos organizados em tramas do cotidiano, as historietas contêm brincadeiras, diá-
logos entre pares, com adultos e animais, com a escola e o ambiente de trabalho,
sempre pautadas nos principais valores morais norteadores.
Constatou-se nessas obras que o público leitor foram crianças que tinham
contato com o ambiente escolar, ou seja, na faixa compreendida entre 7 e 14 anos.
No entanto, há também a representação de crianças menores, como demonstra-
ção de sujeitos em processo de incompletude das percepções sobre o social e do
controle dos instintos construtores.

219
Foi possível identificar as recorrências sobre o trabalho e a escola nas tra-
mas das duas últimas obras, ainda que a família mantenha centralidade nos três
livros. A opção do autor por conceber a família como a primeira e principal insti-
tuição formativa dos infantes entra em consonância com o ideal positivista com-
tiano, que considera a educação materna como a única necessária para a formação
dos indivíduos até os 14 anos. Contudo, de acordo com os artigos de Francisco
Vianna, a escola ainda seria imprescindível, até que a sociedade atingisse a sua po-
sitividade114 e autonomia sobre qualquer instituição que a rege. Ou seja, a escola
seria provisória na formação da criança, até que a sociedade fosse substituída pela
família, na educação dos infantes.
A maneira como Francisco Vianna, um profissional da área da educação
que confiava na filosofia comtiana, esboçou em suas obras uma concepção de in-
fância que também foi difundida em palestras e comercializada através dos seus
livros, permitiu que suas idealizações formassem diversas crianças e professores
que tiveram contato com o ensino primário. Estudar a representação de infân-
cia concebida por Francisco Vianna proporciona indícios para a compreensão
de uma das muitas idealizações de criança republicana em disputa, fornecendo
subsídios para a história da infância e do livro no Brasil.

Referências

BATISTA, A. A. G; GALVÃO, A. M. de O.; KINKLE, K. Livros escolares de


leitura: uma morfologia (1866-1956). Revista Brasileira de Educação. nº 20, 2016. Rio
de Janeiro, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n20/n20a03.pdf.
Acesso em: 04 jan. 2022.

BOURDIEU. P. Os usos sociais da ciência. São Paulo: Editora Unesp, 2004, p. 17-47.

CÂMARA, S. Sob a guarda da República, a infância menorizada no Rio de Janeiro da


década de 1920. Rio de Janeiro: Quartet, 2010.

CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução: Maria


Manuela Galhardo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

CORRÊA, C. H. Manuais, paleógrafos e livros de leitura: com quais materiais se


formavam os leitores nas escolas primárias de antigamente? Seminário  “Constituição
Do Leitor: Memórias”. Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, 2005.

FARIA FILHO, L. M. de; FERNANDES, R. (org.). Para a compreensão histórica da


infância. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

114 Para saber mais, ler Paulino (2019).

220
FRANCO JUNIOR, A. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI, T; ZOLIN,
L. O. (org). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3ª ed.
Maringá, Eduem, 2009, pp. 33-58.

GOUVÊA, M. C. A literatura como fonte para a história da infância: possibilidades


e limites. In: LOPES, A. et al; FARIA FILHO, L. M. de; FERNANDES, R. (org.).
Para a compreensão histórica da infância. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica. 2007. p. 19-
38.

GOUVÊA, M. C. S. de. A escrita da história da infância: periodização e fontes. In:


SARMENTO, M, GOUVEA, M. C. S. de. Estudos da infância. Petrópolis: Vozes,
2008, p.97-118.

GOUVÊA, M. C. O mundo da criança: a construção do infantil na literatura brasileira. 1ª


ed. Bragança paulista: Editora Universitária São Francisco, 2004.

HANSEN, P. S. A literatura infantil no Brasil e Portugal. Sarmiento. Revista Galego-


Portuguesa De Historia Da Educación, v. 20, p. 133-161, Espanha, 2016. Disponível
em: https://doi.org/10.17979/srgphe.2016.20.0.4052. Acesso em: 02 jan. 2022.

KUHLMANN JUNIOR, M.; FERNANDES, R. Sobre a história da infância.


In: FARIA FILHO, L. M. de (org.). A infância e sua educação; materiais, práticas e
representações (Portugal e Brasil). 1ª ed. Belo Horizonte: Autentica. 2004, p. 15-34.

PANIZZOLO, C. João Köpke e a escola republicana: criador de leituras, escritor da


modernidade. Tese (Doutorado em Educação). Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2006.

PANIZZOLO, C. A arte de civilizar-se por meio dos livros de leitura: um estudo das
séries graduadas da escola primária paulista (1890-1904). Revista Perspectiva, v. 37, n.3.
Florianópolis: 2019. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/
article/view/2175-795X.2019.e54124/pdf. Acesso em: 04 jan. 2022.

PAULINO, A. S. Um mundo de pura manifestação dos sentimentos: a trajetória de


Francisco Vianna e a representação de infância em suas obras (1876-1935). 2019.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Escola de Filosofia, Letras e Ciências da
Educação, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2019. Disponível em:
https://repositorio.unifesp.br/bitstream/handle/11600/59640/ALESSANDRA%20
SECUNDO%20PAULINO.pdf ?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 09 ago. 2021.

RAGO, M. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar Brasil 1890-1930. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1997.

SOUZA, R. F. de. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no


Estado de São Paulo. 1ª ed. São Paulo: Unesp, 1998.

221
TOZZI,J.B.Educação,infância e leitura:contribuição da teoria dos processos civilizadores
de Norbert Elias. Pro-Posições, v. 24, n.2, p. 127-145. Campinas, 2013. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/pp/a/hFPY4zBMT9j3r9M9dvfNZsw/?lang=pt. Acesso em:
04 jan. 2022.

Fontes

VIANNA, F. F. M. Modernas directrizes no ensino primario: escola activa do trabalho ou


nova. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930.

VIANNA, F. F. M. Primeiro livro de leituras infantis. 9ª ed. Rio de Janeiro: Francisco


Alves, 1911a. (Série “Leituras Infantis”).

VIANNA, F. F. M. Segundo livro de leituras infantis. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1911b. (Série “Leituras Infantis”).

VIANNA, F. F. M. Terceiro livro de leituras infantis. 21ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1917. (Série “Leituras Infantis”).

VIANNA, F.F.M. A questão analphabetismo. A Escola Primaria. Anno 8, n. 2. Rio de


Janeiro, 1 de mar. 1924, p. 35-38.

222
10. O ERRO EM MATEMÁTICA: SUBSÍDIOS PARA A
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Wagner Rodrigues Valente

Considerações iniciais

As pesquisas sobre história da educação matemática subdividem-se em


diferentes tendências. Sem querermos estender e discutir com profundidade esse
tema nestas primeiras considerações, será preciso dizer apenas que os diversos
modos de escrita da história da educação matemática distinguem-se, ao que tudo
indica, pelo lugar ocupado pelos pesquisadores que tratam dessa temática. Há
aqueles, por exemplo, que se localizam no âmbito da disciplina História da Ma-
temática; há os que se situam no âmbito dos estudos da Didática da Matemática;
e, ainda, os que consideram que história da educação matemática é um tema
pertencente à História da Educação, que por sua vez constitui uma especificidade
da História115. Este texto situa-se nesta última vertente.
A partir dessa localização, este capítulo tem por objetivo contribuir com
os estudos de História da Educação. De modo mais específico, o capítulo irá
considerar as mudanças das ideias pedagógicas sobre o erro em matemática. Em
termos mais técnicos, utilizando categorias de análise vindas da História Cultu-
ral, interessa-nos analisar a construção de representações sobre o erro em mate-
mática, a partir de documentação escolar sobre o tema.

Sobre a construção de representações

Roger Chartier no livro “A história cultural – entre práticas e represen-


tações”, uma de suas obras mais conhecidas e utilizadas por pesquisadores da
história da educação no Brasil, desde o título parece já tentar esclarecer do que
trata o ofício do historiador cultural: será ele um trabalho que se situa “entre
práticas e representações”. Para chegar a essa síntese, Chartier irá paulatinamente
levar o leitor de considerações amplas sobre a História e a sua transformação ao
longo dos últimos tempos, aos conceitos e ferramentas intelectuais necessários
ao entendimento da problemática do “mundo como representação”. Assim é que

115 Uma análise detalhada da produção dessas diferentes vertentes da história da educação matemática
poderá ser lida, por exemplo, no texto Valente (2010).

223
na Introdução de sua obra, Chartier menciona como pensa a história cultural: “A
história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o
modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social
é construída, pensada, dada a ler”. (1990, p. 16-17).
E como a realidade social é construída, pensada, dada a ler? Chartier vai
desenvolver em seu livro uma categoria fundamental para essa análise. Trata-se
do conceito de representação. A elaboração desse conceito passa inicialmente por
aquilo que ele não é. Pela contraposição àquilo que já estava posto numa histo-
riografia anterior àquela da História Cultural. Assim, o conceito de representação
supera os debates historiográficos que contrapunham a
objetividade das estruturas (que seria o terreno da história mais
segura, aquela que, manuseando documentos seriados, quantifi-
cáveis, reconstrói as sociedades tais como eram na verdade) e a
subjetividade das representações (a que estaria ligada uma outra
história, dirigida às ilusões de discursos distanciados do real).
Tal clivagem atravessou profundamente a história, mas também
outras ciências sociais, como a sociologia ou a etnologia, opon-
do abordagens estruturalistas e perspectivas fenomenológicas,
trabalhando as primeiras em grande escala sobre as posições e
relações dos diferentes grupos, muitas vezes identificados com
classes, e privilegiando as segundas o estudo dos valores e dos
comportamentos de comunidades mais restritas, frequentemen-
te consideradas homogêneas (CHARTIER, 1990, p. 18).

Superar a história estruturalista parece, hoje, algo já consolidado. Todo o


movimento que subsome os diferentes saberes durante quase metade do século
XX, inclusive a Matemática, como veremos para o caso do Movimento da Ma-
temática Moderna, tratado mais adiante, entrou em refluxo nas décadas finais do
século passado.
Talvez o que tenha sido mais desafiador para Chartier refira-se à análise
da superação da outra vertente que se confrontava com o estruturalismo a partir
do que ele chamou de “subjetividade das representações”. Ultrapassar o modo
de pensar as representações como esquemas psicológicos, subjetivos, sejam eles
coletivos ou individuais, vai levar o autor a dedicar muitas páginas em sua obra.
Mas, então, o que é representação? Chartier em alusão à ultrapassagem do
caráter de subjetividade que a princípio poder-se-ia atribuir ao conceito, dá-lhe
outra substância ao afirmar que:
Mais do que o conceito de mentalidade, ela (a noção de repre-
sentação) permite articular três modalidades da relação com o
mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de
delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas,
através das quais a realidade é contraditoriamente construída
pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fa-

224
zer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira pró-
pria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto
e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objeti-
vadas graças às quais uns “representantes” (instâncias coletivas
ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada
a existência do grupo, da classe ou da comunidade. (CHAR-
TIER, 1990, p. 23).

Pensar assim a relação com o mundo social, isto é, através das representa-
ções, coloca em cena, de acordo com Chartier, a discussão sobre como lidamos
com as representações. Se ao nos relacionarmos com a realidade fazemos isso
através das representações, como operamos com elas? Como fazemos uso das
representações?
Para responder a tais questões, Chartier traz para seu trabalho o que ali-
cerçou empiricamente as suas investigações: os estudos históricos sobre o livro e
a leitura:
A problemática do “mundo como representação”, moldado
através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam,
conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como
uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos
textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real. Daí, nes-
te livro e noutros, mais especificamente consagrados às práticas
de leitura, o interesse manifestado pelo processo por intermédio
do qual é historicamente produzido um sentido e diferenciada-
mente construída uma significação. (CHARTIER, 1990, p. 24).

A preocupação com a recepção e com o uso das representações levou o


autor a lançar mão de outro conceito-chave para seu arcabouço teórico: o concei-
to de apropriação. Será por meio dessa categoria teórica dada a possibilidade de
compreender como se dão os processos criativos de consumo das representações.
Esse conceito é considerado por Chartier do seguinte modo:
A apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma
história social das interpretações, remetidas para as suas de-
terminações fundamentais (que são sociais, institucionais,
culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem.
(CHARTIER, 1990, p. 26).

Assim, os conceitos de representação, prática e apropriação constituirão


para Chartier os elementos fundamentais dos estudos que pretendem tratar de
uma história cultural.
Sob essa perspectiva, aqui consideramos a análise de diretivas educacio-
nais, leis, decretos e toda sorte de documentos relativos ao ensino de matemática.
Tais estudos têm papel fundamental para a compreensão da “realidade” educativa.
Por certo, o desafio maior, para o historiador cultural, consiste em uma elaboração

225
teórica que possa evidenciar a articulação existente entre representações e práti-
cas. Este texto lança-se a esta tarefa, mesmo que de modo inicial, ao tratar do erro
em matemática.
De modo a melhor circunscrever o tratamento sobre o erro em matemá-
tica, abordaremos as representações orientadoras dos ensinos nos primeiros anos
escolares. E, ainda, trataremos mais particularmente do cálculo. A problemática
de pesquisa irá ater-se ao âmbito dos estudos históricos, entendido como necessi-
dade de elaboração de uma narrativa explicativa sobre os processos de mudança a
respeito do modo de tratar o erro nos ensinos de matemática. Como foram cons-
truídas e modificadas as representações sobre o erro em matemática? A resposta
a tal interrogação permitirá compreender a passagem da valorização do cálculo
exato, vinda de tempos longínquos ao cálculo aproximado para os primeiros anos
escolares, orientação mais atual da Educação Matemática116.

O estudante não pode errar! O cálculo exato como finalidade


educativa

O longo período que se estendeu desde a criação de escolas de primeiras


letras, nas décadas iniciais do século XIX, até as suas décadas finais, pode ser
entendido como o período de existência do estudante. Ele, parece, ainda trata
a criança como um adulto em miniatura (FERNANDES; KUHLMANN JÚ-
NIOR, 2004). Tal herança remonta à Idade Média. O aluno, diferentemente do
estudante, ainda não havia nascido.
As idas e vindas de criação de escolas normais, aos poucos, consolidaram
o curso primário. Quatro anos de escolaridade como o máximo que a maioria da
população poderia almejar. As finalidades dessa escola, nos discursos que a insti-
tuíram, ligavam-se às necessidades práticas. Era preciso dar ao curso primário o
caráter de preparo para a vida fora da escola. Ele necessitava ser útil ao estudante.
Afinal de contas, a escola do ler, escrever e contar escolarizou esses saberes vindos
de práticas profissionais.
Antes de serem disciplinas elementares da escolarização, as téc-
nicas da escrita – ler em voz alta ou com os olhos, comparar
textos, redigir, glosar ou tomar notas, compor a página, indexar,
elaborar listas ou tabelas, calcular à mão etc. – foram savoir-

116 Em finais da década de 1980, surge um novo campo disciplinar e profissional: a Educação Matemática.
A emergência desse novo campo tem, no Brasil, como marcos referenciais, a realização do I ENEM –
Encontro Nacional de Educação Matemática, em 1987, em São Paulo; e, no ano seguinte, no Paraná,
a reunião entre professores que criaram a Sociedade Brasileira de Educação Matemática – SBEM.

226
-faire eruditos, provenientes de meios profissionais específicos.
(HÉBRARD, p. 70, 1990).

O mesmo autor, Jean Hébrard, analisa historicamente como se deu a pas-


sagem dos saberes das culturas profissionais para a escola, em especial, a aritmé-
tica, o contar:
(...) a aritmética algorítmica dos mercadores depende da escrita;
ela é uma de suas especificações, da mesma forma que a corres-
pondência, a redação dos formulários e a manutenção de livros.
Quando ela foi adotada pela escola – para isso será necessário
esperar até o século XVIII – é a esse título que ela o será, isto é,
na qualidade de saber técnico particular, muito mais que como
aprendizagem elementar (HÉBRARD, p. 77, 1990).

A chamada escola de primeiras letras chancelou, para o “contar”, o caráter


de sua utilidade. Desse modo, era preciso ensinar os estudantes a fazerem cálcu-
los. Na vida fora da escola, era imperativo saber calcular; e os cálculos deveriam
ser exatos. Somente o resultado correto das contas mostraria ao professor que o
ensino teria sido eficaz.
A representação do erro em matemática, ligada aos resultados de opera-
ções aritméticas, firmemente se consolida caracterizando a própria matemática.
A disciplina é vista pelo senso comum como saber para fazer de contas. Assim, a
naturalização da matemática na escola como saber fazer contas, por longuíssimo
tempo, não sofreu quaisquer necessidades de justificação. Lembrando Clifford
Geertz, “a cultura é pública porque o significado o é” (GEERTZ, 1989, p. 22).
Nas primeiras décadas do século XX, porém, começa a ser construída uma nova
representação sobre o erro em matemática.
O Inspetor Geral do Ensino, em São Paulo, Professor Antonio Firmino
de Proença, assim se pronunciou a respeito do ensino primário, em artigo de sua
lavra intitulado “Erros no ensino de aritmética”:
É um erro não exigir exactidão nos cálculos e nos resultados.
Há professores que se satisfazem com resultados approximados.
Basta que o alumno tenha encaminhada convenientemente as
operações. Que os cálculos e os resultados não estejam certos,
pouco importa. É um erro grave. Deste modo prejudica-se o
alumno tanto moralmente como intelectualmente de maus
habitos: habito de preguiça, de descaso, de inexactidão. Intel-
lectualmente o prejuízo reside na perda de oportunidade para
corrigir deficiência do saber. (...) (PROENÇA, 1930, p. 211).

Reafirmando que a finalidade dos ensinos escolares do curso primário de-


veria estar atrelada às necessidades que o estudante iria encontrar na vida adulta, o

227
mesmo Professor Proença, justificou a sua posição sobre a exatidão nos exercícios
e problemas escolares:
Em hypothese alguma se deve aceitar um resultado sem a devi-
da verificação, seja por meio de prova, seja pelo exame dos dados
do problema. Na vida do mundo não se aceitam valores falsos,
porque aceita-los na vida da escola? (PROENÇA, 1930, p. 212).

A análise dos escritos de Proença é reveladora. De um lado, fica explicitado


algo que era natural para a cultura escolar, e não carecia, até então, de justificativa:
exigir que as contas fossem feitas com exatidão. De outro, as recomendações de
Proença indicam que estava em mudança a representação do cálculo para escola
elementar. O antigo professor das escolas complementares do interior paulista,
docente de Aritmética, Álgebra e Geometria da Escola Normal de Piracicaba,
mostrava-se pouco satisfeito com o que estava presenciando como Inspetor Geral
do Ensino em 1930...
De todo modo, a garantia do cálculo, da aritmética como um saber útil para
as lides fora da escola permaneceu na cultura escolar como uma sólida representação
dada pela necessidade dos cálculos exatos, da não licença para errar. Um dos elemen-
tos garantidores dessa representação eram os exames de admissão.
A avaliação dos alunos egressos do curso primário, por ocasião dos cha-
mados exames de admissão ao ginásio, a partir da década de 1930, reiterava a
necessidade dos cálculos exatos como uma finalidade da escola primária.
Considere-se um exemplo, dentre uma variedade enorme de outros117, to-
mado de uma prova de aritmética de exame de admissão da década de 1930.
Foram propostos os seguintes problemas:

- Achar o valor de um terreno de forma rectangular tendo 32,5


m de frente e 58,7 m de fundo à razão de 260$000 o are.
- De uma peça de fazenda, 2/5 foram inutilizados num incên-
dio; venderam-se 4/11 da peça e sobraram 6,30 m. Qual o compri-
mento da peça?

(Questões de Prova de Admissão ao Ginásio do Estado de São Paulo realizada em 9


de março de 1931)

117 Um conjunto de mais de três mil provas de exames de admissão ao Ginásio do Estado de São Paulo,
no período de 1930 a 1969 foram digitalizadas e podem ser consultadas no endereço: https://repo-
sitorio.ufsc.br/handle/123456789/1769

228
Os exames constavam de exercícios de cálculo e, ainda, de problemas como
os mencionados acima. Por certo, como é possível notar, os problemas não eram
elaborados necessariamente a partir de situações da realidade, indicavam contex-
tos, com dados por vezes artificiais, em que prevalecia a necessidade de cálculos.
E a correção levava em conta a exatidão dos resultados.
Para além de problemas como os mencionados anteriormente, com dados
fictícios, moldados para a verificação do calcular de modo exato, todos os exames,
durante décadas, sempre fizeram constar do rol de questões da prova de matemá-
tica do exame de admissão, os chamados “carroções”. Tal termo designava exer-
cícios de cálculo numérico a serem resolvidos como os exemplos que se mostra
abaixo:

A dissertação de Machado (2002) mostra que ao longo das décadas de


existência dos exames de admissão, os “carroções” tiveram presença permanente.
A permanência dos “carroções” nos exames, no entanto, deve ser analisada
do ponto de vista do próprio caráter do exame: provas eliminatórias. O uso desses
intrincados e demorados cálculos era muito conveniente para a seleção de candi-
datos ao antigo ginásio. Qualquer descuido, numa vírgula, numa dada operação
levava ao erro. Esse preciosismo do cálculo, do sentido da aritmética na escola
primária, no entanto, não era bem visto por alguns professores.

229
Determinações legais passaram a ser emitidas buscando garantir o caráter
eliminatório dos exames, revelando que as transformações da cultura escolar se
direcionavam a um novo significado para o erro, que não adequado para o caráter
eliminatório dos exames. Exemplo dessas determinações é dada pela Circular No.
13 de 3 de dez. de 1940:
Aos Exames Escritos, de caráter eliminatório, deve ser dada a
maior importância, pois são de fato os que permitem aferição
mais exata das condições reais do candidato ao curso secundário.
A prova escrita de Matemática visa, de modo especial, apurar o
domínio das operações fundamentais e o desembaraço no cál-
culo. Os problemas e exercícios propostos devem, portanto, ve-
rificar, realmente estes dois pontos, evitando-se os de exposição
intrincada e fácil resolução, como são geralmente os chamados
“quebra-cabeças”.

A Circular é reveladora. Haveria de garantir o meio mais eficaz para a eli-


minação: apurar o domínio em fazer contas, evitando-se problemas para o pensar,
com resolução das contas de modo fácil...
A sólida representação da aritmética escolar como saber para fazer contas
exatas, como se mencionou anteriormente, começou a ser fustigada por novas
ideias pedagógicas já nas primeiras décadas do século XX. Tais ideias buscaram
a construção de uma nova representação sobre o erro em matemática. Tratava-se
da penetração da psicologia na escola, psicologia experimental de base estatística,
por meio de uma nova vaga pedagógica intitulada “pedagogia científica”. E, neste
caso, seria o professor aquele que não poderia errar...

O professor não poderia errar! A matematização da pedagogia

Alguns estudos foram já realizados no âmbito da história da educação


matemática tendo em vista o que ficou caracterizado como “pedagogia científica”
(BASSINELLO, 2014; SOARES, 2014; PINHEIRO, 2017). Essa pedagogia,
em breve síntese, constituiu-se como uma das vertentes imersas no âmbito de
movimento mais amplo, conhecido na História da Educação como Escola Nova.
Como os termos indicam, buscava-se uma pedagogia vista como ciência, cientí-
fica. Na base de sustentação dessa pedagogia encontrava-se a psicologia experi-
mental de base estatística (MONARCHA, 2009).
A face mais visível dos tempos de pedagogia científica foi caracterizada
pelos testes. A psicologia experimental, desde Alfred Binet, no início do século
XX, com a sua escala métrica da inteligência, colocou nos resultados dos testes
psicológicos e pedagógicos, um guia para o trabalho que deveria ser realizado nas

230
escolas, de modo a que o ensino se tornasse científico, para que houvesse uma
pedagogia científica.
Lourenço Filho, personagem central da divulgação da pedagogia científica
no Brasil, assim sintetiza esse tempo escolar:
A escola nova proclama a necessidade da verificação objectiva
dos elementos da educação e de cada passo do aprendizado. Ao
envez da apreciação subjectiva do alumno e de seu trabalho por
parte do mestre, ella pretende larga introducção de processos de
verificação objectiva, ou seja da medida. É o ideal da pedagogia
que se veio a chamar de experimental, conjunto de processos
tendentes a essa verificação, sob base estatística. Na sua forma
pratica, é a questão dos testes (LOURENÇO FILHO, 1930,
p.48, grifos do autor).

Com a pedagogia científica o trabalho do professor seria certeiro, eficiente.


E esse trabalho pedagógico, desse modo, teria em conta o aluno, não mais com o
estudante: a psicologia experimental, com suas métricas, auxiliada pela aferição
estatística, trouxe a diferenciação da criança, do seu modo diferente de pensar
relativamente ao adulto: não se tratava mais de ter-se na escola um adulto em
miniatura.
Na perspectiva da pedagogia científica, o trabalho do professor deveria ser
completamente modificado. A emergência do aluno, a partir da psicologia expe-
rimental de base estatística deverá alterar todo o processo escolar:
O ensino não se pode fazer segundo o plano logico das techni-
cas organizadas pelo adulto, mas segundo as phases de evolução
natural da creança e do adolescente. Os programmas não podem
ser organisados a priori, nem impostos sob que pretexto fôr. E
o mestre, ao envez de ser, assim, o ensinante, não é sinão o guia
precavido que propõe, a cada idade, as condições naturaes de seu
próprio desenvolvimento (LOURENÇO FILHO,1930, p.61,
grifos do autor).

Pelos testes o professor saberia como realizar a sua prática pedagógica, os


seus passos, de modo a contemplar perfeitamente o desenvolvimento natural do
aluno. As avaliações do ensino não mais deveriam contar com a subjetividade do
professor, mas precisariam ser feitas de modo científico, por meio de testes peda-
gógicos, alinhados àqueles psicológicos. Tais testes, em acordo com o desenvolvi-
mento infantil, não revelariam erros dos alunos; e se assim ocorresse, o erro teria
sido do professor, que não teria sabido formular, para uma dada idade mental dos
alunos, os exercícios e problemas com ela condizentes. Assistiu-se, assim, a pre-
dominância da quantificação na orientação pedagógica do trabalho do professor.
Testes, estatísticas e avaliações deveriam fazer-se presentes no cotidiano escolar.
Houve uma “matematização da pedagogia”, no dizer de Bassinello (2014).

231
Essas novas ideias levaram autores a elaborarem manuais pedagógicos e
livros didáticos para o ensino de aritmética nos primeiros anos escolares de forma
diferente daqueles publicados até então. Como a elaboração “científica” dos testes
era algo especializado, vindo dos ditames da psicologia experimental, aos quais os
professores não estavam afeitos, novas obras surgiram, agora fornecendo ao pro-
fessor sequências cuidadosamente planejadas, de modo a que seguissem o desen-
volvimento considerado natural dos alunos. Ao utilizar tais obras, os professores
apenas deveriam guiar o trabalho dos alunos por entre as etapas e sequências, de
modo que, sozinhos, os alunos aprenderiam matemática, cálculos.
Um exemplo desse tipo de material didático foi elaborado por Lourenço
Filho. O título de um dos seus livros é significativo: “Aprenda por si!”118 (LOU-
RENÇO FILHO, 1941, 1942). O autor previne os leitores sobre a sua obra con-
siderando que:
APRENDA POR SI! é um novo tipo de material de ensino
que visa facilitar o trabalho de professores e alunos. O mate-
rial compreende séries de cartões impressos e cadernos de papel
transparente, organizados separadamente para as variadas disci-
plinas a que se possa aplicar, e segundo a graduação do ensino
que, a cada uma, convenha. Seu emprêgo é facílimo: o aluno co-
loca, sob o papel transparente, o cartão voltado na face que traz
impressas as questões ou exercícios; interpreta essas questões
e as resolve, escrevendo então os resultados no lugar indicado.
Voltando depois o cartão, compara êle próprio os resultados do
que produziu, com os resultados exatos, que figuram na outra
face do cartão. O arranjo tipográfico faz aparecer junto da res-
posta do aluno, a resposta exata, em cada caso (LOURENÇO
FILHO, 1941, s/p.).

O livro apresenta sequências planejadas de exercícios e problemas que es-


tão em acordo com testes e obras de referência, guiadas pelos resultados estatís-
ticos de testes aplicados aos alunos dos primeiros anos escolares. A correção dos
exercícios e problemas propostos é feita pelo próprio aluno, no uso do material.
O autor ainda destaca que:
Material aparentemente tão simples apresenta, no entanto, ad-
miráveis vantagens: a) atende à necessidade de terem os profes-
sores questionários sempre prontos, convenientemente seriados,
para exercícios de fixação e verificação dos resultados do ensi-
no; com isso poupa-se tempo e dão-se hábitos de ordem, asseio
e precisão aos escolares; b) permite que os alunos, esgotado o
prazo destinado ao exercício, verifiquem eles próprios os seus
erros e acertos; isso dá ao material uma função auto-corretiva,
de enorme valor educativo, ao mesmo tempo que permite que

118 A obra foi analisada na dissertação de Soares (2014).

232
todos os exercícios sejam corrigidos rapidamente, sem maior
esforço do professor; c) evita que, nos exercícios de treino ou
verificação, os alunos possam fraudar os resultados; para isso, um
sinal bastante visível existe na face do cartão em que aparecem
os exercícios, permitindo discreta fiscalização por parte dos pro-
fessores e dos escolares entre si (LOURENÇO FILHO, 1941,
s/p., grifos do autor).

Uma referência empírica importante e mesmo emblemática da circulação


do ideário da pedagogia científica fixado em práticas escolares pode ser vista no
“Relatório das Atividades Desenvolvidas durante o ano de 1936 no curso pri-
mário anexo à Escola Normal de Casa Branca”, interior do estado de São Paulo.
Elaborado pela diretora Maria Ari Fonseca, para os órgãos dirigentes do ensino
paulista, as atividades desenvolvidas retrataram em um documento de 52 páginas,
o cotidiano escolar e as atividades dos professores no ensino das diferentes rubri-
cas de ensino (FONSECA, 1936). Escrito em sete capítulos, tem neste último,
por tema, “Rendimento do Trabalho Escolar”. Como subtemas “Vantagens da
avaliação objetiva do trabalho escolar – Organização dos primeiros testes de re-
sultado – Interpretação dos resultados obtidos – Apreciação geral sobre os testes
organizados e aplicados no curso primário – testes de leitura – testes de arit-
mética – testes de geografia e ciências – testes de história do Brasil – testes de
linguagem escrita”.
Sem que nos atenhamos de modo muito detalhado ao rico Relatório, o que
cabe destacar para os objetivos deste capítulo refere-se aos itens que envolvem
interpretação dos resultados e apreciação geral dos testes. O Relatório apresentou
junto a cada teste os resultados obtidos pelos alunos e uma crítica à elaboração
de cada item avaliativo feito pelos professores. Desse modo, é possível ler no
documento as avaliações dos testes feitos pelos professores com dizeres como:
“Apresentação difícil. Para execução deste teste [teste de cálculo para o 1º. ano
do curso primário] foi preciso alguma explicação”; “É necessário que se diferen-
cie, na impressão, a representação do litro, que se assemelha muito ao número
1, trazendo confusão”; “O resultado obtido denunciou que este teste continha
questões excessivamente difíceis”; “Questões muito fortes para o adiantamento
dos alunos”; “O problema admite duas interpretações”
Como se disse anteriormente, deveria presidir a lógica do trabalho peda-
gógico a representação de que se os alunos não acertaram os exercícios e proble-
mas, houve erro na formulação; assim, o professor não poderia errar! O erro do
aluno era um diagnóstico da falha do professor.

233
A matemática moderna: o cálculo pouco importa, o erro era outro...

Caminhando pela história da educação matemática em termos do ensino


do cálculo, da aritmética, o movimento escolanovista, com suas inúmeras tendên-
cias, encontrará um novo movimento internacional, que mais especificamente
tratou da matemática. Em finais da década de 1950, ocorreu o que é conhecido
como Movimento da Matemática Moderna – MMM. No âmbito da história da
educação matemática, nos últimos anos, muitos estudos têm sido dedicados a
esse tempo, onde ocorreu uma verdadeira revolução curricular (OLIVEIRA et
al., 2011).
Movimento da Matemática Moderna - MMM é a expressão utilizada no
âmbito dos estudos sobre o ensino da Matemática que caracteriza um período
em que se elaboram novas referências para o ensino da disciplina. O MMM tem
alcance mundial. O pesquisador Henrique Guimarães, em síntese de vários tra-
balhos, aborda o início desse Movimento considerando que:
No período do pós-guerra e ao longo dos anos 50, em muitos
países da Europa e também em países desenvolvidos do outro
lado do Atlântico, muito em particular nos Estados Unidos
da América, começou a tomar corpo a ideia de que se tornava
necessário e urgente uma reforma no ensino da Matemática.
Na verdade, durante toda a década de 50, foram tendo lugar
numerosas iniciativas e realizações, de natureza variada e com
propósitos diversificados, que tinham em comum a intenção de
modificar os currículos do ensino da Matemática visando a atu-
alização dos temas matemáticos ensinados, bem como a intro-
dução de novas reorganizações curriculares e de novos métodos
de ensino (GUIMARÃES, 2007, p. 21).

Uma das primeiras ações com vistas à reformulação do ensino da


Matemática é a criação, em 1950, da CIEAEM - Commission Internationale pour
l´Étude et l´Amélioration de l´Enseignement des Mathématiques. É pela iniciativa de
Caleb Gattegno, matemático, pedagogo e filósofo da Universidade de Londres,
que se reúnem, entre outros, matemáticos como Jean Dieudonné, Gustave Cho-
quet, André Lichnerowicz e o psicólogo Jean Piaget. A Comissão é criada com a
intenção de “estudar o estado presente e as possibilidades de melhorar a qualidade
do ensino e aprendizagem da Matemática.”2 A Matemática é tomada como do-
mínio privilegiado, justifica a Comissão, pois “já existem pesquisadores compe-
tentes no domínio dos fundamentos, da lógica, da epistemologia, da história, da
psicologia do pensamento e da pedagogia experimental”. Assim, a Comissão traz
para si a tarefa de “produzir a síntese das contribuições trazidas por essas discipli-
nas ao objeto principal (o ensino de matemática)” (PIAGET et al., 1955, p. 6).

234
A primeira contribuição coletiva dessa Comissão materializa-se na obra
L´enseignement des mathématiques, que reúne textos de J. Piaget, E. W. Beth, J.
Dieudonné, A. Lichnerowicz, G. Choquet e G. Gattegno, publicada em 1955.
O primeiro capítulo da obra é escrito por Piaget: Les structures mathématiques et
les structures opératoires de l´intelligence. No texto, o autor aborda o que caracteriza
como questão antiga da filosofia ocidental: “saber se as conexões matemáticas são
engendradas pela atividade interna da inteligência ou se elas provêm da ação in-
teligente sobre o mundo exterior” (PIAGET et al., 1955, p. 11). Para Piaget, se a
questão é tratada em termos da psicologia genética, há uma renovação do proble-
ma, com a contribuição dos matemáticos do grupo Bourbaki, que trazem como
papel fundamental, a noção de estrutura. Desse modo, o texto busca precisar em
que sentido as estruturas matemáticas fundamentais consideradas pelos matemá-
ticos, correspondem às estruturas elementares da inteligência, sendo as primeiras
um prolongamento formalizado e não a expressão direta das segundas (PIAGET
et al., 1955, p. 17). Por fim, o estudo de Piaget considera que: “Se o edifício mate-
mático repousa sobre estruturas, que correspondem além do mais às estruturas da
inteligência é, então, sobre a organização progressiva dessas estruturas operatórias
que é preciso estar baseada a didática matemática” (PIAGET et al., 1955, p. 32).
Não é objetivo deste texto nos alongarmos em discutir o MMM. Interessa-
nos, de modo sintético, observar que essa vaga pedagógica que atinge os ensinos
de matemática teve por uma de suas características, fazer prevalecer os ensinos
de álgebra, relativamente àqueles de aritmética e geometria. Talvez, melhor seria
dizer que os ensinos de álgebra deveriam subsumir aqueles da aritmética e da
geometria. Por meio da Teoria dos Conjuntos, aritmética e geometria passariam
a ser tratadas no âmbito das estruturas matemáticas.
A obra “O Movimento da Matemática Moderna – história de uma revolu-
ção curricular” (OLIVEIRA et al., 2011) mostra-nos que a formação continuada
de professores – à altura designada pela expressão “treinamento de professores” –
constituiu um dos temas mais relevantes desse tempo. E, ao que parece, a necessi-
dade de “treinar” professores já atuantes como docentes, para a nova matemática,
inaugurou a própria concepção de formação continuada no país.
Nos cursos dados a professores, cursos de férias, de finais de semana, pela
televisão e toda uma sorte de encontros com professores, havia o objetivo de di-
vulgar a nova matemática. Dentre muitas iniciativas, secretarias da educação de
estados e de municípios brasileiros promoveram cursos, “treinamentos” de pro-
fessores.
Em São Paulo, por iniciativa da Secretaria da Educação do estado, por
meio da então Chefia do Ensino Primário, a partir de finais da década de 1960,
houve cursos para professores sobre matemática moderna. Eles, a princípio, cons-
tavam de leituras de textos internacionais, traduzidos por professores designados

235
pelo estado, lotados em órgãos de apoio à Secretaria. Um desses textos origi-
nou material para professores intitulado ‘Matemática na Escola Elementar”. Tal
material era uma tradução para o português de parte do trabalho escrito por
Howard Fehr, para a UNESCO, em 1966, intitulado New Trends in Mathematics
Teaching. Dessa referência orientadora interessa-nos destacar um trecho que, de
modo esclarecedor, informa os leitores sobre a nova matemática, e o novo papel
que deveria ser assumido pelo cálculo na escola elementar.
A MATEMÁTICA QUE DEVE SER ENSINADA – Na
escola elementar, a instrução tradicional tem estado quase que
somente limitada à memorização do Sistema de Numeração
Decimal e dos processos de cálculo nesse sistema. Nenhuma
atenção é dada à estrutura e à compreensão. Somos de opinião
de que somente uma estrutura compreensível da aritmética dos
números cardinais e dos números racionais positivos, com as
propriedades fundamentais das operações destes números, de-
vem ser ensinadas e ensinadas a todas as crianças desta maneira.
Este é o caminho para estabelecer a fundamentação para estu-
dos subsequentes de álgebra assim como para as aplicações da
Matemática às Ciências. (FEHR, 1969, p. 4)

A crítica ao cálculo, ao trabalho algoritmizado, às contas exatas, é tema


que deveria ficar secundarizado. Aprender matemática afastava-se dessa perspec-
tiva, aliás, como se mencionou anteriormente, foi essa a primeira representação
do cálculo, do cálculo algoritmizado que adentrou às escolas, vindas da cultu-
ra profissional mercantil. E, mais do que isso. A aritmética que sempre iniciava
os estudos primários, deveria ser substituída pela álgebra. Os conjuntos viraram
tema de início dos cursos. Aliado a isso, os estudos piagetianos indicavam que a
aprendizagem do conceito de número deveria ser precedida de operações com
conjuntos. Seria por meio de seriação, ordenação que os alunos aprenderiam que
número expressa uma relação especial entre dois conjuntos com a mesma cardi-
nalidade, ou seja, com o mesmo número de elementos.
Talvez a melhor medida que se possa ter da crítica resultante dessa pers-
pectiva de secundarizar o cálculo, as operações, as contas, deixando ao erro um
status epistemológico totalmente diferente, agora ligado à lógica das relações, seja
a jocosa crítica vinda de obra que teve grande repercussão mundial: o livro escrito
por Morris Kline, que no Brasil ganhou por título “O fracasso da matemáti-
ca moderna”. Na obra, Kline, logo de início, descreve ironicamente um possível
diálogo entre professor e alunos na aula de matemática em tempos de MMM,
do qual extraímos apenas o pequeno trecho: “Contemplemos uma aula de mate-
mática. A professora pergunta: Por que 2+3=3+2? Porque ambos são iguais a 5,
respondem os alunos sem hesitar. Não, a resposta exata é porque a propriedade
comutativa da soma assim o sustenta” (KLINE, 1976, p. 15). Conhecer a estru-

236
tura do campo aritmético, conhecer as suas propriedades, como a comutativa, era
o que importava.
Como se pôde verificar, as propostas vindas do MMM, em termos de se-
cundarizar o cálculo, levaram a desconsiderar como finalidade educativa para o
ensino de matemática os resultados exatos, e mesmo a ideia de que resolvendo
listas de exercícios de mesma natureza, poderiam contribuir com a aprendizagem
matemática. Não será por meio de contas, de acertos e memorização de algorit-
mos que ocorrerá a aprendizagem das relações, das estruturas matemáticas. O
erro, existindo, será de encadeamento lógico, não de resultado numérico. O erro
era outro...

A Educação Matemática e o cálculo aproximado como finalidade


educativa

Chegamos neste item ao tempo mais recente. Novo ideário, novas con-
cepções sobre ensino e aprendizagem da matemática. Novas perspectivas sobre
o erro em matemática. O cálculo aproximado ganha espaço no âmbito das ideias
pedagógicas atuais. E, nestes novos tempos, há uma presença intensa das novas
tecnologias no cotidiano social. Esse fato faz ressurgir o cálculo. Esse saber re-
toma seu status no âmbito do campo disciplinar matemático. Os computadores
estão presentes e o trabalho matemático do cálculo, no teste de conjecturas, a
todo tempo é realizado na programação das máquinas. O cálculo agora subsumiu
a álgebra...
Na obra de Gilles Dowek intitulada Les metamorphoses du calcul é possível
ter-se uma noção desse processo, quando o autor menciona que: “A ideia de que
uma demonstração não se constrói unicamente com axiomas e regras de dedução,
mas também com regras de cálculo, apareceu via informática, em particular num
domínio que a tecnologia tem chamado de “demonstração automática”’ (2007,
p. 141). Das demonstrações automáticas surgem derivações que apontam para a
construção de inteligências artificiais...
Do ponto de vista escolar, essa espécie de renascimento do cálculo para a
matemática, via novas tecnologias, leva ao trato de situações em que a matemática
possa ser ferramenta para a solução de problemas os mais próximos da vida tanto
dos alunos quanto dos adultos. E isso significa considerar desde os primeiros anos
escolares o uso dessas tecnologias.
Sobre esse tema, a professora Michelle Artigue, um dos ícones do que
poderemos chamar de movimento internacional da Educação Matemática, assim
se pronunciou:

237
A oposição entre cálculo exato e cálculo aproximado remete às
representações estabelecidas entre matemática pura e matemá-
tica aplicada. (...) O jogo do cálculo entre “aproximado/exato”
deve ser ensinado desde os primeiros anos escolares. E o trato
com a tecnologia poderá ajudar nessa tarefa. A capacidade de
estimar valores liga-se ao trabalho com o cálculo mental, na ava-
liação de ordem de grandeza (ARTIGUE, 2002, p. 206).

Essa perspectiva parece estar contemplada nas atuais diretivas da educa-


ção no Brasil, dadas pela Base Nacional Comum Curricular – BNCC. Nesse
documento oficial é possível ler, na parte destinada à “Área de Matemática”, as
seguintes observações sobre os cálculos no Ensino Fundamental: “No tocante aos
cálculos, espera-se que os alunos desenvolvam diferentes estratégias para obten-
ção dos resultados, sobretudo por estimativa e cálculo mental além de algoritmos
e uso de calculadoras” (BRASIL, 2017, p. 268).
O jogo entre o cálculo exato e aproximado mediado pela tecnologia pas-
sa agora a constituir uma finalidade importante para os ensinos elementares de
matemática. O uso de calculadoras, as estimativas de resultados a serem obtidos
deverá fazer parte do trabalho do educador matemático. Abre-se uma nova era
de tratamento pedagógico do erro. A exatidão cabe às máquinas, o diálogo com
os resultados vindos da tecnologia deverá ser feito pelas aproximações, ordens de
grandeza dos cálculos, por meio do cálculo mental. O erro é agora é de aproxima-
ção, não de exatidão...

Considerações finais

Como foram construídas e modificadas as representações sobre o papel


do erro em matemática? Tal questão norteou a escrita deste capítulo. A análise
desenvolvida mostra-nos que durante muitas décadas – talvez um século – ocor-
reram articulações entre representações e práticas pedagógicas ligadas ao cálculo
exato, imperativo para o estudante que não poderia errar. Tal articulação guiou-se
pela estabilidade da finalidade escolar, por longa data, de preparar o estudante
para as lides do adulto, ao cursar apenas quatro anos de ensino primário. Calcular,
acertar as contas, era fundamental como referência de um ensino eficiente. Errar
constituía fracasso.
O advento da psicologia experimental de base estatística altera o cotidiano
escolar. E, assim, há uma mudança de representação sobre o erro em matemática.
Trata-se de um tempo em que se buscava uma pedagogia científica. Com ela,
quem não poderia errar era o professor, pois deveria, como praticante da ciência,
realizar o trabalho pedagógico em conformidade com os resultados vindos de

238
laboratórios de psicologia. O erro do aluno passou a ser visto como fracasso do
trabalho do professor.
O erro em matemática, em boa medida, para os primeiros anos escolares,
ligou-se ao desempenho dos alunos no cálculo. Com a chegada do MMM, secun-
darizando o cálculo, tanto em nível universitário, da produção matemática, quan-
to nas propostas de transformação curricular, em favor da álgebra, das relações,
o erro passou a ter outra natureza: tratava-se de levar o aluno à compreensão do
encadeamento lógico das proposições e justificativas, progredindo até o aprendi-
zado das estruturas algébricas.
Tempos atuais, de Educação Matemática, mais e mais se intenta elaborar
situações em que a matemática se faz necessária para tomada de decisões em
qualquer nível. Desde os anos 1990, pelo menos, tem-se diretrizes que valorizam
a resolução de problemas. Ainda: a incorporação dos meios informáticos devol-
veu ao cálculo um status importante no âmbito do saber matemático. De discipli-
na menor, em tempos do MMM, o cálculo renasceu para a pesquisa matemática.
Isso colocou o desafio para as práticas pedagógicas nos primeiros anos escolares
de articular as calculadoras e os resultados obtidos, com estimativas, com cálcu-
lo mental, na resolução de situações problema. O cálculo aproximado passou a
ser referenciado como conteúdo importante para a aprendizagem da matemática
pelo aluno. Ao cálculo exato caberá a referência de uso das calculadoras. O erro
passa a ter, desse modo, uma nova representação.

Referências

ARTIGUE, M. Le calcul. In: KAHANE, J.-P. (Dir.) L’enseignement des sciences


mathématiques – Commission de réflexion sur l’enseignement des mathématiques.
Paris: Odile Jacob, 2002, p. 171-262.

BASSINELLO, I. Lourenço Filho e a matematização da Pedagogia: dos testes


psicológicos para os testes pedagógicos. 2014. 116 f. Dissertação (Mestrado em
Ciências) – Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na
Adolescência, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2014. Disponível em:
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/125846 Acesso: 30/06/2021.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Matemática, 2017. Disponível em:


http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_
site.pdf . Acesso: 30/06/2021.

CHARTIER, R. A história cultural – entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio


de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1990.

239
CHARTIER, R. Escribir las prácticas – Foucault, de Certeau, Marin. Buenos Aires,
Argentina: Manantial, 2006.

CHARTIER, R. A “nova” História Cultural. In: GARNICA, A. V. M. (Org.) Pesquisa


em História da Educação Matemática no Brasil – sob o signo da pluralidade. São Paulo:
L F Editorial, 2016, p. 10-36.

DOWEK, G. Les metamorphoses du calcul – une étonnante histoire de mathématiques.


Paris: Éditions Pommier, 2007.

FEHR, H. Matemática na escola elementar – Instrução Matemática. Trad.


Lydia Condé Lamparelli, 1969. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/
handle/123456789/196254 Acesso: 30/06/2021.

FERNANDES, R. KUHLMANN JÚNIOR, M. Sobre a história da infância.


In: FARIA FILHO, L. M. (Org.). A infância e sua educação – materiais, práticas e
representações. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

FONSECA, M. A. Relatório das Atividades Desenvolvidas durante o ano de 1936 no


curso primário anexo à Escola Normal de Casa Branca, SP. Arquivo Escolar da Escola
Normal de Casa Branca, 1936.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan,


1989.

GUIMARÃES, H. M. Por uma matemática nova nas escolas secundárias: perspectivas


e orientações curriculares da matemática moderna. In: MATOS, J. M.; VALENTE,
W. R. (Org.). A matemática moderna nas escolas do Brasil e de Portugal: primeiros estudos.
São Paulo: Da Vinci / CAPES-GRICES, 2007, p. 21-45.

HÉBRARD, J. A escolarização dos saberes elementares na época moderna. Teoria &


Educação, V. 2, 1990, p. 65-110.

KLINE, M. O fracasso da matemática moderna. São Paulo: IBRASA, 1976.

LOURENÇO FILHO, M. B. Introdução ao estudo da Escola Nova: bases, sistemas e


diretrizes da pedagogia contemporânea. São Paulo: Melhoramentos, 1930.

LOURENÇO FILHO, M. B. Aprenda por si! Série A. São Paulo, Editora


Melhoramentos, 1941. In: VALENTE, W. R. (org.) A educação matemática na escola
de primeiras letras: um inventário de fontes. São Paulo: FAPESP, 2010. DVD.

LOURENÇO FILHO, M. B. Aprenda por si! Série B. São Paulo, Editora


Melhoramentos, 1942. In: VALENTE, W. R. (org.) A educação matemática na escola
de primeiras letras: um inventário de fontes. São Paulo: FAPESP, 2010. DVD.

240
MACHADO, R. C. G. Uma análise dos Exames de Admissão ao Secundário (1930-1970):
subsídios para a História da Educação Matemática no Brasil. Dissertação (Mestrado em
Educação Matemática). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
2002, 140p.

MONARCHA, C. Brasil arcaico, Escola Nova – ciência, técnica e utopia nos anos
1920-1930. São Paulo: Editora da UNESP, 2009.

OLIVEIRA, M. C. A.; LEME DA SILVA, M. C.; VALENTE, W. R. (Orgs.) O


Movimento da Matemática Moderna: história de uma revolução curricular. Juiz de Fora,
MG: Editora da UFJF, 2011.

PIAGET, J. et al. L´enseignement des mathématiques. Suisse: Delachaux & Niestlé S.


A., 1955.

PINHEIRO, N. V. L. A aritmética sob medida: a matemática em tempos de


pedagogia científica. 2017. 224 f. Tese (Doutorado em Ciências) – Programa de
Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência, Universidade
Federal de São Paulo, Guarulhos, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/
handle/123456789/179942 Acesso: 15/06/2021.

PROENÇA, A. F. Ensino Primário (Erros no ensino de Arithmetica). Educação.


V. XI, N. 2, 1930, p. 207-212. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/
handle/123456789/116716 . Acesso: 29/06/2021.

SOARES, M. G. A aritmética de Lourenço Filho: Um estudo sobre as dinâmicas


de transformações do saber escolar em face de uma nova pedagogia. 2014. 107 f.
Dissertação (Mestrado em Ciências) – Programa de Pós-Graduação em Educação e
Saúde na Infância e na Adolescência, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos,
2014. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/125737 . Acesso:
27/06/2021.

VALENTE, W. R. Trends of the history of mathematics education in Brazil. ZDM


(Berlin. Print), p. 1863-9704, 2010.

241
3ª PARTE
A ESCOLA SEUS SUJEITOS E SUAS PRÁTICAS

242
11. CELEBRAR A ESCOLA: AS INSTITUIÇÕES
PRÉ-ESCOLARES EM SOROCABA (1954 - 1994)

Priscila Carriel de Lima


Renata Marcílio Cândido

Introdução

Este trabalho deriva de pesquisa de mestrado intitulada “As Festas Esco-


lares nos Parques Infantis Sorocabanos: Memórias e Imagens (1954 - 1988)” de-
fendida em agosto de 2020, que buscou pesquisar as festas escolares nos primeiros
cinco Parques Infantis sorocabanos. Durante a escrita da dissertação notou-se
uma lacuna de informações relacionadas ao histórico das instituições de educação
infantil na cidade: Como e para quem elas foram criadas? Quais foram as mu-
danças empreendidas ao longo do tempo? Esses dados são importantes para que
se possa pensar na constituição da educação no munícipio ao longo do tempo.
Dessa maneira, pretendemos com este texto colaborar com a escrita da
história das instituições da cidade objetivando contribuir para o debate acerca do
estabelecimento das instituições pré-escolares em Sorocaba. Pretendemos inves-
tigar a temática sob a perspectiva da pesquisa documental e bibliográfica circuns-
crita ao âmbito da História da Educação.
Para este objetivo utilizamos como fonte principal o Jornal Cruzeiro do
Sul que foi fundado, em 12 de junho de 1903, pelos irmãos Joaquim Firmino de
Camargo Pires e João Clímaco. Iniciou sua circulação ainda em 1903, tinha ini-
cialmente quatro páginas e sua circulação era bissemanal. O jornal continua em
circulação na cidade, os arquivos do periódico foram encontrados na íntegra no
Gabinete de Leitura Sorocabano e estão também disponíveis em formato digital na
página do jornal.
Além do jornal utilizamos obras que tratam da constituição das insti-
tuições escolares na cidade de Sorocaba, as normativas legais que regulavam o
funcionamento das instituições em arquivos como: livros atas de reuniões peda-
gógicas e fotografias que foram coletados nos arquivos escolares dos primeiros
cincos Parques Infantis denominados como: Parque Infantil “Antônio Carlos de
Barros”, Parque Infantil “Profa. Marina Grohmann”, Parque Infantil “Dona Zizi
de Almeida”, Parque Infantil “João Francisco Rosa” e Parque Infantil “Antônio
Amábile”. Este material foi coletado durante a etapa de escrita da dissertação
e revelam parte da organização das instituições para a educação da infância na

243
cidade. Para este capítulo daremos ênfase ao primeiro Parque Infantil “Antônio
Carlos de Barros”.

A cidade de Sorocaba e a construção dos primeiros Parques Infantis

Sorocaba é uma cidade que está localizada na região sudeste do Estado de


São Paulo e sua história tem início em 1599 quando Don Francisco de Souza,
governador-geral do Brasil (entre 1591 a 1602), ainda acreditando na existência
de ouro, esteve na região e levantou o pelourinho símbolo do poder real na Nova
Vila de Nossa Senhora da Ponte de Mont Serrat.
Foi só em 1654 que o capitão Baltazar Fernandes se mudou para a região
junto com a sua família e seus escravos e fundou um povoado, ao qual deu o nome
de Sorocaba denominação que na linguagem Tupi-Guarani significa “Terra Ras-
gada”. Sorocaba com o passar dos anos, devido a sua posição estratégica, tornou-
se marco obrigatório para os Tropeiros, eixo econômico entre o Norte, o Nordeste
e o Sul. (ALMEIDA, 1969)
Com a construção da capela de Nossa Senhora da Ponte que foi entregue
no dia 21 de abril de 1660, foi estabelecido um acordo no qual os monges deve-
riam então:
[...]os monges construiriam ao lado um convento, fariam anu-
almente a festa de Nossa Senhora da Ponte em sufrágio por sua
alma. Eles abririam uma escola para ensinar latim e cantochão
aos meninos de Sorocaba, condição aceita para a composição
das questões do terreno com a Câmara. (ALMEIDA, 1989, p.
28)

Considerando tais orientações, a primeira escola de Sorocaba foi funda-


da pelos padres beneditinos em 1667 e tinha como uma de suas finalidades o
aprendizado de “latim e cantochão” aos moradores da vila que quisessem estudar,
porém seu funcionamento se inicia somente em 1728 e continuou até 1805 (ME-
NON, 1998). A partir de seu fechamento, a Câmara Municipal pede diretamente
ao Príncipe Dom João a escola masculina régia, que foi a primeira escola pública
da cidade, instalada oficialmente em 1815. Baddini (2002) destaca que a cidade:
[...] foi elevada à categoria de cidade pela Lei Provincial de 5
de fevereiro de 1842, na mesma ocasião em que outras vilas da
província também foram, como Itu e Campinas. O município
possuía, então, cerca de 10.000 habitantes, dos quais um terço
residia no centro urbano. (BADDINI, 2002, p. 144)

A educação na cidade começa a ganhar novos contornos concomitante-


mente a expansão econômica que acontecia a partir da década de 1870, então, “a
cidade vai se tornando um centro urbano de expressão, como denota a visita da
família Imperial por duas vezes, no período.” (GONZÁLES E SANDANO,
2006 p. 42). A cidade, com o fluxo de tropeiros, ganhou uma Feira de Muares,
onde brasileiros de todos os Estados reuniam-se para comprar e vender animais.
Novos ciclos de desenvolvimento econômico marcaram a história de Sorocaba,
incrementando a partir de 1875, com a inauguração da Estrada de Ferro Soroca-
bana. Os autores destacam ainda que a “A instrução dos meninos, em Sorocaba,
iniciou-se, praticamente desde sua fundação, com os monges beneditinos, trazi-
dos pelo fundador da cidade, Baltazar Fernandes.” (GONZÁLES E SANDA-
NO, 2006, p. 35)
A criação do primeiro Parque Infantil na cidade de Sorocaba aconteceu
somente no ano de 1954, quase duas décadas depois da origem do primeiro proje-
to em São Paulo, porém, as análises realizadas nos exemplares do Jornal Cruzeiro
do Sul nos mostram que os debates acerca da necessidade dos Parques Infantis na
cidade de Sorocaba tiveram início muito antes, mais especificamente no ano de
1943 e seguiu com registros em 1945, 1947 e 1952. O crescimento industrial e
a utilização da mão de obra feminina na cidade impulsionaram ações de pressão
ao poder público para que essas instituições fossem instaladas na cidade (FARIA,
2005).
A dinâmica de trabalho nos Parques Infantis evidenciava uma preocupa-
ção com atividades extraescolares sendo o folclore e a questão estética alguns dos
pontos privilegiados. Falava-se na valorização da tríplice parqueana que compre-
endia os objetivos de educar, assistir e recrear. Para cumprir a tríplice, Nicanor
Miranda, que era chefe do departamento de Cultura e Recreação da cidade de
São Paulo estabeleceu no Plano Inicial da Secção dos Parques Infantis no ano de
1936 com diversas orientações pedagógicas e administrativas para as instituições
em diversas áreas do saber: educação física, educação moral, educação intelectual,
educação social e educação higiênica.
[...] o surgimento dos Parques Infantis em São Paulo não ocor-
reu em um momento político que poderia ser avaliado como
tranqüilo. Estávamos vivendo a concepção ideológica do Estado
Novo com Getúlio Vargas, sendo decisivo para a elite industrial
que procurava assegurar sua ascensão ao poder. Esse período
se caracteriza ainda pela difusão de uma ideologia própria que
procurava assegurar a formação do chamado homem novo que
procurasse se integrar à nação, que fosse puro de atos e pensa-
mentos, neste sentido o desenvolvimento de atividades físicas
que se prestassem à construção de um corpo delgado, com es-
pírito de disciplina, com destreza, com saúde, beleza de formas
e harmonia de proporções eram algumas das metas a serem al-
cançadas. A educação física e a educação do corpo e da mente
ganharam proporções mais amplas, sua importância era grande
devido à contribuição que poderiam dar para a formação deste
homem, num conceito de cidadania no qual a democracia e a
criticidade não estavam contempladas. (GOBBI, 2002, p.149)

De acordo com Miranda (1936), entre as propostas elencadas como pro-


pulsoras para o desenvolvimento dos objetivos de educação intelectual das crian-
ças estão a criação de bibliotecas e a recomendação de leituras orais pelas edu-
cadoras, os exercícios físicos adequados à idade e as noções primárias de músicas
que poderiam ser aproveitados nos dias de festas.
Sobre a instituição, observa-se a intenção de que os Parques Infantis fos-
sem um ambiente propício para o desenvolvimento das crianças e que estas se
tornassem pessoas úteis à sociedade e à pátria.
O Parque Infantil possuiria um ambiente sadio, com coisas in-
teressantes para crianças de 3 a 7 anos de idade, onde poderiam
desenvolver suas potencialidades naturais, por meio da educa-
ção. Ensinavam-se boas maneiras, hábitos de higiene, “com le-
veza, desenvolvendo-lhes o intelecto e assistiam-lhes a saúde”.
Considerava também que as crianças caminhavam para se tor-
narem seres educados, úteis “ao próximo, à sociedade e à pátria”.
Segundo a Inspetora Diva, as crianças daquela época não ti-
nham mais em suas casas o ambiente natural para desenvolver
suas atividades, “não só as crianças pobres, mas também as que
moravam em apartamentos, presas como passarinhos de luxo
em gaiolas, em um ambiente sem luz, e sem sol”. (CUNHA,
2018, p. 104).

O modelo dos Parques Infantis se espalhou por outras cidades e se ex-


pandiu para várias localidades do país como o interior do Estado de São Paulo
(incluindo Sorocaba), Distrito Federal, Amazonas, Bahia, Minas Gerais, Recife
e Rio Grande do Sul. (KUHLMANN JR, 2001), constituindo-se os Parques In-
fantis de Sorocaba tributários do projeto pioneiro da cidade de São Paulo.
Na publicação do Jornal Cruzeiro do Sul do dia 29 de janeiro de 1943, o
jornalista Jurandyr Baddini Rocha, que era o editor chefe do jornal, escreve re-
portagem na capa do jornal pleiteando a criação dos Parques Infantis na cidade
de Sorocaba justificando que essas instituições seriam úteis ao atendimento de
crianças que passam por situação de vulnerabilidade social “[...]por uma assistên-
cia mais positiva ao garoto de rua, à infância semi-abandonada, que anda por aí
fazendo diabruras e frequentando diuturnamente a escola dos maus costumes”.
(p. 01)
A reportagem segue explicando que a prefeitura não precisaria de muitos
recursos para a implantação, necessitando somente de um terreno amplo para a
sua conclusão, outro excerto que chama a atenção é o parágrafo em que o autor
escreve sobre os benefícios que a criação de um Parque Infantil traria às crianças

246
da cidade como o aprendizado de bons costumes, noções de ordem e disciplina, a
prática de esporte e a disseminação de hábitos de higiene.
Frequentando esse centro de diversões, a criança estaria enri-
quecendo-se insensivelmente de bons costumes: seguindo ho-
rário pré-estabelecido teria desde logo noção de ordem e de dis-
ciplina: exercitando-se nos vários aparelhos estaria praticando
esporte suave e de acordo com suas condições físicas; compare-
cendo limpinho e em ordem, teria contato mais íntimo com a
higiene. (p. 01)

No dia 22 de setembro de 1945, mais uma reportagem de capa é veiculada


no Jornal Cruzeiro do Sul pleiteando a criação dos Parques Infantis em Sorocaba.
Fica bastante evidente na escrita a preocupação com os rumos que a infância
sem a assistência o que poderia ter ratificando a ideia de que os Parques Infantis
seriam lugares seguros para as crianças que não tinham onde ficar:
A infância, principalmente numa cidade como a nossa, de al-
tos índices operários, e onde os pequenos, livres dos cuidados
dos pais, entregues aos seus afazeres, se deixam levar por com-
panhias pouco úteis, embrenhando-se paulatinamente e com
segurança pelos caminhos pouco claros e impróprios aos que
desejam se transformar em verdadeiros cidadãos, prestativos e
caros à pátria. (p.01)

FIGURA 1: Reportagem pleiteando a criação dos Parques Infantis em Sorocaba

Fonte: Jornal Cruzeiro do Sul – 22/09/1945

Na reportagem do dia 6 de agosto de 1947, também publicada no Jornal


Cruzeiro do Sul, mais um apelo é feito às autoridades iniciando sua escrita com a
frase “[...]Pode parecer teimosia, obsessão ou coisa parecida mas o fato é que não
nos conformamos com a situação das crianças sorocabanas” (p. 01) demonstrando
que as solicitações para a criação dos Parques Infantis era constante, este texto
cita também a recém implantação dos Parques na cidade de Botucatu e questiona
o fato de Sorocaba ainda não ter sido contemplada com a implementação das
instituições de educação infantil.

247
E, não encontrando motivos para essa ogerisa, para esse pavor
de tomarmos a peito a reeducação dos pequeninos transviados
que temos, não compreendemos também o porque do pavor de
responsabilidade nascido no nosso espírito, com relação aos me-
nores abandonados e entregues aos seus destinos. (p. 01)

O texto demonstra ter a intenção de compilar todos os motivos pelos quais


os Parques deveriam ser criados enfatizando o atendimento às crianças abando-
nadas, em um de seus parágrafos identifica ainda os filhos de operários como
sendo parte dessas crianças que não teriam a assistência necessária ao seu desen-
volvimento “E os filhos de operários que, comumente, andam por aí, enquanto os
seus pais trabalham? Vamos mandá-los para o “futuro” educandário119 ou vamos
metê-los nos abrigos da rua 7 de setembro? Que vamos fazer com eles?” (p. 01)
De acordo com os estudos de Oliveira (2010) sobre a criação do primeiro
Parque Infantil de Sorocaba, o projeto na cidade foi impulsionado pelas ideias do
jovem José Carlos de Almeida120, que conheceu o modelo Paulista e desejava im-
plantá-lo na cidade, para tanto, iniciou uma campanha com mensagens no rodapé
do Jornal Cruzeiro do Sul em 1953 a fim de alertar as autoridades e a população
sobre os benefícios que os parques infantis trariam para as mães trabalhadoras
que não tinham onde deixar seus filhos (OLIVEIRA, 2010).
Para José Carlos de Almeida, a criação dos Parques Infantis seria uma
maneira de solucionar um problema social crescente “[...]eram mães de poucos
recursos que não tinham onde deixar seus filhos menores para trabalhar e as-
sim ajudar no sustento da família; eram crianças que precisavam de educação,
de orientações e até de alimentação.” (OLIVEIRA, 2010, p. 45) As publicações
feitas pelo jovem no Jornal Cruzeiro do Sul chamaram a atenção do prefeito da
época, Emerenciano Prestes de Barros, que o chamou em seu gabinete para saber
mais sobre o projeto demonstrando então interesses políticos e sociais para a ins-
talação dos Parques, uma vez que o bairro do Além Ponte, onde fora construído o
primeiro Parque Infantil, era um de seus redutos eleitorais e local onde a família
Prestes de Barros possuía extensões de terra.
O Parque Infantil passou a ser realidade e assumido como uma
das propostas

119 “Abrigos – ou orfanatos, educandários e casas-lares – são instituições responsáveis por zelar pela in-
tegridade física e emocional de crianças e adolescentes que tiveram seus direitos desatendidos ou vio-
lados, seja por uma situação de abandono social, seja pelo risco pessoal a que foram expostos pela
negligência de seus responsáveis.” (SILVA E AQUINO, 2005, p. 186)

120 José Carlos de Almeida era, no período em que antecede a criação dos parques, estudante de Educação
Física na Universidade de São Paulo. Conheceu os parques infantis na cidade de São Paulo e achou
interessante e útil levar a ideia para Sorocaba. Iniciando uma campanha no principal jornal da cidade,
Jornal Cruzeiro do Sul, para a implantação das instituições. (OLIVEIRA, 2010).

248
educacionais do prefeito, que tinha como finalidade atender a
uma parcela da população quase que totalmente excluída das
políticas públicas de educação infantil. (OLIVEIRA, 2010, p.
48)

Os Parques foram construídos em terrenos simples do município em bair-


ros novos e afastados do centro e de acordo com Martinez (2005) suas atividades
“estavam relacionadas à recreação, assistência ao ensino, prevenção para a vida
prática, com noções de higiene e oferecendo, também, a merenda escolar.” (p. 22)

FIGURA 2– Reportagem sobre a inauguração do Parque Infantil “Antônio Carlos


de Barros” – 1954

Fonte: Jornal Cruzeiro do Sul – 26/09/1954

Em síntese, os contornos da criação do primeiro Parque Infantil da cida-


de de Sorocaba iniciaram-se mais de uma década antes da sua criação e foram
marcados por reivindicações não somente as do Prof. José Carlos de Almeida
como de outros personagens da imprensa Sorocabana que fizeram do jornal um
palanque não só para propagar os benefícios que essas instituições trariam, como
também para cobrar das autoridades sua instalação. Outra característica é a de
que a construção do primeiro Parque Infantil na cidade de Sorocaba indicou não
somente os interesses sociais que fundamentaram o projeto, mas também interes-
ses políticos e eleitoreiros.
O Parque Infantil “Antônio Carlos de Barros” foi o primeiro Parque In-
fantil de Sorocaba, inaugurado no ano de 1954, funcionava no bairro Além Ponte
e atendia 500 crianças de três até a doze anos. O modelo adotado trazia muitas
semelhanças ao proposto por Mário de Andrade na cidade de São Paulo (OLI-

249
VEIRA, 2010) como, por exemplo, a faixa etária que fora escolhida para o aten-
dimento, as orientações para a construção do prédio e a adoção de propostas de
ensino semelhantes considerando a tríplice: educar, assistir e recrear. A retomada
da criação dos Parques Infantis na cidade de São Paulo se justifica pelo fato dos
Parques Infantis de Sorocaba receberem orientações técnico pedagógicas da Se-
cretária Municipal de Educação da cidade de São Paulo até meados da década de
1970 (MARTINEZ, 2005).

FIGURA 3 –Fachada do Parque Infantil “Antônio Carlos de Barros” – 1954

Fonte: Escola Municipal “Quinzinho de Barros” – Sorocaba

Organizar a escola, o trabalho da professora e celebrar a escola

Anunciadas aqui as análises gerais sobre a criação dos Parques trataremos


agora das características mais específicas e necessárias à sua implantação como,
por exemplo, o treinamento e preparação das educadoras para atuarem no primei-
ro Parque Infantil, as orientações sobre a organização do trabalho pedagógico e
das práticas festivas. Oliveira (2010) explica que houve uma visita das educadoras
a uma pré-escola da cidade de Santos a fim de compreender como se davam as
práticas pedagógicas neste espaço.
Antes de iniciar as atividades no Parque Infantil, durante 15
dias, as professoras participaram das rotinas pedagógicas de
Educação Infantil, na Pré-Escola Municipal “Leonor Mendes
de Barros”, na cidade de Santos, observando as atividades de-
senvolvidas e a prática pedagógica, como estagiárias naquela

250
instituição, principalmente por não terem formação específica
em educação infantil. (OLIVEIRA, 2010, p. 47).

A orientação técnica, bem como o atendimento das necessidades materiais


das instituições, era realizada pelo Departamento de Educação Física do estado
(DEF-SP), sendo o Prof. José Carlos de Almeida um intermediador das ações
implementadas na cidade de São Paulo uma vez que ocupava o cargo de chefe da
Delegacia Regional de Educação Física.
As autoras Martinez (2005) e Oliveira (2010) registram em suas pesquisas
as características dos uniformes das professoras que inicialmente era composto
por saia evasê e blusa o que dificultava o exercício das atividades com as crianças
como correr, brincar e sentar-se ao chão, sendo modificado posteriormente para
o uso de calças compridas ainda que este hábito fosse diferente dos costumes da
época.
As professoras, por conta de conseguirem acompanhar as crian-
ças pequenas em suas atividades, usavam calças compridas, e
assim podiam correr, sentar-se no chão com as crianças, o que
favorecia o bom relacionamento com elas.
Eram, no entanto, criticadas, pois a moral da época (anos de
1950) não permitia que professoras usassem outra vestimenta
que não fosse o uniforme imposto: saia e blusa. Mas elas in-
sistiram, não esperando o final dessa década e início dos anos
60, quando foi liberado o uso das calças compridas na escola.
(MARTINEZ, 2005, p. 22)

Às professoras também caberia como função a preparação e realização das


festas escolares, de acordo com Lima (2021), as comemorações faziam parte do
cotidiano dos Parques Infantis e para sua realização eram despendidos esforços
da toda a equipe escolar. Compunham o conjunto de comemorações do Parque
Infantil principalmente as datas que rememoram os símbolos cristãos e as datas
cívicas:
[...]pudemos perceber que as festas faziam parte do cotidiano
dos Parques Infantis Sorocabanos entre os anos compreendidos
por essa pesquisa, 1954 e 1988, e eram momentos que deman-
davam uma intensa organização dos diferentes atores da escola,
como as educadoras, equipe gestora, crianças, pais, além da co-
munidade em geral. A festa era um momento que mobilizava
todos esses setores dentro e fora da escola. (LIMA, 2021 p. 141).

As festas escolares sejam as de motivações religiosas como a Páscoa, Festa


Junina e Natal, ou aquelas relacionadas as datas cívicas como a Semana da Pátria
e a Proclamação da República aconteciam anualmente nos Parques Infantis.

251
O Regimento Interno dos Parques Infantis de Sorocaba foi publicado sob
o decreto nº 266 em 05 de novembro de 1958 no Jornal do Cruzeiro Do Sul. Este
documento dividido em três capítulos dos quais o primeiro não tem título e trata
de orientações quanto aos dias e horários de abertura dos prédios e sobre a forma-
ção de turmas, apresenta no segundo capítulo cujo título é do quadro de funcionário
as atribuições de cada funcionário, já o terceiro denomina-se disposição gerais e
completa as informações oferecidas nos outros itens. Esta publicação estabelece
normas para as instituições orientando-as tanto em sua esfera organizacional,
quanto pedagógica.
O documento transcrito nas páginas do Jornal trazia como incumbências
da diretoria no art. 15, item 9, a determinação para a realização das festas escola-
res nas unidades apontando a necessidade de uma formação cívica e estética das
crianças: “Promover comemorações de datas nacionais e outras por meio de festas
infantis, que servindo a educação cívica e estética das crianças, contribuem para
despertar o interesse das famílias pelo Parque” (Jornal Cruzeiro do Sul, 1958, p.
04). Em outro excerto, ao instituir normas regulamentando a vida funcional dos
funcionários, permite o chamamento destes em ocasião de realização de festas.
Artigo 22: Qualquer funcionário dos Parques Infantis poderá
ser convocado pelas respectivas diretoras independentemente de
qualquer gratificação para prestar serviços extraordinários por
ocasião de festa ou quando se torne necessário. (Jornal Cruzeiro
do Sul, 1958, p. 04)

Neste documento é também reafirmada a ideia de vinculação dos Parques


Infantis Sorocabanos ao Departamento de Educação Física do Estado de São
Paulo – DEF-SP. As festas escolares nos Parques Infantis eram então estabeleci-
das em seu regimento interno, documento que normatizou o funcionamento dos
Parques Infantis na cidade.
Os estudos de Oliveira (2010) apresentam o histórico da criação do pri-
meiro Parque Infantil da cidade. Em seus relatos a autora resgata parte do coti-
diano da instituição e mostra que as festas escolares eram momentos organizados
pelo Parque Infantil anualmente de forma a garantir que estes fossem momentos
diferenciados da rotina onde preparavam-se apresentações musicais ou de teatra-
lização pelas crianças, decorações temáticas e desfiles comemorativos. No tocante
às práticas das festas cívicas nos Parques Infantis Sorocabanos, Oliveira (2010)
indica que:
A execução do Hino Nacional pelos pequenos alunos, as apre-
sentações nos desfiles cívicos, tanto no bairro quanto no centro
da cidade, homenageavam os mais conhecidos personagens da
nossa história. O Parque Infantil obedecia às determinações de
ordem nacional e preparava os alunos para o respeito à pátria e

252
aos ideais na conduta da civilização brasileira, mediante as ten-
dências educacionais do país e os preceitos legislativos e educa-
cionais. (OLIVEIRA, 2010, p. 60).

Sobre as matrículas das crianças nos Parques Infantis, destaca-se o artigo


publicado no Jornal Cruzeiro do Sul do dia 20 de março de 1957 que transcreve
um edital para matrícula para o Parque Infantil “Profa. Marina Grohmann”, mas
que pode se estender para todas as outras instituições congêneres. A publicação
objetivava o chamamento da população para o período de matrículas em que se
registra os dias em que as inscrições seriam recebidas e os documentos necessá-
rios para sua realização. Chama a atenção neste texto as orientações com o título
de “As crianças que precisam de um Parque Infantil” que são redigidas conforme
citação abaixo:
1. A criança que não tem espaço para brincar e por isso brin-
ca nas ruas.
2. A criança, cujos pais trabalham e dela não podem cuidar.
3. A criança pobre que precisa de assistência física, material,
médica e higiênica.
4. O filho único, que sinta falta de outras crianças.
5. Toda criança que precise de recreação, vida ao ar livre, sol
e alegria, para a conservação de sua saúde e harmonioso
desenvolvimento físico, social e mental. (Jornal Cruzeiro do
Sul, 1957, s.p)

A impressão que se tem ao ler o texto é de que a intenção do mesmo seria


a de estabelecer critérios de seleção para o ingresso no Parque Infantil, o que pode
ser percebido até o item quatro, porém, o item de número cinco expressa que
qualquer criança que tenha a necessidade de atividades recreativas pode se bene-
ficiar com a matrícula. Não fica claro em nenhuma outra fonte se existia algum
critério de seleção das crianças interessadas.
A partir da lei Nº 1597, publicada em 14 de maio de 1970, os Parques
Infantis Municipais foram transformados em Centros de Educação e Recreação
Infantil, conhecidos como CERIs (Centro de Educação e Recreação Infantil).
Neste período as instituições continuavam vinculadas ao Serviço de Recreação
Infantil do Departamento de Educação Física e Esportes do Estado de São
Paulo, que era responsável pela orientação técnica das instituições. A mudança
percebida se dá de acordo com a lei municipal e previa a adoção de uma nova
concepção para esta etapa da educação, priorizando o desenvolvimento cognitivo
da criança. Além da recreação, passa a ser desenvolvida como atividade supletiva,
o trabalho de educação pré-primária.
Neste mesmo período, no ano de 1971 a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação 5.692 implanta o primeiro grau com oito anos de duração o que traz

253
consequências para educação infantil uma vez que estabelece que “os sistemas
de ensino velarão para que as crianças de idade inferior recebam educação em
escolas maternais, jardins-de-infância e instituições equivalentes” (art.19, § 1°),
transferindo para uma educação pré-escolar de baixa qualidade a solução dos
problemas da escola primária (KUHLMANN JR, 2001).
Já no ano de 1974 mais uma mudança é estabelecida e as instituições ga-
nham o nome de EMEI – Escola Municipal de Educação Infantil. Essa mudança
foi decretada pela lei nº 1796, de 29 de outubro de 1974. A partir desse momento
algumas mudanças são percebidas, como a faixa etária a ser atendida, que passa
então a se concentrar nas crianças de quatro a seis anos. Essa mudança é marcada
também pelas desvinculações das instituições Sorocabanas do DEF- SP, caben-
do então a esfera municipal a formação dos profissionais para as instituições da
infância.
De acordo com Oliveira (2005), a partir de 1977 houve uma modifica-
ção da concepção pedagógica das instituições pré-escolares que passaram então a
priorizar a formalização do trabalho pedagógico numa tentativa de compensar o
déficit da educação básica, objetivando então uma preparação das crianças a etapa
posterior do ensino.
Nesse mesmo período, os Parques Infantis e outras modalidades
de instituições educativas públicas foram abandonando a edu-
cação informal das crianças em idade de escolarização regular
básica e abrindo suas vagas apenas para o atendimento daquelas
em idade pré-escolar. Expandiram-se as escolas municipais de
educação infantil, que abrangiam o trabalho anteriormente feito
em parques infantis e jardins de infância, e também as classes
pré-primárias nas escolas de ensino fundamental. Em relação
ao trabalho pedagógico, no início da década de 80, muitos ques-
tionamentos eram feitos pelos técnicos e professores acerca dos
programas de cunho compensatório e da abordagem da priva-
ção cultural na pré-escola. Acumulavam-se evidências de que as
crianças das classes populares não estavam sendo efetivamente
beneficiadas por esses programas. Ao contrário, eles estavam
servindo apenas para uma discriminação e marginalização mais
precoce delas. As programações pedagógicas estabelecidas de-
finiam frequentemente as crianças por suas carências ou difi-
culdades com o padrão das camadas médias exigido nas esco-
las — vocabulário diferente, dificuldades de comunicação, má
condição física, dificuldades de controle e orientação espacial e
de discriminação visual e auditiva, auto-imagem negativa, de-
satenção, dificuldade de relacionamento, apatia e irritabilidade.
Contudo, as pré-escolas continuaram limitadas a práticas recre-
ativas e assistenciais em virtude da falta de oportunidades reais
para seus professores absorverem as programações propostas.
(OLIVEIRA, 2005, p. 114–115).

254
Em conjunto com as EMEIs, no ano de 1978 um novo projeto surgiu
na cidade com o propósito de pré-alfabetizar as crianças em prédios ociosos da
cidade chamado de CECOPES (Centro de Convivência do Pré-Escolar). Nestes
espaços “[...]as crianças eram atendidas por professoras treinadas em ação comu-
nitária e com especialização em educação pré-escolar.” (MARTINEZ, 2005, p.
25).

FIGURA 4– Reportagem sobre os CECOPES na cidade de Sorocaba - 1981

Fonte: Revista Cidades n°2 abril e maio 1981

Apesar de funcionarem com o mesmo objetivo, a educação pré-escolar,


existiam diferenças entre o funcionamento das EMEIs e das CECOPES na ci-
dade de Sorocaba, uma vez que os CECOPES contavam com a participação da
comunidade no funcionamento das instituições:
A preocupação dos Cecopes em não permitir que a criança entre
em um mundo diferente da sua família, é uma constante. Para
isso, mães pais e avós participam efetivamente do processo edu-
cacional de seus filhos e netos. Eles dão ao centro uma semana
de trabalho como monitores. Mas, antes disso passam por um
treinamento onde são discutidos todos os aspectos da educação
infantil, para que saibam porque estão ali, atendendo os desejos
das crianças, sem serem simples “robôs”. (Revista Cidades, 1981,
p.02)

255
No ano de 1981, em entrevista concedida a Revista Cidades, o então se-
cretário de Educação na cidade de Sorocaba, Luiz Almeida Marins, relata os
benefícios do projeto CECOPE com relação às EMEIs, pontuando que os custos
com funcionários nessas instituições são muito menores, uma vez que só havia
uma professora para cada 100 alunos. O secretário afirma também que a partici-
pação da comunidade no dia a dia é benéfica para as crianças pois possibilita que
convivam em um ambiente similar ao familiar o que não acontecia nas EMEIs:
É para evitar que haja um distanciamento entre a criança e sua
família, ou seja, a sua realidade. Numa escola tradicional, a pro-
fessora é toda melosa, falsamente afetiva. E a criança ao com-
parar as atividades dela com a de suas mães, verá que em casa
apanha, é ofendida, Aos seus olhos ela enxergará apenas uma
mãe embrutecida, cheia de problemas e com pouco tempo para
elas. O mesmo problema ocorre em relação a merenda escolar,
que é farta e variada, geralmente melhor que da sua casa. (Revis-
ta Cidades, 1981, p.02)

A reportagem cita ainda que até o ano de 1978 só haviam dez EMEIs
na cidade de Sorocaba que atendiam um total de 2.385 crianças, com a criação
dos CECOPES foi então possível atender um total de 6.300. Fica evidente na
reportagem que a maior vantagem com a criação das CECOPES é a economia
aos cofres públicos. A utilização de mão de obra não qualificada e os prédios
improvisados proporcionaram o atendimento a um maior número de crianças a
um custo baixo.
No ano de 1984, as EMEIs e os CECOPES passaram a utilizar uma mes-
ma nomenclatura, PEM-SO – Pré Escola Municipal de Sorocaba, esta mudança
foi marcada pela adoção de uma concepção diferente de ensino que de acordo
com Nogueira e Martinez (2005) se caracterizava por:
Com isso, a divisão de educação da época resolveu adotar a filo-
sofia pedagógica de Carl Rogers, educação centrada na criança
e para isso foi contratada a assessoria do Centro de Aperfei-
çoamento de Assessória de Pré-escola (CATAPE), surgindo
também a supervisão pedagógica e as reuniões pedagógicas de-
vido à necessidade de um acompanhamento mais efetivo. Essas
supervisoras tinham como objetivo auxiliar as professoras que
apresentavam dificuldades na linha da pedagogia adotada pela
prefeitura e, com isso, mantinha-se em toda a rede uma única
proposta pedagógica. (p. 14)

A Educação Infantil deixou de ter como parâmetro as políticas da assis-


tência social, da saúde e da recreação passando então a ser considerada responsa-
bilidade da esfera educacional. Enquanto legislação, a criança começou a ser vista

256
como foco do processo educativo, tendo garantido seu direito à educação formal.
(CARVALHO E BAZZO, 2018)
Neste contexto, as associações de bairro, os sindicatos e grupos
feministas, os movimentos sociais e grupos políticos de oposi-
ção à ditadura militar, as mulheres nos congressos (aquelas que
ocupam cargos políticos), os profissionais de órgãos públicos
que solidarizam com os anseios populares, ocorridas no perío-
do que antecedeu a elaboração da Constituição de 1988, como
pressão sobre o poder público, da luta pela democratização pela
escola pública, possibilitaram a conquista do reconhecimento da
educação em creches e pré-escolas como um direito da criança
e um dever do Estado a ser incorporado aos sistemas de ensino.
(CARVALHO E FERREIRA, 2014, p. 209)

As creches passaram a integrar a Secretaria de Educação somente no ano


de 1988, assim como determina a Constituição Federal e, além do caráter assis-
tencialista tiveram garantido seu viés educacional. Passados alguns governos e di-
ferentes nomenclaturas para as instituições de educação infantil na cidade, a par-
tir da Lei 4.599 de 6 de setembro de 1994, as instituições passaram a se chamar
então Centro de Educação Infantil – CEI – da forma como se mantém até hoje.
A partir de 1988, por determinação da Constituição Federal,
as creches passaram a integrar a Secretaria de Educação, com
caráter não somente assistencialista, mas também educacional.
Naquele momento, a cidade de Sorocaba tinha à testa o Pre-
feito Antônio Carlos Pannunzio o qual, junto com a Secretária
da Educação, começou a repensar uma nova prática educativa,
propondo um trabalho de melhor qualidade com as crianças de
0 a 6 anos, no sentido da necessidade de uma escola mais justa e
mais democrática, preparando profissionais para trabalhar com
essa nova proposta. (MARTINEZ, 2005, p. 26)

De acordo com Martinez (2005) a transferência das escolas de educação


da cidade de Sorocaba da Secretaria de Promoção Social para a recém-criada Se-
cretária de Educação aconteceu mesmo no ano 1988, que é quando se promulga a
Constituição Federal. A legislação nacional passa então a reconhecer que as cre-
ches e pré-escolas, para crianças de 0 a 6 anos, são parte do sistema educacional
como primeira etapa da educação básica.

Considerações Finais

Pretendemos, neste capítulo, apresentar informações que pudessem con-


tribuir com a escrita da história das instituições de educação infantil da cidade
de Sorocaba. Objetivando principalmente fornecer elementos que permitissem

257
contextualizar o momento da criação do primeiro Parque Infantil da cidade, en-
fatizando as campanhas empreendidas para sua instalação e as normativas que
traziam informações sobre seu funcionamento. Podemos dizer que essas institui-
ções foram criadas com a função de atender as crianças cujos pais trabalhavam
durante o dia e não tinham com quem deixá-las. As campanhas que precederam
a instalação do primeiro Parque Infantil enfatizavam que sem ter onde ficar as
crianças poderiam perambular pelas ruas sem a assistência necessária. Outros ob-
jetivos para a criação dos Parques Infantis eram o aprendizado de bons costumes,
noções de ordem e disciplina, a prática de esporte e a disseminação de hábitos de
higiene.
As festas escolares ocorridas nos Parques Infantis funcionavam como uma
espécie de vitrine das instituições de ensino, elas tinham como algumas de suas
finalidades: disseminar ideias que remetem aos símbolos religiosos e ao aprendi-
zado de valores e comportamentos desejados, reafirmar ideais de patriotismo e de
civismo. Além de ser uma possibilidade de a sociedade conhecer as instituições e
seu trabalho. Kuhlmann Júnior (2001), ao analisar as Exposições Didáticas, indi-
ca que esses momentos serviram como vitrine, ou seja, oportunidades que tinham
a pretensão de mostrar a educação e a escola como produtora de civilização e
progresso que deveriam ser cultuados e representados.
A produção da festa escolar como ritual nas práticas escolares vai desde a
sua preparação (que envolve o planejamento) até sua concretização, que permeia
tanto as apresentações feitas nos Parques Infantis quanto as atividades trabalha-
das pelas educadoras e outros momentos específicos, como os desfiles e as come-
morações internas. Todas essas ações compõem o contexto pedagógico em que as
festas se inserem nas instituições, que não se constituem apenas no momento da
festa, mas também no conjunto de práticas que as datas comemoradas desenca-
deiam. Julia (2001) indica que a maneira como a cultura escolar é construída con-
tribuí para o remodelamento dos comportamentos e para a “profunda formação
do caráter e das almas que passam por uma disciplina do corpo e por uma direção
das consciências” (p. 22).

Referências

ALMEIDA, Aluísio de. História de Sorocaba. Sorocaba. Instituto Histórico, Geográfico


e Genealógico. 1969.

ALMEIDA, Aluísio de. História de instrução em Sorocaba (1660 - 1956). - Piracicaba,


SP: Shekinah, 1989.

BADDINI, Cássia Maria. Sorocaba no império: Comércio de animais e desenvolvimento


urbano. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002.

258
GALLEGO, Rita de Cassia; CÂNDIDO, Renata Marcílio. Uma discussão sobre os
sentidos da integração de feriados, festas e comemorações cívicas no calendário das
escolas primárias paulistas (1890-1930). Educação em revista, v. 31, p. 17-36, 2015.

CARVALHO, Carlos Henrique de. FERREIRA, Ana Emília Cordeiro Souto.


EDUCAÇÃO INFANTIL NO PERÍODO MILITAR: NUANCES POLÍTICAS
DE SUA IMPLANTAÇÃO NA ESCOLA ESTADUAL JOÃO PINHEIRO
(ITUIUTABA, MG, 1964 A 1985). Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 56,
p. 202-219, mai. 2014.

CARVALHO, Rodrigo Saballa de. BAZZO, Bianca Salazar. Políticas de Educação


Infantil: conquistas, embates e desafios na construção de uma Pedagogia da Infância.
Revista Educação Pública, Cuiabá, v. 27, n. 66, p. 771-791, set./dez. 2018.

CUNHA, Humberto Pereira da. Da Escola de Saúde a Parques Infantil: Santos (1931-
1952) Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Educação da Universidade Católica de Santos. 2018.

FARIA, Ilza Fernandes. HISTÓRIA DA CRECHE MUNICIPAL EM SOROCABA.


Dissertação de Mestrado. Sorocaba/SP UNISO. 2005.

GOBBI, Márcia Aparecida. CONHECIMENTO HISTÓRICO E CRIANÇAS


PEQUENAS: PARQUES INFANTIS E ESCOLA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO
INFANTIL. Educação em Revista. Belo Horizonte. v. 28, n. 02, p. 203-224. jun. 2012.

GONZÁLEZ, Jorge Luis Cammarano. SANDANO, Wilson. A ESCOLA EM


SOROCABA NO SÉCULO XIX. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.23,
p. 32 –45, set. 2006.

JULIA, Dominique. A Cultura Escolar como Objeto Histórico. Revista Brasileira de


História da Educação, n.1, jan./jun., p.9-43, 2001.

KUHLMANN JR., Moysés. As grandes festas didáticas: a educação brasileira e as


exposições internacionais (1862-1922). Bragança Paulista: Edusf, 2001.

KUHLMANN JR., Moysés. Parque Infantil: a singularidade e seus componentes.


Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 35, n. 77, p. 223-244, set./out. 2019.

LIMA, Ana Lucia de Almeida. A educação em Sorocaba - do final do século XIX até
a criação da Escola Normal Livre de Sorocaba em 1929. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, UNISO. Sorocaba/SP, 2005.

LIMA, Priscila Carriel de. As Festas Escolares nos Parques Infantis Sorocabanos: memórias
e Imagens (1954 - 1988). Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-
Graduação em Educação, Guarulhos, Universidade Federal de São Paulo, 2021.

259
MARTINEZ, Sandra Lembo Fernandes. Educação infantil: reflexões sobre a
participação dos pais. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-
Graduação em Educação, Universidade de Sorocaba/SP, 2005.

MENON, Og Natal. Educação em Sorocaba: de 1728 a 1920. Revista de Estudos


Universitários. v. 24, n. 11, p. 77-98, 1998.

MIRANDA, Nicanor. O significado de um parque infantil em Santo Amaro. Departamento


de Cultura. Divisão de Ensino e Recreio. 1938.

NOGUEIRA, Eliete Jussara; MARTINEZ, Sandra Lembo Fernandez. A


Educação Infantil na cidade de Sorocaba: um resgate da história no período de 1950 a
1990. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/
seminario7/TRABALHOS/E/Eliete%20jussara%20nogueira%20.pdf Acesso em 14
dez. 2021.

OLIVEIRA, Zilma de Moraes Ramos. Educação infantil: fundamentos e métodos. 2 ed.


São Paulo: Cortez, 2005.

SILVA, Enid Rocha Andrade da. AQUINO, Luseni Maria Cordeiro de. OS ABRIGOS
PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES E O DIREITO À CONVIVÊNCIA
FAMILIAR E COMUNITÁRIA. Boletim de políticas sociais - acompanhamento e
análise – IPEA - 11 ago. 2005.

260
12. NOS TEMPOS DA CRECHE: MEMÓRIAS DAS
INFÂNCIAS EM FOCO (DÉCADA DE 1970 A 1990)

Rosana Carla de Oliveira

Introdução

A Paulistinha é a primeira Creche Universitária Federal brasileira. Foi


criada no ano de 1971 para atender aos filhos de duas funcionárias da Escola
Paulista de Enfermagem- EPE. Inicialmente recebeu o nome de Comunidade In-
fantil. Cerca de duas décadas depois passou a ser chamada de Paulistinha, hoje é
reconhecida oficialmente como Núcleo de Educação Infantil – NEI- Paulistinha e
vincula-se à Reitoria da Universidade Federal de São Paulo-Unifesp.
A criação da Creche se deu em um período de ditadura militar. Tempo em
que houve cerceamento da liberdade, queda na qualidade de vida e nos rendi-
mentos familiares. As mulheres precisaram cada vez mais adentrar ao mercado
de trabalho, muitas assumindo o sustento da família, porém os cuidados com os
filhos continuavam sob suas responsabilidades. Diante disso, a procura por vagas
em creches era grande, visto o problema de falta de instituições para cuidar das
crianças pequenas na cidade de São Paulo, como também em todo país (OLI-
VEIRA, 2019).
Após a reivindicação de duas mães trabalhadoras da EPE que não tinham
com quem deixar seus filhos, durante o período de trabalho, foi autorizada a
abertura da creche. Segundo o relato de Suzana Pimenta121, juntamente com uma
professora do curso de Medicina, foram até madre Áurea, responsável pela EPE,
para reivindicar o direito de permanência dos seus filhos no local de trabalho
durante suas jornadas diárias. Direito garantido pelo Decreto-Lei 5.452, de 1º de
maio de 1943- Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
Eu peguei a lei na mão e fui conversar com o doutor Horácio. Ainda,
a madre Aurea ficou toda cheia de pruridos porque sabia que eu era
meio brava. E eu disse não! É a lei que me dá esse direito e fui...
Foram muitas conversas com o diretor Horácio, foram muitas brigas,
muitas discussões, até que finalmente, com o apoio das religiosas, ele
aceitou. Foi uma situação nada amistosa, e a Gaby precisou se opor
do cargo que ocupava (Entrevista de Suzana).

121 Suzana Pimenta- entrevistada em 28 de fevereiro de 2018. Foi chefe da secretaria acadêmica da Escola
Paulista de Enfermagem, irmã de Rosa Aparecida Pimenta- professora da EPE, e mãe das duas pri-
meiras crianças da creche.

261
Depois de muitas negociações a instituição começou a funcionar de forma
cuidadosa, porém muito caseira, sob a supervisão da Enfermagem Pediátrica. As
mães foram responsáveis por toda organização desde a contratação das pajens,
mobiliário e alimentação, inclusive foram elas que deram o primeiro nome à ins-
tituição, o de Comunidade Infantil. Os relatos revelam que as mães não queriam
que aquele espaço fosse chamado de creche, planejavam uma organização dife-
rente das demais creches, já existentes, em locais de trabalho como nas fábricas.
Diziam que “[...] queriam passar um sentido de família, extensão da casa e não
algo totalmente institucional e frio” (Entrevista de Suzana).122
Segundo Vieira (2016), em meados do século XX, o termo creche carrega-
va estigma social, não somente pelo atendimento precário oferecido na maioria
das vezes, como também pela falta de profissionais qualificados, falta de recursos
e ausência de políticas eficazes. Fatores que contribuíram para a associação da
creche ao mal atendimento e à pobreza. Sobre esse assunto, Kuhlmann Jr (1998)
e Rosemberg (2002), apontam que havia uma divisão declarada entre as institui-
ções que atendiam as crianças pequenas. A creche era destinada aos filhos das ca-
madas mais pobres, lugar de cuidados básicos e alimentação; e a escolinha, muitas
vezes chamada de jardim ou pré-escola, era destinada às camadas médias e altas
da sociedade, considerada como local de ensino e aprendizagem.
Passados cerca de um ano e meio do início do atendimento da Comunidade
Infantil, outras mães passaram a buscar esse direito. Momento em que a professo-
ra do Curso de Enfermagem, Marianna Augusto123, foi convidada, pela diretoria
da EPE, a assumir a tarefa de ampliação dessa assistência.
Marianna era altamente qualificada para este trabalho, frequentava um cír-
culo de amizades com pessoas influentes politicamente e de alto poder aquisitivo
que contribuíram financeiramente com seus projetos filantrópicos, possibilitando
a transformação do refeitório da antiga residência das alunas do Curso de En-
fermagem em uma creche. A instituição funcionou neste prédio até os finais da
década de 1980, quando foi necessário o aluguel de duas casas e a construção de
um imóvel próprio para este fim, para melhor atendimento das crianças, e então
passou a ser chamada de Paulistinha.

122 Projeto de Pesquisa aprovado no Conselho de Ética em Pesquisas- CEP/UNIFESP sob o Parecer de
número:1559/2017, na data de 01 de fevereiro de 2018.

123 Marianna Augusto - entrevistada em 02 e 24 de fevereiro de 2018. Foi uma das fundadoras da cre-
che - Era enfermeira especializada em Pediatria e Puericultura pela École de Puericulture de Faculté de
Medicine de La Universidade de Paris- França, estudou na Suíça com Jean Piaget, no período de 1955
a 1956. Durante os anos 1970, fundou os Cursos de Pós-Graduação stricto e lato sensu da Disciplina de
Enfermagem Pediátrica e Puericultura na EPE. Diante de sua qualificação profissional foi convidada a
assumir o projeto institucional da Creche.

262
O limite temporal deste estudo compreende desde 1971- ano em que a
instituição foi criada, até 1996- ano em que também passou a atender ao Ensino
Fundamental e adquiriu nova configuração estrutural. Tem como objetivo apre-
sentar as representações das infâncias vividas em três décadas na Creche, que tra-
zem as representações de espaço, propostas pedagógicas, valores sociais e morais.
Para tanto, foram realizadas entrevistas com ex-funcionárias e ex-alunos, agora já
adultos na faixa etária de 20, 30 e 40 anos, que trouxeram em suas memórias de
criança o cotidiano do tempo em que frequentaram a instituição. As entrevistas124
foram realizadas em dias, horários e lugares escolhidos pelos entrevistados, na
maioria vezes no aconchego e segurança de suas próprias casas, regadas a café e
bom humor:
As entrevistas se iniciaram timidamente, com perguntas e respostas
curtas, mas aos poucos nasceu uma relativa harmonia entre entre-
vistadora e entrevistados, com mútuo interesse. A entrevistadora em
descobrir novos fatos que contribuíssem com a pesquisa e o entrevis-
tado na oportunidade de relatar as experiências significativas de seu
tempo, marcas de conquistas, de alegria, de construção e mesmo de
frustrações, recolhidas e deixadas à margem em nome de uma história
institucional oficial. [...] a história da Paulistinha foi ganhando vida
e se materializando pelas narrativas, como pelas fotografias, livros e
documentos revelados em colaboração com a pesquisa (OLIVEIRA,
2019, p. 101).

Além das entrevistas, a construção do texto procedeu-se à análise de


iconografias cedidas pelos entrevistados e documentos institucionais, como os
manuais Comunidade Infantil Creche (1979, 1985). Esta pesquisa se insere na
perspectiva dos estudos de História das Instituições Educativas e operou com
empréstimos do referencial teórico de Magalhães (1998, 2004) que aponta a
abordagem micro como fundamental para a compreensão da história e identidade
de uma instituição.
Para análise das fontes foram eleitas três categorias. A primeira categoria
foi a de instituição educativa. De acordo com Magalhães (2004, 2007) os sujeitos,
os conteúdos e a estrutura fazem parte de uma relação complexa que se integram
dialeticamente e compõem a instituição educativa, passando pela materialida-
de, apropriação e representação na produção da sociedade. Como materialidade

124 Para as transcrições das entrevistas se utilizaram os recursos gráficos sugeridos por MARCUSCHI
(2007), referência brasileira para análise da conversação. Nos fragmentos de entrevistas, quando se
tratar de fala literal dos entrevistados, foram utilizados: fonte itálica tamanho 12 em até 3 linhas
no corpo do texto e entre aspas; com mais de 3 linhas, fonte itálica tamanho 10 com recuo de 4
centímetros. Ainda os seguintes recursos: colchetes[...] para supressão de trecho no mesmo turno
de fala; ponto (.) indica pausa, e letras maiúsculas para destaque nas palavras ou expressões quando
dada ênfase pelo entrevistado.

263
compreende-se os fazeres pedagógicos, a organização e funcionamento, condi-
ções materiais, espaços, estrutura, arquitetura, ações em processo, regulamentos
e normas de funcionamento. A apropriação se refere “[...] às aprendizagens, ao
modelo pedagógico, ao ideário, à identidade dos sujeitos e da instituição, aos des-
tinos da vida” (MAGALHÃES, 2004, p. 139). E a representação se refere ao grau
de aplicação das pedagogias, relativas aos currículos, estatutos, ações dos agentes
e conteúdo das bibliografias que subsidiam as atividades cotidianas.
Na segunda categoria de memória social foram utilizadas as referências
de Halbwachs (2006) e Bosi (1994). Segundo Halbwachs (2006) a memória in-
dividual é formada por meio das memórias coletivas formadas a partir de com-
binações complexas dos quadros sociais estabelecidos de acordo com as relações
vividas, isto é, dos meios sociais efervescentes. Ressalta que o esquecimento de
determinado período está relacionado à perda de contato com os que o rodea-
vam, assim, novos quadros sociais se constituem e formam outras combinações
complexas e dialéticas. Para Bosi (1994) as memórias são apresentadas por meio
de narrativas, que não são parte do confinamento de um livro, mas de recriação
de vibrações transformadas e produzidas com amplitude de experiências que per-
mite ao ouvinte se colocar em uma situação aberta de interpretação, cuidadosa e
rigorosa.
Por fim, foi eleita como terceira a categoria de lugar referenciada em Cer-
teau (1976, 2014) que afirma que toda narração integra um lugar de origem,
como parte da prática cotidiana. Os fatos narrados produzem um campo de atu-
ação, espelham a vida, organizam e transformam os lugares em espaços, os quais
situam o leitor quanto às caminhadas traçadas e suas transformações.
Além da introdução, o texto está organizado em duas seções: na primeira
Comunidade Infantil: criação e implementação - serão apresentadas as representa-
ções acerca dos tempos em que a creche era chamada de Comunidade Infantil,
contadas por meio das narrativas que apresentaram suas representações em tem-
pos distintos, desde a criação até meados da década de 1980. A segunda seção
Memórias de Infância: era bom cantar, dançar, brincar e escrever? - apresenta as prá-
ticas que foram reconfiguradas e encaminhadas para uma educação pré-escolar,
respaldadas pelos documentos orientadores da Creche e pelas políticas para a edu-
cação das crianças pequenas do período e por fim as considerações finais.

Comunidade Infantil: criação e implementação

Alessandra Pimenta125 , filha de Suzana Pimenta, foi uma das pioneiras


a frequentar a Comunidade Infantil, ao lado de sua irmã Daniele e de seu amigo

125 Alessandra Pimenta C. G. de Oliveira – entrevistada em 21 de março de 2018.

264
Hugo, filho da professora Gaby. Quando chegou à creche ainda era bebê, com
cerca de quatro meses, e no início da entrevista disse que quase não se recordava
do que viveu naquele tempo. Mas, se lembrava das diferentes histórias que lhe
contaram ao longo da vida. Frequentou a creche até o ano de 1977, quando sua
mãe mudou de emprego e passou a cursar o ensino primário em um “colégio de
freiras”, depois disso, voltou a instituição somente para visitar sua tia que conti-
nuou como professora da Escola Paulista de Enfermagem (OLIVEIRA; PANI-
ZZOLO, 2020).
Não se recorda precisamente da creche ou dos colegas, mas guarda vagas
lembranças que não tem certeza de que se são memórias daquele tempo ou fo-
ram criadas representações depois de ouvir os adultos contar a mesma história
repetidas vezes. De acordo com Halbwachs (2006), as memórias são sistemas de
classificações sociais e mentais que sempre tomam como base os “meios sociais
efervescentes” ao passo que, se há o afastamento desses meios sociais as memórias
passam a ser substituídas por outras criadas coletivamente a partir do que se vive.
Ainda, o mesmo autor afirma que “Não lembramos da nossa primeira infância
porque nossas impressões não se ligam a nenhuma base enquanto ainda não nos
tornamos um ser social” (p. 43). De acordo com o autor, a criança é capaz de
criar memória quando se reconhece pertencente a um grupo específico, seja como
membro de uma comunidade, da igreja, da família, da escola, entre outros.
Durante a narrativa Alessandra conta que ia para a creche de ônibus com
sua mãe que a carregava em um braço e no outro a sacola de marmitas para o dia,
além de segurar a mão de sua irmã Daniele que também era pequena. No entanto,
destaca que algumas coisas a marcaram profundamente, como a situação de ter
sua tia Rosa como professora da escola. Lembra-se que havia um murinho e uma
janela de onde observava o movimento da escola.
A gente ia muito visitar minha tia. Enquanto ela dava aula nós
olhávamos pela porta e pela janela. Ela estava sempre presente nos
momentos em que eu estava na escola. [...] Eu sentia muita alegria,
com a “Taia” era sempre alegria, é um orgulho que existiu a vida
inteira, desde muito pequenininha. Mesmo pequena, eu a olhava
sempre ensinando as outras pessoas, e ela tinha uma fala BONITA, e
eu já tinha uma noção de que era uma pessoa ensinando as outras, ela
sempre foi muito querida (Entrevista de Alessandra).

A narrativa aponta que o ambiente sério e profissional da Escola de Enfer-


magem se quebrava com a presença das crianças, e se rendia às graças de quando
os pequenos “fugiam” da área de recreação para visitar as salas ou circular nos cor-
redores. Nesse sentido, Bosi (1994, p. 88) afirma que “A narração é uma forma ar-
tesanal de comunicação. Ela não visa transmitir o ‘em si’ do acontecido, ela o tece

265
até atingir uma forma boa. Investe sobre o objeto e o transforma”. As alunas da
enfermagem e as demais funcionárias se encantavam com a presença das crianças.
Olha, sempre foi festa, e me pegavam no colo e beijavam muito. Mi-
nha mãe comentava que eu era a mais gordinha e mais simpática.
Ela fala que eu era uma “bebê muito simpática!”, e ela precisava até
ficar me limpando... porque era muito beijada. Eu era muito sorri-
dente, de sorriso fácil (Entrevista de Alessandra).

A creche funcionava no mesmo prédio de trabalho da mãe e da tia, a me-


nina tinha a presença familiar em grande parte do dia. A mãe estava presente na
hora da troca de fraldas, da alimentação, da recreação ou ainda quando choravam,
tudo era um bom motivo para visitar as crianças.
A relação entre as mães das crianças que frequentavam a creche e as pro-
fessoras da EPE transcendia os vínculos profissionais e os muros da escola. Os
laços afetivos iam se constituindo no decorrer do tempo e a Comunidade Infantil
passava a apresentar características de extensão dos lares e de uma “grande famí-
lia”. As relações se fortaleceram e as famílias passaram a se encontrar em momen-
tos de lazer e descanso.
SEMPRE, a gente sempre se frequentava entre as famílias, a famí-
lia da tia Gaby, que é a mãe do Hugo e era professora de lá também,
a tia Alba e outras várias professoras lá. Nós crescemos juntos, mesmo
depois da escola e do berçário (Entrevista de Alessandra).

A entrevistada considera que foi muito bom o tempo em que passou na


creche. Para ajudá-la a rememorar sua passagem pela Comunidade Infantil foram
apresentadas algumas fotos, selecionadas e cedidas por sua mãe, de seus momen-
tos na creche.
Inicialmente, Alessandra disse que não se lembrava de sua mãe ter lhe
mostrado aquelas imagens. Começou a olhá-las atentamente, se emocionou e
com os olhos marejados afirmou:
Sabe, é uma situação que não me é estranha, mas não lembro exata-
mente, mas é uma lembrança, que eu te diria que é uma coisa de co-
ração que até me emociona, já passei por aqui! É muito emocionante
isso, porque aí sim você revira tua história [...] quando você encontra
todos aqueles alunos que fizeram parte da minha história também!
[...]Foi um tempo em que sinto que fui muito amada! (Entrevista
de Alessandra)

A narrativa de Alessandra revelou que guardou poucas lembranças da cre-


che, dos colegas ou da sua pajem. A relação familiar se configurou como meio
social mais efervescente, por isso, se tornou significativo para a construção de
suas memórias naquele espaço. Segundo Halbwachs (2006) as memórias também

266
podem ser retomadas e reconstruídas ao passo que são utilizadas uma composição
artificial, que aqui se configuram por meio de perguntas e imagens que ajudaram
a entrevistada a compor suas memórias e apresentar suas representações vividas
na instituição.

Figura 1 - Alessandra brincando na área externa da Creche -1972

Fonte: acervo particular de Suzana Pimenta, apud OLIVEIRA, 2019, p. 114.

A figura 1 é marcada pelo sorriso da criança, transmitindo a ideia de que a


Creche era um ambiente saudável, arejado e feliz, que atendia aos cuidados exigi-
dos para aquele momento. Sobre esse assunto, Barthes (2009) aponta que a cena
escolhida para ser retratada não é um simples empréstimo ou parte de um acaso.
Ali se forma o cenário que o fotógrafo julga ser ideal, e que gostaria que seus in-
terlocutores também o julgassem. Para o autor a fotografia é uma visão recortada
do mundo pela lente da câmera.
Sobre esse assunto, Burke (2017) afirma que o uso de imagens permite
testemunhar diferentes formas de representação da vida e das culturas passadas e
aponta que “[...] as imagens, assim como os textos e testemunhos orais, são uma

267
forma importante de evidência histórica” (p. 25). Dito isso, é possível afirmar que
a imagem ou neste caso, a fotografia, representa o olhar de determinada pessoa
em determinado tempo e sob um ponto de vista específico. O cenário da foto-
grafia é composto por recortes e posições que compõem um quadro não ingênuo,
que expressa representações de uma época, não necessariamente uma realidade.
Alessandra frequentou a Creche até 1977, devido sua pouca idade trouxe
poucas recordações, a maioria delas afloradas com a intervenção de imagens ou
situações contadas por outros entrevistados. De acordo com Halbwachs (2006), o
esquecimento de determinado período está relacionado à perda de contato com
os que o rodeavam, diante disso, novos quadros sociais se constituem e formam
outras combinações complexas e dialéticas que podem ser ressignificadas à medi-
da que retomadas em contexto significativo. A memória e o esquecimento mar-
cam as reconstruções das histórias, desse modo, o esquecimento é tão necessário
quanto a memória.
Daniel Silva de Oliveira126 começou a frequentar a Creche em 1984, já
em um período de implementação das propostas institucionais. Iniciou logo que
sua mãe voltou da licença-maternidade e permaneceu até 1990, quando ingressou
no primeiro ano em um “colégio cristão”. Apresenta suas memórias de infân-
cia daquele cotidiano escolar, que segundo ele, são de um tempo em que “já era
maiorzinho”. Entre suas lembranças, guarda as questões alimentares, dilema que
acompanhou sua permanência na creche:
Eu mamei no peito até muito tarde, acho que por conta disso para
poder suprir essa alimentação! [...] Minha mãe tentou, com três pe-
diatras, docentes aqui da escola, dietas diferentes para que eu pudesse
comer. Porque se podia não crescer direito ou alguma coisa do tipo.
E então, minha mãe acabou suprindo com a amamentação, como eu
tive uma irmã quatro anos depois e a outra com oito anos de diferen-
ça, minha mãe não parou de dar leite, então eu tomei até o final do
infantil (Entrevista de Daniel).

Daniel aponta que essa situação preocupava sua mãe e as profissionais da


Comunidade Infantil. Foi amamentado por todo período que frequentou a insti-
tuição, visto que, a proximidade do local de trabalho de sua mãe favorecia a ama-
mentação diária. Havia um local próprio para o aleitamento dos bebês e Daniel
se dirigia a essa sala para mamar, até quase 7 anos, sem nenhum tipo de constran-
gimento. Diz que a situação era “uma coisa meio pública” e todos queriam dar um
palpite ou sugestão. “Eles falavam: faz isso que assim ele vai comer e tal, e nunca
dava certo. Nada dava certo!”, e termina sua narrativa sorrindo.

126 Daniel Silva de Oliveira- entrevistado em 13 de julho de 2018.

268
De acordo com Oliveira (2019), naquele tempo a Creche ainda não for-
necia alimentação para as crianças. “Daniel revela que sempre foi muito seletivo
para se alimentar. Sua mãe preparava sua comida de forma saudável, mas ele co-
mia basicamente alface e cenoura, e rejeitava os demais alimentos” (p.153). Havia
uma situação que o desagradava muito durante os horários das refeições e revela:
“[...] às vezes eu ficava no refeitório, acho que poucas vezes, mas me marcou também de
ter que ficar sozinho no refeitório, com prato de comida esperando até ser vencido pelo
cansaço” (Entrevista de Daniel).
Se recorda que permanecia sentado no refeitório, com o prato na sua fren-
te, durante muito tempo, sempre procurava uma maneira de se “livrar da comida”.
Revela que não comia e sempre dispensava um pouco no lixo, escondendo embai-
xo dos papéis, quando não tinha ninguém olhando.
Lembra-se das professoras que o acompanhavam e de que as chamava de
“tias”, o que era comum para a época, dada a falta de formação específica para
exercício da profissão. Recorda-se que algumas “[...] eram bem bravas, bem rígidas,
mas a parte com as crianças era muito legal” (Entrevista de Daniel). Segundo ele,
a rigidez se apresentava na maneira incisiva de falar das professoras ou quando
chamavam sua atenção, situações que o faziam achar que eram “mais bravas”. Re-
corda-se com clareza de detalhes do prédio e afirma que não havia muito espaço
para suas brincadeiras.
Daniel se recorda do espaço e o descreve como “[...] meio cinza, nada muito
colorido que se parecia mais com um hospital do que com uma escola” (Entrevista de
Daniel). Relata que era pequeno para as brincadeiras das crianças, e se recorda de
situações vividas ali, como o acompanhamento dos médicos e dentistas, das ati-
vidades de costura e de outras situações que considera de “utilidade para a vida”.
As memórias de Daniel revelam sua familiaridade e as relações afetivas
constituídas naquele espaço. Nesse sentido, Certeau (2014) alerta para a distinção
entre lugar e espaço nas relações de coexistência. Segundo o autor, lugares são
comuns e não estabelecem familiaridade, portanto, não definem identidade, mas
uma configuração espacial que a priori não pressupõe vínculo, é inerte, implica
ordem. O espaço não indica nenhuma estabilidade, mas se dá vida ao lugar pelas
ações dos sujeitos. As práticas cotidianas se operam no espaço, que com as especi-
ficidades constroem e estruturam histórias distintas associadas a um movimento
e transformação. “Em suma, o espaço é um lugar praticado” (CERTEAU, 2014,
p. 184).
As práticas reveladas durante a narrativa estavam em consonância com
os documentos orientadores da instituição. De acordo com Oliveira (2021), a
creche de iniciativa privada, mantida pela Escola Paulista de Medicina e dirigida
pela Escola Paulista de Enfermagem, não era vinculada a nenhum órgão oficial
da Educação ou da Saúde. No entanto, seguia os mesmos pressupostos teóricos

269
da época para instituições educativas de crianças pequenas, com o diferencial de
funcionar também como campo de estágio e atuação da Enfermagem Pediátrica.
Diante disso, foi considerada necessária a criação de orientações para o funciona-
mento dessa instituição. Marianna Augusto, responsável pela Creche, organizou
a escrita dos manuais Comunidade Infantil Creche, 1ª e 2ª edição (AUGUSTO
1979, 1985)127.
A edição de 1979 é fruto das práticas que já vinham acontecendo na Cre-
che, composto por 100 páginas. A segunda edição de 1985, composta por 164 pá-
ginas apresenta atualizações sobre a concepção de educação, que segundo a autora
“[...] cuja finalidade é ampliar e analisar melhor alguns aspectos da assistência à
criança” (AUGUSTO, 1985, Prefácio).
Os Manuais tinham como objetivo “[...] orientar para a organização e fun-
cionamento das creches que atendam às exigências da pediatria contemporânea e
ofereçam melhor assistência à criança” (AUGUSTO, 1979, Prefácio).

Figura 2- Manual Comunidade Infantil -Creche, 1979

Fonte: Acervo pessoal da autora

127 Este texto não tem como objetivo a análise detalhada deste material, (AUGUSTO, 1979, 1985), e sim
utilizá-lo como parte de um compósito das representações cotidianas das memórias vividas na Creche.
Para saber mais consultar: OLIVEIRA, Rosana Carla. Paulistinha, a creche universitária da UNIFESP:
a construção identitária de uma história multifacetada (1971 a 1996). Disponível em: https://reposito-
rio.unifesp.br/handle/11600/59534

270
Figura 3- Manual Comunidade Infantil - Creche, 1985

Fonte: Acervo pessoal da autora

Pautados nos referenciais legais da época e nos pressupostos piagetianos,


os documentos traziam uma suposta organização ideal para as creches naqueles
momentos. Os capítulos apresentavam as rotinas estabelecidas, os agrupamentos,
as atividades previstas para estimulação, os momentos de higiene, alimentação, al-
fabetização, recreação, planta modelo para construção, legislação, acolhimento das
crianças, além da ficha e orientação para matrícula. As ações de insistência para
alimentação das crianças, o aleitamento materno, que fazem parte das memórias
de Daniel, seguiam as orientações para a creche:
[...] as creches devem ser construídas ou no local de trabalho
das mães ou próximas a ele, e o regulamento das creches deve
permitir que as mães cuidem dos filhos quando puderem ou
desejarem, ou os amamente quando em fase de aleitamento ma-
terno (AUGUSTO, 1979, Introdução).

Ainda sobre a alimentação, além das orientações ao longo dos documentos,


Augusto (1985) traz um capítulo sobre a Alimentação da Criança na Creche, dos
0 meses aos 7 anos de idade. Apresenta os benefícios do aleitamento materno, a
introdução do aleitamento artificial e da alimentação. Nota-se que o aleitamento

271
materno aparece como prescrição até os 12 meses de idade, no entanto, a creche
garantiu o direito da amamentação de Daniel até quase os 7 anos de idade.
A seguir serão apresentadas as memórias de Daniel e Patrícia relativas ao
período considerado pré-escolar que também estarão em consonância com os
documentos orientadores da creche.

Memórias de Infância: era bom cantar, dançar, brincar e escrever?

Ao se aproximar da década de 1990 as atividades de leitura, escrita, mú-


sica e dança, passam a compor com efetividade a rotina da creche. Daniel relata
que os bons momentos de leitura marcaram as atividades escolares. Conta que
as crianças ficavam ao redor da professora esperando o desencadeamento das
histórias, mas não chegavam a levar os livros para casa. Ressalta-se que nesse
tempo a concepção de leitura se pautava no oferecimento de livros somente para
as crianças que fossem alfabetizadas. Se recorda do seu processo de alfabetização
no último ano em que frequentou a creche, conta que era parte da rotina ensinar
a ler e escrever, que era realizado pelo ensino das sílabas. Afirma que nunca gostou
“dessa parte” e preferia a parte lúdica.
A esse respeito, Kramer (2001) ressalta que nas décadas de 1970 e 1980 a
antecipação da escolaridade poderia ser entendida como vantagem para a crian-
ça, ação que era parte da política compensatória. Segundo Oliveira (2019), pos-
sivelmente essa antecipação suprimiu aspectos importantes e significativos que
deveriam ser trabalhados na infância, que foram sucumbidos em nome de uma
alfabetização antecipada.
Era parte da rotina as crianças aprenderem a tocar instrumentos de per-
cussão feitos pelas profissionais da escola, com cascas de coco, varetas e cabinhos
de madeira, posteriormente utilizados nas atividades de apresentação das crianças
em festas comemorativas. Os momentos de canto e de dança também marcam as
memórias. “Me lembro de dançar muita lambada! Então, acho que tinha apresentação
na escola, e eu tinha uma colega que dançava muito bem, eu era o seu parceiro. Disso eu
me lembro bem” (Entrevista de Daniel).
Daniel conta que as crianças estavam sempre dançando, mas nem todas
gostavam. A dança era uma parte do jogo de brincar de namorar. Embora a prefe-
rência de Daniel fosse dançar lambada128, sua narrativa revela que as danças core-
ografadas eram parte do cotidiano. Durante as danças as crianças usavam a imagi-

128 A lambada nasceu da junção de ritmos brasileiros, do forró nordestino, do carimbó amazônico, da
cumbia e do merengue latino-americanos. Foi grande sucesso popular no Brasil em meados da década
de 1980, sucesso internacional no ano de 1989. Disponível em https://www.infoescola.com/
musica/lambada/ - Acesso em 05/01/2022.

272
nação, chegando até a idealizar um casamento. As festas comemorativas guiavam
as práticas, tanto nas atividades ditas de coordenação motora como para as apre-
sentações para as mães, que eram muito valorizadas pela comunidade escolar.

Figura 4- Daniel, Festa junina - 1985

Fonte: acervo particular de Daniel Oliveira apud OLIVEIRA, 2019, p. 154.

Figura 5 - Comemoração de Páscoa- 1987

Fonte: acervo pessoal Daniel Oliveira apud OLIVEIRA, 2019, p. 155.

273
Figura 6- Daniel, Festa de Carnaval- 1988

Fonte: acervo particular de Daniel Oliveira apud OLIVEIRA, 2019, p.155

A sequência de imagens apresentada revela a importância das datas come-


morativas já apresentadas na narrativa de Daniel. As figuras 4 e 6, representam o
cumprimento da orientação prevista no Programa de Atividades diárias- Ativida-
de de iniciação musical: “Ensinar canções e músicas relacionadas com datas co-
memorativas, estações do ano, atividades desenvolvidas na creche, objetos animais
e plantas que a rodeiam” (AUGUSTO, 1985, p. 68).
Os cenários compostos nas figuras 5 e 6, materializam a representação das
paredes da Creche serem “meio cinza” que aparecem durante as narrativas. Des-
taca-se, na figura 5, a decoração ao fundo com coelhinhos da Páscoa. A atividade
aparenta ser de colagem, realizada pelas crianças, dada a diferença entre elas, e
que supostamente tenha sido recortado pela professora diante da qualidade dos
recortes. Aponta a materialidade do Programa de Atividades diárias- Atividade de
desenvolvimento fino: “Executar atividade planejada. Exemplo recorte a tesoura,
colagem, desenho, alinhavo com dedo, picotagem, confecção de brinquedos e ou-
tros” (AUGUSTO, 1985, p. 69).
Além das atividades de dança, canto e as consideradas pré-escolares, o
faz-de-conta também aparece com ênfase nas memórias. Entre as brincadeiras
preferidas estavam a de médico, dada a influência do ambiente em que conviviam
e a de super-herói.

274
Eu me recordo que estava sempre fantasiando coisas nas brincadei-
ras, eu era uma outra coisa que não eu! Era um super-herói, na época
eu era bem pequeno e bem magro, até porque não comia nada, então
acabava me imaginando sempre assim MAIS FORTE, MAIS PO-
DEROSO. Então, eu assistia às vezes filme do Schwarzenegger, e
ficava fantasiando que eu era daquele jeito, daquele tamanho que era
forte e grande. Sempre estava envolvido em uma fantasia (Entre-
vista de Daniel).

Destaca-se que a imaginação e a brincadeira são frequentes nas represen-


tações do cotidiano do menino, mesmo naqueles momentos que não eram plane-
jados pelo adulto, que supostamente seriam de espera, sabiamente ele aproveitou
cada minuto e cada descuido do adulto.
Na década de 1990 quando a creche muda de endereço, deixa de ser cha-
mada de Comunidade Infantil e ganha um novo nome o de Paulistinha. Patrícia
Vogel129, ex-aluna, chegou na Creche, ainda bebê, com mais ou menos três meses.
Frequentou a escola de 1992 até 2002, quando completou dez anos e foi para o
Ensino Fundamental II em outra escola da mesma região. Conta que tem poucas
recordações do período que antecedeu seus seis anos, no entanto, retoma as me-
mórias desse tempo quando sua mãe conta suas histórias.
Minha mãe conta que eu fui aluna das primeiras turmas da Pau-
listinha no prédio novo. Me lembro de um quadro que tinha na en-
trada com foto de todas as crianças da turma de quando nós éramos
bebês. E tem alguns deles que são meus amigos até hoje! (Entrevista
de Patrícia)

A creche entrava em sua terceira década de existência e os vínculos afeti-


vos continuavam como uma das preocupações. A menina se lembra de sua mãe
contar que quando tinha “um aninho e pouco” dormia de mãos dadas com seu
amiguinho Augusto. Naquela época o berçário era composto com um berço para
cada criança, porém, eles não tinham lugares fixos. As crianças adoravam brincar
nos cantinhos da sala e diversas vezes os berços fizeram parte da brincadeira. A
organização do ambiente se alterava de acordo com as necessidades das crianças.
Mesmo que as crianças não falassem convencionalmente, a professora entendia a
linguagem dos pequenos e proporcionava condições para que eles ficassem juntos
tornando a rotina mais agradável (OLIVEIRA, 2019).
Patrícia também revela as práticas utilizadas para sua alfabetização. Conta
que aprendia as letras sempre associadas a uma imagem. Mas, diferentemente de
Daniel, a menina demonstra que gostava dessas atividades.

129 Patrícia Vogel – entrevistada em 13 de março de 2019.

275
Aprendi a ler no pré, e quando eu fui para o primeiro ano já
sabia ler. Me lembro que toda semana a gente ia até a biblioteca
e pegava livrinhos emprestados. Tinha livros desde o pré até o
quarto ano.
A gente podia trazer os livros para casa, e acho que podia fi-
car por uma semana. Me lembro que eles anotavam o nome de
quem pegava atrás do livro e era como uma biblioteca mesmo
(Entrevista de Patrícia).

As rotinas eram compostas por atividades de alfabetização, mas também


de música, danças e recreação. As datas comemorativas e as festas continuavam a
fazer parte do projeto pedagógico da creche.

Figura 7 - Festa de encerramento de ano - 1995

Fonte: acervo particular de Sidnéia Vogel apud OLIVEIRA, 2019, p. 204.

Com o passar dos anos as festas com a participação da família ganharam


mais espaço e se tornaram eventos muito esperados pela comunidade escolar.
Patrícia diz que guarda boas lembranças sobre as danças e as festas:
Me lembro de uma vez que dancei a música do Sandy e Junior, Splish
Splash. Ah, também me lembro de uma vez que dancei uma música
com uma, com uma mamadeira gigante rosa, eu tinha uns quatro
anos (RISOS) (Entrevista de Patrícia).

276
De acordo com Oliveira (2019) as festas viraram uma tradição da Paulis-
tinha, por volta do ano de 1995, passou-se a alugar um clube no mesmo bairro
para a realização das festas junina e de encerramento anual. Os eventos contavam
com apresentação das crianças de diversas faixas etárias, barracas de comidas, be-
bidas e brincadeiras. Também se cobrava um valor pelos ingressos de entrada. As
narrativas revelam que os valores arrecadados eram doados a Associação de Pais e
Mestres que revertia todo o dinheiro em benefício das crianças.
As transformações são apontadas na organização dos espaços, quando pa-
redes, portas e corredores se renderam às decorações infantis, o que tornava o am-
biente ainda mais acolhedor para as crianças e suas famílias. As cores, os desenhos
decorativos, alfabetos, os varais com atividades, os desenhos na lousa, as mesinhas
nas salas e o uniforme são algumas marcas que indicavam a materialização da
nova proposta e educação pré-escolar da Paulistinha (OLIVEIRA, 2019).
Observa-se que o bem-estar das crianças, o atendimento para além dos
cuidados, a preocupação com o desenvolvimento, a aprendizagem e as relações
estabelecidas sempre foram uma preocupação dos responsáveis pela creche.
E´ importante destacar que alterações, transformações e mudanças acom-
panham a história das instituições escolares que não são estáticas, mas dotadas
de sentidos e movimentos. Magalhães (2018) afirma que a implantação das ins-
tituições educativas reconfigura, integra, transforma e deixa marcas profundas no
local em que elas se encontram, em uma relação dialética entre indivíduos, local e
instituições, “[...] os indivíduos reconhecem-se, organizam-se, participam, cum-
prem funções, crescem, educam-se” (p. 46).
Até o ano de 1995 a Paulistinha atendeu até a pré-escola, em 1996 iniciou
o atendimento das crianças até 4ª série. A partir desta data a escola adotou uma
estruturação muito peculiar. A creche foi instituída como autarquia federal e o
ensino fundamental, tempos depois, foi registrado como escola particular, su-
pervisionada pela Diretoria de Ensino do Estado de São Paulo, subsidiados com
recursos da Associação de Pais e Mestres, Associação Paulista para o Desenvolvi-
mento da Medicina e Governo Federal.

Considerações finais

Este texto buscou trazer as representações de um tempo, não mensurado


detalhadamente, como o tempo-relógio, mas sim como foi vivido. Para tanto,
foram utilizadas as memórias de ex-alunos, dos tempos de crianças, como fonte
para reconstrução de um passado, não como uma história única e verdadeira, mas
como possibilidade de revelação de uma visão de mundo de um tempo vivido.

277
A creche foi chamada de Comunidade Infantil durante o período em que
funcionou no prédio da Enfermagem. Ali ficaram as memórias, as boas recorda-
ções, também algumas frustrações de um tempo em que os envolvidos buscaram
acertar e oferecer o melhor atendimento dentro de suas possibilidades. “Comuni-
dade Infantil, a gente queria dar uma ideia de valorização das relações, de aconchego,
comunidade é tudo que te aproxima do outro” (Entrevista Conceição).130
As narrativas revelaram os diferentes lugares de fala dos entrevistados
(CERTEAU, 1976), com apropriações diferentes acerca da mesma institui-
ção formadas pelas distintas identidades constituídas. As condições materiais,
os modos como eram organizados os espaços e as estruturas de funcionamento
indicavam a materialidade das propostas pedagógicas dessa instituição (MAGA-
LHÃES, 2004). O referencial de Halbwachs (2003) ajudou a compreender que as
memórias construídas coletivamente foram responsáveis pelas tradições passadas
de geração em geração, no entanto, é preciso destacar que os esquecimentos tam-
bém são parte da memória coletiva e causam a descontinuidade das experiências
históricas. Grande parte das pessoas que chegou à instituição, após a década
de 1980, desconhece a história vivida do prédio da Enfermagem. Contudo, as
memórias apontam para as rupturas e principalmente para as permanências de
uma história iniciada ainda na década de 1970, que seu reconhecimento permite
entender a identidade multifacetada dessa instituição educativa.

Fontes

-Entrevistas

Suzana Pimenta- entrevistada em 28 de fevereiro de 2018.

Marianna Augusto- entrevistada em 2 e 24 de fevereiro de 2018.

Alessandra Pimenta- entrevistada em 21 de março de 2018.

Daniel Silva de Oliveira- entrevistado em 13 de julho de 2018.

Patrícia Vogel- entrevistada em 13 de março de 2019.

Conceição Vieira da Silva Ohara- entrevistada em 16 de julho de 2018

- Documentos institucionais

130 Conceição Vieira da Silva Ohara - entrevistada em 16 de julho de 2018. Foi professora do curso de
Enfermagem Pediátrica durante a década de 1980 e acompanhou os estágios na Paulistinha.

278
AUGUSTO, M. Comunidade Infantil Creche. Rio de Janeiro. Ed. Guanabara Koogan
S.A., 1979.

AUGUSTO, M. Comunidade Infantil Creche. Rio de Janeiro. Ed. Guanabara Koogan


S.A., 1985.

-Fotografias
Alessandra, área externa da Creche – 1972 (Fonte: acervo particular de Suzana Pimenta,
apud OLIVEIRA, 2019, p. 114).

Daniel, Festa junina – 1985 (Fonte: acervo particular Daniel Oliveira apud OLIVEIRA,
2019, p. 154)

Comemoração de Páscoa- 1987 (Fonte: acervo particular de Daniel Oliveira apud


OLIVEIRA, 2019, p.155)

Daniel, Festa de Carnaval- 1988 (Fonte: acervo particular de Daniel Oliveira apud
OLIVEIRA, 2019, p.155)

Patrícia, Festa de encerramento de ano – 1995 (Fonte: acervo particular de Sidnéia Vogel
apud OLIVEIRA, 2019, p. 204).

Referências

BARTHES, R. Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Lisboa: Edições 70, 2009.

BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.

BRASIL. Decreto Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, que regulamenta a Consolidação


das Leis do Trabalho (CLT). Rio de Janeiro: Presidência da República, [1943].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm
Acesso em: 02 jan. 2022.

BURKE, P. Testemunha Ocular: O uso de imagens como evidência histórica. Traduzido


por Vera Maria Xavier do Santos. São Paulo. Editora Unesp, 2017.

CERTEAU, M. A operação histórica. In: LE GOFF, J., NORA P. (org.) História:


Novos Problemas. Tradução de Theo Santiago. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976.

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim


Ferreira Alves. 22 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

279
HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo:
Centauro, 2006.

KRAMER, S. A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. 6. ed. São Paulo:


Cortez, 2001.

KUHLMANN Jr, M. Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica. Porto


Alegre: Mediação, 1998.

MAGALHÃES, J. Um apontamento metodológico sobre a história das Instituições


educativas. In: Sousa, Cinthia Pereira de & Catani Denise Bárbara (org.) Práticas
educativas, culturas escolares, profissão docente. São Paulo: Escrituras Editora, p. 51-69,
1998.

MAGALHÃES, J. Tecendo Nexos: História das Instituições Educativas. Bragança


Paulista - SP: Ed. Universitária São Francisco, 2004.

MAGALHÃES, J. Educação e Memória. Arquivos e museus: desafios à prática


educativa e à investigação histórica. In: NEPOMUCENO, M.A; TIBALLI, E.F.A.
(org.) A educação e seus sujeitos na história. Belo Horizonte: Argvmentvm/ SBHE, pp.
181-189, 2007.

MAGALHÃES, J. A Instituição Educativa na Modernização no Local. Perspectiva


Histórico-Pedagógica. Rivista di storia dell’educazione, p. 41-55, 2018.

MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. 6. ed. São Paulo: Ática, 2007.

OLIVEIRA, R. C. Paulistinha, a Creche Universitária da UNIFESP: a construção


Identitária de uma história multifacetada (1971 a 1996). 2019. 231 f. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas-
Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2019. Disponível em: https://
repositorio.unifesp.br/handle/11600/59534

OLIVEIRA, R. C. Práticas do Cotidiano de uma Creche Universitária: a Paulistinha


(décadas de 1970 e 1980). Anais de trabalhos completos do XII Congresso Luso-Brasileiro
de História da Educação 2020. v. 5 (COLUBHE). Cuiabá-MT: Universidade Federal
de Mato Grosso, 2021. p. 368-381. Disponível em: https://gem.ufmt.br/xii-colubhe/
files/ANAIS_TRABALHOS_COMPLETOS_Eixo_Instituicoes_Educativas-
v.5.pdf

OLIVEIRA, R. C.; PANIZZOLO, C. Comunidade Infantil: Práticas do Cotidiano


de uma Creche Universitária na década de 1970. Linguagens, Educação e Sociedade.
Teresina, Ano 25, n. 46, set./dez. 2020. Disponível em: https://revistas.ufpi.br/index.
php/lingedusoc/article/view/11253/pdf

280
ROSEMBERG, F. Organizações Multilaterais, Estado e Políticas de Educação
Infantil. Cadernos de Pesquisa- Fundação Carlos Chagas, n. 115, pp. 25-63, março,
2002.

VIEIRA, L. M. F. “Mal necessário: creches no Departamento Nacional da Criança,


Brasil (1940-1970) In: FREITAS, M. C. (Org.) História social da infância no Brasil - 9
ed. São Paulo: Cortez Editora, 2016.

281
13. VESTÍGIOS DA CULTURA ESCOLAR
OITOCENTISTA EM SÃO PAULO: O CASO DA
ESCOLA DE PRIMEIRAS LETRAS DE SANTA
IFIGÊNIA
(1832-1846)

Eduardo Bezerra de Souza

Introdução

As investigações referentes ao Império brasileiro permitem observar um


esforço por parte dos estudiosos da educação em descontruir a imagem de desva-
lorização desse período histórico, que o consideraram como a “idade das trevas”,
momento de atraso e inércia. Sob esta ótica, as pesquisas sobre a História da
Educação oitocentista têm avançado nos últimos anos, a partir do interesse e do
trabalho de pesquisadores que vêm se empenhando em escrutinar os arquivos,
redescobrir documentos, reler mediante outras óticas e novas abordagens teórico-
metodológicas os vestígios da institucionalização do ensino elementar/primário.
Nessa esteira, destacam-se os trabalhos que investigaram a difusão da es-
cola elementar, especificamente, na Província/Estado de São Paulo: (Barbanti,
1977; Paris, 1980; Ananias, 2005; Barra, 2005); as práticas e a formação de seus
mestres (Vidal e Munhoz, 2018); os conhecimentos e os métodos de ensino
(Neves e Schelbauer, 2003); e a materialidade que concretizou sua organização
pedagógica (Barra, 2001; Souza, 2007). Essas produções configuram um cam-
po da História da Educação interessada nos processos de constituição da escola
primária paulista e principalmente em destrinchar as práticas dos agentes que a
produziram. Seguindo os rastros dessas pesquisas, tenho perscrutado os processos
de implantação das escolas de primeiras letras no contexto histórico e espacial da
cidade de São Paulo no início do século XIX. Algumas perguntas norteiam essa
investigação: Quantas escolas de instrução elementar existiam em São Paulo no
século XIX? Como funcionavam essas escolas? Quem eram seus mestres? Quais
eram os objetivos do ensino, as matérias ensinadas, os livros e materiais utilizados
nos gestos de ler e escrever? Quais os problemas enfrentados pelos professores
em suas práticas escolares? Tais questionamentos balizam reflexões que venho
realizando sobre o tema da instrução pública mediante pesquisa de doutorado.131

131 A pesquisa vem sendo desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da

282
O texto aqui apresentado tem como objetivo analisar a constituição de
aspectos da cultura escolar oitocentista na organização e desenvolvimento da ins-
trução pública paulista. A partir das contribuições da História Cultural, tem-se
como corpus de análise seis relatórios elaborados pelo professor Carlos Jozé da
Silva Telles, no período de 15 de abril de 1832 a 06 de agosto de 1846, quando
atuou como mestre da Escola de Primeiras Letras da Freguesia de Santa Ifigênia.
O texto organiza-se em cinco partes. Na primeira, “São Paulo e a instru-
ção pública Oitocentista”, discorro sobre o desenvolvimento da instrução pública
na Província de São Paulo, com a preocupação de evidenciar que a pobreza, o
isolamento, o analfabetismo, a centralização política e as burocracias inibiam as
iniciativas locais e os investimentos para o desenvolvimento da instrução primá-
ria. Na segunda parte, “Do interior das escolas para os discursos sobre a instrução:
organização, práticas de ensino e o alunado da Escola de Primeiras Letras de
Santa Ifigênia” busco compreender as estratégias de Carlos Jozé da Silva Telles
para constituir-se mestre, ao mesmo tempo, analisa-se aspectos da cultura escolar
daquele estabelecimento. Na terceira parte “Cultura material na Escola de Pri-
meiras Letras de Santa Ifigênia” apresenta-se a provisão material e seu papel na
configuração da cultura escolar daquela instituição. Na quarta parte, “Indisciplina,
vigilância e repressão na Escola de Primeiras Letras de Santa Ifigênia” aponto as
estratégias do professor Telles para manter a ordem e a disciplina em sua tur-
ma. Nas considerações finais, busco demonstrar que investigar a prática desse
professor permite apreender parte do desenvolvimento e organização da instru-
ção pública e da cultura escolar em São Paulo, contribuindo para a compreensão
contribuindo para a compreensão da organização e desenvolvimento de parte da
instrução primária no oitocentos paulista.

São Paulo e a Instrução Pública oitocentista

A instrução pública é um dever da sociedade para com todos os cidadãos.


Em vão seria declarado que todos os homens têm os mesmo direitos, em vão
seriam respeitadas as leis se não respeitassem esse primeiro princípio da justiça
eterna, se a desigualdade das faculdades morais impedisse o maior número de
pessoas de gozar esse direito em toda sua plenitude (CONDORCET, 2001, p.
17).
A afirmação acima, retirada da obra Cinco memórias sobre la intrucción pú-
blica y otros escritos é de autoria de Jean-Antonie-Nicolas de Caritat, o Marquês
de Condorcet (1743-1794). No pensamento desse filósofo encontram-se as bases

Universidade Federal de São Paulo E ao NIPELL – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Ensino
de Língua e Literatura, sob orientação do Prof. Dr. Fernando Rodrigues de Oliveira.

283
essenciais para a formação de um modelo de cidadão que deveria conduzir a ad-
ministração de toda a sociedade ocidental. Para ele, caberia ao Estado propiciar
de maneira gratuita e ao alcance de todos os cidadãos a instrução pública: ricos ou
pobres, citadinos ou camponeses, burgueses ou trabalhadores, homens e mulhe-
res. Para que essa igualdade pudesse ser atingida “[...] como princípio da justiça
eterna [...] em sua plenitude”. (p. 19).
Condorcet foi o precursor na proposta de uma instrução pública, gratuita,
obrigatória, universal e laica, sem discriminação, tendo influenciado as concepções
de escolarização primária na Europa do século XVIII, especialmente na França,
assim como suas ideais também contribuíram para a organização e estruturação
da escola pública no Brasil.
Pode-se afirmar que no Brasil, o desenvolvimento da instrução pública
nos moldes propostos por Condorcet se funda, ao menos sob o ponto de vista da
legislação, com a carta Outorgada de 1824 que instituiu o ensino fundamental
público e gratuito e, sobretudo, com a promulgação da Lei de 15 de outubro de
1827, primeira lei geral da instrução pública, em que o Estado assumia seu papel
na promoção e criação de instituições educacionais. A lei preconizava que prédios
escolares apropriados e utensílios para o ensino deveriam ser preocupações das
autoridades e prescrevia em seu Art. 6º o que deveria ser ensinado:
Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações
de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as
noções mais gerais de geometria prática, a gramática de língua
nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina da reli-
gião católica e apostólica romana, proporcionados à compreen-
são dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do
Império e a História do Brasil (BRASIL, 1827, Art. 6º).

Por instrução se entendia o ensino das primeiras letras e da doutrina cristã.


Dessa maneira, essa mesma lei, em seu artigo 4º, estabelecia que as escolas fos-
sem de ensino mútuo nas capitais, cidades, vilas e lugares mais populosos em que
pudessem se estabelecer. Entretanto, ao considerar a Província de São Paulo, José
Pires de Almeida (1989) destacou que “[...] as preocupações políticas e as grandes
propriedades limitaram durante muito tempo a expansão que a administração
sempre procurou dar à instrução pública” (ALMEIDA, 1989, p. 78).
Semelhantemente, Barbanti (1977) apontou que no início do XIX, a si-
tuação do ensino público na capitania resumia-se à presença de algumas escolas
régias de estudos menores instaladas nas suas vilas principais. Sem indústria, sem
imprensa, sem escolas superiores, com estradas habitualmente intransitáveis, a
Província de São Paulo exibia, como padrão de vida, o isolamento, a introversão e
o domínio local que se refletiam no estado da pobreza e abandono de suas escolas
e no desinteresse da população pelos estudos. Segundo Barbanti (1977), ao longo
dos anos 1840 e início dos anos 1850, foram propostas várias medidas para solu-
cionar o grave problema de despovoamento das escolas paulistas. Entre essas me-
didas destacou-se a melhoria de vencimentos, a adequada formação didática dos
professores, a instalação de um sistema de inspeção mais eficiente, a frequência
obrigatória à escola elementar e a liberdade de atuação para a iniciativa privada.
Ainda segundo Barbanti (1977), apesar dessas medidas, a realidade do en-
sino público paulista permaneceu profundamente constrangedora. O baixo nível
do ensino devia-se ao desinteresse dos pais que retiravam seus filhos da escola mal
dominassem a leitura e a escrita do próprio nome. Somava-se a isso o despreparo
dos professores no desempenho da função, a inadequada formação pedagógica,
o ensino apoiado nos mais rudimentares métodos, a insuficiência de materiais e
as precárias condições estruturais. Em relação aos métodos de ensino, o mútuo
aparecia como uma das linhas de ponta do pensamento pedagógico e como um
dos modos de expressão/produção do modelo sócio/político cultural dominante.
Este aspecto foi observado por Neves (2003), ao apontar que em favor da
defesa da instrução pública, que não precisava ultrapassar o estágio elementar, o
método mútuo atendia às expectativas da instrução básica e já tinha angariado
status de um modelo educacional para promover a civilização, portanto, coerente
com os interesses do governo imperial. Para a mesma autora, a implantação desse
método tornou-se defensável porque se propunha a fazer a instrução em massa,
restringindo os objetivos pedagógicos à leitura, à escrita e às operações elemen-
tares da aritmética, o que enfatizava a autoridade monárquica e promovia, sob a
conduta pedagógica, a defesa da ordem social, que no Brasil estava relacionada
com os ditames da sociedade escravista.
Como estratégia de pacificação e civilização a lei da instrução preconizava,
para os meninos, o ensino da leitura e escrita, aritmética, noções de geometria
prática, gramática nacional, princípios de moral cristã e doutrina da religião ca-
tólica. Para as meninas, as mesmas disciplinas com acréscimo das prendas do-
mésticas e exclusão das noções de geometria, práticas de quadrados, decimais e
proporções.
Para o ensino da leitura a legislação recomendava o texto da Constituição
do Império e as obras de História do Brasil, porém, diante da escassez de livros
disponíveis eram empregadas cartas de correspondências privadas e uma série de
impressos, livros e manuscritos que ficavam a escolha de cada professor. Confor-
me destacou José Ribeiro Escobar (1933) no decorrer do oitocentos, o ensino da
leitura e da escrita na província de São Paulo se dava pelo método da soletração.
Primeiramente utilizavam-se as Cartas do A, B, C, em seguida as cartas das síla-
bas, as cartas dos nomes ou os manuscritos, depois o Silabário português, a Car-
tilha da Doutrina Cristã e a gramática de Coruja. Escobar (1933) apontou que:

285
Os alunos estudavam as lições durante as cinco horas de aula
e o professor ou um aluno adiantado as tomava à última hora,
armado de palmatória. Era um vozerio confuso: cantava-se a ta-
boada, fazia-se exercícios de soletração e decoração em voz alta.
Os castigos físicos eram comuns: a vara de marmelo, o coque, o
puxão de orelhas sobre grãos de milho; a prisão no recreio e após
as aulas, os xingamentos não faltavam (p. 166-167).

Igualmente, Barbanti (1977) acrescentou que no início do século XIX em


São Paulo, o ensino de gramática dava-se a partir dos compêndios de autores
como: Antônio José dos Reis Lobato, Pe. Antônio Pereira de Figueiredo, Pe.
Inácio Felisardo Fortes, entre outros. Os fundamentos da doutrina cristã eram
ensinados a partir dos catecismos de Fleury, Montpellier, Pe. Marcos Jorge e Pe.
Inácio Martins. Para as aulas de caligrafia utilizavam-se a coleção de traslados
de Cirilo Dilermando da Silveira. Quanto ao ensino da escrita, Barra (2001)
identificou que do final dos anos 1820 ao início dos anos 1840, a lousa (lâmina
de ardósia) era importante utensílio de escrita e aritmética, sendo mais frequente
seu uso na escrita que “dava-se por debuxo, com a formação das letras na areia ou
na lousa, por traslado, com exercícios de ligação e transferência/traslado das letras
na areia ou na lousa” (BARRA, 2001, p. 19).
Em face do exposto, é possível compreender que a instrução pública, en-
quanto estratégia de governo destinada a civilizar e pacificar as populações, tinha
como propósito assumir espaço importante para o desenvolvimento político e
econômico da nação brasileira. Todavia, no caso da Província paulista, ela vai se
constituindo em meio à precariedade, falta de infraestrutura e local para o funcio-
namento das escolas, inadequada formação pedagógica e ausência de mobiliários
e materiais escolares, conforme se detalha a seguir.

Do interior das escolas para os discursos sobre a instrução:


organização, práticas de ensino e o alunado da Escola de Primeiras
Letras de Santa Ifigênia

De acordo com Egas (1926, p. 47), para Raphael Tobias de Aguiar, pre-
sidente da Província de São Paulo, de 17 de novembro de 1831 a 11 de maio
de 1835, “a instrucção primária, os socorros públicos e os estabelecimentos de
caridade mereciam a melhor attenção por serem elementos de civilisação”. Na
tentativa de reunir informações sobre os diversos ramos da administração pú-
blica, o presidente decretou a Lei Provincial de 11 de abril de 1835 e incumbiu
desse serviço o engenheiro Daniel Pedro Muller, que em seu Ensaio d’um quadro
Estatístico da Província de São Paulo (1838), apontava existir na Província, em

286
1836, nove escolas de primeiras letras masculinas; quatro nacionais com 125 dis-
cípulos e três provinciais, com 132; uma feminina nacional, com 49 alunas, e uma
provincial, com 14.
Considerando o recorte espacial da Província de São Paulo, o bairro de Ifi-
gênia, assim referida pelos ruões e pelas mulheres do comércio ambulante, contou
no primeiro quartel do século XIX com alguns mestres régios, o professor Luiz da
Costa Faria que lecionava em uma modesta casa defronte ao Hospital Militar, o
Pe. Joaquim Monteiro que ministrava os primeiros ensinamentos na rua Nova de
São José e a mestra Maria Francisca, cujos ensinamentos ocorriam em sua própria
residência à rua do Rosário. Esses mestres ensinavam a uma ínfima população
infantil, pois os pequenos filhos dos notáveis aprendiam as bases da leitura e das
contas no recesso familiar ( JORGE, 1999).
Em observância à Lei de 15 de outubro de 1827, providenciou-se a ins-
talação da Escola de Primeiras Letras de Santa Ifigênia. Em hábil documento,
Dom Manuel Gonçalves de Andrade, bispo diocesano e vice-presidente da Pro-
víncia, nomeou, em 16 de outubro de 1830, João Francisco dos Santos como o
primeiro professor dessa escola. Entretanto, em junho de 1831, o mestre solicita-
ria demissão motivando nova provisão no dia 11 do mesmo mês. Foi escolhido,
então, Carlos Jozé da Silva Telles, antigo mestre na Freguesia de Nazareth, que
em 27 de agosto, em requerimento à Câmara, pedia “attestação para receber o seu
ordenado” ( JORGE, 1999, p. 112).
Segundo Taunay (1977), o professor Carlos Jozé da Silva Telles era ho-
mem respeitável e de idade madura. Nascera em 1786, filho de Jaime da Silva
Telles, português, figura de destaque no meio paulistano e um dos maiores par-
tidários de Francisco Inácio de Souza Queiroz. Era irmão de João Batista Telles
de Queiroz, panfletista político que redigia A Matraca, uma das mais exaltadas
folículas políticas dos anos regenciais e de Jaime Telles, vereador da Câmara de
São Paulo e envolvido em prol da Santa Casa de Misericórdia. A literatura aponta
que o mestre assumira a escola de Santa Ifigênia aos 45 anos e passado um tempo
de sua assunção, a cadeira teria sido vaga, e um único candidato apresentou-se ao
seu preenchimento, o próprio professor Carlos, que examinado perante o Conse-
lho do Governo vira-se aprovado ao cargo. Algumas evidências da trajetória do
professor Silva Telles podem ser identificadas em seus relatórios. Nesse propósito,
toma-se, aqui, seis mapas elaborados pelo mestre.
No que concerne sua estrutura gráfica, os relatórios dos professores das
escolas de primeiras letras produzidos nas décadas de 1820, 1830 e até meados
dos anos 1840 eram chamados de mapas. Esses documentos eram manuscritos
e, segundo Barra (2001, p. 19), “tinham medidas relativamente grandes: alguns
podiam chegar a 0,50m de largura por 1,00m de altura”. Em sua maioria, esses
documentos eram acompanhados por ofícios que informavam remetente e des-

287
tinatário e em alguns casos, a lei, portaria ou ordem que estava se cumprindo.
Os seis mapas do professor Carlos Jozé da Silva Telles examinados aqui tinham
como destinatário o Dr. Diogo de Mendonça Pinto, Inspetor Geral da Instrução
Pública. Contata-se que, na parte superior de cada mapa, o mestre registrava o
nome da escola seguido da expressão “relação dos escolares”, mês e ano corrente.
Abaixo, identificam-se colunas com a indicação de algumas categorias criadas
pelo mestre, como: “número”; “nomes”; “idade”; “ano e dia da matrícula”; “o que
sabia quando se matriculou” e “frequência”. Essas categorias foram sendo progres-
sivamente substituídas por termos mais simples como “dia da matrícula”, “exame
da entrada”, “aproveitamento”, “comportamento”. Em alguns mapas foram acres-
centados os termos “o que estão aprendendo”, “estado actual”, “faltas”. Na parte
inferior de cada mapa, o professor cria um campo de “observações” e, nele, expõe
informações sobre o ensino, condições estruturais da escola, suas dificuldades no
exercício docente seguida da quantidade de crianças da turma, data e assinatura
do mestre.

Figura 1: Relação dos escolares da Escola de Primeiras Letras de Santa Ifigênia desta
Cidade – 1834.

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo – APESP.

Embora a lei de 15 de outubro de 1827 pedia que fossem informados ape-


nas o número e o aproveitamento de alunos, as categorias criadas pelo professor
Telles ampliavam substancialmente a qualidade das informações requeridas pelo

288
poder público. Foi observado que os mapas explicitavam ao menos cinco conjun-
tos de dispositivos:
a) contabilidade, expresso na numeração crescente incluída na
primeira coluna ou no artifício de informar o número de alunos
frequentes ao final do mapa (como realizado para os anos de
1832, 1833, 1837, 1838 e 1839); b) identificação, manifesto no
cuidado em especificar nome e idade, além de filiação, natu-
ralidade, condição e cor; c) gestão, perceptível no registro de
dia de matrícula ou entrada e faltas, evidenciando o início do
trabalho docente com cada aluno e suas interrupções; d) avalia-
ção pedagógica, incluída no campo aproveitamento ou no das
diversas disciplinas; e) avaliação social e comportamental, em
geral emergente na forma de observações gerais, outras infor-
mações ou observações e procedimento (VIDAL, 2012, p.58,
grifos da autora).

Considerando este conjunto de dispositivos, uma constatação que a leitura


desses documentos permite fazer é a de sua função como elemento estatístico
conformando modos de representar, produzir e controlar a realidade que naquele
contexto cumpriam a dois regimentos de governo: “o controle do efetivo trabalho
do professor, atestado necessário para pagamento salarial; e o controle da frequ-
ência de alunos, imprescindível para manutenção da escola” (VIDAL, 2012, p.
49). Apesar de não discorrer sobre a elaboração de mapas, a primeira Lei Geral,
de 15 de outubro de 1827, dispunha em seu Art. 10 que:
Os Presidentes, em Conselho, ficam autorizados a conceder
uma gratificação anual que não exceda à terça parte do orde-
nado, àqueles Professores, que por mais de doze anos de exercí-
cio não interrompido se tiverem distinguido por sua prudência,
desvelos, grande número e aproveitamento de discípulos (BRA-
SIL, 1827, Art. 10).

Conforme determinava a Lei, uma das prerrogativas para o recebimento


da gratificação anual dos professores era o aproveitamento de seus discípulos, o
que devia ser comprovado a partir dos mapas de frequência. Além de flagrar-
mos a conformação de uma prática escriturística, a produção desses instrumentos
pelo professor Telles confirma a proposição de Julia (2001), de que as normas
e as práticas da escola não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo
profissional dos agentes que são chamados a obedecer a seus ordenamentos e,
portanto, a “[...] utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua
aplicação” (p. 10). Neste aspecto, o professor cumpria com a determinação do
governo elaborando documento comprobatório de seu trabalho e seus relatórios
além de atender a uma demanda do Estado, explicitavam indícios da apropriação/
inculcação de conhecimentos produzidos no interior da escola de primeiras letras

289
de Santa Ifigênia. Pode-se inferir que seus mapas funcionavam como reguladores
de “dispositivos pedagógicos” e evidenciavam o que Escolano (2017), denominou
de “cultura política”, uma vez que esses documentos apontavam para uma prá-
tica gerada nas grandes burocracias que administravam os sistemas educativos
e revelavam “todo o jargão por meio do qual se veicula a linguagem das normas
(estrutura, dispositivos de governo e controle, reformas, inovações curriculares e
didáticas, relações com os atores do sistema)” (p. 122).
Nessa conjuntura, como produto de uma “cultura política”, além de siste-
matizarem dados sobre as burocracias e a prática escriturística da escola, os mapas
sinalizavam o aproveitamento de cada criança, dava visibilidade aos conhecimen-
tos apreendidos, a aplicação de procedimentos e método de ensino utilizado, além
de apontarem critérios para a qualificação e a indicação da naturalidade, filia-
ção e condição dos alunos, implicando um minucioso registro das características
pessoais dos discípulos. Tomadas como “dispositivos pedagógicos”, as categorias
revelavam que o registro do professor extrapolava a determinação legal e a forma
como ele organizava seus mapas traz indícios sobre a formalidade do desenvolvi-
mento da instrução pública, indicando que além da frequência dos alunos, caberia
ao regente da turma um registro burocrático, disciplinar e pedagógico, pois:
Era na confluência dessas três ordens de fazeres que os docentes
construíam sua experiência profissional. ao mesmo tempo, cons-
tituíam o que era ou deveria ser a experiência discente, consig-
nada em rubricas que iam da definição dos caracteres biológicos,
sociais e jurídicos dos alunos ao estabelecimento de hierarquias
de conteúdos e modos de aprendizagem (VIDAL, 2012, p. 59).

O sentido pedagógico atribuído pode ser demonstrado a partir do registro


realizado pelo professor Telles nos campos “o que sabião quando se matricularão”;
“o que estão aprendendo” e “frequência”.
Dessa maneira, no mapa de 1833, o professor Telles registra que o aluno
Pedro Alexandrino Ferreira de Abreu, de 8 anos, filho do Major Jozé Matheus
Ferreira de Abreu, fora matriculado na escola em 20 de junho de 1831. Segundo
ele, o aluno “lia e escrevia muito mal”. No campo o “que estão aprendendo”, o
professor sinaliza que Pedro “está em sintaxe, e ainda lê com custo, faz as quatro
operações, quebrados ordinários e algumas proporções fáceis, e alguns problemas
de geometria, quanto à escrita, quase nenhum adiantamento, têm talento, mas
pouca atenção presta a todo o ensino”.
A preocupação do tutor em apontar o “adiantamento” dos alunos no ler,
escrever e contar pode ser atestada no mapa de 25 de setembro de 1834. Con-
forme indicado, o mesmo Pedro Alexandrino Ferreira de Abreu, em 1834, ainda
“lia e escrevia muito mal”; “esta recordando grammática, reage oraçoens fáceis,
faz companhias, e quebrados ordinários, alguns problemas de geometria” e fre-

290
quentava as aulas no período da tarde. Antônio Maria Guartin, 9 anos, filho do
Tenente Antônio Guartin, matriculado no dia 22 de junho de 1831: “soletrava
algumas syllabas e fazia algumas letras, tudo mal”. De acordo com o professor, o
aluno, “esta recordando grammática, reage oraçoens muito fáceis, faz companhias
simples, e quebrados de ordinários, e poucos problemas de geometria, pouco
adiantamento em escrita” (TELLES, 1834, p.1). Referente à frequência, o pro-
fessor asseverava que Antônio Maria Guartin “há quinze dias não vêm à escola”.
Observa-se no mapa de 1834 que os alunos João Maria de Araújo Pinto, 6 anos;
Antônio José, João Pedroso e Gregório de Oliveira, 7 anos, “nada sabiam”. Ape-
nas, João Ribeiro de Escobar, 6 anos “lia nomes” e “está principiando arepartir e
vai escrevendo ainda mal” e era um aluno frequente. Apesar de o professor indicar
que o aluno João Maria de Araújo Pinto “nada sabia”, no campo de referência “o
que aprende”, atestava-se que a criança “esta no ABC, poucas letras, escreve na
louza” e apresentava “muito pouca frequência” (TELLES, 1834, p.1).
Os apontamentos desse mapa não permitem afirmar a simultaneidade no
ensino da leitura e da escrita, contudo, comprovam o cuidado do mestre em re-
gistrar o nível de aprendizagem da leitura e da escrita de seus alunos, identificado
os estágios de conhecimento dos discípulos, como, por exemplo, “está no ABC
e poucas lettras escreve nas louzas”; “já faz nas louzas sofrivelmente, as letras da
carta e do ABC grande e pequeno”; “escrevia muito mal e lia livro sofrivelmente”;
“principiava ler nomes, mas poucas letras fazia”.
Referente ao ano de 1837, o mapa produzido pelo professor Telles apre-
senta informação de que o aluno Bernardino Lopes de Camargo, 13 anos, filho
de Maria Miquelina das Dores, matriculado no dia 19 de setembro, “lê e escreve
sofrivelmente e faz as 4 operações com números inteiros e quebrados e compa-
nhia não bem”. O aluno João Monteiro Barbosa, de 8 anos, “principia analisar a
gramática, faz as 4 operações com números inteiros e quebrados [...] ainda mal
pouco de geometria, letra sofrível”. Além disso, as informações trazem indícios
sobre o modo como se ensinava, pois, sinaliza a lousa como suporte para o ensino
da escrita, o que implicava outros materiais e um princípio de método de escrita
conhecido como debuxar: “exercício que treinava os movimentos da mão para o
exercício com os traslados, exemplares de escrita usados pelos alunos nas escolas
e que serviam de modelo no talhe da letra” (BARRA, 2001, p. 29).
Sabe-se que pela Lei de 1827, o ensino dava-se pelo método mútuo ou
lancasteriano. A defesa de tal método residia no fato dele ser útil para a amplia-
ção do processo de instrução das massas correspondendo ao ideário civilizatório
iluminista que se irradiava a partir da Europa. Nesse contexto, o sistema do mé-
todo mútuo aparecia, segundo Faria Filho (2000, p. 141), como “[...] poderosa
arma na luta para fazer com que a escola atingisse um maior número de pesso-
as.”. Entretanto, ao longo do Oitocentos, o ensino mútuo sobreviveu, pelo menos

291
nas intenções e nos registros, sendo criticado pela brevidade da permanência do
docente com cada aluno e pela morosidade do aprendizado. Conforme apontou
Marcílio (2014, p. 70), tanto na escola de primeiras letras da Sé quanto na de
Santa Ifigênia, seus professores “[...] não sabiam como executá-lo, não dispu-
nham do material escolar necessário para viabilizá-lo e mantinham seus métodos
tradicionais de ensino individual”. Este fato pode ser comprovado pelo formato
de listas com que o professor Telles registrava as informações de seus alunos
nos mapas indiciando um enfoque individual e a heterogeneidade dos graus de
aprendizado dos seus discípulos. Quando se tratava de meninos mais adiantados,
o mestre descrevia a situação como “leitura, escrita aritmética, gramática” e, para
os discípulos iniciantes, ele relatava que estavam lendo “carta de nomes” ou “em
ABC” e “principiando a escrever”, sem, no entanto, mencionar outras disciplinas.
É possível inferir que o registro daquilo que o aluno sabia ou não sabia de-
marcava na prática do professor Telles sua preocupação em atender o tripé escolar
da escola do início do século XIX, “ler, escrever e contar”; ademais, expressava o
cuidado com a “boa” letra e os exercícios de aritmética, indo da soma à divisão.
Observando o conjunto de mapas, verificou-se que as turmas do professor
Telles eram numerosas. A turma de 1832 contava com 43 alunos; a de 1834 era
composta por 33 alunos; a de 1837 era composta por 36 alunos; a turma de 1838
era composta por 41 alunos; a de 1839 era composta por 51 alunos e a de 1846
era composta por 52 alunos. As faixas etárias demonstraram tratar-se de agrupa-
mentos multisseriados. À título de exemplos, os meninos Gabriel Friz Coutinho;
Francisco Antônio Maria e Guartin e Francisco de Paula Mendes, da turma de
1833, tinham 6 anos; Jozé Alpino e João Antônio Maria Rangel, da mesma classe,
tinham 16 anos. Completavam essa turma outros meninos com idade entre 12,
13, 14 e 15 anos. Essa diversidade etária foi averiguada nos seis mapas examina-
dos. Além das características pessoais, o professor sinalizava as condições sociais
de seus discípulos. O mapa de 1840 indicava que o mestre tinha quatro alunos
de famílias da elite, sete de filhos legítimos de camadas inferiores, dez ilegítimos,
um exposto e um escravo. Apenas cinco discípulos estavam há mais de um ano na
escola, os demais haviam entrado ao longo de 1840.
Destarte, a Escola de Santa Ifigênia sofria com a baixa frequência de seus
alunos. No mapa de 6 de agosto de 1846, por exemplo, o discípulo Domingos José
de Freitas teria se ausentado naquele ano 58 vezes; Benedito José de Amparo, fi-
lho de Luciano José de Amparo, possuía 44 faltas; Francisco José de Toledo, filho
de José Manoel de Toledo, ausentara-se 36 vezes. A heterogeneidade dos grupos
e a baixa frequência dos discípulos levantam hipóteses sobre as dificuldades en-
frentadas pelo mestre na condução do ensino. Independentemente do nível de
conhecimento de cada criança, qual estratégia utilizava para contemplar todos os

292
alunos? Como ele organizava sua classe? Como administrava a gestão do tempo?
Havia materiais suficientes para todos os seus discípulos?
Os relatórios do mestre indicam que na Escola de Santa Ifigênia, as precá-
rias condições estruturais, somada ao desinteresse das famílias, dificultava o de-
senvolvimento da instrução. No mapa de 8 de outubro de 1837, o professor Telles
justifica a ausência do registro de oito crianças: “não fiz menção de mais oito
meninos porque em razão do tempo que não apparecem, os supunho em outras
escolas, pois hé costume, entre mesmo pessoas de educação polida, a tirarem os
filhos da escola sem a menor attenção aos mestres” (TELLES, 1837, p.2). Em se-
guida, reclamava da falta de materiais para o ensino de Geometria: “como minha
aula nunca teve os utencílios necessários ao ensino de geometria com especiali-
dade, não tem sido possível aproveitamento neste ramo” (TELLES, 1837, p. 2).

Cultura material na Escola de Primeiras Letras de Santa Ifigênia

Quando analisados em sua seriação, os mapas do professor Telles permitem


acompanhar o desempenho de seus alunos na aprendizagem da leitura, escrita e
aritmética, apontam, ainda, os sistemas de classificação adotados pelo mestre e
apresentam informações sobre como funcionava a Escola de Primeiras Letras de
Santa Ifigênia, o que revela vestígios da cultura escolar daquele estabelecimento.
O conceito de cultura escolar é tomado aqui na concepção de Julia (2001,
p. 10) que a definiu como “[...] um conjunto de normas que definem conheci-
mentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem
a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”.
Sob esta perspectiva, o conceito de cultura escolar, sinaliza para a perspectiva de
um olhar para o interior da escola, buscando “abrir a caixa preta” na tentativa de
desvendar o seu funcionamento interno. De forma análoga, Escolano (2017, p.
119) definiu a cultura escolar como o “[...] conjunto de práticas e discursos que
regularam ou regulam a vida das instituições de educação formal e da profissão
docente”.
Como conjunto de normas e práticas, a definição de cultura escolar pre-
tende dar conta de analisar a relação que os profissionais, em especial os profes-
sores, estabeleceram com as normas postas à obediência e, assim, com o uso que
eles fizeram dos dispositivos pedagógicos postos a circular. Os mapas do professor
Telles confirmam a proposição de Julia (2001), quando este autor afirma que essa
relação não se estabelece pacificamente, mas, sim, é sempre permeada de resistên-
cias e contradições. Nessa perspectiva, analisar o funcionamento interno da escola
pressupõe considerar além de seus sujeitos, as dimensões espaço-temporais do
fenômeno educativo, os conhecimentos, as sensibilidades e os valores produzidos,

293
transmitidos e aprendidos na escola, bem como as rotinas, os métodos de ensino
e a materialidade escolar.
A partir desse entendimento, a cultura material desempenha um papel
importante pelas quais a rotina escolar une objetos e ações. Na acepção de Souza
(2007, p. 169), a cultura material escolar corresponde ao conjunto dos artefatos
necessários ao funcionamento das escolas envolvendo “[...] mobiliários e aces-
sórios, infraestrutura do prédio escolar, equipamentos e utensílios destinados ao
ensino das disciplinas”. Entende-se que a cultura material é parte da cultura es-
colar e considerar esses artefatos como elementos constituintes da cultura escolar
pressupõe reconhecê-los como indispensáveis ao fazer pedagógico e para a com-
preensão do funcionamento e organização das instituições educativas.
Escolano (2017), aponta os objetos, imagens, escritas e vozes como defi-
nidores da cultura material e essa como elemento da cultura da escola. Por esta
acepção, Escolano (2017, p. 122-123) aponta que a provisão material da escola
constitui fontes e símbolos pelo qual é possível entender os “silêncios” da me-
mória histórica da escola, “o logos que governa a gramática interna do escolar, o
intricado e labiríntico conjunto de dispositivos e rotinas, que se impõem como
práticas ordinárias”.
Desse modo, os efeitos das ações do uso dos objetos, a configuração física
da escola, a sua organização espacial e temporal e a simbologia que a materialida-
de ocupa no contexto escolar permitem que se fale em uma dimensão empírica da
cultura escolar. É nesse âmbito da cultura escolar que se configura a cultura mate-
rial amparada pelas práticas escolares, que segundo Escolano (2017, p. 120) “[...]
são um reflexo funcional e simbólico das formas de entender e governar a prática”.
Sobre este aspecto, foi possível constatar nos mapas do professor Telles di-
versas reclamações sobre a ausência de utensílios destinados ao ensino, demons-
trando que a precariedade estrutural e a falta de recursos materiais eram uma
constante na escola de Primeiras Letras de Santa Ifigênia. O fato contrasta com a
afirmação de Hébrard (2001), ao indicar a necessidade de três fatores para que o
fenômeno da instrução se concretizasse: mestres capazes de ensinar a escrita; um
corpo de doutrina pedagógica e,
enfim, os instrumentos que possam permitir a escolarização
dessa aprendizagem que durante muito tempo foi artesanal, li-
mitada à relação dual do mestre com o aprendiz: tal será o papel
da ardósia e do quadro negro para os iniciantes: ou do caderno
para os que já têm a mão mais treinada; e também, a partir de
1860 o papel da pena metálica que libera mestres e alunos da
servidão limitadora da pluma de ganso (HÉBRARD, 2001, p.
117).

294
No mapa de 10 de julho de 1837, o professor Telles encaminhou uma
solicitação de “objectos” para a escola de Santa Ifigênia. Conforme se observa na
figura 2, é possível identificar quais objetos a lista incluía:

Figura 2: Relação dos objetos precisos para a Escola de Santa Ifigênia – 1837.

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo – APESP.

A relação dos artefatos suscita a observação do papel que a cultura material


escolar desempenhou no fazer docente da escola de Santa Ifigênia, na provisão
dos espaços e na implicação dessa provisão sobre as relações ali existentes. Sob
esta perspectiva, pode-se deduzir que a ausência desses objetos comprometera as
práticas do professor que diante da carência de recursos materiais, dotava-se de
iniciativas para concretizar o seu ofício revelando a cultura empírica que embasou
o seu saber-fazer pedagógico. Quando relacionados aos seus modos de uso, esses
objetos configuram códigos, normas, ritos e práticas legitimadas no cenário esco-
lar, constituindo-se verdadeiros vestígios das práticas escolares.
Portanto, na provisão material é possível identificar ideias e práticas acer-
ca da organização e desenvolvimento da instrução pública e no caso da Escola
de Santa Ifigênia, os artefatos contribuem para detectar a maneira como a ins-
tituição funcionava e como os espaços e esses objetos se relacionavam com a
prática educacional do professor Carlos e com a produção de uma cultura escolar
específica. Como exemplos, pode-se depreender o lugar simbólico que a escrita
ocupou naquele grupo social, bem como a vulgarização de seus instrumentos:

295
“louzas”, “massos de lápis de pedra”, “canivetes para as penas”, “canetas”, “tintei-
ros de chumbo”; o ensino e aprendizagem pela oralidade, repetição e memori-
zação mediados pelos suportes que regiam as atividades de leitura: “diccionário
de Moraes”, “exemplar do encino mútuo”, os objetos que denunciavam as péssi-
mas condições da escola e eram destinados à melhoria e comodidade do espaço
escolar: “vidros p. as janelas”, os artefatos que tinham por finalidade manter a
disciplina impondo comportamentos e valores que se articulavam em torno de
práticas repressivas comprovando o espaço escolar como lugar de autoridade e
anulação das diferenças: “fechadura para a prisão” e aqueles materiais relacio-
nados diretamente às condições de saúde e higiene do ambiente escolar: “pote”,
“barril”, “gamela”, “latrina”.
Os utensílios solicitados pelo professor aduzem a dinâmica de um modo
adequado do magistério, evidenciam os modos de fazer, de adaptar e de produzir
uma cultura escolar, porém evidenciam também os percalços na constituição da
instrução paulista naquele contexto. A falta absoluta de condições de higiene, a
carência de material didático, a falta de água e até mesmo de materiais para que
os discípulos pudessem satisfazer suas necessidades fisiológicas atestam para o
descaso do governo em providenciar espaços adequados para a concretização da
instrução pública. Além da ausência de objetos para o ensino, o professor aponta-
va que na Escola de Santa Ifigênia faltavam:
Pote ou barril para água, coco de beber e uma gamela para
receber os restos de água, uma pia de cal e tijolo, para os
meninos verterem águas que escoe para a latrina; a latrina
necessita ser rebocada r caiada para ter mais luz e os bura-
cos devem ser diminuídos e uma porção de parede que sirva
para dar luz deve ser tapada porque se comunica ou devassa
o seminário. O local da escola tem dois grandes defeitos. O
primeiro, ser escura a metade das tarde, e muito escura nas
tardes de inverno e só pode receber alguma luz pelo lado do
quintal do seminário; o segundo é o insuportável mau cheiro
da latrina, em mudança de tempo, só quem sofre pode saber
o que padece com dores de cabeça, transtornos de estômago
(Mapa do professor Carlos Jozé da Silva Telles da escola de
Santa Ifigênia, 10 de julho de 1837) – Arquivo Público do
Estado de São Paulo – APESP.

A ausência desses materiais permite que se discuta sobre elementos que


compõem a cultura política daquela escola, que, sob a perspectiva de Escolano
(2017, p. 122), “expressa, sem dúvida, uma determinada modalidade de cultura: a
da escola como organização institucional”.

296
Indisciplina, vigilância e repressão na Escola de Primeiras Letras de
Santa Ifigênia

Não menos importante, as práticas ou intenções disciplinares, constituem


outro elemento da cultura escolar da escola de Santa Ifigénia. Os mapas do
professor Telles trazem indícios das relações entre ele, seus discípulos e família,
denotando as tensões e conflitos imbricadas nessas relações. Sobre este fato, é re-
velador o registro encontrado nas observações do mapa de 1832, em que o mestre
exterioriza a cultura empírica daquela instituição e menciona aspectos da cultura
política, relacionados com as normas, linguagem e práticas institucionalizadas
fora e dentro do ambiente escolar e neste caso aponta a indisciplina dos alunos,
bem como as estartégias de vigilância e repressão que usa para manter a ordem
na turma.
Nesse relatório, o mestre reclama que “a escola de Santa Ifigênia não tem
exemplares de escrita e régua o que tem contribuído para que os meninos não se
adiantem neste ramo de instrução”. Faltavam ainda pedras por terem sido esmi-
galhadas pelos alunos e cortadas as guarnições de madeira por aqueles meninos,
identificados pelo professor como os “filhos das pessoas de representação”.
Verificou-se que dezessete alunos da turma de 1832 eram filhos de mili-
tares e segundo o tutor, esses meninos costumavam maltratar seus companheiros
ao saírem da escola e muitas vezes faltavam com respeito ao próprio professor.
Este teria advertido alguns pais das “faltas” de seus filhos e o resultado teria sido
retirar os filhos da escola. Diante das infrações dos alunos, o mestre queixa-se
da falta absoluta da palmatória, recorrendo assim às sanções morais para intimi-
dar os meninos, fazendo-os ficar de joelhos por causa das “faltas” cometidas. As
observações do professor revelam como aponta Escolano (2017), determinados
códigos em que se expressavam as dimensões da cultura escolar, entre as quais se
destacariam:
Os indicadores de controle e avaliação dos sujeitos e das or-
ganizações; os atores implícitos com seus atributos e papéis de
identidade (alunos e professores); as interações entre o sistema
político de educação e os diversos contextos sociais com os quais
habitualmente se relaciona famílias, comunidade local, outras
esferas da vida social (ESCOLANO, 2017, p. 124).

Além de reclamar a falta de materiais e as dificuldades de aplicar o método


mútuo, o mestre denuncia a interferência dos pais no andamento dos trabalhos
escolares, indicando redes de sociabilidade e hierarquias sociais. Isso evidencia-
se no uso de qualificativos para caracterizar o comportamento dos alunos, “mau
gênio”, “boa índole”, “vadio”, “bastante vadio”, “preguiçoso”, “foge algumas vezes”,

297
“muito teimoso”, “gênio forte”, “comportamento sofrível”, e quando observamos
as queixas de falta de respeito e insulto. Por fim, é preciso ressaltar o caráter
delator que os mapas do professor Carlos Jozé da Silva Telles testemunham, es-
pecialmente, aquele que aponta informações sobre as suas condições de saúde. No
mapa de 30 de setembro de 1840, o mestre assinalava: “o mau estado de saúde em
que me acho por atacar-me o cérebro e todo o sistema nervoso me impediu de
dar a relação no tempo compreendido, do que peço desculpas” (TELLES, 1840,
p.2). O apontamento do professor denota o papel denunciativo que ele atribuiu
ao mapa, já que faz uso deste instrumento para explicitar sua condição física em
decorrência do exercício no magistério. Queria ele, talvez, relacionar o enfraque-
cimento de sua higidez às urdiduras do ofício docente?

Considerações finais

O objetivo deste texto foi analisar alguns dos aspectos da cultura escolar
oitocentista na organização e no desenvolvimento da instrução pública paulista.
Com este propósito tomou-se como fonte privilegiada um conjunto de seis ma-
pas de frequência elaborados pelo professor Carlos Jozé da Silva Telles, entre 15
de abril de 1832 a 06 de agosto de 1846, período em que ele atuou como mestre
da Escola de Primeiras Letras da Freguesia de Santa Ifigênia.
O exame desses mapas permite localizar vestígios de como se constituiu
parte da cultura escolar paulista no início do século XIX. Para além de uma fun-
ção burocrática de escrituração, feita para o poder público com o objetivo de
comprovação do efetivo exercício docente, essa documentação contribui para se
pensar a propagação de ideias, princípios, critérios e normas sedimentadas ao
longo do tempo nas instituições educativas. Enquanto objetos culturais, na acep-
ção de Chartier (2002), esses mapas sinalizam elementos úteis na compreensão
de como a realidade social é construída a partir de um determinado contexto
temporal e espacial, partindo das representações que se constituem em uma de-
terminada cultura.
O formato em listas com colunas que indiciam um registro individual de
cada aluno e as categorias utilizadas pelo professor para quantificar e qualificar
seus discípulos apontam para uma produção que buscou uma racionalidade ad-
ministrativa para a época, uma logicidade identitária dos sujeitos e uma coerência
pedagógica. A análise aqui apresentada possibilita desenhar aspectos da experiên-
cia docente no início do século XIX evidenciando as relações de hierarquia esta-
belecidas entre professor seus discípulos e famílias, a preocupação do registro do
“adiantamento” dos alunos quanto à aprendizagem do ler, escrever e contar, bases

298
da instrução pública primária no oitocentos e as condições estruturais e culturais
em que se desenvolveu a instrução pública em São Paulo.
Os mapas também oferecem pistas sobre as formas como o professor exer-
cia o seu ofício, revelando um modus operandi do magistério, identificando di-
mensões imbricadas no saber-fazer pedagógico, enfatizando o papel do mestre
como agente da construção do Estado Imperial e partícipe da cultura escolar.
À vista disso, os relatórios fornecem indícios da organização dos tempos e dos
espaços escolares e da função que a materialidade ocupou nas práticas educativas
daquela época. Sobre este aspecto, volta-se às contribuições de Escolano (2017),
ao referenciar os objetos escolares como artefatos que não são autônomos e atem-
porais, mas sim produções culturais que falam de nossas tradições, de nossos mo-
dos de pensar e sentir e de nossa memória individual e coletiva. Desse modo, os
objetos escolares não podem ser vistos como neutros, já que sua incorporação
às práticas escolares comporta significados e valores que são adicionados à sua
materialidade física e funcional, definem modos de pensar o ensino e contribuem
para a manifestação da cultura escolar. É essa materialidade que permite entender
os objetos físicos como elementos importantes para compreender os processos
históricos.
Portanto, concluí-se que os mapas apontam aspectos da cultura escolar
da Escola de Primeiras Letras de Santa Ifigênia evidenciando o intercambio das
relações e práticas do professor Carlos Jozé da Silva Telles, o modo como ele
ensinava e organizava as suas diferentes classes e as iniciativas que buscou para
ultrapassar as adversidades que comprometiam o desenvolvimento da instrução
pública em São Paulo no período oitocentista.

Referências

ALMEIDA, J. R. P. História da Instrução Pública no Brasil (1500-1889): história e


legislação. Tradução: Antonio Chizzotti. São Paulo: EDUCA; Brasília, DF: INEP/
MEC,1989.

BARBANTI, M. L. S. O ensino mútuo na Província de São Paulo. In: BASTOS, M.


H. C.; FARIA F., L. M. (org.). A escola elementar no século XIX: o método monitorial/
mútuo. Passo Fundo: UPS, 1999, p. 197-215.

BARRA, V. L. da. Da pedra ao pó: o itinerário da lousa na escola pública paulista do


século XIX. Dissertação (Mestrado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, PUC, São Paulo, 2001.

BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1827
– Primeira parte. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional 1878, p. 71-73. Disponível em:

299
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38398-15-outubro-
1827-566692-publicacaooriginal-90222-pl.html. Acesso em: 23 dez. de 2021.

CONDORCET, J. A. N.de C. Cinco memórias sobre la intrucción pública y otros escritos.


Madrid: Ediciones Morata, 2001.

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL,


2002.

EGAS, E. Galeria dos Presidentes de S. Paulo: período monárquicho (1822 – 1889).


Publicação oficial do Estado de S. Paulo, commemorativa do 1º Centenário da
Independência do Brasil. V. 1. São Paulo: Secção de Obras d’ O Estado de S. Paulo,
1926

ESCOBAR, J. R. Histórico da instrução pública paulista: feito para o Anuário do


Ministério da Educação. Revista da Educação, São Paulo, v. 4, n. 4, p. 158-190.

ESCOLANO, A. A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia. Campinas:


Alínea, 2017.

FARIA FILHO, L. M. Instrução elementar no século XIX. In: LOPES, E. M.T.;


FARIA FILHO, L.M; VEIGA, C.G. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000, p. 135-150.

JORGE, C. de A. História dos Bairros de São Paulo: Volume 23: Santa Ifigênia.
Departamento do Patrimônio Histórico. São Paulo, 1999.

HÉBRARD, J. Por uma Bibliografia Material das Escritas Ordinárias: o espaço


gráfico do caderno escolar (França - Séculos XIX e XX). Revista Brasileira de História
da Educação, v. 1, nº 1, jan./jun., 2001.

MARCÍLIO, M.L.S. História da Escola em São Paulo e no Brasil. São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo. Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial,
2014.

MORTATTI, M. do R. L. Os sentidos da alfabetização: São Paulo/1876-1994. 1ª ed. 5ª


Reimp. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

MULLER, D. P. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de S. Paulo, ordenado pelas


leis provinciais de 11 de abril de 1836, e 10 de março de 1837. Typografia de Costa Silveira.
1838. São Paulo. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7101 Acesso
em 23 dez. 2021.

NEVES, F. M. O Método Lancasteriano e a formação disciplinar do povo (São Paulo,


1808-1889). 2003. 293 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Ciências e
Letras de Assis, UNESP. São Paulo.

300
SOUZA, R. F. História da Cultura Material escolar: um balanço inicial. In:
BENCOSTTA, M. L. (org.). Culturas escolares, saberes e práticas educativas: itinerários
históricos. São Paulo: Cortez: 2007.

TAUNAY, A. História da cidade de São Paulo sob o Império. Volume VI. (1842-1854).
Coleção da Secretaria Municipal de Cultura Departamento do Patrimônio Histórico
Divisão do Arquivo Histórico. São Paulo, 1977.

VIDAL, D. G. (2012). Mapas de frequência a escolas de primeiras letras fontes


para uma história da escolarização e do trabalho docente em São Paulo na primeira
metade do século XIX. Revista Brasileira De História Da Educação, 8 (2 [17]), 41-
67. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/38576.
Acesso em: 10 nov. 2021.

301
14. “INSTRUINDO E DOUTRINANDO A INFÂNCIA”:
A AMPLIAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO ENSINO
NAS ESCOLAS DE PRIMEIRAS LETRAS EM SÃO
BERNARDO (1865-1889)

Adriana Santiago
Claudia Panizzolo

Introdução

Denominada de Primeiras Letras, a escola criada no Brasil a partir da Lei


de 15 de outubro de 1827 possuía como função ensinar saberes elementares, den-
tre os quais se destacavam o ensino da leitura, escrita e contagem matemática.
Não se tratava de um ensino mais elaborado porque era uma escola que atendia
o povo, que necessitava “ser civilizado”132. O projeto Estado-Nação dependia que
os pobres tivessem acesso, ao menos, ao ensino básico, que promovesse também
a aprendizagem de valores voltados à unidade do país, objetivo imperial, que se
estendeu ao período republicano.
Nesse sentido, Faria Filho (2016) afirma que “Instruir as ‘classes inferiores’
era tarefa fundamental do Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, condição mesma
de existência desse Estado e da nação” (p. 137). De acordo com o autor, o nome
“Primeiras Letras”, continha também um ideário do que deveria representar o
papel da escola.
Em relação aos professores, cabe destacar que não se tratava de uma pro-
posta atraente ser mestre de Primeiras Letras. Por vezes abandonados à própria
sorte, os professores organizavam sua sala de aula, a metodologia e cuidavam da
frequência, com vistas à manutenção de seus empregos. Lidavam com as diferen-
ças entre saberes e idades dos alunos na mesma sala, com a escassez de materiais
e precariedade dos espaços, com a organização de conteúdo e todas as outras
especificidades que a Instrução Pública e o cotidiano apresentavam.133

132 Indica-se a leitura dos trabalhos sobre esta temática de PANIZZOLO, C. João Köpke e a Escola Re-
publicana: criador de leituras, escritor da modernidade. 359 f. Tese (Doutorado em Educação) Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP, São Paulo, 2006. SOUZA, R. F. Templos de civilização:
a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo: (1890-1910). São Paulo: Funda-
ção Editora da UNESP, 1998. SOUZA, R. F. Alicerces da pátria: História da escola primária no Estado
de São Paulo (1890-1976). Campinas, SP: Mercado das Letras, 2009.

133 Ver a respeito da natureza do trabalho dos mestres de Primeiras Letras VIDAL, D. G. Mapas de fre-
quência a escolas de primeiras letras fontes para uma história da escolarização e do trabalho docente em São

302
Conviviam de perto com reivindicações de melhores salários e condições
de trabalho adequadas. Acrescenta-se ainda que quem se aventurava ao exercício
da função não era o mais preparado professor, necessitando de formação (VI-
DAL, 2008; VILLELA, 2016).
A fim de sanar a necessidade formativa, foi criada em São Paulo, ainda na
primeira metade do século XIX, a primeira Escola Normal paulista em 1846134.
A escola funcionou por 21 anos, de 1846 a 1867, e após esse período a Província
de São Paulo ficou sem a Escola Normal até 1874, quando foi criada a segunda
Escola Normal paulista. Contudo a escola deixou de funcionar no ano de 1878,
sendo reaberta em 1880 pela terceira vez, por Laurindo Abelardo de Brito, egres-
so do colégio. Nesse hiato de tempo, muitos sacerdotes exerceram a função de
mestres de Primeiras Letras, que passavam por exames, geralmente aprovados
mais por questões práticas e de relações do que por mérito.
No dia 13 de janeiro de 1876, o jornal A Província de São Paulo realizou
uma matéria em que citava a condição das escolas e dos professores de Primeiras
Letras:
Enquanto ao que respeita às condições materiais das escolas, o
que há, só é digno de lástima e censura. [...] Nomeia o professor,
dá-lhe um ordenado que mal chega para não morrer de fome,
e impõe-lhe a obrigação de abrir uma aula em tal rua ou tal
bairro, sem perguntar se o professor tem casa, sem indagar por
que meios há dele prover-se de uma sala. O professor procede
em consequência. Como é pobre, e escasso o ordenado, instala
a escola em uma saleta qualquer, com tanto que seja barata e
lhe não absorva o ordenado. A título de mobília procura dois
ou três bancos de pau, uma cadeira para si, uma mesa onde ao
menos possa encostar os cotovelos (A PROVÍNCIA DE SÃO
PAULO, 1876, p. 1)

Américo de Campos e Francisco Rangel Pestana eram redatores do jornal,


sendo o último conhecido como “advogado da República”. A Província de São
Paulo era considerada um dos principais jornais da época e foi um importante
instrumento para disseminação de ideais republicanos, contando com a colabo-
ração de Pestana para difundir novas perspectivas, inclusive sobre a Instrução
Pública. Bacharel em Direito e com ampla experiência no campo da imprensa,
chegou a participar da fundação da Escola do Povo em Campinas e lecionar

Paulo na primeira metade do século XIX. Revista Brasileira de História da Educação, n° 17, maio/ago.
2008.

134 Em 9 de novembro de 1846 foi instaurada a primeira Escola Normal de São Paulo. Localizada em um
prédio junto à Catedral da Sé (prédio pertencente aos religiosos), a escola se destinava à formação de
professores primários e possuía como regente e único professor o Dr. Manoel José Chaves. Mais infor-
mações, consultar https://univesp.br/noticias/escola-normal-de-sao-paulo. Acesso em: 09 out. 2021.

303
retórica e português no Colégio Americano. Também esteve nos holofotes no
campo político.
As críticas realizadas pelo jornal convergem para apontar fragilidades na
Instrução Pública imperial, com vistas a uma nova proposição educacional, que
dialogasse com os pressupostos defendidos pelos republicanos, uma vez que as
mudanças se apresentavam de forma iminente, em especial no tocante à situação
dos professores.
Dessa forma, na segunda metade do século XIX algumas das mudanças na
Instrução Pública paulista se deram no âmbito da legislação, com criação de or-
denamentos legais que normatizaram o funcionamento das escolas de Primeiras
Letras, sendo uma época marcada por criação de regulamentos.
Além disso, foi um período também marcado pela expansão do ensino
primário em São Paulo, havendo necessidade de criação de novas cadeiras de
Primeiras Letras. Uma das justificativas para o aumento da demanda pode ser
atribuído ao processo imigratório, que aumentou consideravelmente a população
e a procura por escola.
O recenseamento geral do Império de 1872 e os recenseamentos de 1890
e 1920135 demonstram o crescimento da população brasileira e são essenciais para
uma reflexão sobre a necessidade iminente de ampliação de escolas, impactando
na criação de novas cadeiras de Primeiras Letras.
A Freguesia136 de São Bernardo, atual município de São Bernardo do
Campo, localizado na região metropolitana do estado de São Paulo, não esteve
à parte no tocante às diretrizes da Instrução Pública paulista, em especial em
relação à ampliação de escolas, em boa parte também relacionado ao grande fluxo
imigratório ocorrido em toda Província.
O presente estudo se propõe a compreender como as escolas de Primeiras
Letras foram estabelecidas no contexto local, com vistas a problematizar o per-
curso trilhado pela Instrução Pública são-bernardense durante a segunda metade
do século XIX, bem como refletir sobre a expansão de oferta de ensino com a
criação de novas cadeiras a partir da análise das fontes no tocante aos métodos,
materiais e estrutura física dos locais onde as escolas de Primeiras Letras foram
estabelecidas.
O excerto que dá título a este trabalho foi retirado de um relatório de um
professor, escrito no ano de 1880. A escrita retrata de forma clara a visão do mes-

135 Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=4&uf=00. Acesso em: 24 nov.


2021.

136 Freguesia era uma divisão territorial urbana estabelecida a partir de uma paróquia erigida, equivalendo
à menor divisão administrativa que poderia existir.

304
tre de Primeiras Letras acerca da necessidade de uma melhor estruturação das
escolas, conforme redação na íntegra:
[...] Só tive em vista desempenhar a minha missão quase sacer-
dotal, instruindo e doutrinando a infância. Segundo diz Dali-
gault137: o professor deve evitar na presença de seus alunos todo
e qualquer modo indeciso, de por em prática qualquer exercí-
cio, porém para assim ser, é preciso que esta escola seja bem
montada e que também as circunstâncias do lugar lhe sejam
favoráveis (PROFESSOR DA ESCOLA DE PRIMEIRAS
LETRAS DO SEXO MASCULINO DO ALTO DA SER-
RA, 1880, p. 1, grifo nosso).

Ainda na primeira metade do século XIX, os relatórios encaminhados à


Inspetoria Geral da Instrução Pública pelos professores Thomaz Lustosa e Ma-
noel Xavier de Toledo, que exerceram o magistério na única escola existente na
época em São Bernardo, mencionavam a inexistência de outra escola na região,
assim como a distância percorrida para se chegar à escola como um dificultador
para a garantia de frequência das crianças.
Cabe destacar que a primeira escola de Primeiras Letras de São Bernardo
por 35 anos foi a única de toda região. A criação de novas cadeiras na Freguesia
ocorreu apenas a partir de 1865, ocasião que se inicia a delimitação temporal do
presente trabalho, estendendo-se até 1889, quando se finda o período imperial,
acenando-se para uma nova proposição educacional no Brasil.
O estudo tomou como fontes relatórios de professores e inspetores são-
-bernardenses, os quais estão sob a guarda do Arquivo Público do Estado de São
Paulo, ancorado nos referenciais da História da Educação e na perspectiva teó-
rico-metodológica da Micro-História (GINZBURG 1990, 1991; LEVI, 2016).
É importante mencionar que a Micro-História é um campo considerado
relativamente recente na Historiografia, que começou a despontar em 1970 como
uma nova perspectiva metodológica de análise. Para Levi (2016) o surgimento
da Micro-História inicia-se a partir “da necessidade de recuperar a complexidade
da análise, da renúncia às leituras esquemáticas e gerais para poder observar re-
almente como se originavam comportamentos, escolhas e solidariedades” (p. 21).
De acordo com Espada (2006) essa metodologia realiza uma “crítica às noções
globalizantes e abstratas da historiografia tradicional – chamando a atenção para
a necessidade da redução da escala de análise” (p. 16). Dessa forma, faz-se neces-

137 O francês Jean Baptiste Daligault foi responsável pela criação do manual Cours Pratique de Pédagogie,
distribuído aos inspetores e aos professores de Instrução Pública elementar pelo governo provincial,
na segunda metade do século XIX. Recomenda-se a leitura do artigo O papel do professor de primeiras
letras no manual de pedagogia de Jean Baptiste Daligault: reflexões sobre a formação de virtudes e valores
(ROCHADEL, O.; SCHMIDT, L. L., 2017, p. 139-157). Disponível em: https://periodicos.sbu.
unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8645836. Acesso em: 26 ago. 2021.

305
sário atentar para aspectos que dificilmente seriam identificados em uma análise
de escala maior.
Com base no conceito ‘história vista de baixo’ (SHARPE, 2011), interes-
sou verificar a organização das escolas, sobretudo no tocante aos espaços, mobílias
e materiais, com vistas a compreender como era o atendimento das crianças, em
especial das menos abastadas, a partir da categoria analítica “pessoas comuns”.
Para Sharpe (2011) entender a constituição das camadas populares que, ao longo
de anos, não foi centro de atenção de historiadores, faz com que recordemos “que
a nossa identidade não foi estruturada apenas por monarcas, primeiros-ministros
ou generais” (p. 60).
O texto foi organizado em duas seções e considerações finais, sendo a pri-
meira nomeada A expansão das escolas de Primeiras Letras em São Bernardo – 1865
a 1889, que aborda a expansão das escolas a partir da criação de novas cadeiras na
Freguesia ao longo da segunda metade do século XIX, de 1865 a 1889. A segunda
seção “Sem o competente material é absolutamente impossível o ensino primário” – as
condições e espaços escolares da freguesia de São Bernardo realiza um estudo de como
estavam organizadas as escolas, em especial em relação a espaços, materiais e
mobília.

A expansão das escolas de primeiras letras em São Bernardo – 1865 a


1889

Estabelecida em 23 de setembro de 1812 por meio de uma Resolução do


Príncipe Regente de Portugal, D. João VI, a Freguesia de São Bernardo estava
localizada entre a Serra do Mar e a cidade de São Paulo, constituindo-se em rota
obrigatória de passagem dos viajantes que transportavam mercadorias de Santos
para a Província por intermédio da Calçada do Lorena138.
A Freguesia de São Bernardo ficou conhecida como um dos últimos luga-
res que extinguiu a escravidão, que não se restringia apenas aos negros, mas aos
mestiços e índios (MARTINS, 1988). As crianças que habitaram São Bernardo
ao longo do século XIX eram, em sua maioria, pobres, trabalhadoras e, ao que
parece, nem metade chegou a frequentar as escolas de Primeiras Letras139.

138 A Calçada do Lorena foi construída no século XVIII. Tratava-se de um projeto determinado pelo
governador da Província de São Paulo, Bernardo José Maria Lorena, e possuía 50 quilômetros de
extensão calçados em rochas, que eram escolhidas e trabalhadas manualmente, ligando a cidade de
Santos à cidade de São Paulo (SESC São Paulo, 2021).

139 Recomenda-se a leitura do artigo A escola, a pobreza, a distância e o trabalho infantil: o desafio da frequên-
cia na escola de primeiras letras da freguesia de São Bernardo (1830 - 1864). Santiago, A.; Panizzolo, C.
Revista Educação & Linguagem, v. 24, p. 289-307, 2021. Acesso em 11 jan. 2022.

306
De acordo com a série São Paulo do Passado: Dados Demográficos, organiza-
do pelo Núcleo de Estudos de População (NEPO), da Universidade Estadual de
Campinas - UNICAMP (2000), levantamentos realizados por MARTINS (1988)
e dados dos censos dos anos de 1872 e 1890, publicados pelo IBGE, São Bernardo
ao longo dos anos apresentava os dados populacionais constantes na tabela 1:

Tabela 1: Levantamento populacional de São Bernardo de 1774 a 1890

Ano População
1804 1.620
1836 1.407
1838 1.347
1854 2.020
1872 2.687
1890 7.276

Fonte: São Paulo do Passado: Dados Demográficos (2000); MARTINS (1988); Recenseamentos 1872 e
1890 (IBGE).

A primeira escola pública foi estabelecida em 17 de março de 1830 e mar-


cou o início de uma etapa importante na Freguesia. A história da escola chegou
a se misturar com a história do primeiro professor de São Bernardo, que foi o
único da região por mais de 30 anos. Localizada no território do atual município
de São Bernardo do Campo, a escola teve como professor de Primeiras Letras o
padre Thomaz Antônio Innocencio Lustosa, que durante as três décadas lecionou
para as crianças.
A escola funcionava em um cômodo que ainda estava em construção, em
condições precárias em relação à estrutura física e com escassez de materiais. Du-
rante 35 anos, foi a única escola da Freguesia, que a partir de 1865 passou a contar
com outras escolas de Primeiras Letras em seu território (SANTOS, 1992).
Ensinar às crianças as primeiras letras configurou o trabalho de Lustosa
e, após sua aposentadoria, de Manoel Dias Xavier de Toledo. Em 1863, mesmo
ano da aposentadoria de primeiro professor de Primeiras Letras de São Bernardo,
padre Thomaz Lustosa, o inspetor de ensino da Freguesia, Francisco Martins Bo-
nilha, manifestou sua preocupação em relação à necessidade de abertura de uma
escola de Primeiras Letras para o sexo feminino, chegando até mesmo a sugerir
em documento que a professora a ser destinada para a função, como documenta-
do em 18 de julho de 1863:
Havendo nesta Freguesia grande número de meninas que estão
perdendo tempo próprio para a instrução primária [...] criada
a escola de Primeiras Letras para o sexo feminino contratei a
Dona Cecília Fortunato de Toledo, mulher do atual professor

307
de meninos a qual me parece possuir as habilitações necessárias
para exercer o referido cargo. O que levo ao conhecimento de
vossa senhoria, esperando que mereça sua aprovação e que serão
dados por vossa senhoria os passos precisos a fim de tornar-se
efetiva a minha proposta (BONILHA, 1863, p.1).

Porém, apenas em 14 de março de 1865 foi criada a primeira escola de


Primeiras Letras da Freguesia destinada ao sexo feminino. É importante ressaltar
que apesar de a primeira escola de São Bernardo ser apenas para meninos, Lusto-
sa também lecionava para meninas140. Isso pode ser comprovado pelas escritas do
professor, em que informa ao inspetor geral da Instrução Pública a quantidade de
meninas que frequentava sua turma, indicando a necessidade da criação de uma
cadeira de Primeiras Letras para meninas, afirmando que “[...] há muito tenho
sempre ensinado a ambos os sexos” (LUSTOSA, 1861, p. 1).
Contudo, a quantidade de meninas que frequentava as aulas era bastante
inferior à de meninos. No ano de 1857, o inspetor João José de Oliveira redigiu
um relatório datado de 4 de outubro informando ao inspetor geral da Instrução
Pública que “[...] somente tem neste Distrito uma escola pública de Primeiras
Letras, com 46 alunos matriculados, sendo meninos 40 e meninas 6; e frequen-
tam a escola 35 mais ou menos” (OLIVEIRA, 1857, p. 1).
A publicação no relatório sobre o estado da Instrução Pública Provincial
de 1861141 autorizou o então reverendo a lecionar para meninas, sendo que ca-
racterísticas atribuídas a Lustosa para tal foram: posição, idade, caráter e desvelo.
Observou-se que se tratou de um ato importante, considerando as discussões em
torno da ideia de se juntar em um mesmo local meninas e meninos. Ao Lustosa
a autorização foi realizada nos seguintes termos:
Por enquanto só estão autorizados o Rvm. Thomaz Innocen-
cio Luztosa, Professor de S. Bernardo, digno disso por sua
posição, idade, caráter e desvelo, e o Professor de S. João Bap-
tista, quase nas mesmas circunstâncias, sendo o ensino simultâ-
neo, e na mesma sala. Ao primeiro foi designada a gratificação
de 120$. Ao segundo não me consta fosse feita a designação
(RELATÓRIO SOBRE O ESTADO DA INSTRUÇÃO
PÚBLICA PROVINCIAL, 1861, p. 23-4, grifos nossos).

140 A Lei n.º 34 de 16 de março de 1846 previa em seu artigo 8.º que “A frequência promiscua de ambos os
sexos em uma escola, só é permitida nos lugares onde não existam escolas diversas para ambos” (SÃO
PAULO, 1846).

141 Disponível em: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/repositorio_digital/relatorios_educa-


cao. Inspetoria Geral da Instrução Pública de S. Paulo. Relatório. 1861. Páginas 23 e 24. Acesso em:
26 out. 2020.

308
Cecília Fortunato Toledo assumiu a docência da primeira escola de Pri-
meiras Letras para o sexo feminino da Freguesia de São Bernardo no ano de 1865,
sendo que nessa ocasião apenas 20 alunas das 38 matriculadas frequentaram a es-
cola (SANTOS, 1992). Com o passar dos anos novas escolas de Primeiras Letras
foram estabelecidas na Freguesia de São Bernardo durante o período imperial.
A fim de melhorar a compreensão de como compuseram-se as escolas ao
longo da segunda metade do século XIX, foi realizada a organização de dados
de forma cronológica, considerando-se, ainda, a localização dos bairros da época,
conforme quadro 1 e tabela 1, respectivamente.

Quadro 1: Localização das escolas de Primeiras Letras

Localização na Freguesia Localização atual

Sede São Bernardo do Campo

Estação de São Bernardo Santo André

Estação do Rio Grande Rio Grande da Serra

Estação do Alto da Serra Santo André (Distrito de Paranapiacaba)

São Caetano São Caetano do Sul

Fonte: Tabela elaborada pela autora a partir de Santos (1992)

Acerca do atendimento de crianças nas escolas, os dados localizados são


fragmentados, mas a partir da consulta aos relatórios dos professores, foi possível
elaborar uma tabela com informações sobre as escolas de Primeiras Letras entre
as décadas de 70 e 80 do século XIX em relação à quantidade de alunos matri-
culados e frequentes nas escolas da Freguesia, indicando o nome do professor
responsável ao longo dos anos. Os dados apontam a discrepância de alunos ma-
triculados e frequentes (tabela 1), o que se observou em todo período Imperial.

Tabela 2: Escolas de Primeiras Letras de acordo com a localização e atendimento de alunos,


1873 a 1888
Matriculados
Localização

Frequentes
documento

Frequência
Professor

Data
Sexo
Ano

Ernesto Antonio de
1873 São Bernardo (sede) Masc. 15/10/1873 44 26 59%
Andrade
Leopoldina Augusta de
1873 São Bernardo (sede) Fem. 15/10/1873 20 18 90%
Andrade
Ernesto Antonio de
1874 São Bernardo (sede) Masc. 1/11/1874 32 18 56%
Andrade

309
Matriculados
Localização

Frequentes
documento

Frequência
Professor

Data
Sexo
Ano

%
Leopoldina Augusta de
1874 São Bernardo (sede) Fem. 1/11/1874 18 14 78%
Andrade
Estação de São João Visterbo de Santa não
1876 Masc. 06/09/1876 10 ---
Bernardo Rosa informado

1878 Alto da Serra Fem. Antonio Franco da Rocha 23/11/1878 14 12 86%

1878 Rio Grande Fem. Antonio Franco da Rocha 23/11/1878 11 8 73%

1878 São Bernardo (sede) Fem. Antonio Franco da Rocha 23/11/1878 12 10 83%

1878 São Bernardo (sede) Masc. Antonio Franco da Rocha 23/11/1878 28 26 93%

Estação de São
1878 Masc. Antonio Franco da Rocha 23/11/1878 24 22 92%
Bernardo

1878 Rio Grande Masc. Antonio Franco da Rocha 23/11/1878 14 12 86%

1879 São Bernardo (sede) Fem. Antonia Vidal Domingues 31/10/1879 11 10 91%

Gabriella Emilia de não locali-


1880 Alto da Serra Fem. 13 12 92%
Menezes zado
Gabriella Emilia de
1881 Alto da Serra Fem. 1/6/1881 18 14 78%
Menezes
Gabriella Emilia de
1881 Alto da Serra Fem. 6/10/1881 20 15 75%
Menezes
Gabriella Emilia de
1882 Alto da Serra Fem. 1/06/1882 15 13 87%
Menezes
Gabriella Emilia de
1882 Alto da Serra Fem. 3/11/1882 15 12 80%
Menezes

1883 Alto da Serra Masc. João Lopes da Silva 1/6/1883 27 20 74%

Gabriella Emilia de
1883 Alto da Serra Fem. 1/6/1883 18 16 89%
Menezes

1882 Alto da Serra Masc. Sem informação 1/11/1882 21 17 81%

Gabriella Emilia de
1883 Alto da Serra Fem. 2/11/1883 20 17 85%
Menezes
Isabel Maria de Oliveira
1883 São Bernardo (sede) Fem. 23/11/1883 24 24 100%
Salles
Joaquim Lobo Bastos
1883 São Bernardo (sede) Masc. 23/11/1883 26 21 81%
(substituto)
Gabriella Emilia de
1884 Alto da Serra Fem. 2/6/1884 20 13 65%
Menezes
Izabel Maria de Oliveira
1884 São Bernardo (sede) Fem. 2/6/1884 24 23 96%
(substituta)

310
Matriculados
Localização

Frequentes
documento

Frequência
Professor

Data
Sexo
Ano

%
Gabriella Emilia de
1885 Alto da Serra Fem. 1/6/1885 14 12 86%
Menezes

1885 Alto da Serra Masc. Antonio Victor de Macedo 27/5/1885 24 12 50%

Gabriella Emilia de
1885 Alto da Serra Fem. 23/11/1885 27 20 74%
Menezes

Isabel Maria de Oliveira não


1886 São Bernardo (sede) Fem. 1/06/1886 36 ---
Salles informado

Gabriella Emilia de
1886 Alto da Serra Fem. 3/11/1886 20 17 85%
Menezes

Jeronymo José Domingues


1886 São Bernardo (sede) Masc. 2/11/1886 42 37 88%
Junior

Estação de São não


1887 Masc. José Luís Flaquer 21/03/1877 12 ---
Bernardo informado

1887 São Bernardo (sede) Masc. Sem informação 31/05/1887 44 37 84%

não
Francisco das Chagas
1888 Rio Grande Masc. 19/11/1888 27 infor-
Alvarenga
mado

Fonte: Tabela elaborada pela autora a partir de consulta aos ofícios e relatórios redigidos pelos professores

De acordo com Mimesse (2001), em 1883 foram criadas duas cadeiras de


Primeiras Letras no núcleo colonial de São Caetano, uma do sexo masculino e
outra do sexo feminino. Contudo, nos documentos analisados não foram locali-
zados dados quantitativos acerca da frequência dos alunos dessas escolas e nem
mesmo citação de funcionamento.
No dia 9 de dezembro de 1885 o inspetor literário da Freguesia de São
Bernardo, Francisco Antonio de Oliveira Salles, encaminhou ao inspetor geral
da Instrução Pública, Arthur Cesar Guimarães, um relatório em que menciona
a quantidade de escolas existentes em São Bernardo. Nesse documento, o
inspetor afirma que “Tenho a honra de remeter as mãos de V.Sa 7 mapas de
todas as escolas, sendo 4 do sexo masculino e 3 do sexo feminino” (SALLES,
1885, p. 1).
De acordo com o inspetor literário, funcionavam as seguintes escolas de
Primeiras Letras na Freguesia de São Bernardo em 1885, conforme a ordem de
cadeiras criadas (quadros 2 e 3).

311
Quadro 2: Escolas de Primeiras Letras do sexo masculino em 1885

Ordem das cadeiras Localização na Freguesia Localização atual

1.ª cadeira Sede São Bernardo do Campo

2.ª cadeira Estação de São Bernardo Santo André

3.ª cadeira Estação do Rio Grande Rio Grande da Serra

4.ª cadeira Estação do Alto da Serra Santo André - (Distrito de Paranapiacaba)

Fonte: Tabela elaborada pela autora a partir de Salles (1885)

Quadro 3: Escolas de Primeiras Letras do sexo feminino em 1885

Ordem das cadeiras Localização na Freguesia Localização atual

1.ª cadeira Sede São Bernardo do Campo

2.ª cadeira Estação do Rio Grande Rio Grande da Serra

3.ª cadeira Estação do Alto da Serra Santo André - (Distrito de Paranapiacaba)

Fonte: Tabela elaborada pela autora a partir de Salles (1885)

Nesse mesmo ano foram realizados exames em todas as escolas de Primei-


ras Letras da Freguesia. No ano seguinte, em 1886, em 4 de novembro, o inspetor
Francisco Antonio de Oliveira Salles escreveu a Arthur Cesar Guimarães, inspetor
geral da Instrução Pública solicitando a criação de novas cadeiras, alegando que a
necessidade se dava, principalmente, devido à imigração. Nas palavras do inspetor:
V.Sa. não ignora o incremento que ultimamente tem tido a po-
pulação dos diversos pontos da circunscrição desta Freguesia,
onde aliás esperam-se ainda grande número de famílias imi-
grantes, as quais além de outras vantagens, assim o entendo,
deve-se a instrução para seus filhos.
A colônia tem progredido e há de progredir mais ainda com a
introdução de novos imigrantes para o que já se está procedendo
a demarcação de novos lotes.
Nestas circunstâncias, pois, é a bem não só dos interesses dos
imigrantes, como ainda dos eruditos da nossa Província que
com justiça soube colocar-se na vanguarda das mais civilizadas e
progressistas do Império, julgo de urgente necessidade a criação
de cadeiras públicas em diversos pontos desde distrito literário
(SALLES, 1886, p. 1).

O inspetor também afirmava no documento a necessidade de que a escola


a ser criada fosse “do sexo masculino na Capela de São Bernardo Velho, cuja po-

312
pulação é avultada, sendo só de estrangeiros superior a vinte, além dos filhos de
pais brasileiros” (SALLES, 1886, p. 2).
No ano de 1893, em 18 de julho, já no período republicano, foi realizado
um levantamento dos estabelecimentos de Instrução Pública de São Bernardo,
verificando-se um número de 12 escolas públicas e 4 particulares. As informações
estão contidas em um documento escrito por Manoel Jorge de Oliveira Catta
Preta e Ítalo Setti, que assinam em nome do Conselho de São Bernardo. O docu-
mento foi encaminhado pela Câmara Municipal de São Bernardo para o diretor
geral da Instrução Pública. Os dados foram organizados em uma tabela, a fim de
facilitar a visualização e compreensão.

Tabela 3: Escolas públicas e particulares em São Bernardo, 1893

Quant. de Sexos Quant. de Pública Localização


Localização
escolas atendidos alunos ou particular atual

1 São Caetano Masculino 20 Pública São Caetano do Sul

2 São Caetano Feminino 16 Pública São Caetano do Sul

3 São Caetano Sem informação 18 Particular noturna São Caetano do Sul

4 Estação São Bernardo Masculino 25 Pública Santo André

5 Estação São Bernardo Feminino 17 Pública Santo André

6 São Bernardo Masculino 35 Pública São Bernardo do Campo

7 São Bernardo Feminino 35 Pública São Bernardo do Campo

8 São Bernardo Sem informação 27 Particular diurna São Bernardo do Campo

9 São Bernardo Sem informação 27 Particular diurna São Bernardo do Campo

10 Ribeirão Pires Masculino 16 Pública Ribeirão Pires

11 Ribeirão Pires Feminino 10 Pública Ribeirão Pires

12 Ribeirão Pires Mista 13 Pública Ribeirão Pires

13 Ribeirão Pires Sem informação 12 Particular Ribeirão Pires

14 Rio Grande Masculino 22 Pública Rio Grande da Serra

15 Rio Grande Feminino 12 Pública Rio Grande da Serra

Paranapiacaba – Distrito de
16 Alto da Serra Masculino 22 Pública
S. André

Fonte: Tabela elaborada pela autora com base em PRETA; SETTI (1893)

313
Nota-se, dessa forma, um crescimento do número de escolas em São Ber-
nardo, que nos primeiros anos republicanos passou a ser de 12 escolas públicas.
Observa-se a menção às escolas particulares, no total de 4 estabelecimentos, sen-
do que uma delas funcionava no período noturno.
A próxima seção mostrará com mais detalhes as condições de funciona-
mentos das escolas de Primeiras Letras da Freguesia de São Bernardo.

“Sem o competente material é absolutamente impossível o ensino


primário” – as condições e espaços escolares da freguesia de São
Bernardo

É possível identificar que com o passar dos anos houve mudanças na Ins-
trução Pública de São Bernardo, desde o aumento de escolas de Primeiras Letras
até as alterações nos conteúdos escolares desenvolvidos pelos professores. No en-
tanto, no que diz respeito aos espaços onde as escolas funcionavam, constata-se
que o locus permaneceu sendo a casa dos mestres de Primeiras Letras.
Os locais onde as escolas funcionavam estiveram em pauta no Brasil ao
longo do século XIX, sendo que ambientes domésticos e improvisados preva-
leciam no caso das escolas de Primeiras Letras. Outra situação que se somava a
esse cenário era a existência de escolas masculinas e femininas, cujos espaços eram
organizados, prioritariamente, de forma apartada, apesar da existência de escolas
mistas em São Paulo, que atendiam a ambos os sexos.
Essas discussões apontavam para a necessidade da construção de espaços
específicos para as escolas. Faria Filho (2016) afirma que “No Brasil, a educação
escolar, ao longo do século XIX, vai progressivamente, assumindo as característi-
cas de uma luta do governo do estado contra o governo da casa” (p. 145).
Todavia, essa discussão levou muito tempo para se concretizar em ações
em alguns locais, como foi o caso da Freguesia de São Bernardo. Mesmo após o
advento da República a estrutura arquitetônica permaneceu de forma inalterada
durante anos.
A pobreza da maior parte da população são-bernardense aparece de forma
recorrente nos documentos analisados, indicando que as crianças não conseguiam
trazer utensílios para as aulas e que não tinham condições de adquirir material.
O professor de Primeiras Letras da sede, João de Viterbo Santa Rosa, as-
sim escreveu ao inspetor geral da Instrução Pública sobre a situação de escola, em
relatório redigido em 19 de março de 1877:
Tenho a honra de levar ao respeitável conhecimento de V.Sa.
que hoje aqui entrei em exercício do meu cargo, como indigno
professor de Primeiras Letras desta Freguesia.

314
O deplorável estado em que encontra a escola deste lugar, sem
móveis nem utensis de qualidade alguma, força-me a rogar a
V.Sa. se digne providências a respeito. Julgo escusado dizer que,
sem o competente material é absolutamente impossível o en-
sino primário, ora, sendo isto um perfeito axioma, espero que
V.Sa., a bem do primeiro sucesso do público serviço se dignará
providenciar, sem demora (SANTA ROSA, 1877, p. 1, grifo
nosso).

Em 6 de junho de 1885, dois anos antes, a professora substituta Izabel


Maria de Oliveira Salles relatou ao inspetor geral da Instrução Pública, Antonio
Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, que utilizava os seguintes mate-
riais para ministrar suas aulas: “Os compêndios adaptados são os seguintes: para
leitura os compêndios de Hilário Ribeiro, para gramática nacional ‘Coruja’, para
aritmética elementar ‘Jardim’, para doutrina cristã o catecismo da Diocese” (SAL-
LES, 1885, p. 1). Nesse mesmo documento, a professora afirma que “funciona a
escola na casa de minha residência”, ou seja, o lugar da escola permanecia sendo
a casa do professor.
Os documentos também denunciam a precariedade dos materiais, o que
indica que desde a primeira escola de Primeiras Letras, sob a regência de Lustosa,
até o final do período imperial, a situação tanto do espaço físico quanto mobiliá-
rio careciam de melhorias.
A precariedade dos espaços em que as escolas de Primeiras Letras da Fre-
guesia de São Bernardo funcionavam foram pauta de muitos dos documentos
analisados, a exemplo do relatório datado de 25 de novembro de 1871, em que
o professor de Primeiras Letras de Rio Grande, João Maria de Toledo Dantas,
relatou uma situação complexa, ao notificar Diogo de Mendonça Pinto, inspetor
geral da Instrução Pública da Província de São Paulo, que:

Participo a V.Sa. que os móveis pertencentes à Escola do bairro


do Rio Grande até hoje não foram entregues, bem como o res-
pectivo livro de matrícula dos alunos, porque estando os móveis
em poder de Manoel Gomes, dono da casa onde meu anteces-
sor lecionava. O sr. Manoel Gomes se nega a entregá-los sob
pretexto de lhe serem devidos os aluguéis durante o tempo em
que os móveis estão guardados em sua casa: por isso tenho feito
a matrícula dos alunos em outro livro e para a escola tenho me
servido de uma mesa e de bancos pertencentes a casa que alu-
guei (DANTAS, 1871, p. 1).

Ao professor de Primeiras Letras cabia lidar com as adversidades e, de cer-


ta forma, procurar modos de resolvê-las, como foi o caso do professor João Maria,

315
que não sendo possível retirar os móveis e livro de matrículas do antigo local onde
funcionava a escola, fez adaptações para continuar a lecionar.
Em Alto da Serra, o mestre de Primeiras Letras relatou em um documento
escrito em 1880 que pediu ajuda das pessoas da região para improvisar bancos
para as crianças sentarem-se. Responsabilizou a falta de condição material por
não conseguir implementar outro método de ensino que não fosse o individual.
Nas palavras do professor:
Porém eu que desde os primeiros passos que dei já tive de hesi-
tar ante um poderoso obstáculo: a falta de mobília, não obstante
procurei remediar este inconveniente, recorrendo-me à algumas
pessoas do lugar e não fui servido, não porque faltasse vontade
de servirem-me, pois mesmo não podiam auxiliar-me, senão em
a assistência de seus filhos em minha escola. Resolvi-me pois,
e consegui arranjar uma mesa pequena e uma cadeira, e como
assentos dos alunos arranjei algumas tábuas, sustentadas nas
extremidades por caixões, porém para os exercícios escritos
dos alunos, luto sempre com dificuldade. Em minha escola
tenho 16 alunos frequentes, como consta os livros de matrícula
e pontos e o mapa que junto a este tenho a honra de remeter
a V.Sa. Com estes 16 alunos gasto só em escrita quase o tem-
po todo, de que posso dispor, porque tenho guia-los indivi-
dualmente por falta de mesas (PROFESSOR DA ESCOLA
DE PRIMEIRAS LETRAS DO SEXO MASCULINO DO
ALTO DA SERRA, 1880, p. 2, grifos nossos).

Foi localizado um relatório datado de 3 de novembro de 1880 que sugere


que a precariedade da escola masculina do Alto da Serra foi sanada pela Instrução
Pública, pois o documento escrito por Gabriella Emilia de Menezes, professora
da escola feminina do Alto da Serra, endereçado a Francisco Aurelio de Souza
Carvalho, inspetor geral da Instrução Pública, relata o seguinte:
Continua a minha escola na mesma penúria do indispensável
para a regularidade do ensino; e essa falta que de antes era su-
portável é agora muito sensível visto que a repartição de que é
V.Sa. muito digno chefe, tendo fornecido para a escola do sexo
masculino todo o necessário, vejo-me forçada eu a fornecer
papel, pena e tinta a minha custa, ou a retardar o ensino, ainda
mais sendo vítima de suposição de que, como o professor, re-
cebo e não distribuo pelas alunas o necessário.
Sendo os recursos do professor que só disso vive, muito min-
guados, é lhe quase impossível distrair qualquer quantia que, por
pequena que fosse, causaria-lhe sérios embaraços (MENEZES,
1880, p. 1-2, grifos nossos).

Ao que parece, a professora sofreu dificuldades em justificar a situação de


sua escola, dando pistas de que houve comparação e, como não recebeu os mes-

316
mos recursos que o professor da escola de Primeiras Letras do sexo masculino,
passou a ser alvo de desconfiança.
Cabe mencionar que os professores de Primeiras Letras recebiam valores
por parte da Província de São Paulo para adquirir utensis até meados de 1870,
conforme consta no Livro de Moveis e Utensis (Distribuição de 1854 a 1872)142.
A partir de 1872, havia participação do Inspetor do Tesouro e a Coletoria para
aquisições dos materiais escolares. Alcântara (2019) realizou um estudo sobre os
investimentos da administração de São Paulo e deflagrou que, apesar dos recursos
que eram dispostos pela administração pública, “a professora ou o professor se
responsabilizavam pela compra do material e mobiliário escolar, quando não com
o dinheiro da Província, com o seu próprio” (p. 7).
A escrita da professora Gabriella Emilia de Menezes deixa claro que a
escola onde lecionava estava funcionando em condições precárias, tendo a situ-
ação se agravado com a melhoria da escola masculina, pois agora estava sendo
comparada, sendo necessário dispor de quantias do “próprio bolso” para sanar
algumas necessidades da escola. Observa-se nessa situação que os pais, os quais
outrora foram chamados de “desleixados”, uma vez que não valorizavam o ensino,
na verdade fiscalizavam o que ocorria no interior das escolas, a ponto da profes-
sora dignar-se a investir seus poucos recursos em papel, pena e tinta para atender
suas alunas.
Com o passar dos anos, os documentos revelaram que a situação continu-
ava preocupante quanto aos recursos materiais escolares, a exemplo do relatório
escrito em 1.º de junho de 1886 pelo professor substituto Manoel Eduardo de
Almeida ao inspetor geral da Instrução Pública, Arthur Cesar Guimarães, em
que afirmou que:
A escola está funcionando na casa de minha residência que
presta-se perfeitamente a esse fim. Está provido e muito peque-
no número de móveis, e estes em mau estado; pois que constam
apenas de 3 bancos e 6 bancos pequenos aliás insuficientes para
o grande número de alunos que conta esta escola (ALMEIDA,
1886, p. 1).

Nota-se também a naturalidade na afirmação do professor a respeito da


escola funcionar em sua residência, o que se repete nos relatos a seguir, pois, da
mesma forma, com escrita quase idêntica, a professora Maria de Oliveira Salles,
professora substituta, endereça um relatório em 01 de junho de 1886 ao inspetor
geral da Instrução Pública afirmando que “A escola funciona mesmo na casa de

142 Cf. mencionado por Wiara Rosa Alcântara (2019) no artigo Obrigatoriedade escolar e investimento na
educação pública: uma perspectiva histórica (São Paulo, 1874-1908). Arquivo Público do Estado de São
Paulo. Livro de Móveis e Utensis (Distribuição de 1854 a 1872). Secretaria da Instrução Pública de
São Paulo. Ordem 1124.

317
minha residência que a isto presta-se perfeitamente. Quanto a móveis, os poucos
que existem, e em mau estado são insuficientes para as aulas, cujo número tende
sempre a crescer” (SALLES, 1886, p. 1).
A professora Antonia Vidal Domingues, ainda escreve, em 2 de novembro
de 1886 ao inspetor geral da Instrução Pública, que “A escola funciona em uma
sala da casa de minha residência, inteiramente independente da escola do sexo
masculino. Os móveis que possui esta cadeira já estão em mau estado e insuficien-
tes para o número de alunos” (DOMINGUES, 1886, p. 1).
Pode-se inferir que a defesa da permanência das aulas na residência dos
professores seria uma forma de economizar no aluguel de um espaço próprio para
lecionar. Todavia, há algo em comum nas escritas, desde Lustosa em 1830 até me-
ados da década de 1890: as condições de funcionamentos das escolas de Primeiras
Letras eram precárias, não havendo mobília e materiais adequados.

Considerações Finais

Na segunda metade do século XIX a situação começa a se transformar em


toda Província de São Paulo em relação à expansão de escolas primárias e em São
Bernardo, lugar onde durante 35 anos existiu apenas uma escola, não foi diferen-
te, considerando que houve um aumento significativo de escolas.
Buscou-se através da narrativa problematizar a implantação das escolas de
Primeiras Letras de São Bernardo, compondo, por meio das fontes, uma trilha
histórica e, somando-se a essas, dados da Província de São Paulo e da própria
Freguesia.
Verificou-se que poucas melhorias e investimentos ocorreram ao longo
dos anos no século XIX nas escolas públicas de São Bernardo, sobretudo ao que
se referia a materiais, utensílios e mobília. A ausência de políticas públicas por
parte do governo provincial é notória a partir da leitura dos relatórios dos mes-
tres de Primeiras Letras e foram determinantes para que poucos avanços fossem
observados.
Identificou-se que a casa dos professores de Primeiras Letras foi, priori-
tariamente, o local onde as escolas funcionavam, com condições estruturais pre-
cárias.
Havia, ainda, escolas sem condições estruturais apropriadas para funcionar,
havendo necessidade de alguns mestres disporem de recursos próprios para man-
ter as salas de aula abertas.
Conclui-se, assim, a partir dos estudos, que a implantação da escola na
Freguesia foi, sem dúvida, um avanço, e é possível afirmar que a Lei de 15 de
outubro de 1827, que mencionava a criação de escolas onde houvesse população,

318
foi cumprida em São Bernardo, ofertando educação pública para crianças de di-
ferentes condições sociais.
Contudo, apesar de novas cadeiras de Primeiras Letras terem sido criadas
na Freguesia ao longo da segunda metade do século XIX, identificou-se que pou-
cas crianças foram atendidas, pois a distância, a pobreza e, consequentemente, a
necessidade de trabalho infantil, foram fatores que impactaram a frequência à
escola. Somados a esses fatores, está a precariedade de materiais, locais e condi-
ções de trabalho dos mestres de Primeiras Letras, sob os quais pousava a respon-
sabilidade de gerir sua sala com os poucos recursos que recebiam da Província e,
quando não, assumiam com recursos próprios as demandas para garantir que as
aulas acontecessem.
Os avanços obtidos acerca da expansão da oferta escolar em consequência
do aumento de cadeiras de Primeiras Letras ao longo da segunda metade do sé-
culo XIX são notórios, ainda que lá permanecessem os mesmos problemas quanto
às condições de funcionamento das escolas no tocante à estrutura e materiais. A
partir da perspectiva da História vista de baixo, é possível afirmar que a condi-
ção social e econômica foram fatores preponderantes para que a escola não fosse
acessada pela maioria das crianças são-bernardenses, sendo que os registros dos
professores apontam que as que conseguiram frequentar não tinham condições
de adquirir material adequado.

Fontes documentais

A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO. Páginas da edição de 13 de janeiro de 1876.


Disponível em: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18760113-295-nac-0001-
999-1-not. Acesso em: 25 nov. 2021.

ALMEIDA, M. E. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da


Província de São Paulo pelo professor substituto, Freguesia de São Bernardo, em 1 de junho
de 1886, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.

BONILHA, F. M. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da


Província de São Paulo pelo inspetor, Freguesia de São Bernardo, em 18 de julho de 1863,
Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.

DANTAS, J. M. T. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da


Província de São Paulo pelo Professor Público da cadeira do Rio Grande, Freguesia de São
Bernardo, em 25 de novembro de 1871, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa
Ordem 5.098.

319
DOMINGUES, A. V. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da
Província de São Paulo pela professora da Freguesia de São Bernardo, em 2 de novembro de
1886, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.

LUSTOSA, T. I. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da Província


de São Paulo pelo Professor Público, 1.ª cadeira do sexo masculino da Freguesia de São
Bernardo, em 30 de setembro de 1861, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa
Ordem 5.098.

MENEZES, G. E. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da


Província de São Paulo pela Professora Pública da escola de Primeiras Letras do bairro do
Alto da Serra da Freguesia de São Bernardo, em 3 de novembro de 1880, Arquivo Público
do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.

OLIVEIRA. J. J. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da Província


de São Paulo pelo Inspetor de Distrito, Freguesia de São Bernardo, em 4 de outubro de 1857,
Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.

PRETA, M. J. O. C.; SETTI, I. Relatório apresentado ao diretor geral da Instrução


Pública de São Paulo pela Câmara de São Bernardo, em 18 de julho de 1893, Arquivo
Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.

PROFESSOR DA ESCOLA DE PRIMEIRAS LETRAS DO SEXO


MASCULINO DO ALTO DA SERRA. Relatório apresentado ao inspetor geral da
Instrução Pública da Província de São Paulo, Freguesia de São Bernardo, em 1880, Arquivo
Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.

ROSA, J. V. S. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da Província de


São Paulo pelo Professor Público, 1.ª cadeira do sexo masculino da Freguesia de São Bernardo,
em 19 de março de 1877, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098

SALLES, F. A. O. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da Província


de São Paulo pelo Inspetor Literário da Freguesia de São Bernardo, em 9 de dezembro de
1855, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.

SALLES, F. A. O. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da Província


de São Paulo pelo Inspetor Literário da Freguesia de São Bernardo, em 4 de novembro de
1886, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.

SALLES, I. M. O. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da


Província de São Paulo pela professora substituta da Freguesia de São Bernardo, em 6 de
junho de 1885, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.

320
SALLES, M. O. Relatório apresentado ao inspetor geral da Instrução Pública da Província
de São Paulo pela professora substituta da Freguesia de São Bernardo, em 1 de junho de
1886, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Caixa Ordem 5.098.

SÃO PAULO. Relatório sobre o estado da Instrução Pública Provincial, 1861, Arquivo
Público do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/
site/acervo/repositorio_digital/relatorios_educacao. Acesso em: 17 fev. 2021.

Referências

AGUIAR, T. B. DE; LEONARDI, P.; PERES, F. A. Ginzburg na oficina do


historiador da educação: algumas considerações metodológicas. Cadernos de História
da Educação, v. 20, n. Contínua, p. e029, 9 abr. 2021.

BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827. Disponível em: https://www2.camara.


leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38398-15-outubro-1827-566692-
publicacaooriginal-90222-pl.html. Acesso em: 23 nov. 2021.

ALCÂNTARA, W. R. Obrigatoriedade escolar e investimento na educação pública:


uma perspectiva histórica (São Paulo, 1874-1908). Revista História da Educação
(Online), v. 23: e81785, 2019.

ESPADA, H. L. A Micro-história Italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

FARIA FILHO, L. M. Instrução Elementar no século XIX. In: LOPES, E.M.T.;


FARIA FILHO, L. M.; VEIGA, C. G. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2016.

GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. – 2.ed. – São Paulo:


Companhia das Letras, 1990.

GINZBURG, C. A micro-história e outros ensaios. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/


Bertrand Brasil, 1991.

LEVI, G. 30 anos depois: repensando a Micro-história. In: MOREIRA, Pulo;


VENDRAME, Maíra; KARSBURG, Alexandre (org.). Ensaios de Micro-história:
trajetória e migração. São Leopoldo: Oikos, 2016.

MIMESSE, E. A educação e os imigrantes italianos: da escola de primeiras letras ao


grupo escolar. São Caetano do Sul: Fundação Pró-Memória, 2001.

321
MARTINS, J. S. A escravidão em São Bernardo, na colônia e no império. São Bernardo
do Campo: CEDI, 1988.

PANIZZOLO, C. João Köpke e a Escola Republicana: criador de leituras, escritor da


modernidade. 359 f. Tese (Doutorado em Educação) Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo- PUC-SP, São Paulo, 2006.

ROCHADEL, O.; SCHMIDT, L. L. O papel do professor de primeiras letras no


manual de pedagogia de Jean Baptiste Daligault: reflexões sobre a formação de virtudes
e valores. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, SP, v. 17, n. 1, p. 139–157, 2017.
Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/
view/8645836. Acesso em: 10 jan. 2022.

SANTIAGO, A.; PANIZZOLO, C.; A escola, a pobreza, a distância e o trabalho


infantil: o desafio da frequência na escola de primeiras letras da freguesia de São
Bernardo (1830 - 1864). Revista Educação & Linguagem, São Bernardo do Campo –
SP, v. 24, p. 289-307, 2021. Acesso em: 11 jan. 2022.

SANTOS, W.S. Antecedentes históricos do ABC Paulista: 1550-1892. São Bernardo do


Campo: SECE, 1992.

SOUZA, R. F. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no


Estado de São Paulo: (1890-1910). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

SOUZA, R. F. Alicerces da pátria: História da escola primária no Estado de São Paulo


(1890-1976). Campinas, SP: Mercado das Letras, 2009.

SHARPE, J. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História:
novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

VIDAL, D. G. Mapas de freqüência a escolas de primeiras letras fontes para uma


história da escolarização e do trabalho docente em São Paulo na primeira metade do
século XIX. Revista Brasileira de História da Educação, n° 17 maio/ago. 2008

VILLELA, H. O. S. O mestre escola e a professora. In: LOPES, E.M.T.; FARIA


FILHO, L. M.; VEIGA, C. G. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2016.

322
15. OS IDEAIS RENOVADOS DE ENSINO ASSOCIADOS
À EXPERIÊNCIA FESTIVA NAS ESCOLAS
PRIMÁRIAS PAULISTAS (1900-1960)

Renata Marcílio Cândido

A primeira vez que vi o estabelecimento, foi por uma festa de


encerramento de trabalhos.
Transformara-se em anfiteatro uma das grandes salas da frente
do edifício, exatamente a que servia de capela; paredes estucadas
de suntuosos relevos, e o teto aprofundado em largo medalhão, de
magistral pintura (...). Desarmado o oratório, construíram-se
bancadas circulares, que encobriam o luxo das paredes. Os alunos
ocupavam a arquibancada. Como a maior concorrência preferia
sempre a exibição dos exercícios ginásticos, solenizada dias depois do
encerramento das aulas, a acomodação deixada aos circunstantes era
pouco espaçosa; e o público, pais e correspondentes em geral, porém
mais numeroso do que se esperava, tinha que transbordar da sala
da festa para a imediata. Desta ante-sala, trepado a uma cadeira,
eu espiava. Meu pai ministrava-me informações. Diante da
arquibancada, ostentava-se uma mesa de grosso pano verde e borlas
de ouro. Lá estava o diretor, o ministro do império, a comissão
dos prêmios. Eu via e ouvia. Houve uma alocução comovente de
Aristarco; houve discursos de alunos e mestres; houve cantos, poesias
declamadas em diversas línguas. O espetáculo comunicava-me certo
prazer respeitoso (POMPÉIA, 1998, p. 16-17).

As festas escolares impressionaram os que dela participaram e deixaram


marcas em suas memórias, constituindo-se em eventos de deslumbramento social
e escolar, cuja potencialidade educativa deveria ser explorada pelos educadores
e reformadores da instrução pública desde finais do século XIX até meados do
século XX, constituindo-se prática recorrente nas escolas públicas até os dias atu-
ais. Os temas e valores disseminados por elas, naquele contexto, relacionados aos
projetos social e político, deveriam forjar a identidade do cidadão republicano e o
modelo de sociedade moderna a ser perseguido a partir de então. Ao descrever o
seu primeiro contato com a escola, o menino Sérgio, narrador e protagonista do
romance O Ateneu (1839, 1998), nos dá indícios importantes sobre o que foram
os festejos escolares para as crianças que as vivenciaram, anos antes da divulgação
mais sistemática da prática nas escolas públicas paulistas, em um primeiro mo-
mento como espectadores e, depois, como protagonistas – estudantes das escolas

323
primárias143. As festas escolares constituíram-se, inicialmente, propaganda do sis-
tema de ensino público gratuito, laico e republicado que se desejava para todos e
todas, função prevista especialmente para as festas de inauguração, aniversário e
encerramento do ano letivo, para em um segundo momento, a partir da década de
20 do século XX, associarem-se aos ideais de renovação dos métodos de ensino
preconizados pelos reformadores da Escola Nova.
Por meio das festas, as crianças poderiam construir uma representação ini-
cial do que significava ser aluno de uma determinada instituição escolar em um
contexto social e histórico específico, muitas participaram das comemorações an-
tes mesmo de estarem regularmente matriculadas, como assistentes dos eventos,
elaborando a partir da experiência imagens sobre o que era ser estudante, qual era
o trabalho da escola e a sua função social. As solenidades eram ocasiões públicas
nas quais os alunos poderiam se apropriar de maneiras diferentes dos espaços e
dos saberes escolares (decorando as classes e a escola, apresentando-se nos pátios
e espaços externos, estudando poetas e os simbolismos das datas), ou seja, atri-
buindo a essas ocasiões, significados diferentes dos rotineiramente vivenciados na
escola, os festejos eram situações de ruptura da rotina escolar.
Por outro lado, há que se considerar que a realização das festas no âmbito
escolar não se deu de forma homogênea e direta ou sem equívocos e contradições,
tampouco sem mudanças de sentidos, mas o mesmo evento utilizado em outros
âmbitos sociais e para outros fins precisou se adaptar ao seu novo contexto de
idealização e concretização, reestruturar seus elementos e técnicas que deveriam
servir a partir daquele momento (final do século XIX) a um propósito eminente-
mente educativo. Caberiam às comemorações, assim como a todas as atividades
realizadas no contexto escolar, funções de ensino e de aprendizagem, além da
divulgação de um saber característico da escola moderna, considerada, naquele
momento, o modelo ideal de escolarização.
Neste sentido, o capítulo pretende discutir como foram construídas as jus-
tificativas que contribuíram para a criação da concepção de festa pedagógica nas
décadas iniciais do século XX até meados do mesmo século, a partir da seleção

143 A escolarização primeira das crianças naquele contexto poderia acontecer em diferentes instituições de
ensino, a saber: os grupos escolares (escolas graduadas cujo método de ensino é o simultâneo), criados
em 1893, marcaram a organização dos sistemas públicos e estatais de ensino, especialmente por estabe-
lecerem mudanças importantes na organização administrativa e pedagógica da escola primária, dentre
estas a organização das festas; as escolas-modelo (criadas pela reforma de 1890 para a realização da
prática de ensino dos estudantes normalistas); escolas reunidas (cujo número de alunos não era sufi-
ciente para se formar um grupo escolar) e escolas isoladas (com um único professor e alunos de dife-
rentes idades e níveis de ensino no mesmo espaço). Além dessas distinções, existem aquelas percebidas
entre os estabelecimentos localizados na zona urbana e na zona rural (SOUZA, 1998; GALLEGO,
2003)

324
de textos e argumentos de alguns dos principais pedagogistas144 representantes da
Escola Nova, de autores de manuais pedagógicos utilizados nas escolas de for-
mação de professores, as Escolas Normais, e de artigos publicados em periódicos
de ensino. Considera-se que para se compreender o discurso pedagógico faz-se
necessária a apreensão de uma trama tecida a partir de discursos provenientes
de diferentes campos e agentes (BOURDIEU, 1990, 1996), que influenciam e
determinam as ações e discursos do campo, considerando sua característica he-
terônoma (BOURDIEU, 2004). A escolha dos autores teve como critério a inci-
dência dos mesmos nas publicações da época (periódicos e manuais de ensino),
assim como suas inserções em um projeto mais amplo que pretendeu a instituição
da modernidade pedagógica em escolas do mundo todo, prevendo para todas elas
um mesmo modelo de ensino fundamentado em discursos científicos de áreas
distintas como a medicina, a psicologia e a própria pedagogia, que então se cons-
tituía enquanto ciência (SCHRIEWER; NÓVOA, 2000).
A modernidade pedagógica caracterizou-se por um conjunto de ideias que
se organizaram no decorrer do século XIX acerca dos melhores meios de instruir
e “governar” as novas gerações, considerando o papel preponderante da escola na
produção de ‘sistemas de governo’ (NÓVOA, 2000). Entendia-se que o governo
da população passava pelo governo dos indivíduos e pelo incentivo a um compor-
tamento plenamente submetido às regras sociais, aprendidas desde a mais tenra
idade no microcosmo escolar. O período considerado desde o último quartel de
oitocentos até meados do século XX é indicado pelos historiadores da educação
como de importância fundamental para a compreensão do processo de arran-
cada do projeto sociopolítico de escolarização massiva por meio, por exemplo,
das escolas graduadas, e da constituição de uma unanimidade científico-social
representada pelo domínio da psicopedagogia de base experimental e, posterior-
mente, pelo movimento da Educação Nova nas primeiras décadas do século XX
(CARVALHO; Ó, 2009).
A ideia de modernidade no ensino esteve associada à busca do controle
e do aprendizado maximizado em todas as lições escolares, inclusive nas festas,
que se constituíram em ocasiões oportunas para a retomada dos conteúdos das
diversas matérias aprendidos nas salas de aulas, agora de maneira mais “ativa”, dos
modos e métodos de organizar e realizar as comemorações e suas funções e por
último, dos saberes e comportamentos desejados pelos professores para os estu-
dantes para apresentação ao público nessas ocasiões. Entretanto, não podemos
deixar de lembrar que:
[...] embora a modernidade, de acordo com Einsenstadt, repre-
sente um novo tipo de civilização global, isto não implica que

144 Sobre a discussão e diferenciação dos termos pedagogos e pedagogistas, ver Chateau (1978)
o fenômeno da modernidade seja automaticamente sinônimo
de uma adoção mundial de padrões uniformes de significação e
organização. Aliás, a investigação inter-civilizacional tem mos-
trado o desenvolvimento de ‘variantes básicas de modernidade’
ou de ‘programas múltiplos de modernidade’ (SCHRIEWER,
2000, p. 110-111).

As relações entre o projeto de instituição da modernidade escolar e a prá-


tica das comemorações escolares tiveram seus objetivos associados de forma tácita
em artigos, capítulos de livros e de manuais pedagógicos cuja temática funda-
mental não eram necessariamente as comemorações escolares. Como exemplos,
destacam-se os textos que indicavam a utilização das solenidades para o desen-
volvimento da inteligência, da sensibilidade, da vontade e da disciplina escolar, no
reforço dos saberes curriculares aprendidos, na legitimação da instituição escolar,
na definição de um habitus145 professoral e escolar, bem como na seleção de ques-
tões educacionais constituintes do campo e presentes no tema das comemorações
e nos discursos dos educadores proferidos nestas situações. Destacada pela im-
portância da realização das atividades festivas pelos alunos e visando o desenvol-
vimento integral destes, essas significariam uma maneira de ensinar mais dinâ-
mica e menos teórica, como propunham as tendências modernizadoras do ensino.
Mesmo não definindo ou tratando especificamente do termo festas escola-
res em seus escritos, alguns autores apenas mencionaram a importância de inicia-
tivas desse tipo no âmbito escolar (DEWEY, 1936; CLAPARÈDE, 1933; FER-
RIÈRE, 1934; LOURENÇO FILHO, 1963), é possível perceber nos discursos
destes educadores justificativas que fundamentaram a proposta e realização dos
eventos festivos com diferentes temas e práticas nas escolas. Desse modo, busca-
mos examinar neste capítulo quais foram os argumentos teóricos e metodológicos
que permitiram a disseminação dessa prática nas escolas públicas paulistas, assim
como compreender como as várias premissas enunciadas por educadores como
Jonh Dewey, Lourenço Filho, Adolpho Ferrière e Édouard Claparède, represen-
tantes selecionados do movimento da Escola Nova para esta análise, puderam ser
realizadas e justificadas na realização das comemorações escolares.

145 O conceito de habitus é definido por Bourdieu (1986; 2010) como um conjunto de esquemas de per-
cepção, pensamento e ação, capazes de orientar ou coagir práticas e representações. Para a elaboração
do termo, retoma de Aristóteles a noção de hexis que foi convertida pela escolástica em habitus, cuja
definição desejou por em evidência as capacidades criadoras, inventivas, ativas do habitus e do agente;
o habitus indica a disposição incorporada, “quase postural”, de um agente em ação (BOURDIEU,
2010, p. 61), além disso, a noção serviria para referir o funcionamento sistemático do corpo socializado
(idem).

326
A atividade e a centralidade da criança nas festas educativas

As festas apresentaram-se nos textos dos educadores da época como uma


atividade de ensino capaz de garantir o interesse da criança pelos aprendizados
escolares, assim como sua ação/atividade sobre o processo educativo e, por estes
motivos, foram consideradas como facilitadoras do aprendizado dos conteúdos e
dos valores disseminados pela escola. Faz-se relevante destacar que a discussão
sobre a renovação das metodologias de ensino inseriu-se em um projeto mais
amplo do âmbito da instituição da modernidade pedagógica, prevendo para todas
as instituições de ensino um mesmo modelo de funcionamento e organização
fundamentado em discursos científicos de áreas distintas (SCHRIEWER; NÓ-
VOA, 2000).
A constituição da pedagogia moderna no século XIX teve como expressão
máxima o movimento de renovação educacional intitulado Escola Nova. Tal pro-
posta educacional também foi conhecida mundialmente de forma relacionada a
expressões tais como: ‘métodos ativos’, ‘educação centrada na criança’, ‘autonomia
da criança’ e ‘pedagogias não-diretivas’. Apresentou-se como uma forma original
de conceber a educação e o educando, baseando seus métodos pedagógicos em
estudos científicos acerca do desenvolvimento dos aspectos afetivo, social e inte-
lectual da criança (CANDEIAS; NÓVOA, 1995).
A Educação Nova é o princípio do fim de um ‘discurso escolari-
zante’ sobre a educação das crianças. Mas é também o exarcebar
da crença nas potencialidades da escola (de uma outra escola,
claro) [...] Nunca ninguém desconfiou tanto da escola e nunca
ninguém acreditou tanto na escola como os grupos que dêem
corpo e voz à Educação Nova (NÓVOA, 1995, p. 31).

Fundamentada em teorias das áreas da psicologia e da sociologia, a pro-


posta renovada concebeu o ensino baseado nas atividades e nas necessidades da
criança, consideradas condições precípuas para a organização das atividades es-
colares e para a garantia do aprendizado efetivo das mesmas. Nas palavras de
Adolpho Ferrière (1934), a escola ativa146 deveria ser, antes de tudo e de uma for-

146 Em linhas gerais, o programa divulgado pelos escolanovistas, foi tido mais como um conjunto de ideais
desconectas do que um efetivo conjunto de princípios de ação, segundo NÓVOA (1995), contemplan-
do 30 características que podem ser agrupadas em torno de cinco ideias centrais: 1) a escola nova é
um laboratório de pedagogia prática, devendo funcionar, preferencialmente, em regime de internato
e situar-se numa zona rural, já que ela procura criar uma ambiência saudável e de proximidade com a
natureza (excursões, acampamentos, criação de animais, trabalhos agrícolas, ginástica natural, celebra-
ção da natureza, etc.); 2) a proposta renovada pressupõe o sistema de coeducação dos sexos; 3) destaca-se,
também, uma particular atenção aos trabalhos manuais; todo o ensino deve organizar-se a partir de
métodos ativos, que estimulem o gosto pelo trabalho e a criatividade; 4) o desenvolvimento do espírito
crítico deve acontecer por meio da aplicação do método científico; 5) o cotidiano da escola nova alicer-
ça-se no princípio da autonomia dos educandos, que devem ser corresponsáveis no processo de ensino.

327
ma geral, a aplicação das leis da psicologia à educação das crianças: “dum lado, a
sociologia, e doutro lado, a psicologia genética estudando o desenvolvimento dos
seres, eis as ciências-mães desta ciência aplicada ou desta arte que é a educação”
(FERRIÈRE, 1934, p. V). O aprendizado real e efetivo só seria possível, na visão
destes autores, com a participação e envolvimento da criança em todo o processo
educativo - “o verdadeiro meio de direção, ou controle social das atividades dos
educandos, é a sua participação com outras pessoas em atividades comuns, cujo
sentido e finalidade eles adotem plenamente” (DEWEY, 1936, p. 24). Ao edu-
cando não era mais requerida a passividade da escola tradicional, mas sim uma
atuação ativa em todas as ações escolares de modo a possibilitar o pleno desenvol-
vimento de suas capacidades cognitivas, psicológicas e sociais.
A aprendizagem concebida na perspectiva do ensino ativo consistia na
aquisição gradual e individual de habilidades por cada criança, que deveria ser
levada a aprender, pelo seu educador “vigilante” e perspicaz, capaz de garantir o
meio e mobilizar os interesses dos seus educandos. Para cada educando deveria
ser afiançado os recursos para aprender por meio da observação, da pesquisa, do
trabalho, da construção, do pensamento e da resolução de situações problemáticas
relacionadas à sua própria vida. Era imperativo, desse modo, oferecer, no am-
biente educacional, oportunidades para que os alunos sentissem a necessidade e o
interesse em solucionar situações difíceis, aprender com estas situações e por fim,
resolvê-las pelo seu próprio esforço (LOURENÇO FILHO, 1963). O envolvi-
mento absoluto da criança na atividade educativa deveria ser capaz de desenvol-
vê-la integralmente, garantindo não somente o aprendizado dos conteúdos das
diferentes disciplinas, mas também de atitudes e de valores relacionados ao ato
de aprender. O interesse nas atividades escolares seria mantido pela retomada e
problematização de situações da própria vida da criança, tanto intelectual quanto
social, sendo os festejos, realizados em outros âmbitos, como por exemplo, o reli-
gioso, parte da vida social das crianças a ser retomada no ambiente escolar.
O termo atividade, considerado como o eixo articulador entre o ensino
e aprendizagem na nova proposta de ensino, esteve presente em quase todos os
estudos dos pedagogos escolanovistas, que atribuem ao conceito um significado
distinto do utilizado nos moldes tradicionais. Segundo os teóricos, o conceito
atividade já estaria presente nas metodologias de ensino tradicionais, o que não
queria dizer que essas escolas fossem ativas, já que para receberem essa deno-
minação, a atividade do educando deveria ocupar o lugar central no ensino e
ser compreendida na sua acepção mais completa, ou seja, nos seus dois sentidos

O impacto das teses e das práticas da Educação Nova sobre as realidades escolares foi relativamente
limitado e seguiu os contornos impostos pelas condições concretas de aplicabilidade em cada país, que,
de certa forma, explicou o desalento dos educadores paulistas nos anos de 1930, caracterizado pela
perda do entusiasmo inicial e da capacidade de produzir as modificações condizentes.

328
complementares assim como propunha Claparède (1933): o primeiro sentido do
conceito estaria relacionado ao caráter funcional do termo; é uma ação ou reação
que corresponde a uma necessidade, despertada por um desejo e tendo como
ponto de partida o indivíduo que age. Já a segunda acepção da palavra ‘atividade’,
relacionar-se-ia a ideia de efetivação, expressão, produção, processo centrífugo,
mobilização de energia, trabalho. Aqui, atividade se opõe a recepção, ideação,
sensação, impressão e imobilidade” (CLAPARÈDE, 1933, p.196).
As duas definições se complementariam, mas a segunda sem a primeira
não foi característica da escola ativa. O primeiro sentido estava associado às ideias
de necessidade, interesse, desejo, disciplina interior, móveis interiores, consenti-
mento do indivíduo, espontaneidade, liberdade e atenção espontânea. Já o segun-
do, significou expressão, produção (ou reprodução), exteriorização, reação, proces-
so centrífugo, invenção, movimento, trabalho (escola-oficina), ambas contrárias à
ideia de desgosto, indiferença, disciplina exterior, móveis extrínsecos, resistência,
constrangimento, obediência, desatenção, atenção voluntária (com esforço), pro-
cesso centrípeto, imobilidade, leitura (escola livresca) da escola tradicional, que
não estaria completamente desprovida da atividade do aluno, mas somente não a
compreendia de forma tão abrangente como indicavam os pedagogos renovados.
Sendo assim, não eram todas as atividades escolares que se transformaram em
aprendizado eficaz para os educandos (CLAPARÈDE, 1933):
A atividade dos alunos não basta para tornar uma escola ‘ativa’,
enquanto não se tiver dado à palavra ‘atividade’ o seu sentido
completo. A palavra ‘ativo’ é uma palavra vaga. Para muitos ‘ati-
vo’ quer dizer que se move, se agita, que executa um trabalho,
que escreve, que desenha, que faz alguma coisa em lugar de se
limitar a escutar. [...] Pergunto-me, porém, (peço perdão ao meu
amigo Bovet que o formulou por primeiro) se o termo ‘escola
ativa’ não é também ambíguo. Figura-se que ativo significa ‘que
age exteriormente’; que a atividade desenvolvida é proporcional
ao número de atos visíveis executados. Ora, digo que um indi-
víduo que pensa, sem se mexer no fundo de sua cadeira, pode
ser muito mais ativo do que um aluno que faz uma tradução de
latim (CLAPARÈDE, 1933, p.186).

Para se transformar em aprendizagem, a atividade deveria ser controlada


e planejada, no sentido de garantir a melhor reflexão da experiência vivida para o
educando. Aqui se apresenta uma problemática instigante: como garantir o inte-
resse da criança em uma atividade controlada por outros? Neste caso, o meio di-
reto de controlar ou de governar a educação seria “o de preparar o ambiente que a
criança age, pensa e sente” (DEWEY, 1978, p.19). Em um ambiente previamente
organizado, a criança tem a oportunidade de realizar todas as suas experiências e
retirar delas o maior proveito possível. A experiência educativa, segundo Dewey

329
(1978), consiste em uma experiência inteligente, na qual participa o pensamento
e existe a possibilidade de percepção das relações e continuidades não percebi-
das: “todas as vezes que a experiência for assim reflexiva, isto é, que atentarmos
no antes e no depois do seu processo, a aquisição de novos conhecimentos, ou
conhecimentos mais extensos do que antes, será um dos seus resultados naturais”
(DEWEY, 1978, p. 07). Em outras palavras, a realização de atividades previa-
mente organizadas acarretaria “naturalmente” o aprendizado pleno de todos os
estudantes. Todos os saberes escolares poderiam, desse modo, serem ensinados e
aprendidos de forma plena e eficaz.
As festas escolares como experiências educativas deveriam garantir por
meio da participação e atividade do aluno, o efetivo aprendizado tanto dos con-
teúdos escolares, quanto das normas e dos valores implícitos aos temas de cada
festa. Neste sentido, a festa alargava-se para antes e depois do próprio ato, de dois
modos distintos e complementares: em um momento anterior representado pelo
conhecimento que a festa exigia acerca dos modos próprios de organizá-la (pre-
visto nos regulamentos, circulares, experiências escolares anteriores), no estudo
dos temas dos festejos e suas relações com os outros saberes curriculares, bem
como o seu significado para a vida escolar e social.
Na organização duma festa escolar deverão tomar parte todos
os alunos. E para não alimentar vaidades nem quebrar estímu-
los, não deverá o professor marcar despoticamente atribuições
pessoais nos trabalhos de organização. Deixará que a classe se
manifeste livremente sobre a distribuição de funções, para ele
só depois objetar no que tiver por conveniente. Tendo ouvido
as opiniões dos próprios alunos, ficará o professor mais apto a
acertar na distribuição dos papéis. Depois duma festa escolar
deverá o professor organizar trabalhos práticos com ela relacio-
nados, à maneira do que fez em relação aos passeios e excursões
escolares (LAGE, 1945, p. 203-204).

E, após o evento, o prolongamento do seu efeito poderia ser percebido


na disseminação das notícias nos jornais e periódicos que buscaram traduzir em
palavras o ato festivo e as lembranças daqueles (as) que dela participaram criando
uma memória coletiva do evento. A própria festa enquanto experiência poderia
ser considerada por si só educativa: “o fim (resultado) da educação se identifica
com seus meios (o processo), do mesmo modo, aliás, que os fins da vida se iden-
tificam com o processo de viver” (DEWEY, 1978, p. 08). Como evento social,
as comemorações sempre fizeram parte da vida do ser humano e na escola não
deveria ser o contrário.
No âmbito da proposta de ensino da Escola Nova, a criança passa a ser
considerada na sua integralidade e as atividades escolares deveriam desenvolver
o máximo possível todas as capacidades dos educandos. Era necessário, ainda,

330
conservar e desenvolver as energias úteis e construtivas do aluno para fazer dele
uma personalidade autônoma e responsável (FERRIÈRE, 1934, p. V). Acredita-
se que tudo que se ensina de fora ou se impõe ao educando, sem contato com as
energias interiores, tende a desequilibrar e a prejudicar o ser e por este motivo a
escola ativa procurou fazer predominar o espírito, isto é, a intuição, o coração, a
razão e a vontade na sua essência qualitativa no processo educativo.
As comemorações escolares foram apresentadas como atividades educati-
vas exemplares da concretização das premissas renovadas que colocam o educan-
do no lugar central no processo de ensino e aprendizagem, capaz de ao mesmo
tempo desenvolvê-lo cognitivamente e emocionalmente. Ela deveria ser a ocasião
privilegiada para o educando ser visto e se fazer ver, de incitar o interesse da
criança pelo evento que estava sendo comemorado, despertar seu intelecto, seus
sentimentos e suas emoções e, dessa forma, garantir o desenvolvimento integral
do estudante. As crianças sentiriam maior interesse em realizar atividades autên-
ticas e que trariam a marca da responsabilidade, sendo sua participação conside-
rada a única forma capaz de integrar o educando à escola no sentido de levá-lo a
querer e viver a vida escolar:
As atividades extraclasses propiciam essa possibilidade, uma vez
que funcionam sob responsabilidade do educando, com base na
participação em empreitadas comuns com seus colegas e profes-
sores, instituições sociais e pessoas outras da comunidade, em
atividades de verdade, que podem ser apreciadas como contri-
buições efetivas para a vida escolar e social (NÉRICI, 1960, p.
413).

Na maior parte dos programas festivos, existiram horários específicos para


a demonstração do desenvolvimento intelectual de cada estudante, por exemplo,
nos exames públicos (sabatinas), nas recitações de poesias e contos e, também fí-
sica nas apresentações de ginástica, nas competições esportivas, nas peças teatrais,
demandando todo um controle emocional associado à autodisciplina das crianças
nestes eventos. Valorizava-se a autonomia das crianças, que eram ensaiadas du-
rante longos períodos, em alguns casos durante todo o ano letivo, e tomavam para
si a responsabilidade pelo desenvolvimento e bom andamento da festa. Os hinos,
as poesias, os textos, os discursos buscavam incitar o espírito, isto é, a intuição, o
coração, a razão e a vontade na sua essência qualitativa, assim como propunha o
movimento. A realização de uma festa dependia sempre do interesse e da ativi-
dade do aluno, principal protagonista do evento, dependendo dele o seu sucesso,
da escola e do professor por ele representado, assim como do projeto da escola
pública, laica e gratuita de forma mais abrangente.
Nas palavras de Claparède (1933), as comemorações escolares, assim como
a educação, deveriam ter um valor funcional, ou seja, ser capaz de desenvolver os

331
processos mentais considerando-os, não somente em si mesmos, mas também
quanto a sua significação biológica, à sua utilidade para a ação presente ou futura,
ou seja, sua utilidade para a vida. A “educação funcional é a que toma a necessi-
dade da criança, o seu interesse em atingir um fim, como alavanca da atividade
que se lhe deseja despertar!” (CLAPARÈDE, 1933, p. 02). A sua funcionalidade
não poderia ser resumida na sua atratividade, já que nem tudo que se faz atraente
possui um valor educativo, mas naquela que teria utilidade. Infere-se a partir das
considerações deste autor, que as comemorações, ao mesmo tempo em que de-
veriam ser atrativas e garantir o envolvimento e participação de todos os autores
escolares, deveriam ser permeadas pelo seu caráter educativo.
As festas assumiriam a função de autonomizar a criança, quando ela dei-
xava de ser o mero espectador e tornava-se o protagonista do seu aprendizado, o
responsável pelo sucesso do “teatro da festa”, demonstrando os conteúdos e valo-
res aprendidos no contexto escolar. A centralidade da criança nas comemorações
é reconhecida em solenidades dedicadas exclusivamente a elas, como aconteceu
nas denominadas “festas das crianças” levadas a efeito nas décadas de 1920 e
1930, período que poderíamos considerar de consolidação dos ideais renovados
no contexto paulista.
Em São Paulo, as notícias e comentários sobre as comemorações das crian-
ças concentram-se nas páginas da Revista Escolar, que circulou no campo edu-
cacional paulista entre os anos de 1925 e 1927 e está associada à divulgação dos
princípios da escola nova nesse contexto. Ao todo são registrados cinco textos do
mesmo periódico, do qual se destacam alguns. O primeiro trata da comemoração
do dia 12 de outubro, já instituído “Dia da Criança”, no Teatro Municipal de São
Paulo para um público composto de três mil crianças das nossas escolas, onde “o
palco será adaptado de modo a bem acomodar tão numeroso corpo de cantores,
talvez o maior que se tenha organizado até aqui”. “O programa, otimamente or-
ganizado, é todo composto de músicas de reputados autores brasileiros, adaptadas
às vozes infantis” e segundo autor da notícia, seria “de prever o brilhantismo da
festa, dada a competência do seu organizador, o maestro João Gomes Junior, ins-
petor especial de música nas escolas públicas do Estado”, que não havia poupado
“esforços no sentido de conseguir os mais surpreendentes efeitos corais e a maior
disciplina musical do conjunto” (Revista Escolar, setembro de 1926, p. 86).
Por outro lado, apesar de caracterizar-se uma festa da criança, a partici-
pação da mesma é restrita a execução de cantos previamente escolhidos e, ainda
quem sabe, sofridamente ensaiados pelos alunos com o mestre. Às crianças, mui-
tas vezes, caberia uma participação passiva, restrita ao programa e com poucas
oportunidades de livre expressão, como denuncia o artigo intitulado “Conceito
Infantil” elaborado por Ephigenia C. Teixeira (1927) e publicado no mesmo pe-
riódico alguns meses depois:

332
Isto é que me dá raiva! Esta coisa é que me dana!
Já viram que espalhafato numa festa tão brilhante?!
E dizem:- Festas das Crianças! ...Eu sou criança. Sou peque-
no. Na minha cachola pequenina, só tenho gravado: - papai,
mamãe; dê-me um tostão, papai; dê-me um doce, mamãe. E,
mesmo assim, venho para a minha festa sem caber na pele, de
alegria. Mas, chego aqui, dou com meus coleguinhas a recitar
versos e poesias de Coelho Netto, Olavo Bilac ... Não sei de
quem mais. Por isso ouvi D. Francisca perguntar ao Dr. Francis-
co se ele entendeu o que disse o Chico ... Versos!... Não entendo
patavina! Nem a prosa entendo!... Poetas!... São uns aborrecidos.
Não os entendo. Não gosto deles! ... Não gosto, mesmo. Tam-
bém não gosto do Lulú, quando me ganha as bolinhas. Poetas!...
Se eles falassem a minha língua! ... Fizessem versinhos alegres,
e eu gostaria deles. Gostaria deles, tanto como da minha profes-
sora, porque fala a minha língua para que eu possa entendê-la...
Ora também eu não hei de ser sempre pequeno! E quando eu
for gente, entrarei para a academia dos poetas. Serei poeta para
vingar-me dos poetas. Farei versos que eles não entendam (Re-
vista Escolar, fevereiro de 1927, p.62-63).

O pensamento infantil registrado nas linhas acima assinala uma importan-


te contradição relacionada à prática dos festejos escolares e a pouca compreensão
que as crianças tinham de alguns momentos da ocasião. Para Ephigenia C. Tei-
xeira (1927) não faria sentido em uma festa para crianças recitar versos e poemas
de autores, algumas vezes, desconhecidos e que não tinham produzido para elas.
Apesar da importância do conteúdo escolar, a situação da festa, segundo o autor,
não seria própria para isso. A transcrição desse comentário nas páginas da revista
indica a percepção de que deveria existir uma preocupação maior com a com-
preensão infantil acerca da realização das atividades festivas. Uma festa para as
crianças deveria contar com atividades organizadas e levadas a efeito de acordo
com a compreensão que as mesmas teriam sobre a comemoração.
Considerando as fontes e a potencialidade das comemorações para a con-
cretização dos princípios educativos da Escola Nova, é preciso ponderar a centra-
lidade das crianças nos eventos. A participação das crianças constitui-se condição
imprescindível para a organização e realização de qualquer festa que se deseja
escolar, entretanto, essa participação pode ser categorizada de duas formas: uma
participação passiva, quando elas atuam como coadjuvantes do evento, acompa-
nhando e imitando tudo o que estava previamente combinado e que fora ensaiado
com o mestre; ou ativamente como protagonistas da festa, com a liberdade de
criação garantida para composição de canções, textos, realização de homenagens,
apresentações físicas e teatrais e demonstração dos seus saberes; no segundo caso,
o interesse pela atividade festiva seria mais próximo do real. Seja por meio de
uma participação mais ativa ou mais passiva, ou as duas em um mesmo evento

333
almejou-se que, assim como as outras atividades escolares, os festejos escolares
contribuíssem com o aprendizado dos saberes escolares.

Interessar e ensinar: premissas elementares das comemorações


escolares

A concretização do aprendizado na proposta renovada aconteceria tam-


bém mediante a garantia do interesse do educando pela atividade educativa a ser
realizada em suas distintas etapas até a sua conclusão. As comemorações foram
evocadas em diferentes momentos por distintos educadores para a garantia deste
interesse, seja o interesse de alunos e professores pela própria atividade festiva e
pelo trabalho escolar, seja pelo aprendizado de determinado conteúdo de ensino
relacionado a essa ocasião, ou ainda, do interesse da sociedade pela escola, relem-
brando que em muitos casos, a relação da família com a escola acontecia de forma
mais sistematizada nessas situações, quando os pais e familiares eram convidados
a participarem, ainda que passivamente, da solenidade. O interesse do educando,
suas atividades espontâneas, manuais e construtivas, suas afeições e gostos do-
minantes, deveria constituir-se o ponto de partida da educação (FERRIÈRE,
1934); nenhuma atividade educativa deveria ser desenvolvida sem considerar-se,
no âmbito psicológico, tal interesse (DEWEY, 1978). A etimologia do termo in-
teresse, ‘estar entre’, diz: “interesse marca a completa supressão de distância entre
a pessoa e a matéria e resultados de sua ação: é a união orgânica da pessoa e do
objeto” (DEWEY, 1978, p. 97) sendo tal acepção a que deveria ser perseguida nas
ocasiões festivas.
O interesse, tal como compreendiam os pedagogos da escola renovada,
deveria surgir da própria vida do aluno, das experiências vividas rotineiramente;
tudo que estaria intrinsecamente ligado à vida consciente e aos conteúdos e sen-
timentos da vida cotidiana poderiam ser do interesse do educando. Quando existe
interesse, empenhamo-nos ativamente em alguma atividade ou pensamento. Ele
pode ser concebido como algo dinâmico e pessoal, que deve nos ligar diretamen-
te a uma coisa que tem importância para nós: “por isso, além dos seus aspectos
de atividade e de objetividade, possui um aspecto emocional e pessoal” (DEWEY,
1978, p. 96).
Se a matéria das lições tiver um lugar apropriado na expansão
natural da consciência da criança; se ela nascer naturalmente
das atividades, dos pensamentos e dos próprios sofrimentos da
criança, para servir a novas atividades e novos pensamentos,
então não haverá necessidade de truques e artifícios de método
para tornar o assunto ‘interessante’ (DEWEY, 1978, p. 76).

334
Não existiriam estratégias possíveis ao educador para manter o interesse
do aluno, de acordo com Dewey (1978), somente a consideração das necessidades
variáveis dos educandos e de suas características individuais poderia garantir o
êxito do aprendizado. No âmbito escolar, se o professor conseguisse despertar o
interesse do educando, sua atenção para uma série de fatos ou ideias, seria quase
certo que o aluno empregaria todas as suas energias em compreendê-los e assimi-
lá-los: “se provocarmos esse interesse para certa tendência moral ou determinada
linha de conduta, estaremos igualmente certos de que nessa orientação é que se
encaminharão as atividades infantis (...)” (DEWEY, 1978, p. 83).
Os interesses poderiam mudar no decorrer da vida escolar do educando
conforme o seu amadurecimento, ou ainda com relação às suas preferências, bem
como nas relações com o seu contexto histórico e social. Ao educador renovado
sugeria-se a não proposição de atividades preconcebidas, mas que ele permitisse
que os alunos, “livremente” escolhessem suas atividades, pois somente assim se
formaria o sentimento da disciplina, ou “o hábito de lidar com coisas sérias, tão
necessário à vida futura da criança” (DEWEY, 1978, p. 87).
Se em alguns autores percebia-se a indicação vaga das atividades a serem
desenvolvidas pelos alunos de acordo com os seus interesses, ou seja, as atividades
mudariam de escola para escola e de educando para educando, em outros, as
sugestões sobre as formas de garantir e fomentar o interesse das crianças eram
indicadas de forma explícita. Este foi o caso das produções do pedagogo Adolpho
Ferrière (1934), que concebeu o interesse como a força propulsora da atividade
educativa que, organizada de forma atraente e diversificada pelo educador, pode-
ria impedir a fadiga escolar e a distração e garantir o desenvolvimento de todas as
faculdades do educando: “fazei-a alternadamente observar, anotar, experimentar,
desenhar, construir, discutir, resumir oralmente, redigir, corrigir, e as horas passa-
rão rápidas e alegres” (FERRIÈRE, 1934, p. 110).
Ao mesmo tempo em que a atividade festiva deveria ser interessante, por
ser uma atividade diferente das rotineiramente realizadas no cotidiano escolar,
esperava-se que essas garantissem o interesse para outras questões escolares. Não
era incomum, em manuais escolares escritos por educadores na época, orientações
sobre as formas de organizar os festejos e a utilidade que os mesmos possuiriam
para o desenvolvimento do processo de ensino.
Nada mais belo do que uma festa de crianças das escolas, reuni-
das em um jardim ou em um parque, sob às vistas dos professo-
res, ora obedecendo à disciplina a que se habituaram nas classes,
ora em plena liberdade entregando-se aos folguedos próprios da
infância e confraternizando com os coleguinhas de outras esco-
las” (REVISTA DE ENSINO, Julho de 1906, p.781).

335
A recreação não deveria ser o único fim da comemoração, mas também o
ensino, e “isto obriga o professor a uma escrupulosa seleção dos motivos das co-
memorações. Devem merecer preferência os motivos patrióticos, morais e sociais,
ficando em segundo plano, os de natureza científica, técnica etc.” (LAGE, 1945,
p. 203-204). Os festejos garantiriam, desse modo, suas funções pedagógicas, “vis-
to proporcionar uma excelente oportunidade de ensinar muitas noções úteis, a rir,
a brincar ou a cantar” (VIANA, 1946, p. 396-398). Durante o período de prepa-
ração das festas, os educandos poderiam aprender literatura, história e geografia
“(matérias relacionadas com as poesias, monólogos, diálogos, etc., que fazem par-
te do programa); música (pelo menos educam o ouvido); estudariam a pronúncia
exata das palavras, e até poderiam adquirir maneiras menos grosseiras” (VIANA,
1946, p. 396-398). Ou seja, é possível assinalar que o conceito de comemoração,
para os escolanovistas, era composto das suas duas funções principais: recreativa
e pedagógica.
Em qualquer tipo de festa, o aluno já teria um comportamento melhor
do que o dos recreios escolares, segundo os autores. Nestas ocasiões, ele sentiria
a responsabilidade de ter de mostrar as habilidades adquiridas nos ensaios e de-
monstrá-las de forma satisfatória para o público que o prestigiava. Os professores,
sabendo aproveitar este fato, conseguiriam, até mesmo nos casos de alguns alunos
cujo interesse pelo estudo era fraco, a melhora substancial do desempenho escolar.
Para isso, bastaria que os educadores soubessem equilibrar o interesse dos alunos
e o aprendizado por meio das solenidades, não consentindo que o interesse pela
festa se sobrepusesse aos estudos.
O professor que organize qualquer festa escolar, deve dispor de
três qualidades fundamentais: paciência, prudência e persistência.
A festa escolar deve dignificar a Escola; de maneira alguma deve
transigir com os gostos da multidão, caindo na palhaçada ou na
bobice. Por outro lado, os programas devem ser curtos. Os peda-
gogos recomendam festas que não excedam cinquenta minutos.
É preferível efetuar três ou quatro festas pequenas, do que uma
festa de três ou quatro horas. Em conclusão: ‘a festa escolar é um
meio de ação que oferece um certo interesse, mas do qual não convém
abusar’. (LOUREIRO, 1950, p. 209-211, itálicos do autor)

A retomada de alguns dos argumentos elaborados no âmbito da pedagogia


renovada acerca do processo de ensino e aprendizagem corrobora a tese das festas
escolares como atividades educativas e não somente de divertimento escolar. É
possível perceber nas teorias renovadas a importância do interesse do aluno para
a eficiência do aprendizado, da atividade como o centro do processo educativo,
da concepção de educação na sua funcionalidade, da corresponsabilização dos
educandos pelo sucesso do ato festivo, da aproximação sociedade e escola, das
relações entre os saberes curriculares e os diferentes modos de ensiná-los, distin-

336
tos elementos capazes de delinear o projeto pedagógico das comemorações no
âmbito escolar.

Considerações finais

Desde que foi constituída como um dos objetos privilegiados da cultura


escolar ( JULIA, 2001), regida por normas e efetivada por práticas, as festas es-
colares serviram a diferentes e relevantes propósitos para os projetos políticos e
educacionais brasileiros. Se em um primeiro momento, serviram para legitimar
e divulgar os feitos políticos no âmbito educacional, celebrando as inaugurações
e aniversários das escolas públicas paulistas construídas nos primeiros anos da
República Brasileira, em momentos posteriores vimos as comemorações rela-
cionadas à fundamentação teórica do escolanovismo. Ou seja, o mesmo objeto,
festejos escolares, é retomado, nos idos anos 20 do século XX, para fundamentar
e disseminar o ideário renovado de ensino até meados do século XX. Associada
à garantia do interesse e da atividade da criança, a festa serviria à concretização
das ideias renovadas para o ensino, assim como para a divulgação das mesmas no
âmbito das escolas públicas paulistas.
As situações festivas almejaram ensinar por meio da vivência de diferentes
conteúdos, valores e ações, os princípios do ensino ativo; favorecer a emulação en-
tre os escolares, construindo hierarquias e a premiação escolar; estimular os dis-
positivos disciplinares modernos pelo autocontrole e permitir o desenvolvimento
da autonomia e da responsabilidade dos alunos pelas ações preparativas e de exe-
cução desses eventos. Sabe-se que os fins sociais, políticos e educacionais assina-
lados aqui não resumem todas as possibilidades de representações e apropriações
(CHARTIER, 1990) permitidas pelas festas, mas somente buscam registrar as
mais recorrentes, presentes no corpus documental selecionado para esta análise.
Concebidas como experiências educativas, capazes de atender às necessi-
dades de recreação, os interesses pelos projetos escolares e atividades das crianças,
as comemorações escolares tornaram-se tarefas exemplares da concretização das
premissas renovadas de ensino que colocaram o educando no lugar central no
processo de ensino e aprendizagem. Por meio delas, os alunos poderiam ter uma
atuação mais ativa na concretização do processo de ensino e aprendizagem, res-
ponsabilizando-se por determinadas partes dos programas, apresentando os con-
teúdos curriculares aprendidos durante as aulas nas situações de exames públicos
e ainda tendo seus esforços legitimados especialmente os melhores alunos, ao
receberem prêmios por essa conduta. Enfim, associado ao divertimento e descon-
tração, aos festejos escolares também foram atribuídos características pedagógicas

337
relevantes que não podem ser desconsideradas quando tratamos das histórias das
escolas públicas paulistas.

Referências:

BOURDIEU, P. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.

BOURDIEU, P. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 1996.

BOURDIEU, P. Os usos sociais das ciências: por uma sociologia clínica do campo
científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

CHÂTEAU, J. Os grandes pedagogistas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978

CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: A história
cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

CLAPARÈDE, e. A educação funcional. São Paulo: Companhia Editora Nacional,


Biblioteca Pedagógica Brasileira, Atualidades Pedagógicas, Série III, Volume IV, 1933.

DEWEY, J. Democracia e Educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Coleção


Atualidades Pedagógicas, 1936.

DEWEY, J. Vida e Educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Coleção


Atualidades Pedagógicas, 1978.

FERRIÈRE, A. A escola ativa. Porto: Editora Nacional de Antônio Figueirinhas,


1934.

GALLEGO, Rita de Cássia. Uso(s) do tempo: a organização das atividades de alunos e


professores nas escolas primárias paulistas (1890-1929). Dissertação de Mestrado. São
Paulo: FEUSP, 2003.

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História
da Educação, n. 1, jan.-jun/2001, p. 09-43.

LAGE, Bernardino da Fonseca. Didáctica Geral da Escola Moderna – Segundo os atuais


programas das Escolas do Magistério Primário. Porto: Edição de J. Reis & Silvas,
Ltda., 1945.

LOUREIRO, Francisco de Sousa (Professor efetivo dos liceus e Diretor da Escola


do Magistério Primário de Coimbra). Lições de Pedagogia e Didática Geral. Edição do
Autor, 1950.

338
LOURENÇO FILHO, M. B. Introdução ao estudo da Escola Nova. São Paulo: Editora
Melhoramentos, 8ª edição, 1963.

NÉRICI, Imídeo Giuseppe. Introdução à Didática Geral (Dinâmica da Escola). Brasil/


Portugal: Editora Fundo de Cultura, 1960.

NÓVOA, A. Uma educação que se diz nova. Candeias, et al. Sobre a Educação Nova:
cartas de Adolfo Lima a Álvaro Viana de Lemos. Lisboa: Educa, p. 25-41, 1995.

SCHRIEWER; J.; NÓVOA, A. A difusão mundial da escola. Lisboa: Educa, 2000.

SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de Civilização: a Implantação dos Grupos Escolares
no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

VIANA, Mario Gonçalves. Pedagogia Geral. Porto: Livraria Figueirinhas, 4ª edição,


1960, 1ª edição 1946.

339
16. “TEM HAVIDO NAS DISCUSSÕES UM AZEDUME,
UMA ACRÉMONIA TAL, QUE TEM SE TORNADO
DE GRANDE INCONVENIENCIA”: DISPUTA E
CONSTRUÇÃO DO HABITUS PROFESSORAL A
PARTIR DE UM PROCESSO DISCIPLINAR (1895)
Gabriel Meneses Barros

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?


Álvaro de Campos – Fernando Pessoa

Introdução

No dia 26 de novembro de 2021, uma sexta-feira, uma semana em que


meu horário havia sido alterado na escola – as sextas eu trabalhava pela manhã,
porém a diretora em exercício modificou-o para que eu acompanhasse o período
noturno. Estava na função de coordenador pedagógico. Acordo com mensagens
em meu celular dos colegas professores questionando se eu iria para a escola pela
manhã; aparentemente algo incomum havia acontecido. Ao longo do dia, e nos
dias subsequentes, descubro o que ocorreu: a diretora foi na escola, em um horário
que não o dela, pediu que os inspetores segurassem os estudantes, pois precisava
falar com os docentes. Essa reunião improvisada durou, praticamente, duas au-
las – cerca de 1h30min. A diretora se deu o direito de fala, e apenas ela discur-
sou, alegando que no dia seguinte – seria reposição de uma emenda de feriado
– os professores teriam direito a resposta. Dentre vários pontos de seu discurso,
em que cruzou alguns conflitos que ocorriam na escola147 com relatos de cunho
pessoal, mencionou que alguns docentes eram “energúmenos”; que recebiam um
salário ruim148, e que alguns nem aquele salário mereciam; ironizou a depressão,
dizendo que muitos não a possuíam, mas sim que era “frescura”; e outros tópicos
que deixaram os professores extremamente consternados e sem reação.
Entre absorto e indignado, à medida que fui tomando ciência dos fatos ia
me questionando o que levou os colegas a ficarem imobilizados diante daquilo?
O que motiva um grupo, sendo atacado, ou vendo seus colegas de trabalho nessa
condição, a não reagir? E o que significaria a reação? Como esta seria interpreta-

147 Explorar esses conflitos requereria outro texto, numa abordagem mais alinhada com a sociologia e a
psicologia da educação, e que fugiriam do intento deste artigo.

148 O termo utilizado foi bem mais pejorativo, que não reproduzo aqui.

340
da? Talvez a promessa de falarem no dia seguinte teria provocado o silêncio? E o
que o silêncio tem a dizer sobre a condição docente?
Diante dessas inquietações, e enquanto tentava compreender o que aconte-
cia no interior da escola, recordei-me de minha pesquisa de mestrado (BARROS,
2020), que discorreu sobre processos disciplinares contra os professores paulistas
no fim do século XIX, em específico um impetrado contra o professor Francisco
Xavier Galvão de Moura Lacerda – então lente de Inglês na Escola Normal de
São Paulo, instituição essa de extremo prestígio na sociedade paulistana, que se
tornou referência para vários estados no Brasil (DEGANI, 1973; MONARCHA,
1999) –, no ano de 1895, e das convergências entre essas duas histórias que me
chegaram por relatos de outros, separados por mais de um século.
O que chama a atenção no processo é que Gabriel Prestes, diretor da Escola
Normal, naquela ocasião, realizou uma assembleia com os docentes e durante toda
a ata – o documento que foi anexado na abertura do processo contra Lacerda –,
impede que o professor se expresse até concluir sua linha de raciocínio, enquanto
mencionava o lente, acusando-o de estar atrapalhando o bom clima da instituição.
Lopes (2017), afirma que a repetição dos discursos tem uma função, o que
indica que as permanências históricas na forma como dois diretores tratam os
professores, distantes em mais de cem anos, possuem uma função, que é política,
sobretudo. Para a autora, a educação é cheia de pregnâncias, conceito pautado em
Merleau-Ponty, que transcende a mera ideia de continuidade das coisas, é uma
continuidade sim de hábitos passados, mas embrenhado com o contemporâneo, é
uma espécie de passado que se atualiza. Nesse sentido, o discurso dos diretores e a
reação dos professores, no espaço de mais de um século, não significa a repetição
pura e simples, apresenta uma atualização das coisas, uma permanência que se
moderniza. Tal conceito tem eco na ideia de habitus (BOURDIEU, 2004; 2011),
que será explorado ao longo deste texto.
Assim, o presente artigo, não querendo debruçar-se sobre similaridades
entre os acontecimentos, mas partindo de um ponto de inquietação do presente
para retornar ao processo de 1985, divide-se em três tópicos de análise: o primei-
ro procura interpretar a postura de Gabriel Prestes, interligando suas ações com
os conceitos de soberano e de interdição, trabalhados por Foucault (2010; 2015) e
o de mandatário, utilizado por Bourdieu (2004); o segundo trata da postura do
professor Lacerda em desferir um soco contra a mesa, em sinal de desaprovação a
reunião que estava sendo realizada, tal movimento remete ao conceito de autodefe-
sa de Dorlin (2020); por último, é analisada a reação dos professores presentes na
assembleia convocada por Gabriel Prestes, com base na ideia de habitus, pautado
em Bourdieu (2004; 2011), focando, especificamente na ideia de habitus professoral.
Ponderação inicial: O processo aqui analisado foi utilizado por mim em
outros dois textos (BARROS 2020; 2022), a partir de perspectivas diferentes e

341
com abordagens teóricas distintas. Com isso, quer se evidenciar a polissemia de
discussões possíveis a partir desse tipo de documento, salientando a relevância do
mesmo para o campo da História da Educação. É também, por esse processo já
ter sido escrutinado e pormenorizado em outros contextos, que aqui, neste artigo,
serão resgatados apenas alguns pontos centrais para o debate.

Gabriel Prestes: soberano e mandatário?

O processo instaurado contra o professor Lacerda, localizado no Arquivo


Público do Estado de São Paulo (APESP), não está concluído, trata-se apenas da
instauração do mesmo e de documentos anexados que visavam comprovar a cul-
pabilidade do lente. Gabriel Prestes, diretor da Escola Normal – de 1893 a 1898
–, envia ao Conselho Superior – órgão responsável, dentre outras coisas, pela de-
liberação sobre as instituições escolares no estado de São Paulo –, respaldado no
código interno da Escola Normal149, e solicita que o professor fosse suspenso de
forma preventiva, mediante o fato de ele ter desferido um soco em uma carteira,
na ocasião de uma assembleia com outros professores.
No processo, é anexada a ata da referida assembleia. A reunião foi con-
vocada pelo diretor para, no uso de suas atribuições, repreender publicamente o
docente Francisco Xavier Galvão de Moura Lacerda, pois este estava, conforme
chegou ao conhecimento de Prestes, reclamando de algumas escolhas dos colegas
em reprovar ou não alguns estudantes. Ademais, consta na ata:
Ultimamente disse o sr. Director desde que se tratou do facto de
indisciplina do alunno João Baptista Galvão de Moura Lacerda, e
que deu lugar a instauração do processo que está em andamento,
tem notado que nas sessões de congregação tem havido nas dis-
cussões um azedume, uma acrémonia tal, que tem se tornado de
grande inconveniencia – tanto mais quanto alguns srs. lentes ain-
da depois de findas as sessões continuam fora suas manifestações,
na presença de empregados subalternos e assim concorrendo para
a indisciplina, esquecendo-se de que pelo Regimento da Escola
– art. 170150 – deve haver reserva do que se passa nas sessões da
Congregação. (PROCESSO FRANCISCO XAVIER GAL-
VÃO DE MOURA LACERDA151, 1895, p. 5-6).

149 Base no Decreto de nº 247, de 23 de julho de 1894, que dispõe sobre o regimento da Escola Normal
de São Paulo.

150 Mesmo Decreto da nota 149.

151 O processo encontra-se dentro de uma Caixa no Arquivo Público de São Paulo (APESP), que também
contém vários outros documentos da mesma natureza. A partir das próximas citações ao processo, a
fim de objetivar a fruição do texto, será abreviado o nome de Lacerda apenas com suas iniciais, ficando
assim: FXGML.
O descontentamento de Prestes dá-se, aparentemente, pelo fato do lente
ao sair das reuniões prosseguir debatendo e demonstrando seu desacordo fora
do espaço de discussão. O que chama a atenção nessa situação, descrita na ata, é
que o diretor toma ciência por terceiros desses comentários que Lacerda estaria
fazendo. O restante da ata não indica que Gabriel Prestes chamou o professor
para conversar e alertar sobre essa ocorrência, fazendo apenas essa repreensão em
público.
A ata prossegue sinalizando que o diretor continuou expondo os fatos: o
docente além de estar colaborando para o “azedume” nas reuniões, e de prosseguir
com as discussões fora do âmbito privado que elas solicitam, também teria tido
atrito com os estudantes, por conta de reprovações, recebendo inclusive uma carta
de ameaça dos estudantes retidos. Esses fatos somados, para Prestes, depunham
contra todo um trabalho que a equipe estava realizando em prol do ensino públi-
co. Isso significa que o diretor colocou o grupo todo contra as ações realizadas por
Moura Lacerda, em clara desaprovação à conduta do mesmo.
Durante toda essa explanação, consta que o professor tentou intervir e de-
fender-se, alegando, inclusive, que estava em um “processo inquisitorial” (PRO-
CESSO FXGML, 1895, p. 10), sendo impedido pelo Prestes, uma vez que este
procurava concluir sua linha de raciocínio, para assim, dar o direito de resposta
ao professor – embora, no documento, essa possibilidade de resposta não apareça,
mas faz pressupor que haveria.
Na continuidade da explanação, o diretor menciona que Lacerda o ha-
via procurado diante de uma suposta ameaça recebida pelos estudantes e que o
professor procuraria seus direitos, indo num jornal prestar queixas dessa carta
anônima e “muito mal escripta” (PROCESSO FXGML, 1895, p. 10). Diante
disso, Prestes ironiza a situação, alegando que os alunos da Escola Normal jamais
fariam uma carta daquela natureza, colocando em descrédito o material, dando a
entender que o professor incitava tudo aquilo para gerar tumulto entre os colegas.
Tudo isso teria levado o lente a desferir um soco contra a mesa, quebrando-a.
Imediatamente, Prestes anuncia que a reunião estava suspensa. Por sua vez, Mou-
ra Lacerda se retira afirmando que buscaria seus direitos.
Quais as possibilidades de interpretação das ações de Prestes? Dentre al-
gumas possíveis, mas que não esgotam o debate, focarei em dois conceitos traba-
lhados por Michel Foucault (2010; 2015): soberano e interdição, e no conceito de
mandatário, de Pierre Bourdieu (2004).
O primeiro conceito, soberano, aparecerá nas reflexões do filósofo a respei-
to do Estado, e do poder controlador do mesmo que se manifesta na figura do
soberano. Para Foucault (2010), essa figura detinha o poder de vida e de morte.
Era o soberano quem possuía o “fazer morrer”. Ainda assim, tal poder, por volta
dos séculos XVII e XVIII, diante do advento do Estado Moderno e toda a buro-

343
cratização que ocorre, começa a sofrer modificações, graças à técnica da disciplina.
Depois, em meados do século XX, se constitui uma nova técnica de poder, que é
chamada pelo autor de biopoder. Ambas, disciplina e biopoder, não extinguem o
soberano, mas faz com que o mesmo ganhe outros contornos.
É possível pensar que o soberano agora é essa figura, revestida de autorida-
de, que faz com que a disciplina e o biopoder se instaurem, sejam resguardados e
que se perpetuem. Assim, o soberano não é mais um agente único e exclusivo, que
está à frente da nação, mas está espalhado por diferentes áreas, diferentes lugares,
são os chefes que vão ocupando postos chave na sociedade, determinando os que
podem morrer ou não. Entretanto, aqui cabe uma ressalva crucial: socialmente
a morte se estabelece em diferentes níveis, até chegar à morte física de fato. A
fala/escrita, a expressão, o colocar-se diante das ocasiões é uma forma legítima
de existência. Cercear ou controlar isso, significa, em alguma medida, impedir
que a vida do indivíduo aconteça ou que se dê em sua plenitude, uma vez que
a pessoa se relaciona e se apresenta a partir do que fala/escreve. O controle ou
cerceamento encontram-se nas reflexões do filósofo a partir da ideia de interdição
(FOUCAULT, 2015).
Segundo o autor:
Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedi-
mentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também,
é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer
tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância,
que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. [...]
(FOUCAULT, 2015, p. 84).

A interdição é esse mecanismo de poder que silencia os indivíduos em seu


posicionamento, na forma de se portar. O soberano é aquele que averigua e tutela
a aplicabilidade da interdição, é aquele que legitima ou não o que é dito/escrito.
No caso aqui analisado, Gabriel Prestes pode ser interpelado com o con-
ceito de soberano? Seria ele um soberano naquela microrrelação que acontecia na
Escola Normal? O soberano, enquanto técnica de poder, pressupõe que o agente
seja autoritário em seus posicionamentos, todavia nas relações sociais, sobretudo
nas educacionais, há uma dimensão muito mais complexa, do que a do mero au-
toritarismo. Um conceito que pode colaborar na compreensão das tensões é o de
mandatário, utilizada por Pierre Bourdieu (2004).
Refletindo sobre o conceito em Bourdieu, afirmei em outra ocasião que:
“Para o sociólogo, o mandatário é aquele escolhido para representar o grupo.
Desta feita, quando fala, não fala apenas por si, mas pelo grupo; suas ações são as
ações do próprio grupo” (BARROS, 2020, p. 67). No referido processo em ques-
tão, o diretor da Escola Normal, Gabriel Prestes, é esse indivíduo que não fala e
se posiciona apenas por si, ele representa toda a comunidade escolar e mais, todo

344
o governo que o colocou lá. Como elemento que demonstra ainda mais a tensão
em jogo, o diretor tinha abandonado o cargo de deputado estadual para assumir
a direção da Escola. Assim, ser mandatário, nessa condição, tem um peso ainda
maior, pois qualquer ocorrência dentro da instituição seria indagada por diversos
outros órgãos estatais e institucionais.
Nesse sentido, cabe interpretar a reação do professor Moura Lacerda, em
contraponto a postura adotada por Prestes.

Lacerda e sua autodefesa

Como explicado anteriormente, o lente de Inglês, diante das falas do di-


retor da Escola Normal durante a congregação, por algumas vezes teria tenta-
do indagar quando teria a oportunidade de se posicionar, chegando, inclusive, a
mencionar que aquilo era um processo inquisitorial, uma vez que toda a reunião
teria sido destinada a apenas se falar dele. Na ocasião, Prestes teria chegado a afir-
mar que as ações do docente eram claramente feitas para “desprestigiar a Institui-
ção” (PROCESSO FXGML, 1895, p. 12). Diante dessas acusações, o professor
Moura Lacerda teria desferido um soco contra uma carteira e saído da reunião
revoltado, alegando que tudo aquilo era “uma offensa á sua dignidade que saberia
defender ali, fóra, pelos jornaes e por toda a parte” (PROCESSO FXGML, 1895,
p. 13).
A ação do docente pode ser vista e interpretada à luz do conceito de auto-
defesa, explicado pela filósofa Elsa Dorlin (2020). Pautada em Foucault, Dorlin
observa que, historicamente, as minorias sociais152 não possuem o direito a se de-
fenderem dos ditames do Estado e de seus representantes, quando esses abusam
do poder outorgado a eles.
A autora se baseia, por exemplo, no caso de Rodney King, nos idos da
década de 1990, em que mesmo sendo filmada a agressão policial contra ele, e
que sua tentativa de defesa visava preservar sua própria vida, ainda assim o indi-
víduo foi preso e condenado pelo júri. Para a autora isso simboliza a forma que a
sociedade se estrutura de fazer valer e assegurar o poder estatal, bem como uma
ideia de que todos aqueles que se rebelam contra esse poder, mesmo que seja para
defenderem sua existência, ainda assim são, a priori, vistos como errôneos, ou seja,
os papéis são trocados: o agredido, que reage, é compreendido como o agressor, e
o primeiro se torna a vítima. No caso de King, e em vários outros contextos em
que a raça aparece como questão, Dorlin, pautada em Judith Butler, ampara-se

152 Por minorias sociais, a autora toma especificamente os negros e as mulheres, ao longo da obra. O con-
ceito pode ser alargado e incluir grupos estrangeiros, ocupantes de terra e moradores do interior, por
exemplo.

345
na ideia do “campo de visibilidade racialmente saturado” (DORLIN, 2020, p. 21),
que significa que previamente as pessoas já tendem a se portar condenando o
negro por seus movimentos, mesmo que esses sejam defensivos.
O trabalho da autora permite um desdobramento, para que se reflita que
há um campo de visibilidade socialmente saturado para as minorias de modo
geral, uma vez que toda reação contra os atos abusivos do Estado por parte des-
sas pessoas e grupos, são vistos e entendidos como violentos e ilegítimos. Por
exemplo, na continuidade da ata aqui analisada, os demais professores da Escola
Normal prestam solidariedade ao diretor Gabriel Prestes:
A Congregação da Eschola Normal de São Paulo, lamentando o
excepcional e inqualificavel desacato que com ella soffreu o Di-
rector, e manifestando á este seu pleno apoio em desaggravo jus-
to que o caso exige, passa a funccionar segundo a ordem de seus
trabalhos ordinarios (PROCESSO FXGML, 1895, p. 13-14).

Esse é um exemplo de como a autodefesa é compreendida socialmente


como um equívoco, um disparate, uma violência desmedida e impensada, algo,
como os professores assinalaram “inqualificável”.
A situação é ainda mais complexa, pois a Escola Normal, de quando data
o processo, é compreendida pelos historiadores como parte do período áureo da
instituição (MONARCHA, 1999), o que significa que apenas os “melhores” eram
escolhidos para trabalhar ali. Nesse sentido, compreendendo que a educação era
algo ainda extremamente restrito, a quase totalidade dos ingressados na Escola
Normal de São Paulo pertencia à elite; Moura Lacerda devia pertencer a uma fa-
mília abastada ou, ao menos, portadora de capital social. O que permite questio-
nar: em uma hipótese remota, se um professor negro, periférico, ou uma mulher,
mesmo de classe abastada, se tornasse professor(a) na Escola Normal, o que teria
sido feito com ele(a) na mesma situação? Qual seria a postura de Prestes? E dos
professores? Seriam mais brandas ou agressivas?
A complexidade da situação é que mesmo pertencendo à elite, tendo aces-
so a jornal – o professor denuncia a ameaça sofrida pelos estudantes no jornal A
Platéa –, a autodefesa do docente não é compreendida, muito pelo contrário, é
interpretada como uma postura agressiva e de extrema incivilidade, desrespeitan-
do o diretor e os colegas. O que faz pensar sobre como a postura dos demais pro-
fessores, e o quanto essa ação de desqualificarem o lente aponta para um habitus
professoral que se consolidava.

346
Reação dos professores: considerações sobre o habitus professoral

O conceito de habitus na obra de Bourdieu é extremamente complexo,


pois o sociólogo sempre recupera tal conceito e acresce novos pontos de vista,
ou quando não, refuta argumentos anteriores sobre a temática. Ainda assim, o
habitus é algo que se constituí na prática, é dentro do fazer cotidiano que o agente
vai incorporando determinados acontecimentos e interiorizando formas de agir
e pensar coletivamente. Para o autor, seriam “disposições adquiridas pela experi-
ência, logo, variáveis segundo o lugar e o momento.” (BOURDIEU, 2004, p. 21,
grifos do autor), é um “conhecimento sem consciência”, “uma intencionalidade
sem intenção” (BOURDIEU, 2004, p. 24). Nesse sentido, o habitus é uma ação
que o indivíduo faz sem ter clareza que aquilo foi construído nas relações e não
algo espontâneo do mesmo.
Quando aqui se menciona a ideia de um habitus professoral, quer-se explici-
tar que as formas com as quais os professores pautam suas ações são constituídas
socialmente com seus pares, estudantes, pais/responsáveis pelos estudantes e su-
periores. Em outra ocasião (BARROS, 2020), indiquei que as pesquisas educa-
cionais, na maioria das vezes, trabalham a ideia do habitus professoral apenas com
o docente em classe, ignorando que há outras dimensões que são vitais na forma
de agir dos profissionais. O processo contra Moura Lacerda é um exemplo disso.
A primeira reação dos professores após o encerramento da reunião, lem-
brando que em todo o momento durante a assembleia não se expressaram, mes-
mo quando mencionados pelo diretor, foi de atestarem a autoridade de Prestes e
de desqualificarem a postura do lente. O que chama a atenção é a unanimidade
disso, o que faz inquirir: em que momento o consenso se constituiu? Não seria
isso, o apoio quase que irrestrito à autoridade, fruto do habitus professoral? Não
seria uma marca docente sempre apoiarem os superiores em detrimento dos pa-
res? O que revela, talvez, uma dificuldade de se posicionar publicamente contra
o chefe. Não seria próprio do habitus professoral uma conivência com as demons-
trações de autoridade, uma vez que em classe o professor também é essa figura
detentora da autoridade?
A postura dos docentes na reunião da Escola Normal dão subsídios para
inferir que o habitus professoral é essa “intencionalidade sem intenção” (BOUR-
DIEU, 2004, p. 24), que permite com que os profissionais estejam dentro do jogo
(BOURDIEU, 2011) e que o joguem tendo as regras implícitas dentro de si.

Considerações finais

O presente texto buscou, a partir de um processo disciplinar, mais especi-


ficamente da ata anexada na abertura do processo, demonstrar como as relações

347
dentro das escolas são complexas, densas e de disputas, permeadas pelo poder que
circula entre os agentes. A ideia aqui não é esgotar a temática, muito pelo contrá-
rio, ainda há uma carência de pesquisas para que se notem como essas disputas
constituem o habitus professoral. Ainda assim, o processo contra Moura Lacerda
permite retornar ao acontecimento em novembro de 2021 e questionar: seria o
silêncio dos professores, naquela reunião em que apenas a diretora se deu o direi-
to de falar, parte do habitus professoral? Quantos silêncios e, consequentemente,
apagamentos políticos de agentes educacionais, se dão a partir desse habitus? Será
que o soco na mesa, a “fala atravessada” ou ríspida, as ações reativas diante dos
exercícios de autoridade, ainda são vistos e entendidos pelos pares como agres-
sivos e desmedidos? O quanto a autodefesa dos indivíduos ainda é interpretado
erroneamente ainda hoje e condenado pelos colegas de forma muito mais sutil e
perversa, quando este tenta defender seu direito a expressão?
Olho para mim mesmo, quando comecei a receber os relatos dos colegas
sobre a reunião e toda a inércia que fui acometido diante de uma injustiça que foi
legitimada pela autoridade. Falhei com o grupo em silenciar-me e colaborando
para o silenciamento deles. Parece-me que este escrito foi à forma de tentar, não
só pelas minhas ponderações pessoais, olhar científica e historicamente e perce-
ber que nossa história é feita de vários emudecimentos. Essa, com todos os riscos
que estão implícitos em uma pesquisa científica, de forma sucinta e certamente
insuficiente, é uma maneira de romper com esse silêncio prolongado. Essa foi à
forma de responder à questão levantada por Álvaro de Campos, heterônomo de
Fernando Pessoa, que está na epígrafe deste texto. Foi a forma que encontrei de
desferir o meu soco contra a mesa.

Referências

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Processos disciplinares


1895 (Caixa 4998). Ano 2019.

BARROS, Gabriel Meneses. “Decididamente: as nossas escolas estão dando triste


nota de si”: processo disciplinar na Escola Normal de São Paulo como subsídio para
compreensão da história das disciplinas escolares. In: CARLOS, Soraia Regiane;
LOURO, Heloísa Amorim Pereira; BARROS, Gabriel Meneses (orgs.). A contribuição
e o funcionamento da Escola Normal de São Paulo: sujeitos e saberes. Curitiba: Appris,
2022.

BARROS, Gabriel Meneses. “Há mister de saber que os subalternos também têm o direito
de ser ‘respeitados’”: processos disciplinares contra professores paulistas (1887–1896).

348
Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. UNIFESP –
EFLCH, 2020.

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Tradução: Mariza Côrrea.
Campinas, SP: Papirus, 2011.

DEGANI, Maria Theresinha. Aspectos mais significativos da Instrução Pública no Estado


de São Paulo na primeira década republicana. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras, UNESP, Araraquara, 1973.

DORLIN, Elsa. Autodefesa: Uma filosofia da violência. Prefácio Judith Butler.


Traduzido por Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Crocodilo/Ubu
Editora, 2020.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975–


1976). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. (Coleção obras de Michel
Foucault).

FOUCAULT, Michel. Gênese e estrutura da antropologia de Kant & A ordem do discurso.


São Paulo: Folha de São Paulo, 2015. Coleção Folha. Grandes nomes do pensamento,
v. 6.

LOPES, Eliane Marta Teixeira. Da sagrada missão pedagógica. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2017

MONARCHA, Carlos. Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 1999.

SÃO PAULO. Decreto 247, de 23 de julho de 1894. Disponível em: https://www.al.sp.


gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1894/decreto-247-23.07.1894.html Acesso em:
12 jan. 2022.

349
17. PRÁTICAS LIBERTÁRIAS EM EDUCAÇÃO
- A ESCOLA MODERNA N. 1 (1913-1919)

Renan Leocádio Souza

Alguns aspectos da educação libertária

Para falar sobre educação libertária é necessário que, antes, sejam esclareci-
dos dois termos relativos aos princípios que a norteiam: anarquismo e libertaris-
mo. De maneira geral, os anarquistas apresentam uma crítica à ordem existente,
rejeitando todas as formas coercitivas de autoridade externa a fim de conquistar
uma sociedade livre e igualitária. Peter Marshall (2008) explica que o anarquismo
é como um rio de muitas correntes e redemoinhos, tanto do ponto de vista das
ideias quanto do das estratégias: as principais vertentes são a mutualista-federa-
lista, a coletivista, a comunista e a sindicalista. Como o anarquismo é antidogmá-
tico, não há uma apenas uma vertente aceita nem uma rigidez na interpretação da
realidade ou no plano de ação revolucionária. O libertarismo é algo mais abran-
gente, compreendendo diferentes posições dentro do campo anticapitalista, tendo
a liberdade como um valor supremo e buscando os poderes governamentais o
mínimo possível (Marshall, 2008). É ligado “às lutas antiautoritárias que têm por
base a oposição à dominação e a aspiração à liberdade [...] pautadas em princípios
mais amplos” (Corrêa, 2015, p. 91).153
Seja para anarquistas, seja para os libertários, a liberdade é entendida como
negação da autoridade e possibilidade de pensar e agir segundo a própria consci-
ência ou as leis naturais; ela só se realiza à medida que se coloca fim às hierarquias
e às instituições coercitivas que buscam controlar as pessoas (Estado, Capital,
Igreja), respeitando as individualidades e as diferenças de cada grupo ou comu-
nidade.
No meio anarquista, a educação possui destaque, pois é entendida como
ação direta, principal ferramenta de crítica e conscientização, fundamental para

153 O termo libertário é tratado, geralmente, como sinônimo de anarquista, cuja origem remonta às discus-
sões que dividiram a Primeira Internacional em 1872: de um lado, os comunistas adeptos das teorias
e propostas de Karl Marx (“socialismo autoritário”); de outro, os anarquistas alinhados ao pensamento
de Mikhail Bakunin (“socialismo libertário”). Enquanto a “anarquia” possui carga semântica de ne-
gação (sem governantes; sem patrões; sem hierarquias), “libertário” possui carga semântica afirmativa
(defesa da liberdade, controle da própria vida, autogestão). Como alerta Felipe Corrêa (2015), o termo
anarquista é anterior ao termo libertário, e, ao longo da história do movimento, libertários viriam a ser
chamados de anarquistas.

350
realizar a transformação política e social almejada. Para os anarquistas, a educação
é vista de maneira ampla, abrangendo tanto a educação formal (oferecida pelas
escolas e universidades populares) quanto a informal (jornais, revistas, teatros,
cinemas, centros de cultura, ateneus, festas, palestras, conferências, cursos em sin-
dicatos etc., além de mobilizações como boicotes e greves serem também, por
assim dizer, “educativas”).
Segundo Félix G. Moriyón (1989), os anarquistas estavam plenamente
conscientes de que, para modificar a sociedade, não bastava a educação crítica e
engajada – a classe trabalhadora precisaria romper com a ignorância para poder
enfrentar a ordem social capitalista –, somente a revolução efetivaria a abolição
da propriedade privada e do Estado. A educação, por assim dizer, “prepararia o
terreno”, ativaria as consciências, formaria homens novos (indivíduos comple-
tos, intelectual e moralmente, autônomos, livres e solidários) que promoveriam a
instauração de uma sociedade distinta, totalmente libertária. A educação escolar
e as questões pedagógicas e gestionárias vão, pouco a pouco, ganhando forma
e definindo o que se passou a chamar de pedagogia libertária, cujos principais
elementos são:154
• Autogestão – subtrair ao Estado o controle de certas instituições sociais,
que passam a ser mantidas e organizadas pelos próprios trabalhadores. Especi-
ficamente na educação, compreende a) autogestão institucional: administração
de organizações fundadas e geridas coletivamente por seus membros, cujas deli-
berações, como rumos, obtenção e aplicação de recursos, são tomadas coletiva e
horizontalmente; b) autogestão pedagógica: trata-se de uma “educação negativa”,
ou seja, um método de aprendizagem no qual o professor renuncia a seu papel
de autoridade que simplesmente transmite conhecimentos, e passa a organizar
as aulas na qualidade de um “consultor” que orienta os grupos de alunos em seus
estudos, tarefas e pesquisas, respeitando seus interesses, vontades e limites; por
vezes, os próprios alunos definem o que e como estudar.
• Antiautoritarismo – compreende a não aceitação de uma autoridade im-
posta, pois é ilegítima e se impõe diante do grupo por meios opressivos. O an-
tiautoritarismo pedagógico segue a tendência não diretiva de ensino, assumindo
os princípios da liberdade infantil presentes em Rousseau, mas vai além. Trata-se,
por um lado, da: a) negação da obediência, que se manifesta enquanto recusa à
heterodeterminação e à imposição de ordens, somada à visão de que se deve pro-
piciar a centralidade pedagógica no aluno, encorajando-o a ser espontâneo, soli-
dário e exercer a liberdade; por outro lado, observa-se a b) negação do controle,
ou seja, uma crítica ao monopólio e ao consequente abuso do poder por parte do

154 Os elementos sobre a pedagogia libertária foram extraídos de Moriyón (1989), Pey (2000), Gallo
(2007), Lipiansky (2007), Marshall (2008), Santos (2009), Chahin (2013), Castro (2014) e Leutprecht
(2018).

351
professor, não mais visto como dono do saber, infalível, mas alguém que contri-
buirá para o aprendizado das crianças e servirá de guia do saber e da moralidade,
sem com isso ter de apelar para recursos como “prêmios” ou “castigos”.
• Educação integral – pressupõe o melhor ensino que se pode garantir a
todos os indivíduos a fim de desenvolverem suas potencialidades e tornarem-se
completos e autônomos, rompendo com a ideia então hegemônica de que à clas-
se trabalhadora caberia uma educação voltada essencialmente para o trabalho.
Contempla, de maneira harmônica, os aspectos a) físicos (desenvolver músculos
e cérebro, por meio de atividades recreativas, exercícios físicos, esportes, trabalhos
manuais, ensino técnico e prático voltados ao trabalho), b) intelectuais (desenvol-
ver o pensamento por meio do conhecimento teórico, racional, científico, livre de
dogmas, saber formular uma opinião e argumentar) e c) morais (valorização da
autonomia do indivíduo, estímulo à solidariedade e à responsabilidade, somando-
se as críticas anticapitalista, antiestatal e anticlerical). A educação integral, por-
tanto, é a solução anarquista frente ao ensino religioso e estatal, a fim de preparar
o indivíduo para o trabalho, para compreender o mundo e para agir no mundo.
• Coeducação de sexos e classes – parte do princípio de que compor tur-
mas com alunos de ambos os sexos e de diferentes classes sociais promove um
ambiente plural e igualitário. Meninos e meninas, independentemente de suas
origens, podendo receber a mesma educação, terão direito de escolha, definirão
seu futuro de acordo com suas aptidões e interesses, não sendo limitados pelo
papel social que deveriam cumprir, pela imposição de normas sociais ou por não
terem privilégios de estudo exclusivos de um grupo.

A renovação pedagógica e a pedagogia libertária

O movimento escolanovista, que se constituiu no final do século XIX en-


quanto um conjunto de ideias pedagógicas propostas por pensadores de diferen-
tes áreas, buscava romper com o modelo educacional hegemônico e apresentar
novas concepções.155 Propôs um novo paradigma pedagógico ao reconhecer a
centralidade no aluno e entender que ele pode aprender numa relação imediata

155 Dentre seus expoentes destaco J. Dewey (1859-1952), defensor da aprendizagem através de atividades
livres enquanto experiências, formou-se em Filosofia; M. Montessori (1870-1952), pioneira na ela-
boração de recursos, materiais e mobiliários adequados às crianças para situações relacionadas à vida
prática, especializou-se em Pediatria e Psiquiatria; W. H. Kilpatrick (1871-1965), reconhecido pelo
método de projetos, inicialmente graduou-se em Matemática e Física; J.-O. Decroly (1871-1932),
precursor do espontaneísmo (centros de interesse) e de um modelo de ensino não autoritário e não
religioso, formou-se em Medicina; É. Claparède (1873-1940), atento a uma educação individualizada,
sem negar sua importância socializadora, formou-se em Medicina e Psicologia; J. Piaget (1896-1980),
que muito contribuiu para a investigação da natureza do desenvolvimento da inteligência infantil,
formou-se em Biologia e Psicologia; R. Cousinet (1881-1973), que desenvolveu o método de trabalho
por equipes, graduou-se em Letras (Di Giorgi, 1992).

352
com o objeto do conhecimento, sendo este articulado com a vida e o contexto no
qual a criança está inserida. O saber pode ser adquirido por meio do raciocínio
durante a realização de experiências (“trabalho”, projetos, atividades práticas, pre-
ferencialmente manuais, jogos, excursões ou estudos do meio, observação direta:
métodos ativos e criativos que instiguem ou satisfaçam uma curiosidade). Novos
espaços, novos recursos, nova relação professor-aluno e aluno-aluno são reconhe-
cidos. A autodisciplina e o apreço à democracia eram princípios elementares e se
desenvolveriam, naturalmente, no ato e na convivência.
Em comum, a Escola Nova e a Pedagogia Libertária buscavam, em termos
gerais:
• Orientar os estudos a partir do “ativismo”, do interesse e da participa-
ção, ou seja, dar ênfase a atividades práticas que permitam aos alunos
aprender mediante a curiosidade, jogos, passeios ou saídas de campo,
reflexão, pesquisa, levantamento de hipóteses, de forma a apresentar
suas próprias conclusões. O aprendizado seria essencialmente ativo
e colaborativo, pois demanda a interação dos alunos entre si e com o
objeto em estudo.
• Respeitar o desenvolvimento natural das crianças para que as ativida-
des propostas e os assuntos trabalhados sejam mais bem assimilados.
Há também o reconhecimento das particularidades de cada criança,
com programas e prazos flexíveis a fim de que ela aprenda de acordo
com seu interesse, capacidade e ritmo, valorizando a liberdade, a cria-
tividade, a espontaneidade e a individualidade. O professor não deve
ser um sujeito opressor ou disciplinador, mas atento, bom ouvinte, pa-
ciente, que não exige a obediência da criança ou a mera reprodução de
conteúdos e valores, mas que procura despertar suas possibilidades e
desenvolver suas virtudes.
• Eliminar o sistema de premiações e castigos, pois as notas e menções
honrosas são entendidas como formas de hierarquizar e destacar os
“melhores”, que mereceriam ser admirados, em detrimento dos “fra-
cos” ou “inferiores”; os castigos provocam medo, obediência garantida
pela exposição vexatória, sofrimento físico, cerceamento da liberdade.
• Garantir a coeducação dos sexos, de forma oferecer às meninas os
mesmos conteúdos e métodos dispensados aos meninos. Ao dividirem
o mesmo espaço e realizarem as mesmas tarefas, meninas e meninos
convivem e respeitam-se mutuamente, contrapondo uma relação so-
cial que coloca os homens em posições hierarquicamente superiores às
mulheres, exercendo papéis sociais específicos, como se suas aptidões
ou capacidades fossem determinadas pelo gênero.

353
Libertários, progressistas e outros grupos, por compartilha-
rem o mesmo clima de renovação pedagógica, fizeram uso dos
mesmos instrumentos de ensino e, em certos casos, inclusive
de uma mesma linguagem educativa. A questão central, funda-
mental para entender um e outro discurso, é o reconhecimento
dos objetivos para os quais cada qual lançou suas propostas de
educação (CHAHIN, 2013, p. 190).

As características distintivas mais evidentes entre a Escola Nova e a Peda-


gogia Libertária se resumem a: 1) enquanto a Escola Nova educa apenas por meio
da liberdade, a Pedagogia Libertária educa por meio da e para a liberdade; 2)
enquanto a Escola Nova valoriza a individualidade e as capacidades adaptativas
da criança ao meio social, a Pedagogia Libertária preocupa-se em promover espí-
ritos questionadores/críticos e, por que não dizer, combativos contra as injustiças
e desigualdades e solidários entre si.
O caráter antiautoritário da pedagogia libertária é coerente com a perspec-
tiva política e social anarquista, pois “se era imprescindível suprimir o Estado, isto
seria impossível sem abolir tanto a opressão que aquele gera como a submissão
que fomenta entre os seres humanos, e os lugares em que essa submissão se de-
senvolve, como a família e a escola” (MORIYÓN, 1989, p. 17). Em suas escolas,
portanto, punições e prêmios deveriam ser extintos, pois trazem angústia e so-
frimento; busca-se, pelo contrário, fazer surgir a autodisciplina entre os alunos.
A solidariedade, segundo Félix G. Moriyón (1989), é a chave de todo
o projeto pedagógico anarquista, iniciando-se pela eliminação das formas de
competitividade, refletida, por exemplo, em notas ou conceitos. Esse princípio
é compatível com o anarco-comunismo, na medida em que pessoas com diferen-
tes capacidades devem se ajudar mutuamente, os “mais produtivos” ou “menos
talentosos” colaborando para que não falte para os “menos produtivos” ou “menos
talentosos”. Deve-se também respeitar a diversidade, uma das facetas da luta por
igualdade na sociedade, mas não de forma a destacar as diferenças que poderiam
reproduzir os preconceitos (de gênero, raça, origem social, credo ou outro). Como
o sistema de prêmios e castigos da escola tradicional envaidece o ego de alguns
e humilha tantos outros, podendo servir como instrumento de poder (por parte
dos professores) e obediência (por parte dos alunos), também deve ser eliminado.
As experiências pedagógicas da escola rural de Iasnaia Poliana (1859-62,
dirigida por Liev Tolstói), do orfanato Prévost (dirigido por Paul Robin entre
1880-94), da Escola Moderna de Barcelona (1901-09, dirigida por Francis-
co Ferrer y Guardia) e da escola-comunidade La Ruche (1904-17, dirigida por
Sébastien Faure), a despeito dos diferentes contextos e de suas particularidades,
possuíam em comum o fato de serem iniciativas voltadas para a educação popular,
sendo contrárias ao modelo hegemônico. Desenvolveram práticas para superar a

354
educação livresca através de um ensino ativo, baseado na curiosidade, na espon-
taneidade, na observação e na livre conversa e composição. Buscavam valorizar o
repertório e as vivências das crianças. Preocupavam-se com o desenvolvimento
pleno dos alunos, suas virtudes e aptidões, a formação para o trabalho e a socie-
dade. Para tanto, a liberdade deveria ser a máxima educativa (liberdade das ideias
e dos corpos, dos horários, dos programas, das normas de conduta, somando-se
ao antiautoritarismo dos professores e à eliminação do sistema de prêmios e cas-
tigos). Lutavam para garantir a coeducação de meninos e meninas, apostavam na
ciência e estimulavam a solidariedade entre as crianças.

A Escola Moderna n. 1 em contexto

Após a instauração do regime republicano, políticos e homens de letras de-


fensores do positivismo passaram a atribuir novo estatuto à educação, responsável
por “regenerar as populações brasileiras, núcleo da nacionalidade, tornando-as
saudáveis, disciplinadas e produtivas” (CARVALHO, 2003, p. 14). Sobre a edu-
cação repousavam expectativas de progresso econômico e social, esclarecimento e
formação do cidadão. Nesse contexto, observa-se o entusiasmo pela educação, que
Jorge Nagle (2009, p. 115) define como a “crença de que, pela multiplicação das
instituições escolares, pela disseminação da educação escolar, será possível incor-
porar grandes camadas da população na senda do progresso nacional e colocar o
Brasil no caminho das grandes nações do mundo”.
Para oferecer um ensino primário à altura destes novos desafios era preciso
formar melhor o professor. A Escola Normal Caetano de Campos, cuja nova sede
foi inaugurada em 1894, correspondeu a um novo projeto de ensino e, portanto,
a uma reconfiguração da antiga Escola Normal de São Paulo. Ela foi responsável
por inovações didáticas e pela “difusão dos valores republicanos e [era] compro-
metida com a construção e consolidação do novo regime” (SOUZA, 1998, p. 29).
Além de um novo modelo de Escola Normal, São Paulo também “ex-
portou” os primeiros grupos escolares, sendo o modelo predominante de ensino
primário durante aproximadamente sete décadas (SOUZA, 1998). Os grupos
escolares reuniam em um mesmo espaço diferentes escolas de “primeiras letras”,
dividindo os estudantes em faixas etárias correspondentes às respectivas séries,
com uma nova organização curricular e administrativa, empregando-se o método
intuitivo. Apesar dos esforços em modernizar os métodos e práticas de ensino, a
escola primária fundamentava-se, essencialmente, em princípios como a progres-
sividade, a memorização e a autoridade do professor, que fazia uso de prêmios e
castigos como recurso disciplinador.
Enquanto se buscava promover melhorias para a educação do povo, a con-
dição do trabalho se deteriorava nas grandes cidades: condições insalubres, riscos

355
na operação de máquinas, baixos salários, longas jornadas, disciplina rigorosa,
ausência de férias, entre outros problemas. Para a classe operária, ficava cada vez
mais claro que a conquista de melhores condições de trabalho e vida somente
viria por meio das lutas diárias. Não restava alternativa a não ser se organizarem
em associações, sindicatos e partidos operários.
Nas duas primeiras décadas do século XX, cerca de metade da mão de obra
empregada na indústria paulistana era composta por imigrantes, muitos deles
simpatizantes da causa libertária. As principais formas de ação direta eram mobi-
lizações coletivas como passeatas, comícios, greves e propaganda de seus princí-
pios e táticas (sindicatos, jornais, dramaturgia, livros, centros de cultura, escolas).
A educação escolar teria papel fundamental no processo de formação dos valo-
res das novas gerações – formar-se-ia uma “barricada permanente” (CASTRO,
2014) até que as consciências e as condições sociais estivessem prontas.
O modelo educacional mais difundido nos meios libertários naqueles anos
foi justamente o racionalismo pedagógico proposto por Francisco Ferrer y Guar-
dia na Escola Moderna de Barcelona.156 A educação racionalista proposta por
Ferrer (2014) está pautada em oito conceitos: a educação é inseparável da re-
volução; a educação deve desenvolver-se na e para a liberdade; a educação deve
desenvolver o ser humano integralmente; a educação deve promover o específico
de cada pessoa; a educação deve fazer um ser humano moral e solidário; uma nova
educação exige um meio social livre; a educação não reduz sua ação à infância; a
educação não está circunscrita a algumas instituições escolares.
O ensino racionalista foi defendido abertamente pelos anarquistas, pois ia
ao encontro de muitos dos valores libertários, tais como anticapitalismo, anticle-
ricalismo, antiestatismo, antiautoritarismo, autonomia e emancipação do indiví-
duo e transformação social. Outros elementos da Escola Moderna de Barcelona
que eram caros aos educadores libertários consistiam na coeducação das classes e
dos sexos e na disseminação do conhecimento científico, seja por meio de perió-
dicos e livros, seja por eventos e aulas abertas.
Os editores d’A Lanterna, jornal anticlerical paulistano, procuravam man-
ter a imagem de Ferrer atrelada à ideia de livre-pensador comprometido com
uma educação emancipadora e libertadora, com ideias avançadas e revolucioná-
rias para o contexto espanhol. Isso teria gerado a reação da realeza, das elites e do
clero espanhol, e Ferrer foi por isso condenado e executado. Por meio desse peri-

156 A Escola Moderna de Barcelona despertou reações hostis dos setores mais conservadores da Espanha,
em particular das autoridades governamentais, da alta burguesia e da Igreja Católica. Em 1906, após
um julgamento claramente político por suposto envolvimento no atentado da Calle Mayor, Ferrer foi
duplamente punido: sua escola foi fechada e sua prisão decretada. Devido a dificuldades financeiras,
a Escola Moderna não pôde ser reaberta. Ferrer seria novamente acusado de liderar os atos violentos
da “Semana Trágica” e, dessa vez, sentenciado à pena de morte (1909) – foi condenado sem que se
apresentassem provas factuais e sem direito a testemunhas de defesa (SILVA, 2013).

356
ódico se organizaram campanhas para obter recursos para a fundação de escolas
modernas (racionalistas) em São Paulo.
A Escola Moderna n. 1,157 que funcionou em São Paulo entre 1913 e
1919, tornou-se a escola libertária brasileira de maior destaque e longevidade
(LEUTPRECHT, 2018). Ela foi
criada e gerida por um comitê composto por dirigentes e mi-
litantes do movimento operário e também por representantes
de outros segmentos da sociedade, como profissionais liberais
e maçons. Os anarquistas exerceram hegemonia sobre o gru-
po. [...] Com ideias simples, porém contundentes, os libertários
atacaram os fundamentos da ideologia dominante, criticaram a
educação fornecida pelo Estado e pela Igreja. Para os libertários,
a luta pela instrução se inseria no contexto das demais batalhas
que se desenrolavam no sentido de recuperar instrumentos de
atuação social historicamente monopolizados pelas classes diri-
gentes. Insistiam na necessidade da educação como instrumento
de atuação social (CALSAVARA, 2004, pp. 139 e 152).

Pode-se atribuir a oficialização da Escola Moderna à publicação, no Diário


Oficial de 7 de outubro de 1913, do Estatuto da Sociedade “Escola Moderna”,
lavrada no Registro de Notas Cartoriais em 10 de outubro de 1913:
Art. 1º. A sociedade “Escola Moderna”, cuja duração é por tem-
po indeterminado, fundada na capital do Estado de S. Paulo,
em 17 de novembro de 1909, onde tem a sua sede, é o conjunto
de número ilimitado de sócios de ambos os sexos, que queiram
contribuir para os fins da sociedade, que são:
A – Criar escolas para nelas se ministrar a educação às crianças
e adultos, baseada no método objetivo e racional de ensino, e
consequentemente separada de qualquer noção mística ou so-
brenatural;
B – Criar bibliotecas e promover conferências de educação po-
pular;
C – Publicar uma revista pedagógica com o escopo de propagar
o método objetivo e racional de ensino entre o professorado e
as famílias.

A viabilização da Escola Moderna n. 1 foi fruto de uma grande campanha


de arrecadação de fundos iniciada em 1909. Dirigida por João Penteado, situava-

157 Antes da fundação da Escola Moderna n. 1 (1913), surgiram no Brasil diversas escolas fundadas por
princípios pedagógicos libertários: Escola União Operária (Porto Alegre, 1895), Escola Libertária
Germinal (São Paulo, 1903), Escola Sociedade Internacional (Santos, 1904), Escola Emílio Zola
(1904), Escola Elisée Reclus (Porto Alegre, 1906), Escola Germinal (Fortaleza, 1906), Escola União
Operária (Franca, 1906), Escola Noturna (Santos, 1907), Escola Livre (Campinas, 1909), Escola Ra-
cionalista da Água Branca (São Paulo, 1909), Escolas da Liga Operária (Sorocaba, 1911), Escola Ope-
rária 1º de Maio (Rio de Janeiro, 1912), Escola da União Operária (Franca, 1912) e Escola Moderna
(Petrópolis, 1913), entre outras.

357
se no Belenzinho, próximo à Mooca e ao Brás, um bairro operário cujos setores
econômicos mais comuns eram o vidreiro, o têxtil, o comerciário e o tipográfico.
A obra realizada por esta benefica instituição, se bem que mo-
desta, não deixa de ser digna de interessar todos os espíritos
elevados e todas as inteligecias esclarecidas que se preocupem
seriamente com o renovamento social operado nas consciências,
pela escola.
Obra modesta dissemos, porque sem dispor dos meios neces-
sários para proporcionar, em larga escala, ensino racional e in-
tuitivo a toda infância que dele carece, é apezar de tudo uma
tarefa que tende a alargar-se, a firmar-se no espirito publico e
a conquistar os seus incontestáveis direitos á consideração dos
homens de saber e de pensamento.
A Escola Moderna é um ideal a realizar-se. Como o vejetal que
nasce duma simples semente, primeiro débil e frágil, sem dar
nas vistas de alguem, depois se vai desenvolvendo e robuste-
cendo, até se tornar planta copada e frutifera, proporcionando
nos sombra, frutos, lenha, madeira e embelezando a paizagem,
assim também a Escola Moderna, hoje obra humilde, amanhã
sé robustecerá, se alargará e se imporá á consideração publica
quando com a criação de escolas em todos os bairros de S. Paulo
e por todo o interior for espalhando os beneficios do seu ensino,
disciplinando os espiritos, elevando as inteligencias, estofando o
entendimento, enfim orientando e libertando.
O que é preciso é que todos que compreendam o alcance deste
empreendimento não neguem seu concurso a esta obra em que
andamos empenhados e concorram com o seu grão de areia para
o edificio colectivo.
E todos, por modestos que sejam seus conhecimentos, podem
ajudar a criar uma mentalidade nova na infância e concorrer para
o alargamento da obra da Escola Moderna (A LANTERNA,
9 ago. 1914, p. 2).

A esperança dos apoiadores da Escola Moderna era que sua iniciativa se


consolidasse e crescesse, com novas matrículas e unidades, e ofertasse diferentes
modalidades de ensino, como o profissional. As condições financeiras da Escola
Moderna n. 1 dificultaram a ampliação de seu projeto.158 Mas os esforços de li-
bertários e livres-pensadores que apoiavam o ensino racionalista ainda renderiam
outros frutos: no estado de São Paulo, até 1919, foram inauguradas a Escola Mo-
derna n. 2, a Escola Moderna de São Caetano, uma “Escola Nova” no bairro da
Mooca e escolas modernas em Cândido Rodrigues e Bauru.

158 Sua manutenção dependia das mensalidades, da colaboração de militantes anarquistas e simpatizantes
do ensino racionalista, bem como das doações em eventos e do auxílio de sindicatos e lojas maçônicas.

358
Busca por autonomia pedagógica: práticas libertárias na Escola
Moderna n. 1

Oscar Thompson, diretor-geral da Instrução Pública paulista (1917-20),


encarava as escolas particulares como iniciativas que deviam ser bem acolhidas
pelo Estado, de forma a contribuir para o combate ao analfabetismo. Contudo,
questionava a ampla liberdade concedida às particulares sem a comprovação da
aptidão dos professores no exercício de suas atribuições. Sobre a regulamentação
dessas escolas, comemora a aprovação da lei n. 1.579, de 19 de dezembro de
1917,159
[...] para que o Estado possa tirar do ensino particular todo o
proveito, todas as vantagens, afim de que se dissemine, o mais
possivel, a instrucção. Melhorará, extraordinariamente, as con-
dições das escolas particulares e garantirá a intervenção bene-
fica da Diretoria Geral da Instrucção Publica para que essas
escolas, de braço dado com os estabelecimentos officiaes, pos-
sam attingir o mesmo fim, que é a nacionalização do ensino, a
formação, em todas ellas, do cidadão brasileiro (SÃO PAULO,
1917, p. 292).

Ainda que houvesse esforços por parte das autoridades educacionais pau-
listas em prescrever (ou conformar) programa, modelo pedagógico, saberes, roti-
nas e práticas – sob a forma de leis, regulamentos ou doutrinas –, no interior de
cada unidade escolar ocorriam inúmeros procedimentos de apropriação e trans-
formação dessas prescrições em práticas singulares. Nesse sentido é pertinente
questionar: “o que é que as pessoas fazem com os modelos que lhes são impostos
ou com os objetos que lhes são distribuídos?” (BOURDIEU apud CARVALHO,
2003, p. 260). Se não há uma mera aplicação das prescrições é porque as determi-
nações impostas pelos agentes externos sobre determinado campo (que refletem
pressões de ordem política e econômica) são refratadas pelos agentes internos ao
campo enquanto práticas distintas (aquilo que é feito).
Para melhor compreender como teorias, diretrizes, modelos, métodos, pro-
gramas e prescrições educacionais são “consumidas” e se efetivam em práticas pe-
dagógicas, é preciso recorrer ao conceito de apropriação, desenvolvido por Roger
Chartier (2002), que considera a tensão existente entre “a irredutível liberdade
dos leitores e os condicionamentos que pretendem refreá-la”. Do contrário, cor-

159 O artigo 30 da lei n. 1.579 atrelava o funcionamento das escolas particulares à autorização da Diretoria
Geral da Instrução Pública, mediante a apresentação de títulos que comprovassem a capacidade técni-
ca e moral dos professores e diretores e de documentos que atestassem as condições higiênico-pedagó-
gicas do edifício escolar, além da garantia de que as aulas fossem ministradas por professores brasileiros
em língua portuguesa (exceto no caso das aulas de línguas estrangeiras).

359
re-se o risco de tomar a produção intelectual, o texto, como uma realidade que se
impõe soberana sobre todos os agentes, que por sua vez simplesmente a reconhe-
cem como legítima e a aplicam tal como foi concebida por seu autor, sem levar em
consideração as muitas possibilidades de aplicação de tais ideias.
[...] a leitura de um texto pode assim escapar à passividade que
tradicionalmente lhe é atribuída. Ler, olhar ou escutar são, efeti-
vamente, uma série de atitudes intelectuais que – longe de sub-
meterem o consumidor à toda poderosa mensagem ideológica
e/ou estética que supostamente o deve modelar – permitem na
verdade a reapropriação, o desvio, a desconfiança ou a resistência
(CHARTIER, 2002, p. 59-60).

Portanto, o texto não possui um sentido único, estático, atribuído pelo seu
autor, pois, ao circular em determinados meios, passa a ser compreendido de for-
mas variadas, tendo em vista que o leitor faz uso da liberdade interpretativa e pos-
sui suas próprias intenções de uso do texto. Na visão de Marta M. C. de Carvalho
(2003, pp. 277-8), “uma vez produzido e distribuído, o impresso de destinação
escolar pode ganhar vida própria, sendo objeto de usos não previstos pelas regras
que presidiram a sua produção”, alertando os historiadores sobre a ênfase que
deve ser dada às práticas em relação ao texto em si.
Nas instituições escolares, gestores, alunos e professores, em suas práticas
cotidianas, não são meros consumidores, mas também produtores, pois interagem
(recebem, filtram, reinterpretam, resistem, propõem) com ideias, conceitos, recur-
sos, objetos, espaços etc. e lhes dão novo significado e usos de acordo com seus
interesses, motivações e valores. Apropriação pressupõe a interdependência entre
criação/produção e recepção/consumo do texto. Aquele que se apropria passa a
ser também um produtor cultural, posto que (re)cria o produto cultural conforme
seus interesses e suas capacidades, dando-lhe um novo sentido e fazendo dele os
mais variados usos.
A Escola Moderna n. 1 desenvolveu diversas práticas pedagógicas
alternativas às realizadas pelas demais escolas e, apesar das circunstâncias
por vezes adversas, encontrou soluções coerentes com os valores e princípios
pedagógicos libertários. Samira Chahin (2013) afirma que, para a implantação
da Escola Moderna n. 1, “houve a adaptação de um contexto teórico às condições
e propósitos próprios das circunstâncias políticas enfrentadas pelos libertários
em São Paulo” (CHAHIN, 2013, p. 31). Douglas Leutprecht (2018) defende
que, da mesma forma que João Penteado se valeu de diferentes referenciais
(doutrina espírita, obras de Tolstói, modelo de Ferrer, pensamento anarquista) e
os ressignificou num projeto coerente de vida e de condução da Escola Moderna
n. 1, aqueles que lhe serviram de referência também haviam realizado, a seu
modo, suas apropriações.

360
A Escola Moderna n. 1 parece não ter sofrido interferência direta da So-
ciedade “Escola Moderna”, nem mesmo do próprio governo em seus anos iniciais.
A conformação de seu programa e as práticas ali desenvolvidas possivelmente
foram frutos da própria experiência pretérita de João Penteado como professor
primário em Jaú e das suas influências acerca do ensino libertário (sendo Ferrer
a mais facilmente identificável), em conformidade com as determinações legais
para a garantir seu funcionamento.
O programa com que foram iniciados seus trabalhos consta de
portuguez, aritmetica, geografia, historia e principios de scien-
cias naturais.
O seu programa, todavia, como está determinado, será ampliado
de acordo com as necessidades futuras e com a aceitação que o
ensino racionalista for merecendo da parte dos homens livres da
capital e do interior do Estado.
O director, Prof. João Penteado (A LANTERNA, 20 jun.
1914, p. 4).

Como se pode notar, a Escola Moderna n. 1 não apresentava um programa


propriamente inovador, porém o diferencial para seu contexto se encontrava no
método empregado nos estudos. O jornal A Lanterna definia o ensino racionalista
ministrado na Escola Moderna n. 1 como “método inductivo demonstrativo e
objectivo, e basear-se-á na experimentação, nas afirmações scientificas e racio-
cinadas, para que os alunos tenham ideia clara do que se lhes quer ensinar” (A
LANTERNA, 30 ago. 1913).
Diferentemente do método dito “tradicional”, de aulas baseadas na me-
morização, na ausência de sentido, no discurso de autoridade/autoritarismo e na
inculcação dos valores que interessam à classe dominante, na Escola Moderna n.
1 foram reconhecidas práticas que ocupavam os alunos com reflexões relativas às
sua própria realidade, dando-lhes voz e valorizando sua espontaneidade/vontade.
O aprendizado se dava em diferentes ambientes e se empregava elementos lúdi-
cos e brincadeiras livres – elementos presentes em Iasnaia Poliana, no Orfanato
Prévost e em La Ruche, por exemplo.
O livro de William Heaford, A Escola Moderna de Barcelona (edição por-
tuguesa de 1910, presente no acervo da Escola Moderna n. 1), “parece ter sido
uma importante referência para o professor João Penteado, pois trata do método
racionalista e do papel do professor na Escola Moderna” (CALSAVARA, 2004,
p. 187-8). Nessa obra o autor explica que os livros adotados pela escola eram ali
mesmo editados e apresenta sucintamente o programa da Escola Moderna de
Barcelona e seu método:
[...] as creanças se habitúam a observar e a raciocinar sobre os
objectos fisicos que as rodeia e compreendem os fenomenos or-

361
dinarios da vida diaria. Entre as série de estudos, a gramatica, a
zoologia, a geometria, a geografia, a fisica e a quimica, também
existe o ensino de francês, solfejo o trabalho manual e a bo-
tanica. Os livros foram escritos expressamente para a escola, e
para o fim exclusivamente racionalista para que ela foi fundada
(HEAFORD, 1910, p. 47).

O método racionalista se apropria do método intuitivo,160 muito debatido


em congressos pedagógicos e exposições universais durante a segunda metade
do século XIX. Sua aplicação escolar visava despertar a atenção e a curiosidade
das crianças, baseando-se na observação empírica e partindo do mais simples
para o mais complexo. Ferdinand Buisson explica que a intuição “é um ato o
mais natural e o mais espontâneo da inteligência humana, pelo qual o espírito
compreende uma realidade, sem esforço, sem intermediário, sem hesitação” e que
seria por meio dela que “nosso espírito, seja pelos sentidos, seja pelo julgamento,
seja pela consciência, conhece as coisas com o grau de evidência e de facilidade
que apresenta ao olho, à visão distinta de um objeto” (BUISSON apud BASTOS,
2013, p. 239-40).
Os escolanovistas e os pedagogos libertários entendiam que a educação
pelas coisas (empírica) deveria vir antes da educação pelas palavras, o que era coe-
rente com a ideia de ativismo que os alunos poderiam assumir.161 “No caso da Es-
cola Moderna de Barcelona, tal método, o qual se restringia às classes preparató-
rias, se adequou perfeitamente ao modelo pedagógico racionalista, especialmente
por partir da mesma ideia naturalista de educação” (Leutprecht, 2018, p. 102).
Algumas das práticas da educação racionalista, relativas ao método intui-
tivo, voltavam-se à observação dos fatos e fenômenos naturais, e ainda propunha
reflexões acerca da realidade. Na segunda edição do periódico O Início (publicação
gerida pelos próprios alunos da Escola Moderna n. 1) encontram-se dezessete
exercícios escolares, com atividades de produção textual como “descrição”, “epis-
tolar”, e “exercícios vários”. Tais exercícios são assim apresentados aos leitores:
Na nossa Escola se realizam exercicios de composição e descri-
ção, que são dados aos alunos, gradualmente, todas as semanas,
afim de que eles aprendam, de modo prático, a escrever os seus
pensamentos, a redigir cartas e a fazer descrições de objétos com
observancia da devida ordem classificativa e emprego de pontu-
ação precisa (O INÍCIO, 4 set. 1915).

160 Os primeiros expoentes do método intuitivo foram pensadores como Francis Bacon, John Locke, Jean
Jacques-Rousseau; pedagogos como Johann Heinrich Pestalozzi, Norman Calkins e Ferdinand Buis-
son dariam contribuições para sua aplicação escolar.

161 Conforme a inteligência, o pensamento crítico e o senso de observação se desenvolvem, os alunos


passariam a fazer mais uso de outros recursos didáticos, como coleções, cartazes e livros.

362
O exercício que se segue é ilustrativo não apenas da composição de um
texto descritivo, que informa o trajeto, os elementos da paisagem urbana e as
situações “inusitadas” dignas de registro, mas também de uma atividade que re-
flete outros aspectos do ensino libertário ministrado na Escola Moderna n. 1: a
solidariedade e reciprocidade (interação entre os alunos das escolas) e o respeito
(apesar de não descrever se houve uma reprimenda ou advertência, o desenten-
dimento entre um aluno e um rapaz na rua não foi bem aceito pelo professor).
Segue o exercício:
NOSSA VISITA Á ESCOLA N. 2

Sábado, dia 20 de junho de 1914, nós fomos á Escola Moderna


n. 2, daqual é professor Adelino de Pinho. Saimos daqui a uma
hora, descemos à rua Saldanha Marinho e pegámos a Avenida
Celso Garcia. Nela vimos dous carriteis grandes de canos para
encanamento de gaz e mais dous pequenos, de arame grosso,
para a rede elétrica. Eu vi também uma preta tocando viola na
mesma avenida.
Depois chegámos ao jardim da Concordia e vimos o teatro Co-
lombo. Á frente dele vimos belos anúncios de fitas cinemato-
gráficas. Dali nos dirigimos á Escola Moderna n. 2. Nela nos
demorámos até ás duas e meia. Fomos bem recebidos.
Os meninos de lá recitaram e cantaram e nós tambem
fizemos a mesma cousa. O Professor Adelino de Pinho
tambem recitou e nos fez uma saudação. Na volta o Car-
los Lampo descontentou ao nosso professor, por que
brigou com um pobre menino que estava distribuindo
anúncios na rua. Foi bom o passeio. Eu gostei de ouvir os
cantos e recitativos daqueles colegas.
PEDRO G. PASSOS (O INÍCIO, 4 set. 1915).

Nota-se no exercício do aluno Pedro G. Passos uma linguagem simples,


com alguma formalidade e gravidade, mas, acima de tudo, a espontaneidade da
escrita. Possivelmente, se houve interferência do professor, não teria sido no sen-
tido de alterar seu conteúdo ou mensagem, mas eventual no da correção formal
do texto. O texto transmite as impressões, sensações, juízos e valores de um alu-
no, o que demonstra o propósito de tais exercícios: desenvolver a capacidade de
observar, de descrever, de chegar às conclusões por si, empregando seu próprio
raciocínio.
No seguinte exercício, é possível identificar a forma com a qual se buscava
promover um ensino autônomo, no qual o entendimento do aluno seria formado
a partir de uma série de interações entre ele, o objeto do conhecimento, os colegas
e o professor. As reflexões e as conclusões dos alunos são, novamente, resultado da

363
observação atenta e de seu próprio raciocínio. A maneira como a aula é descrita
revela a liberdade que se pretendia garantir aos alunos:
UM PASSEIO À MARGEM DO RIO TIETÊ

No sábado, dia 6 de março, nós nos reunimos todos às 7 horas


da manhã na nossa Escola e cantamos os hinos “A Mulher” e o
“Primeiro de Maio”. Depois [de] meia hora saímos, e descemos
a rua Catumbi. [...] Eu vi pelo caminho uma pontezinha na
travessa da rua Catumbi. Lá o nosso professor nos explicou que
os troncos de taquara se chamam rizoma e que esses troncos
caminham debaixo da terra. [...]
Vimos as barcas no meio do Tietê e também uns meninos ca-
çarem peixes. Depois brincamos de Caracol e Ciranda-Ciran-
dinha [...].
EDMUNDO MAZZONE (O INÍCIO, 4 set. 1915).

Entre as práticas descritas, os alunos cantavam hinos que exaltavam o pa-


pel da mulher e do trabalhador (sujeitos oprimidos, mas que deveriam lutar e
contribuir para a construção da sociedade do porvir); realizavam observação em-
pírica e tinham contato direto com o objeto do conhecimento, havendo, quando
necessária, a mediação do professor (trata-se de um momento em que a curiosi-
dade é a guia para novas descobertas); o brincar e a interação livre entre as crian-
ças (meninos e meninas) é privilegiado, sendo a última parte do passeio.
Tatiana Calsavara (2004) destaca a inovação pedagógica promovida na
Escola Moderna n. 1 através da realização dos “estudos do meio” (passeios/saí-
das), do incentivo à produção escrita dos alunos (crítica e científica) e do uso do
periódico O Início como instrumento pedagógico – práticas que se diferenciavam
radicalmente das realizadas nas escolas públicas e religiosas do período (CALSA-
VARA, 2004, p. 136). As aulas de “estudos do meio” foram bem exploradas por
Paul Robin, que “destacou a importância do meio natural, enfatizando os fatos
e o ambiente da natureza como contexto propício para o aprendizado e alcan-
ce dos objetos da educação integral: desenvolvimento intelectual, físico e moral”
(CHAHIN, 2013, p. 189).
O exercício a seguir, simples no formato e na proposta, apresenta dois
elementos essenciais da metodologia racionalista: a valorização da observação e o
estímulo à escrita livre (espontânea, mas que demanda os cuidados do professor
com relação à ortografia, à concordância e à pontuação, por exemplo).
Vejo sobre um caixão o jornal chamado “A Voz do Trabalhador”,
um relójio, um copo, uma tampa de moringue, uma pedra már-
more, um vidrinho de pílulas, uma caixinha de pastilhas, um par
de punhos, um livro de História do Brasil, um pausinho e uma
latinha de tinta para carimbo de borracha.
JÁCOMO ROMOLO (O INÍCIO, 4 set.1915).

364
Outra modalidade de composição eram os exercícios epistolares. Os alu-
nos eram instigados a refletir sobre questões da atualidade, desenvolvendo a sen-
sibilidade e o poder de crítica à ordem estabelecida. Um tema particularmente
grave naqueles tempos era o da Primeira Grande Guerra, tratado pelo aluno João
Bonilha nos seguintes termos:
A GUERRA EUROPEA

Um destes dias conversava eu com um dos meus amigos sobre a


guerra, e ele me perguntou:
– Qual é a tua opinião sobre esta guerra infernal?
– Eu, meu querido amigo, que queres que eu te diga? O meu
desejo é, em primeiro logar, acabar com esses governadores,
imperadores, reis, e finalmente com os burguezes, de todas as
classes, que são os causadores desta monstruosa catástrofe, na
qual tantas pessoas inocentes morrem deixando suas famílias
num mar de tristeza e desconsolações, como por exemplo acon-
tece as famílias desses que foram d’aqui para aquelle tremendo
matadouro. Deixaram aqui mulheres e filhos na mais espantosa
das miserias. E porque? Para que? Para defenderem o que? –
Nada!... Sómente para morrerem como cães naquele matadouro
infernal, onde sucumbem milhares e milhares de seres humanos
por causa desses vagabundos de que já te falei.
É esta a minha opinião.
S. Paulo, 9 de agosto de 1916.
JOÃO BONILHA (O INÍCIO, 19 ago. 1916).

O aluno argumenta que a guerra foi conduzida pelo Estado a partir dos
interesses burgueses e promove um massacre sem sentido, deixando famílias de-
samparadas. Como salienta Rogério Castro (2014, p. 195), “o internacionalismo
dos libertários se contrapunha ao nacionalismo dos setores conservadores”, um
sentimento de solidariedade entre os membros da classe trabalhadora, que, in-
dependentemente de sua nacionalidade, não devem lutar entre si, mas se unirem
para promover a revolução, derrubando a sociedade de classes capitalista e cons-
truindo uma sociedade fraterna e igualitária. O antimilitarismo se coloca enquan-
to um princípio básico do “anarquismo cristão”, que advoga as transformações
pela via não violenta, cuja grande referência foi Liev Tolstói, muito influente na
formação intelectual e moral de João Penteado (LEUTPRECHT, 2018).
Os quatro registros acima evidenciam algumas práticas pedagógicas da
Escola Moderna n. 1 análogas ao método racional propugnado pela Escola Mo-
derna de Barcelona, cujo intuito era “evocar, desenvolver e cultivar as aptidões
particulares de cada aluno, a fim de fazer evoluir a capacidade latente de cada
creança, tornando-o capaz de ser um componente util da sociedade” (Heaford,
1910, p. 46). Como mencionado anteriormente, esses registros se encontram no
periódico escolar O Início, sendo um recurso amplamente empregado por diversas

365
escolas libertárias, como a revista Iasnaia Poliana, o Bulletin La Ruche e o Boletín
de la Escuela Moderna, que serviram para divulgar os princípios pedagógicos e
as práticas escolares desenvolvidas nessas instituições, ou ainda para divulgar as
atividades produzidas pelos alunos.
João Penteado, escritor prolífico da imprensa operária, com grande expe-
riência em tipografia e editoração, empregou esses conhecimentos na divulgação
das atividades desenvolvidas na Escola Moderna n. 1 e das ideias pedagógicas
racionalistas por meio dos periódicos O Início (1914-1916) e Boletim da Escola
Moderna (1918-1919). As dificuldades financeiras enfrentadas pela escola impos-
sibilitaram que as publicações fossem mensais, intenção anunciada nos primeiros
números de cada periódico, justificada nas edições seguintes. O Início teve apenas
três números (5 set. 1914, 4 set. 1915 e 19 ago. 1916), e o Boletim da Escola Moder-
na quatro (13 out. 1918, 18 mar. 1919 e 1º maio 1919 – edição correspondentes
aos números 3 e 4).
Nos três números do periódico estudantil O Início,162 foi possível identifi-
car quatro artigos sobre festividades das quais os alunos da escola participaram;
um balancete de festa; três informativos com a relação dos alunos matriculados;
cinco artigos de conteúdo moralizante (antimilitarismo e antialcoolismo); e 34
“exercícios escolares” (relatos sobre passeios, com textos descritivos e reflexivos
sobre o que os alunos observavam; exercícios epistolares e descritivos), entre ou-
tros. Essa publicação, em que predominavam conteúdos pedagógicos (52% do to-
tal dos textos), tinha como escopo “cultivar os sentimentos de amor pela paz, pela
instrução, pelas letras e pela humanidade, fazendo despertar na infância o desejo
de uma vida fraternal, humana, livre dos prejuízos resultantes das convenções so-
ciais” (O Início, 5 set. 1914). Segundo seu editorial, visava “exercitar os alunos na
imprensa, a fim de se habilitarem para a luta do pensamento na sua cooperação
para o progresso moral e intelectual da Humanidade” (Ibid.).
Como observou Tatiana Calsavara, as informações contidas n’O Início as-
seguram que ambas as escolas modernas de São Paulo eram “escolas mistas, sem
exames, sem promoções, sem castigos, combinando um currículo convencional
com a difusão dos princípios anarquistas” (2004, p. 179), e que desenvolveram
práticas pedagógicas semelhantes às da Escola Moderna de Barcelona.
Nos quatro números do periódico Boletim da Escola Moderna, observa-se
uma grande mudança em relação à forma e ao conteúdo do que era publicado
n’O Início – os editores indicavam ter intenção de manter ambos os jornais ativos,
mas O Início não pôde mais ser produzido por razões financeiras. As práticas

162 Vale destacar que o periódico O Início publicava os textos escritos pelos alunos e tinha alguns deles na
comissão de redação. Dessa forma, possibilitava-lhes o ativismo pedagógico e contemplava o que se
defendia como “ensino integral”, bem como um ambiente de colaboração e horizontalidade na relação
aluno-professor, sendo todos corresponsáveis pela (auto)gestão do veículo.

366
educativas desenvolvidas pelos alunos aparecem de maneira indireta, quando se
menciona a participação em eventos festivos da escola, ou em alusão ao ensino
racionalista ministrado pela escola, mas sem apresentar as atividades dos alunos
ou explicitar mais claramente as práticas que eram desenvolvidas. Foi possível
contabilizar cinco artigos em defesa do ensino racionalista; dois artigos em de-
fesa dos valores libertários (crítica ao capitalismo e às escolas religiosas oficiais);
seis artigos sobre festas realizadas para arrecadação de recursos para a escola; sete
artigos sobre efemérides (13 de outubro – memória de Ferrer na data de seu fale-
cimento, 1º de maio – Dia do Trabalhador, 18 de março – aniversário da Comuna
de Paris); quatro balancetes de festas e doações à escola; e quatro quadros sobre
a escola (cursos ofertados, programas, alunos matriculados, frequência, horários),
entre outros. O objetivo do periódico passa a ser o de
prestar valiosissima contribuição para a obra de propaganda ra-
cionalista, que temos emprehendido, servindo de vehiculo para
a disseminação das modernas correntes de ideias que tendem a
rehabilitar a humanidade para a vida, redimindo-a e tornando-a
livre e feliz (BOLETIM DA ESCOLA MODERNA, 13 out.
1918).

Nas palavras do próprio João Penteado, o Boletim da Escola Moderna já não


era produzido em colaboração com os alunos da escola, como se fazia n’O Início,
“mas sim por pessoas de convicções formadas, professores ou não, tendo em mira
a divulgação das ideas racionalistas e assumptos de interesse social” (Defesa for-
malizada por João Penteado dirigida ao secretário de Justiça e Segurança Pública
em decorrência do fechamento da Escola Moderna n. 1 apud Luizetto, 1984,
anexos).
No “Inventário da Escola Moderna No. 1” (CALSAVARA, 2004), regis-
trado pelo próprio João Penteado, foram relacionados diversos materiais didáticos:
projetor, globo geográfico, sólidos geométricos e giroscópio, além de mapas, atlas
e postais diversos. O racionalismo pedagógico se estrutura no método intuitivo
que, como propugnado por Paul Robin, estimularia “a capacidade de observação,
a lógica, o juízo crítico, a sensibilidade estética e a criatividade” (CASTILLO
apud LEUTPRECHT, 2018, p. 54). Tais recursos didáticos indicam a impor-
tância do contato com o objeto a ser estudado e, “quando não fosse possível a
presença direta destes/as, o contato da criança com imagens e ilustrações, as quais,
pouco a pouco, tornaram-se tão importantes quanto o texto dos livros didáticos”
(TEIVE apud LEUTPRECHT, 2018, p. 107).

367
Conclusões

Cientes dos limites impostos pela educação oferecida pelo Estado e pela
Igreja, escolanovistas e pedagogos libertários propuseram, cada qual à sua manei-
ra, uma escola renovada, que superasse o modelo tradicional e fosse alicerce para
uma nova sociedade. Semelhantes em alguns aspectos, desenvolveram-se com
princípios, meios e fins bastante distintos.
Para Francisco Ferrer y Guardia, diretor da Escola Moderna de Barcelona,
e João Camargo Penteado, diretor da Escola Moderna n. 1, o ensino racionalista
poderia colaborar para a elevação intelectual e moral das pessoas em um processo
que levaria à transformação social e à superação da lógica capitalista, desumaniza-
dora. Ambos criticavam a maneira com a qual a Igreja e o Estado se utilizavam da
educação para seus próprios interesses e estavam comprometidos com a educação
das classes populares, emancipatória, livre e libertária.
A Escola Moderna n. 1 foi, em muitos aspectos, tributária da Escola Mo-
derna de Barcelona. Alguns dos elementos que reforçam essa relação: são cons-
tantes as referências ao racionalismo pedagógico, a introdução de passeios educa-
tivos, o incentivo à produção escrita, o princípio de que não se educa por punição
ou premiação, a defesa da coeducação dos sexos, a ausência de exames, o esforço
para que a comunidade se aproxime e se envolva com a escola, o laicismo e o
antiestatismo – registros presentes nos exercícios e artigos publicados n’O Início e
no Boletim da Escola Moderna.
Autores como Samira Chahin (2013) e Douglas Leutprecht (2018) apon-
tam para a independência programática da Escola Moderna n. 1 e para práticas
que, se não eram originais (pois tomavam como referência o racionalismo peda-
gógico desenvolvido na Escola Moderna de Barcelona, mas também o método
de “lição de coisas”, amplamente difundido entre as escolas primárias paulistas),
eram inovadoras para o contexto em que a escola estava inserida.
As apropriações, ou seja, os crivos, as intepretações e as aplicações de prá-
ticas pedagógicas são escolhas que se operam em um campo de disputa entre
manter-se fiel aos princípios e práticas do modelo em questão – seja por con-
vicção pessoal, seja por conta das expectativas que os agentes internos e externos
depositavam na escola – e comprometer-se a ponto de sofrer perseguições e re-
presálias (como tantas outras escolas libertárias sofreram), ou ter de abandonar
tais princípios e práticas para poder manter a escola em funcionamento, mesmo
que descaracterizada dos seus propósitos originais. João Penteado procurou as-
segurar a autonomia e a autogestão institucional e pedagógica, promovendo um
ensino antiautoritário sob o método racionalista, desenvolvendo a coeducação

368
dos sexos e das classes e buscando desenvolver o espírito crítico, a solidariedade
e o sentimento de justiça.
Se se pretende superar o ensino reprodutivista (tanto no sentido social,
quanto no sentido dos saberes), passivo, autoritário, centrado no livro e no profes-
sor, dentro de um sistema excludente, classificatório e punitivo; se se entende ser
possível transformar a atual forma escolar e promover um modelo capaz de efeti-
var uma relação ao mesmo tempo científica, crítica, prazerosa e significativa, tam-
bém capaz de promover a autonomia do sujeito e emancipá-lo intelectualmente,
nesse processo construindo uma sociedade mais solidária e justa, é fundamental
debruçar-se sobre as ideias pedagógicas e as experiências escolares libertárias.
A Pedagogia Libertária é, portanto, radicalmente transformadora, pois
buscou fazer contraposição à escola dita tradicional (religiosa ou estatal) e à “es-
cola burguesa” (que apropriou elementos do escolanovismo) de seu tempo, que
em que vez de romper com os interesses dos grupos dominantes serviam para
atendê-los. Trata-se de defender um modelo de ensino que possa contribuir para
a construção de uma sociedade livre: quando as consciências tiverem sido eman-
cipadas de quaisquer preconceitos, que hierarquizam ou definem os papéis sociais
por conta de gênero, cor, etnia, origem etc.; quando a sociedade tiver abolido as
hierarquias sociais, definidas pela posse de capitais, para organizar a produção
de base coletivista; quando o Estado for superado por um sistema autogestio-
nário, em que as decisões sejam definidas pelos membros da sociedade, autono-
mamente, conforme a máxima “o homem estará verdadeiramente livre apenas
entre homens igualmente livres” (BAKUNIN apud MARSHALL, 2008, p. 299
– tradução livre).

Referências

A LANTERNA (periódico). São Paulo, 1909-1916.

BASTOS, Maria Helena Camara. Introdução: Método intuitivo e lições de coisas por
Ferdinand Buisson. In: História da Educação, Porto Alegre, v. 17, n. 39. jan./abr. 2013.
pp. 231-253.

CALSAVARA, Tatiana da Silva. Práticas da Educação Libertária no Brasil: a experiência


da Escola Moderna em São Paulo. 2004. 264 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
– Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A Escola e a República e outros ensaios. Bragança
Paulista: USF, 2003.

369
CASTRO, Rogério Cunha de. Nem prêmio, nem castigo!: a escola moderna como ação
revolucionária dos sindicatos operários durante a Primeira República (São Paulo,
1909-1919). 2014. 233 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

CHAHIN, Samira Bueno. Escolas, cidades e disputas: lugares da educação libertária.


2013. 216 f. Dissertação (Mestrado em História e Fundamentos da Arquitetura e
Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2013.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de


Maria M. Galhardo. Lisboa: DIFEL, 2002.

CORRÊA, Felipe. Bandeira negra: Rediscutindo o anarquismo. Curitiba: Prismas,


2015.

DI GIORGI, Cristiano. Escola Nova. 3. ed. São Paulo: Ática, 1992.

FERRER Y GUARDIA, Francisco. A Escola Moderna. Tradução de Camilo Alvares.


São Paulo: Biblioteca Terra Livre, 2014.

GALLO, Sílvio. Pedagogia Libertária: anarquistas, anarquismos e educação. São Paulo:


Imaginário; Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007.

HEAFORD, William. A Escola Moderna de Barcelona. Lisboa: Guimarães e Cia., 1910.

LEUTPRECHT, Douglas Bahr. O legado de Francisco Ferrer y Guardia em movimento:


apropriações do modelo pedagógico racionalista nas escolas modernas nº 1 e de Stelton
(1913-1925). 2018. 230 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Estado
de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.

LIPIANSKY, Edmond Marc. A pedagogia libertária. São Paulo: Imaginário, 2007.

LUIZETTO, Flávio Venâncio. Presença do anarquismo no Brasil: um estudo dos


episódios literário e educacional – 1900/1920. São Paulo: Edusp, 1984.

MARSHALL, Peter. Demanding the Impossible: A History of Anarchism. Londres:


Harper Perennial, 2008.

MORIYÓN, Félix García (Org.). Educação Libertária: Bakunin, Kropotkin, Mella,


Robin, Faure. Porto Alegre: Artmed, 1989.

NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo: Edusp, 2009.

O INÍCIO (periódico). São Paulo, 1914-1916.

370
PEY, Maria Oly (Org.). Esboço para uma história da escola no Brasil: algumas reflexões
libertárias. Rio de Janeiro: Achiamé, 2000.

SANTOS, Luciana Eliza dos. A trajetória anarquista do educador João Penteado: leituras
sobre educação, cultura e sociedade. 2009. 298 f. Dissertação (Mestrado em História
da Educação e Historiografia) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2009.

SÃO PAULO. DIRECTORIA GERAL DA INSTRUÇÃO PÚBLICA. Annuario


do ensino do estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, 1913-1919.

SILVA, Rodrigo Rosa da. Anarquismo, ciência e educação: Francisco Ferrer y Guardia
e a rede de militantes e cientistas em torno do ensino racionalista (1890-1920). 2013.
379 f. Tese (Doutorado em História da Educação e Historiografia) – Faculdade de
Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implantação da escola primária


graduada no Estado de São Paulo: 1889-1910. São Paulo: Editora Unesp, 1998.

371
18. A CONSTITUIÇÃO DA FUNÇÃO DA COORDENAÇÃO
PEDAGÓGICA EM SÃO BERNARDO DO CAMPO:
AS ESTRATÉGIAS DAS PROFISSIONAIS (1998 A
2009)

Rúbia Armelini de Freitas

Transformações expressivas, no que diz respeito aos modos de organizar


a escola e o ensino, podem ser notadas na década de 1990 e no início dos anos
2000, quando documentos legais e produções teóricas educacionais ajustaram-se
aos ditames da Constituição Federal de 1988. A Carta Magna, além de anunciar
a Educação como um direito, criou instrumentos legais para garantir o acesso à
escola pública gratuita pela população.
Ao escrever este capítulo, partimos das ideias de Varella et al. (2010), que
discutem temas como presentismo, memória, esquecimento, trauma, comemo-
rações, identidade, patrimônio, justiça e testemunho. Os autores apontam o en-
tendimento do tempo presente como aquele que só se torna passado quando os
eventos ocorridos perdem sua atualidade: “eventos já ocorridos são um ‘presente’
para nós pelo tempo em que nossos interesses por eles estiverem acesos”, ou dito
de outra forma, “haverá presente enquanto estiverem ativos determinados inte-
resses de presentificação do passado” (VARELLA et al., 2010, p. 14-15).
Não obstante o recorte temporal recente, observar o presente e conferir a
ele a essência histórica através da observação das questões referentes à formação
de professores (legislação, indivíduos, impressos pedagógicos) encontra respaldo
na perspectiva da história cultural. Marc Bloch (2001) e outros representantes da
Escola de Annales163 enfatizam a importância do debate que coloca as ações dos
grupos e dos indivíduos não como antagônicas, mas como parte das influências
dos determinismos sociais, políticos e econômicos. Isso nos possibilita reflexões
sobre um novo modo de compreender a história a partir da valorização de grupos
particulares em locais e períodos específicos, bem como uma mudança no olhar
para as fontes.

163 O termo Escola de Annales não se refere a uma escola, mas a um movimento de estudo da história a
partir de problemas e considerando o papel dos indivíduos e grupos. A revista dos Annales teve origem
em 1929 na França, dirigida por Lucien Febrve e Marc Bloch, e ficou conhecida pelo fato de criticar
a historiografia recorrente em que o foco de pesquisa eram, predominantemente, jogos de poder e a
narrativa dos fatos de grandes figuras e grandes nações. Os grupos e indivíduos ficavam em segundo
plano nessa forma de fazer história.

372
Nessa perspectiva, reconhecemos as PAPs164 como um grupo de docentes165
que, no final dos anos 1990, esteve à frente das ações de formação de professo-
res em um contexto de mudanças legislativas com implicações para o cotidiano
escolar. As primeiras ações de coordenação da HTPC166 realizadas por essas pro-
fissionais nos permitem compreender, a partir da legislação educacional vigente e
das resoluções da Secretaria de Educação e Cultura (SEC), como o processo de
emersão da PAP provocou novas configurações no campo da história da profissão
docente (reconfigurações de tempos, espaços e dispositivos de formação docente).
E, para isso, discutimos temas como memória, esquecimento e identidade docente.
Para analisar as artes criativas do fazer cotidiano, Certeau (2017) propõe
uma distinção entre estratégia e tática. A estratégia é o lugar do poder estabeleci-
do, que dita as regras do jogo e delineia as interações. A tática, por sua vez, é uma
produção silenciosa, que recria o espaço definido pelo outro que detém o poder.
Para operar no terreno do adversário, conforme Certeau (2017, p. 95): “tem que
utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigi-
lância do poder [...] aí vai caçar. Cria ali surpresas, consegue estar onde ninguém
espera. É astúcia”. Isso nos instiga a observar nos meandros das alterações legisla-
tivas os caminhos encontrados pelas instâncias de poder para configurar essa nova
função do magistério. No caso das PAPs, detemo-nos nas estratégias elaboradas
pela SEC para que pudessem ocupar um lugar no campo educacional.
No que tange à Educação Infantil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei 9394/1996) passa a reconhecer esse nível de ensino como etapa da
Educação Básica, aponta a necessidade de horas de trabalho do professor — fora
da sala de aula — em estudo e preparação e retira o caráter puramente assisten-
cialista das instituições que acolhiam crianças pequenas, colocando em evidência
a discussão pedagógica dos aspectos do cuidar e do educar no atendimento às
crianças de zero a seis anos.
As escolas de Educação Infantil no município de São Bernardo do Cam-
po tiveram origem no projeto dos jardins de infância167, sob a administração do

164 PAPs: Professoras de apoio pedagógico.

165 Na pesquisa de mestrado Cenas inéditas da vida das professoras de apoio pedagógico: Um estudo da emersão
da função de professor coordenador em São Bernardo do Campo: 1998 a 2009 (Freitas, 2020), de nossa auto-
ria, o grupo docente ao qual nos referimos era composto por quatro mulheres professoras que estiveram
na função de professora de apoio pedagógico no período de 1998 a 2009 e participaram da pesquisa
por meio de entrevistas.

166 HTPC: Hora de trabalho pedagógico coletivo

167 O município de São Bernardo do Campo é situado na região metropolitana de São Paulo e, segundo
projeção de dados do IBGE (2019), conta atualmente com população em torno de 833.000 habitantes,
ocupando a 16º posição no ranking nacional quanto ao PIB. De acordo com informações do site oficial
da cidade, a Secretaria de Educação conta com cerca de 80 mil alunos em todos os níveis de ensino

373
prefeito Lauro Gomes de Almeida (PTB), para oferecer atendimento escolar às
crianças de zero a seis anos. O Jardim da Infância Santa Terezinha (primeiro jar-
dim da infância da cidade), situado onde hoje funciona o Arquivo Municipal, foi
inaugurado em agosto de 1960 pelo Departamento de Educação e Cultura, sob a
coordenação da professora Tirza Martins Ribeiro Magdalena.
Em 1979, o município assumiu o serviço das creches — até então condu-
zidas por instituições sociais — por meio do Departamento de Promoção Social.
O atendimento foi ampliado para crianças na faixa etária dos quatro meses até
três anos e onze meses de idade. Nesse mesmo ano, os Jardins de infância foram
denominados Escolas Municipais de Educação Infantil168 (EMEIs), nomencla-
tura que permaneceu até o primeiro edital de seleção de PAP, em 1999. Essa
organização perdurou até que novos debates educacionais fossem colocados em
campo. No contexto nacional, a Constituição Federal de 1988, no artigo 6º, anun-
cia o direito à educação como um direito social e define a competência legislativa
para o tema em seus artigos 22, inciso XXIV, e 24, inciso IX. No título da Ordem
Social, responsabiliza o Estado e a família quanto à educação, trata do acesso e
da qualidade, organiza o sistema educacional, vincula o financiamento e distribui
encargos e competências para os entes da Federação.
No bojo dessa discussão do acesso e da qualidade foram colocadas em
tela a discussão da Educação Infantil e suas funções de cuidar e educar frente à
característica assistencialista das instituições que acolhem crianças. A emenda
constitucional 53/2006 dirimiu a cisão entre cuidar e educar, indicando ser dever
do Estado a garantia de Educação Infantil em creche e pré-escola às crianças até
5 (cinco) anos de idade. Assim, a discussão tomou corpo no sentido de que as
crianças devem ser cuidadas e educadas, o que retira o caráter puramente assis-
tencialista dessas instituições.
As diretrizes educacionais no município sofreram alterações para se ade-
quarem aos padrões propostos, e nesse contexto é que emergiu a figura da Pro-
fessora de Apoio Pedagógico (PAP), coordenando os trabalhos pedagógicos no
interior das unidades escolares.

atendidos pela municipalidade (creche, pré-escola e Ensino Fundamental I e II), distribuídos em 202
escolas (180 unidades próprias e 22 creches parceiras), com cerca de nove mil colaboradores (SÃO
BERNARDO DO CAMPO, Portal da cidade. Disponível em: https://www.saobernardo.sp.gov.br/
Acesso em: 7 jan. 2022).

168 Quanto à constituição do campo educacional em São Bernardo, o site oficial do município de Santo
André aponta que o primeiro grupo escolar da região do ABC (Santo André, São Bernardo e São
Caetano) foi inaugurado em 1914, construído em forma de U e interligado por um alpendre, reunindo
várias salas de aula. A construção foi tombada pelos Conselhos de Defesa do Patrimônio Cultural
Municipal (1992) e Estadual (2002) devido à sua inserção na memória local e à importância como
remanescente da política educacional do começo do século XX. Disponível em: https://www2.san-
toandre.sp.gov.br/index.php/departamentos-seduc/33-secretarias/cultura-esporte-lazer-e-turismo/
184-museu-de-santo-andre-dr-octaviano-armando-gaiarsa Acesso em: 7 jan. 2022.

374
Sobre a coordenação pedagógica como um cargo — de investimento via
concurso público —, encontramos referências legais acerca da criação da função
na Rede Municipal de São Paulo na lei nº 9874, de 18 de janeiro de 1985, vigente
até os dias atuais. E, na Rede Estadual de São Paulo, o cargo foi extinto através
da lei complementar nº 836, de 30 de dezembro de 1997. Em São Bernardo do
Campo, a ideia de ter um professor coordenador começou a ganhar corpo durante
as discussões sobre a Proposta Curricular Integrada do ano de 1992, no decorrer das
reuniões entre a Secretaria de Educação e Cultura e as professoras para a elabo-
ração de um currículo que atendesse a Educação Infantil como direito constitu-
cional. Regina Poppa Scarpa169, uma das assessoras externas que participou das
discussões, trouxe relatos de sua prática profissional a respeito de professoras que
realizavam ações de organização dos trabalhos pedagógicos.
Como pode-se perceber no cenário acima apresentado, a incorporação da
Educação Infantil à Educação Básica, em âmbito nacional, colocou para o Mu-
nicípio de São Bernardo do Campo a obrigação de se reorganizar para a nova
demanda, incluindo a necessidade de dar continuidade às discussões com o grupo
de professoras para a atualização do currículo escolar. Nesse contexto, duas mu-
danças normativas no Município de São Bernardo do Campo criaram condições
para a emersão da PAP.
A primeira foi a instituição da designação para atividades educacionais
complementares pela lei municipal nº 4681, de 26 de novembro de 1998, que
abriu a possibilidade de atuação das professoras em outras atividades educacio-
nais, além das específicas de sala de aula — preparar e ministrar aulas:
Art. 10 Os Professores poderão ser designados para atividades
educacionais complementares:
I - pedagógicas;
II - de bibliotecas escolares, sob supervisão e acompanhamento
de bibliotecários;
III - de assistência à direção escolar;
IV - de programas especiais.
Parágrafo Único - As atividades de que trata o “caput” deste
artigo serão especificadas e reguladas por ato próprio elabora-
do pela Secretaria de Educação e Cultura (SÃO BERNARDO
DO CAMPO, 1998).

Havia quatro possibilidades de atuação das professoras em atividades com-


plementares: pedagógicas, de biblioteca, de assistência de direção e de programas

169 Graduada pela Faculdade de Psicologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
(1983) e com mestrado (1997) pela mesma instituição, fez doutorado em Educação na Universidade
de São Paulo (2014). Atualmente, é Diretora Pedagógica da Escola Vera Cruz. Tem experiência na área
de Educação, com ênfase em Alfabetização. Informações coletadas do Currículo Lattes.

375
especiais, o que na prática trouxe a possibilidade de as professoras — além de
ministrarem aulas — desempenharem outras atividades relacionadas ao ensino.
A segunda se deu pela reorganização da carga horária de trabalho das
professoras em função do período reservado a estudos, planejamento e avaliação
através da Resolução SEC170 nº 008/99, 26 de fevereiro de 1999, que atribuiu à
PAP a coordenação dessas horas, em conjunto com outros profissionais ou na
ausência deles. Nessa Resolução SEC, a PAP não é a única profissional à qual se
atribuem a coordenação da HTPC e o acompanhamento do trabalho das escolas
de São Bernardo do Campo. Ela compartilha essas atribuições com o orientador
pedagógico (OP), uma categoria profissional já existente no quadro do magis-
tério171 do Município de São Bernardo do Campo, que atua realizando ações de
supervisão, orientação e formação tanto de professoras quanto de equipe gestora.
Uma das diferenças entre esses dois profissionais reside no fato de que o orien-
tador pedagógico é lotado na SEC e possui um cargo no quadro do magistério,
enquanto a PAP é lotada nas unidades escolares e designada para a função, ou
seja, ela não possui um cargo.
Neste ponto, recorremos ao conceito de campo, como definido por Bour-
dieu (2004), para caracterizar a atuação das professoras de apoio no âmbito das
EMEIs172 de São Bernardo do Campo.
A noção de campo está aí para designar esse espaço relativa-
mente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias.
Se, como macrocosmo, ele é submetido a leis sociais, essas não
são as mesmas. Se jamais escapa às imposições do macrocosmo,
ele dispõe, com relação a este, de uma autonomia parcial mais ou
menos acentuada (BOURDIEU, 2004, p. 20).

O campo educacional sofre pressões de outros campos, como o político, o


religioso e o econômico, ao mesmo tempo que exerce um poder de refração para
garantir seu funcionamento interno. O campo educacional possui regras exter-
nas e internas próprias que regulam seu funcionamento e que já se encontravam
constituídas no município de São Bernardo do Campo quando a PAP iniciou
a sua atuação. Podemos citar como exemplos de regras externas, em especial, a
Constituição Federal de 1998; a Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9394/96); e a

170 SEC: Secretaria de Educação e Cultura.

171 De acordo com o art. 9 do estatuto de 1998, são atribuições do orientador pedagógico a orientação, o
planejamento e a supervisão ao ensino. No art. 14 § único, tais atribuições são entendidas como fun-
ções do magistério. Com relação à organização, o referido estatuto garante que haverá um orientador
pedagógico para cada 50 classes de Educação Infantil.

172 EMEI: Escola Municipal de Educação Infantil.

376
Lei municipal nº 4688, de 26 de novembro de 1998 (que dispõe sobre o ensino
público municipal de SBC e sobre o Estatuto do Magistério).
A mudança de lugar no campo experimentada pelas PAPs deslocou essas
profissionais para um lugar de fala diferenciado em um contexto que pouco se
modificou, pois elas continuaram a circular no interior da escola, saindo para
receber as formações e orientações da SEC e voltando para trazê-las ao interior
da escola. Houve um período de transição, em que a PAP foi assumindo a coorde-
nação da HTPC, mas o cargo de orientador pedagógico não desapareceu, apenas
assumiu outras configurações.
Para Fusari (1988), a ideia de treinamento para educadores passa a vigorar
com grande força a partir da década de 1960, priorizando técnicas, métodos e
relações, incluindo dinâmicas de grupo. A partir dos anos 1970 tem início a as-
sociação da ideia tecnicista à ideia de eficiência. Com isso, a própria escola é im-
pulsionada a organizar-se de maneira racional e produtiva, e o treinamento tem
um forte apelo relacionado aos temas planejamento e objetivo. As habilidades que
se perseguem são a de bem planejar e a de integrar artefatos tecnológicos. Para
Fusari (1988, p. 20), tal tipo de treinamento aliena a atividade educativa das ques-
tões sociais, pois coloca a escola como um lugar onde se investe tempo, estudando,
para colher benefícios futuros no mercado de trabalho.
O texto de Fusari (1988, p. 24) aponta a necessidade de novos pressupos-
tos para uma política de educação de educadores: “o processo de indicação das
necessidades de educação em serviço deverá ser encaminhado, com a participação
efetiva dos educadores, discutindo os problemas que enfrentam no cotidiano do
seu trabalho”.
Atuar nessas frentes gerou desafios iniciais. Por exemplo, como seria para
as primeiras professoras na função de PAPs solicitar que o grupo de professores
submetesse seu planejamento à apreciação de outro professor?
Retomamos Nóvoa (2013), sobre as quatro condições que precisam estar
presentes para a existência de uma profissão: 1) dedicação em tempo integral;
2) legislação específica que regulamente a profissão; 3) formação específica ga-
rantida pelas escolas Normais, Cursos Magistérios e Faculdade de Pedagogia; e,
por fim, 4) a criação de associações e sindicatos. Observando essas condições, a
situação da PAP era frágil, considerando que esses elementos ainda não haviam
se consolidado, e que suas atividades esbarravam no que antes estava designado
apenas ao professor realizar, como, por exemplo, os estudos para aprimoramento
e planejamento e a avaliação do próprio trabalho.

377
As PAPs, a profissão e a carreira docente: o que dizem as normativas?

Em visita ao Arquivo Municipal de São Bernardo do Campo, encontramos


as resoluções referentes à emersão da PAP, publicadas no jornal Notícias do Mu-
nicípio (1973 até dias atuais), cujas edições estão todas muito conservadas e or-
ganizadas. O impresso é semanal e há pastas separadas por ano de publicação.
Todos os números encontram-se em ordem cronológica, o que facilitou nosso
levantamento das resoluções da Secretaria de Educação e Cultura, que expressam
aspectos legais relativos a nosso objeto de pesquisa.
Elaboramos o quadro abaixo para a visualização do encadeamento das
publicações na imprensa oficial — Notícias do Município (1998-99) — das nor-
mativas que regulamentam e dão exequibilidade às alterações do estatuto do ma-
gistério. Escolhemos explicitar as que pormenorizam a criação da função de PAP,
transcrevendo aquelas que se referem aos usos do tempo como a organização da
hora de trabalho pedagógico coletivo e aquelas que estruturam a seleção de PAP.

Quadro 1 – Legislação sobre a função de PAP (1998 a 2001)

Lei municipal nº 4681, de 26 de novembro de 1998 Institui as funções do magistério, o que


Dispõe sobre o ensino público municipal e sobre o estatuto do permite que um professor possa, cumprin-
magistério; em seu artigo 10, criou a designação para as atividades do os requisitos, sair da sala de aula e ser
educacionais complementares. coordenador pedagógico.

Resolução SEC nº 008/99, de 26 de fevereiro de 1999 A normativa coloca o PAP em igualdade


Estabelece critérios para o desenvolvimento das atividades das horas com o diretor escolar, a equipe técnica e
de trabalho pedagógico coletivo HTPC e das horas em trabalho pe- o orientador pedagógico ao lhe abrir a
dagógico livre HTPL nas EMEIs módulos 1 e 2, Ensino fundamen- possibilidade de coordenar a HTPC.
tal e Educação especial, e atribui a coordenação do HTPC ao PAP.

Resolução SEC nº 11/99, de 26 de março de 1999 Coloca em discussão o perfil do professor


Informa que será constituída uma comissão paritária com o objetivo designado para atividades educacionais
de estabelecer critérios de designação das professoras para as ativida- complementares.
des educacionais complementares.

Resolução SEC nº 03/99, de 19 de abril de 1999 Integram a comissão profissionais da


Resolve: Constituir uma comissão paritária com o objetivo de Educação. São profissionais concursados,
estabelecer critérios de designação das professoras para as atividades diretores escolares, professoras, orientado-
educacionais complementares com a devida aprovação do Secretário res pedagógicos e chefes de seção (concur-
de Educação e Cultura. sados, exercendo cargos de confiança).
Art. 1º - Constituir comissão de normatização das atividades educa-
cionais complementares, composta dos seguintes funcionários, Nancy
Luz Censon, Jumara Bulha Gonçalves, Eunice Paiva Okabe, Tânia
Cecília Botas de Oliveira e Souza, Laís Avena da Silva Andrade,
Kátia Maria de Carvalho Diniz Margarete, Lídia Serraria Franzini,
Marlene Lopes Oliveira, Sônia Regina Fernandes, Lima Miriam
Criez Nóbrega Ferreira, Miriam Pereira Shibayama Patrizzi, Maria de
Fátima Simões de Souza e Elma Oliveira Cruz Witkowski.

378
Edital nº 01/99, de11 de junho de 1999 Este é o primeiro edital de seleção para as
Normatização e inscrição de conformidade com o disposto na resolu- atividades educacionais complementares.
ção 7019/99. Nanci Luglio Censon, na qualidade de coordenadora da Esboça como a Rede se organiza quanto à
comissão de normatização das atividades educacionais complemen- quantidade de professoras fora da sala de
tares, torna pública aos integrantes do quadro do magistério da Rede aula, exercendo funções do magistério, para
Municipal de ensino a normatização do artigo 10 da lei municipal nº que os alunos não sejam prejudicados; e
4681/98. traz os contornos do perfil desse profissio-
nal quanto aos pré-requisitos, seleção e per-
manência na função, mas silencia quanto às
atribuições. Limita em 2 anos o tempo de
permanência em designação.

Fontes: Publicações das normativas na imprensa oficial — Notícias do Município (1997-90) — que regula-
mentavam e davam exequibilidade às alterações do estatuto do magistério.

Sobre o uso da legislação como fonte para as pesquisas em História da


Educação, de acordo com Faria Filho (1998, p. 98), a posição corrente na his-
toriografia tem sido entendê-la como expressão dos grupos dominantes. Numa
análise crítica a esse posicionamento recorrente, o autor propõe interpretar a le-
gislação também como expressão de uma linguagem e expressão de uma prática
social, aspectos passíveis de serem percebidos em dois momentos distintos: na
produção da lei e na sua realização.
No momento de produção da lei, a Resolução SEC nº 03/99, de 19 de
abril de 1999, indica preocupação com relação aos critérios de seleção para essa
função e, para isso, cria uma comissão da qual emanarão os critérios para a seleção
dos novos profissionais. Os indivíduos que compõem essa comissão ficam respon-
sáveis pela criação do edital para seleção de PAPs. Esses indivíduos são profissio-
nais que têm ou tiveram atuação direta nas escolas e que, independentemente da
posição que ocupam, fazem parte do quadro de magistério.
O fato de pertencerem a essa categoria profissional confere a tais pessoas
o conhecimento sobre o tema do qual tratam na Resolução (professores, escolas
e organização de pessoas). Os responsáveis por produzir as normativas não são
representantes de uma mentalidade externa à SEC ou ao campo educacional que
impõem alterações na estruturação do trabalho docente através da PAP. Pelo con-
trário, são membros do quadro do magistério que, pela posição que ocupam, são
designados para compor essa comissão. Outro ponto observado nessas Resolu-
ções é a forte presença de mulheres na constituição da comissão paritária. Sobre
a presença da mulher na legislação escolar, Faria Filho (1998) a indica como
demarcadora de identidades.
A legislação escolar expressa de forma inequívoca a tensão per-
manente vivenciada no campo da educação relativa à identidade
dos profissionais que dela devem se ocupar. Pode-se observar

379
que em relação à chamada feminização do magistério e ao seu
outro a desmasculinização, [...] a legislação é pródiga em exem-
plos (FARIA FILHO,1998, p. 115).

Assim, no momento da produção das Resoluções SEC, que cuidam da


emersão da PAP, nota-se que a comissão é composta, predominantemente, por
mulheres que ocupam cargos em escolas e cargos em comissão na SEC. Essas
profissionais são ou foram professoras, orientadoras pedagógicas e diretoras, mas,
naquele momento, estavam investidas em outras funções na própria Secretaria de
Educação e Cultura e marcavam a presença feminina na tomada dessas decisões
que impactam o cotidiano escolar. Percebemos, aqui, a desmistificação da figura
do legislador, figura masculina, distante muitas vezes, que é evocada para a com-
preensão das intenções do alcance da lei.
Quanto ao segundo momento, o de realização da lei, Faria Filho (1998, p.
109) propõe pensar a legislação como inspiradora de novas práticas. Dessa forma,
entende-se que as Resoluções apresentadas criam uma nova figura no cotidiano
da escola, que, por sua vez, coloca em curso a formação em serviço e, para efetivar
essa ação, faz elaborações que produzem alterações na organização do trabalho
pedagógico das professoras — por exemplo, implantando novos instrumentos de
acompanhamento do trabalho e reconfigurando os que já existem.
A legislação que intenta moldar realidades a partir do momen-
to em que é emanada pelos locais de poder muitas vezes não
considera aspectos de ritualização, adaptação e continuidades de
médio e longo prazo. Ao desconsiderar essa realidade histórica,
as alterações fracassam não somente por movimentos de resis-
tência, mas porque seu cumprimento torna-se um ritualismo
burocrático que pouco se aproxima do que de fato ocorre nas
escolas, deixando um núcleo de práticas inalterado até mesmo
após as reformas (VIÑAO FRAGO, 2002, p. 68).

Para equacionar o descompasso entre as reformas e as mudanças no dia a


dia escolar, o autor cita a expressão “cultura escolar”, cunhada pelos historiadores
da educação, que permite análises da escola real. Tal expressão tem se revelado
como uma categoria de análise em recentes estudos sobre a história da educação.
Faria Filho (1998), a partir de sua experiência e prática de pesquisa com a
legislação como fonte, propõe uma crítica sobre a concepção mecanicista que en-
tende a legislação como campo de expressão e imposição exclusiva dos interesses
das classes dominantes. O autor retoma as ideias de Julia (2001) sobre a análise
de normas e práticas, que deve considerar o corpo profissional daqueles que são
chamados a cumprir as ordens (o que inclui todos e não somente as classes domi-
nantes), para concluir que a legislação possui dinamicidade no campo educativo,
o que a torna surpreendente. Estamos de acordo com Faria Filho (1998) sobre as

380
possibilidades abertas no campo pela utilização dessa categoria de análise, desde
que se tenha o cuidado de não produzir estudos historiográficos baseados apenas
nas reformas educacionais.
Observamos que tanto Viñao Frago (2002) quanto Faria Filho (2001) alu-
dem ao fato de que a legislação por si só não permite uma análise completa do
campo educacional. Viñao Frago (2002) indica a necessidade de análises mais
complexas, que podem ser agrupadas na categoria das culturas escolares. O autor
afirma inclusive que há várias culturas escolares, da mesma forma que há várias
escolas.
As resoluções emanadas pela Secretaria de Educação e Cultura conferi-
ram legitimidade à PAP, proporcionando sua inserção no cenário educacional
do Município de São Bernardo do Campo. Nas Resoluções SEC, a PAP é uma
profissional que se submete a uma seleção interna pela escrita de um projeto e
que, ao final do ano letivo, precisa ter suas práticas validadas por seu grupo para
continuar atuando, pois havia a possibilidade de ela não ser validada ao final de
um ano de trabalho. Ao participar da seleção, ela aceitava a incerteza tanto da
continuidade, que perdurava, caso ela fosse selecionada, até o final do ano letivo,
quanto das atribuições, com as quais ela só teria contato efetivo quando ingres-
sasse na função.

Relatar a vida, descrever a profissão: as entrevistas e seu potencial para


a escrita das histórias das PAPs

A professora de apoio foi uma profissional que transitou em diferentes po-


sições no mesmo espaço — o escolar. Ela esteve sujeita a incessantes transforma-
ções — professora, coordenadora, participante de assessoria e produtora de textos
prescritivos — que não podem ser desconsideradas, pois constituem reflexos da
representação de si e da sua percepção da realidade. Portanto, ouvir suas vozes
mostrou-se essencial para recuperar fragmentos da história da profissão docente e
apresentar as estratégias elaboradas a fim de constituir esse lugar. Para isso, foram
ouvidas quatro profissionais que estiveram na função, identificadas com nomes de
flores, contribuindo cada qual com seu perfume.
Sobre o uso da narrativa, Cunha (1997) aponta duas tendências importan-
tes: a pesquisa que usa a narrativa e a investigação da narrativa usada no ensino.
Nas palavras de Cunha (1997), “[...] as narrativas podem ser tanto um fenômeno
que se investiga como um método de investigação”.
Quando uma pessoa relata os fatos vividos por ela mesma, per-
cebe-se que reconstrói a trajetória percorrida, dando-lhe novos
significados. Assim, a narrativa não é a verdade literal dos fatos,

381
mas, antes, é a representação que deles faz o sujeito e, dessa for-
ma, pode ser transformadora da própria realidade (CUNHA,
1997, p. 39).

Sobre a narrativa como fenômeno que se investiga, na apresentação da


obra A vida e o ofício dos professores (BUENO; CATANI; SOUSA, 2000), as auto-
ras indicam os textos autobiográficos como produções que traduzem os processos
mediante os quais os professores dão forma viva e concreta às suas práticas. As
autoras destacam que os relatos fazem emergir os embates e as acomodações entre
três instâncias: histórias de vida, histórias de formação e conhecimentos oriundos
da experiência. A PAP, a partir da sua história de vida e experiência profissional,
revive o que foi ser PAP na escola em que atuou, o que torna sua memória única.
As entrevistas fazem emergir as memórias das PAPs e possibilitam que
elas possam falar sobre quem são, para além do que dizem as normativas. Pollak
(1992) entende memória e identidade como elementos diferentes e, nesse proces-
so de constituição, apresenta o trabalho do historiador como contribuição ao “en-
quadramento da memória”173. Entendemos que esse enquadramento é uma tarefa
importante a ser feita para o tratamento histórico das elaborações dos primeiros
profissionais que realizaram ações típicas de coordenação pedagógica.
A despeito do detalhamento da seleção, contido nas normativas apresenta-
das no quadro 1, as entrevistadas elegem outros pontos de vista sobre o processo
seletivo das profissionais. Por exemplo, elas apontam que ser reconhecida como
alguém com boas práticas e ter afinidade com a diretora eram critérios para ser
PAP. Conforme Margarida (2019): “Eu também fui escolhida, a proposta inicial da
PAP era que a professora indicada tinha que ter boas práticas. Era um dos critérios. Um
critério principal”174. Possuir afinidade com a diretora e ser portadora de boas prá-
ticas são uma astúcia utilizada pela professora, que desejava participar do proces-
so de seleção de PAP. Apenas a entrevistada Miosótis (2019) citou a necessidade
de participação em processo seletivo com a escrita de um projeto, demonstrando
conhecimento do processo previsto pela resolução:
Sim, havia um processo seletivo com algumas perguntas norteadoras.
Na verdade, era um projeto que a gente tinha que fazer para poder
ser escolhida e aí, depois disso, você colocava algumas opções. Você en-
viava o projeto para a Secretaria de Educação e colocava algumas

173 Sobre o conceito de “enquadramento”, Pollak (1989) cita Henry Rousso como autor do termo me-
mória enquadrada em lugar de memória coletiva. Como um exemplo de enquadramento da memória,
cita o trabalho dos historiadores no campo político: historiadores gauleses, historiadores socialistas,
sindicalistas etc. cuja tarefa de enquadramento da memória ajudou a constituir a história nacional da
herança do século XX na França.

174 Entrevista concedida por Margarida. Entrevistadora Rubia Armelini de Freitas. São Bernardo do
Campo, 23 de julho de 2019. A entrevista encontra-se transcrita na íntegra em Freitas, 2020.

382
alternativas de escola, mediante a localização que você preferia. Eu
coloquei três alternativas e as duas primeiras eram pertinho da mi-
nha casa. Bem pertinho da minha casa. Mas, as professoras que que-
riam ser PAP já eram da escola, então, elas foram escolhidas primeiro
e elas ficaram como PAP e eu fiquei com a minha terceira opção que
era no Bairro das Flores: a EMEB Vitória Régia. 175

Acreditamos, conforme Nóvoa (2013, p. 18), que as abordagens autobio-


gráficas fazem “reaparecer os sujeitos face às estruturas e aos sistemas, a qualidade
face à quantidade, a vivência face ao instituído”. Os relatos colhidos nas entrevis-
tas trazem outros elementos para a compreensão da emersão da PAP no contexto
educacional, através de suas próprias vozes somadas aos critérios das Resoluções.
Os relatos também revelam a dificuldade em conseguir que as pessoas
da escola participassem da seleção para a função. De acordo com a entrevistada
Azaleia (2019), isso ocorria porque “ninguém sabia o que ia fazer um professor de
apoio, então, já chegou à escola... Esse desconhecido... Isso assustou muito”176. Os direto-
res precisavam realizar um trabalho de convencimento para que alguém do grupo
aceitasse atuar como PAP. Quanto à dificuldade em conseguir algum professor
para participar da seleção — diante do desconhecimento das atribuições —, as
entrevistadas relatam três posicionamentos: o do diretor, o da PAP e o do grupo
de professoras. De acordo com Margarida (2019), “Ninguém queria. A diretora
vinha todo o tempo... Vamos lá... Elas tinham que convencer. Eu dizia que precisava
pensar, ela ia e dali duas horas ela voltava. Você já pensou?177
Quando não havia a pressão do diretor para assumir, o professor que acei-
tava de forma espontânea preferia exercer a função em outro local, conforme o
relato de Miosótis (2019):
Era a diretora: Mas não está dando certo, quem seria tal, e nesse
momento, eu me manifestei, eu falei: olha eu tenho interesse sim de
ter outra função, mas, não aqui. Não, aqui não, gente. Eu acho que
eu já conheço as pessoas, já conheço a comunidade e eu gostaria de um
desafio diferente, então, eu não aceitei naquela minha escola.178

Para Azaleia (2019), consultar o grupo era importante:


E aí, eu fui fazer uma pesquisa. Foi uma primeira posição que tomei
diante do grupo, porque você é do grupo. Você vai ser retirada porque

175 Entrevista concedida por Miosótis. Entrevistadora Rubia Armelini de Freitas. São Bernardo do Cam-
po, 10 de julho de 2019. A entrevista encontra-se transcrita na íntegra em Freitas, 2020.

176 Entrevista concedida por Margarida, 2019 (Freitas, 2020).

177 Entrevista concedida por Azaleia. Entrevistadora Rubia Armelini de Freitas. São Bernardo do Cam-
po, 23 de julho de 2019. A entrevista encontra-se transcrita na íntegra em Freitas, 2020.

178 Entrevista concedida por Margarida, 2019 (Freitas, 2020).

383
você não tem mais como ser do grupo. Eu tinha ali... Porque eu che-
guei em 1989. Eu tinha nove anos de escola. Minhas colegas tinham
20/25 anos de escola, então era complicado. E aí, conversando uma
vez com uma colega, eu falei: “Olha, a Diretora quer que eu assuma o
lugar da PAP anterior”. Ela virou para mim e disse assim: “Olha, se
você não quiser nunca mais falar com ninguém nessa escola, assuma
como PAP”179.

Observamos que, quanto ao processo de escolha, três entrevistadas apon-


tam resistências, dúvidas, dificuldades e hostilidade acerca da tomada da decisão.
Nos três relatos há algum tipo de pressão, seja por parte das professoras, que não
gostariam que ninguém do grupo aceitasse ser PAP — como aparece no relato
acima, quando a professora aconselha a colega a não aceitar pois, caso aceitasse, o
grupo não falaria mais com ela —, seja do diretor, que pressiona para que alguém
do próprio grupo aceite, com a intenção de que não venha ninguém de fora da
escola. Até mesmo quem gostaria de ser PAP preferia exercer a função em outro
local, indo ao encontro da vontade do grupo (que não queria que ninguém do
grupo mudasse de posição).
Porém, a quarta entrevistada — de nome Lisianto (2019) — tem outra
percepção a respeito do processo de escolha.
Eu sou muito abençoada. Tanto com diretor, quanto com professor...
Como era tudo muito novo, então, elas me viam como alguém que
realmente estava contribuindo com o conhecimento novo, alguém
mais experiente que elas em alguns conceitos e conteúdos, então, elas
tinham muito respeito pelo meu trabalho. Claro, era mútuo. Antes
de ser PAP, eu tinha uma boa relação no grupo. Nunca tive professor
que ficou de “mimi”. Graças a Deus. Quando eu saí de lá, eu fui para
a EMEB Zeferino Gomes, por um tempo também, e fui querida. O
grupo queria, diretora queria que eu fosse, então, também fui rece-
bida assim com muito carinho, com respeito. Mas eu acho assim, não
é regra. Porque pelo que eu sei, assim, muitas colegas tiveram muito
trabalho com muitos grupos de professoras mais velhas que ficavam
melindradas, sabe, com o novo, e aí, tinha muita resistência. Eu não
tive isso não. Mas lá na EMEB Zeferino Gomes, que era Educa-
ção Infantil, era um grupo novo e não tive problema não, graças a
Deus180.

Os relatos revelam-se como instrumentos de facetas múltiplas, de acor-


do com Pollak (1992). A princípio, a memória parece um fenômeno individual.
Entretanto, quando se ajusta a lente, é possível perceber que ela é também um
fenômeno coletivo, construído socialmente. De acordo com Pollak (1992, p. 5),

179 Entrevista concedida por Azaleia, 2019 (Freitas, 2020).

180 Entrevista concedida por Lisianto. Entrevistadora Rubia Armelini de Freitas. São Bernardo do Cam-
po, 29 de julho de 2019. A entrevista encontra-se transcrita na íntegra em Freitas, 2020.

384
“o que a memória individual grava, recalca, exclui é um trabalho de organização”,
ou seja, um fenômeno construído e influenciado pela memória coletiva ou social.
Assim, compreendemos que as experiências vividas e relatadas por cada uma das
profissionais nas escolas não são apenas percepções da PAP, são memórias que
sofrem influências das políticas e dos julgamentos sobre o vivido.
Além disso, observamos a preocupação com a escolha dessas profissionais
expressa também na legislação. Foram necessárias três resoluções sobre a consti-
tuição da comissão para estabelecer os critérios da designação de professoras para
as atividades complementares181: a resolução SEC nº 11/93, de 26 de março de
1999, que instituiu a comissão sem nomear nenhum membro e indicou o assunto
do qual iriam tratar; a Resolução SEC nº 03/99, de 19 de abril de 1999, que indi-
cou os membros, entre os quais professoras, diretores, orientadores pedagógicos e
ocupantes de cargos em comissão; e a resolução SEC/SEDESC 02/99, de 23 de
abril de 1999, que considerou a participação de membros de outras Secretarias,
como a de Desenvolvimento Social (SEDESC), para a elaboração dos critérios
de seleção.
Faria Filho (1998), ao criticar a corrente historiográfica que entende a
legislação como expressão da classe dominante, nos oferece duas chaves de lei-
tura. A primeira permite olhar a lei como estratégia de intervenção de diferen-
tes grupos no campo educativo, e a segunda como materialização prática de um
pensar pedagógico. Considerando que há presença de integrantes do quadro do
magistério na comissão que discute os critérios de seleção para PAP (conforme
comentários acerca do quadro 1), um elemento de compreensão possível é que a
figura da PAP emerge não por intervenção do pensar da classe dominante, mas
por expressão do pensar pedagógico182 da própria categoria das professoras:
[...] assim, se conceber também a lei como materialização, ou
como prática de um determinado “pensar pedagógico”, pode-
rei perceber outros ângulos até então não pensados antes, por
exemplo, muito mais do que temos pensado, a lei está intima-
mente ligada a determinadas formas de concepção da escola,
concepções estas que são produzidas no interior dos parlamen-
tos ou de alguma outra instância do Estado, mas apropriadas de
maneiras as mais diversas pelos diferentes sujeitos ligados à pro-
dução e à realização da legislação. Talvez seja essa, também, uma
boa chave de leitura para uma aproximação das inúmeras leis e
reformas de ensino como estratégia de intervenção, de diferen-
tes grupos, no campo educativo (FARIA FILHO, 1998, p. 115).

181 Nome dado pela lei municipal nº 4681, de 26 de novembro de 1998, para as atividades que o professor
pode desempenhar além de ministrar aulas em turmas de alunos.

182 Faria Filho (1998), ao falar em pensar pedagógico, refere-se ao método mútuo, pois está tratando da
legislação dos anos 20 e 30 do século XIX.

385
O primeiro edital de seleção (1999) apontava apenas duas condições para
participar do processo seletivo. A primeira era atender aos requisitos de provi-
mento para o cargo de professor, estabelecidos de acordo com o quadro XIV,
anexo 6, da lei 4681/98: habilitação específica em magistério em nível básico
infantil e de ensino médio com habilitação em pré-escola, ou curso superior em
Pedagogia com licenciatura plena e habilitação em pré-escola e cursos em nível
superior com formação para a docência que habilitem ao desempenho profissio-
nal nessa área educacional, nos termos da legislação. A segunda condição era ter
experiência mínima de três anos na função.
Ouvir as vozes das PAPs por meio das entrevistas instigou a discussão
(embora breve), de temas como memória, esquecimento e identidade docente,
considerando as lições de Bourdieu (1996, p.186) quanto ao fato de que o relato é
uma representação do vivido e que está condicionado a uma visão de si e ao lugar
do discurso.

Considerações finais

As PAPs foram as primeiras professoras às quais foram atribuídas a co-


ordenação das horas de estudo coletivo nas escolas de Educação Infantil, no
município de SBC. Elas emergiram em um contexto de efervescência social e
jurídico-legislativa, com a responsabilidade da coordenação da HTPC e como
garantia de formação e aperfeiçoamento dos colegas, nas escolas, para implemen-
tar inovações educacionais.
O conceito de estratégia, concebido por Certeau (2017) e entendido aqui
como cálculo (ou manipulação) das relações de força a partir de um lugar de po-
der, permite perceber a criação da função de PAP como estratégia da Secretaria
de Educação e Cultura — realizada a partir do lugar ocupado por essa profissio-
nal no campo — para a reconfiguração do trabalho dos professores. A PAP, pelo
lugar que ocupava, crivado pelas resoluções e até pela validação do grupo, podia,
por exemplo, escolher as discussões colocadas em campo, na escola no horário de
trabalho pedagógico coletivo.
Nas entrevistas com as PAPs, percebemos que elas são professoras que
possuíam afinidades com o diretor, além de boas práticas e predisposição de aceitar
desafios como o desconhecimento das atribuições, e que sofriam pressões antes e
depois de ingressar na função, especialmente por parte do grupo de professoras.
As entrevistas trouxeram-nos elementos para pensar na emersão das
PAPs a partir de suas vozes, relatando as astúcias na argumentação dos critérios
(ser referendada pela diretora e ter boas práticas) e as estratégias de enfrentamen-
to e posicionamento diante das pressões dos diferentes grupos — professoras e

386
diretores —, mesmo antes de participarem do processo de seleção, consultando o
grupo, preparando-se para escrever o projeto e, assim, demonstrar seus saberes.
Ao recuperar sua constituição nos meandros das normativas e as memórias
de suas ações, podemos perceber a partir de quais bases constituíram um conjunto
de saberes criador dos contornos do futuro cargo de coordenador pedagógico.
Não obstante os desafios, a função de PAP não naufragou, ao contrário, constituiu
terreno fértil, abrindo caminho para sua transformação em cargo, via concurso
público de ingresso no ano de 2009. Todas as elaborações discutidas até aqui pos-
sibilitam-nos perceber as dificuldades, resistências e superações das profissionais
que, primeiramente, assumiram a função de professoras de apoio pedagógico.
Villela (2000, p. 96), ao retomar a descrição do mestre-escola realizada por
Manuel Antônio de Almeida na obra Memórias de um sargento de milícias, comen-
ta que entre o professor de hoje e o mestre-escola de outrora há estranhamentos
e familiaridades reveladores de traços que os distinguem e, ao mesmo tempo, os
aproximam. E então questiona: O que mudou na história da profissão docente?
Quais traços de seu ofício têm se mantido? É possível perceber continuidade na
configuração dessa atividade?
Villela (2000) fala de outra configuração de escola, diferente da que co-
nhecemos. Com estas reflexões finais, não pretendemos ligar eventos afastados no
tempo para construir uma narrativa histórica, mas trazer aspectos que permitam
a continuidade do debate sobre a emersão da coordenação pedagógica, a partir de
elementos recorrentes em nossa recente história da profissão docente.

Referências

BOURDIEU, P. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

BOURDIEU, P.. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta M.


(Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
p. 182-191.

BRASIL. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da


Educação Nacional. Brasília: Presidência da República, 1996.

BUENO, Belmira Oliveira; CATANI, Denice Bárbara; SOUSA, Cynthia Pereira


de. A vida e o ofício dos professores: formação contínua, autobiografia e pesquisa em
colaboração. São Paulo: Editora Escrituras, 1998.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1: Artes de fazer. 22. ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 2017.

387
CUNHA, Maria Isabel da. Conta-me agora! As narrativas como alternativas
pedagógicas na pesquisa e no ensino. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v.
23, n. 1/2, p. 185-95, jan.-dez. 1997. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfe/
article/view/59596/62695 Acesso em: 8 jan. 2022.

FARIA FILHO, Luciano Mendes de. A legislação escolar como fonte para a história
da educação: uma tentativa de interpretação. In: ______. (Org.). Educação, modernidade
e civilização. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. p. 89-125.

FREITAS, Rubia Armelini de. Cenas inéditas da vida das professoras de apoio pedagógico:
um estudo da emersão da função de professor coordenador em São Bernardo do Campo:
1998 a 2009. 2020. 163 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal de São Paulo, São Paulo, 2020.

FUSARI, José C. Tendências históricas do treinamento em educação. In: Recursos


humanos para a educação. Série Ideias (FDE, Estado de São Paulo). São Paulo: SEE,
1988.

JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da


Educação, Campinas, n. 1, p. 9-44, 2001.

MIGNOT, Ana Chrystina V. Um objeto quase invisível. In: ______ (Org.). Cadernos
à vista: escola, memória e cultura escrita. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2008. p. 261-
267.

NÓVOA, António. Os professores e as histórias da sua vida. In: ______. (Org.). Vidas
de professores. 2. ed. Porto: Porto Editora, 2013. p. 18-30.

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro,


v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.

POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.


5, n. 10, p. 200-12, 1992.

SÃO BERNARDO DO CAMPO. Prefeitura Municipal. Portal da cidade. Disponível


em: <https://www.saobernardo.sp.gov.br/web/sbc/home>. Acesso em: 8 ago. 2019.

SÃO BERNARDO DO CAMPO. Lei municipal nº 4681, de 26 de novembro de 1998.


Dispõe sobre o ensino público municipal, o estatuto do magistério do município de
São Bernardo do Campo, criação do quadro técnico educacional, plano de cargos e
carreiras dos profissionais da educação, e dá outras providências. São Bernardo do
Campo: Prefeitura Municipal, 1998.

VINÃO FRAGO. Sistemas educativos, culturas escolares y reformas: continuidades y


cambios. Madri: Ediciones Morata, 2002.

388
VILLELA, Heloísa de Oliveira. O mestre-escola e a professora. In: LOPES, Eliana
Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive (Org.).
500 anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica. 2000. p. 95-134.

389
AUTORAS E AUTORES

ADRIANA SANTIAGO SILVA


Mestre em educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob orientação
da Profª Drª. Claudia Panizzolo. Pós-graduada em Docência do Ensino Superior e
Neuropsicopedagogia. Licenciada em Letras e em Pedagogia. Atua como diretora
escolar na Rede Municipal de Ensino de São Bernardo do Campo. Pesquisadora na
área da História da Educação, com ênfase nos processos de escolarização na infância
ao longo do século XIX. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Infância, Cultura
e História- GEPICH. E-mail: santiago_adriana@yahoo.com.br

ALESSANDRA MELO SECUNDO PAULINO


Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob orientação
da Prof.ª Dr.ª Claudia Panizzolo. Graduada em Pedagogia também pela Unifesp com
mobilidade internacional pela Universidade do Porto, Portugal. Professora da Rede
Municipal de Ensino de Guarulhos. Pesquisadora na área da História da Educação,
com ênfase nos processos de escolarização, produção e circulação de saberes sobre as
infâncias. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Infância, Cultura e História- /
GEPICH. E-mail: as_paulino@hotmail.com

AMANDA TOPIC EBIZERO


Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob
orientação do Prof. Dr. Fernando Rodrigues de Oliveira. Mestre em Educação pela
Unifesp. Graduada em Pedagogia e em Letras também pela Unifesp. É integrante do
NIPELL - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Ensino de Língua e Literatura.
Desenvolve pesquisa de abordagem histórica sobre Literatura Infantil e Juvenil
Brasileira. Foi professora de Língua Portuguesa na Educação Básica na rede privada
de ensino. E-mail: amanda.topic@hotmail.com

CLAUDIA PANIZZOLO
Estágio pós-doutoral na Universidade de Caxias do Sul/ Università degli Studi del
Molise- Itália (2018-2019). Professora Associado III da Unifesp desde 2011. Líder
do Grupo de Estudos e Pesquisa Infância, Cultura, História- GEPICH; membro
pesquisadora do Grupo “História da Educação, Imigração e Memoria” - GRUPHEIM
e do Grupo “TRANSFOPRESS BRASIL - Grupo de Estudos da Imprensa em
língua estrangeira no Brasil”; do Grupo de Estudos e Pesquisa História da Educação:
intelectuais, instituições, impressos. E-mail: claudia.panizzolo@unifesp.br

EDUARDO BEZERRA DE SOUZA


Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob
orientação do Prof. Dr. Fernando Rodrigues de Oliveira. Integrante do NIPELL -
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Ensino de Língua e Literatura. Mestre

390
em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado em
Pedagogia. Atua como assistente técnico de educação na Divisão Pedagógica da
Secretaria Municipal de Educação do município de São Paulo. E-mail: edu10puntos@
gmail.com

ELIAS MORAES DOS SANTOS JUNIOR


Mestrando em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob
orientação o Prof. Dr. Fernando Rodrigues de Oliveira. Graduado em História pela
Unifesp. Integrante do NIPELL - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Ensino
de Língua e Literatura. Atua como professor de História no ensino Fundamental e
Médio na rede estadual de ensino de São Paulo. E-mail: eliasmoraessantosjr@gmail.
com

FERNANDA MARQUES DA SILVA


Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob
orientação da Profª Drª. Regina C. E. Gualtieri. Graduada em Pedagogia pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora nos anos iniciais do ensino
Fundamental, na Prefeitura Municipal de Jundiaí. Participa do Grupo de Estudos e
Pesquisas Histórico-sociais sobre Escola e Docência (GEPHED - CNPq). E-mail:
fmarquessilva81@gmail.com

FERNANDO RODRIGUES DE OLIVEIRA


Estágio pós-doutoral junto à Universidade Estadual Paulista-Araraquara (Unesp).
Doutor e Mestre em Educação pela Unesp-Marília. Licenciado em Letras pela
Faculdade da Alta Paulista e em Pedagogia pela Unesp-Marília. Professor da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde atua no curso de Pedagogia
e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Líder do NIPELL - Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Ensino de Língua e Literatura. E-mail: fernando.
oliveira13@unifesp.br

GABRIEL MENESES BARROS


Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob
orientação da Profª. Drª. Mirian Jorge Warde. Mestre em Educação pela mesma
universidade, obtendo o prêmio de melhor dissertação de Educação do ano de
2020. Membro do grupo de pesquisa História da educação: intelectuais, instituições,
impressos; membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e do Grupo
Escola Pública e Democracia (GEPUD). E-mail: gabrielmbarros@uol.com.br

LEONARDO LAGUNA BETFUER


Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob
orientação da Profª. Drª. Mirian Jorge Warde. Mestre em História Econômica pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Licenciado em História pela UNISAL. Atua nas áreas de História da Educação e da

391
produção e circulação de impressos pedagógicos nos Estados Unidos durante o século
XX. E-mail: leonardobetfuer.historia@gmail.com

MIRIAN JORGE WARDE


Estágio pós-doutoral na Columbia University (2001-2002). Professor titular da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1973-2006). Professor visitante da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) desde 2013. Pesquisador sênior do
CNPq. Líder do grupo de pesquisa: História da Educação: intelectuais, instituições,
impressos. Pesquisas recentes: História dos periódicos educacionais no Brasil e nos
Estados Unidos. E-mail: mjwarde@uol.com.brMarissimuntil conimur ut virtior
urobsen tenicum, comnon sendum in Etrae patis ta abis, uturnit.

PRISCILA CARRIEL DE LIMA


Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob
orientação da Profª Drª. Renata Marcílio Cândido. Pós-graduada em Docência do
Ensino Superior (2018). Licenciada em Pedagogia. Atua na Prefeitura de Sorocaba
lecionando aulas para a etapa da educação infantil. Pesquisadora na área da História
da Educação com ênfase nas temáticas das festas escolares, cultura escolar, práticas
pedagógicas e história da profissão docente. E-mail: pricarriel@hotmail.com

REGINA CÂNDIDA ELLERO GUALTIERI


Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (Unifesp). Professora
Associada no Departamento de Educação e nos Programas de Pós-graduação
em Educação (PPGE) e de Pós-graduação em Educação e Saúde na Infância e
Adolescência (PPGES) na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Líder do
Grupo de Estudos e Pesquisas Histórico-sociais sobre Escola e Docência (GEPHED-
CNPq). E-mail: regina.gualtieri@unifesp.br

RENAN LEOCÁDIO SOUZA


Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob orientação
da Profª Drª. Renata M. Cândido. Especialista em Psicopedagogia pelas Faculdades
Integradas de Ciências Humanas, Saúde e Educação de Guarulhos, bacharel e
licenciado em História pela Universidade de São Paulo. É professor de História nas
redes privada e pública estadual em Guarulhos. Atua com pesquisas sobre teorias e
práticas pedagógicas libertárias. E-mail: renan.prof.hist@gmail.com

RENATA MARCÍLIO CÂNDIDO


Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Mestre em Educação e
Graduada em Pedagogia pela mesma Universidade. Professora do Programa de Pós-
Graduação em Educação e do Departamento de Educação da Escola da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp). Atualmente integra o Grupo de Pesquisa História
da Educação: Intelectuais, Instituições, Impressos. E-mail: renata.candido@unifesp.br

392
ROSANA CARLA DE OLIVEIRA
Doutoranda e mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
sob orientação da Profª Drª. Claudia Panizzolo, Especialista em Docência do
Ensino Superior (PUC-SP), Pedadoga (UNICASTELO). Atualmente é formadora
responsável pela formação de professores alfabetizadores da Secretaria Municipal de
Educação de São Paulo. Desenvolve pesquisa no campo da História das Instituições
Educativas. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas: Infância, Cultura e História-
GEPICH. E-mail: rosanatts1@gmail.com

RÚBIA ARMELINI DE FREITAS


Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob
orientação da Prof.ª Drª. Renata M. Cândido. Graduada em direito pela Faculdade
de Direito de São Bernardo do Campo (2000) e com Licenciatura Plena pela USP
(2004). Atualmente é coordenadora pedagógica na Rede Municipal de São Bernardo
do Campo. Pesquisadora com interesse nos temas: história da educação, formação de
professores, metodologias ativas, memórias e profissão docente. E-mail: r.armelini@
gmail.com

WAGNER RODRIGUES VALENTE


Professor visitante junto à Universidad de Murcia, Espanha (2019); Professor
Associado Livre Docente do Departamento de Educação da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp). Pesquisador 1C do CNPq. Presidente do GHEMAT Brasil
– Grupo Associado de Estudos e Pesquisas em História da Educação Matemática.
Pesquisas recentes: História do saber profissional do professor que ensina matemática.
E-mail: wagner.valente@unifesp.br

393
Este livro resulta de pesquisas desenvolvidas por do-
centes e pós-graduandos vinculados à linha História da
Educação – sujeitos, objetos e práticas, do Programa de
pós-graduação em Educação da Universidade Federal
de São Paulo. Tratam-se de textos decorrentes de inves-
tigações que se somam à renovação e ao alargamento
temático e teórico-metodológico que vem se desenvol-
vendo no campo nas últimas décadas, com especial at-
enção para os impressos escolares, os impressos de des-
tinação pedagógica e os processos escolares formais, seus
sujeitos e suas práticas.

Os Organizadores

ISBN 978-65-87312-52-1

9 786587 312521

Você também pode gostar