Você está na página 1de 41

1

ASSENTAMENTO BELA VISTA. A PELEJA PARA FICAR NA TERRA


MARIA A . MORAES SILVA

Em A Ideologia Alemã, MARX e ENGELS (1984) cunharam o conceito de história que


representou a ruptura com a interpretação dos filósofos alemães de então. Segundo esta
nova concepção,
“...a história não termina dissolvendo-se na „autoconsciência‟, como „espírito do espírito‟, mas em cada uma
de suas fases encontra-se um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação
historicamente criada com a natureza e entre os indivíduos, que cada geração transmite à geração seguinte;
uma soma de forças produtivas , de capitais e de condições que, embora sendo em parte modificada pela
nova geração, prescreve a esta suas próprias condições de vida e lhe imprime um determinado
desenvolvimento, um caráter especial. (Esta concepção) mostra que, portanto, as circunstâncias fazem os
homens assim como os homens fazem as circunstâncias” (p. 56).
Esta passagem, dentre outras de A Ideologia Alemã, é de suma importância à análise da
realidade dos assentamentos. De modo geral, muitos autores, que debruçaram sobre esta
temática, tentaram produzir uma concepção que representasse muito mais a idéia, a
representação do que propriamente o assentamento em sua realidade histórica, concebida
enquanto processo que envolve as condições estruturadas e as referentes às ações dos
indivíduos. Desta sorte, muitas vezes, o assentamento é concebido como uma realidade
nova, sem heranças, sem vínculos com o passado. Igualmente, os assentados, bem como as
lideranças e os mediadores, são abstraídos de suas reais condições de vida, sendo em
muitos casos, mitificados, segundo os interesses das ideologias subjacentes a estes
estudos(1).
Objetiva-se neste texto à análise da realidade social do Assentamento Bela Vista do
Chibarro, situado no município de Araraquara/SP, a partir dos pressupostos acima e por
meio dos quais, homens e mulheres são considerados sujeitos de sua própria história, porém
em condições determinadas e as condições existentes em épocas passadas são transmitidas
ás novas gerações e constantemente reelaboradas . Parte-se do princípio de que a história é
um processo de recriação de experiências de homens, mulheres, jovens e crianças
envolvendo passado, presente e futuro. O conceito de História de MARX e ENGELS é um
indicativo à compreensão da experiência, segundo Thompson (1978).
“Os homens e as mulheres retornam como sujeitos, dentro deste termo – não como sujeitos autônomos ,
„indivíduos livres‟, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas
___________
(1) Para uma análise crítica dos assentamentos, ver, dentre outros: (Martins, 2000; Bergamasco, 1997; Carneiro,
1997; Moreira, 1997; Navarro, 1997; Neves, 1997).
2

como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida „tratam‟ essa experiência em sua
consciência e sua cultura... das mais complexas maneiras... e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre,
através das estruturas de classe resultantes ) agem, por sua vez, sobre a situação determinada (182).
O conceito de experiência thompsiano remete à ação dos sujeitos inseridos em relações
sociais determinadas – de classe, gênero, etnia. Importa reter o significado do verbo tratar,
referente à experiência tratada pela consciência e pela cultura, que diz respeito à
reelaboração, ressignificação de sentimentos, maneiras de pensar, de ser e de agir a partir
do mundo social em que vivem. Dizer que a experiência é resultante da imbricação da ação
dos sujeitos e das estruturas sociais existentes, é o mesmo que admitir que as
circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias. Vale
ainda acrescentar um outro ponto importante a estas reflexões. A história, quer individual
ou coletiva, não é um processo finalístico, teleológico. Há que se considerar o papel do
acaso na história. Segundo Heller (1985), as fases decisivas do desenvolvimento foram
frutos do acaso. “As alternativas históricas são sempre reais: sempre é „possível‟ decidir em face delas, de
um modo diverso daquele em que realmente se decide” (p. 15).
Estas reflexões auxiliam a compreensão do assentamento como espaço social em processo
de construção, onde as distintas temporalidades –passado, presente e futuro – acham –se
imbricadas e são resultantes das ações dos sujeitos em determinadas circunstâncias. As
ações assim produzidas não se reportam às finalidades objetivas, predeterminadas, sempre
previsíveis, porém ao campo de possibilidades, de alternativas, de acasos. Esta concepção
permite o entendimento das distintas ações do mesmo espaço social. Em vários momentos
da pesquisa de campo, constatou-se a existência de inúmeras clivagens entre os assentados.
Há aqueles que ascenderam socialmente, os que abandonaram os lotes, os que se utilizam
de estratégias não condizentes com o Projeto de Reforma Agrária, os que recorrem ao
assalariamento, sem contar as clivagens de gênero e idade. Portanto não se trata de uma
realidade homogênea, embora todas as 176 famílias tenham recebido a mesma área dos
lotes (16 ha.), os mesmos benefícios referentes à infra-estrutura, como redes de água,
eletrificação, curvas de níveis, casas na Vila, escola, transportes, posto de saúde, créditos
especiais destinados aos projetos de reforma Agrária etc.
A fim de dar conta dos objetivos deste texto, optou-se primeiramente pela análise da
história do assentamento e de algumas trajetórias dos assentados. O momento atual,
caracterizado pela difícil peleja para ficar na terra, assim como as possíveis alternativas
3

futuras, compõe o quadro de reflexões, cuja linha mestra está ancorada nas idéias acima
expostas e nos dados coligidos durante a pesquisa empírica, traduzidos em 70 horas de
entrevistas orais, observações de campo, diálogos, produção de imagens fotográficas e
realização de uma oficina de argila, metodologia que permitiu a recriação das lembranças
por meio da memória sensitiva .
Em razão do processo de desenraizamento, provocado pelas inúmeras migrações durante a
vida, a cultura, o modo de vida do mundo de antes, foram perdidos em parte ou até mesmo
totalmente. Por meio das entrevistas, as lembranças do passado chegavam ao presente
sempre de uma forma muito fragmentada. Assim, o intento de recuperar este saber por
meio da narrativa oral, mostrou-se infrutífero. No que tange à argila, além do manifesto
desconhecimento, notava-se que existia da parte de alguns um sentimento de
desvalorização . Um informante chegou a afirmar que nenhuma mulher se sujeitaria a colocar as
mãos no barro e que ninguém iria comer ou cozinhar em panela de barro, que isto era coisa do passado e
que, hoje em dia, todo mundo só quer saber do alumínio.
A metodologia proposta visava à incorporação de objetivos teóricos e práticos relacionados
à (re)descoberta da experiência e do saber de homens e mulheres, originários de várias
regiões do país: Vale do Jequitinhonha/MG, interior da Bahia, de Pernambuco, Alagoas,
Paraná, Mato Grosso do Sul. Diante do silêncio e do indizível, concluiu-se que, além da
perda do saber da produção doméstica da cerâmica utilitária, houvera a perda das
lembranças. A situação encontrada, à primeira vista, sugeria a idéia do esquecimento e
também do silêncio. A inserção numa realidade social voltada para os valores de troca, o
desaparecimento das condições objetivas e sociais da produção dos valores de uso
contribuíram para a destruição da matéria - prima das lembranças. A terra não é mais a
mesma, sem contar que a produção de valores de uso era pautada pela sociabilidade
ancorada nas relações pessoais de reconhecimento e pertencimento mútuos. À medida que
as mãos manuseavam o barro, muitas lembranças foram aflorando à superfície. Cenas,
cenários, pessoas, objetos, sons, cantos, foram, paulatinamente, definindo a urdidura do
espaço da memória. O que havia sido omitido, silenciado, repentinamente, ia tomando
forma e significado. A imaginação imprimia energia às mãos modeladoras da argila. Esta
experiência metodológica se revelou bastante frutífera para o processo de recriação das
lembranças e também para o processo de reconstituição da identidade individual e social.
4

Uma das hipóteses explicativas para os diferentes conflitos internos é a dificuldade do


processo de construção da identidade social e individual do assentado. (SILVA, 2002).
Outro recurso metodológico utilizado foi a coleta de redações e desenhos realizados pelas
crianças. Nas manifestações das crianças, em redações, quanto a suas pretensões
relativamente ao futuro, a permanência no lote do assentamento não aparece em nenhuma
delas. As profissões almejadas são: modelo, artista, dentista, cantor, rico (sic), profissões
urbanas ou difundidas pela mídia. Em contrapartida, os desenhos refletem o mundo rural
em que vivem tanto na agrovila como nos lotes. Este conjunto de técnicas possibilitou não
somente o mapeamento das questões relacionadas à experiência neste assentamento como
também a arqueologia desta experiência.
O ENCONTRO DE CAMINHANTES PROVENIENTES DE MUITOS LUGARES
O assentamento “Bela Vista” está localizado na fazenda do mesmo nome, que pertenceu à
antiga Usina Tamoio, propriedade da família Morganti desde o início do século XX e, mais
tarde, do Grupo Empresarial da família Silva Gordo. Atualmente a fazenda Tamoio é
propriedade do Grupo Corona, que transformou toda a área da fazenda em um imenso
canavial. Apenas restam algumas casas e as lembranças fixadas na memória dos milhares
de trabalhadores despedidos no início dos anos de 1980.
O assentamento dista 12 km da cidade de Araraquara/SP. A Usina Tamoio foi uma das
mais importantes usinas de produção de açúcar e álcool do estado de São Paulo no período
de 1920 a 1940. A família Morganti era proprietária de um verdadeiro império. Além da
usina Tamoio, da Monte Alegre, situada no município de Piracicaba/SP, a Fábrica de Papel
e Celulose “Piracicaba”, a Fazenda Guatapará, situada no município de Santa Lúcia/SP, os
Hortos Florestais (Itaquera em São Paulo/SP e São Pedro em Franco da Rocha/SP), eram
partes integrantes deste império. (Caires 1993).
No período de 1917, início da Usina, até 1941, ocasião da morte de Pedro Morganti, o
Velho Morganti, a extensão territorial da Usina passou de 2000 para 50000 alqueires. As
terras adquiridas, antes compunham as antigas fazendas cafeeiras. Segundo CAIRES
(1993), esta expansão verificou-se em função da crise do café nos anos de 1930. O
crescimento da Usina continuou progressivo durante as décadas de 1940 e 1950. Os
primeiros sinais de decadência surgiram no início da década de 1960, em virtude da política
dirigista do I. A . A. (Instituto do Açúcar e do Álcool), que, por meio da limitação de cotas
5

de fabricação e da regulação dos preços do açúcar, favoreceu os usineiros do Nordeste em


detrimento dos usineiros de São Paulo. Isto teria levado muitas empresas à insolvência e até
mesmo a situações mais extremas, segundo GNACCARINI (1972, p. 187, 188). No
entanto, outros fatores foram responsáveis por este processo: as mudanças na legislação
trabalhista, a promulgação do E. T. R., a política repressiva do pós-64 e algumas
particularidades do grupo empresarial Morganti, tais como a obsolescência das relações de
trabalho baseadas no paternalismo e clientelismo, as dificuldades em pagar as dívidas
assumidas em virtude da compra de uma fábrica de celulose em Piracicaba/SP e a
instituição da correção monetária, com a reforma tributária do pós-64. ( CAIRES, p.95-96).
Estas condições estruturais produziram as dispensas de milhares de colonos, os quais
passaram a reivindicar seus direitos na Justiça Trabalhista, agravando ainda mais a situação
financeira dos proprietários. Em 1969, a Usina foi vendida ao Grupo empresarial da família
Silva Gordo. De 1969 a 1982, as contradições se agravaram em função da demanda dos
trabalhadores pelos direitos, que se constituía na resposta ao processo de expulsão
provocado pela mudança nas relações de trabalho, com o aparecimento dos trabalhadores
temporários, aprofundando ainda mais a crise dos anos anteriores. Em 1982, a Usina foi
desativada. (2). A quase totalidade dos trabalhadores deixou a usina, muitos dos quais sem
receber as indenizações devidas ou ainda fazendo a opção pelo FGTS. Uma pequena
parcela, num total de apenas oito famílias lá permaneceu à espera de, algum dia, lograr o
recebimento dos valores correspondentes aos direitos. Durante o período de 1982 a 1989,
houve vários protestos de trabalhadores, inclusive com a realização de passeatas na cidade
de Araraquara, greves a fim de dar visibilidade da situação dramática vivenciada.
Ampliaram-se os processos trabalhistas ao lado da participação nos conflitos do Sindicato
dos Trabalhadores da Indústria e Alimentação, de partidos políticos etc. Todo este
movimento ganhou repercussão em nível nacional. Órgãos governamentais, como o I.A.A,
Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário, Ministério do Trabalho, partilharam
das discussões com o objetivo de se conseguir uma solução para o caso. A idéia de a partir
de então. Em 1986, por ocasião da visita do então Ministro da Reforma e
____________
(2) Segundo depoimento de um ex-morador, em torno de 15.000 pessoas foram obrigadas a sair das terras da
Usina. A grande maioria foi viver num bairro periférico - Melhado- da cidade de Araraquara.
6

desapropriação da usina pelo não cumprimento dos interesses sociais foi ganhando espaço,
Desenvolvimento Agrário, Dante de Oliveira, à Araraquara, foi-lhe entregue a solicitação
das terras da Usina Tamoio no plano de desapropriação para a Reforma Agrária. (CAIRES,
p.373e ss).
Durante este tempo, as terras da Usina passaram a ser arrendadas a outros usineiros,
complicando ainda mais a situação dos trabalhadores estáveis, que lá permaneciam. Depois
de muitas idas e vindas, em 13/04/1989, o presidente José Sarney assinou o Decreto N.
97.660, pelo qual a fazenda Bela Vista do Chibarro, uma das seções da Usina Tamoio, foi
declarada imóvel rural de interesse social e classificada como latifúndio de exploração.
Estas breves considerações sobre o processo que resultou na desapropriação destas terras da
Usina Tamoio são importantes para a interpretação de muitas situações de conflitos entre os
próprios assentados no tocante à atual situação, quando muitos deles aderiram ao plantio de
cana destinada à Usina Zanin. Cana e Usina, no imaginário dos atuais assentados, formam
uma simbiose de medo, insegurança e impotência diante das possibilidades de perda do lote
e do fracasso do Programa de Reforma Agrária. Ademais, o fato das terras do assentamento
ocuparem o mesmo espaço geográfico daaquelas das usinas e da vila ser a antiga colônia da
seção Bela Vista, considerada uma das mais importantes, gera uma relação contraditória
entre os próprios assentados e as usinas que os cercam. De um lado, há um sentimento de
vitória, de conquista de terras de usineiro, símbolo máximo da riqueza e do poder político
nesta região; por outro lado, os usineiros concebem o assentamento como um fracasso e,
por diferentes estratégias, como será mostrado ao longo deste texto, procuram penetrar no
assentamento, por intermédio do plantio de cana. Neste embate, percebe-se o processo de
luta pelo território, enquanto espaço identitário, da memória, um lugar, que represente o
final das incertezas e da vida fragmentada, um lugar-cidadão, um lugar de incluídos e não
de excluídos.
O processo de constituição deste assentamento foi permeado por muitos conflitos que
envolveram, além dos trabalhadores demandantes de terra, a FERAESP, o INCRA, a CPT e
lideranças de partidos políticos. Após o decreto de desapropriação, houve uma longa
disputa em torno da ocupação das terras da Bela Vista. Inicialmente, essa ocupação se fez
com cerca de setenta e cinco famílias, selecionadas pelo Sindicato dos Trabalhadores
Rurais e pela Comissão Agrária Estadual do INCRA. Além destas setenta e cinco famílias ,
7

havia oito famílias que já moravam em terras da Usina, e, como foi dito acima, elas ali
permaneceram até a constituição do assentamento.
Em seguida, foi nomeada pelo Estado uma Comissão Municipal que tinha como objetivo
abrir o cadastro a todos os trabalhadores da região e selecionar aqueles que deveriam
ocupar as terras da Fazenda Monte Alegre ( pertencente ao Estado), e a da Bela Vista.(3).
Foram escolhidas 120 famílias de acordo com as normas de seleção do INCRA. No entanto
este processo acabou sendo conturbado em virtude da presença de trinta e seis famílias,
provenientes do Vale do Ribeira, que já estavam acampadas nas terras da Usina Tamoio, e
da vinda de mais 27 famílias, provenientes do Acampamento de Promissão/SP. Os maiores
desentendimentos surgiram no momento da chegada do grupo das famílias provenientes de
Promissão. Segundo alguns depoimentos, tratou-se de uma verdadeira guerra. As famílias,
que já estavam instaladas, temiam pela perda das terras, e, por isso, organizaram-se e
fecharam todas as entradas do assentamento. Formaram verdadeiras trincheiras de homens,
mulheres e crianças, armados de paus, pedras, carabinas etc. Segundo as palavras do atual
presidente da FERAESP, os conflitos se deram em razão do descumprimento dos acordos
pelo INCRA.
O agravamento dos conflitos foi acrescido com a proposta do INCRA de reduzir para
12,5ha o módulo das terras, em resposta à demanda de 16ha dos trabalhadores e também
pela intenção deste Órgão em autorizar a vinda de mais 55 famílias de Promissão. Na
realidade havia uma tensão social muito grande em Promissão, já que as famílias estavam
acampadas havia mais de três anos. A estratégia do INCRA era dirigida no sentido de
aliviar as tensões, que se tornaram públicas, por meio de passeatas e divulgação pela mídia,
da situação social ali existente. Com isso, há um conflito entre os interesses do INCRA e
daqueles que já haviam entrado na terra, amparados pelo Sindicato e pela FERAESP
(ROSIM, 1998).Em relação ao grupo das 36 famílias, compostas por trabalhadores da
região do Vale do Ribeira, que ocuparam as terras sem a permissão do INCRA, houve uma
ordem de despejo no dia 4 de julho de 1990. Uma reunião de trabalhadores decidiu pela
permanência das famílias e a organização de piquetes nas quatro entradas da fazenda.
Novos conflitos se sucederam com as negociações dirigidas pelo Sindicato, que apresentou
__________________
(3) Os representantes desta Comissão pertenciam aos seguintes órgãos: INCRA, DAF, Sindicato dos
trabalhadores rurais, Casa da Agricultura, Prefeitura Municipal, Câmara Municipal e UNESP.
8

uma proposta alternativa ao INCRA, segundo a qual, as 36 famílias permaneceriam na terra


até que uma Comissão de Seleção local reavaliasse a situação de cada uma delas. O
resultado desta reavaliação foi o seguinte: 20 famílias permaneceriam na terra; 09 deveriam
deixar o assentamento; 07 passariam por nova análise, pois houvera empate na votação.
De acordo com ROSIM (1998, p.105), houve um “ „acordo de cavalheiros‟ entre os
assentados e o Sindicato, de um lado, e o INCRA, do outro lado”. Após um determinado
tempo, permaneceu indefinida a situação das famílias, cuja avaliação foi considerada
empatada pela Comissão e aquelas, cujo parecer sobre a permanência fora negativo,
continuaram nas terras. Atualmente, o assentamento possui 176 famílias. As 26 famílias
restantes foram sendo incorporadas após este processo inicial. Por meio dos depoimentos,
foi possível perceber a existência da rede de parentesco, como sendo o elemento
responsável pela instalação destas últimas famílias.
A leitura dos depoimentos coligidos - de homens e mulheres, provenientes dos vários
grupos, além dos mediadores, lideranças e dos trabalhos dos pesquisadores - revela a
verdadeira face da cultura da culpa (Martins, 2000, p. 62). A cultura da culpa e as marcas
deixadas pelos conflitos iniciais são alguns dos elementos responsáveis pelas dificuldades
atuais referentes ao processo de construção da identidade social dos assentados; a pesquisa
de campo constatou, em muitas ocasiões, as fragmentações advindas de disputas internas,
desavenças no cotidiano, violência, criação de associações contrárias entre si, além de
outros conflitos. Enfim, não conseguem se ver como pertencentes a um mesmo grupo, ou
seja, a fragmentação inicial não é somente reproduzida, mas, em muitos casos, é reforçada
pelas próprias lideranças e mediadores. A busca do culpado, geralmente o INCRA, acaba
impondo-se como determinante em suas relações cotidianas. Assim sendo, este Órgão,
desde a gênese do assentamento é o culpado por todos os males e fracassos. O diálogo
político entre o representante do Sindicato e o INCRA, responsável pela acomodação de
todas as famílias demandantes, foi ofuscado pela cultura da culpa .
O fato de ter havido a guerra para impedir a entrada dos acampados de Promissão revela
que a prática das lideranças locais, na verdade, refletia os moldes da propriedade privada,
ou seja, não conseguiam enxergar que a terra tem um destino social e não privado. Assim
sendo, ao invés de considerar o movimento social de luta pela terra no seu conjunto,
privatizaram-na, dividiram-na entre aqueles que estavam ligados às lideranças locais. Os
9

acampados de Promissão passaram a ser vistos como inimigos e não como iguais, como
pertencentes ao mesmo grupo social de espoliados. De demandantes de terra, passaram à
condição de invasores de terras dos próprios assentados, despejados pelo INCRA. Portanto,
observa-se que o campo de disputa muda de lugar; não se trata mais de uma luta de classes
entre trabalhadores e proprietários de terra, porém de uma luta pelo poder político entre
lideranças locais e INCRA, cujos efeitos mais imediatos são as divisões internas dos
trabalhadores .
Estas reflexões são importantes para a compreensão do significado de sujeito. Quem são
estes sujeitos? No caso dos trabalhadores, a condição de sujeitos não pode existir sem a
representação política das lideranças. Em outros termos, a identidade de acampado e
identidade de acampado e assentado é forjada pelos mediadores; são estes os seus
representantes, os seus porta-vozes. Produz-se neste novo contexto uma rede de relações de
dependência, muitas vezes, caracterizada pela outorga e clientelismo. Os relatos referentes
ao momento anterior à chegada ao assentamento revelam as infinitas reuniões com as
lideranças, as promessas feitas por elas, as idas e vindas, as viagens de um lugar para o
outro, enfim, a personalização das relações ocupa um lugar central neste contexto.
Depoimentos dos diferentes grupos dão conta desta fragmentação originária, que se
reproduz ainda hoje, por intermédio de novas divisões e subdivisões, desavenças
interpessoais, violências e até morte: há três anos atrás, um jovem foi assassinado por outro
durante um baile, em função de problemas anteriores.
Grupo proveniente de Promissão
De modo geral, as pessoas integrantes deste grupo ficaram acampadas em Promissão numa
área pertencente à família Ribas durante mais de dois anos. Muitos delas eram provenientes
da região de Campinas. As trajetórias de vida refletem uma longa caminhada por diferentes
lugares do Estado de São Paulo e também por outras regiões do país. A migração é de todos
os tipos: rural/rural; rural/urbana; urbana/rural; urbana/urbana. São vidas de migrantes, de
peregrinos em busca de um lugar, onde possam parar, se fixar.
Utiliza-se o seguinte conceito de trajetória:
“Trajetória social é o encadeamento temporal das posições sucessivamente ocupadas pelos indivíduos nos
diferentes campos do espaço social. Os indivíduos, em cada momento de sua existência, ocupam
simultaneamente várias posições, resultantes de seus lugares nos campos profissional e familiar. Durante o
passar do tempo, estas posições se movem, se redefinem em vários campos, traçando, assim, uma trajetória
social constituída por um conjunto de itinerários”. (Battagliola et ali, 1990, p. 3).
10

Este conceito, ao fornecer as condições para a análise dos caminhos percorridos pelos
indivíduos não somente no campo profissional como também familiar, abre as
possibilidades para as posições diferenciadas dos sexos no seio da família e também para
as diferenças de idade. Outro ponto importante é a noção de itinerários que acompanha
esta definição, ou seja, os vários caminhos resultantes da mobilidade temporal e espacial
dos indivíduos ao logo de suas vidas, onde é possível a descoberta do acaso como fator de
mudança de itinerários. Esta mobilidade social pode ser tanto ascendente como
descendente, dependendo das posições ocupadas tanto na família como no campo
profissional. Portanto, o recorte temporal deve sempre levar em conta as distintas posições,
e, no caso, destes trabalhadores, o espaço se constitui como um elemento imprescindível na
análise de suas trajetórias. Outra contribuição importante destas autoras se reporta aos
acontecimentos familiares e profissionais que conduzem à mudança de trajetórias, como
por exemplo, perda do emprego, morte na família, mudança para outras regiões etc. A
análise final se completa com os questionários biográficos, que recuperam a trajetória
profissional dos pais, cônjuges, filhos, e o nível de escolaridade de cada um deles. Esta
metodologia permite a construção do retrato social de cada indivíduo, que, em virtude dos
limites deste texto, será apenas exemplificado com alguns casos. Conquanto, o cruzamento
das informações contidas nos retratos e a análise das condições históricas e estruturais
permitem o conhecimento das diferentes experiências sociais.
No que tange ao Grupo de Promissão, uma de suas marcas é a passagem pelo
acampamento. Portanto, os relatos sobre este período são muito significativos. Consideram
que aqueles momentos foram decisivos para se compreender o significado de luta pela
terra. Por isso, diferenciam-se dos outros que não ficaram acampados, que não sabem o que
é viver embaixo de lona preta. Quando se reportam àqueles que estão plantando cana,
afirmam que muitos deles não dão valor à terra, porque não sabem o que é a luta pela terra,
identificando, portanto, luta pela terra com o tempo de passagem pelo acampamento.
Afirmam ainda, que os outros conseguiram a terra de mãos beijadas, sem esforço. Pôde-se
observar a existência de laços de maior solidariedade entre algumas pessoas deste grupo,
sem contar a existência de cinco famílias aparentadas. Um dos pontos comuns é a
resistência ao plantio da cana. Consideram que plantar cana é descaracterizar a Reforma
Agrária por várias razões: trata-se um golpe na luta pela terra, desferido pelos próprios
11

assentados, o que, no fundo, é uma traição ao governo, à sociedade que paga os impostos, e
aos demais trabalhadores que estão no processo de luta; para eles, a Reforma Agrária tem
como objetivo a agricultura familiar. A produção de cana nos moldes estabelecidos pela
usina não permite as relações baseadas no trabalho familiar; o objetivo é a produção de
alimentos e não a cana; a produção de cana é sinônimo de não trabalho, pois tudo é feito
por máquinas da Usina, portanto, o resultado da Reforma Agrária seria a presença dos
vagabundos, dos ociosos, daqueles que vivem do arrendamento, da aposentadoria ou do
salário da mulher; a produção de cana é o meio da usina estar dentro do assentamento.
É interessante observar que estas razões são apontadas por todos aqueles que são contrários
à plantação de cana. Dentre os entrevistados deste Grupo, destaca-se a trajetória de Damião,
solteiro, que ficou no Acampamento durante quase três anos e foi responsável pela vinda de
vários membros de sua família, inclusive o tio João, que veio para o assentamento depois
da chegada das famílias de Promissão, e cuja trajetória é marcada, tal como muitas outras,
por sucessivas migrações. No caso do Sr. João, ele nasceu na Bahia, seu pai trabalhou como
meeiro nas fazendas de café na região oeste do Estado de São Paulo na década de 1940.
Ainda jovem, migra definitivamente para trabalhar nas fazendas de café em São Paulo,
juntamente com duas irmãs mais velhas, sendo uma delas, a mãe de Damião. Depois de
alguns anos, vai para o Estado do Paraná com as irmãs já casadas. Trabalha como parceiro
em várias fazendas, derrubando matas para o plantio de café, algodão, trigo, milho, arroz
etc. Durante este período casou-se com a filha de um outro parceiro no Paraná. Seu relato
aponta para as inúmeras experiências quanto à exploração do seu trabalho e de toda a
família. Segundo ele, quando havia a possibilidade de algum ganho, o proprietário rompia o
contrato de parceria . Esta situação se repetiu inúmeras vezes, até que um dos membros da
família decide voltar para o Estado de São Paulo e trabalhar como assalariado no corte da
cana em Limeira.
Os itinerários percorridos pelos membros desta família revelam o cruzamento de várias
situações experimentadas em comum. No que tange aos acontecimentos responsáveis pelas
inúmeras migrações, além da captação da renda dos parceiros, houve os períodos de seca
em que perderam toda a colheita, e, no caso do Sr. João, quando estava na Bahia, a
experiência da fome fez com que ele migrasse definitivamente para o Estado de São Paulo.
Retomando algumas passagens do discurso de Damião, nota-se que, embora sendo solteiro,
12

seu objetivo era lutar pela terra para si e para outros membros da família. Neste sentido, há
o cruzamento das trajetórias familiares e profissionais. Os acontecimentos decisivos para a
mudança de itinerários foram, vis-à-vis o recorte longitudinal, a fome do tio na Bahia, a
seca no Paraná, a alta exploração dos parceiros, a falta de perspectivas de emprego em
Limeira pelo fato de possuir um baixo nível de escolaridade, e os baixos salários auferidos
no corte da cana. Vale a pena ainda ressaltar a solidariedade advinda da rede familiar,
como a ajuda financeira do pai no momento do acampamento e, mais importante, o esforço
para trazer ao assentamento os demais irmãos e tio.
Na encruzilhada da trajetória familiar e laboral residem os elementos constitutivos das
experiências sociais. Assim, pode-se compreender as razões apontadas por Damião para a
não aceitação do plantio da cana no assentamento. Para ele, a cana representa o golpe fatal
no programa de Reforma Agrária, ao desmontar a agricultura familiar e inviabilizar,
politicamente, o movimento de luta pela terra em nível nacional. Neste ponto, as distintas
temporalidades entrecruzam-se. O tempo passado informa o presente e também o projeto
futuro. A experiência da proletarização e a ausência de perspectivas são tratadas,
reelaboradas, redefinidas, segundo os valores, a cultura, produzindo a visão de mundo, que
engloba as três temporalidades. É também defensor da moradia no lote ao invés da vila, a
fim de que a produção familiar possa ocorrer. Os cuidados com a roça e animais somente
podem se realizar sob a vigilância constante do dono. “Boi só engorda sob as vistas do dono”.
Damião relata, em profundidade, as penúrias vivenciadas no Acampamento.
Vale a pena acrescentar alguns traços da trajetória de Zulmira, pertencente a este Grupo.
Ex-arrendatária na região de Campinas, onde plantava juntamente com os filhos e o marido,
legumes, ao se decidir- ir para o Acampamento de Promissão, desmontou a casa, para
remontá-la no Acampamento, e quando veio para o Assentamento, a desmontou e a
remontou definitivamente no seu lote. A casa foi retratada nos diversos tempos-espaços: no
sítio arrendado com a plantação da última plantação de beringelas, no Acampamento e
também no Assentamento.
13

GRUPO DO VALE DO RIBEIRA

Como foi dito acima, as famílias pertencentes a este grupo realizaram as articulações
políticas com o Sindicato de Araraquara e com a FERAESP(criada em 1989). Segundo os
relatos, estas famílias foram desapropriadas de suas terras por um Decreto do Governo
Estadual que considerou a área ocupada no Vale do Ribeira, reserva ambiental. A promessa
do governo era a doação de outras terras aos desapropriados. Em razão do Decreto, houve a
proibição de derrubada de matas, de plantações, enfim do desenvolvimento da atividade
agrícola. Ao mesmo tempo, não houve o cumprimento das promessas do governo. Os
relatos são unânimes em relação aos períodos de fome, angústia e ameaças de policiais e
outros agentes do governo estadual. Muitas famílias de posseiros expropriados saíram,
enquanto outras resistiram por meio de pressões junto ao INCRA e DAF(hoje, ITESP). Aos
poucos, iniciou-se a organização destas famílias, lideradas por uma mulher, dona Maria
Barbosa apelidada, Maria Che Guevara, em alusão à defesa da causa dos espoliados e do
papel que exerceu durante muito tempo na organização deste assentamento. Atualmente,
não faz mais parte de nenhum grupo, tornou-se evangélica, reside na cidade com o marido e
filho e possui um carrinho de lanches para complementar a renda do lote. Ela e o marido
vão todos os dias ao lote; além da horta, possuem um projeto de plantação de mamão.
A história de Maria Barbosa inicia-se no interior de Pernambuco. Sua mãe é indígena
(também possui um lote no assentamento); mantém silêncio sobre o pai, que abandonara
sua mãe muito cedo. Em razão da união de sua mãe com um homem violento, deixa o
sertão e vai para a cidade. Decorridos alguns anos, regressa e encontra sua mãe casada com
outro homem. Em seguida vai para a Bahia, conhece o atual marido e o rouba, pois a mãe
dele era contra o casamento, pelo fato dele ser branco de olhos azuis e ela ser negra e
descendente de índio. Vem para a cidade de São Paulo, e, aos poucos, toda a família do
marido e parte da sua seguem a mesma rota. Em São Paulo, trabalhou numa fábrica de
costura e o marido era chefe de segurança. A família, dispondo de algumas economias,
compra terras no Vale do Ribeira e se muda para lá. Depois de algum tempo, são
notificados de que aquelas terras eram parte da reserva ambiental e que a escritura era falsa.
Aí começa a sua luta para unir as pessoas, que estavam sofrendo os efeitos da
desapropriação, em torno da reivindicação de uma outra terra, uma vez que já não havia
14

mais condições de voltar para São Paulo. Em suas inúmeras andanças – incluindo uma
visita ao Acampamento de Promissão – acabou conhecendo o presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Araraquara, ocasião em que tomou conhecimento das terras da
“Bela Vista”. Seu relato revela as idas e vindas aos órgãos do governo estadual , ao INCRA
para encontrar uma solução para ela e as demais pessoas, que estavam na mesma situação.
Aliás, em vários momentos, faz referências ao coletivo.
O papel desempenhado por esta mulher é bastante singular. Toda sua trajetória é marcada
por vários acontecimentos que representam o avesso da condição feminina, sobretudo nas
áreas rurais. Suas práticas, em muitos momentos, romperam a estrutura do patriarcado. Foi
capaz de roubar o marido, liderar a vinda de toda a família para São Paulo e também
organizar os posseiros do Vale do Ribeira para o assentamento e aí se firmar como uma das
lideranças mais fortes durante as fases iniciais de organização, sem contar seu decisivo
papel nas discussões contrárias à plantação de cana no assentamento. Apesar de se
analfabeta, em nenhum momento absteve-se de pressionar os homens do escritório do
UNCRA em São Paulo em sua luta pela terra. Admite ter tido uma posição contrária à
vinda das famílias de Promissão:

Retomando as reflexões anteriores, a presença dela no Vale do Ribeira foi graças ao acaso,
responsável pela mudança de rota de todas as famílias deste grupo, e também dos parentes
que viviam em outros lugares e que foram trazidos ao assentamento. Nesta lista incluem-se
muitos pais de assentados, vindos de Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Maranhão e filhos
solteiros, provenientes da cidade de São Paulo. A realidade empírica demonstra, além do
cruzamento das trajetórias familiares e laborais, a existência do campo de possibilidades, aí
incluindo o acaso, como elementos estruturantes das experiências dos sujeitos.
Segundo os desdobramentos da fase inicial de constituição do assentamento, este grupo
tornou-se rival daquele de Promissão, tal como se observou em muitos depoimentos

O grupo da região de Ribeirão Preto


Em virtude do vertiginoso processo de modernização da agroindústria canavieira e também
dos demais produtos como a laranja e o café, nesta região, sobretudo a partir da década de
1990, tem havido, sucessivamente, a supressão de milhares de postos de trabalho, (Silva,
1999). Este processo tem atingido não somente os trabalhadores rurais desta região como
15

também os migrantes, provenientes de outras regiões do país, principalmente do nordeste e


do Vale do Jequitinhonha/MG. Vale a pena acrescentar que, em razão de um decreto do
governo estadual, as queimadas de cana serão proibidas a partir do ano de 2005, em razão
das necessidades de preservação ambiental.
Entretanto, com as greves ocorridas em 1984 e 1985, cujo epicentro foi na cidade de
Guariba, houve uma mudança na correlação de forças entre capital e trabalho. Os
trabalhadores conseguiram alguns ganhos importantes relativos aos direitos trabalhistas,
piso salarial, proibição do corte de cana por meio do sistema das sete ruas, conquistas estas
também estendidas aos migrantes. Em contrapartida, houve um enorme avanço do emprego
de máquinas em várias fases do processo produtivo, principalmente na colheita, que, hoje,
já atinge mais da metade de toda a cana cortada nesta região. Verifica-se também o
aumento do número das máquinas colhedeiras de café em vários municípios da região.
(Silva, 1999; CHIOVETTI, 1999).
Os resultados imediatos destas mudanças da maneira de produzir foram o grande aumento
do desemprego, e dos problemas sociais, advindos do crescimento da miséria, da
criminalidade, da violência, problemas estes que eclodem nas cidades, já que estes
trabalhadores habitam nelas. No que tange à organização sindical, a criação da FERAESP
em 1989 representou um marco importante porque, a partir de então, houve uma
redefinição das relações de força entre patrões e trabalhadores. Reconhecendo o processo
modernizante como irreversível, as reivindicações passaram a incorporar a luta pela terra
como solução para resolver os problemas do desemprego e, em muitos casos, da exclusão
social. A localização da FERAESP na cidade de Araraquara representou um novo marco na
luta dos trabalhadores rurais desta região. (FERRANTE, 1994). Em 1989, iniciam-se os
cadastros de trabalhadores rurais demandantes de terra em muitas cidades. A partir de
então, há um crescimento significativo de acampamentos e assentamentos rurais nesta
região No início deste processo, o principais alvos foram as terras públicas, em seguida, as
particulares, como o caso da fazenda Bela Vista. Atualmente há 10 acampamentos com
quase 2000 famílias na região.
De acordo com os depoimentos e também com alguns trabalhos ( ROSIM, 1998;
BARONE, 1997), as primeiras famílias (o grupo das setenta e cinco) a chegarem ao
assentamento Bela Vista foram organizadas pela FERAESP, sem contar que algumas delas
16

estavam acampadas ou assentadas no Assentamento Monte Alegre, cujas terras pertenciam


à antiga FEPASA. Além deste grupo, outras famílias foram assentadas pela FERAESP.
Muitas outras foram trazidas pelos parentes com a aprovação da FERAESP.
Durante a pesquisa empírica, entrevistamos várias pessoas, provenientes do Vale do
Jequitinhonha/MG. Todos os relatos apontam para as difíceis condições de vida lá
existentes. (SILVA, 1999 ). Quer na situação de pequenos proprietários de terra, quer
como parceiros, moradores ou posseiros, a situação de todos era de extrema miserabilidade,
em razão dos baixos rendimentos auferidos ou recebidos. Os itinerários de quase todos
revelam que a migração foi uma estratégia de sobrevivência para o grupo familiar como um
todo. Dirigiram-se primeiramente para o norte do Paraná, alguns foram em seguida para o
Estado de Mato Grosso do Sul e, finalmente, na década de 1970, vieram para São Paulo
trabalhar no corte da cana na região de Ribeirão Preto/SP. Logo após as greves de 1984 e
1985 engrossaram as fileiras dos demandantes de terra. Outros ainda vieram da região do
Triângulo Mineiro para o trabalho nas usinas desta região. Estes trabalhadores eram parte
dos excluídos o processo modernizante desta agricultura. A terra era a única saída para a
garantia da sobrevivência, isto é, a única forma de assegurar o emprego e a reprodução da
família, enquanto grupo social.
O depoimento do presidente da FERAESP, Élio Neves, evidencia que a luta pela terra nesta
região constitui-se numa resposta do movimento de trabalhadores rurais ao processo de
mecanização e exclusão social existente. Desta sorte, o grupo cadastrado por esta entidade
teve uma trajetória diferenciada dos demais, sem contar que não experimentaram a vida em
acampamento.
Dona Maria, rezadeira é uma das pessoas que se destacam neste grupo. Ela e o
marido eram meeiros no Paraná. Têm uma filha freira. Foram para o Mato Grosso.
Moraram dez anos como posseiros em terra indígena até que um dia os índios os
expulsaram.
A análise das trajetórias sociais e das experiências dos distintos grupos, que constituíram o
assentamento Bela Vista, fornece as bases ao entendimento do processo de organização
social, marcado pela conflitividade que será analisada em seguida.
17

O DIFÍCIL É FICAR NA TERRA


A história conflituosa da origem deste assentamento deixou marcas profundas, cujos
reflexos são os mais variados. Além das dificuldades relativas à organização, produção e
sociabilidade de um novo modo de vida, os maiores problemas advieram das disputas entre
os diferentes grupos e também entre as lideranças e mediadores. Objetiva-se apresentar a
multiplicidade de situações concretas a fim de se ter uma imagem a mais fiel possível sobre
a peleja em torno da implantação do projeto de Reforma Agrária neste assentamento.
As primeiras experiências de organização social

Os relatos sobre estes primeiros momentos refletem os sinais de uma verdadeira


anomia. A preocupação era apoderar-se de uma das casas da vila. Segundo uma das
moradoras, remanescentes do grupo de famílias colonas da antiga Usina Tamoio, o
ambiente era de muito medo e insegurança. Pessoas que não se conheciam, com histórias e
costumes diferentes, eram movidas por sentimentos que iam desde o medo, a angústia até a
alegria experimentada depois de tantos anos de sofrimentos. Era o momento do salve-se
quem puder, algo que pode ser explicado pela depredação do casarão, residência imponente
do gerente da seção Bela Vista, cujas grades externas, portas, janelas, pias, banheiros foram
arrancados e utilizados nas construções de alguns lotes ou mesmo na reparação das casas da
vila. Segundo CAIRES (1993), até mesmo um precioso arquivo contendo toda a
contabilidade da Seção Bela Vista, só não foi destruído porque um dos assentados o
recolheu.
Outra imagem presente nas lembranças era acerca do estado de abandono que pairava em
todo o ambiente. O mato colonião crescera até dentro das casas. Este ambiente contrastava
totalmente com o passado da vila, considerada o cartão postal das seções da Usina. Além
das casas serem pintadas de branco todos os anos, por ordem dos administradores da usina,
as calçadas eram lavadas e os hábitos de higiene eram controlados. O lema era a ordem, o
passeio e o trabalho. Na verdade, havia a ideologia do trabalho imposta pelos donos do
grande império da família Morganti. Os trabalhadores sentiam parte da mesma família
Tamoio, construída pelo trabalho de todos e pertencente a todos. As lembranças são
envoltas pela saudade e pela nostalgia. A ideologia do trabalho imposta pelos patrões
encobria a realidade definida pela grande exploração existente, além de um forte
sentimento nostálgico por parte de muitos ex-moradores.
18

No que tange às representações dos antigos moradores, a vinda do povo da Reforma


Agrária é permeada de elementos negativos e de estranhamento. A sociabilidade de antes
jamais foi recriada em função do estado conflituoso, agravado ainda mais com a vinda das
famílias de Promissão e a disputa dos mediadores pelo controle político da situação. Os
agentes da CPT, DAF e Sindicato, com seus distintos objetivos, não lograram reunir os
assentados em torno de um projeto único. Em 1990, houve uma ruptura entre, de um lado, a
CPT e de outro, o DAF e o Sindicato (BARONE, 2002, p. 68 e ss). Sem sombras de
dúvida, os reflexos negativos destas disputas pelo controle político do assentamento se
fizeram sentir nas primeiras formas de organização social. Houve a criação de várias
cooperativas.
Embora falida, a cooperativa continua existindo. O presidente é reconhecido pelos demais
assentados e também pelos organismos institucionais, como Banco do Brasil, ITESP,
INCRA e Prefeitura Municipal. Além da cooperativa surgiram várias comissões para tratar
de assuntos relacionados à educação, saúde, lazer, projetos de agricultura familiar. Esta
Segundo Barone (2002) o projeto da CPT era o incentivo à organização comunitária,
contrária ao coletivismo da terra, defendido pelo MST e contrário ao cooperativismo
instalado pelo sindicato e pelo DAF.
De acordo ainda com este autor, ele próprio agente da CPT, neste período, houve além
destas disputas entre os Grupos da Cooperativa e da Associação, as subdivisões entre os
participantes da Associação, em razão de atritos em torno do uso do trator, responsáveis
pela criação do terceiro grupo, “o grupo do trator‟. Em seguida, foi incentivada pela CPT, a
compra de uma máquina de beneficiar arroz pela Associação, que também não surtiu
resultados ( p. 104 e 105). No final da safra de 1991/92, quinze assentados da Associação
fundam uma outra, Associação Renascença de Produtores Assentados (p.105). A CPT
apoiou esta última Associação, composta por integrantes do grupo do trator. Segundo os
desdobramentos destas infinitas disputas, esta última Associação continuará por mais
alguns anos, capitaneando as iniciativas do desenvolvimento econômico deste
assentamento, segundo BARONE (p. 108).
De modo geral, os entrevistados não se lembravam de todos as particularidades dos
acontecimentos referentes a esta situação de confitividade. O que é importante reter a partir
deste caso empírico é a ausência de um projeto único, e mais ainda, um projeto que partisse
19

dos interesses dos assentados. As disputas políticas entre os mediadores, que se colocaram
como seus legítimos representantes, revelam o deslocamento das reais necessidades
econômicas e sociais dos sujeitos desta história. O resultado, tal como transparece nos
relatos é, para muitos, o desalento. A luta ideológica dos mediadores suplantou a luta dos
assentados, tal como bem mostra MARTINS (2000).
No decorrer do tempo, o processo organizativo foi se fragmentando com a criação/ extinção
de muitas comissões e outras cooperativas. Em nenhum momento, houve a experiência de
produção coletiva no assentamento. Os lotes são individuais, as máquinas colhedeiras são
alugadas, sendo este um dos problemas apontados, pelas razões seguintes: atraso na
colheita porque os proprietários destas máquinas, primeiramente, colhem os cereais (milho,
arroz) dos grandes fazendeiros; os valores pagos correspondem a 20% do total da colheita;
em virtude do atraso, há uma perda de produtividade, porque há riscos de apodrecimento do
produto, sem contar que, no momento da comercialização a oferta abundante que implica
no rebaixamento dos preços; Ausência de uma balança (balanção) para pesar o milho antes
de ser transportado para os depósitos. Alguns afirmaram que este fato implica em fraudes
por parte dos intermediários, algo que seria evitado por meio do controle de peso feito pelos
produtores.
Além da COAPRA, há uma outra, COBELA (cooperativa da Bela Vista), recentemente
fundada, registrada, mas ainda não em funcionamento. Esta cooperativa conta com o apoio
da Prefeitura Municipal e tem por objetivo o incentivo da agricultura familiar. Há ainda, a
Cooperativa dos Produtores de Cana que reúne aqueles que aderiram ao plantio da cana.
Estas cooperativas, com objetivos distintos, reproduzem a fragmentação originária e,
conseqüentemente, as dificuldades da criação de um projeto único neste assentamento.
Revela, ainda, a inviabilidade de uma gestão centralizada em torno de um único projeto de
administração. O INCRA, enquanto representante do governo federal, possui o poder
institucionalizado, porém, em virtude da ausência/omissão no tocante à resolução de muitas
questões, não possui a capacidade de gestão do assentamento. A existência desta
fragmentação conduz a uma espécie de vazio de poder, algo reclamado pelos próprios
assentados. Deste modo, quando se referem ao plantio da cana ou ao arrendamento de lotes
para os fazendeiros da região, ao aluguel das casas da vila, da permanência de um invasor
no assentamento, reclamam uma ação coercitiva para impedir estes desmandos e estas
20

desobediências em relação ao compromisso firmado por todos, quando recebera os lotes.


Entendem este processo como uma espécie de quebra do contrato social estabelecido,
porque na medida em que cada um faz o que quer, todos serão prejudicados porque o
projeto de Reforma Agrária poderá ser abortado. Em contrapartida, são capazes de
perceber os avanços, as conquistas, como a eletrificação na vila e nos lotes, e, mais
recentemente, a água encanada em todos os lotes e o projeto de telefonia.
Para finalizar estas considerações sobre as formas organizativas, resta mencionar o recém-
criado Conselho para o Centro de Desenvolvimento Comunitário, que seria uma instituição
que uniria todos os grupos e trabalharia junto com o poder público para o bem comum do
assentamento. Este Conselho, contendo quinze representantes, sendo um deles do poder
local, segundo um de seus representantes, rompe com o sistema anterior das comissões
representativas. Este Conselho exerce a função mediadora entre assentamento e o poder
local, objetivando a ruptura com o assistencialismo (segundo o documento) existente
anteriormente. Esta seria uma tentativa de preencher a lacuna de representação política
junto ao poder local e aos demais organismos externos. Talvez resida aí, o embrião de uma
nova organização política e administrativa do assentamento com a presença do poder local.
As reflexões do início deste texto sobre a história e experiência são essenciais à
compreensão deste processo de organização social. As questões políticas e ideológicas
impostas pelos mediadores priorizaram o econômico e obnubilaram outros traços
importantes da experiência destes sujeitos, dentre eles, a cultura e os valores. A cultura,
enquanto cimento das relações sociais, ao ser banida dos projetos, contribuiu para aumentar
o fosso entre os assentados e reprodução das relações de estranhamento e individualismo,
traduzidas pelas inúmeras desavenças cotidianas. Nas lembranças das antigas famílias da
Bela Vista, a amizade, o companheirismo são os traços que mais despertam a saudade e a
nostalgia. Nostalgia de um passado, que sabem, não voltará jamais. No que tange às
demais, embora as lembranças se reportem a outros lugares, a sociabilidade, a solidariedade
eram também baseadas nas relações primárias, assentadas sobre os costumes. Por
conseguinte, as experiências produzidas durante o tempo de assentados são tratadas de
diferentes formas, em razão das novas circunstâncias criadas que envolvem outros sujeitos
que não somente os assentados. Esta realidade redefinirá os projetos familiares e laborais,
conforme a análise seguinte.
21

Vila x lotes. Onde estão as mulheres? Onde estão os jovens?

De acordo com as informações colhidas no ITESP, das 176 famílias, apenas 30% possuem
casas nos lotes. Este dado é importante para a análise das atividades desenvolvidas pela
família, segundo os sexos e também a idade. A grande maioria dos depoentes manifesta o
desejo de morar no lote pelas seguintes razões: não é possível desenvolver a agricultura
familiar porque muitos lotes acham-se distantes da vila. Isso implica em longas caminhadas
e perda de tempo; até alguns anos atrás, os ônibus não circulavam pelos lotes, o que
implicava em dificuldades para as crianças freqüentarem a escola. Atualmente, este
problema já não mais existe; não residir no lote inviabiliza a produção doméstica de
animais de pequeno porte, de hortas, enfim a produção advinda do quintal, geralmente, a
cargo das mulheres, e que se constitui num elemento importante para a reprodução do
grupo familiar, sem contar que a produção de excedentes pode ser uma alternativa par
complementar a renda; a indústria doméstica, nestes caos, acaba inexistindo e mesmo a
produção do lote é prejudicada. Os exemplos são inúmeros: vaca que morreu em razão de
mordida de cobra, roubo de animais, bezerros que nasceram e morreram em função de
terem caído em poço d‟água, formigas que podem devorar as plantações num curto espaço
de tempo etc; a moradia no lote representa outras facilidades, tais como: comer comida
quente na hora do almoço, maior aproveitamento do tempo.
Ademais destas justificativas, todos os entrevistados afirmaram que nos lotes é possível
desenvolver uma sociabilidade diferente daquela da vila. Em muitas ocasiões, mencionaram
o sossego, liberdade, ausência de brigas e fofocas, sem contar o contato mais direto com a
natureza. Muitas mulheres afirmaram que na vila não é possível possuir galinhas por causa
dos roubos. Uma delas chegou a mencionar que seu vizinho matava seus frangos e, numa
das vezes, confessou-lhe que aproveitara até as vísceras como isca para pescar. Uma outra,
que é separada do marido, afirmou que, em muitas ocasiões, são jogadas pedras no telhado
de sua casa à noite, além do barulho freqüente na rua.
Estes casos apontam para uma sociabilidade totalmente diferente daquela existente no
mundo rural de antes. Não se observa aqui a mera transposição de uma sociabilidade
pautada nas relações pessoais de parentesco, compadrio e vizinhança, assentadas nos
valores tradicionais, nas festas ligadas à produção agrícola, no mutirão, na troca de dias. A
passagem pelo universo urbano produziu-lhes a experiência da fragmentação da vida e do
22

trabalho assalariado, que deixaram marcas no comportamento e nas relações sociais. Trata-
se muito mais de um hibridismo, de uma bricolagem, em que se misturam diferentes
universos culturais, diferentes formas de comportamento social. No entanto, não se trata
de uma anomalia e sim de uma realidade que reflete as andanças destes caminhantes
por diferentes espaços sociais. Nesta longa caminhada, houve muitas perdas e bem poucos
ganhos. Em linhas atrás, concebeu-se o assentamento como espaço social em processo de
construção, onde as distintas temporalidades –passado, presente e futuro – acham –se
imbricadas e são resultantes das ações dos sujeitos em determinadas circunstâncias. As
ações são produzidas num campo de alternativas e de acasos. No tocante aos aspectos
culturais, houve um intenso processo de desenraizamento. As festas, de cunho religioso,
praticamente desapareceram. A festa de Reis, a Folia só existem nas lembranças dos mais
velhos. (SILVA, 2001). Na verdade, muitas memórias são guardiãs da Folia de Reis,
inclusive, foram encontrados dois antigos foliões entre os assentados.
A presença da cultura de massa, sobretudo a televisiva, faz com que sejam reproduzidos os
valores urbanos no assentamento, mesmo nos lotes, dado que há eletrificação em todos eles.
Filmes, novelas, programas esportivos, noticiários, shows, desenhos animados, são
assistidos por toda a família, segundo as preferências de cada um dos membros. Por outro
lado, a proximidade da cidade, as facilidades de acesso por meio de ônibus, permitem que
as pessoas estejam em constante contato com o modo de vida urbano, algo facilmente
notado na maneira de se vestir, em alguns hábitos, como por exemplo, a preocupação
excessiva das mulheres com a limpeza da casa, o uso de panelas de alumínio bem areado
etc. Vale a pena ainda lembrar que um dos projetos do Conselho de Desenvolvimento
Comunitário, acima mencionado, refere-se à instalação de computadores no assentamento,
não apenas na escola como também na sede do Conselho, objetivando o acesso a todos os
interessados. Um outro elemento desta diversidade é a recriação de laços comunitários
entre os habitantes de lotes vizinhos, que pertencem à Comunidade de Santa Clara, ligada à
cidade de Araraquara. Os momentos de reunião/união entre eles são vários:
rezas, missas na Igreja São Judas Tadeu na vila, coletas/oferendas aos mais necessitados,
que envolvem os moradores da cidade, pertencentes a esta comunidade, ajuda mútua na
construção das casas nos lotes e também nas atividades produtivas. A recriação destes laços
de sociabilidade, mediada pela religião católica, constitui-se numa espécie de economia
23

moral, que, além de sedimentar a convivência entre estas pessoas, dando-lhes o sentimento
do pertencimento ao lugar, ao território, contribui para o sucesso econômico de todo o
grupo. Outro ponto importante é que todos os integrantes desta comunidade, além de não
aderirem ao plantio de cana, possuem posições políticas que enxergam nesta prática um
desvio do Projeto de Reforma Agrária. Ao se referirem ao assentamento, manifestam um
sentimento de pertencimento comum: a nossa Bela Vista , algo que não foi observado vis-
à-vis outros grupos. O modo de vida deste grupo se enquadra na definição de agricultores
familiares, que produzem para a subsistência e também para o mercado, além de possuírem
uma pequena indústria doméstica. Quanto aos demais, pertencentes às igrejas evangélicas,
muitos plantam cana, enquanto outros são contrários à essa prática. Das dezesseis famílias
ligadas ao MST, a maioria aderiu ao plantio da cana, segundo os depoimentos.
Acredita-se que a compreensão das diferenciações sociais existentes entre os assentados
deva incluir estas reflexões a fim de responder a uma questão percuciente: por que alguns
conseguiram êxito e outros não, já que todos partiram das mesmas condições? Os estudos
clássicos sobre o campesinato, baseados em outras realidades históricas, são importantes
para o entendimento da lógica e da estrutura interna da organização camponesa, porém, a
história deste assentamento não pode ser interpretada a partir da simples transposição dos
conceitos que foram elaborados para a análise de outras realidades históricas. O conceito
de economia moral diz respeito ao contrato social e ao código moral dos grupos sociais
envolvidos. Em outros termos, a economia moral baseia-se na “idéia tradicional das
normas e obrigações sociais, das funções de cada segmento social dentro da comunidade
(4). Na realidade, a construção do novo espaço social incorpora estes traços do mundo
tradicional. Não se trata de um mero retorno ao passado, mas da recriação de valores do
passado e do presente, formando uma simbiose. Portanto, além dos conflitos, a vida
cotidiana é constituída por estes laços de solidariedade, baseados na tradição e também nas
relações de parentesco. Há um outro ponto a ser considerado. Os depoimentos são
unânimes no tocante à vila como lugar de muitos conflitos. Todavia a análise feita acima
não corresponde à idéia de que na vila não haja solidariedade e nos lotes não haja conflitos.
____________
(6) A definição é de Thompson (1979, p. 66); outros autores podem ser referenciados a respeito desta questão,
além de Thompson (1998, p. 203-266) que, ao responder aos seus críticos, trouxe novas contribuições às
formulações anteriores: Scott (1976), Moore Jr (1987), Polanyi (1980), Martins (1989).
24

O espaço social não é sinônimo de espaço físico. Muito embora haja a diferenciação entre
estes dois espaços, onde existe a predominância dos conflitos na vila, nem todas as pessoas
dos lotes são unidas por laços de solidariedade. Algumas delas vivem completamente
isoladas das demais, graças às discórdias existentes. O crime, acima citado, envolveu
jovens que moravam nos lotes.
Estas considerações são importantes à análise do lugar das mulheres neste assentamento,
levando-se em conta as relações de gênero, as posições políticas e a divisão sexual do
trabalho. No que concerne às relações de gênero, as mudanças havidas são poucas,
segundo uma das lideranças. A violência de gênero existe em alguns casos, da mesma
forma que a violência contra as crianças. Em contrapartida, as mulheres ocupam muitas
posições políticas junto às comissões, inclusive o atual Conselho de Desenvolvimento
Comunitário conta com várias delas. Anteriormente, a titularidade do lote era permitida
aos homens, e, somente nos casos de impedimento deles (morte, invalidez), é que este
direito estendia-se às mulheres. Atualmente, graças às mudanças jurídicas, as mulheres são
titulares juntamente com os homens. No que tange à divisão sexual do trabalho, as
mulheres ocupam as mais distintas posições: donas de casa, empregadas domésticas na
cidade, sem contar que muitas delas trabalham na terra nas atividades da horta, da criação
de animais de pequeno porte, na ordenha, no cuidado das roças de milho, feijão, café e
demais produtos do lote; há ainda aquelas que comercializam os produtos da horta e da
indústria doméstica na feira. Segundo a maioria dos depoimentos, são as mulheres as
responsáveis pela maior parte dos trabalhos. O assalariamento urbano, por meio dos
serviços domésticos, constitui uma realidade para muitas jovens e também mulheres
casadas com filhos pequenos. Algumas delas contratam outras mulheres do assentamento
para cuidar dos filhos enquanto trabalham, outras deixam-nos sob a guarda de parentes ou
nas creches da cidade. Esta situação atinge um grande número de mulheres, algo que pode
ser constatado pelo número delas que estão presentes nos ônibus das 6:00hs. Estas possuem
a dupla jornada de trabalho, pois quando chegam em casa, vão desempenhar as tarefas
domésticas como lavar, passar, cozinhar. Os finais de semana são dedicados aos trabalhos
de limpeza, lavagem de roupa, não lhes sobrando tempo para o descanso. Portanto, este é
um exemplo de que a divisão sexual do trabalho, baseada na determinação dos afazeres
domésticos às mulheres, continua se reproduzindo neste assentamento. Este é um modelo
25

de famílias pobres urbanas. Aliás, o mesmo modelo se reproduz entre as mulheres


trabalhadoras rurais, denominadas bóias-frias. (SILVA, 1999).
Em vista da grande quantidade de mulheres nesta situação, coloca-se a questão relativa ao
modelo de agricultura familiar, caracterizado pela pluriatividade, que pode englobar o
assalariamento de alguns de seus membros. Estas mulheres não podem ser consideradas
agricultoras familiares, porque, além de não residirem no lote, não possuem nenhuma
atividade relacionada à terra, já que todo o tempo se constitui como tempo de trabalho na
cidade ou em casa, dedicando-se aos afazeres domésticos. Portanto, não se trata de um
trabalho parcial ou temporário, realizado durante o tempo de produção dos produtos
agrícolas. A compreensão desta situação exige o conhecimento dos trabalhos
desempenhados pelos demais membros da família, principalmente dos maridos. Segundo o
que se pôde verificar, esta situação ocorre em razão dos arrendamentos (proibidos pelo
INCRA) dos lotes, ou ainda, à inexistência de qualquer outra atividade no lote, além da
plantação de milho ser feita uma única vez por ano, o que corresponde à uma enorme
defazagem entre tempo de trabalho e tempo de produção, gerando a ociosidade dos
homens, durante grande parte do tempo. Frisa-se no entanto, que esta situação existe em
decorrência dos fatores apontados e também das relações decorrentes do patriarcado. O
ócio masculino é bastante visível na vila. Imagens de homens, sentados à sombra das
árvores ou presentes nos bares durante várias horas do dia, refletem uma realidade bem
distanciada daquela do agricultor familiar, cuja jornada de trabalho não é porosa, pois,
mesmo que o tempo de trabalho não coincida com o tempo de produção, a pluriatividade
completa o tempo da jornada de trabalho.
Outrossim, há aquelas mulheres que somente desempenham as atividades domésticas e
moram na vila. Muitas possuem acima de 55 anos e contam com aposentadoria. Aquelas,
que moram nos lotes, são as que desenvolvem a indústria doméstica e outras atividades
relativas à cata das espigas de milho, deixadas pelas máquinas colhedeiras, ao trabalho na
horta, à ordenha, à colheita do café etc. Como já foi dito, algumas comercializam os
produtos excedentes nas feiras, realizadas aos sábados na cidade. Foi também encontrada
uma mulher que possui casa ano lote e mora num apartamento alugado em Araraquara. As
razões apontadas para morar na cidade são: é a maneira mais adequada de oferecer
condições para o filho realizar os estudos, que está cursando o ensino médio e pretende ir
26

para a universidade; ela e o marido vendem lanches com o intuito de auferir um rendimento
complementar; esta atividade é realizada à noite; o fato de não residir no lote, segundo ela,
não lhe traz prejuízos porque ela e o marido trabalham aí durante todo o dia. A unidade
familiar constitui-se na matriz da organização social do assentamento. Desta sorte, cabe
também a pergunta: onde estão os jovens?
A primeira constatação foi a existência de uma grande diferenciação social entre os jovens.
De acordo com os dados coligidos, foi possível estabelecer uma classificação inicial em
dois grupos de jovens assentados: o primeiro grupo constitui minoria e é composto por
aqueles indivíduos que trazem consigo o capital cultural, os valores e a ética do homem do
campo e da cultura caipira. Os jovens que se enquadram neste grupo pensam em dar
continuidade à luta dos pais, vêem a terra como valor de uso, possuem o savoir-faire do
plantio de hortaliças, café e do cuidado com os animais; vivem com suas famílias nos lotes
e conjugam o trabalho da terra com os estudos na cidade. O segundo grupo é constituído
por aqueles cujas trajetórias de vida pouco têm a ver com o modo de vida do meio rural, ou
no trabalho na terra, pois foram socializados no meio urbano e por isso carregam consigo os
valores e as representações deste universo social. Este segundo grupo, constituído por uma
grande parcela dos jovens, reproduz, no meio rural, valores do mundo urbano, como a
maneira de vestir, o modo de falar, as gírias. O fetichismo das mercadorias produzidas pelo
capitalismo - o gosto pelo “hap”, ou pelo “hip-hop”, pela cultura de massa e pelos ícones da
indústria cultural - ganham espaço na proporção inversa em que se dissolve o vínculo com
a terra, com a cultura caipira e com a ética do trabalho característica do meio rural. Em
muitos casos, estes jovens não vêem perspectivas de êxito na agricultura familiar, a opção
viável que se lhes apresenta é o assalariamento urbano e a busca de maior qualificação nas
atividades deste setor. Desejam comprar carros, roupas e eletrodomésticos. Muitos
vislumbram a possibilidade de realizar um curso profissionalizante ou ingressar no ensino
superior. A procura de qualificação profissional traduz o anseio de deixar o trabalho árduo
no campo em direção à cidade.
Agindo de acordo com esta lógica, há casos em que jovens assentados optam por morar em
casas de parentes, ou “repúblicas”, na cidade, facilitando assim o acesso ao mercado de
trabalho urbano. As ocupações femininas encontradas foram: trabalho doméstico, baby
sitter , secretárias; as masculinas englobam os serviços de comércio, indústrias e construção
27

civil. Foi possível constatar também o preconceito que recai sobre estes jovens assentados,
quando ingressam no ensino médio e são obrigados a estudar em escolas situadas no meio
urbano. Um outro problema que, nos últimos anos, tem se tornado freqüente entre as jovens
é a gravidez na adolescência. O número de meninas grávidas vem questionando a eficácia
das campanhas de prevenção e conscientização, sem contar que, em razão das
discriminações, abandonam a escola, comprometendo o projeto de uma carreira
profissional. Há também casos de jovens que vivenciam situações de exclusão no interior
do próprio assentamento. Estes não estudam e não possuem lotes para cultivar, sendo
levados a prestar serviços informais e temporários para outros assentados ou para as usinas
da região, desempenhando tarefas como a quebra do milho, corte de cana, colheita de
laranja. Alguns destes jovens residem no casarão, em condições extremamente precárias;
para um deles, em nível do imaginário, há a busca da superação das necessidades por meio
da ética do trabalho, valor transmitido por sua finada mãe, a quem gostaria de um dia
provar, mesmo que morta, o valor do „filho que ela deixou aqui na terra”
Há duas irmãs, Lena (secretária em uma clínica) e Dinha (babá), que moram em
imóvel alugado, em bairro residencial de Araraquara, filhas de pais pernambucanos,
imigrados, trabalhadores rurais assentados. Logo que chegaram ao assentamento, em 1993,
tiveram um sentimento de estranhamento.
É possível constatar, também, o preconceito que recai sobre esses jovens assentados,
quando ingressam no ensino médio e são obrigados a estudar em escolas situadas no meio
urbano. A entrevista realizada com Lena e Dinha, mostra que a „mentira‟ é uma forma
recorrente de se tentar encobrir a vergonha do estigma de „assentadas‟, ou como chamam os
moradores do meio urbano: „pés-vermelhos‟, „brucutus‟, ou ainda, „mortos de fome‟.
É possível constatar que o trabalho na terra exige um conhecimento que pode ser aprendido
por jovens procedentes do meio urbano, através da experiência, da observação e do uso da
inteligência. A realidade social revela-se então um processo complexo, dinâmico e
contraditório, exigindo dos jovens muitas adaptações.
Ademais da migração de jovens para o meio urbano, há também a migração internacional –
caso de duas moças e um rapaz, que foram para o Japão na condição de dekassegui. A
análise das trajetórias dos jovens precisa ser incorporada àquela dos pais. Por inúmeras
vezes, ouviu-se dos pais a preocupação com o futuro dos filhos. O estudo é o projeto mais
28

importante e o mais almejado. Enxergam o estudo como possibilidade de ascensão social.


Por outro lado também almejam que os filhos continuem na terra, pelo menos um deles,
principalmente um dos filhos homens. Um exemplo é ilustrativo deste projeto. Numa
família com quatro filhos, apenas um jovem, o mais novo, pretende ficar no lote. Uma da
filhas já se casou e trabalha numa chácara com o marido, que também é filha de assentado.
A outra filha vai se casar no próximo ano e também vai sair do lote. Um dos filhos trabalha
numa firma em Araraquara. Para a permanência do jovem no assentamento, os pais
decidiram trocar o lote com um outro assentado para a produção de hortaliças. Isto porque
neste lote, há água em abundância, o que facilitará a produção. Segundo o relato da mãe,
esta é a forma de conseguir que o filho fique e dê continuidade ao projeto dos pais. Esta
caso diz respeito à imbricação da reprodução do grupo familiar e do projeto de Reforma
Agrária. Segundo Marx e Engels, as circunstâncias fazem os homens e os homens fazem as
circunstâncias. Há ainda a acrescentar a preocupação do poder local no sentido de realizar
projetos que possibilitem a permanência dos jovens no assentamento. Este fato poderá
diminuir a migração para as cidades.
Para finalizar essa análise concernentes às distintas temporalidades de homens, mulheres e
jovens, restam algumas observações sobre as crianças. A leitura das redações das crianças
na escola sobre suas pretensões futuras revela um quadro bastante complexo. A
permanência no lote não aparece em nenhuma das redações. As profissões almejadas são:
modelo, artista, dentista, cantor, rico (sic), enfim, profissões do meio urbano, ou veiculadas
pela mídia televisiva. Em contrapartida, os desenhos refletem o mundo rural em que vivem
tanto na vila como nos lotes. Cenas de crianças soltando pipas, casas com parabólicas,
caixas d‟água nos lotes, redes de eletrificação, igreja, pátio da escola, quadra esportiva,
árvores, estradas, flores etc.
Esse conjunto de situações diversas traduz a realidade das pessoas que aí vivem e a
peleja em torno da construção de diferentes estratégias de um modo de vida, que inclui o
velho e o novo, o passado, o presente e o futuro.

Saúde educação: demandas e conquistas de políticas públicas.

No assentamento Bela Vista já existia um posto de saúde em funcionamento. No mês de


maio de 2001, o Qualis PSF começou a ser implantado no assentamento sobre a estrutura
29

pré-existente do modelo tradicional, na Unidade Básica de Saúde. Como disse a enfermeira


da Unidade Básica do Assentamento, referindo-se as três agentes que lá trabalham: “elas
estão deixando de ser comadres para tornarem-se profissionais”. As primeiras
transformações já estão sendo feitas. Como o objetivo último é ter um médico clínico geral
em cada unidade, os esforços caminham neste sentido.
Em suma, segundo o que se pôde apurar, existe uma aceitação muito grande deste
Programa pelos assentados. Observou-se também o esforço por parte da equipe em
reeducar os usuários para uma nova prática de saúde. O Qualis PSF é um projeto que
articula várias instâncias governamentais (Municipal, Estadual e Federal), cujo poder de
decisão fica – em última instância – a cargo do governo federal. Trata-se de uma política
pública que depende, portanto, da articulação entre estas três instâncias para lograr os
resultados almejados. Para os assentados, trata-se de uma grande conquista. Por outro lado,
a satisfação desta demanda implica na consolidação de direitos e cidadania, o que
representa uma grande transformação na condição de vida de muitas destas pessoas, que, no
momento anterior à vinda ao assentamento, experimentaram os efeitos da exclusão social.
A educação é outra demanda satisfeita. Aliás, a escola constitui-se no centro de referência
deste assentamento. Além das aulas, é o lugar onde são realizadas as reuniões políticas e
administrativas e também onde são recebidas as pessoas que procuram informações sobre o
assentamento. A partir deste ano, a escola foi municipalizada e o ensino, por meio de um
projeto piloto, está sendo implantado tendo em vista os Ciclos de Formação por idade e
etapas. Trata-se de uma proposta político-pedagógica da escola do Campo, cuja orientação
é do MST. A escola conta com 300 alunos, dos quais 130 estudam no período noturno. Os
níveis de ensino abrangem de 1ª à 8ª séries, Telecurso, alfabetização de adultos e curso pré-
vestibular . Muitos professores são alunos voluntários da UNESP, os quais são rsponsáveis
pela Oficina da Cidadania. A escola insere-se no projeto altamente valorizado pelas
famílias, que vêem no estudo o caminho de ascensão social para seus filhos. Segundo a
diretora, o projeto que está sendo implantado visa à revalorização da identidade dos
discentes por meio dos princípios da escola-cidadã. Em virtude de se tratar de um projeto
em instalação, não houve tempo suficiente para a produção de uma avaliação substantiva.
Ressalte-se que todas as crianças freqüentam a escola, onde tomam refeições e muitas delas
recebem a bolsa-escola.
30

O número de alunos do curso noturno é um indicador do papel extremamente positivo da


escola no assentamento. Os setores da saúde e educação recebem o apoio do poder local,
que, além da preocupação com o plantio de cana, se preocupa com as formulações de
projetos alternativos, que possam garantir a viabilidade da Reforma Agrária. Ademais, do
projeto de agroindústria familiar, da realização da feira itinerante nos bairros, da
municipalização da escola do Assentamento, do apoio ao PSF, a criação do CMDR
(Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural) se constituem numa ação estratégica
importante para a implantação de mudanças e também nas relações dos assentados com os
demais produtores rurais do município, além de vários outros projetos em andamento

O ITESP (Instituto de terras do estado de São Paulo): representante do governo estadual

O ITESP é uma Fundação, ligada à Secretaria da Justiça e da Cidadania, que substituiu o


DAF (Departamento de Assuntos Fundiários). Nos assentamentos, o ITESP tem a função
de fiscalizar os lotes e oferecer apoio técnico. A consulta de alguns documentos e as
entrevistas realizadas com os técnicos e com o coordenador regional, oferecem um
panorama da atuação deste órgão. Vejam-se alguns exemplos: elaboração de laudos
técnicos sobre a produção e produtividade; elaboração de laudos sobre a situação dos lotes,
como transferências, contratos e irregularidades. As transferências reportam-se aos casos
de morte do titular, quando o lote passa para a mulher, ou nos casos em que o pai transfere
o lote para o filho; as irregularidades referem-se ao arrendamento, e, principalmente ao
plantio da cana. Estes laudos, ademais de conterem a descrição do lote, apresentam fotos
das diferentes fases do processo de plantio da cana, com a presença de grandes máquinas,
tratores e caminhões; outras irregularidades constatadas foram a construção de ranchos às
margens do rio Jacaré - um dos rios que cortam as terras do assentamento - por pessoas
estranhas, que cercaram áreas de reservas florestais, e, por fim, a venda de lotes e a
presença de ocupantes irregulares.
Durante a pesquisa de campo, constatou-se a presença diária de dois técnicos do ITESP em
várias ocasiões: na escola, em reuniões com os assentados, quando as discussões giraram
em torno dos financiamentos advindos do PRONAF, ou ainda com as crianças ensinando-
lhes o plantio de sementes de árvores frutíferas; nos lotes, oferecendo orientação técnica.
Após a realização dos laudos, os mesmos são enviados ao INCRA. No que tange às
31

irregularidades, até então, elas continuavam ocorrendo, pois o INCRA não havia se
pronunciado a respeito. Segundo um dos técnicos, nos assentamentos sob a
responsabilidade do governo do estado de São Paulo, a organização é diferente. Dois
exemplos são citados: a orientação para que não haja as agrovilas, a fim de que a
agricultura familiar seja viável, ou seja, morar no lote é condição sine qua non para o
desenvolvimento do projeto de reforma agrária; nos casos de irregularidades, os laudos são
enviados à Justiça do Estado que os analisa, e, em seguida, o ITESP toma as providências
cabíveis.

O INCRA: A SOMBRA DO PODER

Em diversas ocasiões neste texto, foram feitas referências a este órgão, responsável pelo
assentamento. De acordo com todos os relatos – dos assentados e dos mediadores -, a ausência
do INCRA no tocante à resolução dos problemas é o fator responsável pelo insucesso deste
assentamento. As principais questões apontadas são as seguintes: omissão no tocante às
irregularidades, como o arrendamento disfarçado, o plantio de cana nos lotes, o abandono e
venda de lotes, o aluguel de casas da vila para pessoas da cidade, presença de invasores etc; a
presença esporádica dos funcionários deste órgão no assentamento, ocorrendo de uma a duas
vezes ao ano; ausência no tocante à resolução de questões referentes ao crédito, às dívidas, à
comercialização dos produtos, às formas organizativas etc;
De um lado, o INCRA é visto como inimigo dos assentados; a omissão é interpretada como
sendo a forma do assentamento não dar certo. Ou seja, o INCRA é o culpado. Segundo a
ideologia da culpa (Martins, 2000 b), pode-se perceber que, ao responsabilizarem o INCRA,
enquanto o outro, muitos assentados e os próprios mediadores eximem-se de auto-examinarem
suas próprias ações. Por outro lado, alguns assentados reconhecem a importância dos
investimentos do INCRA, tais como: eletrificação na vila e nos lotes, rede de água em todos os
lotes e construção de curvas de nível também em todos os lotes, ou seja, investimentos de
infra-estrutura. Quando apontam as irregularidades afirmam que a ausência do poder faz com
que cada um aja do melhor jeito que lhe aprouver, gerando a bagunça, os vagabundos, que
ficam nos bares enquanto as mulheres trabalham como empregadas domésticas na cidade,
enfim toda uma sorte de acusações interpessoais que impedem o aprofundamento das
reflexões sobre a própria realidade em que vivem.
32

Quanto aos projetos do governo federal, as críticas dos mediadores, sobretudo da


FERAESP, revelam que se trata de projetos que inviabilizam a reforma agrária, porque os
juros são altos e os assentados são igualados aos demais pequenos produtores, que possuem
níveis de capitalização diferenciados. De qualquer forma, a extinção do PROCERA e a
criação do PRONAF não representam melhorias para os assentamentos, sem contar que,
muitos se acham inadimplentes, e, por isso não podem se beneficiar das linhas de crédito,
oferecidas pelo PRONAF. Um outro problema apontado pela FERAESP é que não há
garantias de preços no momento da comercialização dos produtos, portanto, os assentados
acabam sendo prejudicados pelas leis do mercado, pois são obrigados a vender no momento
em que a oferta é maior do que a demanda e, além disso, ficam na dependência dos
atravessadores.
Segundo a bibliografia consultada sobre esta questão ( CARNEIRO,1997;
NEVES,1997; MOREIRA, 1997; BRUMER, 1997; FERNANDES, 1999), esta é uma
realidade comum não apenas aos assentados como também aos pequenos agricultores de
modo geral. Logo, há a reprodução do sistema de captação dos excedentes da pequena
produção pelo mercado capitalista. Este é o elemento estrutural, que não aparece na
superfície dos fenômenos, e que regula não somente as leis do mercado como também está
presente nos conteúdos dos projetos governamentais. Em relação ao PRONAF, considera-
se que as observações de CARNEIRO (1997) são extremamente importantes, na medida em
que a implementação deste Programa pode pôr em risco a reprodução social do pequeno
agricultor, já que ele está imbuído de uma lógica produtivista, que não leva em conta outros
elementos constitutivos da agricultura familiar, como por exemplo, a sazonalidade do
trabalho, a diferença entre tempo de produção e tempo de trabalho e assim por diante.
Portanto, na visão dos mediadores, as contradições inerentes à reprodução da agricultura
familiar no contexto das relações capitalistas não aparecem. Esta visão equivocada acaba se
manifestando também nos projetos implantados por eles no assentamento, muitos dos quais
faliram ao longo do tempo, como será visto mais adiante. Por ora, cabe acrescentar que a
ausência do poder do Estado no assentamento, identificado ao INCRA, precisa ser
analisada no âmbito das inúmeras contradições entre governo e movimentos sociais,
governo e classes dominantes, sobretudo os setores que detêm o poder sobre a terra neste
país. De qualquer maneira, o poder do INCRA existe enquanto sombra, isto é, como algo
33

refletido de um corpo real, que não é visto e nem entendido. Esta imagem lembra o mito da
caverna, descrito por Platão.
A produção familiar: a reinvenção de práticas e estratégias
Objetiva-se neste momento, oferecer mais algumas informações sobre as diversidades da
produção e da maneira de produzir a fim de completar o retrato do mosaico desta realidade
social.
Desde o início da constituição do assentamento, houve o predomínio da plantação de
cereais (lavoura branca). O milho foi o produto privilegiado. A maneia de produzir
associa a mão-de-obra familiar com o uso de máquinas no preparo da terra, no plantio e
também na colheita. O uso da mão-de-obra refere-se à carpa, realizada duas vezes durante o
ciclo desta cultura. A inexistência de irrigação faz com que haja apenas uma única
plantação anual. Esse fato conduz à ociosidade da terra e também, pelo que se observou,
dos homens. Por isso mesmo, o milho é denominado pelos próprios assentados de planta de
vagabundo. Quando a família mora no lote, durante o tempo da produção do milho, outras
atividades são desenvolvidas, como a produção de outros produtos, como o feijão, arroz,
café, mandioca, legumes, verduras, frutas e criação de animais, porcos, cabras, ovelhas e
gado leiteiro. Ao contrário, se a família não residir no lote, e este se situar distante da vila, a
produção doméstica e a criação de animais de pequeno porte ficam inviabilizadas.
As razões apontadas pela não construção da casa no lote reportam-se à ausência de uma
linha de crédito que contemple este item. No entanto, aqueles que residem no lote, a
fizeram com os próprios recursos e com muitos esforços. Inicialmente, ergueram um
ranchinho de apenas um ou dois cômodos, e, aos poucos, foram construindo a casa
definitiva. O ranchinho não foi demolido e nem a sua função de outrora é escondida pela
família. Ao contrário, a presença das duas casas é um comprovante do processo de ascensão
social e um marco importante da experiência familiar . As lembranças do período em que
moraram no ranchinho são permeadas pela dureza do trabalho na terra, totalmente coberta
pelo capim colonião. Paulatinamente, as marcas do trabalho familiar foram imprimindo
uma nova feição ao lugar, transformado em nosso lugar, nossa terra, nossa casa. O
ranchinho, gênese do processo de apropriação da terra, concentra um conjunto de
elementos simbólicos, essenciais á compreensão das diferenciações sociais entre os
assentados. Em torno dele, desenvolveu-se o trabalho familiar, a indústria doméstica, a
34

sociabilidade erigida sobre as representações da terra, enquanto geradora dos meios de


sobrevivência, que garantia não somente a reprodução física de todos como também a
realização de um projeto de vida, definido por um novo lugar na sociedade. Talvez, seja
este o significado do diminutivo - não concebido pelo tamanho pequeno -, representado
pela linguagem de uma maneira carinhosa, até mesmo poética.
No que tange aos que residem na vila, estas representações estão totalmente ausentes,
sobretudo entre as mulheres que se assalariam na cidade. A possibilidade de reprodução
social, sem sombras de dúvida, aumenta quando a família reside no lote. A compra de
produtos destinados ao consumo alimentar contribui para o aumento das dificuldades
financeiras, impelindo alguns de seus membros ao assalariamento, sobretudo
os jovens e as mulheres. Uma mulher, que trabalha na escola como cozinheira, cujas filhas
são assalariadas na cidade, disse que a soma dos salários dela e das filhas é para manter
despesas da casa e o dinheiro que o marido aufere no lote com a venda do milho é para
pagar o banco. Os produtores de milho vendem o produto e compram as sementes
financiadas. Este é um exemplo da integração à montante da agricultura à indústria, algo
estrutural do capitalismo, que se reproduz como prática entre os assentados.
A horta orgânica insere-se num projeto desenvolvido pela FERAESP por intermédio de
um convênio com a Fundação Mokiti Okada, que desenvolve pesquisas com produtos
orgânicos em Ipeúna/SP. Segundo as informações dadas pelo seu presidente, o convênio
visa à criação de um projeto piloto no assentamento Bela Vista. A implantação deste
projeto está a cargo de dois técnicos da Fundação e um outro, contratado pela FERAESP.
Um outro objetivo deste projeto é a recuperação ambiental e a transmissão de
conhecimentos relacionados às práticas da auto-sustentabilidade, objetivando a
recuperação das nascentes dos rios Jacaré e Chibarro. Este projeto abrangia até o momento
da pesquisa um total de dezesseis famílias, produzindo verduras sem a utilização de
agrotóxicos. Não há financiamento bancário porque, segundo o presidente da FERAESP,
ele não se enquadra no pacote tecnológico embutido nestes financiamentos, cujos objetivos
atendem aos interesses das indústrias que vendem estes produtos.
Além dos resultados financeiros, toda a família trabalha no lote, dedicando-se à produção
de verduras e também da rapadura, sem a necessidade de recorrer ao assalariamento. Outro
ponto importante é o conhecimento adquirido na relação com a natureza, definindo a auto-
35

sustentabilidade. Ao mesmo tempo que procura seguir os ensinamentos dos técnicos,


afirma estar pesquisando, isto é, descobrindo, por meio da observação constante, o
comportamento de insetos e plantas. Esta nova relação com a natureza tem outros
corolários. A sociabilidade familiar é essencial não apenas para a garantia da sobrevivência
sem os recursos ao assalariamento, como também para a produção de um processo de
desalienação em relação à natureza, que não visa ao seu domínio, mas ao seu
conhecimento. Residem aí as bases de um processo de ressocialização do grupo familiar e
também dos demais participantes deste projeto, uma vez que as bases de convivência não
são pautadas pelas disputas e discórdias.
A indústria doméstica há somente nos lotes. Os produtos são os seguintes: pães, doces,
rapadura, polvilho, farinha de mandioca, queijo, requeijão, sabão, vassoura etc. Estes
produtos são consumidos pela família e também vendidos na vila e na cidade, com exceção
do queijo e requeijão, que, em razão das normas sanitárias, não são vendidos na cidade.
Dada a importância da indústria doméstica para a reprodução da unidade familiar, verifica-
se que sua inexistência contribui para aumentar os gastos com alimentação, e,
conseqüentemente, a dependência do mercado, sem contar o fato de que se trata de uma
atividade que engloba a participação de todos os membros da família, reforçando a coesão e
o processo de socialização das crianças ao trabalho. Em muitos quintais, foram vistos
fornos de tijolos, uma casa de farinha que pertence ao conjunto de quatro famílias vizinhas,
árvores frutíferas e hortas com verduras e legumes. Há também uma família que produz
mel, destinado à comercialização.
Ademais da venda dos excedentes, a feira constitui-se num elemento importante da
sociabilidade entre as pessoas dos dois assentamentos do município de Araraquara (Bela
Vista e Monte Alegre) e também entre as pessoas da cidade. A feira é realizada aos
sábados, num local cedido pela prefeitura. Com a implantação do projeto de feiras
itinerantes nos bairros, haverá maiores ganhos e estímulos à produção de hortaliças e da
indústria doméstica. Quanto á sociabilidade, observou-se que a feira é um espaço de
convivência e intercâmbio de experiências entre os moradores dos dois assentamentos. As
mulheres trocam receitas, conversam sobre o cotidiano, preços, saúde dos filhos; há troca
direta de produtos entre eles, algo existente em várias partes do interior do país, como
revelam outras pesquisas ( SILVA, 1998; GARCIA JR., 1983; HEREDIA, 1979). Enquanto
36

espaço social, a feira representa a recriação de novos e velhos costumes, onde se acham
imbricados o comércio de mercadorias, mediado pelo dinheiro, a troca direta e a
sociabilidade, baseada em relações primárias. São temporalidades que se entrecruzam no
mesmo espaço social.
A cana: a cultura proibida/consentida
O plantio de cana é a questão que mais suscita controvérsias neste assentamento. De um
lado, há aqueles que se justificam enquanto fornecedores de cana, jamais como rentistas,
arrendando as terras para usinas e fazendas. Por inúmeras vezes, solicitou-se uma cópia do
contrato, porém não foi possível consegui-lo; até mesmo o presidente da Cooperativa de
Produtores de Cana negou-se a fornecê-lo. Este conflito, como já foi mostrado ao longo
deste texto, atinge não apenas os assentados como também os representantes do ITESP, do
poder local, da FERAESP e as lideranças. No assentamento da fazenda Monte Alegre,
houve várias tentativas de plantio de cana, incentivadas pelas usinas, mas os objetivos não
foram logrados (STETER, 2000). Em suma, trata-se de uma cultura proibida pelo INCRA
nos termos das relações de produção existentes, porquanto consentida por este Órgão, na
medida em que a prática continua sendo pautada pela omissão. E mais ainda. O aumento
daqueles que estão aderindo à cana tem crescido anualmente. Os cálculos do ITESP
referem-se à aproximadamente cinqüenta e dois lotes com plantio de cana.
A maior justificativa apresentada é a inadimplência junto ao Banco do Brasil. Segundo
fontes fidedignas, no período de 1995-2001, o financiamento do Banco do Brasil foi em
torno de R$ 1.440.000,00; os produtos financiados foram o feijão, arroz e milho. Deste
montante, a inadimplência gira em torno de 30%. Além deste aspecto econômico, há o
político, pois a cana representa o produto dos usineiros, cujos interesses são contrários
àqueles dos assentados. Desde os primeiros anos, houve tentativas de plantio de cana. As
primeiras plantações foram queimadas gerando um conflito enorme entre os assentados,
inclusive um deles, acusado de ser o mentor deste ato, sofreu um processo judicial, pelo
qual ainda responde. Este acontecimento envolveu a FERAESP, que se constituiu como
defensora do acusado, e foi muito propagado pela imprensa da cidade. Portanto, a volta da
cana representa o reflorescimento das lembranças deste passado conflituoso. Há ainda a
memória daqueles que foram empregados das usinas, cujas lembranças são carregadas de
muito sofrimento. Muitos deles, homens e mulheres, ao se lembrarem deste tempo,
37

choraram e manifestaram além da dor, sentimentos de cólera. Para estes, mesmo que
passem fome, segundo suas palavras, jamais plantarão cana em seus lotes. Portanto não são
apenas os cálculos econômicos os responsáveis pela adesão ou não à cana. Uma depoente,
ao se lembrar do tempo em que era cortadora de cana emociona-se e afirma: Então eu tenho
muita revolta...Se eu pudesse, eu não via um pé de cana na minha frente. Eu nem gosto de lembrar.
Acredita-se que estes elementos invisíveis são extremamente fecundos à análise em torno
do plantio da cana no assentamento, além daqueles já mencionados. Este acontecimento
surtiu efeitos profundos na vida desta mulher, que, embora, parte de um tempo passado,
continua definindo suas práticas presentes e informando seus projetos futuros. Em vários
momentos afirmou que, se, por ventura, o marido aderir ao plantio da cana, ela não
vacilaria em deixá-lo. Seu relato revela também a consciência política em relação aos
usineiros, definidos como exploradores dos pobres e seus inimigos. E mais. Os usineiros
são vistos como contrários ao projeto de assentamento, dado que aquelas terras pertenciam
ao grupo do qual fazem parte, e, na medida em que arrendam as terras dos assentados,
estão corroborando para o fracasso da Reforma Agrária. A presença de um assentado, que
responde por um processo de invasão de lote, cuja trajetória é totalmente anômala em
relação ao projeto de Reforma Agrária, é uma confirmação das suposições de muitas
pessoas. Trata-se de um ex-policial, invasor de um dos lotes, que tem uma oficina mecânica
na frente da casa e que se coloca como o fundador e presidente da Associação de
assentados que plantam cana . Segundo foi apurado, mantém ligações com um deputado da
cidade, que é defensor dos interesses dos usineiros. É casado com uma enfermeira que não
mora no lote, possui um nível de escolaridade superior aos dos assentados (nível médio).
Seu relato não confirma as suposições existentes. Entretanto, a presença de grandes
máquinas e de grandes quantidades de adubos e outros corretivos para o solo são um
testemunho da produção dos usineiros, algo que se afasta completamente da condição
financeira dos assentados. Este fato é recorrentemente comunicado ao INCRA pelos
técnicos do ITESP, por meio de laudos, fotos e outros registros.
O plantio de cana é um grande desafio para o projeto de Reforma Agrária. A proibição do
INCRA não se concretiza em ações que resultem no fim desta atividade. A cada ano,
aumenta o número daqueles que aderem à esta cultura. Como foi mencionado em outras
partes deste texto, a ideologia da culpa camufla outras questões e conflitos.
38

Durante a realização da pesquisa de campo, tomou-se conhecimento de um projeto falido


há algum tempo atrás, referente à cultura do bicho-da-seda. O grande barracão construído
por um dos assentados para o desenvolvimento desta atividade é um exemplo do dispêndio
de trabalho e esforço de toda a família que aderiu a este projeto. Além disso, a mulher
contraiu reumatismo em virtude do extenuante trabalho para alimentar as larvas, atividade
que se desenvolvia durante vinte e quatro horas, caso contrário, a produção seria
comprometida. A plantação de amoreiras para a alimentação das larvas foi feita com
investimentos que oneraram os parcos recursos das famílias. Além deste projeto, há outros
falidos, como alguns destinados às mulheres, cujos objetivos eram a formação de hortas. Há
alguns anos atrás, alguns assentados foram incentivados à compra de gado leiteiro, projeto
responsável pela endividamento das famílias em virtude da morte de muitas vacas, causada
pela falta de infra-estrutura e desconhecimento técnico vis-à-vis o trato destes animais. Os
projetos falidos conduziram muitos à inadimplência e são apresentados como justificativas
à adesão ao plantio de cana, que, segundo eles, é uma garantia de renda. Este depoimento
revela a existência de projetos alheios às condições financeiras e a falta de infra-estrutura e
conhecimento, capazes de assegurar a viabilidade econômica. Segundo outros relatos, as
vacas holandesas morreram de fome e em razão do calor. Outro projeto falido refere-se à
criação do bicho-da-seda (ANDRADE,1997), cuja implantação exigiu grandes
investimentos por parte dos assentados, conduzindo-os à inadimplência junto ao Banco,
após alguns anos.
À guisa de conclusão
A análise precedente não induz à conclusões negativas ou positivas. Em termos de
avaliação, é impossível afirmar que esta experiência seja falida ou vitoriosa . Acredita-se
que não cabem as dicotomias e as alternativas. Privilegiando uma análise relacional,
observa-se que a heterogeneidade, ao contrário da homogeneidade, constitui-se no elemento
que deva orientar a análise a fim de impedir o viés ideológico.
Diante da pergunta, se havia valido a pena a luta pela terra, e a luta para ficar na terra, todos
os entrevistados afirmaram positivamente. Um jovem negro, assim se manifestou: se não
fosse a Reforma Agrária, eu teria sido mais um negro da periferia de São Paulo. Ao
compararem suas vidas antes de virem para o assentamento e o momento atual, todos
afirmaram que havia melhorado muito. Os itens apontados são: educação para os filhos,
39

segurança quanto à saúde, certeza de que nunca vão passar fome e a esperança de que o
assentamento lhes possibilita continuar ali. Quanto à terra, todos afirmaram que ela é a
fonte da vida, é um patrimônio não somente para os filhos que permanecem como para
aqueles que partem. No que concerne aos jovens, os projetos são diferenciados, mas mesmo
aqueles, que manifestaram o desejo de ir para a cidade, esperam que seus pais continuem na
terra, enquanto estes objetivam deixar a terra para seus filhos.
Os conflitos gerados em torno do plantio de cana revelam que a proposta da Reforma
Agrária, enquanto um projeto social, é a bandeira de luta daqueles que almejam ficar na
terra e desenvolver a agricultura familiar produzindo alimentos para eles e para os
habitantes da cidade, segundo muitos depoimentos. Para este projeto se concretizar, há
necessidade da presença do órgão governamental, responsável pelo assentamento, e uma
política de financiamento diversa da que existe atualmente.
Um outro ponto que valeria a pena ressaltar é a relação entre as trajetórias familiares e
profissionais e a atual condição social. Em outros termos, o ethos do trabalho relacionado à
terra; este aspecto é muito importante para a análise da diferenciação social entre os
assentados. O ethos é também um elemento constitutivo da memória. Em muitas ocasiões,
pôde-se perceber a memória como um fator gerador de práticas relacionadas ao grande
esforço para ficar na terra, sobretudo por parte daqueles que construíram as casas nos lotes.
Eles conservam o ranchinho como símbolo, como marco da entrada na terra. Sentem-se
orgulhosos em mostrar como eram e como estão agora, como ascenderam socialmente por
meio do trabalho duro de toda a família. Não somente a casa, mas as árvores plantadas, os
animais, as demais construções, enfim tudo o que possuem representa a marca do trabalho.
Ao mesmo tempo, produzem projetos calcados na utopia, nas próprias forças, na proteção
divina e na ajuda do governo. Ao se reportarem ao plantio de cana, manifestam o medo de
perderem a terra. Aqueles que possuem horta, café, frutas afirmam que a cana é uma
ameaça por causa das queimadas, do agrotóxico, da presença das grandes máquinas e dos
usineiros que estão dentro do assentamento. Todos disseram que vão resistir; caso percam
as plantações irão à justiça, e, se for necessário, não importam em deixar a terra num
caixão. Ao mesmo tempo, indignam-se diante do desperdício de dinheiro público por meio
de investimentos em eletrificação, água, curvas de níveis, dado que tais gastos não são
necessários ao plantio de cana. As práticas em torno da defesa do projeto de Reforma
40

Agrária inserem-se no conjunto do ethos no qual a terra possui , ademais de suas funções
para garantir a sobrevivência, a simbologia da multiplicação, da transformação.
Lavoura é talento, esse talento tem que ter força para levantar, como é que vai nascer um filho meu
desnutrido, eu tenho que ir ao médico para levar ele, é como uma lavoura, uma semente, como um talento é
a mesma coisa! Se eu planto um pé de milho, eu quero ver ele bonito, ver uma boa espiga, eu tenho de
agradar aquele pé de milho, e como eu agrado! ... A Reforma Agrária é um talento (Sr. João).
Na antigüidade greco-romana, o talento era a denominação da moeda existente, algo que
aparece também em algumas passagens bíblicas. Ao transformar a terra em terra-talento,
ele a (re) significa , empresta-lhe a qualidade do dinheiro, responsável pela sua
sobrevivência, atribui-lhe uma aura, invisível, porém real. Neste momento, a memória
estabelece os liames entre passado e presente e se transfigura em devir. O talento é o tropo
linguístico que sintetiza o reencontro com a terra e com os seus frutos, que lhe permite
animar a planta por meio da conversa, do toque, do cuidado e até mesmo de se confundir
com ela numa relação simbiótica de dependência mútua. A Bela Vista é um diamante bruto que
precisa ser lapidado para que a Reforma Agrária seja como a Gralha Azul...A Gralha Azul ela é do sertão,
ela trabalha, ela pega o pinhão e enterra... Então, ela é um „bichinho‟ assim que trabalha... Tem que ser
como a Gralha Azul. A reforma agrária tem que ser como a Gralha Azul (Maria).
Aprender com a natureza... , transformar a reforma Agrária num talento, talvez
sejam as tarefas ausentes nos cadernos daqueles que detêm o poder de decisão neste
assentamento...
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, E. A. Processo de trabalho, espaço e sociabilidade: a sericicultura no assentamento de reforma
agrária do Horto Silvânia. Dissertação de mestrado, UNESP/Araraquara, 1997.
BARONE, L. A. Revolta, conquista e solidariedade: a economia moral dos trabalhadores rurais em três
tempos. Dissertação de Mestrado. PPG/Sociologia/UNESP/Araraquara, 1997.
______________Religião, política e economia: “o drama da re-socialização” num assentamento rural
paulista. Texto apresentado para o Exame de Qualificação de Doutorado.
PPG/Sociologia/UNESP/Araraquara, 2002.
BATTAGLIOLA F et al. Dire as vie: entre travail et famille. La construction social des trajectoires. Paris:
CNRS/CSU-IRESCO, 1991.
BERGAMASCO, S. M. P. A realidade dos assentamentos por trás dos números. Estudos Avançados. Dossiê
Questão Agrária. Censo dos Assentamentos. As teses do MST. V. 11, set/dez, 1997, p. 37-49.
BRUMER, A . et al. Tensões na Transição Democrática Brasileira. São Paulo em
Perspectiva, nº 2, V.11, 1997, p.35-41.
Cadernos de Pesquisa . Retratos de Assentamentos. Araraquara, Ano I , N.1, 1994.
Cadernos de Pesquisa. Retratos de Assentamentos. Araraquara, Ano IV, N. 6,1998.
CAIRES, A . C. R. Nem tudo era doce no Império do açúcar (vida, trabalho e lutas na usina Tamoio-
1917/1969). Dissertação de Mestrado. PPG/Sociologia/UNESP/Araraquara, UNESP,1993.
CARNEIRO, M. J. Política pública e agricultura familiar: Uma leitura do PRONAF. Estudos Sociedade e
Agricultura. Abril, N. 8, 1997, p.70-82.
CHIOVETTI, S. P. Reestruturação produtiva na agroindústria paulista e a luta dos trabalhadores rurais
assalariados. Lutas Sociais. N. 6, 2º semestre de 1999, p151-173.
41

FERNANDES, B. M. Ocupações de terra e política de assentamentos rurais, Lutas Sociais. N. 6, 2º semestre


de 1999, p 125-135.
FERRANTE, V. L. B. (org.) Retratos de Assentamentos. Cadernos de Pesquisa. Ano I, N. 1, Araraquara,
1994.
GARCIA Jr., A. Terra de trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
GNACCARINI, J. C. Estado, ideologia e ação empresarial na agroindústria açucareira no Estado de São
Paulo. Tese de Doutoramento. PPG/sociologia/USP/São Paulo, 1972.
HELELR, A . O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Editora Paz e terra, 1985.
HEREDIA, B. A morada da vida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
MARTINS, J. S. O cativeiro da terra. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.
______________ Caminhada no chão da noite. . Emancipação política e libertação nos movimentos sociais
do campo. São Paulo: Editora Hucitec, 1989.
_____________ Reforma Agrária: O impossível diálogo. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo,2000.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. (I Fuerbach). Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio
Nogueira. 4ª edição. São Paulo: Editora Hucitec, 1984.
MOORE, Jr., B. Injustiça. As bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
MOREIRA, R. J. Agricultura familiar e sustentabilidade: valorização e desvalorização econômica e cultural
das técnicas. Estudos Sociedade e Agricultura. Abril, N. 8, 1997, p 51-69 .
NAVARRO, Z.. Sete Teses Equivocadas Sobre as Lutas Sociais no Campo: o MST e a Reforma Agrária. São
Paulo em Perspectiva, N.2, vol.11, 1997, p.86-93
.
NEVES, D. P. Agricultura familiar e mercado de trabalho. Estudos Sociedade e Agricultura. Abril, N. 8,
1997, p.7-25.
____________ Assentamento rural: reforma agrária em migalhas. Niterói: EDUFF, 1997
POLANY, K. A Grande Transformação- As origens da nossa Época. Rio de Janeiro: Editora Campus,1980.
ROSIM, L. H. A vontade do estado e o querer dos trabalhadores. Retratos de Assentamentos. Cadernos de
Pesquisa. Araraquara, Ano IV, N. 6, 1998, p.87-108.
SCOTT, J. C. The Moral Economy Of The Peasant Rebelion And Subsistence In Southeast Asia. Worcester,
Yale University Press, 1976.
SILVA, M. A . M. Fiandeiras, tecelãs, oleiras... redesenhando as grotas e veredas. Projeto História, N. 16,
1998, p. 75-104.
_______________ Errantes do fim do século. São Paulo: Editora daUnesp,1999.
_______________A cultura na esteira do tempo. São Paulo em Perspectiva. Fundação SEADE, V. 15, N. 3,
jul/set/2001, p.102-112.
_______________Migração. Uma metodologia em busca das lembranças. Texto apresentado no 29º.
Encontro Nacional do CERU, realizado na USP/São Paulo, maio de 2002.
STETER, E. A . A cana nos assentamentos rurais. Presença indigesta ou personagem convidada. Dissertação
de mestrado, PPG/Sociologia/UNESP/Araraquara, 2000.
THOMPSON, E. P. Tradición, Revuelta y Conciencia de Clase. Barcelona: Editorial Crítica, 1979.
________________ Costumes em comum: Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras,1998.

Você também pode gostar