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E AS “CRIAS DE FAMÍLIA”, POR ONDE ANDAM?

Um estudo sobre
projetos de vida, memória e trabalho de mulheres em Porto Alegre/RS

Luísa Maria Silva Dantas1

Palavras-Chave: Trabalho Doméstico; Gênero; Memória;

Introdução
“Crias de família”2, personagens centrais dessa proposta, podem ser
encontradas historicamente (segundo dados preliminares indicam) e em grande número,
na maioria das famílias residentes no Brasil – isto significa dizer que a todos que
“apresentei” e questionei sobre esta personagem em vários estados do país durante
congressos, seminários ou conversas informais, não houve ninguém que não a
identificasse, rapidamente, em seu cotidiano3. Esta denominação é um rótulo
designativo de referência de terceiros, uma espécie de categoria “encoberta” em relação
a essas, em sua maioria, mulheres, quase sempre negras ou não-brancas, advindas de
pequenas cidades dos interiores dos estados ou de países como Peru e Bolívia, que vêm
para a casa de famílias nas capitais do Brasil e da Argentina em busca de melhores
condições de vida; caracterizadas por uma posição ambígua na família, já que, ora são
tratadas como “parentes” (de “segunda classe” ou designativamente, “quase da família”,
“como se fosse da família”), ora como agregadas ou domésticas, dependendo da
situação.
Desse modo, o estudo sobre as “crias de família” visa à produção de uma
análise de abordagem antropológica sobre as nuances da situação desses “agregados” –
os quais são unidos por uma espécie de vínculo de trabalho e “parentesco”, por mais
ambíguo que seja – que, como em qualquer relação social, é estipulado a partir de
direitos e deveres, mas que neste caso, não se apresentam de maneira clara e objetiva,
ainda que atuem constantemente. A relevância do trabalho está em não apenas apontar
como se configura a família e o trabalho em um espaço (Porto Alegre) e num tempo
(atual – o qual, considerando as idades das possíveis interlocutoras pode iluminar não só
o presente, mas o passado mais recente) específicos, como também, conhecer e
interpretar a trajetória de vida e como as próprias “crias” entendem o fato de serem ou
terem sido protagonistas, mesmo que nos “fundos das casas”, desta prática, que em certa
medida também pode ser considerada adotiva ou de adoção; além disso, identificar
aspectos semelhantes ou comuns nas lembranças (em suas vidas, portanto) dessas
pessoas tão freqüentes nas famílias portoalegrenses, mas tão pouco conhecidas
sociologicamente. E até desconhecidas neste mesmo sentido, num processo muito
instigante de “esquecimento” próprio do trabalho da memória em certas circunstâncias,
como nos lembra tanto BOSI (2003).

1
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e bolsista Capes. É mestre com distinção em Antropologia Social pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul e bacharel e licenciada em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia
pela Universidade Federal do Pará. Atuando principalmente nos seguintes temas: crias de família,
apadrinhamento afetivo, parentesco, adoção, gênero, geração e cor.
2
Essa denominação pode ser decorrente da criadagem, dos criados, bastante retratados em estudos
históricos pós-abolicionistas como, por exemplo em ALMADA, 1987, para Belém/PA e DORNELLES,
1998, para Pelotas/RS.
3
Cecília, 2003; Lamarão, 2008; e Motta-Maués, 2006, 2007;
Metodologia
O método etnográfico prioriza a elaboração de um referencial teórico-
conceitual acerca da temática estudada e a pesquisa de campo; assim, estou realizando o
estudo através da observação participante, a realização de entrevistas não-diretivas, que
estão sendo utilizadas para construir as trajetórias sociais e projetos de vida das “crias
de família”. Além disso, essas entrevistas são semi-estruturadas para que as
entrevistadas (majoritariamente, ainda que possam ocorrer atores masculinos) detenham
também a possibilidade de exploração do tema e que possamos adentrar nas respostas
de conteúdo afetivo recebidas; sendo assim um instrumento dialógico que pode
contribuir para estreitar a relação entrevistador/entrevistado.
O método da história de vida também é fundamental nesta proposta, pois sua
“correlação com as demais fontes de dados do método etnográfico: a convivência
prolongada que permite uma observação antropológica elaborada, o conhecimento dos
ritmos e espaços da vida cotidiana, os complexos eventos coletivos, as múltiplas redes
sociais onde os indivíduos circulam e negociam identidades” (ECKERT, 1998, p. 3),
gera narrativas biográficas, que são produtos da forma como os indivíduos expressam
suas avaliações conscientes das condições subjetivas de interação social, considerando-
se também as possibilidades que os indivíduos têm ou pensam ter no universo em que se
inserem, numa perspectiva projetada para o devir, ao tempo pensado desejado pelos
sujeitos nas suas interações e ações (ECKERT, 1998, p. 14).
A construção das trajetórias das “crias de família” ocorre através da reflexão
biográfica dessas personagens permitindo que identifiquemos valores, idéias,
representações e as suas condições históricas e a maneira que isso influencia na
transformação das práticas ao longo do tempo.
“Isto implica em estar atento (a) às regularidades e variações de práticas e
atitudes, reconhecer as diversidades e singularidades dos fenômenos sociais
para além das suas formas institucionais e definições oficializadas por
discursos legitimados por estruturas de poder” (ECKERT e ROCHA, 2008:
3).

Sigo também a orientação de Latour (2006), que propõe uma antropologia de


“nós mesmos” e utilizando a teoria do ator-rede enquanto metodologia, sugere uma
antropologia simétrica, que elimine as dualidades típicas do pensamento ocidental
moderno e elabore multiplicidades fundamentadas por um aparato conceitual
imaginativo, onde não se busca a eliminação das diferenças entre o mundo do “nós” e o
mundo do “eles” ou entre o mundo dos “humanos” e “não humanos”, mas sim traçar
“conexões transversais” entre esses diferentes modos de pensar e agir que possam ser
traduzidos reciprocamente.
Assim, o pesquisador deve traçar uma rede, através da descrição, que
proporcione agência na produção dos fatos; portanto o mundo social seria resultado da
co-produção de elementos humanos e não humanos, que apenas tomam consciência da
sua originalidade a partir do embate com diferentes formas de ação, que geram
controvérsias promovendo a ampliação de suas redes sócio-lógicas.
Portanto, a pesquisa prioriza os métodos de natureza qualitativa, visando
compreender casos particulares que se articulam com emoções, valores, subjetividades e
que remetem de algum modo à vida social.

Discussão
ALMADA (1987) provoca uma reflexão bastante interessante e fundamental
acerca de como, possivelmente, se constituíram as “crias de família” no estado do Pará;
a partir de um tempo determinado, de 1870 a 1888 – que data do surgimento da lei do
ventre livre à abolição da escravidão. Através da análise de documentos de Vigia
(município paraense), o autor enfatiza que o “menor escravo”, após a lei do Ventre
Livre é mantido em condição de exploração através da “tutela”, que seria o instrumento
para assegurar o trabalho compulsório e servil, amparado pela ideologia do progresso,
tão almejado pelo governo e pelas elites paraenses. Assim, segundo essa análise, ao
invés de transformar menores filhos de escravos em livres, colocava os menores livres
pobres em situação de igualdade com os escravos.
Além disso, DORNELLES (1998) analisando as profissões desempenhadas
pelos negros em Pelotas no período de 1905-1910 identifica que em relação ao público
feminino “os serviços de costura, amas-de-leite, cozinha, criadagem, engomadeiras,
empregada, copeira, lavadeira, etc, foram constantes dentro do período investigado”
(p.97).
Esta pode ser uma hipótese que nos ajude a pensar sobre a construção histórica
e étnica das “crias de família”, encontradas na atualidade – é válido lembrar que as
protagonistas desta proposta nasceram provavelmente entre o início do século XX e
início do século XXI, o que através de suas memórias, pode nos indicar a história social
das famílias portoalegrenses, bem como, a dinâmica social da cidade. Ainda que
olhadas apenas por um pequeno, mas relevante, atalho de sua paisagem.
Além disso, o estudo e análise da antropologia urbana brasileira, especialmente
de Gilberto Velho, assim como, de Simmel, Park e outros teóricos da Escola de Chicago
também é fundamental para que possamos pensar nas protagonistas da pesquisa
inseridas na cidade, tentando dar conta das formas de sociabilidade que se desenvolvem
neste espaço e tempo urbano, abarcando os modelos de viver no contexto
contemporâneo em que estão inseridas. A memória, podendo ser analisada enquanto
uma qualidade do sujeito moderno reflexivo; e, fundamentada pelos estudos de
SCHUTZ (1979), propicia a identificação da intersubjetividade enquanto um elemento
fundamental nas práticas cotidianas dos sujeitos, já que, sendo atores cognitivos, se
deslocam na experiência construindo seus projetos conforme o campo social, que a
sociabilidade compõe (SIMMEL, 1979).

Referências Bibliográficas

ALMADA, Paulo Daniel Souza. A infância desvalida: menores do Pará entre a Lei do
Ventre Livre e a abolição. Monografia de conclusão do Curso de História.UFPA, 1987,
Belém.
BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê,
2003.
CECÍLIA, Maria. Uma casa chamada 14. Belém: IAP, 2003.
DORNELLES, João Batista. PROFISSÕES EXERCIDAS PELOS NEGROS EM
PELOTAS ( 1905 - 1910 ). História em Revista, Pelotas, v.4, 95-138, dezembro/1998.
ECKERT, Cornelia. “Questões em torno do uso de relatos e narrativas biográficas na
experiência etnográfica”. In: Revista Humanas. Revista do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, n° 19, Porto Alegre: 1998.
ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Etnografia: saberes e práticas.
In: PINTO, Céli Regina J. e GUAZZELLI, Augusto B. (Orgs.). Ciências Humanas:
pesquisa e método. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2008, p. 9-24.
LAMARÃO, Maria Luiza Nobre. A constituição das relações sociais de poder no
trabalho infanto-juvenil doméstico: estudo sobre estigma e subalternidade.
Dissertação de Mestrado em Serviço Social. UFPA, 2008, Belém.
LATOUR, Bruno. Como terminar uma tese de sociologia: pequeno diálogo entre um
aluno e seu professor. In: Cadernos de Campo. V. 14/15 décembre, 2006.
MOTTA-MAUÉS. Maria Angelica. “Crias, Criadas, Filhos de Criação: Filhos todos
são? Adoção, afetividade e família na Amazônia”. In: 25a Reunião Brasileira de
Antropologia, 2006, Goiânia. 25a Reunião Basileira de Antropologia-CD-Rom.
Goiânia/GO : Associação Brasileira de Antropologia, 2006. v. 2.0. p. 1-8.

______________________________ “Uma vez „cria‟ sempre „cria‟ (?): Adoção,


gênero e geração na Amazônia”. Trabalho apresentado no 13° CISO – Encontro de
Ciências Sociais Norte e Nordeste, UFAL – Maceió (AL), 03 a 06 de Setembro de
2007.
PARK, Robert Ezra. “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento
humano no meio urbano”. In: O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
SIMMEL, George. “A metrópole e a vida mental”. In: O fenômeno urbano. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979.
VELHO, Gilberto. Subjetividade e Sociedade uma experiência de geração. Rio de
Janeiro: Joge Zahar Ed., 1986.

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