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Belém - Pará
2019
Belém-Pará
2019
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Prof.ª Dra. Sônia Maria da Silva Araújo]
Universidade Federal do Pará- UFPA
(Orientadora)
____________________________________
Prof.ª Dra. Lucia Isabel da Conceição Silva
Universidade Federal do Pará- UFPA
(Examinadora - Interno)
____________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato de Pádua Câncio
Universidade Federal do Pará- UFPA
(Examinador - Interno)
__________________________________________
Prof.ª Dra. Valéria A. Cerqueira de Medeiros Weigel
Universidade Federal do Amazonas- UFAM
(Examinadora - Externo)
Belém - Pará
2019
CDD 370
AGRADECIMENTOS
Significa dizer que mesmo com a insistente força colonial predominante na universidade, não
desistimos dos sonhos e não perdemos as lutas mais importantes.
Significa, mesmo sem palavras, declarar que enfrentamos a discriminação e/ou o racismo.
Significa superar, mesmo diante de uma educação pública que nos estimula a não chegar em
lugar algum, nossas limitações escriturais e produzir debates de uma perspectiva audaciosa.
É também provar que temos epistemologias outras e que são igualmente importantes.
É, sobretudo, não se conformar com a imposição a um lugar subalterno para vivermos os sonhos
que quisermos.
No entanto, nessa jornada, tive o apoio de tantos para que este sonho fosse possível e por todos
eles, eu tenho profunda gratidão, em especial agradeço:
A Deus, que tem me ajudado a realizar os desejos do meu coração, cuidando de mim por onde
quer que eu ande e que tem me feito crescer enquanto humano mesmo diante de tantas
dificuldades.
A minha orientadora, Profa. Dra. Sônia Maria da Silva Araújo, que, ao me aceitar, abraçou o
sonho que não era só meu e que me permitiu desconstruir-me inúmeras vezes para que eu
pudesse evoluir tanto academicamente como ser humano.
Ao Prof. Dr. Raimundo Nonato de Pádua Câncio, que, com sua presença tranquilizadora, me
ajudou a encontrar caminhos para que eu conseguisse desenvolver o percurso discursivo desta
pesquisa e com quem compartilho algo comum: o interesse em pesquisar os povos indígenas.
A Profa. Dra. Lúcia Isabel da Conceição Silva, que me apresentou perspectivas audaciosas de
pensar as questões indígenas, com quem tive interessantes oportunidades de diálogo todos
igualmente poderosos para refletir para além desta dissertação;
A Profa. Dra. Valéria A. Cerqueira de Medeiros Weigel, que apreciou esta produção
contribuindo para reelaborar o percurso discursivo;
A minha mãe Sânora, mulher guerreira, que fez tudo que estava a seu alcance para que eu jamais
desistisse dos estudos e que buscasse neles a mudança de vida. Apesar de suas próprias
inseguranças e medos, por ter seu filho longe de casa, apoiou cada decisão;
Ao meu pai Valdeci, que me fez ser a pessoa forte que sou hoje, com quem aprendi a ser
disciplinado e que sempre me orientou para alcançar grandes voos na vida;
A minha companheira Kerollaine, que sempre me apoia em meus projetos, que me ama com
todas as manias e defeitos e que jamais permite que eu desista dos meus sonhos;
A minha avó Ozinda (in memoriam), mulher indígena, que com sua força ancestral vive entre
nós e seus ensinamento se perpetuam;
Ao meu avô Valdomiro (in memoriam), que antes de partir me ajudou a (re)construir para esta
dissertação os pedaços de minha história indígena;
Ao meu tio-pai Jocivan (in memoriam), que nos deixou subitamente antes da conclusão de mais
esta etapa, mas que foi um homem incrível e que graças a ele muitas conquistas foram possíveis
Aos meus irmãos Sâmela, Weslley e William, que durante nossas conversas proporcionaram-
me muitos momentos de alegria e carinho;
A Eduardo Alves Vasconcelos, meu primeiro orientador, que ainda acompanha minha vida
acadêmica e que me ensinou a tarefa árdua de ser pesquisador neste país e que me estimulou a
ter paixão pela pesquisa cientifica;
A Aline Barboza, amiga que me incentivou inúmeras vezes a trilhar esse caminho e que viu de
perto minhas inseguranças e dificuldades para a conclusão desse trabalho, mas que me motivou
e me estendeu a mão sempre;
A Valena Calandrini, amiga e gestora, que compreendeu a importância dessa etapa para minha
vida e permitiu que este percurso tivesse menos limitações e que pudesse ser mais leve;
A Alyne Vieira, superintendente do SESI DR/AP, que me possibilitou viver esse sonho sem ter
que abrir mão de outro: a docência;
A Miriam Rosa, amiga, com a qual tive maravilhosas conversas sobre fé, Deus e família que
me ajudaram a superar a saudade de casa;
A Vitor Fernando, amigo, que inúmeras vezes me acolheu em sua casa e seu coração e com
quem conversei diversas vezes sobre esta pesquisa.
A Paulo Demétrio, amigo e poeta, que tornou as idas a Belém momentos de festa e alegria,
mesmo quando eu estava bastante tenso para qualquer tipo de comemoração, homem de
conversas e atitudes incríveis;
A Izan Rodrigues, amigo, que ora cuidava de mim como pai ora como irmão, com quem tive
diálogos filosóficos profundos e que sempre me dá referências literárias poderosas,
apaixonantes e revolucionarias;
E a todos aqueles que fizeram dessa caminhada uma experiência incrível, estimulante,
apaixonante e única.
RODRIGUES, Uisllei Uillem Costa. “O que você veio fazer na sala de aula?” Intelectuais
indígenas brasileiro e educação. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal do Pará, Belém, 2019.
RODRIGUES, Uisllei Uillem Costa. "What did you come to do in the classroom?" Brazilian
indigenous intellectuals and Education. 2019. Dissertation (Master in Education) - Federal
University of Pará, Belém, 2019.
The research object of this dissertation is the indigenous intellectuality and its academic
production in Postgraduate Programs. Access to school education for indigenous peoples at all
levels is not a recent phenomenon, although new contexts and paths have been outlined today.
The general objective is to analyze the thinking of the Brazilian indigenous intellectual about
education, manifested in thesis defended in postgraduate programs, in order to understand their
political meaning. Depending on the main objective, we outline the specific objectives: 1) Carry
out a bibliographic review of studies about this intellectual; 2) Analyze the concept of
indigenous intellectual; 3) To discuss the relationship between schooling and intellectuality of
this subject; 4) To survey the names of Brazilian indigenous intellectuals; 5) To verify, from
the relationship of these Brazilian indigenous intellectuals, those who dealt, in thesis and
dissertations, with the question of education; 6) Analyze the thinking of this intellectual subject
on education in thesis and dissertations; 7) To verify, from the materialization of the thought of
this intellectual about education, its political sense. Methodologically, the research is developed
from the assumptions of content analysis. The issues raised: 1) Who are the Brazilian
indigenous intellectuals? 2) What are the contributions of schooling to the construction of this
subject's intellectuality? 3) How is the thought produced by this intellectual presented? 4) How
does the theme "Education" and the educational phenomenon materialize in indigenous
intellectual thinking? The hypothesis initially raised is that the thinking produced by indigenous
intellectuals in their thesis and dissertations presents a critical view of indigenous school
education. The initial idea we raised was that indigenous intellectuals produced (and still
produce) a thought that reflects, above all, the ethnic identity of their indigenous group of
belonging. Thus, the materialization of the thought of this intellectual would be marked, among
other things, by a deep identity affirmation. The results show that indigenous intellectuals do
present a critical interpretation of school education offered to their peoples, even though ethnic
knowledge does not manifest itself so explicitly. It has been demonstrated that access to
schooling has had profound repercussions in the context of these populations in the country,
among them the emergence of a schooled/ educated indigenous group that has proposed debates
from a place of speaking of belonging. The productions of these intellectual subjects converge
to points in common. These studies emphasize fundamentally that indigenous education in
Brazil can not ignore the education of the indigenous tradition and that the ancestral memory
of the original peoples must permeate their educational school process in order to overcome a
colonial position that school education almost always tries to impose in defiance of the identity
affirmations defended in the last 30 years, after the promulgation of the Federal Constitution of
1988.
Keywords: Indigenous Intellectual. Education. Academic Production.
LISTA DE QUADROS
SUMÁRIO
FONTES ................................................................................................................................137
1 INTRODUÇÃO
1
O ciclo do Marabaixo é considerado a maior manifestação cultural do estado do Amapá. É um ritual de origem
africana que está presente em algumas festas católicas populares de comunidades negras da área metropolitana
da cidade de Macapá, capital do estado. Embora sua origem seja pouco definida, o Marabaixo é uma dança de
uma cultura africana, provavelmente trazida pelos negros que chegaram ao Amapá no século XVIII, para a
construção da Fortaleza de São José. Essas pessoas negras que, aportaram na região eram de famílias vindas da
África, estavam fugindo das guerras entre mouros e cristãos. A dança e o canto do Marabaixo constituem o lado
profano da Festa do Divino e acontecem integradas a esta comemoração (OPY, 2015).
2
Turé é uma festa de agradecimento às pessoas invisíveis que vivem no Outro Mundo, chamadas Karuãna, pelas
curas que elas propiciaram por meio das práticas xamânicas dos pajés. Os pajés dançam, cantam e bebem muito
caxixi com os Karuãna que vêm ouvi-los cantar várias vezes sem repetir o canto. O turé é feito no lakuh, cercado
por varas chamadas de pirorô que são enfeitadas com bolas de algodão e ligadas por fios, onde são presas penas
brancas de garça. Pode ser realizado a qualquer momento, mas o verdadeiro turé é feito durante a lua cheia de
outubro, quando são feitos os grandes bancos Cobra Grande e Jacaré, pintados os mastros e levantado o lakuh
(IEPÉ, 2009).
3
As terras indígenas são: Uaçá, Juminã, Galibi do Oiapoque, Waiãpi e Parque Indígena do Tumucumaque, onde
estão localizados, respectivamente, os povos indígenas Galibi-Marworno, Karipuna, Plaikur, Galibi do Oiapoque
e Waiãpi (GALLOIS; GRUPIONI, 2003).
4
Capiberibe (2001), Andrade (2007) e Assis (2012) apresentam a importância do pátio nas casas das populações
indígenas da região do Amapá como espaço em que acontecem importantes trocas sociais. Inconscientemente,
talvez, meu pai estivesse reproduzindo um ato muito comum de nossos ancestrais indígenas. Ainda que sem uma
intenção explícita, seus contos nos proporcionavam muitas reflexões sobre a influência e onisciência dos espíritos
em nossas ações. A propósito, este ato de reunir a prole para contar estórias diversas, que apresentam o
sobrenatural e sua ação sobre a vida humana, foi – sem que ele percebesse – sendo assimilado quando ouvira sua
mãe contar a seus irmãos e a ele mesmo narrativas outras de experiência que ela, minha avó, e possivelmente
seus parentes tiveram com estas entidades.
13
dizimado. Ozinda, minha avó, possuía grande influência sobre meus parentes paternos e seu
legado, mesmo após sua morte, esteve sempre bem delineado.
Aliás, os Aruã são um dos diversos povos que constituíram as formações étnicas atuais
das populações indígenas do Amapá, em Oiapoque5. A mistura étnica atual dos indígenas da
região, principalmente entre os Karipuna e Galibi-Marworno, é de origem bastante heterogênea.
Nimuendajú (1926), Capiberibe (2001), assim como Gallois e Grupioni (2003) foram alguns
dos pesquisadores que estudaram a constituição dos povos indígenas do Amapá. Eles afirmam
que as populações indígenas dessa região se formaram a partir de vários grupos ameríndios,
além dos Aruã. A formação das populações indígenas da região descende dos povos Maraõn,
Tupinambá, Emerillon e outros.
Ozinda, minha avó, foi uma entre tantas outras indígenas que se sitiaram nos grandes
centros do estado. Ela e seus ancestrais colaboraram para a constituição/formação dos grupos
indígenas que se mantêm e que conhecemos nos dias de hoje no Amapá. Os dados sobre a
presença indígena apontam que, mais recentemente, existem no estado do Amapá mais de 7 mil
indígenas, segundo o Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Há, desse quantitativo, 2 mil indígenas nos centros urbanos.
Rememoro que em muitos momentos na infância pude presenciar famílias indígenas nos
espaços urbanos, os quais eu frequentava. A presença de pequenos grupos indígenas nas
proximidades da escola em que fiz o ensino fundamental era evidente. Na época, não sabia
quem eram e de onde vinham. Só mais tarde soube que ao lado da escola existia a Casa do
Índio, o que justificava a presença desses indígenas pelas proximidades.
Mesmo com o expressivo quantitativo de indígenas no Amapá, as demandas dessas
populações, no campo político e/ou social, são pouco debatidas e suas lutas se restringem a
pequenos grupos, impossibilitando um debate mais abrangente sobre os anseios dessas
comunidades. Ainda que a presença das populações indígenas no Amapá seja notória, as
diversas etnias que residem no estado ainda são invisibilizadas, mesmo diante da insurgência
conquistada por meio da organização do movimento indígena da região.
Devido à forte presença indígena, tanto no ambiente familiar quanto nas ruas, nos
festejos culturais, nas tradições mantidas, fui provocado a aprofundar meus estudos sobre a
temática indígena. Apesar de ter sido necessário mais de uma década para que começasse a
despertar em mim o interesse por algo tão presente em minha vida, desde meu nascimento a
5
Município onde estão localizadas algumas das terras indígenas do estado do Amapá: T.I. Uaçá, T.I. Juminã, T.I
Galibi do Oiapoque.
14
temática indígena estava ali, diretamente ligada a mim, ainda que sem a conscientização e
compreensão disso.
O primeiro contato que tive com os estudos sobre as comunidades indígenas do Brasil
e, principalmente, do Amapá, se deu por meio de estudos linguísticos e aconteceu em uma aula
de Fonética e Fonologia, do curso de Letras da Universidade do Estado do Amapá, na qual
estávamos efetuando a descrição de línguas hipotéticas. O meu interesse pelo conteúdo da
disciplina gerou um convite para conhecer mais sobre a importância da Linguística para os
estudos indígenas. Posteriormente, esse interesse se acentuou ainda mais quando me tornei
membro do Núcleo de Estudo de Línguas Indígenas do Amapá (NELI), iniciando como aluno
convidado, e atualmente integrando-o como Pesquisador.
Quando era graduando de Pedagogia, às vezes, me questionavam sobre minha
identidade étnica. No entanto, devido a um certo “apagamento” da minha história familiar,
pouco sabia sobre meus ancestrais e, consequentemente, da minha ascendência indígena. Foi
no curso de Pedagogia que fiz minhas primeiras aproximações com a temática étnico-racial, e
produzi pequenos trabalhos sobre o assunto. Em seguida, ao fazer a especialização em Docência
na Educação Superior, fui estimulado, tanto por desejos pessoais quanto por coincidências
situacionais, a pesquisar a escola como um espaço de conflitos, a partir de uma perspectiva
contra hegemônica, buscando perceber a aplicabilidade das leis educacionais nesse contexto.
A Licenciatura em Pedagogia me possibilitou debater a diversidade dentro da escola, no
entanto, foi somente quando ingressei no curso de Letras na Universidade Estadual do Amapá
(UEAP) que me relacionei especificamente com a temática indígena. Meus estudos iniciais se
deram como bolsista voluntário do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
e/ou Tecnológica (PROBICT-UEAP), na área de fonética e fonologia de línguas indígenas. Por
meio das apresentações de pesquisas com resultados parciais ou finais, consegui estabelecer
conexões com outros grupos e pessoas que estudam as questões indígenas sobre diversas óticas
e, também, com os próprios indígenas, que têm começado a pesquisar as demandas de seus
grupos étnicos.
Minha primeira apresentação sobre questões de Linguística Aplicada às línguas
indígenas se deu no Grupo de Estudos Linguísticos (GEL), na Universidade de Campinas
(UNICAMP), em 2015. O trabalho sobre fonética e fonologia da língua Galibi, apresentado no
64º evento do GEL, foi resultado dos estudos que iniciei junto ao NELI.
O Núcleo de Estudo de Línguas Indígenas do Amapá (NELI) foi o primeiro espaço em
que eu pude me reconhecer dentro da temática indígena. Este grupo de pesquisa possui
15
estudiosos de várias áreas que convergiram suas pesquisas para as questões indígenas:
Linguística, Educação, Antropologia, Psicologia etc. Minha atuação no NELI, estudando
aspectos linguísticos do Galibi6, possibilitou que eu tivesse contato com outros centros de
estudo que se dedicam às questões das populações indígenas.
Minha empreitada acadêmica, no que tange à temática indígena, gerou dois grandes
projetos de pesquisa sobre os indígenas do Amapá. O primeiro, começado em 2014 e intitulado
“Fonética e Fonologia de Línguas Indígenas (do Amapá)”7, era um projeto no qual pretendia
analisar e descrever a língua Galibi, que fora falada pelos Galibi do Uaçá ou Galibi-Marworno,
no início do século XX, identificando processos fonético-fonológicos da respectiva língua.
O segundo, intitulado “Fontes de Pesquisa e Estudo de Línguas Indígenas do Amapá” e
iniciado em 2016, refere-se a uma pesquisa na qual buscava reunir toda a bibliografia sobre as
línguas indígenas do Amapá e de suas populações indígenas. Há uma marca de temporalidade
neste estudo, pois optei por considerar apenas pesquisas a partir do século XX e início do século
XXI. Devido à natureza interdisciplinar dos estudiosos, que intentaram pesquisar os indígenas
do Amapá, o mencionado projeto de pesquisa apresentava referenciais não somente de
Linguistas interessados em estudar as línguas indígenas, mas de Antropólogos, Etnólogos
naturalistas, Pedagogos, Historiadores, Geógrafos, entre outros profissionais que tentavam,
considerando sua área, apresentar aspectos relevantes sobre as línguas indígenas das populações
do Amapá.
Segundo Rodrigues (2005), existem no Brasil aproximadamente 180 línguas indígenas,
e muitas delas em risco iminente de desaparecerem. A extinção dessas línguas é decorrente do
desaparecimento de seus falantes e da não perpetuação da língua pelas gerações posteriores,
que são estimuladas a priorizar a Língua Portuguesa. Para Araújo (2007) há dificuldades de
consenso sobre o número atual das línguas faladas pelas populações indígenas do país, no
entanto, afirma que há alguns trabalhos como o de Denny Moore que expressam como resultado
a existência de aproximadamente 150 línguas indígenas no Brasil, sendo que 120 são faladas
na Amazônia.
Estudar as questões linguísticas dos indígenas contribui para a compreensão das formas
de manutenção e/ou revitalização de línguas que estão sob a ameaça e, consequentemente, de
6
Língua extinta que foi falada até início do século XX pelos Galibi-Marworno. Esta língua foi registrada por
Nimuendajú em sua expedição pela região do Uaçá, em 1925.
7
Este projeto possui a participação de outros pesquisadores que estudam diferentes línguas indígenas (faladas ou
extintas) do Amapá.
16
8
A colonialidade nomeia a lógica subjacente da fundação e do desdobramento da civilização ocidental desde o
Renascimento até hoje, da qual colonialismos históricos têm sido uma dimensão constituinte, embora minimizada.
(Mignolo, 2011, Oliveira, 2017)
9
É um termo cunhado por Boaventura de Sousa Santos em “Pela Mão de Alice” e que aparece em outras
publicações do autor. Este termo também tem sido muito utilizado por todos os autores e autoras que analisam a
influência da colonização europeia (branca) e do imperialismo capitalista sobre os processos de produção e
reprodução da vida. O epistemicídio é, em essência, a destruição de conhecimentos, de saberes, e de culturas não
assimiladas pela cultura branca/ocidental. É um subproduto do colonialismo instaurado pelo avanço imperialista
europeu sobre os povos da Ásia, da África e das Américas (MIRANDA, 2016, online).
10
Teoria que supõe uma compreensão holística e integradora do ser humano com os demais elementos da natureza
(ar, agua, solos, arvores, animais, etc) de modo que se estabeleça uma comunhão com a Pacha Mama (Terra),
universo e com o Criador (Deus). (BOFF, 2009).
19
11
Para Pizzani et al. (2012), os trabalhos originais com conhecimento original e publicado pela primeira vez pelos
autores são denominados fontes primárias. Já aqueles que são trabalhos não originais e que basicamente citam,
revisam e interpretam trabalhos originais são nomeados de fontes secundárias. Por fim, as fontes terciárias são
bases de dados, índices ou listas bibliográficas.
23
12
Uso este termo como provisório para versar sobre o fato de um indígena mencionar o nome e a produção de
outro indígena em entrevistas e produções autorais diversas.
24
Dessa maneira, além da busca pelos nomes dos intelectuais indígenas, também foi feito
o levantamento de bibliografias que debatessem o principal conceito posto nesta pesquisa.
Sendo assim, nesta dissertação, temos o “intelectual indígena” e a “produção autoral indígena”
como conceitos principais, nos quais detivemos nossas buscas. Inevitavelmente, estes termos
possibilitaram o desdobramento do conceito em outras nomenclaturas. Utilizamos nas buscas
do material bibliográfico determinadas palavras-chave, tais como “intelectualismo indígena”,
“etnointelectualismo”, “etnointelectual”, “intelectualidade indígena”, “pensadores
ameríndios”, “mentes indígenas/ameríndias”.
A localização dos trabalhos a partir das palavras-chave ocorreu por meio de motores de
busca na internet e nas principais plataformas acadêmicas, entre as quais se pode mencionar a
plataforma da Capes, a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações e em periódicos de
universidades brasileiras (USP, UnB, Unicamp, UFAM, UFPA etc.). Dessa maneira, o
levantamento de bibliografias a partir das palavras-chave anteriormente mencionadas
possibilitou a formação de um banco de dados.
Consideramos para esta dissertação dois tipos de materiais, assim classificados:
materiais primários e materiais secundários. Definimos como materiais primários aqueles que
seriam analisados dentro da perspectiva teórica adotada, ou seja, aqueles que são produções
autorais dos intelectuais indígenas. Os materiais secundários são as bibliografias que
contribuem para o debate que pretendemos fazer e que não têm necessariamente indígenas
como seus autores.
No que se refere aos materiais primários, ou seja, à produção autoral indígena, além dos
critérios estabelecidos para o autor intelectual indígena, definimos como critério adicional, para
a escolha do trabalho, a ser analisado a correlação que o autor indígena faz com processos
educacionais formais, estejam esses explícitos ou implícitos, no escopo do seu trabalho.
No que tange aos materiais secundários, optamos por utilizar textos que nos ajudassem
a elaborar o debate sobre a intelectualidade indígena no Brasil. Embora quiséssemos
preferencialmente trabalhos sobre o intelectual indígena brasileiro, em nossas buscas
identificamos uma reduzida produção sobre esse tema específico e, por isso, o expandimos para
textos que abordassem a intelectualidade indígena em outros contextos para além do Brasil.
Nesta pesquisa bibliográfica, nosso parâmetro temático foi expresso pelas terminologias
imbricadas à intelectualidade indígena. Isso subsidiou o levantamento de leituras que
estivessem correlacionadas ao tema estabelecido. Estas leituras proporcionaram refletir sobre
estes conceitos e nos ajudaram na construção do debate aqui posto.
26
A análise de conteúdo tem sua técnica aplicada à linguagem, por isso “trabalha a palavra,
ou melhor, a prática da língua realizada por emissores identificáveis” (BARDIN, 1977, p. 43).
Esta técnica considera as significações e, eventualmente, sua estrutura e a distribuição dos
conteúdos e forma.
Concomitante às técnicas de análise do conteúdo, para alcançar os objetivos desta
pesquisa, adotamos alguns pontos de partida para analisar os textos escolhidos, entre os quais
destacamos:
a) estrutura das teses;
b) as motivações apontadas pelos autores para cursarem a pós-graduação;
c) as abordagens constantes nas teses;
d) as concepções expressas sobre educação;
e) a discussão sobre identidade indígena;
f) as discussões sobre estereótipos das identidades indígenas;
g) as concepções de identidades indígenas;
h) a tradução da memória ancestral (cultural e individual).
A pesquisa bibliográfica foi escolhida por conta da natureza do problema de pesquisa.
Esse tipo de pesquisa é vantajoso porque permite uma otimização do tempo para produção e
viabiliza a análise e cobertura de uma “gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela
que poderia pesquisar diretamente” (GIL, 2002, p. 45).
Por sua vez, a pesquisa bibliográfica traz, em suma, como afirma Gamboa (2003), uma
abordagem qualitativa, que tem como foco fazer o levantamento de dados de grupos específicos
para compreender e interpretar as motivações de certos fenômenos, opiniões e expectativas dos
28
levantamento dos nomes dos intelectuais indígenas com alto nível de escolarização
formal, que têm produções autorais em diversos formatos (seja digital ou material)
e natureza (livros, artigos, notas, monografias, entrevistas, dissertações, teses);
tabulação dos nomes dos intelectuais indígenas identificados. essa tabulação teve a
adoção de critérios como nível de escolarização, atuação profissional, produções
autorais publicadas, gênero textual dessas publicações, área de concentração dessas
produções quando se trata de trabalhos resultantes de programas de pós-graduação;
29
leitura da produção autoral dos intelectuais indígenas, ou seja, das teses defendidas
em programas de pós-graduação.
Diante do exposto, esta dissertação tem a análise de conteúdo como metodologia, pois,
enquanto tal, possibilita compreender a produção autoral indígena para além de sua estrutura
morfológica e sintática. Conforme Bardin (1977), a análise de conteúdo é organizada em torno
da pré-análise, da exploração do material e do tratamento dos resultados, da inferência e da
interpretação.
A exploração do material se deu pela exclusão e agrupamento dos itens identificados,
ou melhor, os enunciados foram agrupados por “temática” para posterior interpretação e
organização dos resultados. A interpretação dos dados se deu pelo cotejo entre enunciados
comuns e específicos.
Diante das escolhas dos conceitos e do levantamento bibliográfico, pudemos construir
um debate que possui, dentro de sua perspectiva, caráter original. A originalidade atribuída a
esta pesquisa se deve à ausência de trabalhos que tratam da manifestação do fenômeno
educativo no pensamento dos intelectuais indígenas brasileiros, materializado em produções
autorais.
A organização desse estudo constituiu-se do levantamento, seleção e análise das
produções bibliográficas que norteiam o estudo das categorias pré-estabelecidas. Esse
levantamento possibilitou a elaboração de quadros nos quais estão os dados dessas
bibliografias.
Ademais, como utilizamos textos produzidos em programas de pós-graduação, ou seja,
teses dos cursos de doutorado de instituições brasileiras para construir a análise do problema
deste estudo, foi preciso localizar as produções dos indígenas em seus referidos cursos e
instituições e a partir delas desenvolver a análise.
É importante destacar que os critérios adotados para a escolha do intelectual bem como
de sua produção nos permitiram a identificação de quatro teses que se propõem a debater
relações, saberes, demandas e resistências, a partir do fenômeno educativo.
Analisamos os seguintes textos e respectivos intelectuais indígenas: 1) “A Educação
Karipuna do Amapá no contexto da Educação Escolar Indígena diferenciada na Aldeia do
Espírito Santo”, de Edson Machado de Brito (Edson Kayapó, 2012); 2) “Áudio Visual na Escola
Terena Lutuma Dias: Educação Indígena Diferenciada e as mídias”, de Naine Terena de Jesus
(2014); 3) “Educação para o manejo e domesticação do mundo: entre a escola ideal e a escola
real – Os dilemas da Educação Escolar Indígena no Alto Rio Negro”, de Gersem José dos Santos
31
13
Este trabalho foi publicado em formato de livro, em 2012, pela Editora Paulinas.
32
14
Santillana e Quevedo (2013) denominam estes sujeitos ou entidades de intelectuales mestizos (intelectuais
mestiços). Os autores partem das contribuições de Angél Rama (1985) e Andrés Guerrero (1994) para construir
em seu ensaio esta nomenclatura e as implicações dela dentro do movimento indígena equatoriano.
33
sob o termo ‘globalização’” (2005, p. 67). A globalização, aliás, gerou efeitos paradoxais que
em certa medida fomentam e/ou confrontam os universalismos e binarismos produzidos em sua
expansão.
Consequentemente, graças ao deslocamento do Ocidente, pôde-se redescobrir os olhares
sobre aquilo que Boaventura de Sousa Santos denomina epistemologias do Sul. Para Santos
(2005), as epistemologias do Sul conformam um conjunto de intervenções epistemológicas que
denunciam a supressão de certos saberes e conhecimentos mediante uma epistemologia
dominante. As epistemologias do Sul valorizam os saberes que resistem, bem como as reflexões
que estes produzem e o diálogo15 horizontal que promovem.
Para reivindicar uma posição outra, os indígenas têm enfrentado os processos coloniais
que são muito presentes e concretos em seu cotidiano. Para tanto, utilizam ferramentas para
consolidar suas lutas diante da constante opressão a que são submetidos.
Dentre as ferramentas utilizadas, as populações indígenas do Brasil têm encontrado na
Educação um recurso de subversão às intempéries coloniais impostas. Elas têm recorrido à
escolarização para superar e enfrentar a sua condição de objeto, facilmente representável,
submetido ao Outro.
Ao apropriarem-se da educação como recurso de enfrentamento, utilizam a
Universidade Pública. A mesma universidade que, conforme Mattioli (2015), opera a partir de
concepções e representações forjadas nas relações coloniais, definidas na matriz epistemológica
ocidental, eurocentrada e racializada.
Consequentemente, apropriam-se de uma Pedagogia Decolonial, conforme
pressupostos delineados por Catherine Walsh (2013), Paulo Freire (1996) e outros autores
importantes, para se insurgirem e enfrentarem os impropérios que os atingem. Nessa
perspectiva teórica, por meio de processos educacionais, pedagógicos e críticos, é possível
construir e ocupar um lugar em que epistemes, outrora negadas, fortalecem e emancipam os
sujeitos antes silenciados/objetificados e que são os produtores dessas mesmas epistemologias
“marginalizadas”.
Dessa forma, as populações indígenas estão, cada vez mais, adentrando os espaços nos
quais se produz um saber ocidental para questioná-lo e propondo seus modelos de ecossaberes
ou suas epistemologias. Não raro, porém, em quantidade ainda insuficiente, é possível encontrar
muitos indígenas nas universidades de grandes centros de estudo e pesquisa. O ingresso dos
15
Esse diálogo entre saberes Boaventura de Souza Santos (2004) designa “ecologia de saberes”.
34
marginalização das sociedades indígenas, haja vista que o saber ocidental é posto em um status de
superioridade em relação aos conhecimentos que se desviam do seu modo de expressão.
do Intelectual Indígena), que foi defendida em 2002, Hemi T. R. Hireme defende que as teorias
cognitivas e de poder subestimam o sujeito indígena enquanto intelectual. O autor, no debate
proposto, questiona a teoria crítica ocidental existente e pressupõe a construção de uma teoria
intelectual indígena. Para tanto, examina a teoria crítica ocidental para ponderar sobre as
relações de dominação colonial e apresenta uma teoria cultural crítica do intelectual indígena
como resposta.
O intelectual indígena é, também, ponto nodal nos escritos de Claudia Zapata Silva:
Origen y función de los intelectuales indígenas (2005), Intelectuales Indigenas piensan
América Latina (2007) e Los Intelectuales Indígenas y el pensamento anticolonialista (2008).
Esses artigos convergem para contextos sócio-históricos que proporcionaram a emergência do
intelectual indígena, bem como contribuem para repensarmos as teorias e epistemologias
ocidentais na América Latina em relação a esse intelectual.
De maneira similar, Juan de Dios Simón, em Intelectuais indígenas e formação de
talentos humanos (2009), aborda em seu artigo a importância da formação escolar para os povos
indígenas como direito que viabiliza a emergência de profissionais e intelectuais indígenas.
Além disso, Simón (2009) declara que os intelectuais indígenas contribuem para a melhoria da
qualidade de vida e bem viver dos indígenas, da formação de talentos humanos indígenas para
um governo melhor e bom, dentro da perspectiva indígena. São esses também que determinam
e elaboram as prioridades e estratégias para o exercício do seu direito de desenvolvimento.
Em Claro de Luz: descolonización e intelectualidades indígenas en Abya Yala, siglo
XX-XXI, livro editado e organizado em 2013 por Pedro C. Tapia e Carmen R. Campos, o que
se propõe é pensar a emergência intelectual indígena, os processos de formação escolar, os
desafios e direitos das populações indígenas. Os autores trazem, nos escritos que compõem a
obra, debates que partem de realidades de povos indígenas específicos, tais como os Mayas, os
Mapuche e outras populações indígena bolivianas e equatorianas para alcançar uma reflexão
sobre a realidade de outros povos indígenas da América Latina.
Max Maranhão Piorsky Aires, em artigo intitulado Antropologia no México e a invenção
do intelectual indígena (2014), analisa como uma determinada Antropologia no México –
estruturada a partir do indigenismo e marcado por lutas de descolonização – definiu e define o
intelectual indígena. Enfatiza como os “antropólogos críticos” politizaram o lugar de intelectual
e se colocaram como mediadores entre o indígena e as epistemes antropológicas. O autor
considera que o ideal seria ter formado indígenas como antropólogos para que não precisassem
dessa mediação.
37
nacionais até a construção do sujeito e seus modos de enfrentamento diante das subalternidades
e dos silenciamentos a eles impetrados.
Esta dissertação pretende, em particular, construir um olhar para além do acesso,
ingresso e permanência dos indígenas na universidade. Intencionamos debater como, a partir
desse reconhecimento intelectual pela universidade, o indígena tem materializado o seu
pensamento atrelado ao fenômeno educativo para revidar e combater o olhar colonialista.
39
16
Gersem Baniwa para o termo intelectual indígena sugere a denominação de “novas lideranças políticas” que
para ele representa um conjunto mais amplo de atores (LUCIANO, 2011, p. 171).
40
17
Cf. Silva (2005); Chong (2012), Ibarra (1999) e Rama (2004).
41
18
Dentre as quais destacamos: a dificuldade de implantação de escolas em áreas rurais distantes ou de difícil
acesso; a inserção do nível primário e tardiamente o secundário, bem como reduzida possibilidade de migração
dos sujeitos indígenas para os centros urbanos, a escassez de políticas de acesso e permanência dos indígenas
nas universidades.
19
Cf. Freitas (2015), que aborda com maior detalhe as repercussões do Programa de Educação Tutorial Indígena
como política afirmativa
42
Esse termo, como aponta Bergamaschi (2014, p. 12-13), é polissêmico, pois introduz
uma concepção exógena que expressa uma compreensão ocidental de conhecimento,
hierarquizando quem, como, para quem e onde se produz esse conhecimento. Além disso, reduz
a compreensão que os indígenas possuem sobre conhecimento e que tal compreensão não se
limita ao intelecto, mas à inteireza da própria relação de totalidade com seu corpo e natureza.
Por sua vez, Simón (2009) enfatiza que o intelectual indígena é definido através de seu
pensamento (ideológico e filosófico), desenvolvido e construído a partir de sua própria
concepção do mundo e da vida. Esse intelectual reflete criticamente sobre a realidade e propõe
intervenções sociais, críticas, econômicas e políticas, sem deixar de considerar sua identidade
comunitária e própria visão de mundo.
Embora nos pareça um conceito novo, o termo intelectual indígena é usado desde o
século XIX e serviu para designar uma “classe culta”. Posteriormente, ganhou um sentido
político. É a partir do conceito de intelectual orgânico, desenvolvido por Gramsci (1982), que
o intelectual indígena delineia sua atuação. De forma geral, o intelectual indígena se revela “na
luta por reconhecimento, pelo direito a relações simétricas, pela afirmação de seus valores,
conhecimentos, direitos políticos e sociais” (BERGAMASCHI, 2014, p. 12).
Em consonância com o conceito de intelectual orgânico, proposto por Gramsci, o
intelectual indígena é compromissado com seu grupo social, com seu povo e/ou com a luta da
população indígena. Esse intelectual deseja impulsionar toda uma sociedade e não somente
parte dela, busca superar a relação de poder-dominação, estando intimamente ligado com a
cultura e com os projetos de seu grupo (BERGAMASCHI, 2014; SEMERARO, 2006).
Conforme o que fora anteriormente posto, Simón (2009) acrescenta que o “intelectual
indígena desenvolve uma epistemologia externalista20 em coerência com a totalidade e
interdependência da sabedoria indígena e do conhecimento científico”. Dessa maneira, o
intelectual indígena se preocupa e inter-relaciona a sua cosmovisão com a ciência
ocidentalizada, objetiva mudanças, mas, a serviço de outros, do meio ambiente, alinhadas à
equidade e ao equilíbrio espiritual e material (SIMÓN, 2009).
20
O Externalismo epistemológico constitui-se de uma ampla família de teorias do conhecimento ou da justificação
epistêmica que têm em comum a dispensa do requisito de acessibilidade para a justificação epistemológica. Esta
teoria surge como oposição ao Internalismo. De forma genérica, o externalismo é a teoria que defende que somos
motivados pelas coisas do mundo externo, estas determinam os sentidos e justificam nossas crenças. Assim
sendo, a mente consciente não é resultante apenas das funções biológicas, mas, também, da relação com o mundo
exterior (LUZ, 2009; KETZER, 2010; ROLLA, 2013).
43
De forma semelhante, Silva (2007, p.116) se refere aos intelectuais indígenas como
sujeitos de origem indígena que constroem sua produção intelectual em torno de seus “coletivos
culturais de origem”, que reconhecem o peso das circunstâncias históricas em suas obras e se
constituem a partir delas. Assim, Silva (2007, p. 116) afirma:
O intelectual indígena, devido ao entrelaçamento lógico que faz entre sua cosmovisão e
o rigor da cientificidade ocidentalizada, pode ser classificado como um sujeito do entrelugar
que, embora se reconheça indígena, intenta superar os estereótipos aplicados a si, usando a
escrita e o discurso ocidentalizado como instrumentos da “civilidade”.
Na América Latina, devido a sua recente construção enquanto categoria de análise, o
indígena como intelectual condensa, em seu conceito, diferentes variantes. Segundo Marín
(2009), os intelectuais indígenas contemporâneos podem ser analisados com base na sua
identidade étnica enquanto “carta de apresentação”, nas relações estabelecidas com e em suas
comunidades de origem e, por último, na especialidade ou do grau acadêmico.
A partir dessas variantes, é possível, para Marín (2009), identificar três tipos principais
de intelectuais indígenas, a saber:
O terceiro tipo de intelectual mencionado por Marín (2009) é ou não oriundo de sistemas
escolares, porém, possui como característica principal a sua relação de proximidade com sua
comunidade de origem e marca visivelmente sua intelectualidade baseada em sua própria
identidade étnica e visão de mundo. O próprio autor reconhece que apenas esse último pode ser
reconhecido como o “verdadeiro” intelectual.
Essa classificação tipológica sobre intelectualidade indígena não é a única. Podemos
encontrar em Silva (2005) três tipos de intelectuais indígenas que são consideradas a partir dos
processos de escolarização. Para essa autora, esse tipo de intelectual pode ser orgânico ou
semiorgânico, mas com lugares de enunciação diferentes.
Há o intelectual líder, que ocupa um lugar de prestígio por ser gestor de uma
organização/instituição e seu discurso está associado a um coletivo maior “constituído por los
miembros de su organización”. Este intelectual está, em suma, presente nos movimentos
indígenas e é um articulador político. Como exemplo desse tipo de intelectual, podemos
mencionar os seguintes nomes: Sonia Guajajara, Ailton Krenak e Kaká Werá.
O segundo tipo de intelectual, denominado de intelectual indígena profissional, tem seu
surgimento graças à crescente especialização que este adquiriu. São formados em alguma área
do conhecimento e desempenham funções importantes nas organizações étnicas (indígenas),
apoiando e oferecendo serviços aos movimentos indígenas a partir de seus próprios espaços de
atuação e de desenvolvimento de projetos. Dentre os exemplos desse tipo de intelectual, está
Eliane Potiguara e Cristino Wapixana.
O intelectual crítico21 é a terceira modalidade e consiste em um intelectual que “busca
espacios de autonomia, que investiga y produce discurso”, baseado em uma disciplina/área de
conhecimento. Devido à posição que ocupam, são “introduzidos” na política e sua inclusão na
militância dos movimentos não implica, necessariamente, em uma “fusión ideológica com
ellos”. Intelectuais como Daniel Munduruku, Naine Terena, Edson Kayapó e Gersem Baniwa
são alguns intelectuais indígenas que se inscrevem dentro dessa criticidade intelectual.
21
Cf. Silva (2005), que aborda de maneira mais específica este tipo de intelectualidade.
45
22
Refiro-me a processos e métodos educacionais cartesianos que tem suas bases em uma ciência ocidental e
colonial.
46
Por esse motivo, Silva (2005, p. 65) afirma que quando falamos em intelectual indígena
estamos nos referindo a um sujeito oriundo de um grupo que desenvolve funções específicas,
que tenta atualizar e fundamentar um projeto político que não é nacional, nem de classe, mas
que se articula em torno de uma identidade étnica. Nessa perspectiva, Simón (2009) acrescenta
que o intelectual indígena tem as seguintes funções:
a) Manter o debate para conquistar o respeito e a aplicação dos direitos dos povos
indígenas contidos na declaração das nações unidas;
b) Refletir sobre as implicações dos modelos de desenvolvimento que são impostos
sem consulta, sem o consentimento livre, prévio e informado aos povos indígenas
e sobre a não participação vinculativa na tomada de decisões em relação às políticas
de administração pública;
c) Manter uma autoridade moral, ética e política para impulsionar oportunidades que
permitam o “bem viver” e rejeitar medidas que afetam a vida, o território, a visão
de mundo e a “mãe natureza”.
47
grupo indígena escolarizado ou, como denominam alguns autores, uma “elite indígena
educada”. De modo geral, as produções apontam para o ingresso ao ensino superior como ponto
nodal para a emergência do intelectual indígena; assinalam também os caminhos e desafios que
essa inserção indígena no espaço acadêmico tem resultado.
Os textos levantados abordam a universidade como eixo central para a intelectualidade
indígena. Encontram-se nas produções acadêmicas levantadas trabalhos que se dedicam a
discutir o trajeto histórico do processo de intelectualidade do indígena na América Latina e suas
repercussões. Outras produções mais específicas debatem a intelectualidade indígena baseada
em sua materialidade, quer seja de uma disciplina específica, quer seja das expressões e objetos
das populações indígenas estudadas.
Inicialmente, utilizamos para a busca do descritor o termo principal “intelectualidade
indígena”, que impulsionou o rastreio por meio das palavras-chaves. Nas buscas, usamos os
termos “intelectual indígena”, “intelectual índio”, “intelectual ameríndio”,
“etnointelectulidade”, “etnointelectual” e “intelectualismo indígena”. Tais descritores
induziram e estimularam nossa busca por outras terminologias que se aproximasse da categoria
principal. Desse modo, pesquisamos também pelas nomenclaturas “pensadores indígenas”,
“mentes indígenas”, “escritores indígenas” e “estudantes indígenas”.
A partir dos termos ou palavras-chave, levantamos um número pouco expressivo de
produções que, de forma geral, encontramos predominantemente publicadas como artigos,
disponíveis em plataformas de busca. Esses trabalhos não analisam a emergência intelectual
indígena brasileira, mas subsidiam o pensamento dessa intelectualidade na América Latina, de
tal forma que é possível a partir deles ponderar sobre o intelectual indígena no Brasil.
Quando se discute/estuda/analisa a respeito do intelectual indígena no Brasil, é
perceptível que, devido a sua recente emergência, os debates ainda estejam muito tímidos e
iniciais e se limitem a tratar das implicações, desafios e perspectivas de acesso dos indígenas
ao ensino superior, mais especificamente sobre os projetos nacionais e institucionais de ingresso
à universidade.
Notamos no levantamento que os primeiros trabalhos têm menos de duas décadas, o que
justifica a reduzida produção sobre a temática. Ao ampliarmos as buscas para outros idiomas
como espanhol e inglês, conseguimos acessar produções da década de 1990 que debatem o tema
para além do acesso ao ensino superior ou da escolarização. São produções que refletem sobre
as implicações políticas e ideológicas da intelectualidade indígena.
49
Livros - - - - 1 1 - - - 1 1 1 1 - 6
Teses - - - - - - - - - - - 1 - - 1
Dissertações 1 - 1 1 - - - - - - - - - - 3
Artigos - 1 - 2 2 2 3 1 2 - 3 3 - 6 25
Total 1 1 1 3 3 3 3 1 2 1 4 5 1 6 35
Fonte: Portal de periódico da Capes, Google Scholar, BDTD, Scielo, e bibliotecas digitais de universidades
brasileiras (UFPA, UnB, UFAM, USP, UNESP, UNICAMP e UFRJ).
*Elaborado pelo autor
23
Esse recorte temporal se justifica pelo levantamento efetuado por nós da obra mais antiga e mais recente sobre
intelectualidade indígena que conseguimos localizar. Não descartamos a possibilidade da existência de estudos
que antecedem a década de 1992.
50
dissertações que tratam do intelectual indígena como categoria de análise. Essas dissertações
são produtos finais de programas de pós-graduação de universidades não-brasileiras. Essa
constatação nos indica a carência de estudos dessa natureza no âmbito da pós-graduação de
programas de universidades nacionais.
A emergência do intelectual indígena no início do século XX tem estimulado, mesmo
que tardiamente, maior interesse sobre esse tipo de intelectual. Conforme o exposto no quadro
1, percebemos que o número de produções que investiga, analisa, debate e/ou estuda a
intelectualidade indígena vem crescendo gradativamente. Em geral, o quadro nos mostra que
essas produções acadêmicas são, predominantemente, artigos publicados em revistas24. No
entanto, não são exclusivamente dessa natureza, pois a produção de livros sobre o indígena
intelectual vem, desde 2012, conquistado espaço em publicações.
Todavia, podemos constatar que teses e dissertações sobre “intelectualidade indígena”
não têm ganhado espaço nos programas de pós-graduação. Isso não significa que haja a
ausência de estudiosos analisando o fenômeno da intelectualidade25, ou ainda que não existam
indígenas nas universidades e nos programas de pós-graduação construindo importantes
debates científicos a partir de suas próprias identidades étnicas e sobre suas demandas.
No quadro, temos produções acadêmicas sobre a intelectualidade indígena nacionais e
internacionais, por isso, foi necessário organizá-las por país de origem, para identificar em quais
países o debate acerca da intelectualidade indígena tem se mostrado mais frequente ou
estimulado. Isso nos dá um panorama sobre a discussão do tema e seus eixos de debate.
Dessa maneira, no intento de abarcar o máximo de literaturas sobre a principal categoria
de análise, ou seja, sobre intelectual(idade) indígena, elaboramos quadros com as leituras
basilares feitas e que tratam da intelectualidade indígena e seus contextos.
No quadro 2, que se refere às produções acadêmicas em formato de artigos e livros,
optamos por destacar os seguintes itens: a) ano, b) título, c) autor, d) periódico/editora, f) país
de publicação. Já no quadro 3, estão dispostas as produções científicas desenvolvidas em
24
Essas produções estão concentradas em revistas existentes na América Latina. Acreditamos que essa
concentração se deva à emergência de vozes indígenas, que têm dialogado com a universidade suas demandas,
bem como reivindicado espaços de difusão de conhecimento sem que para isso seja negada a sua origem étnica.
Dessa forma, o fenômeno da intelectualidade indígena tem conquistado o interesse de muitos estudiosos.
25
Em “Intelectuais Indígenas e a construção da universidade pluriétnica no Brasil: Povos indígenas e os novos
contornos do Programa de Educação Tutorial/Conexões de Saberes”, Freitas (2015) afirma que o Laboratório de
Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED), do Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem investigado
o processo resultante da construção da intelectualidade indígena e da elite indígena educada.
51
Quadro 2 – Artigos e livros sobre intelectualidade indígena, por ano, título, autor, periódico ou
editora e local de publicação*
ANO TÍTULO AUTOR PERIÓDICO/EDITORA LOCAL
1999 Intelectuales indígenas, Hernán Ibarra Ecuador Debate Equador
neoindigenismo e
indianismo en el
Ecuador
2005 Origen y función de los Claudia Zapata Revista Cuadernos Chile
intelectuales indígenas Silva Interculturales
2005 Os intelectuais indígenas Gilberto Azanha Anais da Associação Brasil
e a proteção do Nacional de Pós-
“conhecimento Graduação e Pesquisa em
tradicional” Ciências Sociais
(ANPOCS)
2007 De peruanos e índios: la Manuel Andrés Editora da Universidad de Espanha
figura del indígena em la García Andalucia
intelectualidad y política
criollas (Perú, siglos
XVIII-XIX)
2007 Intelectuales públicos Joanne Rappaport Revista Iberoamericana EUA
indígenas en América
Latina: Una
Aproximación
Comparativa
2007 De los intelectuales en Carlos Monsiváis Revista América Latina Espanha
América Latina Hoy
2008 Los intelectuales Claudia Zapata Revista Chile
indígenas y el Silva Discursos/Prácticas
pensamiento
anticolonialista
2008 La emergência Indigena José Bengoa Fondo de Cultura Chile
em America Latina Economica
2008 Sobre intelectuales y Silvia Monroy- Revista Universitas Colômbia
activistas indigenas: dos Alvarez Humanistica
trayetorias
interculturales posibles
52
2009 Ciência da floresta: Por Gilton Mendes dos Revista de Antropologia, Brasil
uma antropologia no Santos & Carlos São Paulo,
plural, simétrica e Machado Dias Jr.
cruzada
2009 Los intelectuales Juan de Dios Programa Regional de Local não
indígenas y la formación Simón Educación Intercultural identificado
de talentos humanos para Bilingüe EIBAMAZ
um mejor y buen
gobierno
2009 Escola, pensamento Claudia Antunes Revista Espaço Ameríndio Brasil
indígena e pensamento
ocidental: reflexões para
pensar a educação
escolar indígena
2010 Quienes son los Bianca S Revista de filosofia “A Espanha
intelectuales indígenas Fernandéz parte Rei”
ecuatorianos? Aportes
para uma construción
intercultural de saberes
em America Latina
2011 Intelectualidad indígena Bastien Sepúlveda Revista Cuadernos Chile
y colonialidad del saber Interculturales
en América Latina
2011 Intelectuales indígenas Alejandra Flores Revista Inclusión Social y Chile
ecuatorianos y sistema Carlos Equidad en la Educación
educativo formal: entre Superior (ISEES)
lareproducción y la
resistência
2012 Mitos nacionalistas e Natividad Instituto de México.
identidades étnicas: los Gutiérrez ChongInvestigaciones Sociales,
intelectuales indígenas y Universidade Nacional
el estado mexicano Autonoma do Mexico –
UNAM
2013 Mentes indígenas e Alcida Rita Ramos Série Antropologia UnB Brasil
ecúmeno antropológico
2013 Claro de Luz: Pedro Instituto de Estudias Chile
descolonización e CanalesTapia; Avanzados- IDEA-
"intelectualidades Carmen Rea USACH
indígenas" en AbyaYala, Campos (Editores)
siglo XX-XXI.
2013 Estudantes indígenas no Maria Aparecida Revista PolEd- Política Brasil
Ensino Superior: o Bergamaschi e educacional
Programa de Acesso e Andreia Rosa da
Permanência Na UFRGS Silva Kurroschi
2013 La intelectualidad Norma Meneses Revista Lengua y Sociedad Peru
indígena y su rol en la Tutaya
revitalización cultural y
lingüística de sus
pueblos
2014 Antropologia no México Max Maranhão Antípoda. Revista de Colômbia
e a invenção do Piorsky Aires Antropología y
intelectual indígena Arqueología
53
a intelectualidade indígena, por sua vez, isso contribui para que identifiquemos em quais regiões
há maior receptividade em se dialogar sobre esse fenômeno bem como perceber, pelos títulos,
quais perspectivas teóricas dão maior ênfase para esse debate.
Quadro 3 – Dissertações e teses sobre intelectual indígena, por ano de defesa, título, autor e
universidade/local*
DISSERTAÇÃO ANO TÍTULO AUTOR UNIVERSIDADE/LOCAL
OU TESE
Los intelectuales
indigenas y la
construcción Laura Universidade Nacional
Dissertação 1992
política de la Velasco Autônoma do México, México
comunidade étnica
transnacional
Cultural Theory
Made Critical:
Hemi Te University of Waikato, Nova
Dissertação 2002 Towards a Theory
Rere Hireme Zelândia
of the indigenous
intellectual
Intelectuales
indígenas del Alejandra Facultadad Latinoamericana de
Dissertação 2005 Ecuador y su paso Flores Ciencias Sociales, Programa de
por la escuela y la Carlos Antropología, Equador.
universidad.
Povos indígenas na
Érica
Universidade: ação
Aparecida Universidade Federal de São
Tese 2014 afirmativa e a
Kawakami Carlos, São Carlos, SP, Brasil
geopolitica do
Mattioli
conhecimento
Fonte: Portal de periódico da Capes, Google Scholar, BDTD, Scielo, e bibliotecas digitais de universidades
brasileiras (UFPA, UnB, UFAM, USP, UNESP, UNICAMP e UFRJ).
*Elaborado pelo autor
indígena como escopo de análise, impõe a este construto lacunas para debates diferentes ou
complementares aos que seriam possíveis graças às leituras levantadas.
Os trabalhos dispostos nos quadros das produções acadêmicas localizadas possibilitam
inferir que as produções são em sua maioria publicadas em revistas. Diante dessa constatação,
decidimos separar essas produções por país de origem. Dessa maneira, foi possível identificar,
nos quadros 2 e 3, de produções por título, que poucos são os trabalhos nos quais se tem o
intelectual indígena brasileiro como sujeito principal de estudo, apesar do Brasil ter um maior
número de produções.
Quadro 4 – Número de produções acadêmicas sobre intelectualidade indígena, por país (1992-
2017) *
Brasil 16
Chile 4
Colômbia 2
Equador 2
Espanha 3
EUA 1
México 3
Nova Zelândia 1
Peru 1
Venezuela 1
Fonte: Portal de periódico da Capes, Google Scholar, BDTD, Scielo, e bibliotecas digitais de universidades
brasileiras (UFPA, UnB, UFAM, USP, UNESP, UNICAMP e UFRJ).
*Elaborado pelo autor
26
A produção acadêmica à qual se faz referência é decorrente de uma publicação conjunta entre Peru e Equador
com o país mencionado.
56
Ainda que não haja muitas produções que retratem a intelectualidade indígena brasileira,
tem-se tentado estimular estudos sobre este tipo de intelectual. Além disso, o quadro 4 nos
revela em quais países o debate sobre a intelectualidade indígena tem acontecido. Como já
mencionado anteriormente, é nos países da América Latina que essa discussão tem sido mais
enfatizada e, por isso, é onde existe o maior número de publicações acerca do tema.
Essa crescente produção e debate sobre o intelectual e a intelectualidade indígena talvez
sejam fruto da insurgência do movimento indígena, da influência do debate decolonial, e do
acesso dos diversos e numerosos povos indígenas ao conhecimento ocidental, que lhes permite
transfigurar mecanismos de opressão.
Mesmo que tenhamos identificado poucos trabalhos que constroem seus escopos
analisando a intelectualidade indígena brasileira, o quadro 4 revela que, em relação a outros
países, o debate sobre o intelectual indígena tem, desde o início da década de 1990 até os dias
atuais, no Brasil, recebido maior atenção se comparado aos países nos quais localizamos leituras
sobre o tema. Significa dizer que no Brasil há certo interesse em se estudar e divulgar a
intelectualidade indígena, embora as pesquisas que tratam do tema e que foram publicadas no
país não tenham o indígena brasileiro como o intelectual principal de estudo ou como autor.
desses sujeitos foi realizada nas plataformas digitais27. A partir desse levantamento,
conseguimos construir uma lista com os nomes de alguns dos principais intelectuais indígenas
que têm usado sua formação e atuação para dar visibilidade às populações indígenas,
construindo importantes produções, nas quais se materializa sua identidade étnica, cosmologia
e seus saberes.
Desses intelectuais, com formação e atuação diversificadas, optamos por selecionar
aqueles intelectuais indígenas com alto nível de formação superior. Assim, foram escolhidos,
entre técnicos, especialistas, mestres e doutores, os indígenas com maior titulação acadêmica,
ou seja, doutores que tiveram como atuação profissional a docência. Muito embora tenhamos
optado pela formação superior, ou melhor, a titulação como critério de definição do intelectual
indígena, analisamos produções dos intelectuais que tiveram em seu construto o fenômeno
educativo. Por sua vez, a partir desses critérios, listamos os nomes dos seguintes intelectuais
indígenas, doutores e docentes: Daniel Munduruku (Daniel Monteiro Costa), Naine Terena de
Jesus, Gersem Baniwa (Gersem José dos Santos Luciano) e Edson Kayapó (Edson Machado de
Brito).
Cresci, portanto, sob a batuta militar tendo que ir para a escola com o intuito
de “virar gente de verdade”, ser civilizado. Para os militares este era o
propósito de sua política. Isso significava obrigar os indígenas a irem à escola,
estudar como internos em instituições religiosas, aprender uma profissão,
deixar de falar a língua nativa. Só desse jeito alguém poderia virar brasileiro,
cidadão e deixar de ser selvagem (BAILEY; ZILBERMAN, 2010, p. 219).
27
Foram acessadas plataformas digitais diversas, que são denominadas de acordo com seu público. Assim, temos,
tanto plataformas sociais (Facebook, Twitter, Instagram e LinkedIn) quanto de marketplace (livrarias digitais,
revistas não científicas eletrônicas).
58
Daniel Munduruku mostra-nos que a escola não foi uma escolha voluntária. No entanto,
utilizou-a como instrumento de resistência.28 Atualmente, Daniel Munduruku é escritor
indígena, filósofo diplomado pela Universidade Salesiana de Lorena, Licenciado em História e
Filosofia, Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado em
Literatura pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Sua atuação como professor na
rede estadual e particular de ensino, e ainda na Pastoral do Menor de São Paulo, estimulou-o a
escrever para alcançar um público, ao qual acredita poder ensinar uma outra maneira de ver o
indígena (ALMEIDA, 2008).
Foi lecionando que Daniel Munduruku também se descobriu e se “construiu” contador
de histórias. Nesse sentido, o escritor indígena afirma em entrevista:
Eu saía contando histórias nas escolas, nas praças, nas casas dos amigos.
Tempos depois, isso fez com que eu começasse a escrever minhas próprias
histórias, sempre com o olhar voltado para as crianças e os jovens. Daí em
diante, escrevi mais de quarenta livros e quero escrever muito mais ainda
(MUNDURUKU apud NARRATTIVAS INDÍGENAS, 2016).
Daniel Munduruku (2004 citado por ALMEIDA, 2008) enfatiza que trabalha com
literatura infanto-juvenil, pois acredita ser importante que as crianças aprendam, desde cedo, a
cultura e a sabedoria dos povos indígenas para assimilar valores vitais para a continuidade
desses povos. Completa, em entrevista recente, que “a literatura é um instrumento
superinteressante de construção de lugares de fala. Tem esse componente muito positivo de
alimentar nas pessoas outros olhares, outras facetas da existência” (MUNDURUKU, 2019). E
completa:
28
Câncio, em tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Pará, 2017, destaca que a resistência se
encontra fortemente presente entre os indígenas Wai-Wai da Aldeia Mapuera, Amazônia brasileira, em relação ao
aprendizado e uso da língua. Formados num espaço profundamente intercultural, no qual as linguas wai-wai,
portuguesa e inglesa são necessárias no processo de articulação política e de convivência interétnicas na região
fronteiriça da Aldeia Mapuera (CÂNCIO, 2017).
59
Alguns de seus premiados livros foram publicados também em língua inglesa. Devido
a sua rica fonte de histórias inéditas, vindas da cultura indígena, e seu caráter didático e
informativo, a literatura de Daniel Munduruku tem recebido atenção da mídia e do meio
literário (ALMEIDA, 2008, p. 17). Assim, não raro, encontra-se uma diversidade de artigos que
tratam da literatura de sua autoria, bem como entrevistas com o próprio autor (ALMEIDA,
2008, p. 17).
Por ser um renomado escritor e intelectual indígena, Daniel Munduruku participa de
muitos eventos literários e científicos, pois acredita ser importante que todos tenham acesso à
cultura de seu povo indígena. Por esse mesmo motivo, o escritor indígena mantém um website
e um blog nos quais publica conteúdos autorais ou de interesse indígena (ALMEIDA, 2008).
A produção autoral de Daniel Munduruku é extensa e está prioritariamente voltada para
a literatura. No quadro a seguir, estão os títulos das produções do autor.
Quadro 5 – Produção de artigos e livros de Daniel Munduruku, por ano, editora e local de
publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/ LOCAL
EDITORA
2016 Vozes Ancestrais - Dez contos indígenas Ftd São Paulo
2016 Memórias de Índio Edelbra Porto
Alegre
2016 Whatirã - a lagoa dos mortos Autêntica Belo
Horizonte
2015 Foi vovó que disse. Edelbra Porto
Alegre
2014 Vó Coruja Companhia Das São Paulo
Letrinhas
60
O quadro 5 nos permite perceber que a produção de Daniel Munduruku está voltada
para a divulgação da cultura e perspectiva do sujeito indígena sobre o mundo. Essas produções
literárias são, em muitos casos, adaptações de histórias e mitologias indígenas diversas. Apesar
de Daniel Munduruku dedicar-se a escrever histórias para o público infanto-juvenil, sua
produção escritural é bastante diversa, pois ele também possui textos científicos publicados.
Quadro 6 – Produção de capítulos de Daniel Munduruku em livros, por ano, editora e local de
publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/EDITORA LOCAL
2008 Educação Indígena: do corpo, da mente e do Editora Peirópolis São Paulo
espírito
2007 Entre a Cruz e a Espada: a presença Factash Editora São Paulo
missionária em terra indígena e o Estado Laico
Fonte: Currículo Lattes e Wikipédia.
*Elaborado pelo autor
Filho de Kayapó com Marajoara, Edson Machado de Brito, também conhecido como
Edson Kayapó, nasceu no estado do Amapá, em 27 de novembro de 1969, à margem do rio
Amazonas, numa grande aldeia que hoje é a cidade de Macapá. A família de Edson Kayapó
migrou do Pará para o Amapá em 1960, em busca de oportunidade de emprego. Sua família foi
62
A prática pedagógica mencionada por Edson Kayapó foi aplicada a muitos indígenas
submetidos a processos de escolarização. Quando se lembra da educação escolar recebida no
internato, Edson Kayapó rememora que:
Dois anos depois pedi nova transferência, agora para Petrópolis-RJ. Outro
choque cultural: o Rio de Janeiro... Lembro quando conheci aquela cidade
grande. Lá a dinâmica de trabalho dentro da escola também era mais amena,
mas a vigilância e o controle dos nossos corpos e hábitos transformava a vida
numa paranoia. Mas, acabou o segundo grau: acabou a relação com a Igreja!
Apesar desse alívio, cheguei a quase esquecer completamente que era índio.
Completamente! A discriminação era muito grande, eu negava em muitos
momentos, o que era uma grande bobagem da minha parte – as pessoas
próximas falavam que era ridículo, estava na minha cara. Nunca me propus a
ir a psicólogos, nem sei se eles resolveriam, mas foi uma grande questão
psíquica para mim. (Idem).
Somente o ingresso no curso de História faria emergir em Edson Machado Brito uma
outra perspectiva de si mesmo. Os debates incitados nas aulas do curso de História e a sua
entrada no movimento estudantil marcariam outros tempos, em que teve a oportunidade de
repensar sua trajetória de vida e entender a violência histórica do Estado e da sociedade contra
os povos indígenas no Brasil (BRITO, 2012).
Ao finalizar o curso de História, Edson Kayapó retornou ao estado do Amapá, onde
atuou como professor no ensino básico e superior. De forma paralela, o historiador se envolveu,
no Amapá, com movimentos ambientalistas, indígenas e sindicais. Em 2008, diante de
constantes pressões dos tradicionais grupos políticos da região do Amapá, vai para São Paulo
cursar mestrado em História Social, na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Na
sequência do mestrado, Edson Kayapó ingressa no Doutorado em Educação, História, Política
e Sociedade na mesma Universidade.
Em São Paulo, Edson Kayapó se envolve no movimento indígena nacional e sua intensa
e eloquente participação em fóruns, encontros e mesas redondas resultaram no seu
reconhecimento como intelectual indígena. A partir daí, conquistou a confiança de importantes
lideranças indígenas de todo o país.
Atualmente, Edson Kayapó é professor do Instituto Federal da Bahia e leciona em
cursos técnicos e licenciaturas, além de ser coordenador do curso de Licenciatura Intercultural
Indígena. Atuou na coordenação adjunta da Ação Saberes Indígenas na Escola
(MEC/SECADI). Recebeu, em 2015, o prêmio “Medalhão Indígena”, pela Academia dos
Saberes Indígenas e ganhou pela segunda vez o prêmio do 12º Concurso FNLIJ/INBRAPI
Tamoios de Literatura, Fundação Nacional do Livro Infanto-juvenil. Possui vasta produção
bibliográfica, entre artigos e livros, nos quais debate questões indígenas. Assim, Edson Kayapó
se constitui como um intelectual indígena que coloca em debate assuntos pertinentes e de
interesse das populações indígenas.
64
Quadro 7 – Produção de artigos e livros de Edson Kayapó, por ano, título, periódico, anais ou
editora e local de publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/ANAIS/EDITORA LOCAL
2016 Das margens. Nepan Rio Branco, Acre
2015 Os Karipuna do Amapá e os Revista Ñanduty Universidade
desafios para a implantação da Federal da Grande
educação escolar indígena Dourados,
diferenciada na aldeia do Dourados-MS
Espírito Santo (Brasil)
2015 A fronteira setentrional Edunifap Universidade
brasileira: da História pós- Federal do
colonial à formação de uma Amapá, Macapá.
fronteira tardia Amapá
2014 A pluralidade étnico-cultural Mneme (Caicó. Online) Universidade
indígena no Brasil: o que a Federal do Rio
escola tem a ver com isso? Grande do Norte,
Caicó – RN
2014 Memória da mãe terra. Thydewa Ilhéus
2013 Literatura Indígena e Revista Leetra Indígena Universidade
Reencantamento dos Corações Federal de São
Carlos, São Paulo.
2013 Formação de professores: Shekinah Feira de Santana
política, saberes e práticas.
2013 A literatura e os jovens Global Rio de Janeiro
2012 Da Escola Isolada Mista da Revista História Hoje Universidade de
Vila do Espírito Santo do São Paulo(USP),
Curipi à escola diferenciada São Paulo
entre os Karipuna:
entrelaçamentos na história da
educação escolar indígena.
2011 Do lado de cá: fragmentos de Açaí Belém-PA
história do Amapá
2010 Clevelândia do Norte Escritas (Goiânia) Universidade
(Oiapoque): tensões sociais e Federal do
desterro na fronteira do Brasil Tocantins,
com a Guiana Francesa Tocantins
2009 O ensino de História como Fronteiras (Campo Grande) Universidade
lugar privilegiado para o Federal da Grande
estabelecimento de um novo Dourados,
diálogo com a cultura indígena Dourados – MS
nas escolas brasileiras
2009 Antologia indígena Secretaria de Estado da Cultura do Cuiabá
Mato Grosso
2009 A escola Karipuna da aldeia do Anais do XI Congresso iberoamericano Rio de Janeiro
Espírito Santo (AP): uma da educação latino-americana. Ed.
escola da resistência indígena Quartet
na floresta.
2007 Considerações sobre o Revista da Associação Nacional de São Paulo, SP
processo de independência no Pós-Graduandos (PUCSP)
Grão-Pará
Fonte: Currículo Lattes
*Elaborado pelo autor
65
É assim que o indígena Gersem José dos Santos Luciano, também conhecido com
Gersem Baniwa, apresenta o lugar onde nasceu, em 11 de julho de 1964, em São Gabriel da
Cachoeira, estado do Amazonas, e onde cursou até a 3º ano do primário. Em busca da
continuidade dos estudos dos filhos e fugindo da escassez de alimentos, seus pais vão para a
sede do município.
somente nas férias escolares. Gersem Baniwa experimentou no internato aquilo que ele define
como “o lado cruel da vida do homem branco” (LUCIANO, 2011, p. 15).
Em 1983, Gersem Baniwa finaliza o ensino médio com 20 anos de idade e retorna à
aldeia para atuar como professor. Após dois anos lecionando, Gersem Baniwa é convidado a
compor a primeira Diretoria Executiva da Federação das Organizações do Rio Negro (FOIRN),
na qual atuou como vice-presidente. O professor ativista indígena declara que em 1992 o
ingresso na universidade aconteceu devido à necessidade de formação enquanto membro, em
alguns casos dirigente, de várias organizações e instituições. Em 1995, formou-se em Filosofia
pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Seu intenso engajamento político como ativista o levou, em 1996, a ser eleito
coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(COIAB), para um mandato de dois anos, mas permaneceu somente por um ano e meio, pois
logo em seguida foi convidado a ser dirigente da Secretaria de Educação de São Gabriel da
Cachoeira (LUCIANO, 2011, p. 19).
29
O PDPI é um programa do governo brasileiro no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, de apoio a projetos
demonstrativos de iniciativas das comunidades indígenas da Amazônia Legal Brasileira (LUCIANO, 2011, p.
25).
67
Quadro 8 – Produção de artigos e livros de Gersem Baniwa, por ano, título, periódico ou editora
e local de publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/EDITORA LOCAL
2014 Educação para manejo do mundo: Contracapa Rio de Janeiro
entre a escola ideal e a escola real
no Alto Rio Negro.
2013 Educação indígena no país e o Retratos da Escola Brasília
direito de cidadania plena
2012 Olhares Indígenas Identidade Visual Brasília
Contemporâneos II.
2012 Cenário Contemporâneo da Textos do Brasil Brasília
Educação Escolar Indígena no
Brasil
2010 Olhares Indígenas Supernova Design Brasília
Contemporâneos
2010 Cultura e Meio Ambiente sob a Cultura e Pensamento - Brasil
Ótica dos Povos Indígenas. Juventude e Ativismo
2010 Educação Escolar Indígena: Estado Revista FAEEBA Salvador, BA
e Movimentos Sociais.
2009 Indians in the Higher Education: a Amazônida (UFAM), Amazonas, UFAM
new challenge to the Indian and
Indigenist organizations in Brazil.
2009 A conquista da cidadania indígena Revista da Faculdade de Direito Porto Alegre – RS
como direito, pluralismo jurídico e da FMP
o fantasma da tutela no Brasil
contemporâneo.
2009 To Dominate the System an Not to Poverty in Focus - Indigenising Brasília – DF
be Dominated by it. Development
2008 Depoimento sobre o Rio Negro Instituto Sócio Ambiental Brasília – DF
In: Visões do Rio Negro -
construindo uma rede
socioambiental na maior bacia de
águas pretas do mundo
2008 Da Aldeia para a Universidade Presença Pedagógica Belo Horizonte
68
2008 Dilemas socioculturais dos povos Revista do Instituto Humanitas Porto Alegre/RS
indígenas contemporâneos. Unisinos
2007 Juventude Indígena e a Escola. Salto para o Futuro SEED, Mec. ???
2007 Proposta Pedagógica: Ensino Salto para o Futuro SEED, Mec. ???
Médio e Sustentabilidade em
Terras Indígenas.
2007 Movimentos e políticas indígenas Tellus (UCDB) Campo Grande – MS
no Brasil contemporâneo
2007 Autonomias Indígenas no Brasil:Anais do X Reunião de Aracaju
debates interculturais Antropólogos Norte-Nordeste
2007 Escritos Indígenas Tellus Campo Grande:
UCDB
2006 O Índio Brasileiro: O que você MEC/SECAD MUSEU Brasília
precisa saber sobre os povos NACIONAL/UFRJ
indígenas no Brasil de Hoje.
2004 O sonho de um Parlamento Índios e Parlamento Brasília – DF
Indígena no Brasil
2004 Educação Indígena: cidadania e abceducatio: a revista da São Paulo
diversidade educação
2003 História de Resistência. História de Resistência. Manaus/AM
2003 Uma lição de dedicação e luta Porantim Brasília/DF
1996 O Drama da Educação Escolar Anais do I Simpósio dos Povos Manaus, AM
Indígena Indígenas do Rio Negro: Terra e
Cultura
Fonte: Currículo Lattes.
*Elaborado pelo autor
Quadro 9 – Produção de capítulos de livros de Gersem Baniwa, por ano, título, periódico ou
editora e local de publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/EDITORA LOCAL
2012 A Gênese da Educação Escolar Signorini Produção Gráfica São Paulo
Indígena no Rio Negro - Um Processo
Não Concluído.
2012 Escola Cariamã Signorini Produção Gráfica São Paulo
2012 A conquista da cidadania indígena e o UFMG Belo Horizonte:
fantasma da tutela no Brasil
contemporâneo.
2012 Territórios Etnoeducacionais: um novo Positiva Brasília
paradigma na política educacional
brasileira.
69
Gersem Baniwa possui uma extensa produção autoral. Sua participação em diversas
entidades indígenas contribui para que suas produções debatam questões diversas dentro da
temática indígena. De maneira ampla, sua produção converge para os aspectos políticos,
educacionais e etnoterritoriais que envolvem as populações indígenas brasileiras. Portanto, para
construir seu pensamento, utiliza com frequência experiências e marcos que seu povo
vivenciou.
70
Descendente Terena por parte de mãe, Naine Terena de Jesus, mesmo não tendo nascido
na Aldeia Limão Verde do Município de Aquidauana, nem no estado de Mato Grosso do Sul,
sempre teve proximidade e facilidade de estar e dialogar com seu povo. Ainda que
geograficamente distante da aldeia Terena, em seu núcleo familiar recebeu grande influência,
tanto por parte de sua mãe, Terena, quanto por parte de seu pai, que era indigenista (NEGRÃO,
2013).
Naine Terena tem graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de
Mato Grosso. Em 2004, inicia o mestrado em Artes na Universidade de Brasília (UnB). Segue
os estudos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) onde, em 2010, ingressa
no doutorado. Retorna à UFMT em 2014 para o pós-doutorado. Essa doutora Terena tem usado
sua formação para discutir o papel dos indígenas como protagonistas na educação e na
comunicação. Assim, os trabalhos de Naine Terena estão vinculados à etnomídia, pois é
defensora de uma apropriação cada vez maior por parte dos povos indígenas de todos os
instrumentos de comunicação para a construção e confecção de narrativas próprias.
Atua como pesquisadora no Laboratório de Tecnologia, Ciência e Criação da UFMT e
foi professora no Centro Universitário de Várzea Grande, Universidade Federal de Mato Grosso
e na Universidade do Estado de Mato Grosso. Em 2014 iniciou o “Projeto Territórios Criativos
Indígenas: arte e sustentabilidade”, que foi desenvolvido por meio de atividades de pesquisa e
capacitação em quatro comunidades indígenas do Mato Grosso, com o objetivo de projetar
estratégias de sustentabilidade e geração de renda geridas pelas próprias comunidades.
Naine Terena defende a implementação da lei e de uma formação coerente com a oferta
desse conhecimento. O trabalho dessa indígena intelectual tem ajudado a denunciar as
atrocidades sofridas pelo povo Terena, especialmente no Mato Grosso do Sul, pressionado pelo
71
latifúndio e pelo descaso dos governos estadual e federal, que contam com o apoio da grande
mídia, a qual constantemente procura desmoralizar as causas indígenas. Essa intelectual
indígena divulga, ainda, em página virtual do Facebook e no site “Notícias Indígenas”, matérias
relevantes produzidas por diversos veículos e por ela mesma sobre indígenas. Destaca Jesus
(2015):
Além de artigos e contos, Naine é também autora de textos teatrais. Atua como
consultora e assessora de imprensa através da Oráculo Comunicação,
educação e Cultura (M.E.I). No campo da literatura foi uma das organizadoras
das duas edições da Feira do Livro indígena de MT, das Caravanas Literárias
Mekukradjá nos Estados de São Paulo, Amazonas e Mato Grosso e é membro
do Núcleo dos Escritores indígenas e Instituto Uka, entidade que visa dar
visibilidade para a cultura indígena. Dentre as atividades em assessoria de
imprensa estão o Encontro Nacional de Contadores de Histórias (2012),
Temporada de Teatro Grupo Tibanaré (2012/2013), Lançamento do Vídeo
sobre o escritor cuiabano (Membro da Academia matogrossense de Letras)
Ivens Scaff (2013), Evento Novembro Negro (2009/2010). Atualmente é
professora do curso de Comunicação Social - publicidade e propaganda e
relações públicas da Universidade de Várzea Grande (MT). Tem artigos
acadêmicos publicados e tem se dedicado a palestras sobre educação escolar
indígena e também, a Lei 11.645/08. Foi avaliadora de obras para o PNBE
Temático em 2013. Neste mesmo ano foi revisora dos cadernos do
ETECUAB-UFMT. Organizou Seminários, eventos e workshops como a
mesa redonda Teatro em MT - perspectivas (2013), o Seminário Observatório
da Educação indígena (2013) e as oficinas, palestras. Para teatro escreveu e
adaptou textos encenados pelo seu grupo, nos anos de 1998 a 2007. Entre os
textos de sua autoria estão: Meu pai é um lobisomem (infantil), a última ceia
(adulto), Pout-porri brasileiro (adulto). A contação de histórias Hararai´ti -
baseada num mito Terena. (JESUS, 2015, p. 1-4).
Naine Terena é uma intelectual crítica que atua ativamente em muitas frentes. Além de
defender as populações ameríndias em sua produção científica e cultural, está engajada
politicamente com o bem-estar dos povos indígenas. Seu ativismo ultrapassa suas inúmeras
produções literárias e científicas e se materializa no próprio discurso presente nas inúmeras
entrevistas que vem cedendo a vários meios de comunicação.
Quadro 10 – Produção de Artigos e Livros de Naine Terena, por ano, título, periódico ou editora
e local de publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/EDITORA LOCAL
Cineclube e Inclusão:
Revista de Educação, Língua Universidade Estadual de
2018 Relatos De Educadores De
e Literatura Goiás, Inhumas, Goiás.
Cáceres - MT.
Ciberprofessores Tear: Revista De Educação, Instituto Federal de Educação,
2017
indígenas: narrativas Ciência E Tecnologia Ciência e Tecnologia do Rio
72
De modo similar aos demais indígenas intelectuais escolhidos, Naine Terena parte da
experiência de seu povo para elaborar seu discurso científico de luta. Sua produção intelectual
engloba a presença e a reapropriação das mídias entre as populações indígenas, as práticas
corporais como forma de resistência e questões de gênero e indígenas.
As produções dos intelectuais indígenas, que elencamos nesta dissertação, apontam para
perspectivas epistemológicas diversas, mas que pretendem, de modo geral, dar visibilidade aos
anseios de algumas das populações indígenas brasileiras. É notório que as produções destes
sujeitos intelectuais estão publicadas ou foram elaboradas como produções de alto impacto,
pois atenderam aos critérios daquilo que se classifica como “trabalho científico/acadêmico” ou
“trabalho intelectual” na academia.
Outro aspecto comum se refere à centralidade da temática abordada nessas produções.
Apesar da formação diversificada entre os intelectuais indígenas, que têm suas produções
acadêmicas analisadas nesta dissertação, os debates por eles propostos convergem para o
fenômeno educacional.
Dessa maneira, cada autor/intelectual indígena, ao tratar dos fenômenos delineados em
suas teses, parte de assuntos educacionais como temas basilares para expandir suas análises.
Essa convergência ao tema educação, talvez seja decorrente da concepção que muitos indígenas
possuem30 sobre a reapropriação de um instrumento ocidental/colonial importante – a educação
– como ferramenta para a luta contra a própria colonialidade.
30
É possível encontrar nas narrativas dos autores, quer seja em suas produções acadêmicas quer seja em
entrevistas, que a educação é uma ferramenta de luta contra a inferiorização e subalternização a que os indígenas
são colocados.
74
Os trabalhos dos intelectuais indígenas Naine Terena, Gersem Baniwa e Edson Kayapó
apresentam a mesma estrutura apontada por Paladino (2016). Apesar da produção de Daniel
Munduruku estar em formato de livro, ela tem estrutura similar à estrutura das teses.
Acreditamos que a forma de apresentação dos trabalhos dos intelectuais indígenas no
gênero tese é mais uma imposição a este sujeito para que lhe seja reconhecida sua
intelectualidade, portanto, configurando-se como mais uma maneira de desrespeito com a
lógica (não-ocidental) desse intelectual para a construção do conhecimento. Em contrapartida,
a construção de uma produção nesse formato por um indígena permite a legitimação de sua
intelligentsia e a desconstrução do estereotipo de sujeito incapaz de um pensamento abstrato e
complexo.
Nas produções acadêmicas aqui analisadas são adotados os marcos teóricos das Ciências
Sociais e da Antropologia.
Os conceitos presentes nessas produções e que norteiam o debate são: educação
indígena, processos educacionais para e dos povos indígenas, apropriação e resistência,
interculturalidade, conhecimentos indígenas/tradicionais e territorialidade. As teses analisadas
nesta dissertação apresentam conceitos predominantemente sobre educação indígena,
escolarização para e dos indígenas, aspectos estruturais, didáticos e pedagógicos da escola
(para) indígenas, identidade indígena e subalternidade/resistência.
77
Edson Kayapó, por sua vez, busca sua religação com os povos e com uma identidade
indígena e, por isso mesmo, seus trabalhos têm nisso sua motivação. Sua produção não analisa
a população indígena da qual é originário – os Kayapó. Isso nos permite conjecturar que a sua
trajetória de vida e o seu distanciamento desse povo colocam esse intelectual indígena como
um sujeito de identidade indígena fragmentada, pois, embora seja Kayapó, desenvolve seus
78
estudos entre os Karipuna, povo com o qual desde a infância teve maior aproximação. Diante
do contato que possui com a população Karipuna do Amapá, ele debate em sua tese as
repercussões que a educação escolar indígena diferenciada causou nesse povo, tem assim como
intenção apresentar os aspectos organizacionais dessa população que foram alterados pela
educação escolar introduzida na vida desse povo na década de 1990. Sendo assim, a motivação
por nós identificada na tese decorre da defesa do autor da população Karipuna, de críticas que
estabelece às políticas do estado que desconsideram a cultura desse povo.
Gersem Baniwa aponta, logo na introdução, sua apresentação e suas motivações. Se em
um primeiro momento, a formação superior lhe serviria para conseguir articular os anseios de
seu povo com entidades nacionais, mais tarde, com a pós-graduação, num segundo momento
serviu para enfrentar as formas coloniais de subalternidade. Sua tese é um estudo em defesa da
escolarização para os povos indígenas. Pelo acesso à escola e à universidade, acreditava ser
possível o enfrentamento da subalternização e da inferiorização.
As teses levantadas abordam temáticas voltadas para questões indígenas. De modo mais
particular, traçam discussões que estão relacionadas a seu próprio grupo étnico ou à perspectiva
que este possui sobre determinado fenômeno.
Paladino (2016), quando analisa as produções acadêmicas indígenas, sinaliza que
nenhum dos textos por ela levantados pesquisavam temáticas da sociedade não indígena
envolvente. Essa autora também afirma que:
O exposto sobre as temáticas e a relação com Educação nos permitem inferir que as
teses, mesmo aquela publicada em forma de livro, convergem seus debates em algum momento
para a explicação de como a educação ou a escolarização podem influenciar e promover o olhar
sobre questões indígenas, seja para salvaguardar uma memória ancestral seja para valorizar a
cultura indígena, ou ainda para estimular e construir formas de revide contra impropérios ou
subalternidades infligidas às populações indígenas.
“O que você veio fazer na sala de aula?” é o título desta dissertação por acreditarmos
que expressa com maior precisão o que as teses analisadas tentam abordar, inclusive, essa frase
foi retirada e adaptada da tese de um dos intelectuais indígenas, no entanto, identificamos que
esta mesma frase ecoa nas demais teses.
O questionamento que dá título a esta dissertação foi, em nossa perspectiva, feito
inúmeras vezes aos intelectuais indígenas que produziram as teses que analisamos. Obviamente,
as respostas dadas por esses intelectuais apresentam pontos comuns e divergentes. Por sua vez,
este questionamento sinaliza como a presença indígena na escola ou universidade ainda
incomoda.
Dessa forma, ao buscarem responder esta pergunta, seja para si mesmo ou a outros, os
indígenas intelectuais declaram em suas teses os processos pessoais, acadêmicos e profissionais
que percorreram. Inevitavelmente, na busca por responder ao leitor esta pergunta, esses
intelectuais apontam para a identidade indígena como algo que foi colocado a prova e
insistentemente estimulada a ser negada.
Nas teses, invariavelmente, percebemos que todos os intelectuais enfatizam a própria
experiência para descrever como a identidade indígena tem sido subalternizada e silenciada,
bem como, dissertam sobre como esta identidade é usada como justificativa para a manutenção
da dominação e/ou insurgência dos povos indígenas.
É evidente que essa subalternidade e silenciamento aplicados às identidades indígenas
não é um fenômeno recente. Desqualificar a identidade indígena é outra estratégia engrendrada
pela colonialidade para negar-se também a identidade Baniwa, Terena, Kayapó, Munduruku
etc. Segundo Luciano (2006) essa natureza desqualificadora e pejorativa dada à identidade
indígena incidiu sobre muitos sujeitos indígenas que negavam e reprimiam sua identidade étnica
particular.
82
Outro aspecto que consta nas teses diz respeito ao acesso à escola e aos modelos de
educação escolar indígena no país. A escola e a educação oferecida por ela, segundo as teses
analisadas dos intelectuais indígenas, demonstra que para superar a visão subalternizante
atribuída à identidade indígena os povos indígenas têm creditado à educação escolar indígena
a esperada mudança de concepção sobre seus povos. Os pensamentos expressos pelos
intelectuais indígenas em suas teses convergem para a importância da educação escolar
indígena como ferramenta de enfrentamento às investidas colonizadoras.
Devido aos debates suscitados pela importância da escola entre as populações indígenas
e como ela pode ajudar a superar as estratégias de dominação impostas, as teses incidem
também em apresentar concepções de educação escolar indígena, bem como os fenômenos
resultantes desse acesso à escolarização em diversos níveis.
Consequentemente, ao expressarem suas concepções e os fenômenos da educação
escolar indígena, os autores trazem os principais desafios e limitações identificados para que
esta aconteça a contento e seja de fato uma educação desejável pelas populações indígenas.
Mesmo com as particularidades de cada povo, as teses delineiam como principais problemas
fatores estruturais e pedagógicos.
Além disso, dissertar sobre educação escolar indígena, nas teses dos intelectuais
indígenas, resulta em estabelecer comparações sobre como ocorre a educação escolar indígena
em paralelo com a educação da tradição indígena ou ainda se mostra um caráter de
complementariedade entre ambos os tipos de educação. Por isso, de igual modo, os intelectuais
indígenas apresentam em suas teses concepções e fenômenos sobre educação da tradição
indígena.
Por conta do caráter diversificado de objetos, métodos, técnicas de análise e da
concepção discursiva, as teses apresentam peculiaridades e debatem sobre questões específicas
que estão, obviamente, correlacionadas ao debate principal de suas teses.
Em síntese, podemos afirmar que as teses analisadas nesta dissertação debatem
temáticas voltadas para a identidade indígena, o pensamento indígena sobre a educação escolar
indígena, bem como suas repercussões, concepções e fenômenos de educação escolar indígena
e de educação da tradição indígena, além de destacar os desafios e limitações da educação
escolar indígena e, de maneira adicional, sobre questões outras que concernem aos objetos por
eles analisados.
83
dos principais motivos de “aniquilação” de muitos povos indígenas, mas, considera que graças
à inventividade de outras populações indígenas, que estavam em contato constante com a
sociedade nacional, “colocou-os em situação de enfrentamento, o que, às vezes, culminou no
processo de convivência, que, se não lhes tirou a identidade étnica, fez com que a tivessem que
ocultar em nome da própria sobrevivência” (MUNDURUKU, 2012, p. 39).
Ser indígena não foi, nem é uma condição fácil de suportar. Historicamente, muitos são
os vieses de interpretação do que sejam esses sujeitos. Entre as ciências que tentaram definir o
que é ser indígena ou ser índio31 temos a Antropologia, que inicialmente adotava o critério
biológico, abandonado por sua inoperância, passando a assumir o modelo cultural como
parâmetro definidor (MAHER, 1996).
Há também a definição elaborada na Convenção nº 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais em Estados Independentes e a do Estatuto
do Índio que, grosso modo, consiste em denominar indígenas àqueles que se autodeclaram e
que possuem consciência de sua identidade indígena, bem como os que possuem
reconhecimento dessa identidade por parte de seu grupo étnico.
Mesmo com os avanços das ciências, ainda hoje, no imaginário de muitas pessoas ser
indígena é sinônimo da “marca do que falta”. Estereotipadamente, o indígena, para muitos,
ainda representa um ser sem civilização, sem cultura, incapaz, selvagem, preguiçoso, traiçoeiro etc.
Para outros, de concepção romântica, o indígena é o “bom selvagem”, protetor das florestas,
símbolo da pureza, quase um ser como o das lendas e dos romances” (LUCIANO, 2006).
Daniel Munduruku afirma em sua tese que:
[...] até o final da década de 1950, o termo índio era desprezado pelos povos
indígenas brasileiros. Esse desprezo era provocado pela visão distorcida que
a sociedade brasileira tinha a respeito do “índio”. Para ela, os povos
originários eram um estorvo ao desenvolvimento do país, que ficava parado
por conta da presença indígena em seu território. (MUNDURUKU, 2012, p.
44-45).
31
Daniel Munduruku defende o termo indígena no lugar de índio. Para ele, índio é um termo pejorativo, que gera
uma imagem distorcida das populações indígenas, que generaliza uma diversidade de povos, com identidades
próprias. Em contraposição ao termo índio, “indígena quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros”.
(Entrevista de Danil Munduruku concedida à BBC News. Disponível em:
https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/04/19/dia-do-indio-e-data-folclorica-e-preconceituosa-diz-escritor-
indigena-daniel-munduruku.ghtml. Acesso em: 21/04/2019.
85
Esse discurso posto por Daniel Munduruku ainda hoje é utilizado por muitas autoridades
constituídas nacionalmente. Dessa forma, o projeto desenvolvimentista (que mata, polui e
degenera a natureza) não pode ser efetivado por conta da presença desses sujeitos que defendem
seus territórios e suas formas próprias de se relacionarem com o mundo.
Dessa forma, ser indígena, segundo Munduruku (2012), sempre foi ser um estorvo ao
desenvolvimento do país. Isso, obviamente, decorre da percepção distorcida que se tinha dessas
populações e por considerar que a presença desses povos era o motivador da estagnação do
desenvolvimento. É importante destacar que o termo “índio”, ou melhor, indígena, foi sendo
reapropriado como forma de luta e de resistência cultural. Para Munduruku, essa nova
concepção de valorização do que é ser indígena emerge com o movimento dos povos indígena.
Nesse sentido, Luciano (2006) afirma que os povos indígenas consideraram que se fazia
necessário manter, aceitar e promover a denominação genérica como uma estratégia de unir,
dar visibilidade e fortalecer a luta de todos os povos originários.
Em sua tese de doutorado, embora não aborde sua própria experiência com a sociedade
não-indígena, Munduruku coleta outras falas indígenas que ratificam como a vivência enquanto
o sujeito indígena é visto e quais os processos de negação étnica tiveram que vivenciar e como
os superaram.
Entre os relatos coletados por Daniel Munduruku, consta o depoimento de Moura
Tukano, que demonstra com sua experiência como a identidade indígena estava marginalizada,
em seu relato afirma que:
O relato de Moura Tukano não é o único que demonstra a discriminação sofrida por
indígenas. Na tese de Daniel Munduruku podemos encontrar outras vozes indígenas
rememoradas por sujeitos humilhados por sua identidade indígena. Segundo Munduruku
(2012, p. 158), Marcos Terena, outro sujeito indígena que sofreu diante do contato com a
sociedade não-indígena, afirma que “você começa a sentir vergonha da sua origem, da sua
língua, das suas tradições e, o mais grave, até mesmo a esconder isso, diante da discriminação,
do preconceito”.
86
Naine Terena aponta que embora os Terena estejam muito próximos dos não-indígenas,
estes indígenas ainda percebem o quão difícil é estudar fora da aldeia, pois ainda há muito
preconceito e estereotipização dos sujeitos indígenas. Ela considera isso como fruto de uma
invisibilidade sofrida pelos indígenas, decorrente do pouco ou nenhum conhecimento dos não-
indígenas sobre os costumes, cultura de seus vizinhos Terena. Essa situação de invisibilidade
para ela é reforçada pelas ações do Estado, isto é, pela ausência delas quando se tratam de
questões indígenas.
A invisibilidade é, segundo Gonçalves (2007, p. 84-85), “um processo multidimensional
(psicológico, social, econômico, político e cultural) em curso em nossas sociedades
contemporâneas”, que interfere negativamente nas relações intersubjetivas públicas e
cotidianas, causando, frequentemente, conflitos. Já para Fernandes (1993, p. 15 apud
REZENDE, 2003, p. 25), o preconceito aplicado contra indígenas “é baseada em estereótipos,
ou seja, ideias falsas, que igualam e colocam sob um mesmo rótulo um número de situações
diversas”.
No que tange aos povos indígenas, ao se diluir as identidades indígenas em um índio
genérico e ao preconcebê-lo dentro de uma perspectiva pejorativa ou romântica, está-se reduzindo
a capacidade que estes povos tem de existir na modernidade. Existir, então, consiste em se tornar
visível, pois existir é fazer parte do mundo e assumir um valor (MACHADO, 2017).
Os depoimentos arrolados aqui demonstram que assumir uma identidade indígena tem
suas complexidades, no entanto, não assumir essa identidade como “carta de apresentação”,
também incorre em desqualificações, pois, embora o sujeito possa dominar todas as
ferramentas, saberes e mecanismos do mundo não-indígena, sua aparência fenotípica e traços
culturais quando não assumidos explicitamente, colocam o indígena como alguém que quer
“parecer” com o homem não-indígena, negando-se a si mesmo.
Esse indígena com uma identidade “deslocada” ou “transfigurada”, segundo Gersem
Baniwa, é denominado como “índio genérico”, como um sujeito “sem lugar, cuja indianidade,
inscrita no seu corpo, mas não na sua cultura, passava a ser um signo negativo e pejorativo ao
mundo dos brancos, no qual ele se inseria sempre por baixo e subalterno” (LUCIANO, 2011,
p. 246).
Por sua vez, a concepção de “índio genérico” é uma maneira de diluir a identidade
étnica, essa concepção terminológica, como descreve Luciano (2006), teve sua criação a partir
de um erro náutico. Para esse autor, essa concepção genérica do indígena incorre em
88
dentro do Movimento Indígena, quando os líderes indígenas descobriram sua identidade pan-
indígena, reapropriaram-se do termo índio e se viram como sujeitos de direitos indígenas.32
De igual modo, Gersem Baniwa acredita que o contato com outras subjetividades
permitiu aos povos indígenas a reconstrução de modos próprios de conceber-se no mundo.
O processo colonizador mesmo com toda sua força opressora e marcas abissais pós-
contato sofreu reconstruções e ressignificações pelos indígenas. As marcas pós-contato têm
sido constantemente reconstruídas e atualizadas pelos povos indígenas e são agregadas as suas
cosmologias, possibilitando, concomitantemente à elaboração de estratégias de luta,
insurgência e ressignificação do contato.
Gersem Baniwa defende, em sua tese, ainda, que transitar entre dois mundos não
inviabiliza ao indígena possuir uma identidade indígena, pois acredita que:
Sendo assim, conforme Baniwa (2009), o indígena ao desejar o bem viver e o bem-estar
não estará negando sua cultura ou identidade tradicional, ou seja, sua identidade indígena,
outrossim, estará incorporando a ela maneiras alternativas e condizentes com o tempo
cronológico em que este sujeito se encontra. Dessa forma, a incorporação de aspectos da cultura
32
Graças ao movimento indígena, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988,
assegurou aos indígenas do país o direito de permanecerem com suas líguas, culturas e tradições (BRASIL, 1988).
Isto promoveu todo um debate, que gerou documentos legais, sobre uma educação escolar a ser processada às
populações indígenas com base nas suas afirmações étnicas e culturais. A partir de então, tornou-se a escola
indígena um importante instrumento contra a cultura da assimilação e da integração, como pode-se constatar na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacionalde 1996 (BRASIL, 1996)
90
Este pensamento também está presente na tese de Naine Terena, que disserta sobre a
estrutura social e sobre os aspectos culturais do povo terena, declarando que a escola associada
à utilização do audiovisual tem sido um espaço de “resgate” e “preservação” da memória
ancestral. Isso permite um sentimento de pertencimento e de consolidação de uma identidade
indígena.
Naine Terena (2014) observa que a escola ao utilizar o audiovisual busca a preservação
da memória do povo terena:
Os relatos de Gersem Baniwa e Naine Terena reforçam que a escola tem sido utilizada
para a elaboração de estratégias de manutenção e sobrevivência dos povos e de suas identidades
indígenas. Entretanto, há um inquestionável paradoxo na utilização da escola como espaço de
construção de formas de lutas e contra a hegemonia.
Para Bergamaschi e Medeiros (2010), desejar a educação escolar em todos os níveis
significa dominar seus códigos para a manutenção de seus povos, por meio de um processo
intenso de diálogo com a sociedade nacional. Segundo as mesmas autoras, a escola
Como todos [os líderes entrevistados] tiveram passagem pela escola formal
[...] eu os via como vítimas do processo colonial e de seus processos de
violação identitária, da subalternização a que foram submetidos, da
desvalorização cultural engendradas nas suas comunidades através das
políticas indigenistas de extermínio, assimilação ou incorporação à sociedade
nacional. Ao mesmo tempo, percebia-os como “testemunhas insurgentes de
todo esse processo de sujeição e morte” (CARNEIRO, 2004, p. 153).
(MUNDURUKU, 2012, p.74).
Salientamos que para Daniel Munduruku a escola pode ser um espaço de violação do
sujeito indígena, no entanto, constata que mesmo estando submetidos à opressão ocidental
dentro desse ambiente, os indígenas por ele entrevistados mostravam-se como seres insurgentes
e desconfortáveis com a condição na qual tinham sido colocados.
92
Gersem Baniwa, em sua tese, reflete que a primeira lição que tirou de sua experiência
escolar foi que “não importa qual seja a escola, sua ideologia, sua pedagogia, sua filosofia, ela
pode sempre ser útil e aproveitável de algum modo para a luta. É evidente que se a escola for
anticolonialista, indígena, autônoma, diferenciada e intercultural, será sempre melhor”
(LUCIANO, 2011, p. 35).
Segundo Meliá (1999, p. 11), “no processo de educação escolar dos indígenas a perda
da alteridade e a dissolução das diferenças são sentidas como ameaças reais, prementes e
iniludíveis”, que estão diretamente, ou até exclusivamente, associadas com a escola, pois esta
seria uma instituição de produção de generalizações e uniformidade. Isso significa crer na
passividade dos povos indígenas diante dessa instituição, não reconhecendo a capacidade que
estes possuem de interferir e propor suas próprias maneiras de educar nesses espaços.
Na mesma direção, Baptista (2010) declara que mesmo havendo tentativas de
valorização da diversidade cultural presente nas escolas indígenas por parte das políticas
públicas da educação brasileira, é lamentável o fato de que para as sociedades tradicionais a
escola ainda insiste na transmissão de conhecimentos científicos como se estes fossem os únicos
conhecimentos válidos
Dessa forma, a educação escolar indígena vive dilemas e conflitos entre a “teoria” e a
“prática”. Por um lado, tem-se uma legislação ambiciosa e sedutora, que promete proteger e
incentivar as diversas culturas indígenas, resgatando suas línguas, promovendo seus valores e
admitindo suas diferenças e, por outro, há uma implementação precária das propostas
diferenciadas, muito distantes do idealizado pelas leis e com grande dificuldade de se afastar
do modelo nacional de educação.
Entretanto, na contramão das afirmações acima, reconhecendo a capacidade dos povos
indígenas na “assimilação e transformação” da escola, Pirrelli (2008 apud BAPTISTA, 2010)
afirma que a escola indígena é um “espaço para se pesquisar, ensinar e aprender as suas próprias
tradições, deve, também, [se] constituir [em] um lugar de acesso aos conhecimentos produzidos
pela ciência ocidental”, podendo contribuir para o “empoderamento dos povos indígenas e,
assim, favorecer a construção do diálogo com as outras culturas (PIRRELLI, 2008, apud
BAPTISTA, 2010)”.
Nessa perspectiva, fica evidente que é possível tirar proveito da escola para a
valorização da cultura, dos povos e do sujeito indígena. É inegável, no entanto, que a escola é
uma entidade que convive com contradições e paradoxos inerentes a sua própria existência. Por
isso, não raro é possível detectar nas teses aqui analisadas que apesar de existirem intelectuais
93
como Naine Terena e Gersem Baniwa ,que creditam à escola um importante papel, embora
façam algumas considerações de que esta não é a salvação das populações indígenas, outros,
como Daniel Munduruku e Edson Kayapó, fomentam em seus textos que a escola enquanto
aparelho do Estado apenas reproduz uma matriz colonial e reforça a subalternização, ainda que
existam sujeitos que, a sua maneira, superaram-na. Obviamente essa superação é resultado de
uma construção de consciência dos coletivos e dos movimentos que se irradiaram entre essas
populações.
De acordo com Edson Kayapó, em relação à construção da identidade Karipuna, “a
escola não é o espaço para formar a identidade Karipuna, pois esta formação ocorre de outro
modo, no processo de educação Karipuna, que se dá nas relações práticas cotidianas e pela
oralidade” (BRITO, 2012, p. 140-141).
Na tese de Daniel Munduruku, podemos inferir que ao atribuir ao Movimento Indígena
a responsabilidade pela tomada de consciência e reivindicação da identidade indígena, ele nega
as contribuições da escola nesse sentido. Entretanto, no decorrer da sua tese, apresenta as
contribuições dadas aos indígenas pela escola. Mais adiante, traremos os pontos de vista de
Munduruku sobre a escola, a escolarização e a educação escolar indígena.
Consideramos que em relação à identidade indígena, os autores são uníssonos ao
declarar que, por conta de sua identidade, sofreram discriminação e, em alguns casos, foram
compelidos a negá-la. Esse tipo de discriminação que muitas vezes ocorre de maneira indireta
tem sido “entendida como a forma mais perversa de discriminação. Ela geralmente se alimenta
de estereótipos arraigados e considerados legítimos e se exerce sobre o manto de práticas
administrativas ou instituições” (JACCOUD e BEGHIN 2002, p. 40 apud REZENDE, 2003,
p.57).
Sendo assim, o preconceito é uma máquina de guerra que está presente nas relações
sociais cotidianas, que reproduz a discriminação, a exclusão e a violência (BANDEIRA,
BATISTA, 2002). Para Taussig (apud BANDEIRA; BATISTA, 2002, p. 128-129) “toda a
construção da alteridade é preconceituosa. O preconceito é visto como uma forma de construção
do outro, de uma alteridade a partir da própria neutralização desse outro/alteridade”.
Nas teses constatamos também a ideia de que indígenas, diante do intenso contato
interétnico, incorporaram práticas culturais de outros povos e passaram a se manter vinculados
a estas. Para Gersem Baniwa, a opção pelo estilo de vida moderna”, que ele definiu como “bem
viver” e “bom viver” faz parte, por exemplo, de uma opção, reverberando entre os indígenas
um novo modo de se colocar no mundo. Mas estes acabam tendo sua identidade indígena
94
colocada em questionamento, isto é, os indígenas que entrelaçam seus modos tradicionais com
modos modernos são classificados como “índios genéricos”, por transitarem entre dois mundos.
Por conta disso, são desqualificados e vistos com desconfiança tanto por indígenas quanto por
não-indígenas.
Percebemos nas teses analisadas nesta dissertação a ênfase no reconhecimento, na
valorização, na insurgência e na luta em prol de uma identidade indígena, que demandou um
processo educativo próprio para o fortalecimento dos indígenas, de todos os sujeitos indígenas
que são referenciados nas produções acadêmicas.
Obviamente, as teses apresentam divergências quanto às contribuições na formação da
identidade indígena. Assim, há teses que consideram como importante o contato com entidades
e instituições não-indígenas para o fortalecimento das identidades indígenas e, em sua maioria,
eles apontam a escola como a principal instituição que corrobora a luta e a insurgência dos
povos ameríndios. Por sua vez, há também intelectuais que acreditam que a formação e o
fortalecimento da identidade indígena se dão entre os pares indígenas, gerando assim um
sentimento de fraternidade indígena33.
Contudo, os intelectuais indígenas analisados apresentam a sua própria experiência para
dar ênfase a identidade indígena e às vozes que ecoam em suas produções acadêmicas. Além
disso, destacam os impropérios enfrentados para que conseguissem dar visibilidade às
identidades que possuem, bem como nos permitem inferir que cada um, a sua maneira, elaborou
formas alternativas e próprias de enfrentamento e manutenção dos povos indígenas que
representam.
Embora não tenham consenso sobre a importância da escola para as populações
indígenas e para o fortalecimento identitário, os intelectuais indígenas creditam a ela
importantes contribuições, bem como apresentam determinadas concepções sobre educação
relacionadas aos povos indígenas. No tópico seguinte, apontamos o pensamento dos intelectuais
indígenas sobre processos educativos e suas repercussões.
33
Termo identificado na tese publicada em formato de livro de Daniel Munduruku, para fazer alusão a um
sentimento de pertencimento pan-indígena.
95
O excerto acima reforça o quão importante é o acesso à escola e ao que ela pode oferecer
à luta indígena. A importância da escola para os povos indígenas aparece também na tese de
Daniel Munduruku (2012), ao afirmar que:
Daniel Munduruku também acredita que indígenas melhores formados têm mais
chances de representar com qualidade seus povos étnicos. Dessa forma, a
qualificação/formação escolar é uma forma de enfrentar, divulgar e promover a cultura e os
povos indígenas.
Sobre a educação escolar para os indígenas, Gersem Baniwa sinaliza que:
A forte demanda contemporânea por educação escolar por parte dos povos
indígenas do Brasil tem um sentido histórico na trajetória vivenciada por eles.
Ela é percebida como uma oportunidade e uma possibilidade agregadora para
enfrentar e resolver necessidades e problemas atuais gerados a partir do
contato, mas também como possibilidade de resolver velhos problemas
[...] Um dos objetivos da formação escolar para esses povos é criar condições
de convivência e sociabilidade nos contextos locais, regionais, nacional e
mundial, que implica conhecer outras culturas, dominar outras línguas,
dominar tecnologias modernas e dominar outros conhecimentos que os
igualem no plano da comunicação e da convivência planetária. (LUCIANO,
2011, p. 42-43).
A partir dos trechos da tese de Gersem Baniwa, percebemos que a escolarização tem
importante repercussão na vida indígena e se mostra como uma oportunidade de apropriação
de códigos não-indígenas, que colaborarão na elaboração de estratégias de manutenção,
98
Os discursos coletados nas teses convergem ainda para o status social da escolarização
entre os indígenas. Naine Terena, por exemplo, destaca que:
estas populações não possuem capacidade para gerenciar seus próprios caminhos, assim, os
mantém sob constante tutela.
Embora seja notória a ênfase dada pelos intelectuais indígenas à escolarização de seus
povos, Gersem Baniwa expressa de modo evidente as contribuições dessa instituição ao reiterar
que a “escola é percebida como instrumento para ajudar a construir o futuro e não para recuperar
o passado, embora a tradição e a identidade continuem como referências indispensáveis para
esses projetos de futuro, devendo por isso ser valorizadas e perpetuadas” (LUCIANO, 2011, p.
189). Além disso, ele ressalta que a experiência com vários povos indígenas:
[..] que apresentam demandas por escolas aponta para o fato de que a eles, em
último caso, qualquer escola serve, desde que possibilite acesso e interação
com o mundo branco. É óbvio que se a escola for bilíngue/multilíngue,
específica, diferenciada e intercultural, será melhor. Volto a repetir as duas
frases que mais ouvi de lideranças indígenas do Brasil nos últimos anos: “a
escola precisa nos ensinar falar português e outras sabedorias do homem
branco para não sermos mais enganados por eles” e “no passado, o governo
proibiu escola de nós, por isso foi fácil ele nos enganar, dominar e roubar
nossas terras e nossas sabedorias”. Essas frases muito comuns e presentes nos
discursos de lideranças indígenas revelam que para elas, a escola diferenciada
enquanto espaço duplo de acesso a conhecimentos tradicionais e modernos é
uma qualificação desejada, mas não é a centralidade da missão da escola
indígena, que ainda precisa estar focada no acesso aos instrumentos do homem
branco e a sua apropriação adequada, principalmente para aqueles povos que
ainda mantêm suas tradições e culturas ancestrais (BANIWA, 2011, p. 206).
Portanto, para Gersem Baniwa, não há entre os indígenas uma predileção por um modelo
de escola. Obviamente, se a escola for bilíngue/multilíngue, específica, diferenciada e
intercultural é melhor para o povo, entretanto, os indígenas desejam conhecer e saber utilizar
os conhecimentos do homem branco para poder construir estratégias para conseguirem interagir
e sobreviver às investidas do mundo globalizado, por isso demonstram grande interesse na
escola, pois acreditam que por meio dela será possível elaborar formas de se relacionar com o
mundo não indígena.
Não se pode negar que a instituição escolar é algo desejável entre os indígenas, todavia,
ainda nos dias de hoje, essa instituição mostra-se relutante e hostil à presença indígena e sua
cosmologia, no entanto, mesmo diante de sistemas educacionais que oprimem e inferiorizam
os sujeitos indígenas, estes reconhecem que a formação escolar em qualquer nível tem
importantes contribuições e repercute a longo prazo em maneiras alternativas de fortalecimento
dos povos indígenas e em estratégia de luta.
100
34
Moura Tukano é um sujeito de pesquisa na tese de Daniel Munduruku.
101
A afirmação retirada da tese de Edson Kayapó coloca a escolarização como recurso para
a obtenção de conhecimentos que, por meio da articulação intelectual de cada sujeito indígena,
serão ressignificados para o enfrentamento e manutenção da identidade e da cultura.
Nas teses analisadas, identificamos somente em Gersem Baniwa uma concepção
explícita sobre uma das repercussões do processo de escolarização dos indígenas: a
intelectualidade indígena. Baniwa acredita que sua trajetória pessoal resultou em um processo
de intelectualidade, por isso faz a seguinte declaração:
Com isso quero expressar minha afinidade com a ideia de intelectual orgânico
cunhada por Antônio Gramsci (1975. p. 1513), para me situar como
pesquisador e acadêmico que busca articular na organização da vida e na
organização das ideias, teoria e prática. Por intelectuais se deve entender não
só as camadas que exercem funções destacadas no cenário acadêmico, mas
toda a massa social que exerce funções organizativas em sentido lato, seja no
campo da cultura, seja no campo administrativo-político (LUCIANO, 2011,
p. 35).
Segundo Gersem Baniwa, a formação de uma “elite intelectual indígena” surge como
estratégia de “cooptação” ao interesse do Estado, entretanto, esses sujeitos não se deixaram
seduzir pelas entidades e instituições estatais tutelares e não-indígenas e conquistaram a
elaboração de um projeto étnico. Aliás, essa lealdade as suas comunidades étnicas sempre foi,
segundo o autor, a justificativa para que nenhum indígena – mesmo formado e capacitado –
tenha conseguido conquistar importantes cargos ou funções de relevante destaque nacional.
Além disso, mostra-nos também que esses intelectuais, devido ao seu comprometimento com
seus povos, não possuem a confiança da sociedade que ainda os vê como sujeitos pouco
preparados, ademais, o intelectual indígena em sua emergência suscita o paradoxo de ter que
representar seu povo em ambientes extra aldeia e incorporar, em vários campos, formas
dominantes de ser e estar no mundo.
Diante do que foi exposto, podemos identificar que nas teses analisadas os intelectuais
indígenas apontam que a escola é uma importante ferramenta para o enfrentamento da
colonialidade, e graças a ela as populações indígenas podem elaborar estratégias de manutenção
e (re)valorização de suas culturas, sem que necessariamente precisem “apagar” suas marcas
identitárias. Afirmam ainda que o processo de escolarização, que pode estar agregado a outros
processos educativos, permite a construção de uma intelectualidade que têm maior consciência
de si e de sua comunidade.
103
Por sua vez, Daniel Munduruku (2012) apresenta os pensamentos de Álvaro Tukano e
Moura Tukano sobre o que deve ser a escola indígena e o que ela pode ensinar:
Constatamos que, para Edson Kayapó, a escola é um espaço que propicia conhecimentos
que podem ser utilizados para a valorização e manutenção da identidade e das tradições do
povo, bem como, permite o diálogo entre indígenas e não-indígenas.
De maneira semelhante, Gersem Baniwa, ao abordar a educação escolar indígena,
afirma que o que as populações indígenas querem é “[...] uma educação que garanta o
fortalecimento e a continuidade dos sistemas de saber próprios de cada comunidade indígena e
a necessária e desejável complementaridade de conhecimentos científicos e tecnológicos, de
acordo com a vontade e a decisão de cada povo ou comunidade” (LUCIANO, 2011, p. 75-76).
Assim, o autor pondera que a relação de complementariedade entre a educação escolar e
conhecimentos próprios de cada povo é algo desejável por cada povo, para que construam novas
105
formas de ser e estar no mundo. Então, a educação escolar indígena pode colaborar no
fortalecimento identitário e cultural, assim como, contribuir para o diálogo interétnico.
Evidenciamos, então, que as teses dos intelectuais indígenas brasileiros em educação
consideram a escola como um lugar de apropriação de conhecimentos que viabilizam uma
ressignificação e constituição dos saberes próprios, do fortalecimento étnico, da valorização da
cultura dos povos e, sobretudo, oportuniza o contato dos indígenas com outros povos, na
tentativa de elaboração de um diálogo e de uma participação menos desigual.
As teses dos intelectuais indígenas também apontam críticas à educação escolar
oferecida aos indígenas. Cada intelectual pondera sobre aspectos diversos, mas todos
manifestam insatisfação com os modelos de escola ofertados para os indígenas.
Na produção de Naine Terena, a autora propõe uma reflexão sobre como elementos de
origens comuns têm assimilação diferenciada pelo mesmo povo. Para ela, a educação escolar
indígena diferenciada, que deve contemplar a regionalidade, pode distanciar-se da utilização de
outros elementos que estão no cotidiano dessas populações. Por isso, Naine Terena considera
“ser bastante estranho se falar em uma educação diferenciada que contemple a regionalidade,
ao mesmo tempo em que tratamos de estudantes que se mantém inseridos ao contexto das
tecnologias de comunicação” (JESUS, 2014, p. 128).
Essa contradição apontada por Naine Terena, no entanto, não inviabiliza que uma escola
indígena diferenciada possa aliar o tradicional com o moderno sem que necessariamente um
seja negligenciado por conta do outro. Dessa maneira, ao dar maior ênfase a um que ao outro,
a escola indígena pode não estar oferecendo a educação que os povos indígenas desejam.
Nesse sentido, a reflexão da autora nos remete à seguinte reflexão: como elementos tão
distintos de origem ocidental têm assimilação diferenciada entre os Terena? Acredita a autora
que a ênfase na utilização do audiovisual seja devido à maior afinidade de diálogo com a
linguagem interna. Sendo assim, ela continua a afirmar que na utilização da escrita os jovens
acabam reproduzindo no seu modo de escrever sua oralidade. É por isso que ressalta a
necessidade de a “escola indígena buscar uma linguagem mais próxima do cotidiano indígena,
levando-se em consideração as formas como se comunicam em casa e com os demais membros
da comunidade e o potencial do audiovisual penetrar na comunidade escolar” (JESUS, 2014, p.
129).
No que tange à educação escolar indígena, Edson Kayapó considera que “a educação
escolar indígena diferenciada é um processo de incipiente implementação que depende da
vontade política do poder público e da adoção de medidas concretas para a sua efetiva
106
realização” (BRITO, 2012, p. 109). A crítica exposta por Edson Kayapó, em relação à
implementação da educação escolar indígena, também é complementada por sua compreensão
sobre a exacerbada atribuição redentora da escola:
[...] Certamente que não será a escola quem ensinará o indígena a ser o que
ele é; ela pode apenas colaborar, criando práticas curriculares que levem em
conta as histórias e os modos de organização social própria desses povos. A
escola não será a redentora das tradições indígenas, e é improvável que ela
abandone todos os ranços herdados da escola catequizadora e “civilizadora”
(BRITO, 2012, p. 109)
Apesar desse intelectual Kayapó acreditar que a escola indígena contribui para a
emancipação dos povos, ele não considera que ela seja capaz nem responsável por “salvar” as
tradições dos povos indígenas, pois há nessa instituição aspectos inerentes a sua origem e
constituição que estão condicionadas ao mundo moderno/ocidental.
Em um dos depoimentos coletados por Daniel Munduruku, há uma intensa crítica à
escola. Moura Tukano, em entrevista cedida à Daniel Munduruku, afirma que a escola onde
estudou só o ensinou a “dizer bom dia, por favor, dá licença, a amar uns aos outros. Mas, quando
ando na rua, não ouço bom dia nem dá licença” (MUNDURUKU, 2012, p. 145).
É obvio que não se está nesse depoimento falando especificamente da educação
indígena, mas da educação para indígenas. Além disso, esse relato permite inferir que as críticas
feitas pelos indígenas à escola são desde os primórdios do processo de escolarização dos povos
autóctones do país. Isso reforça a compreensão de que, apesar dos muitos modelos de escola
para indígenas, ainda há dificuldades em se construir um modelo de escola que seja desejável
por eles.
A educação escolar indígena defendida por Gersem Baniwa, por sua vez, é aquela que
“deve garantir uma educação de qualidade social, diferente, específica que respeite as
igualdades e as diferenças existentes em cada pessoa, em cada sociedade multicultural e
multilinguística” (LUCIANO, 2011, p. 77). Ele considera, portanto, que talvez seja por isto que
a educação escolar indígena tem sido cada vez mais desejada, reivindicada pelos povos
indígenas.
Na tese de Gersem Baniwa, também, há importantes questionamentos feitos pelo autor,
conforme trecho a seguir:
107
Os questionamentos suscitados por Gersem Baniwa podem ser aplicados para vários
povos e em cada um deles pode-se receber diferentes respostas. Entretanto, os responsáveis por
uma educação escolar indígena são, para este intelectual, os próprios povos indígenas, que
devem constantemente construir uma escola fundamentada em pedagogias indígenas e em seu
projeto de sociedade.
Gersem Baniwa considera que no ambiente da prática escolar se nota uma mudança
institucional e processual lenta e gradativa em prol da construção de um modelo alternativo de
escola, definido como uma escola comunitária, gerenciada pela comunidade indígena. Essa
escola, no entanto, deseja ser diferenciada, específica, intercultural e bilíngue.
Mesmo reconhecendo a importante contribuição da escola indígena para a vida de
muitos povos, o intelectual Baniwa destaca que esta instituição “não poder ser considerada a
salvação para todos os males internos e externos das comunidades indígenas, por suas próprias
limitações, uma vez que o contexto em que vivem apresenta complexidade muito maior do que
o que a escola pode fazer” (LUCIANO, 2011, p. 326).
As produções acadêmicas analisadas nesta dissertação não se limitam a debater somente
questões conceituais da educação indígena, pois, ao fazerem isso, os intelectuais
invariavelmente recorrem aos aspectos estruturais, didáticos e pedagógicos da escola indígena
no Brasil.
É evidente ainda que nas teses analisadas, quando se trata dos aspectos da escola
indígena, se suscitem questionamentos acerca do currículo escolar das instituições que são
mencionadas e/ou que foram lócus de pesquisa dos trabalhos.
Quanto à elaboração do currículo da Escola Lutuma Dias, Naine Terena disserta que o
Plano de Educação do Mato Grosso do Sul afirma que a Funai procurava “procurava seguir
currículos adotados nas escolas oficiais regionais, buscando adaptá-los à cultura indígena,
respeitando sempre o patrimônio cultural das comunidades e seu valor artístico e meios de
expressão” (JESUS, 2014, p. 54). Segundo Naine Terena, o mesmo plano menciona o artigo
108
49 da lei 6001 na qual está expresso que a “alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo
a que pertençam, e em português, salvaguardado o uso da primeira”. (JESUS, 2014, p. 54)
Nesse trecho, embora a autora ressalte que os currículos eram adaptados para as escolas
indígenas, eles respeitavam e valorizavam as práticas culturais e artísticas dos indígenas, apesar
de possuírem semelhanças com os currículos de escolas regionais não-indígenas, dos quais
eram adaptados. Entretanto, acreditamos que essas adaptações curriculares induziam a
reducionismos na educação escolar ofertada aos indígenas, e por isso essas escolas indígenas
acabam por se constituírem em extensões das escolas rurais.
Diante da concretização do currículo escolar indígena, Naine Terena considera como
necessário:
Nesse sentindo, Naine Terena afirma que a elaboração e a execução do currículo escolar
da escola indígena diferenciada têm as mesmas dificuldades de implantação em diversas escolas
indígenas do país, porque o modelo de escola indígena diferenciada demandaria mais
formações, autonomia de atuação e, sobretudo, uma nova estrutura de pensamento que
permitiria a legitimação e a valorização das identidades que estão em luta.
Edson Kayapó, ao abordar o currículo escolar da escola indígena entre os Karipuna,
declara que:
Se no passado não havia a participação efetiva dos indígenas na educação escolar que
recebiam, na atualidade, estes são bastante participativos e colaborativos, aproveitam todas as
oportunidades para estimular aprendizagens. A constatação de Edson Kayapó sobre o
protagonismo dos Karipuna sobre a educação que recebem é evidenciado na interligação que é
feita entre o currículo da escola e as tradições e rituais indígenas.
Na contramão do que acontece na escola indígena no Amapá, quando rememora sua
experiência com a escola e questionando sua formação, Álvaro Tukano, entrevistado de Daniel
Munduruku, afirma que:
[...] “o acesso à educação [em Taracuá] era muito limitado, porque nesses
lugares onde passei apenas repetia o que os missionários ditavam para educar
ou amansar os índios [...] Não estávamos educando os nossos jovens para
manter nossas tradições. Eu não estava ensinando aos meus alunos o que meu
avô queria, o que meu pai queria e o que meu povo queria”. (MUNDURUKU,
2012, p.179-180)
Muitos indígenas, assim como os intelectuais que aqui são mencionados, ressaltam que
a educação que receberam não os permitia “desenvolver-se”, pois eles não aprendiam coisas
necessárias para a sua “sobrevivência” entre os não-indígenas. Álvaro Tukano critica e enfatiza
que o tipo de educação que recebeu não era aquele que seus “ancestrais, povo e alunos
queriam”, pois, não os estava ensinando a manter as tradições de seu povo. Mesmo não
apontando explicitamente o currículo escolar, esse entendimento nos permite supor que seguia
um modelo curricular que não correspondia à realidade do povo indígena a que pertence.
Já Gersem Baniwa – ao tratar dos conteúdos desenvolvidos na educação escolar
indígena, sejam aqueles que buscam proporcionar conhecimentos que viabilizem o
protagonismo, o trânsito e a valorização indígena ou aqueles que não pertencem ao mundo
indígena – enfatiza que eles podem ser pouco interessantes: “os conteúdos politicamente
corretos, abordados na perspectiva da educação escolar diferenciada e intercultural, quando
tratados de formas isolados não satisfazem os povos indígenas em seus conteúdos e resultados”
(LUCIANO, 2011, p. 80).
Contudo, Gersem Baniwa considera que essa insatisfação com os conteúdos escolares
por parte dos jovens indígenas pode significar que há maior interesse destes em se apropriar de
conhecimentos e saberes do “mundo branco”, logo:
110
Experiências em curso sugerem que a escola indígena [...] tem nivelado por
baixo a qualidade do ensino, forjando um novo indígena que, por um lado,
pouco conhece sua realidade e cultura indígena em decorrência do processo
de distanciamento gradativo em função da escola e, por outro lado, também
pouco domina a realidade e os códigos da sociedade nacional e global. Ou
seja, em função da organização do tempo, espaço e conteúdos adotados pela
escola indígena, copiada ou espelhada no modelo de escola branca, não é
possível atender adequadamente as demandas e anseios das comunidades
indígenas. Há consenso entre educadores de que a escola atual não consegue
atender adequadamente a sua tarefa junto a sociedade nacional. Como se pode
esperar que dê conta das demandas específicas dos povos indígenas, que
demandam além dos conhecimentos modernos, os conhecimentos e valores
tradicionais? (LUCIANO, 2011, p. 178).
Quanto à ausência de autonomia, Naine Terena deixa claro que o povo Terena, por meio
de suas lideranças e professores, demonstrou insatisfação com o gerenciamento da educação
escolar indígena que lhes é ofertada. Dessa forma, esta intelectual Terena manifesta que
[...] falta [de] mais empenho do Estado com a educação escolar indígena. Ele
afirma que “a educação escolar diferenciada não está acontecendo na íntegra”,
e ao mesmo tempo Tiago considera que: “Falta mais pressão das lideranças e
das Organizações indígenas junto ao governo, se nos unisse mais, seria mais
fácil conseguir os recursos que precisamos para construir escolas e cuidar da
formação dos professores” (BRITO, 2012, p. 136).
112
Edson Kayapó concorda com Tiago Forte. Para ele, a educação escolar indígena não
ocorre de maneira desejada para estes povos porque não há interesse do Estado. Também
defende que a pressão das lideranças indígenas e de suas organizações poderia provocar maior
participação do Estado para atender às demandas da população Karipuna. Essa ausência de
autonomia da escola indígena, para Edson Kayapó, é uma estratégia de dominação e de
permanência da relação tutelar.35
Por sua vez, Daniel Munduruku (2012, p.101) afirma que, por serem “vistos como uma
espécie de seres que deveriam continuar eternamente tutelados pelo Estado, logo, incapazes de
esboçar qualquer reação consequente e perspicaz”, os povos indígenas não conseguem
gerenciar e colaborar na tomada de decisões das instituições que lhes oferecem serviços ou
apoio, por isso, entendendo as implicações dessa falta de autonomia quanto ao gerenciamento
das instituições indígenas, os líderes do Movimento Indígena mostraram a insatisfação de seus
povos por meio deste mesmo movimento.
No que tange à autonomia dos povos indígenas, Gersem Baniwa opina que:
35
Em sua tese de doutorado, Weigel, ao analisar a história da escola indígena Baniwa, identifica que essa tutelagem
vai ocorrer quando da criação dos internatos para índios no Alto rio Negro, que resultou em um processo complexo
de tentativa de cristianização e nacionalização dos Baniwa. As resistências a esse projeto são descritas por Weigel
que, ao fim e ao cabo, afirma que os Baniwa, no processo de conflito e contradições da educação escolar que lhes
foi imposta, acabaram por fazer prevalecer em grande medida seus interesses étnicos ao “comprometer a escola
com outros objetivos e finalidades, esboçando um outro projeto político, voltado para a construção da identidade
coletiva e as lutas pela sobrevivência” (WEIGEL, 1998, p. 264)
113
Em outras palavras, Baniwa denuncia que infelizmente ainda não se pôde elaborar uma
agenda política indígena em virtude do movimento indígena não gozar do mesmo prestígio e
legitimidade que o movimento indigenista que, por sua vez, é quem monopoliza e influencia o
governo, a universidade e a sociedade. Na perspectiva de Verdum (2016a), embora o
movimento indigenista postule o “relativismo cultural”, ele não abandonou a meta de “incluir
os índios” na sociedade nacional. Para esse autor, há “um discurso ideológico relativista
encobrindo uma prática integracionista” (VERDUM, 2006a, p.5).
Ao debater de modo breve sobre a história do movimento indigenista, Verdum declara
que no “Brasil, o protecionismo e o assistencialismo foram seguidos de perto pelo
produtivismo, configurando a marca do sistema tutelar do indigenismo implementado sob a
batuta do Estado brasileiro” (VERDUM, 2006a, p.7). Segundo Ramos (1998, p.2), “um dos
aspectos mais persistentes na ideologia do indigenismo estatal brasileiro é a premissa de que o
Estado protege os índios contra a rapinagem da sociedade dominante”. Esse pensamento, na
verdade, mantem a posição tutelar dos indígenas e os desqualifica para gerenciarem suas
próprias pautas.
Dito de outro modo, conforme Verdum (2006b, p. 29), “o indigenismo brasileiro surge
ligado ao projeto de modernização e integração do meio rural”. No bojo dessa corrente de
pensamento e estrutura desenvolveram-se “idéias, práticas e instituições voltadas para a
incorporação econômica, política e cultural das sociedades indígenas aos projetos de
‘desenvolvimento nacional’” (VERDUM, 2006b, p. 33).
Diante de um suposto desenvolvimento nacional, as agências multilaterais
desempenharam uma função estratégica, na qual, baseados nas ideias do indigenismo e da
antropologia social, incentivaram a constituição e promoção dos governos e agências
indigenistas nacionais no campo da pesquisa e ensino, além do campo econômico, a fim de
integrá-los, modernizá-los e salvá-los da pobreza (VERDUM, 2006b).
Durante a predominância do movimento indigenista, havia (e ainda há) entre indígenas
e entidades indigenistas uma relação de mediação dos interesses indígenas, realizada por um
não-índigena para e pelo “bem do indigena”. Para essa relação de dependência, na qual o
indígena perde a voz e o “mestizo” torna-se seu porta-voz ou mediador, Rama (1985) dá o nome
114
de mediación mestiza, a qual Guerrero (1994) define como “ventriloquia”. Esse fenômeno
coloca as populações indígenas à mercê de interesses não coerentes a sua cosmovisão.
Como já mencionado, adicionado à falta de autonomia para o gerenciamento de
entidades como a escola, há também, na perspectiva de nossos intelectuais indígenas, a
precariedade na formação inicial e continuada das populações indígenas, assim como a ausência
de recursos financeiros e materiais que dificultam a existência de uma educação escolar
indígena.
No que tange a outras dificuldades enfrentadas pela escola indígena, Naine Terena
destaca que:
Nesta perspectiva, a autora considera que, embora a LDB e outras leis garantam a
educação escolar indígena, essas escolas são transformadas pelo Estado em espaços
homogeneizantes, ou seja, no qual há pouca articulação com a realidade dos diversos povos
indígenas, porque se concebe a educação indígena como algo mais generalizante, não havendo
dentro de cada localidade as adaptações necessárias para atender cada realidade.
A homogeneização nas escolas indígenas tem repercutido ainda na pouca habilidade que
os professores encontram em lecionar sobre a cultura de seu povo. Por isso, Naine Terena diz
que “para os professores, trabalhar as disciplinas específicas tem suscitado muitos debates
internos. Isso por que existe muita dificuldade em levá-las para sala de aula, devido à falta de
formação específica para os educadores que as ministram e materiais didáticos” (JESUS, 2014,
p. 99). Como já exposto em parágrafos anteriores, a formação para indígenas é importante e sua
ausência ou baixa qualidade incide em limitações para a elaboração da desejada educação
escolar indígena:
36
Escola objeto de pesquisa da tese de Naine Terena.
116
Diante das dificuldades que encontram para trabalhar com as disciplinas específicas, os
educadores buscam alternativas para concretizar os principais objetivos delas, garantindo
também a legitimação e a valorização do povo Terena, por meio da elaboração de materiais
didáticos e instrucionais próprios.
Para Edson Kayapó, assim como em Naine Terena, a falta de formação para docentes é
um complicador para a elaboração de uma educação escolar indígena desejada:
Na tese de Edson Kayapó, percebemos que mesmo quando são ofertados cursos aos
professores indígenas, eles não são coerentes com a realidade, especificidades e com os anseios
desses professores. Em sua produção acadêmica, Edson Kayapó dedica-se também a
demonstrar que o descaso com a elaboração de materiais didáticos impõe à educação escolar
indígena limitações para a aprendizagem, como é perceptível no excerto adiante:
Para Edson Kayapó, não há interesse real de se elaborar materiais didáticos específicos
para as comunidades indígenas, no entanto, nossa experiência com os povos indígenas do
Amapá, região onde estão localizados os Karipuna, demonstram que existe uma tímida
produção de materiais didáticos e proposta curricular para a educação escolar indígena do
Amapá.
Já na tese de Daniel Munduruku (2012) não aparece explicitamente as implicações
advindas da ausência de uma formação escolar para as populações indígenas, contudo, este
intelectual defende que somente uma formação escolar de qualidade pode promover aos
indígenas a conquista de espaços que ainda hoje são ocupados por não-indígenas. Além disso,
ao afirmar que se deve formar o indígena para assumir cargos em todos os níveis, ele reconhece
implicitamente que a baixa qualidade da educação escolar indígena tem dificultado a ascensão
de muitas populações indígenas.
Por sua vez, Gersem Baniwa, ao dissertar sobre a formação escolar (universitária),
afirma que:
Nesses termos, este intelectual Baniwa permite supor que embora os jovens indígenas
tenham formação universitária, isto não significa que contribuam para o movimento indígena,
pois, em alguns casos, há uma insegurança sobre as formas de atuação que estes devam ter.
Segundo Gersem Baniwa, isso decorre da baixa qualidade na formação escolar resultante dessa
“dupla função” que a escola/universidade tenta exercer (ensinar “conteúdos indígenas” e
conteúdos não-indígenas). Por essa razão, para o autor, os universitários indígenas, devido a
118
sua formação, não acreditam que por meio dela possam contribuir em suas comunidades. Para
nós, essa “insegurança” sobre os conhecimentos recebidos na universidade representa a intensa
e internalizada ideologia que considera os sujeitos indígenas como incapazes e, por isso, devem
ser “tutelados”.
Essa ideologia internalizada não está, obviamente, presente somente entre os brancos,
mas também entre os indígenas. Dessa forma, não nos parece incoerente esse tipo de
argumentação sobre as motivações da ausência de contribuição dos universitários indígenas nos
movimentos de seus grupos étnicos. Podemos analisar ainda que essa “predileção” por
assessores não-indígenas possivelmente configura-se como uma estratégia para a legitimação
de suas ações enquanto entidade pública de causas indígenas, haja vista que os indígenas em
suas diversificadas esferas ainda sofrem com a desconfiança sobre sua capacidade intelectual e
política. Nesse sentido, de acordo com Gersem Baniwa:
autonomia dada aos povos indígenas para gerenciar seus projetos e as instituições que lhes dão
apoio; b) a carência na elaboração de materiais didáticos e na formação inicial ou continuada;
c) o incipiente recurso disponibilizado para a Educação Escolar Indígena; d) a ausência de
unidade e consenso entre os próprios indígenas sobre a educação escolar que desejam; e) a
homogeneidade com que são tratados assuntos pertinentes à educação escolar indígena; f) a
insistente desvalorização e falta de reconhecimento intelectual dos indígenas pela sociedade
nacional.
Dessa forma, quando os intelectuais indígenas abordam os principais entraves para a
não efetivação da escola indígena, é recorrente fazerem aproximações entre a educação escolar
e a educação indígena propriamente dita, a qual denominaremos de “Educação da Tradição”.
Sobre esta educação, há inúmeros relatos e concepções sobre o que ela seria de fato, o que nos
leva a considerar importante abordá-la na subseção a seguir.
a autora é “importante ter presente que esta educação indígena é a própria cultura com suas
práticas, no especial processo de socialização” (CRUZ, 2009, p. 75). Cruz (2009) dá ênfase ao
fato de ser a educação indígena um processo que atravessa “instâncias interdependentes
partindo das práticas nas relações familiares, escolares e da sociedade indígena como um todo”
(CRUZ, 2009, p. 76).
No que tange à educação da tradição, Claudino (2013) disserta que as diferentes formas
de ensinar e aprender é que podem ser consideradas como “um saber a partir da tradição”. Esse
tipo de educação permite que os grupos tradicionais indígenas desenvolvam no âmbito familiar
saberes que são impossíveis de se encontrar em salas de aulas.
Durante a análise, também constatamos que, com exceção da tese de Gersem Baniwa,
os demais intelectuais apontam expressamente uma concepção sobre o que seria essa educação
(da tradição) indígena.
Na tese de Naine Terena, “a educação indígena é aquela recebida pela criança no seio
da comunidade e da família. É onde ela aprende e compreende o contexto onde vive e participa
das ações comunitárias” (2014, p.37). Ela também descreve de maneira simples a concepção de
educação familiar que é dada às crianças e aos jovens indígenas; uma educação que considera
a percepção dos espaços e das interações com os elementos que nele estão. Por isso, a linguagem
corporal também faz parte dessa educação dos sentidos.
Outra concepção sobre educação indígena é apresentada por Edson Kayapó, ao afirmar
que a “educação propriamente indígena ocorre nas relações cotidianas, em que os mais jovens
aprendem num processo participativo da comunidade, sendo que os mais velhos são espelhos e
guardiões dos saberes ancestrais que orientam as ações presentes e futuras” (BRITO, 2012, p.
22). Para Edson Kayapó, a educação indígena Karipuna é participativa, comunitária e solidária,
em que os mais jovens aprendem com os mais velhos. Sendo estes últimos os “orientadores”
das ações do presente e do passado.
É por isso que para Meliá (1979, p. 11, apud CRUZ, 2009, p. 85), ao abordar a educação
indígena, considera que esse tipo de educação possibilita o ensino e a aprendizagem da cultura
durante toda a vida, em todos os aspectos e permite a espontaneidade e liberdade. Esse tipo de
educação é possível graças a uma memória coletiva que, de acordo com Daniel Munduruku
(2012, p. 47), “é passada de geração a geração através dos fragmentos que a compõem e que
são “colados” por uma concepção de educação que passa, necessariamente, pelo aprendizado
social”. Para este intelectual Munduruku:
121
Além do mais,
Portanto, a educação indígena permite, para Edson Kayapó, que o sujeito indígena
demarque seu lugar, seja pela forma de se expressar seja pela forma de se relacionar com o
mundo. Logo, é por meio dela que o sujeito indígena estabelece as fronteiras de seu
pertencimento étnico, que se materializa de diversas maneiras no comportamento desse sujeito.
Para Brito (2012, p. 48),
Além disso, há muitas outras passagens na tese de Edson Kayapó que enfatizam o
caráter colaborativo, solidário, fraterno, compartilhado da educação que se dá entre os
indígenas.
Em Daniel Munduruku, por sua vez, a educação é vista como um processo integral e
cíclico que advém de uma educação dos sentidos, sendo assim ele diz que:
Aprendemos, desde muito pequenos, que nosso corpo é sagrado. Por isso,
temos a obrigação de tratá-lo com carinho, para que ele cuide de nossas
necessidades básicas. Aprendemos que nosso corpo tem ausências que
precisam ser preenchidas com nossos sentidos. Aprender é, portanto, conhecer
as coisas que podem preencher os vazios que moram em nosso corpo. É fazer
uso dos sentidos, de todos eles. É, portanto, necessário valorizar o próprio
corpo e dar a ele condições para que possa cuidar da gente. (MUNDURUKU,
2012, p. 69)
124
Segundo Munduruku (2012), educa-se por meio do corpo, tendo clareza que os sentidos
preencherão as “ausências” da matéria (corpo), no entanto, deve-se “dar condições” para que
isso ocorra.
Neste excerto, o intelectual Munduruku faz uma breve dissociação entre educar o corpo
e educar a mente, contudo, as coloca em condição de complementaridade. Esses tipos de
educação possibilitam aos sujeitos indígenas certa “plenitude” sobre sua própria existência, que
neste processo ganha novos sentidos e significações.
Semelhante aos demais intelectuais, Gersem Baniwa, ao descrever os fenômenos
inerentes à educação indígena, apresenta o caráter coletivo, comunitário e colaborativo: “entre
os povos indígenas, as pessoas são muito valorizadas, na medida em que cada uma tem sua
função e sua posição social. Isso não significa que são sociedades do individualismo; pelo
contrário, as pessoas só se individualizam em função da coletividade” (LUCIANO, 2012, p.
221).
Ainda conforme Baniwa, “outra característica própria dos processos educativos
indígenas é a visão holística e orgânica que orientam tais processos. Ao contrário da pedagogia
escolar, a educação indígena não separa a teoria da prática. São duas maneiras inseparáveis de
encarar a realidade” (LUCIANO, 2011, p, 225).
Os textos se interseccionam quando debatem fenômenos e concepções de educação da
tradição indígena. Obviamente, é perceptível aproximações e distanciamentos entre os
discursos analisados, no entanto, isso não denota maior ou menor precisão sobre os temas
É evidente também que as teses apresentam particularidades discursivas inerentes à
natureza, objeto, teoria utilizada para debater os fenômenos que se propõem, em virtude disso,
125
novas terras indígenas e a conservação do meio ambiente; dando aos ruralistas37 o direito ao
reconhecimento e demarcação dessas novas terras; b) permissão ao armamento38 que incide
também sobre o aumento de mortes no campo, principalmente, de povos indígenas; c) cessão
de processos de demarcação em andamento e reavaliação de terras indígenas já demarcadas
além de reabertura delas para a exploração mineral e do agronegócio.
A atuação do Governo, nitidamente contrária aos interesses dos povos originários, Sonia
Guajajara afirma que "Bolsonaro quer entregar a terra ao agronegócio, à mineração e à
especulação imobiliária. A gente teme ter que pagar com a própria vida, mas não vamos recuar”
(DULCE, 2019, online). Segundo Watson (2019) a presidência de Jair Bolsonaro demonstrou
ser uma administração racista, que lançou abertamente um ataque sem precedentes contra os
povos indígenas do Brasil, com o objetivo explícito de aniquilar os povos ao tentar integrá-los
assimilá-los pela força e ao saquear suas terras.
Não se pode negar a importância política e prática da luta dos povos originários para a
sua própria sobrevivência. No entanto, para o fortalecimento dessa luta, os indígenas têm
construído um pensamento que permita articular a defesa de seus ideais à expressão e
manifestação de seus saberes e epistemologias a fim de construir debates dentro de uma lógica
canonizada para demonstrar sua intelligentsia.
As teses dos intelectuais indígenas buscam, por sua vez, propor debates que contribuam
para com uma visão menos subalternizante dos saberes que os povos originários possuem. Por
isso, os debates circunscritos nas teses sobre educação dos intelectuais indígenas tentam, além
de apresentar as concepções dos indígenas sobre os fenômenos educativos, discutir questões
especificas que promovam também uma discussão sobre territorialidade, políticas públicas
voltadas aos povos indígenas, mecânicos de sobrevivência étnica, sem, no entanto, deixar de
expor as fragilidades, mazelas e contradições desses temas e fenômenos à realidade das
populações autóctones do pais.
37
“Em edição extra do Diário Oficial da União, Bolsonaro delega a tarefa de demarcar novas terras indígenas ao
Ministério da Agricultura, chefiado por Tereza Cristina (DEM), até então líder da bancada do agronegócio na
Câmara e conhecida como ‘musa do veneno’". (DULCE, 2019, online)
38
Essa ação causa controvérsia pois, segundo Dulce (2017), muitos indígenas alegam que isso vai intensificar e
dar “carta branca” para matar e agrava ainda mais as lutas contra latifundiários e povos originários.
128
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Temos a segurança de que o tema debatido nesta dissertação é de suma importância para
as discussões sobre as populações indígenas. Sem dúvida, o ingresso de indígenas na
universidade, especialmente nos programas de pós-graduação, indica um avanço dos povos
indígenas em defesa de sua cultura, de suas tradições. Ao produzir conhecimentos sobre si, os
indígenas expõem, ainda que pautados em uma lógica acadêmica comum, uma certa
singularidade de compreensão do mundo que só contribui na afirmação da diferença. No caso
particular de um país como o Brasil, tal diferença precisa ser reafirmada para que políticas
públicas não reforcem ainda mais a extinção das tradições desses povos. O reconhecimento da
diferença é um passo importante para a garantia de direitos.
Desse modo, ainda que consideremos importante e necessário estudos como este, sobre
intelectuais indígenas e sua produção, não podemos deixar de reconhecer a grande dificuldade
e o desafio que é estudar esta temática. No nosso caso, em particular, foi difícil localizar e obter
as teses para análise. Como puderam constatar, entre as teses escolhidas há uma que foi
analisada a partir da sua publicação na forma de livro.
No que tange à elaboração de um pensamento intelectual indígena, as bibliografias que
utilizamos apontam que, para a conquista do reconhecimento intelectual, muitos indígenas
tiveram que se submeter aos processos de escolarização. Isso ocorreu porque as populações
indígenas não desejam uma relação de dependência com o “homem branco”. Este mesmo
sentimento de insatisfação quanto à relação entre indígenas e não-indígenas sedimentou nos
primeiros o desejo de autogerenciar os rumos de suas vidas em diversas esferas.
Dessa forma, as populações indígenas desejando superar a relação tutelar reivindicam
autonomia para a realização de seu autogoverno. Muitos povos indígenas acreditam que essa
autonomia seria conquistada se estes sujeitos dominassem tanto o mundo dos brancos como o
seu próprio. Para tanto, o acesso à educação parece ser o caminho mais coerente e próximo que
as populações indígenas encontraram para ajudar nesta aproximação.
Sendo assim, a escola ou a universidade, quando apropriada pelos sujeitos indígenas,
transfigura-se como uma ferramenta de luta. Aliás, o acesso às instituições escolares viabiliza
o domínio dos códigos não-indígenas tão necessários na “batalha epistêmica”, assim como,
possibilita a legitimação intelectual dos discursos indígenas em defesa de seus pares e
territórios.
129
define uma nova categoria em emergência que debate de forma crítica, a partir dos seus lugares
étnicos/indígenas, os processos coloniais que são/foram enfrentados pelos povos indígenas.
Esse grupo de indígenas escolarizados, além de reivindicar o reconhecimento de sua
identidade indígena, dos seus territórios, da sua cultura, defendem também a aceitação da
legitimidade de sua capacidade epistemológica, dos seus saberes e de sua cosmologia. Então,
ao definir-se a intelectualidade indígena como sendo adquirida por meio de um processo de
escolarização atrelado à consciência de grupo e das mazelas por ele enfrentadas, percebemos
que a ela estão ainda imbrincadas questões identitárias. Com isso, estamos apontando que a
intelectualidade ocorre por meio de um processo de complementariedade, no qual estão
entrelaçadas modernidade e tradição.
Estabelecido o conceito de intelectualidade, chegamos à definição dos intelectuais
indígenas que teriam suas teses analisadas. A partir da definição de intelectualidade,
consideramos então como intelectuais indígenas aqueles que passaram por processo de
escolarização, chegando ao maior nível de formação acadêmica – o doutorado – e que possuem
importantes debates e produções escriturais em prol de seu povo ou dos povos indígenas de um
modo geral.
Os intelectuais indígenas analisados nesta dissertação apresentam uma titulação de
formação acadêmica comum, pois, todos são doutores, possuem também uma extensa produção
em defesa dos povos indígenas, reivindicam sua identidade indígena em seus escritos e se
mostram insatisfeitos com as ações não-indígenas entre seus povos.
Na trajetória de vida dos intelectuais indígenas, pudemos identificar que todos
reivindicam e defendem suas origens étnicas. Por isso, consideramos que esses intelectuais
expressam essa identidade indígena nos seus escritos acadêmico e literário. Afinal, para a
afirmação do lugar de fala é comum que esses sujeitos evoquem essa identidade, de modo que
alcançam maior legitimidade discursiva.
Assim, reconhecemos, pautados em Rodrigues et al. (2013), que a emergência da
identidade indígena ou étnica tem razões políticas e de luta contra as subalternizações infligidas
aos grupos indígenas. Constatamos também que essa emergência foi possível graças à
organização e surgimento de populações tradicionais em defesa dos seus territórios, recursos
materiais diversos e de igualdade nas relações.
No que tange às teses analisadas, constatamos similaridades quanto à estrutura e ao
conteúdo, mesmo reconhecendo que os elementos teóricos e metodológicos divergem. As
131
As teses analisadas aqui respondem também à pergunta que dá nome a este trabalho: “O
que você veio fazer na escola?”, que é um questionamento correntemente feito aos intelectuais
que recebe de cada intelectual uma motivação própria e comum. Sendo assim, as teses
respondem a esta questão e apresentam as repercussões do acesso à educação escolar.
Obviamente, ao tentar responder a esse questionamento, os intelectuais em suas teses
elaboram discursos que evocam, como mencionado anteriormente, a identidade indígena a
partir de sua própria experiência humana, mas também, expressa o pensamento dos indígenas
sobre a educação escolar indígena e a educação da tradição indígena, bem como os fenômenos
inerentes a elas. Assim, mesmo apresentando convergências conceituais, estes trabalhos
acadêmicos têm particularidades condicionadas a sua natureza.
Quanto à identidade indígena, as teses expressam de modo semelhante que ser indígena
incorreu em discriminação, subalternização e questionamento de sua capacidade intelectual e
epistemológica. Essa forma de racismo teve sua maior ocorrência nos espaços educacionais em
que frequentavam os intelectuais. Porém, o racismo que foi impetrado aos indígenas serviu
como ferramenta de fortalecimento da identidade indígena, que, por sua vez, foi assumida e
utilizada como “carta de apresentação” ou legitimadora do discurso e lugar de fala.
No que se refere ao pensamento indígena em Educação Escolar Indígena e suas
repercussões, para os intelectuais a educação escolar indígena tem seus paradoxos, visto que ao
mesmo tempo em que se apresenta como um elemento da colonização, é um lugar de elaboração
de estratégias de revide e de consolidação da cultura e dos conhecimentos indígenas.
As teses analisadas expressam que os intelectuais indígenas consideram a importância
da escolarização, já que por meio dela os povos e o sujeito indígena poderão conquistar novos
espaços, assumir novas posições, dialogar com não-indígenas, participar de decisões com
entidades estatais sobre questões em prol de suas populações.
Além disso, nas teses dos intelectuais indígenas, identificamos que estes dão destaque a
formação escolar como elemento de ascensão social, pois formar-se requer a manipulação de
dois mundos distintos e próximos: mundo indígena e não-indígena. Sendo assim, encontram-se
nas teses relatos que indicam que estudar propiciará um “melhor viver” ou “bem viver” tanto
para o sujeito indígena quanto para a comunidade em que este se insere.
É importante ressaltar também que a formação escolar permite aos indígenas maior
conscientização de salvaguardar suas tradições, culturas, e conhecimentos ante ao contato
intercultural, já que proporciona a criação de estratégias para a ressignificação e entrelaçamento
entre a cultura da tradição indígena e o moderno.
133
Dessa maneira, nos estudos são encontrados depoimentos que reforçam a ideia do quão
desejada é a educação escolar entre os indígenas, inclusive, em algumas comunidades há um
crescente incentivo familiar e grupal para que os mais jovens frequentem escolas e
universidades. Afinal, sonhar com a educação escolar tornou-se possível quando os primeiros
líderes e intelectuais indígenas, oriundos dessas instituições, serviram como exemplo nacional
para o orgulho étnico.
São também uníssonos ao defenderem que a educação escolar indígena colabora para a
compreensão de seu ambiente, por essa razão, atribuem, junto com a educação da tradição, um
caráter de complementariedade. Demonstram também que a educação escolar indígena
almejada pelos povos indígenas é aquela em que haja o entrelaçamento entre os conhecimentos
não-indígenas com os indígenas, e que tenha qualidade para que possam ser efetivamente
capazes de colaborar com seus grupos étnicos.
Outro aspecto identificado nas teses diz respeito à existência de muitas dificuldades e
limitações para que a educação escolar indígena aconteça de modo a satisfazer os interesses das
populações indígenas. As teses declaram que a falta de autonomia no gerenciamento dessa
educação é um limitador por inviabilizar a apropriação da escola para a elaboração de um
projeto pedagógico específico e que seja compatível com as demandas apresentadas pelo povo
indígena.
Uma segunda dificuldade da Educação Escolar Indígena é a carência de recursos
aplicados na escola indígena, que, diante da precariedade material e estrutural, inviabiliza a
realização do trabalho docente. Soma-se a isso a precariedade de formação inicial e continuada
que impede aos indígenas desenvolverem métodos e técnicas próprias, assim como um modelo
educacional específico. Isto resulta na falta de materiais didáticos apropriados para lecionar
sobre a cultura, história e língua dos povos indígenas.
As teses dos intelectuais indígenas brasileiros, além de demonstrarem como os aspectos
externos às populações indígenas limitam a construção de uma educação escolar indígena
desejada e de qualidade, afirma que é a falta de consenso entre esses povos que dificulta a
elaboração de uma agenda de debate em torno da educação escolar oferecida aos indígenas.
Portanto, é notório que cada população espera algo da escola. Enquanto algumas populações
acreditam que a escola é um espaço de afirmação étnica e de valorização dos conhecimentos
indígenas, outras defendem que ela deve se dedicar a ensinar os conteúdos modernos/ocidentais
que permitirão o diálogo com o mundo não-indígena e que contribuirá para competir fora da
aldeia.
134
Nas teses reside essa falta de consenso entre os povos indígenas e o seguinte
questionamento: Qual seria então o modelo de educação escolar indígena mais adequado e
possível de implantar? De um lado, “os índios não querem aprender na escola coisas de índio”,
pois, defendem que isso não colabora com a uma suposta igualdade com os não-indígenas, de
outro, acreditam que a educação escolar indígena pode contribuir para com a revitalização,
manutenção, ressignificação de suas culturas e identidades. Um modelo de educação escolar
indígena desejável seria então, na perspectiva dos intelectuais, aquele que pudesse de forma
equilibrada abordar ambos conhecimentos: indígenas e não indígenas.
A educação escolar indígena enfrenta também dificuldades relativas à homogeneidade
com que são abordados e discutidos assuntos referentes aos povos indígenas, principalmente
aqueles que são pertinentes à educação escolar desses povos. Assim, as teses apontam também
como um desafio a ser superado a desvalorização e falta de reconhecimento que os intelectuais
indígenas enfrentam, pois, embora possam possuir formação em diversos níveis, ainda tem que
lidar com a desconfiança tanto do seu povo quanto com a dos não-indígenas.
Nesses termos, podemos afirmar que mesmo quando o indígena tem formação de nível
elevado, ele é visto como um sujeito de lealdade “partida”, pois, para seu povo indígena, ele
representa aquele que assimilou parte da educação e dos conceitos do colonizador e, por isso,
pode reproduzir um comportamento contra os indígenas, bem como entre os não-indígenas
representa um sujeito que tem sua capacidade intelectual e profissional questionada por ter
recebido uma educação “fraca”.
Como apontado em linhas anteriores, muitas são as dificuldades enfrentadas pelos
indígenas para conquistarem uma escolarização que lhes seja coerente e específica. Nas teses,
são traçados alguns pontos que limitam a educação escolar, no entanto, quando se trata apenas
de abordar temas de educação escolar indígena, nossos intelectuais sempre que podem fazem
referência aos processos de educação próprio ou, como definimos, tradicionais.
Quanto à educação da tradição indígena, nossos intelectuais elaboram suas concepções
e apresentam fenômenos a ela correspondente. Os relatos coletados nas teses indicam, assim,
que de forma ampla, considera-se educação da tradição aquela recebida nas práticas cotidianas,
que tem como base a tradição, que independe da escola para acontecer e, por isso, ocorre em
todos os espaços, o que, consequentemente, a torna uma educação holística e integralizante,
assim como considera e respeita o meio (mãe natureza).
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outras áreas podem servir para a divulgação da memória, cultura, e da intelectualidade das
populações indígenas do país.
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