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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO ACADÊMICO EM EDUCAÇÃO

UISLLEI UILLEM COSTA RODRIGUES

O QUE VOCÊ VEIO FAZER NA SALA DE AULA?


INTELECTUAIS INDÍGENAS BRASILEIROS E A EDUCAÇÃO

Belém - Pará
2019
 
 

UISLLEI UILLEM COSTA RODRIGUES

O QUE VOCÊ VEIO FAZER NA SALA DE AULA?


INTELECTUAIS INDÍGENAS BRASILEIROS E A EDUCAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Educação da Universidade Federal
do Pará-PPGED/UFPA, linha de pesquisa
Educação, Cultura e Sociedade, como requisito
obrigatório para a obtenção do título de Mestre em
Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Sônia Maria da Silva
Araújo

Belém-Pará
2019
 
 

UISLLEI UILLEM COSTA RODRIGUES

O QUE VOCÊ VEIO FAZER NA SALA DE AULA?


INTELECTUAIS INDÍGENAS BRASILEIROS E A EDUCAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade


Federal do Pará-PPGED/UFPA, linha de pesquisa Educação, Cultura e Sociedade, como
requisito obrigatório para a obtenção do título de Mestre em Educação.
Belém, 20 de maio de 2019

BANCA EXAMINADORA

____________________________________
Prof.ª Dra. Sônia Maria da Silva Araújo]
Universidade Federal do Pará- UFPA
(Orientadora)

____________________________________
Prof.ª Dra. Lucia Isabel da Conceição Silva
Universidade Federal do Pará- UFPA
(Examinadora - Interno)

____________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato de Pádua Câncio
Universidade Federal do Pará- UFPA
(Examinador - Interno)

__________________________________________
Prof.ª Dra. Valéria A. Cerqueira de Medeiros Weigel
Universidade Federal do Amazonas- UFAM
(Examinadora - Externo)

Belém - Pará
2019
 
 

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD


Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Pará
Gerada automaticamente pelo módulo Ficat, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

R696q Rodrigues, Uisllei Uillem Costa


O QUE VOCÊ VEIO FAZER NA SALA DE AULA? :
INTELECTUAIS INDÍGENAS BRASILEIROS E A EDUCAÇÃO
/ Uisllei Uillem Costa Rodrigues. — 2019. 146 f.

Orientador(a): Profª. Dra. Sônia Maria da Silva Araújo


Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Educação, Instituto de Ciências da Educação, Universidade Federal do
Pará, Belém, 2019.

1. Intelectual Indígena. 2. Produção Acadêmica. 3.


Educação. I. Título.

CDD 370
 
 

Dedico àqueles que transformam seus sonhos em


realidade e jamais desistem de lutar por eles.
 
 

AGRADECIMENTOS

Para os filhos de pretos, indígenas e pobres cursar a pós-graduação é um ato de insurgência.

Significa dizer que mesmo com a insistente força colonial predominante na universidade, não
desistimos dos sonhos e não perdemos as lutas mais importantes.

Significa, mesmo sem palavras, declarar que enfrentamos a discriminação e/ou o racismo.

Significa superar, mesmo diante de uma educação pública que nos estimula a não chegar em
lugar algum, nossas limitações escriturais e produzir debates de uma perspectiva audaciosa.

É reivindicar o direito de expor nossos próprios saberes e articulá-los às experiências


acadêmicas.

É também provar que temos epistemologias outras e que são igualmente importantes.

É, sobretudo, não se conformar com a imposição a um lugar subalterno para vivermos os sonhos
que quisermos.

No entanto, nessa jornada, tive o apoio de tantos para que este sonho fosse possível e por todos
eles, eu tenho profunda gratidão, em especial agradeço:

A Deus, que tem me ajudado a realizar os desejos do meu coração, cuidando de mim por onde
quer que eu ande e que tem me feito crescer enquanto humano mesmo diante de tantas
dificuldades.

A minha orientadora, Profa. Dra. Sônia Maria da Silva Araújo, que, ao me aceitar, abraçou o
sonho que não era só meu e que me permitiu desconstruir-me inúmeras vezes para que eu
pudesse evoluir tanto academicamente como ser humano.

Ao Prof. Dr. Raimundo Nonato de Pádua Câncio, que, com sua presença tranquilizadora, me
ajudou a encontrar caminhos para que eu conseguisse desenvolver o percurso discursivo desta
pesquisa e com quem compartilho algo comum: o interesse em pesquisar os povos indígenas.

A Profa. Dra. Lúcia Isabel da Conceição Silva, que me apresentou perspectivas audaciosas de
pensar as questões indígenas, com quem tive interessantes oportunidades de diálogo todos
igualmente poderosos para refletir para além desta dissertação;

A Profa. Dra. Valéria A. Cerqueira de Medeiros Weigel, que apreciou esta produção
contribuindo para reelaborar o percurso discursivo;

A minha mãe Sânora, mulher guerreira, que fez tudo que estava a seu alcance para que eu jamais
desistisse dos estudos e que buscasse neles a mudança de vida. Apesar de suas próprias
inseguranças e medos, por ter seu filho longe de casa, apoiou cada decisão;

Ao meu pai Valdeci, que me fez ser a pessoa forte que sou hoje, com quem aprendi a ser
disciplinado e que sempre me orientou para alcançar grandes voos na vida;
 
 

A minha companheira Kerollaine, que sempre me apoia em meus projetos, que me ama com
todas as manias e defeitos e que jamais permite que eu desista dos meus sonhos;

A minha avó Ozinda (in memoriam), mulher indígena, que com sua força ancestral vive entre
nós e seus ensinamento se perpetuam;

Ao meu avô Valdomiro (in memoriam), que antes de partir me ajudou a (re)construir para esta
dissertação os pedaços de minha história indígena;

Ao meu tio-pai Jocivan (in memoriam), que nos deixou subitamente antes da conclusão de mais
esta etapa, mas que foi um homem incrível e que graças a ele muitas conquistas foram possíveis

Aos meus irmãos Sâmela, Weslley e William, que durante nossas conversas proporcionaram-
me muitos momentos de alegria e carinho;

A Eduardo Alves Vasconcelos, meu primeiro orientador, que ainda acompanha minha vida
acadêmica e que me ensinou a tarefa árdua de ser pesquisador neste país e que me estimulou a
ter paixão pela pesquisa cientifica;

A Aline Barboza, amiga que me incentivou inúmeras vezes a trilhar esse caminho e que viu de
perto minhas inseguranças e dificuldades para a conclusão desse trabalho, mas que me motivou
e me estendeu a mão sempre;

A Valena Calandrini, amiga e gestora, que compreendeu a importância dessa etapa para minha
vida e permitiu que este percurso tivesse menos limitações e que pudesse ser mais leve;

A Alyne Vieira, superintendente do SESI DR/AP, que me possibilitou viver esse sonho sem ter
que abrir mão de outro: a docência;

A Miriam Rosa, amiga, com a qual tive maravilhosas conversas sobre fé, Deus e família que
me ajudaram a superar a saudade de casa;

A Vitor Fernando, amigo, que inúmeras vezes me acolheu em sua casa e seu coração e com
quem conversei diversas vezes sobre esta pesquisa.

A Paulo Demétrio, amigo e poeta, que tornou as idas a Belém momentos de festa e alegria,
mesmo quando eu estava bastante tenso para qualquer tipo de comemoração, homem de
conversas e atitudes incríveis;

A Izan Rodrigues, amigo, que ora cuidava de mim como pai ora como irmão, com quem tive
diálogos filosóficos profundos e que sempre me dá referências literárias poderosas,
apaixonantes e revolucionarias;

E a todos aqueles que fizeram dessa caminhada uma experiência incrível, estimulante,
apaixonante e única.
 
 

Estou chamando a atenção de nossos jovens


para que direcionem sua luta, mas, não no
sentido de ser igual ao homem branco. Isso
não. Minha proposição é a de que eles podem
ter um nível de conhecimento igual ao de um
não indígena, mas que jamais devem desejar
ser igual a um [...] Esta mensagem é para que
os jovens indígenas nunca se esqueçam de
aprimorar os valores de sua alma indígena.
Carlos Estevão Taukane

Você não pode se esquecer de onde você é e


nem de onde você veio, porque assim você sabe
quem você é e para onde você vai”. Isso não é
importante só para a pessoa do indivíduo, é
importante para o coletivo, é importante para
uma comunidade humana saber quem ela é,
saber para onde ela está indo...
Ailton Krenak
 
 

RODRIGUES, Uisllei Uillem Costa. “O que você veio fazer na sala de aula?” Intelectuais
indígenas brasileiro e educação. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal do Pará, Belém, 2019.

O objeto de pesquisa desta dissertação é a intelectualidade indígena e sua produção acadêmica


em Programas de Pós-graduação. O acesso à educação escolar aos povos autóctones, em todos
os níveis, não é um fenômeno recente, muito embora na atualidade se tenha delineado novos
contextos e percursos. O objetivo geral definido é: analisar o pensamento do intelectual
indígena brasileiro sobre educação, manifesto em teses defendidas em programas de pós-
graduação, para compreender seu sentido político. Consoante ao objetivo principal, delineamos
os objetivos específicos: 1) Realizar revisão bibliográfica de estudos sobre este intelectual; 2)
Analisar o conceito de intelectual indígena; 3) Debater a relação escolarização e
intelectualidade desse sujeito; 4) Fazer um levantamento de nomes de intelectuais indígenas
brasileiros; 5) Verificar, da relação de intelectuais indígenas brasileiros, os que trataram, em
teses e dissertações, da questão da educação; 6) Analisar o pensamento desse sujeito intelectual
sobre educação em teses e dissertações; 7) Verificar, a partir da materialização do pensamento
intelectual indígena brasileiro sobre educação, seu sentido político. Metodologicamente,
desenvolve-se a pesquisa sob a inspiração da análise de conteúdo. As questões levantadas são:
1) Quem são os intelectuais indígenas brasileiros? 2) Quais as contribuições da escolarização
para a construção da intelectualidade indígena? 3) Como se apresenta o pensamento produzido
pelo intelectual indígena? 4) Como a temática “Educação” e o fenômeno educativo se
materializam no pensamento intelectual indígena? A hipótese inicialmente levantada é de que
o pensamento produzido por intelectuais indígenas, em suas teses e dissertações, apresenta uma
visão crítica da educação escolar indígena. A ideia inicial que levantamos era de que os
intelectuais indígenas produziram (e ainda produzem) um pensamento que reflete, sobretudo, a
identidade étnica de seu grupo indígena de pertencimento. Assim, a materialização do
pensamento indígena se apresentaria marcada, dentre outras coisas, por um traço étnico
profundo. Os resultados demonstram que os intelectuais indígenas realmente apresentam uma
interpretação crítica da educação escolar indígena, ainda que os saberes étnicos não se
manifestem tão explicitamente. Ficou demonstrado que o acesso à escolarização incidiu em
profundas repercussões no contexto das populações indígenas do país, entre elas a emergência
de um grupo indígena escolarizado/educado que tem proposto debates a partir de um lugar de
fala de pertencimento. As produções dos intelectuais indígenas convergem para pontos em
comum. Destacam estas pesquisas, fundamentalmente, que a educação indígena no Brasil não
pode prescindir da educação da tradição indígena e que a memória ancestral dos povos
indígenas precisa permear o seu processo escolar educativo para que se supere uma postura
colonial que a educação escolar quase sempre tenta lhes impor à revelia das afirmações
identitárias defendidas nos últimos 30 anos, após a promulgação da Constituição Federal de
1988.

Palavras-chave: Intelectual Indígena. Educação. Produção Acadêmica.


 
 

RODRIGUES, Uisllei Uillem Costa. "What did you come to do in the classroom?" Brazilian
indigenous intellectuals and Education. 2019. Dissertation (Master in Education) - Federal
University of Pará, Belém, 2019.

The research object of this dissertation is the indigenous intellectuality and its academic
production in Postgraduate Programs. Access to school education for indigenous peoples at all
levels is not a recent phenomenon, although new contexts and paths have been outlined today.
The general objective is to analyze the thinking of the Brazilian indigenous intellectual about
education, manifested in thesis defended in postgraduate programs, in order to understand their
political meaning. Depending on the main objective, we outline the specific objectives: 1) Carry
out a bibliographic review of studies about this intellectual; 2) Analyze the concept of
indigenous intellectual; 3) To discuss the relationship between schooling and intellectuality of
this subject; 4) To survey the names of Brazilian indigenous intellectuals; 5) To verify, from
the relationship of these Brazilian indigenous intellectuals, those who dealt, in thesis and
dissertations, with the question of education; 6) Analyze the thinking of this intellectual subject
on education in thesis and dissertations; 7) To verify, from the materialization of the thought of
this intellectual about education, its political sense. Methodologically, the research is developed
from the assumptions of content analysis. The issues raised: 1) Who are the Brazilian
indigenous intellectuals? 2) What are the contributions of schooling to the construction of this
subject's intellectuality? 3) How is the thought produced by this intellectual presented? 4) How
does the theme "Education" and the educational phenomenon materialize in indigenous
intellectual thinking? The hypothesis initially raised is that the thinking produced by indigenous
intellectuals in their thesis and dissertations presents a critical view of indigenous school
education. The initial idea we raised was that indigenous intellectuals produced (and still
produce) a thought that reflects, above all, the ethnic identity of their indigenous group of
belonging. Thus, the materialization of the thought of this intellectual would be marked, among
other things, by a deep identity affirmation. The results show that indigenous intellectuals do
present a critical interpretation of school education offered to their peoples, even though ethnic
knowledge does not manifest itself so explicitly. It has been demonstrated that access to
schooling has had profound repercussions in the context of these populations in the country,
among them the emergence of a schooled/ educated indigenous group that has proposed debates
from a place of speaking of belonging. The productions of these intellectual subjects converge
to points in common. These studies emphasize fundamentally that indigenous education in
Brazil can not ignore the education of the indigenous tradition and that the ancestral memory
of the original peoples must permeate their educational school process in order to overcome a
colonial position that school education almost always tries to impose in defiance of the identity
affirmations defended in the last 30 years, after the promulgation of the Federal Constitution of
1988.
Keywords: Indigenous Intellectual. Education. Academic Production.
 
 

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Número de publicações sobre intelectualidade indígena (1992-2017) ................. 49 


Quadro 2 – Artigos e livros sobre intelectualidade indígena, por ano, título, autor, periódico ou
editora e local de publicação .................................................................................................... 51 
Quadro 3 – Dissertações e teses sobre intelectual indígena, por ano de defesa, título, autor e
universidade/local ..................................................................................................................... 54 
Quadro 4 – Número de produções acadêmicas sobre intelectualidade indígena, por país (1992-
2017) ......................................................................................................................................... 55 
Quadro 5 – Produção de artigos e livros de Daniel Munduruku, por ano, editora e local de
publicação ................................................................................................................................. 59 
Quadro 6 – Produção de capítulos de Daniel Munduruku em livros, por ano, editora e local de
publicação ................................................................................................................................. 61 
Quadro 7 – Produção de artigos e livros de Edson Kayapó, por ano, título, periódico, anais ou
editora e local de publicação .................................................................................................... 64 
Quadro 8 – Produção de artigos e livros de Gersem Baniwa, por ano, título, periódico ou
editora e local de publicação .................................................................................................... 67 
Quadro 9 – Produção de capítulos de livros de Gersem Baniwa, por ano, título, periódico ou
editora e local de publicação .................................................................................................... 68 
Quadro 10 – Produção de artigos e livros de Naine Terena, por ano, título, periódico ou editora
e local de publicação................................................................................................................. 71 
 
 

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12 

2 PERSPECTIVA METODOLÓGICA DA PESQUISA .................................................... 21 

3 REFLEXÕES SOBRE O PENSAMENTO INTELECTUAL INDÍGENA ................... 32 

4 INTELECTUAIS INDÍGENAS NO BRASIL .................................................................. 39 


4.1 A EMERGÊNCIA DO INTELECTUAL INDÍGENA ...................................................... 40 
4.2 PRODUÇÕES SOBRE INTELECTUALIDADE INDÍGENA ......................................... 47 
4.3 INTELECTUAIS INDÍGENAS BRASILEIROS: BREVE BIOGRAFIA ........................ 56 
4.3.1 Daniel Munduruku ........................................................................................................ 57 
4.3.2 Edson Kayapó ................................................................................................................ 61 
4.3.3 Gersem Baniwa .............................................................................................................. 65 
4.3.4 Naine Terena .................................................................................................................. 70 

5 O QUE DIZEM AS TESES DOS INTELECTUAIS INDÍGENAS BRASILEIROS


SOBRE EDUCAÇÃO? .......................................................................................................... 74 
5.1 ESTRUTURA DAS TESES ............................................................................................... 75 
5.2 PANORAMA DAS TESES ANALISADAS .................................................................... 77 
5.3 FENÔMENOS EDUCACIONAIS E O PENSAMENTO DOS INTELECTUAIS
INDÍGENAS NAS TESES....................................................................................................... 81 
5.3.1 Identidade Indígena: a ênfase na própria experiência ............................................... 83 
5.3.2 O pensamento indígena sobre Educação Escolar e suas repercussões ..................... 94 
5.3.3 Fenômenos e concepções de Educação Escolar Indígena ........................................ 103 
5.3.4 Desafios e limitações da Educação Escolar Indígena: o olhar indígena ................. 110 
5.3.5 Fenômenos e concepções de Educação da Tradição Indígena................................. 119 
5.3.6 Povos Indígenas e outras questões: as peculiaridades das teses .............................. 125 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 128 

FONTES ................................................................................................................................137

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 137 


12 

1 INTRODUÇÃO

O Amapá é um estado marcado fortemente pela presença negra e indígena. O


Marabaixo1 e as festas do Turé2 são os principais meios de expressão dessas culturas que se
esforçam diariamente para um reconhecimento mais enérgico diante da sociedade. É, também,
no estado do Amapá que todas as terras indígenas estão demarcadas, diferentemente da
realidade de outros estados da região Norte3.
Inevitavelmente, ser natural de Macapá, no Amapá, possibilitou-me perceber a presença
indígena desde criança. A temática indígena sempre foi constante em minha vida, tanto pelas
práticas familiares, a exemplo de momentos de contação de histórias no pátio de casa4 para
ensinar algo às crianças, quanto pelo fenótipo que possuo, obviamente, devido a minha
ascendência indígena. Logo, as influências que me levaram a estar ligado aos estudos indígenas
são de ordem profissional, mas, fundamentalmente, de ordem pessoal.
Não me lembro de a temática indígena ser inserida em minha vida. Ela sempre esteve
ali, próxima, esperando que eu a reconhecesse. No ambiente familiar, uma das primeiras e
principais influências que me aproximaram dos estudos da temática indígena foi a de minha
avó paterna, que era uma Aruã – uma das poucas de sua época, pois, seu grupo étnico já estava

1
O ciclo do Marabaixo é considerado a maior manifestação cultural do estado do Amapá. É um ritual de origem
africana que está presente em algumas festas católicas populares de comunidades negras da área metropolitana
da cidade de Macapá, capital do estado. Embora sua origem seja pouco definida, o Marabaixo é uma dança de
uma cultura africana, provavelmente trazida pelos negros que chegaram ao Amapá no século XVIII, para a
construção da Fortaleza de São José. Essas pessoas negras que, aportaram na região eram de famílias vindas da
África, estavam fugindo das guerras entre mouros e cristãos. A dança e o canto do Marabaixo constituem o lado
profano da Festa do Divino e acontecem integradas a esta comemoração (OPY, 2015).
2
Turé é uma festa de agradecimento às pessoas invisíveis que vivem no Outro Mundo, chamadas Karuãna, pelas
curas que elas propiciaram por meio das práticas xamânicas dos pajés. Os pajés dançam, cantam e bebem muito
caxixi com os Karuãna que vêm ouvi-los cantar várias vezes sem repetir o canto. O turé é feito no lakuh, cercado
por varas chamadas de pirorô que são enfeitadas com bolas de algodão e ligadas por fios, onde são presas penas
brancas de garça. Pode ser realizado a qualquer momento, mas o verdadeiro turé é feito durante a lua cheia de
outubro, quando são feitos os grandes bancos Cobra Grande e Jacaré, pintados os mastros e levantado o lakuh
(IEPÉ, 2009).
3
As terras indígenas são: Uaçá, Juminã, Galibi do Oiapoque, Waiãpi e Parque Indígena do Tumucumaque, onde
estão localizados, respectivamente, os povos indígenas Galibi-Marworno, Karipuna, Plaikur, Galibi do Oiapoque
e Waiãpi (GALLOIS; GRUPIONI, 2003).
4
Capiberibe (2001), Andrade (2007) e Assis (2012) apresentam a importância do pátio nas casas das populações
indígenas da região do Amapá como espaço em que acontecem importantes trocas sociais. Inconscientemente,
talvez, meu pai estivesse reproduzindo um ato muito comum de nossos ancestrais indígenas. Ainda que sem uma
intenção explícita, seus contos nos proporcionavam muitas reflexões sobre a influência e onisciência dos espíritos
em nossas ações. A propósito, este ato de reunir a prole para contar estórias diversas, que apresentam o
sobrenatural e sua ação sobre a vida humana, foi – sem que ele percebesse – sendo assimilado quando ouvira sua
mãe contar a seus irmãos e a ele mesmo narrativas outras de experiência que ela, minha avó, e possivelmente
seus parentes tiveram com estas entidades.
13

dizimado. Ozinda, minha avó, possuía grande influência sobre meus parentes paternos e seu
legado, mesmo após sua morte, esteve sempre bem delineado.
Aliás, os Aruã são um dos diversos povos que constituíram as formações étnicas atuais
das populações indígenas do Amapá, em Oiapoque5. A mistura étnica atual dos indígenas da
região, principalmente entre os Karipuna e Galibi-Marworno, é de origem bastante heterogênea.
Nimuendajú (1926), Capiberibe (2001), assim como Gallois e Grupioni (2003) foram alguns
dos pesquisadores que estudaram a constituição dos povos indígenas do Amapá. Eles afirmam
que as populações indígenas dessa região se formaram a partir de vários grupos ameríndios,
além dos Aruã. A formação das populações indígenas da região descende dos povos Maraõn,
Tupinambá, Emerillon e outros.
Ozinda, minha avó, foi uma entre tantas outras indígenas que se sitiaram nos grandes
centros do estado. Ela e seus ancestrais colaboraram para a constituição/formação dos grupos
indígenas que se mantêm e que conhecemos nos dias de hoje no Amapá. Os dados sobre a
presença indígena apontam que, mais recentemente, existem no estado do Amapá mais de 7 mil
indígenas, segundo o Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Há, desse quantitativo, 2 mil indígenas nos centros urbanos.
Rememoro que em muitos momentos na infância pude presenciar famílias indígenas nos
espaços urbanos, os quais eu frequentava. A presença de pequenos grupos indígenas nas
proximidades da escola em que fiz o ensino fundamental era evidente. Na época, não sabia
quem eram e de onde vinham. Só mais tarde soube que ao lado da escola existia a Casa do
Índio, o que justificava a presença desses indígenas pelas proximidades.
Mesmo com o expressivo quantitativo de indígenas no Amapá, as demandas dessas
populações, no campo político e/ou social, são pouco debatidas e suas lutas se restringem a
pequenos grupos, impossibilitando um debate mais abrangente sobre os anseios dessas
comunidades. Ainda que a presença das populações indígenas no Amapá seja notória, as
diversas etnias que residem no estado ainda são invisibilizadas, mesmo diante da insurgência
conquistada por meio da organização do movimento indígena da região.
Devido à forte presença indígena, tanto no ambiente familiar quanto nas ruas, nos
festejos culturais, nas tradições mantidas, fui provocado a aprofundar meus estudos sobre a
temática indígena. Apesar de ter sido necessário mais de uma década para que começasse a
despertar em mim o interesse por algo tão presente em minha vida, desde meu nascimento a

5
Município onde estão localizadas algumas das terras indígenas do estado do Amapá: T.I. Uaçá, T.I. Juminã, T.I
Galibi do Oiapoque.
14

temática indígena estava ali, diretamente ligada a mim, ainda que sem a conscientização e
compreensão disso.
O primeiro contato que tive com os estudos sobre as comunidades indígenas do Brasil
e, principalmente, do Amapá, se deu por meio de estudos linguísticos e aconteceu em uma aula
de Fonética e Fonologia, do curso de Letras da Universidade do Estado do Amapá, na qual
estávamos efetuando a descrição de línguas hipotéticas. O meu interesse pelo conteúdo da
disciplina gerou um convite para conhecer mais sobre a importância da Linguística para os
estudos indígenas. Posteriormente, esse interesse se acentuou ainda mais quando me tornei
membro do Núcleo de Estudo de Línguas Indígenas do Amapá (NELI), iniciando como aluno
convidado, e atualmente integrando-o como Pesquisador.
Quando era graduando de Pedagogia, às vezes, me questionavam sobre minha
identidade étnica. No entanto, devido a um certo “apagamento” da minha história familiar,
pouco sabia sobre meus ancestrais e, consequentemente, da minha ascendência indígena. Foi
no curso de Pedagogia que fiz minhas primeiras aproximações com a temática étnico-racial, e
produzi pequenos trabalhos sobre o assunto. Em seguida, ao fazer a especialização em Docência
na Educação Superior, fui estimulado, tanto por desejos pessoais quanto por coincidências
situacionais, a pesquisar a escola como um espaço de conflitos, a partir de uma perspectiva
contra hegemônica, buscando perceber a aplicabilidade das leis educacionais nesse contexto.
A Licenciatura em Pedagogia me possibilitou debater a diversidade dentro da escola, no
entanto, foi somente quando ingressei no curso de Letras na Universidade Estadual do Amapá
(UEAP) que me relacionei especificamente com a temática indígena. Meus estudos iniciais se
deram como bolsista voluntário do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
e/ou Tecnológica (PROBICT-UEAP), na área de fonética e fonologia de línguas indígenas. Por
meio das apresentações de pesquisas com resultados parciais ou finais, consegui estabelecer
conexões com outros grupos e pessoas que estudam as questões indígenas sobre diversas óticas
e, também, com os próprios indígenas, que têm começado a pesquisar as demandas de seus
grupos étnicos.
Minha primeira apresentação sobre questões de Linguística Aplicada às línguas
indígenas se deu no Grupo de Estudos Linguísticos (GEL), na Universidade de Campinas
(UNICAMP), em 2015. O trabalho sobre fonética e fonologia da língua Galibi, apresentado no
64º evento do GEL, foi resultado dos estudos que iniciei junto ao NELI.
O Núcleo de Estudo de Línguas Indígenas do Amapá (NELI) foi o primeiro espaço em
que eu pude me reconhecer dentro da temática indígena. Este grupo de pesquisa possui
15

estudiosos de várias áreas que convergiram suas pesquisas para as questões indígenas:
Linguística, Educação, Antropologia, Psicologia etc. Minha atuação no NELI, estudando
aspectos linguísticos do Galibi6, possibilitou que eu tivesse contato com outros centros de
estudo que se dedicam às questões das populações indígenas.
Minha empreitada acadêmica, no que tange à temática indígena, gerou dois grandes
projetos de pesquisa sobre os indígenas do Amapá. O primeiro, começado em 2014 e intitulado
“Fonética e Fonologia de Línguas Indígenas (do Amapá)”7, era um projeto no qual pretendia
analisar e descrever a língua Galibi, que fora falada pelos Galibi do Uaçá ou Galibi-Marworno,
no início do século XX, identificando processos fonético-fonológicos da respectiva língua.
O segundo, intitulado “Fontes de Pesquisa e Estudo de Línguas Indígenas do Amapá” e
iniciado em 2016, refere-se a uma pesquisa na qual buscava reunir toda a bibliografia sobre as
línguas indígenas do Amapá e de suas populações indígenas. Há uma marca de temporalidade
neste estudo, pois optei por considerar apenas pesquisas a partir do século XX e início do século
XXI. Devido à natureza interdisciplinar dos estudiosos, que intentaram pesquisar os indígenas
do Amapá, o mencionado projeto de pesquisa apresentava referenciais não somente de
Linguistas interessados em estudar as línguas indígenas, mas de Antropólogos, Etnólogos
naturalistas, Pedagogos, Historiadores, Geógrafos, entre outros profissionais que tentavam,
considerando sua área, apresentar aspectos relevantes sobre as línguas indígenas das populações
do Amapá.
Segundo Rodrigues (2005), existem no Brasil aproximadamente 180 línguas indígenas,
e muitas delas em risco iminente de desaparecerem. A extinção dessas línguas é decorrente do
desaparecimento de seus falantes e da não perpetuação da língua pelas gerações posteriores,
que são estimuladas a priorizar a Língua Portuguesa. Para Araújo (2007) há dificuldades de
consenso sobre o número atual das línguas faladas pelas populações indígenas do país, no
entanto, afirma que há alguns trabalhos como o de Denny Moore que expressam como resultado
a existência de aproximadamente 150 línguas indígenas no Brasil, sendo que 120 são faladas
na Amazônia.
Estudar as questões linguísticas dos indígenas contribui para a compreensão das formas
de manutenção e/ou revitalização de línguas que estão sob a ameaça e, consequentemente, de

6
Língua extinta que foi falada até início do século XX pelos Galibi-Marworno. Esta língua foi registrada por
Nimuendajú em sua expedição pela região do Uaçá, em 1925.
7
Este projeto possui a participação de outros pesquisadores que estudam diferentes línguas indígenas (faladas ou
extintas) do Amapá.
16

outros aspectos, sejam estruturais, sejam semânticos, de um dos principais veículos de


“circulação” da própria identidade étnica. No Amapá, estudar as línguas indígenas presentes na
região implica compreender aspectos históricos que (re)configuraram as línguas, a cultura e as
populações indígenas que se encontram em Oiapoque.
Dedicar-me a estudar uma das línguas indígenas do estado do Amapá contribuiu ao
mesmo tempo para que me sensibilizasse para com as questões indígenas e me reconhecesse
nelas. Ao reconhecer-me, ficavam mais perceptíveis para mim as subalternidades a que os
indígenas são (e estão) submetidos, reconhecendo as que vivenciei, sem nem sequer percebê-
las, não por mera fatalidade, mas, por ter sido formado em sistema estrutura colonial que insiste
em permanecer em nosso país.
Durante a empreitada que iniciei nos estudos indígenas, ficou evidente que língua e
educação estão intimamente ligadas. A relação entre Linguística e Educação é de reciprocidade
contínua e ininterrupta. Compreendendo essa relação de proximidade entre as duas áreas, em
2014, membros do NELI, grupo do qual participo, organizaram o I Seminário de Línguas e
Educação Escolar Indígena; em seguida, foi realizado o I Simpósio de Pesquisa em Línguas
Indígenas do Amapá (SIPLI-NORTE), no qual renomados pesquisadores, como Denny Moore,
Sergio Meira, Bruna Franchetto e outros, apresentaram suas contribuições nessa área de estudo.
Embora minha atuação como aluno convidado do Núcleo de Estudos de Línguas
Indígenas tenha sido pesquisando a fonética e fonologia de línguas Indígenas, mais
recentemente minha atuação como membro pesquisador também envolve Educação, área na
qual tenho dedicado meus estudos. Agora, relaciono essas duas áreas – Linguística e Educação
–, embora seus objetos sejam distintos/diferentes, podem apresentar pontos/características
convergentes.
A dupla formação em Pedagogia e Letras me faz, inevitável e predominantemente,
pensar as questões indígenas dentro destas áreas. Neste estudo, intento uma intersecção entre
estas áreas, associando-as a debates pertinentes sobre população indígena brasileira e seus
modos de pensar o mundo e suas demandas. Isso será possível por meio da análise do
pensamento expresso em produções autorais escritas por esses indígenas
Obviamente, à medida que me aproprio de saberes e conhecimentos das duas áreas, mais
delineada fica a relação que estas possuem com os sujeitos indígenas e como, a partir delas,
mas não somente, é possível as populações indígenas compreenderem questões que estão no
bojo de seus anseios, manter suas epistemologias e grupos étnicos.
17

A propósito, durante as disciplinas de mestrado pude ampliar minhas perspectivas sobre


as questões étnico-raciais como resultante de um macro sistema colonial, bastante vivo e real.
Destaco ainda algumas disciplinas que me possibilitaram construir outras perspectivas e outras
abordagens teóricas. Assim, foi na disciplina eletiva “Relações étnico-raciais e de gênero” que
os debates sobre as categorias “gênero” “raça” e “etnia” se interseccionaram, possibilitando-
me reflexões para além do indigenismo óbvio. Como resultado final da disciplina, produzi um
artigo intitulado “Espaços de poder e protagonismo das mulheres indígenas do Uaçá”, que foi
uma tentativa inicial de analisar como as categorias “gênero” e “etnia” estão imbricadas no
Amapá.
Além da disciplina anteriormente mencionada, a disciplina “Educação Brasileira”
possibilitou-me também importantes debates sobre o contexto educacional brasileiro. Nesta,
produzi um artigo intitulado “Educação democrática para os Galibi Marworno”, visando
problematizar a implantação da escola indígena em Oiapoque, no Amapá. Este artigo também
foi apresentado na forma de resumo expandido no Seminário Internacional do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Pará, em 2017.
Em “Educação, Cultura e Sociedade”, disciplina obrigatória de linha, outras
contribuições teóricas dentro do campo da Educação – como os Estudos Subalternos, Culturais,
Pós-coloniais, Pós-moderno e Descoloniais – foram imprescindíveis para repensar os olhares
aplicados às populações ameríndias e as suas formas de insurgência, na tentativa de construir
outros modos de pensar o próprio mundo.
Binarismos como Ocidente versus Oriente, debatidos na disciplina de linha, nos
ajudaram a interpretar como estão postas as relações entre outras categorias
(colonizador/colonizado, civilizado/selvagem, ciência/mito, humanidade/bestialidade e outras),
igualmente binárias, e que se fazem concretas no cotidiano das populações indígenas.
As concepções advindas do pensamento ocidental fomentam que os saberes ocidentais
têm mais cientificidade do que saberes produzidos por populações que não pertencem ao
Ocidente ou pertencem ao Ocidente colonizado. De igual modo, a formação humana está
assentada em pressupostos de uma filosofia moderna que em seu bojo infligiu às comunidades
indígenas prejuízos inerentes ao projeto de civilização/colonização para instruir a alma do
“selvagem”.
Para Lisboa (2017), a formação do sujeito segue o projeto europeu moderno de separar
natureza e cultura, mediante domínio da primeira (animalidade, selvageria etc.) por meio da
segunda (disciplina, instrução), possibilitando, assim, um processo de racionalização do mundo
18

e de “elevação da humanidade”. Surge, desse modo, uma colonialidade8 do saber e um,


consequente, racismo epistêmico que tem no epistemicídio9 sua origem.
Este racismo epistêmico, de forma mais brutal, aniquila outras formas de pensar o
mundo, inviabiliza outros modos de produção de conhecimentos e saberes. Coloca também os
produtores de saberes fora dos padrões ocidentais como entes submetidos a misticismos, que
não produzem uma epistemologia/sabedoria que tenha efeito real; nem o rigor necessário para
construir uma ciência. Essa superioridade da ciência moderna, para Feyerabend (2011 [1978],
apud LISBOA, 2017), “não passa de mera presunção que jamais foi posta à prova” e que
suprimiu outras culturas e, por consequência, modos outros de se relacionar com a natureza.
Assim, Melatti (2014, p. 203), na contramão do pensamento colonial, aponta que o saber
indígena possui uma tradição que engloba “uma série de conhecimentos técnicos, por vezes
complexos, que produzem resultados comprovados”. As epistemes indígenas são alternativas
de saberes que buscam junto à natureza, sem deformá-la, soluções para o bem viver10 das
populações em seus territórios.
Na mesma direção, nesta dissertação, a fim de apontar uma concepção diferente
daquelas que analisam as repercussões do ingresso do indígena no ensino superior, utilizo as
produções construídas por esses sujeitos indígenas nos programas de pós-graduação,
considerando que nelas existem conhecimentos anticolonialistas, nos quais os próprios sujeitos
demarcam suas posições de fala e sua constituição identitária e étnica a partir de um ponto
comum: o fenômeno educativo. Dessa maneira, a problemática que levantamos é: como a
temática “educação” e o fenômeno educativo se manifestam no pensamento do intelectual
indígena brasileiro, expresso em teses de pós-graduação? O problema aqui levantado origina
a busca por respostas para questões adjacentes como: 1) Quem são os intelectuais indígenas
brasileiros? 2) Quais as contribuições da escolarização para a construção da intelectualidade

8
A colonialidade nomeia a lógica subjacente da fundação e do desdobramento da civilização ocidental desde o
Renascimento até hoje, da qual colonialismos históricos têm sido uma dimensão constituinte, embora minimizada.
(Mignolo, 2011, Oliveira, 2017)
9
É um termo cunhado por Boaventura de Sousa Santos em “Pela Mão de Alice” e que aparece em outras
publicações do autor. Este termo também tem sido muito utilizado por todos os autores e autoras que analisam a
influência da colonização europeia (branca) e do imperialismo capitalista sobre os processos de produção e
reprodução da vida. O epistemicídio é, em essência, a destruição de conhecimentos, de saberes, e de culturas não
assimiladas pela cultura branca/ocidental. É um subproduto do colonialismo instaurado pelo avanço imperialista
europeu sobre os povos da Ásia, da África e das Américas (MIRANDA, 2016, online).
10
Teoria que supõe uma compreensão holística e integradora do ser humano com os demais elementos da natureza
(ar, agua, solos, arvores, animais, etc) de modo que se estabeleça uma comunhão com a Pacha Mama (Terra),
universo e com o Criador (Deus). (BOFF, 2009).
19

indígena? 3) Como se apresenta o pensamento produzido pelo intelectual indígena? 4) Como a


temática “Educação” e o fenômeno educativo se materializam no pensamento intelectual
indígena?
Consideramos como hipótese que levantamos é de que o pensamento produzido por
intelectuais indígenas, em suas teses e dissertações, apresenta uma visão crítica da educação
escolar indígena. Os intelectuais indígenas produzem um pensamento que reflete, sobretudo, a
identidade étnica dos saberes acionados. Assim, a materialização do pensamento indígena é
marcada, dentre outras coisas, por uma afirmação identitária profunda.
As questões e hipótese expostas possibilitam uma interpretação analítica sobre as
implicações do acesso ao ensino superior, que lhes proporcionou uma apropriação de formas
de luta contra epistemologias dominantes e, consequentemente, de maneira mais enérgica, um
olhar particular, enquanto intelectuais, em relação à Educação. À vista disso, esta pesquisa tem
como objetivo geral analisar o pensamento do intelectual indígena brasileiro sobre educação,
manifesto em teses defendidas em programas de pós-graduação, para compreender seu sentido
político. Consoante ao objetivo principal, delineamos os objetivos específicos:

 realizar revisão bibliográfica de estudos sobre intelectual indígena;

 cotejar o conceito de intelectual indígena;

 debater a relação escolarização e intelectualidade indígena;

 fazer um levantamento de nomes de intelectuais indígenas brasileiros;

 verificar, da relação de intelectuais indígenas brasileiros, os que trataram, em teses, da


questão da educação;

 analisar o pensamento intelectual indígena sobre educação em teses;

 verificar, a partir da materialização do pensamento intelectual indígena brasileiro sobre


educação, seu sentido político.
A intelectualidade indígena e o debate que as suas produções suscitam tornam-se
importantes e substanciais para a reflexão do lugar que as populações indígenas têm procurado
ocupar. A partir dos primeiros acessos às produções textuais indígenas, no campo da pós-
graduação, constatamos que estas são, antes de tudo, um conjunto de conhecimentos rivais, que
buscam superar o apagamento epistêmico da etnia de seus autores. Os produtos convergem para
que se permita pensar sobre o lugar de fala que foi suprimido e da insurgência contra o
apagamento da história e de conhecimentos outros.
20

Esta dissertação discute então conceitos como: intelectualidade indígena, pensamento


indígena, conhecimentos e saberes indígenas, escolarização para os povos indígenas e
epistemologias indígenas. Tais conceitos possibilitam ponderar como a intelectualidade
indígena se constrói e como os processos de escolarização, principalmente no nível superior,
têm possibilitado a defesa de saberes e conhecimentos alternativos ou de conhecimentos que
rivalizam com um conjunto de saberes e conhecimentos eurocentrados.
Além disso, esta pesquisa se propõe a analisar implicações que os processos
anteriormente mencionados de intelectualidade e escolarização têm na construção do próprio
sujeito indígena e como esse processo fortalece e corrobora o discurso indígena que está
assentado no fenômeno educativo como maneira de reforçar formas de resistência a concepções
ocidentais diversas e revitalização da própria cultura indígena.
21

2 PERSPECTIVA METODOLÓGICA DA PESQUISA

Esta dissertação se configura em uma pesquisa do tipo bibliográfica. A pesquisa


bibliográfica, como outros tipos de pesquisa, demanda um conjunto de etapas e procedimentos.
Diferente do que se acredita, esse tipo de pesquisa não possui um modelo de desenvolvimento
e, por isso, apresenta “modelos” que diferem significativamente entre os autores que debatem
o assunto.
É muito comum encontrar uma vasta literatura em que a pesquisa bibliográfica é
confundida com revisão bibliográfica ou revisão de literatura. Para Lima e Mioto (2007), isto
decorre da falta de compreensão de que a revisão bibliográfica é apenas um dos procedimentos
iniciais adotados para a realização de qualquer pesquisa. Para as autoras, a “pesquisa
bibliográfica implica em um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento
ao objeto de estudo, e que, por isso, não pode ser aleatório” (LIMA; MIOTO, 2007, p. 38).
No entanto, antes de se efetuar a pesquisa de caráter bibliográfico, é imprescindível ter
delimitado o tema da pesquisa. Essa delimitação contribui para a formulação de um título e para
o levantamento das referências e bibliografias. Para tanto, é necessário atentar-se para as
categorias levantadas e que expressam coerentemente o conteúdo a ser analisado. Tais
categorias ou termos, advindos do tema, devem ser pesquisados não só em língua portuguesa,
mas em outros idiomas, principalmente em inglês, idioma de grande acesso mundial
(VOLPATO, 2000, apud PIZZANI et al, 2012). Em suma, a pesquisa bibliográfica nos aponta
procedimentos metodológicos bem definidos, mas flexíveis em sua execução.
Pizzani (2012) propõe uma série de passos que foram considerados nesta dissertação:
delimitação do tema, levantamento bibliográfico, fichamento das informações, pesquisas em
sites para a localização do material bibliográfico, localização das fontes, leitura e sumarização
e, por fim, a leitura e elaboração da redação.
De forma similar, Lima e Mioto (2007) apresentam procedimentos delineados por
Salvador (1986) e que devem ser cumpridos, os quais abrangem quatro fases de um “processo
contínuo, onde cada etapa pressupõe a que a precede e se completa na seguinte” (2007, p. 40).
Para Salvador (1986 apud LIMA; MIOTO, 2007, p. 40-41), essas etapas são as seguintes:
a) Elaboração do projeto de pesquisa – consiste na escolha do assunto, na
formulação do problema de pesquisa e na elaboração do plano que visa buscar
as respostas às questões formuladas.
b) Investigação das soluções – fase comprometida com a coleta da
documentação, envolvendo dois momentos distintos e sucessivos:
levantamento da bibliografia e levantamento das informações contidas na
22

bibliografia. É o estudo dos dados e/ou das informações presentes no material


bibliográfico. Deve-se salientar que os resultados da pesquisa dependem da
quantidade e da qualidade dos dados coletados.
c) Análise explicativa das soluções – consiste na análise da documentação,
no exame do conteúdo das afirmações. Esta fase não está mais ligada à
exploração do material pertinente ao estudo; é construída sob a capacidade
crítica do pesquisador para explicar ou justificar os dados e/ou informações
contidas no material selecionado.
d) Síntese integradora – é o produto final do processo de investigação,
resultante da análise e reflexão dos documentos. Compreende as atividades
relacionadas à apreensão do problema, investigação rigorosa, visualização de
soluções e síntese. É o momento de conexão com o material de estudo, para
leitura, anotações, indagações e explorações, cuja finalidade consiste na
reflexão e na proposição de soluções (LIMA; MIOTO, 2007, p. 40-41).

Contudo, esse panorama dos procedimentos da pesquisa bibliográfica se inicia com a


definição de critérios que delimitam a seleção do material. A partir desses critérios são
definidos: a) o parâmetro temático, b) o parâmetro linguístico, c) as principais fontes que se
pretende consultar; d) o parâmetro cronológico de publicação. (LIMA; MIOTO, 2007, p. 41).
Entendemos por parâmetro temático as categorizações existentes nas obras e que são correlatas
ao tema. O parâmetro linguístico faz referência ao idioma das obras consultadas. As principais
fontes a serem consultadas são, em geral, periódicos, livros, teses, dissertações etc. Por fim, o
parâmetro cronológico corresponde ao período determinado para concentrar o estudo ou
pesquisa. Essas definições a serem adotadas são flexíveis, o que facilita a adaptação de um ou
mais critérios em uma pesquisa.
Na pesquisa bibliográfica, o passo seguinte à delimitação do tema é buscar o material
bibliográfico em três tipos de fontes11 informacionais, a saber: fontes primárias, fontes
secundárias e fontes terciárias. Essas fontes, em sua maioria, podem ser encontradas graças ao
avanço das tecnologias da informação e comunicação, bem como ao aumento da produção
científica, em bases de dados de organizações das mais diversas áreas. Isso possibilita que a
maioria das fontes seja encontrada em sítios na internet, usando banco de dados confiáveis e de
credibilidade científica com o intuito de encontrar material bibliográfico coerente com a
pesquisa.

11
Para Pizzani et al. (2012), os trabalhos originais com conhecimento original e publicado pela primeira vez pelos
autores são denominados fontes primárias. Já aqueles que são trabalhos não originais e que basicamente citam,
revisam e interpretam trabalhos originais são nomeados de fontes secundárias. Por fim, as fontes terciárias são
bases de dados, índices ou listas bibliográficas.
23

Portanto, esta pesquisa bibliográfica traz as produções autorais dos intelectuais


indígenas que foram selecionadas como principal fonte, sob a qual aplicamos nossas análises.
Embora esta dissertação tenha a produção intelectual indígena como objeto de análise, para
alcançar a discussão proposta adotamos um conjunto de procedimentos que antecederam a
perspectiva adotada para este estudo. Por meio destes procedimentos, construímos o caminho
a ser percorrido.
Dessa forma, apesar de serem as produções dos intelectuais indígenas o que nos
interessa de fato, para localizar estas obras a princípio foi necessário efetuar a busca pelos
nomes dos intelectuais indígenas brasileiros. Para a localização e levantamento desses nomes,
recorremos a motores de busca na internet como Google e Mozilla Firefox. A partir desses
motores de busca tivemos acesso a blogs, redes sociais e páginas na internet nas quais se divulga
a cultura indígena, seus intelectuais e líderes, bem como o trabalho das populações indígenas
do Brasil.
Entre as páginas eletrônicas a que se teve acesso, destacamos o “Portal Desacato”, o
“Blog do Yaguarê” e a página no Facebook do Instituto UKA – Casa de Saberes Ancestrais,
nas quais localizamos os primeiros nomes de escritores e poetas indígenas e, a partir deles,
outros nomes foram sendo localizados, pois nas páginas pesquisadas cada
autor/escritor/intelectual indígena fazia referência a um grupo ou a outro indígena e à produção
intelectual destes.
Optamos por estas páginas eletrônicas para localização das produções dos intelectuais
indígena, pois, há nelas a veiculação de trabalhos dos sujeitos indígenas. Além disso, devido à
dificuldade em localização dos nomes dos indígenas em programas de pós-graduação
recorremos a estas páginas como suporte.
É importante destacar que a localização dos nomes dos intelectuais indígenas foi
possível graças a essa “rede de referência”12, na qual um indígena menciona outro. Isso, no
entanto, não reduziu as dificuldades que tivemos na localização dos nomes desses intelectuais
indígenas e de suas produções, pois os indígenas, em sua maioria, não utilizam o nome civil,
mas um cognome com o qual divulgam seus trabalhos e ações. Dessa forma, o nome utilizado
para a divulgação da produção autoral indígena nem sempre corresponde ao seu nome civil.
Isso pode ser ilustrado com o nome de Gersem José dos Santos Luciano, que atende, também,
pelo cognome de Gersem Baniwa.

12
Uso este termo como provisório para versar sobre o fato de um indígena mencionar o nome e a produção de
outro indígena em entrevistas e produções autorais diversas.
24

De início, em nosso levantamento, contávamos com um número de aproximadamente


26 indígenas intelectuais, com algum nível de escolarização ou não. Para esta dissertação,
consideramos como intelectuais indígenas sujeitos indígenas que possuem alto nível de
escolarização formal.
Esses sujeitos, com formações diversas, foram categorizados em grupos, segundo a sua
atuação profissional, titulação acadêmica, grande área de conhecimento e sua extensa produção
escrita autoral. Desse modo, interessava-nos intelectuais indígenas, com doutorado dentro do
campo das Ciências Humanas e que possuíssem trabalhos e/ou pesquisas publicadas.
Acreditamos que, devido à natureza escritural desses trabalhos, seja possível analisar a
manifestação do pensamento nesse tipo de produção escrita.
Esses critérios delimitaram ainda mais a identificação dos intelectuais indígenas
brasileiros, pois apenas 12 indígenas tinham produções autorais decorrentes dos cursos de pós-
graduação, dentre estes, seis com doutorado, quatro com mestrado e dois especialistas. Porém
como mencionado, nos interessa aqueles com doutorado, sendo assim circunscrevemos nossas
analises iniciais sobre seis teses.
Uma vez identificados e levantados os nomes dos intelectuais indígenas, o passo
seguinte foi a localização e levantamento da produção intelectual desses sujeitos. Esse
levantamento não se deteve em nenhum outro critério, além de ser uma produção autoral de
indígena. Assim como os nomes dos intelectuais indígenas, a produção intelectual desses
sujeitos também foi tabulada.
Constatamos no levantamento das produções intelectuais indígenas que há uma grande
diversidade de produções. Estas, por sua vez, são materiais audiovisuais, gráficos, músicas,
textos literários, pesquisas científicas, danças, produtos, materiais didáticos e projetos. Entre os
nomes dos intelectuais indígenas que foram identificados, percebemos que as produções são
expressas de diversificadas formas. Tínhamos intelectuais voltados à pesquisa científica
(artigos, livros, dissertações e teses) e aqueles que utilizam formas artísticas (dança, desenho
etc.) como materialização de sua intelectualidade.
Efetuada a tabulação tanto dos nomes dos intelectuais indígenas como de suas
produções, partimos para a etapa da localização de pesquisas que tivessem correlação com os
conceitos delimitados nessa dissertação. Usamos palavras-chave que refletissem de forma
direta aspectos relevantes para esse estudo e com as quais foi possível localizar textos para a
efetivação da análise.
25

Dessa maneira, além da busca pelos nomes dos intelectuais indígenas, também foi feito
o levantamento de bibliografias que debatessem o principal conceito posto nesta pesquisa.
Sendo assim, nesta dissertação, temos o “intelectual indígena” e a “produção autoral indígena”
como conceitos principais, nos quais detivemos nossas buscas. Inevitavelmente, estes termos
possibilitaram o desdobramento do conceito em outras nomenclaturas. Utilizamos nas buscas
do material bibliográfico determinadas palavras-chave, tais como “intelectualismo indígena”,
“etnointelectualismo”, “etnointelectual”, “intelectualidade indígena”, “pensadores
ameríndios”, “mentes indígenas/ameríndias”.
A localização dos trabalhos a partir das palavras-chave ocorreu por meio de motores de
busca na internet e nas principais plataformas acadêmicas, entre as quais se pode mencionar a
plataforma da Capes, a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações e em periódicos de
universidades brasileiras (USP, UnB, Unicamp, UFAM, UFPA etc.). Dessa maneira, o
levantamento de bibliografias a partir das palavras-chave anteriormente mencionadas
possibilitou a formação de um banco de dados.
Consideramos para esta dissertação dois tipos de materiais, assim classificados:
materiais primários e materiais secundários. Definimos como materiais primários aqueles que
seriam analisados dentro da perspectiva teórica adotada, ou seja, aqueles que são produções
autorais dos intelectuais indígenas. Os materiais secundários são as bibliografias que
contribuem para o debate que pretendemos fazer e que não têm necessariamente indígenas
como seus autores.
No que se refere aos materiais primários, ou seja, à produção autoral indígena, além dos
critérios estabelecidos para o autor intelectual indígena, definimos como critério adicional, para
a escolha do trabalho, a ser analisado a correlação que o autor indígena faz com processos
educacionais formais, estejam esses explícitos ou implícitos, no escopo do seu trabalho.
No que tange aos materiais secundários, optamos por utilizar textos que nos ajudassem
a elaborar o debate sobre a intelectualidade indígena no Brasil. Embora quiséssemos
preferencialmente trabalhos sobre o intelectual indígena brasileiro, em nossas buscas
identificamos uma reduzida produção sobre esse tema específico e, por isso, o expandimos para
textos que abordassem a intelectualidade indígena em outros contextos para além do Brasil.
Nesta pesquisa bibliográfica, nosso parâmetro temático foi expresso pelas terminologias
imbricadas à intelectualidade indígena. Isso subsidiou o levantamento de leituras que
estivessem correlacionadas ao tema estabelecido. Estas leituras proporcionaram refletir sobre
estes conceitos e nos ajudaram na construção do debate aqui posto.
26

Consideramos como parâmetro linguístico as obras em português, inglês e espanhol.


Dessa forma, buscamos ampliar ao máximo o número de trabalhos que analisassem a
intelectualidade. Essa amplitude no parâmetro linguístico possibilitou a localização de
produções diversas, ou seja, as fontes de pesquisa consultadas são livros, periódicos, teses e
dissertações.
No que se refere às produções dos intelectuais indígenas brasileiros, utilizamos
produções que tinham “Educação” como parâmetro temático explícito para a delimitação da
obra. Como se trata de um estudo acerca da produção intelectual indígena brasileira, os textos
selecionados estão em língua portuguesa.
Nesta dissertação, optamos por estudos em nível de doutorado, sendo assim,
selecionamos como fontes primárias a serem analisadas as teses sobre Educação, defendidas
por indígenas em programas de pós-graduação no Brasil. Destacamos que entre as teses
levantadas para a análise, consideramos a importância dada à temática educação nessas
produções como fator de seleção.
Para tanto, os critérios para a seleção dos textos a serem analisados foram os seguintes:
a) ser uma produção autoral indígena;
b) ter como autor liderança indígena;
c) ser uma produção acadêmica em nível de doutorado (tese);
d) estar em língua portuguesa;
e) ser produção que desenvolva debates sobre demandas e/ou saberes indígenas, em
articulação com o fenômeno educacional.
Importa mencionar que na pesquisa bibliográfica a leitura é a principal técnica utilizada.
Para Lima e Mioto (2007, p. 41), “é através dela que se pode identificar as informações e os
dados contidos no material selecionado, bem como verificar as relações existentes entre eles de
modo a analisar a sua consistência”.
Por sua vez, na pesquisa bibliográfica, para se alcançar a qualidade na análise de dados,
pode-se utilizar tanto a análise de conteúdo quanto a análise do discurso para traçar soluções
ou tecer avaliações sobre seus fenômenos, sujeitos ou objetos a serem analisados/pesquisados.
Esses tipos de análises pressupõem o trabalho de análise aplicado à linguagem, bem
como as inferências advindas dela. Ainda que apresentem similaridades, essas duas correntes
de análise de texto têm distanciamentos bem delineados e divergem no modo como estudam a
linguagem.
27

Nesta pesquisa bibliográfica, fizemos a análise da produção dos intelectuais indígenas


a partir das formas como estes (se) expõem e, consequentemente, como manifestam suas
proposições sobre os objetos analisados em suas teses. Para tanto, utilizamos a análise do
conteúdo como técnica para analisar o que se propõe, pois, conforme Bardin (1977), ela é:

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por


procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das
mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis
inferidas) destas mensagens (BARDIN, 1977, p. 42).

A análise de conteúdo tem sua técnica aplicada à linguagem, por isso “trabalha a palavra,
ou melhor, a prática da língua realizada por emissores identificáveis” (BARDIN, 1977, p. 43).
Esta técnica considera as significações e, eventualmente, sua estrutura e a distribuição dos
conteúdos e forma.
Concomitante às técnicas de análise do conteúdo, para alcançar os objetivos desta
pesquisa, adotamos alguns pontos de partida para analisar os textos escolhidos, entre os quais
destacamos:
a) estrutura das teses;
b) as motivações apontadas pelos autores para cursarem a pós-graduação;
c) as abordagens constantes nas teses;
d) as concepções expressas sobre educação;
e) a discussão sobre identidade indígena;
f) as discussões sobre estereótipos das identidades indígenas;
g) as concepções de identidades indígenas;
h) a tradução da memória ancestral (cultural e individual).
A pesquisa bibliográfica foi escolhida por conta da natureza do problema de pesquisa.
Esse tipo de pesquisa é vantajoso porque permite uma otimização do tempo para produção e
viabiliza a análise e cobertura de uma “gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela
que poderia pesquisar diretamente” (GIL, 2002, p. 45).
Por sua vez, a pesquisa bibliográfica traz, em suma, como afirma Gamboa (2003), uma
abordagem qualitativa, que tem como foco fazer o levantamento de dados de grupos específicos
para compreender e interpretar as motivações de certos fenômenos, opiniões e expectativas dos
28

indivíduos em um dado contexto. Além de sua abordagem qualitativa, a pesquisa bibliográfica


é exploratória, pois proporciona a familiarização a respeito de um dado fenômeno, sujeito,
objeto.
Desse modo, ao abordar a característica dos estudos exploratórios, Triviños (1987) deixa
evidente que esse tipo de estudo permite ao investigador aumentar sua experiência com um
determinado tipo de problema, visto que o pesquisador parte da hipótese para aprofundar seu
estudo nos limites de uma realidade específica.
Para a elaboração dos procedimentos utilizados nesta pesquisa, adotamos os passos
indicados por Salvador (1986 citado por LIMA; MIOTO, 2007) e por Pizzani et al. (2012).
Sendo assim, foram adotadas as seguintes etapas:

Etapa de Levantamento das informações

 levantamento das leituras sobre os conceitos, tais como intelectualidade indígena,


pensamento indígena, identidade étnica, epistemologia indígena;

 levantamento dos nomes dos intelectuais indígenas com alto nível de escolarização
formal, que têm produções autorais em diversos formatos (seja digital ou material)
e natureza (livros, artigos, notas, monografias, entrevistas, dissertações, teses);

 levantamento das produções autorais dos intelectuais indígenas. entre as produções,


consideramos produções textuais em formato de artigos, livros, monografias,
dissertações e teses;

 Levantamento de fontes secundárias em português, inglês e espanhol.

Etapa de tabulação dos dados levantados

 tabulação das produções publicadas sobre intelectualidade indígena ou termos


similares (etnointelectualidade, intelectual ameríndio, intelectual indígena etc.)
para identificar o gênero textual desses trabalhos, sobre que tipo de intelectuais
indígenas se constroem os debates e onde são publicados;

 tabulação dos nomes dos intelectuais indígenas identificados. essa tabulação teve a
adoção de critérios como nível de escolarização, atuação profissional, produções
autorais publicadas, gênero textual dessas publicações, área de concentração dessas
produções quando se trata de trabalhos resultantes de programas de pós-graduação;
29

 tabulação da produção científica escritural dos intelectuais indígenas doutores que


atuam como professores, dentro da área das ciências humanas e que têm uma
extensa produção cientifica ou literária;

Etapa de leitura e seleção dos dados

 leitura do material coletado para debater a intelectualidade indígena. optamos


preferencialmente por trabalhos que retratam a intelectualidade indígena brasileira.
na ausência desses, utilizamos produções de contextos não brasileiros;

 leitura da produção autoral dos intelectuais indígenas, ou seja, das teses defendidas
em programas de pós-graduação.

Análise dos dados

Como elencado em momento anterior, a pesquisa bibliográfica tem na leitura sua


principal técnica. Por isso, para analisarmos a manifestação do fenômeno educativo na
produção acadêmica indígena, foi necessário utilizar diferentes estilos de leitura. Esses “estilos”
de leitura iniciam com a leitura exploratória do material para localizar os pontos comuns mais
evidentes entre as obras e seus autores. Em seguida, a leitura seletiva, tentando identificar
características estruturais menos evidentes e perceptíveis na etapa anterior. Posteriormente, na
leitura crítica, busca-se refletir sobre os aspectos comuns e diferentes das obras escolhidas; e,
por fim, na leitura interpretativa, é analisada a maneira como o autor se posiciona/manifesta
ideologicamente acerca da questão indígena e da educação.
Durante a execução dos diferentes estilos de leitura, cada discurso foi separado de forma
direta, identificando-se a temática central do enunciado e, posteriormente, efetuando a análise
do conteúdo nele presente. Em Bardin (1977), essa técnica, que antecede a análise em si, é tida
como uma etapa inicial da análise de conteúdo e se caracteriza como a “preparação do material”
para a análise da enunciação que, por sua vez, pode ser efetuada em diversos níveis.
Inicialmente, nas teses dos intelectuais indígenas, elencamos para análise: a) a estrutura
adotada no texto; b) as motivações pessoais para se escrever a produção; c) as abordagens
trazidas nas teses; d) a inter-relação indígena e Educação; e) como se dá a manifestação do
pensamento; f) se os textos contribuem para a valorização da identidade indígena e da memória
ancestral.
30

Diante do exposto, esta dissertação tem a análise de conteúdo como metodologia, pois,
enquanto tal, possibilita compreender a produção autoral indígena para além de sua estrutura
morfológica e sintática. Conforme Bardin (1977), a análise de conteúdo é organizada em torno
da pré-análise, da exploração do material e do tratamento dos resultados, da inferência e da
interpretação.
A exploração do material se deu pela exclusão e agrupamento dos itens identificados,
ou melhor, os enunciados foram agrupados por “temática” para posterior interpretação e
organização dos resultados. A interpretação dos dados se deu pelo cotejo entre enunciados
comuns e específicos.
Diante das escolhas dos conceitos e do levantamento bibliográfico, pudemos construir
um debate que possui, dentro de sua perspectiva, caráter original. A originalidade atribuída a
esta pesquisa se deve à ausência de trabalhos que tratam da manifestação do fenômeno
educativo no pensamento dos intelectuais indígenas brasileiros, materializado em produções
autorais.
A organização desse estudo constituiu-se do levantamento, seleção e análise das
produções bibliográficas que norteiam o estudo das categorias pré-estabelecidas. Esse
levantamento possibilitou a elaboração de quadros nos quais estão os dados dessas
bibliografias.
Ademais, como utilizamos textos produzidos em programas de pós-graduação, ou seja,
teses dos cursos de doutorado de instituições brasileiras para construir a análise do problema
deste estudo, foi preciso localizar as produções dos indígenas em seus referidos cursos e
instituições e a partir delas desenvolver a análise.
É importante destacar que os critérios adotados para a escolha do intelectual bem como
de sua produção nos permitiram a identificação de quatro teses que se propõem a debater
relações, saberes, demandas e resistências, a partir do fenômeno educativo.
Analisamos os seguintes textos e respectivos intelectuais indígenas: 1) “A Educação
Karipuna do Amapá no contexto da Educação Escolar Indígena diferenciada na Aldeia do
Espírito Santo”, de Edson Machado de Brito (Edson Kayapó, 2012); 2) “Áudio Visual na Escola
Terena Lutuma Dias: Educação Indígena Diferenciada e as mídias”, de Naine Terena de Jesus
(2014); 3) “Educação para o manejo e domesticação do mundo: entre a escola ideal e a escola
real – Os dilemas da Educação Escolar Indígena no Alto Rio Negro”, de Gersem José dos Santos
31

Luciano (Gersem Baniwa, 2011); 4) “O caráter educativo do movimento indígena brasileiro


(1970-1990)”, de Daniel Monteiro Costa (Daniel Munduruku, 2012)13.
Para alcançar o objetivo delineado nesta dissertação, a análise do conteúdo foi usada
como procedimento que corroborou para com a análise das investigações feitas, possibilitando
inferir como, a partir dos seus lugares de fala, esses sujeitos indígenas se constroem como
intelectuais e materializam seu pensamento sobre o fenômeno educativo.
.

13
Este trabalho foi publicado em formato de livro, em 2012, pela Editora Paulinas.
32

3 REFLEXÕES SOBRE O PENSAMENTO INTELECTUAL INDÍGENA

Os indígenas no Brasil têm percebido a urgente importância de reivindicar espaços para


a atuação em prol de seus pares. Desejam por si mesmos representar suas populações, almejam
superar os porta-vozes ou “benfeitores” que os mantêm silenciados. Esses sujeitos ou
entidades14, segundo Santillana e Quevedo (2013), que se mantêm dentro de um pensamento de
esquerda e vinculados ao movimento indígena, se intitulam representantes dessa população e
convertem-se em articuladores, assessores ou interventores que desenvolvem discursos e
políticas para os indígenas.
Além do notório silenciamento, parafraseando Lisboa (2017), esse comportamento
promove relações de dependência das populações indígenas e impossibilita o seu protagonismo
e autonomia, mantendo-as numa relação paternalista e tutelada em relação aos porta-vozes. Tais
relações só podem ser superadas, segundo Baniwa (2009), pela apropriação indígena dos
processos de escolarização, tanto no ensino básico quanto superior.
Aliás, os povos indígenas, segundo Lisboa (2017), reconhecem que aprender o saber
dos brancos é uma estratégia para obtenção de acesso, prestígio e poder nos ambientes não
indígenas. Tal estratégia serve ao menos como modo de tentar solucionar problemas gerados
nesses espaços. Esse pensamento de enfrentamento crítico às condições impostas aos povos
indígenas está associado a uma pedagogia que questiona a colonialidade.
Ao apoiarem-se em uma crítica pós-colonial, os sujeitos subalternizados querem superar
o olhar que os subjuga como objetos pesquisáveis e, por sua própria perspectiva de mundo,
frente à colonialidade imposta, desejam retomar sua posição enquanto sujeitos. Por
consequência, estaria o indígena, enquanto nativo, segundo Carvalho (2001), construindo sua
alteridade na medida em que retruca, de um lugar subalterno, o olhar do colonizador sobre si.
Isto, em suma, é um modo alternativo de mostrar-se, construir-se e (in)surgir-se.
Esse modo alternativo está circunscrito a um olhar descentrado. Derrida (1971,
mencionado por CARVALHO, 2001), nos afirma que isto só foi possível quando a cultura
europeia foi deslocada, expulsa de um lugar que a colocava como cultura de referência. O
deslocamento ou descentramento do Ocidente, para Stuart Hall (2005, p. 67), é resultante de
“um complexo de processos e forças de mudança, que, por conveniência, pode ser sintetizado

14
Santillana e Quevedo (2013) denominam estes sujeitos ou entidades de intelectuales mestizos (intelectuais
mestiços). Os autores partem das contribuições de Angél Rama (1985) e Andrés Guerrero (1994) para construir
em seu ensaio esta nomenclatura e as implicações dela dentro do movimento indígena equatoriano.
33

sob o termo ‘globalização’” (2005, p. 67). A globalização, aliás, gerou efeitos paradoxais que
em certa medida fomentam e/ou confrontam os universalismos e binarismos produzidos em sua
expansão.
Consequentemente, graças ao deslocamento do Ocidente, pôde-se redescobrir os olhares
sobre aquilo que Boaventura de Sousa Santos denomina epistemologias do Sul. Para Santos
(2005), as epistemologias do Sul conformam um conjunto de intervenções epistemológicas que
denunciam a supressão de certos saberes e conhecimentos mediante uma epistemologia
dominante. As epistemologias do Sul valorizam os saberes que resistem, bem como as reflexões
que estes produzem e o diálogo15 horizontal que promovem.
Para reivindicar uma posição outra, os indígenas têm enfrentado os processos coloniais
que são muito presentes e concretos em seu cotidiano. Para tanto, utilizam ferramentas para
consolidar suas lutas diante da constante opressão a que são submetidos.
Dentre as ferramentas utilizadas, as populações indígenas do Brasil têm encontrado na
Educação um recurso de subversão às intempéries coloniais impostas. Elas têm recorrido à
escolarização para superar e enfrentar a sua condição de objeto, facilmente representável,
submetido ao Outro.
Ao apropriarem-se da educação como recurso de enfrentamento, utilizam a
Universidade Pública. A mesma universidade que, conforme Mattioli (2015), opera a partir de
concepções e representações forjadas nas relações coloniais, definidas na matriz epistemológica
ocidental, eurocentrada e racializada.
Consequentemente, apropriam-se de uma Pedagogia Decolonial, conforme
pressupostos delineados por Catherine Walsh (2013), Paulo Freire (1996) e outros autores
importantes, para se insurgirem e enfrentarem os impropérios que os atingem. Nessa
perspectiva teórica, por meio de processos educacionais, pedagógicos e críticos, é possível
construir e ocupar um lugar em que epistemes, outrora negadas, fortalecem e emancipam os
sujeitos antes silenciados/objetificados e que são os produtores dessas mesmas epistemologias
“marginalizadas”.
Dessa forma, as populações indígenas estão, cada vez mais, adentrando os espaços nos
quais se produz um saber ocidental para questioná-lo e propondo seus modelos de ecossaberes
ou suas epistemologias. Não raro, porém, em quantidade ainda insuficiente, é possível encontrar
muitos indígenas nas universidades de grandes centros de estudo e pesquisa. O ingresso dos

15
Esse diálogo entre saberes Boaventura de Souza Santos (2004) designa “ecologia de saberes”.
34

indígenas à Universidade se deu graças à implementação de leis e políticas públicas originadas


dos movimentos sociais.
Diante desse acesso aos sistemas de ensino superior, as populações indígenas tentam
romper estruturas sociais e psicológicas que geram uma representação sobre si como primitivos,
selvagens, dependentes, sem capacidade de pensamento complexo. Para tanto, apoiam-se na
crítica pós-colonial para desfamiliarizar experiências racializadas inscritas nas ciências e
desconstruir hierarquizações entre conhecimentos. Por sua vez, a presença indígena na
universidade nos possibilita compreender o modo como se relaciona com a Ciência.
Embora não seja regra, muitos indígenas, por acessarem as instituições de ensino
superior, materializam em artigos, monografias, dissertações e teses a maneira de observar e de
se relacionar com a natureza para construir saberes científicos legitimados pela própria
universidade. É interessante destacar que essa apropriação da universidade representa, de forma
mais perceptível, a resistência dos indígenas às epistemologias ocidentais que têm nesta
instituição sua legitimação.
O ingresso de indígenas às universidades, principalmente em programas de pós-
graduação, tem contribuído para a emergência no meio indígena e acadêmico de uma nova
categoria que, atualmente, é reconhecida como sujeito intelectual, ou melhor, como intelectual
indígena. Há algumas produções em âmbito nacional e/ou internacional que abordam essa
categoria e as implicações a ela correlatas.
É importante esclarecer que o intelectual indígena pode ser definido como alguém que
possui tanto o conhecimento tradicional da oralidade, de métodos ancestrais, quanto o
conhecimento ocidental, que tem status de científico. Ao ingressar nas universidades, os intelectuais
promovem novas discussões e debates sobre como enxergar o conhecimento a partir de diferentes
pontos de vista e culturas. (NASCIMENTO, 2017).
A adoção de modelos fixos do que seja a intelectualidade limita-nos a olhar o sujeito
indígena intelectual. Segundo Almeida (2010, apud NASCIMENTO, 2017) há duas ideias
essenciais que nos limitam olhar para o outro: a primeira diz respeito ao entendimento de que
“somente os portadores da cultura científica podem ser considerados intelectuais”; a segunda deve-
se ao fato de que de acordo com “a concepção ocidental, o intelectual formado na academia é o
único e legítimo detentor do saber e das explicações sobre os fenômenos que tomam a sociedade”
(NASCIMENTO, 2017, p. 19).
Obviamente que, como aponta Nascimento (2017), essa limitação sobre a concepção de
intelectual e intelectualidade cria padrões de exclusão social, preconceito, ignorância e a
35

marginalização das sociedades indígenas, haja vista que o saber ocidental é posto em um status de
superioridade em relação aos conhecimentos que se desviam do seu modo de expressão.

A intelectualidade indígena, por sua vez, enquanto qualidade do sujeito intelectual, é


caracterizada pela compreensão analítica que este sujeito tem dos processos e situações que
estão ao seu redor, que lhe permite conjecturar e comparar passado, presente e futuro. Essa
intelectualidade, portanto, não é acionada, mas está presente em todas as situações existenciais
e é reformulada em relações interculturais e intercientíficas (NASCIMENTO, 2017)
No Brasil, constata-se que o intelectual indígena, enquanto categoria, não foi
suficientemente estudado. As produções existentes ainda são em números muito incipientes e
se dedicam, em primeira instância, a analisar como se dá a recepção aos sujeitos indígenas pela
universidade, quais os desdobramentos advindos da presença indígena, as políticas
educacionais para acesso e permanência das populações indígenas.
Nas produções nacionais, em programas de pós-graduação, seja em mestrados seja em
doutorados, o debate sobre a construção da intelectualidade indígena ainda está em fase bastante
embrionária. Em sua maioria, as produções científicas brasileiras que tentam trazer à luz
debates sobre intelectualidade indígena estão circunscritas a artigos e, devido à natureza e
limites desse tipo de produção, apresentam capacidade reduzida de problema e hipótese.
Diante disso, apoiamos nosso debate acerca da intelectualidade indígena em autores
como Ibarra (1999), Hireme (2002), Silva (2005, 2007, 2008), Simón (2009), Tapia e Campos
(2013), Aires (2014), Bergamaschi (2014), Freitas (2015) e Lisboa (2017), que abordam em
suas produções esse tipo de intelectual como sujeito de suas reflexões. Cada um desses autores,
invariavelmente, traz em suas produções acadêmicas pontos que convergem ou que se
diferenciam entre si.
O artigo intitulado Intelectuales indígenas, neoindigenismo e indianismo en el Ecuador,
de Hernán Ibarra, publicado em 1999, apresenta-nos um debate acerca da construção da
identidade indígena no Equador e seus enfoques. Salienta que a partir da inserção de intelectuais
indígenas em organizações e entidades, essa identidade indígena foi sendo reconstruída sem
estereótipos. Descreve, também, como os indigenistas e neoindigenistas assumiram o papel de
porta-vozes dos indígenas, consequentemente, evidencia aspectos históricos do processo que
culminou na valorização do indígena e sua cultura e como isso repercutiu na concepção sobre
a identidade étnica/indígena equatoriana
Por sua vez, em sua dissertação de mestrado, intitulada Cultural Theory Made Critical:
Towards a Theory of the Indigenous Intellectual (Teoria Cultural Crítica: Rumo a uma Teoria
36

do Intelectual Indígena), que foi defendida em 2002, Hemi T. R. Hireme defende que as teorias
cognitivas e de poder subestimam o sujeito indígena enquanto intelectual. O autor, no debate
proposto, questiona a teoria crítica ocidental existente e pressupõe a construção de uma teoria
intelectual indígena. Para tanto, examina a teoria crítica ocidental para ponderar sobre as
relações de dominação colonial e apresenta uma teoria cultural crítica do intelectual indígena
como resposta.
O intelectual indígena é, também, ponto nodal nos escritos de Claudia Zapata Silva:
Origen y función de los intelectuales indígenas (2005), Intelectuales Indigenas piensan
América Latina (2007) e Los Intelectuales Indígenas y el pensamento anticolonialista (2008).
Esses artigos convergem para contextos sócio-históricos que proporcionaram a emergência do
intelectual indígena, bem como contribuem para repensarmos as teorias e epistemologias
ocidentais na América Latina em relação a esse intelectual.
De maneira similar, Juan de Dios Simón, em Intelectuais indígenas e formação de
talentos humanos (2009), aborda em seu artigo a importância da formação escolar para os povos
indígenas como direito que viabiliza a emergência de profissionais e intelectuais indígenas.
Além disso, Simón (2009) declara que os intelectuais indígenas contribuem para a melhoria da
qualidade de vida e bem viver dos indígenas, da formação de talentos humanos indígenas para
um governo melhor e bom, dentro da perspectiva indígena. São esses também que determinam
e elaboram as prioridades e estratégias para o exercício do seu direito de desenvolvimento.
Em Claro de Luz: descolonización e intelectualidades indígenas en Abya Yala, siglo
XX-XXI, livro editado e organizado em 2013 por Pedro C. Tapia e Carmen R. Campos, o que
se propõe é pensar a emergência intelectual indígena, os processos de formação escolar, os
desafios e direitos das populações indígenas. Os autores trazem, nos escritos que compõem a
obra, debates que partem de realidades de povos indígenas específicos, tais como os Mayas, os
Mapuche e outras populações indígena bolivianas e equatorianas para alcançar uma reflexão
sobre a realidade de outros povos indígenas da América Latina.
Max Maranhão Piorsky Aires, em artigo intitulado Antropologia no México e a invenção
do intelectual indígena (2014), analisa como uma determinada Antropologia no México –
estruturada a partir do indigenismo e marcado por lutas de descolonização – definiu e define o
intelectual indígena. Enfatiza como os “antropólogos críticos” politizaram o lugar de intelectual
e se colocaram como mediadores entre o indígena e as epistemes antropológicas. O autor
considera que o ideal seria ter formado indígenas como antropólogos para que não precisassem
dessa mediação.
37

No ensaio Intelectuais indígenas, interculturalidade e educação, publicado em 2014,


Maria Bergamaschi discute o conceito de intelectualidade indígena, apresentando a emergência
desse tipo de intelectual, tendo como base a realidade dos povos Kaingang e Guarani. Para
tanto, a reflexão proposta pela autora parte da perspectiva de professores, estudantes, lideranças
tradicionais, velhos e sábios, os “filósofos da oralidade” que acompanharam o processo
educacional, de escolarização e as escolas desses povos indígenas, bem como a presença
indígena na universidade, nos cursos de graduação e pós-graduação. Os diálogos desses sujeitos
convergem para situações em que os conhecimentos indígenas e não indígenas, ao serem
acionados, sugerem uma interculturalidade.
Quando se trata de intelectualidade indígena no Brasil, os estudos abordam as
contribuições de programas educacionais que fomentam o surgimento desse intelectual. O livro
organizado por Ana Elisa de Castro Freitas, denominado Intelectuais indígenas e a construção
da universidade pluriétnica no Brasil (2015), é uma dessas produções. Nessa obra, os autores
se propõem a refletir sobre as repercussões e experiências do Programa de Educação Tutorial
(PET) que foi implantado e executado nas Universidades Federais do país e como esse
programa incidiu diretamente no acesso das populações indígenas a essas instituições.
Mais recentemente, o artigo Escolarização e intelectuais indígenas: da formação à
emancipação (2017), de João Francisco Kleba Lisboa, versa sobre a concepção que os
intelectuais indígenas possuem a respeito dos conhecimentos e práticas de ensino ocidentais. O
texto reflete o quão traumático e doloroso pode ser o processo de escolarização imposto aos
povos indígenas, sendo este embasado em concepções europeias de indivíduo, natureza e
cultura. Além disso, disserta sobre a interpretação dos intelectuais indígenas acerca da
apropriação dos saberes não indígenas para a emancipação dos povos originários. Traz, por
conseguinte, as experiências da educação indígena no estado de Roraima, inclusive em nível
superior, sobretudo dos povos Macuxi e Wapichana. Finaliza mencionando que a presença
indígena na universidade possibilita o encontro de diferentes saberes e amplia as estratégias de
política indígena em nível local.
As produções dos autores anteriormente citados, ao debaterem a intelectualidade
indígena, estão ancoradas em determinadas perspectivas que contribuem para refletir sobre elas
e analisar questões para além do acesso, ingresso e permanência dos indígenas na universidade.
O acesso da população indígena ao ensino superior possibilita formas de análise a esse
recente fenômeno. Essas análises podem abranger desde os questionamentos às políticas
38

nacionais até a construção do sujeito e seus modos de enfrentamento diante das subalternidades
e dos silenciamentos a eles impetrados.
Esta dissertação pretende, em particular, construir um olhar para além do acesso,
ingresso e permanência dos indígenas na universidade. Intencionamos debater como, a partir
desse reconhecimento intelectual pela universidade, o indígena tem materializado o seu
pensamento atrelado ao fenômeno educativo para revidar e combater o olhar colonialista.
39

4 INTELECTUAIS INDÍGENAS BRASILEIROS

A presença do intelectual indígena brasileiro tem sido reconhecida nos meios


universitários. Esse recente reconhecimento se deve a importantes mudanças históricas que
foram possíveis graças a reivindicações advindas dos movimentos indígenas. No Brasil, embora
haja reconhecimento desse intelectual, pouco se tem estudado sobre esse sujeito, sua produção
e suas formas de resistência.
Poucas também são as produções que abordam a intelectualidade do indígena brasileiro
e descrevem sua trajetória. Dessa forma, não nos parece incomum que para se debater, mesmo
que de modo breve, sobre a intelectualidade do indígena brasileiro, precisemos recorrer a textos
que, apesar de não buscarem retratar a realidade indígena brasileira no campo intelectual, nos
sinalizam como o processo de intelectualidade indígena se deu na América Latina.
Os estudos sobre intelectualidade indígena nos permitem “tipificar”, ainda que de modo
bastante genérico, os intelectuais indígenas brasileiros em um grupo específico de acordo com
seu “perfil intelectual”. Consideramos, para esta dissertação, como intelectuais indígenas
sujeitos indígenas que passaram por processos de escolarização no ensino superior, em
programas de pós-graduação e que possuem uma notável produção escritural publicada.
Ainda que tenhamos delimitado à esfera universitária os intelectuais que analisamos
nesta dissertação, reconhecemos que há intelectuais indígenas brasileiros que sequer passaram
por processos formais de escolarização, mas que fazem relevantes debates e constroem um
pensamento intelectual bem articulado e coerente com sua experiência indígena. Por isso,
concordamos com Gersem Baniwa quando afirma que para ser um “intelectual indígena16” não
necessariamente é imprescindível ser “escolarizado ou intelectualizado no campo acadêmico
como a denominação sugere” (LUCIANO, 2011, p. 171).
Embora sinalizemos concordância com o entendimento de Gersem Baniwa sobre a
intelectualidade indígena, mostramo-nos contrários ao termo que esse autor propõe para
denominar esses sujeitos intelectuais, pois acreditamos que tal nomenclatura é demasiadamente
generalizante e desloca esses indígenas da condição de sujeitos que desempenham atividades
de natureza mental e produzem importantes pensamentos e conhecimentos.

16
Gersem Baniwa para o termo intelectual indígena sugere a denominação de “novas lideranças políticas” que
para ele representa um conjunto mais amplo de atores (LUCIANO, 2011, p. 171).
40

Para entendermos o que é ser um intelectual indígena, dentro da perspectiva proposta


nesta dissertação, é preciso, antes de tudo, retomar, mesmo que de forma breve, o percurso
histórico de emergência desses intelectuais.

4.1 A EMERGÊNCIA DO INTELECTUAL INDÍGENA

O declínio dos impérios coloniais do século XIX e o processo de descolonização


estimulou o aparecimento de outras vozes (intelectuais) e colocaram em crise o universalismo
e o modelo de intelectual que fora imposto por esses impérios e que se vinculavam a um padrão
europeu.
É durante o século XX que a emergência do intelectual indígena fica mais evidente. Ela
acontece em meio a mudanças que nesse período foram experimentadas pelos países latino-
americanos, tal como o processo de modernização que começou no início do século, o qual foi
direcionado aos indígenas. Em muitos casos, foram eles os destinatários diretos desse processo
por meio de políticas integracionistas formuladas a partir de uma matriz indigenista (SILVA,
2005, p. 70).
Segundo Tapia (2014), o intelectual indígena emerge graças aos movimentos indígenas
da América Latina, que mostraram uma surpreendente revitalização e ressignificação
simbólica, política, cultural e social, que se irradiou em outros países como Brasil, México,
Guatemala, países andinos e Chile, que foram influenciados e acompanharam essa mudança.
Embora não se saiba precisar seu surgimento, a democratização de espaços antes
elitizados aos sujeitos subordinados possibilitou o aparecimento de outros tipos de intelectuais.
Silva (2005, p. 68) acrescenta que não se pode afirmar que o intelectual indígena surgiu com a
modernidade, pois muito antes desse processo estes grupos possuíam “constructores de
discursos, de representaciones y especialistas en la transmisión del conocimiento, sea este de
tipo político, religioso o histórico”.
É importante mencionar que os intelectuais indígenas emergiram e foram reconhecidos
a partir da composição de um grupo de indígena escolarizado17, que só foi possível mediante a
abertura gradual do sistema educacional aos setores popular e indígena, no entanto, para estes

17
Cf. Silva (2005); Chong (2012), Ibarra (1999) e Rama (2004).
41

últimos, algumas dificuldades estruturais18 acarretaram o aparecimento tardio de profissionais


e intelectuais.
A constituição de um grupo indígena intelectualmente formado no Brasil, de maneira
similar a outros países da América Latina, é decorrente do acesso às instituições de ensino dos
diversos níveis que se iniciou por meio de políticas19 integracionistas e/ou afirmativas. No que
tange à educação básica, desde o início do século XX há registros dessa inserção dos indígenas
nos sistemas educacionais. Já na educação superior, as primeiras ações mais expressivas
ocorrem em 2001 e se ampliam com o Programa de Educação Tutorial Indígena que foi
recebido e executado pelas universidades federais do país.
A emergência indígena e sua intelectualidade, de acordo com Martí (2004), é uma
resposta histórica que está relacionada aos marcos da (re)democratização, que iniciam em 1980
nos países latino-americanos e compeliram os governos a introduzirem em suas agendas as
demandas e aspirações históricas das populações indígenas (TAPIA, 2014, p. 191).
Concomitantemente a esse elemento, existem outros que justificam a eclosão indígena, como a
experiência de diálogo e participação que os movimentos permitiram.
Na atualidade, a emergência do intelectual indígena se dá de modo diferenciado de seus
predecessores, pois estes “novos” sujeitos são os primeiros a reconhecer a importância do
intelectual indígena, por isso mesmo estão preocupados em dignificar e legitimar os
conhecimentos que ocorrem oralmente e que estão circunscritos a suas redes parentais e
comunitárias (SILVA, 2005). Para Claudia Zapata Silva, essa preocupação possibilita irradiar
em outros setores da sociedade uma diversidade de tipos de compilações que teriam na escrita
sua fixação.
No Brasil, “intelectual indígena” é um conceito que tem emergido para designar,
preferencialmente, os indígenas que conseguiram acessar as instituições de ensino nas mais
diversas áreas do conhecimento e, a partir disso, se apropriar da escolarização como um
instrumento de luta para reivindicar a seu povo reconhecimento e direitos que estejam alinhados
a sua perspectiva de mundo em harmonia com a natureza.

18
Dentre as quais destacamos: a dificuldade de implantação de escolas em áreas rurais distantes ou de difícil
acesso; a inserção do nível primário e tardiamente o secundário, bem como reduzida possibilidade de migração
dos sujeitos indígenas para os centros urbanos, a escassez de políticas de acesso e permanência dos indígenas
nas universidades.
19
Cf. Freitas (2015), que aborda com maior detalhe as repercussões do Programa de Educação Tutorial Indígena
como política afirmativa
42

Esse termo, como aponta Bergamaschi (2014, p. 12-13), é polissêmico, pois introduz
uma concepção exógena que expressa uma compreensão ocidental de conhecimento,
hierarquizando quem, como, para quem e onde se produz esse conhecimento. Além disso, reduz
a compreensão que os indígenas possuem sobre conhecimento e que tal compreensão não se
limita ao intelecto, mas à inteireza da própria relação de totalidade com seu corpo e natureza.
Por sua vez, Simón (2009) enfatiza que o intelectual indígena é definido através de seu
pensamento (ideológico e filosófico), desenvolvido e construído a partir de sua própria
concepção do mundo e da vida. Esse intelectual reflete criticamente sobre a realidade e propõe
intervenções sociais, críticas, econômicas e políticas, sem deixar de considerar sua identidade
comunitária e própria visão de mundo.
Embora nos pareça um conceito novo, o termo intelectual indígena é usado desde o
século XIX e serviu para designar uma “classe culta”. Posteriormente, ganhou um sentido
político. É a partir do conceito de intelectual orgânico, desenvolvido por Gramsci (1982), que
o intelectual indígena delineia sua atuação. De forma geral, o intelectual indígena se revela “na
luta por reconhecimento, pelo direito a relações simétricas, pela afirmação de seus valores,
conhecimentos, direitos políticos e sociais” (BERGAMASCHI, 2014, p. 12).
Em consonância com o conceito de intelectual orgânico, proposto por Gramsci, o
intelectual indígena é compromissado com seu grupo social, com seu povo e/ou com a luta da
população indígena. Esse intelectual deseja impulsionar toda uma sociedade e não somente
parte dela, busca superar a relação de poder-dominação, estando intimamente ligado com a
cultura e com os projetos de seu grupo (BERGAMASCHI, 2014; SEMERARO, 2006).
Conforme o que fora anteriormente posto, Simón (2009) acrescenta que o “intelectual
indígena desenvolve uma epistemologia externalista20 em coerência com a totalidade e
interdependência da sabedoria indígena e do conhecimento científico”. Dessa maneira, o
intelectual indígena se preocupa e inter-relaciona a sua cosmovisão com a ciência
ocidentalizada, objetiva mudanças, mas, a serviço de outros, do meio ambiente, alinhadas à
equidade e ao equilíbrio espiritual e material (SIMÓN, 2009).

20
O Externalismo epistemológico constitui-se de uma ampla família de teorias do conhecimento ou da justificação
epistêmica que têm em comum a dispensa do requisito de acessibilidade para a justificação epistemológica. Esta
teoria surge como oposição ao Internalismo. De forma genérica, o externalismo é a teoria que defende que somos
motivados pelas coisas do mundo externo, estas determinam os sentidos e justificam nossas crenças. Assim
sendo, a mente consciente não é resultante apenas das funções biológicas, mas, também, da relação com o mundo
exterior (LUZ, 2009; KETZER, 2010; ROLLA, 2013).
43

De forma semelhante, Silva (2007, p.116) se refere aos intelectuais indígenas como
sujeitos de origem indígena que constroem sua produção intelectual em torno de seus “coletivos
culturais de origem”, que reconhecem o peso das circunstâncias históricas em suas obras e se
constituem a partir delas. Assim, Silva (2007, p. 116) afirma:

Estas características me llevan a entender al intelectual indígena como el


producto de un complejo entramado cultural, histórico y político, cuya
principal característica es la de ser, precisamente, un intelectual situado que
reconoce su contexto, define intereses y toma posición frente al objeto
analizado. Una posición que no está libre de tensiones, sobre todo en el caso
de aquellos que formulan sus discursos desde disciplinas que apelan -velada o
abiertamente- a la objetividad y al rigor científico (SILVA, 2007, p. 116).

O intelectual indígena, devido ao entrelaçamento lógico que faz entre sua cosmovisão e
o rigor da cientificidade ocidentalizada, pode ser classificado como um sujeito do entrelugar
que, embora se reconheça indígena, intenta superar os estereótipos aplicados a si, usando a
escrita e o discurso ocidentalizado como instrumentos da “civilidade”.
Na América Latina, devido a sua recente construção enquanto categoria de análise, o
indígena como intelectual condensa, em seu conceito, diferentes variantes. Segundo Marín
(2009), os intelectuais indígenas contemporâneos podem ser analisados com base na sua
identidade étnica enquanto “carta de apresentação”, nas relações estabelecidas com e em suas
comunidades de origem e, por último, na especialidade ou do grau acadêmico.
A partir dessas variantes, é possível, para Marín (2009), identificar três tipos principais
de intelectuais indígenas, a saber:

a) Aquellos que niegan su identidad étnica o por lo menos no la utilizan como


carta de presentación. No mantienen una relación estrecha con su comunidad
de origen. Y aunque cursan un alto nivel académico no buscan, de manera
intencional, reflejar su cosmovisión indígena en el trabajo que realizan. Este
tipo de intelectuales lo único que conservan de indígena es su pasado. En
sentido estricto no pueden considerarse como intelectuales indígenas, de
hecho son muestra del típico caso del indígena “desindianizado” o
“aculturizado”.
b) Este tipo de intelectuales conservan su identidad étnica o por lo meno si la
utilizan como carta de presentación. Pueden o no mantener una relación
estrecha con su comunidad de origen. Y como parte de su educación
académica asumen una postura crítica sobre su cultura, por lo que terminan
asumiendo un papel de agente modernizante de sus comunidades. Ejemplo de
este tipo de intelectuales son los maestros bilingües que el Estado capacitó
para “aculturizar” a las comunidades indígenas como parte de su política
indigenista.
44

c) El tercer tipo de intelectuales conservan una fuerte identidad étnica.


Mantienen un estrecho lazo con sus comunidades de origen. Y pueden o no
haber estudiado altos estudios académicos, pero lo que los distingue es que su
trabajo intelectual tiene como prioridad el desarrollar la intelectualidad
indígena a partir de su propia cosmovisión (MARÍN, 2009).

O terceiro tipo de intelectual mencionado por Marín (2009) é ou não oriundo de sistemas
escolares, porém, possui como característica principal a sua relação de proximidade com sua
comunidade de origem e marca visivelmente sua intelectualidade baseada em sua própria
identidade étnica e visão de mundo. O próprio autor reconhece que apenas esse último pode ser
reconhecido como o “verdadeiro” intelectual.
Essa classificação tipológica sobre intelectualidade indígena não é a única. Podemos
encontrar em Silva (2005) três tipos de intelectuais indígenas que são consideradas a partir dos
processos de escolarização. Para essa autora, esse tipo de intelectual pode ser orgânico ou
semiorgânico, mas com lugares de enunciação diferentes.
Há o intelectual líder, que ocupa um lugar de prestígio por ser gestor de uma
organização/instituição e seu discurso está associado a um coletivo maior “constituído por los
miembros de su organización”. Este intelectual está, em suma, presente nos movimentos
indígenas e é um articulador político. Como exemplo desse tipo de intelectual, podemos
mencionar os seguintes nomes: Sonia Guajajara, Ailton Krenak e Kaká Werá.
O segundo tipo de intelectual, denominado de intelectual indígena profissional, tem seu
surgimento graças à crescente especialização que este adquiriu. São formados em alguma área
do conhecimento e desempenham funções importantes nas organizações étnicas (indígenas),
apoiando e oferecendo serviços aos movimentos indígenas a partir de seus próprios espaços de
atuação e de desenvolvimento de projetos. Dentre os exemplos desse tipo de intelectual, está
Eliane Potiguara e Cristino Wapixana.
O intelectual crítico21 é a terceira modalidade e consiste em um intelectual que “busca
espacios de autonomia, que investiga y produce discurso”, baseado em uma disciplina/área de
conhecimento. Devido à posição que ocupam, são “introduzidos” na política e sua inclusão na
militância dos movimentos não implica, necessariamente, em uma “fusión ideológica com
ellos”. Intelectuais como Daniel Munduruku, Naine Terena, Edson Kayapó e Gersem Baniwa
são alguns intelectuais indígenas que se inscrevem dentro dessa criticidade intelectual.

21
Cf. Silva (2005), que aborda de maneira mais específica este tipo de intelectualidade.
45

Os intelectuais indígenas mencionados foram exemplificados nessas classificações


devido as suas atuações públicas. Reconhecemos assim que, embora tenhamos tentado nas
linhas anteriores apontar uma exemplificação das classificações sobre a tipologia da
intelectualidade indígena, é perceptível e possível que esses sujeitos indígenas construam uma
intelectualidade indígena com mais tipologias.
No que tange à escolarização das populações indígenas, é notório que a expansão da
educação possibilitou às populações indígenas o manuseio da educação ocidentalizada22,
permitindo que esses sujeitos a partir de suas próprias concepções as ressignificassem.
Silva (2005) nos lembra que o acesso à escolarização promoveu nas populações
indígenas uma crescente diversificação e maior quantidade de profissionais. Fazem parte desse
novo e reduzido grupo de profissionais e intelectuais: professores, técnicos, engenheiros,
escritores, médicos, historiadores, antropólogos, que “emergiram durante as primeiras décadas
do século, seguindo a tendência geral do campo intelectual latino-americano, que se tornou
mais complexo a partir dos anos sessenta” (SILVA, 2005, p. 72).
No entanto, ainda que a expansão da educação, sobretudo superior, tenha garantido às
populações indígenas a emergência de seus intelectuais, nem sempre esta educação
universitária é característica primordial para a conceituação e categorização do intelectual
indígena. É importante aqui pontuar que, apesar do acesso à educação, existe uma distinção
entre ser um acadêmico indígena e ser um intelectual indígena, aliás, nem todos os sujeitos
indígenas que estão inseridos no contexto da educação superior serão intelectuais. Poderão ser
profissionais indígenas, estudantes indígenas, mas, ser intelectual requer um processo
diferenciado de “autoconstrução”.
Nessa direção, Simón (2009, p. 116-117) argumenta que:

Muchos indígenas pueden ser académicos, estudiosos e investigadores


egresados de las universidades prestigiosas con maestrías y doctorados de
cuarto nivel, donde promueven la rigurosidad y la excelencia académica, pero
sin mantener los fundamentos de su cosmovisión, su espiritualidad, los
valores, los principios y el entendimiento del impacto de las energías del
cosmos. Es decir, pueden ser excelentes académicos los indígenas que utilizan
métodos, que analizan el objeto y que buscan pruebas para llegar a la verdad.
Pueden utilizar los hallazgos para explicar las cosas, las verifican, las
constatan y registran, las validan y crean hipótesis. Sin embargo, los
intelectuales indígenas no son sólo eso, – o por lo menos no deben serlo–, ya
que desarrollan las ideas y ordenan su pensamiento según sus propias

22
Refiro-me a processos e métodos educacionais cartesianos que tem suas bases em uma ciência ocidental e
colonial.
46

categorías epistemológicas, desde su concepción de la relación del ser humano


con el cosmos, la naturaleza, la esencia de los lenguajes de comunicación y la
energía, la interdependencia del mundo material y la espiritual. Es decir, sin
los fundamentos de la integralidad del pensamiento y filosofía colectiva y
comunitaria de los pueblos indígenas, es imposible ser un intelectual indígena.
Los académicos indígenas sólidos, que rescatan o desarrollan una coherencia
con su cosmovisión y que se fundamentan en bases propias, pueden llegar a
ser intelectuales genuinos, y transformar la realidad de ser un simple
académico legitimador de otras ideologías o proyectos políticos y económicos
de otros pueblos dominantes, que han demostrado ser ajenos a las necesidades,
intereses y principios de los pueblos indígenas.

Assim, fica evidente que o acesso à escolarização é fundamental para a emergência do


intelectual indígena, mas o processo de ingresso à universidade não garante como resultado
final a “construção” desse tipo de intelectual (SIMÓN, 2009). Outrossim, o intelectual indígena
tem um papel diferenciado, por isso, como afirma Silva (2005):

Es importante mantener esta distinción porque no todos los profesionales e


intelectuales tomaron el camino de la reivindicación étnica, ya que hubo (y
hay) distintos caminos para quienes forman parte de esta elite. Vuelvo
entonces a la definición inicial de intelectual indígena, como alguien que
cumple una función específica, para distinguirlo de aquellos profesionales de
procedencia indígena, cuya opción no necesariamente ha sido la negación de
este origen o de su diferencia, pero que definitivamente no actúan en el espacio
público a partir de ella (SILVA, 2005, p.72).

Por esse motivo, Silva (2005, p. 65) afirma que quando falamos em intelectual indígena
estamos nos referindo a um sujeito oriundo de um grupo que desenvolve funções específicas,
que tenta atualizar e fundamentar um projeto político que não é nacional, nem de classe, mas
que se articula em torno de uma identidade étnica. Nessa perspectiva, Simón (2009) acrescenta
que o intelectual indígena tem as seguintes funções:
a) Manter o debate para conquistar o respeito e a aplicação dos direitos dos povos
indígenas contidos na declaração das nações unidas;
b) Refletir sobre as implicações dos modelos de desenvolvimento que são impostos
sem consulta, sem o consentimento livre, prévio e informado aos povos indígenas
e sobre a não participação vinculativa na tomada de decisões em relação às políticas
de administração pública;
c) Manter uma autoridade moral, ética e política para impulsionar oportunidades que
permitam o “bem viver” e rejeitar medidas que afetam a vida, o território, a visão
de mundo e a “mãe natureza”.
47

Dessa forma, preocupam-se os intelectuais indígenas com a sociedade como um todo.


Pretendem, a partir do reconhecimento de si e de seus direitos, construir um projeto de
desenvolvimento alinhado ao bem viver, sem prejudicar a vida, seus territórios e a natureza,
consequentemente, seu papel intelectual está circunscrito a essas premissas.
Para tanto, o intelectual indígena para ter bem delineadas as formas de enfrentamento
aos projetos coloniais que a ele são impostos, apropria-se da escolarização como instrumento
que norteia o debate crítico em prol de suas demandas, a partir do qual é possível compreender
suas funções e articulá-las as suas lutas.
Nessa perspectiva, Gersem Baniwa aponta que o papel do “‘intelectual indígena’ tem
sido fundamental para abrir caminhos em busca de uma relação menos desigual com a
sociedade nacional e com o mundo” (LUCIANO, 2011, p. 175), pois só assim é possível a
domesticação do branco que deixa de ser inimigo e se torna potencial aliado. Por esse motivo é
que, enquanto projeto político, “os povos indígenas apostam e investem na formação escolar,
universitária, técnica e política” (LUCIANO, 2011, p. 175).

4.2 PRODUÇÕES SOBRE INTELECTUALIDADE INDÍGENA

Para debater o pensamento e a intelectualidade indígena no Brasil, buscamos localizar


textos diversos com base em categorias que possibilitassem encontrar em seus debates a
discussão sobre o tema. Embora não tenha sido possível identificar um volume expressivo de
trabalhos nos quais se aborde a questão da intelectualidade indígena brasileira, tornou-se
possível fazer uma revisão do tema quando ampliamos nossa escala de levantamento
bibliográfico para o âmbito da América Latina.
A localização e a coleta das produções acadêmicas que debatem a intelectualidade
indígena foram efetuadas a partir do termo “intelectual indígena” em plataformas de busca
diversas, entre as quais citamos a plataforma de periódicos da Capes, o Google acadêmico
(Google Scholar), a biblioteca digital de teses e dissertações (BDTD), a Scientific Eletronic
Library Online (Scielo) e nas bibliotecas digitais das principais universidades brasileiras tais
como UFPA, UnB, UFAM, USP, UNESP, UNICAMP e UFRJ. A escolha por essas instituições
de ensino superior foi motivada por termos nelas, segundo Paladino (2016), um maior número
de indígenas na pós-graduação.
Em sua maioria, as produções acadêmicas levantadas tratam da intelectualidade
indígena a partir dos programas e políticas nacionais que possibilitaram a construção de um
48

grupo indígena escolarizado ou, como denominam alguns autores, uma “elite indígena
educada”. De modo geral, as produções apontam para o ingresso ao ensino superior como ponto
nodal para a emergência do intelectual indígena; assinalam também os caminhos e desafios que
essa inserção indígena no espaço acadêmico tem resultado.
Os textos levantados abordam a universidade como eixo central para a intelectualidade
indígena. Encontram-se nas produções acadêmicas levantadas trabalhos que se dedicam a
discutir o trajeto histórico do processo de intelectualidade do indígena na América Latina e suas
repercussões. Outras produções mais específicas debatem a intelectualidade indígena baseada
em sua materialidade, quer seja de uma disciplina específica, quer seja das expressões e objetos
das populações indígenas estudadas.
Inicialmente, utilizamos para a busca do descritor o termo principal “intelectualidade
indígena”, que impulsionou o rastreio por meio das palavras-chaves. Nas buscas, usamos os
termos “intelectual indígena”, “intelectual índio”, “intelectual ameríndio”,
“etnointelectulidade”, “etnointelectual” e “intelectualismo indígena”. Tais descritores
induziram e estimularam nossa busca por outras terminologias que se aproximasse da categoria
principal. Desse modo, pesquisamos também pelas nomenclaturas “pensadores indígenas”,
“mentes indígenas”, “escritores indígenas” e “estudantes indígenas”.
A partir dos termos ou palavras-chave, levantamos um número pouco expressivo de
produções que, de forma geral, encontramos predominantemente publicadas como artigos,
disponíveis em plataformas de busca. Esses trabalhos não analisam a emergência intelectual
indígena brasileira, mas subsidiam o pensamento dessa intelectualidade na América Latina, de
tal forma que é possível a partir deles ponderar sobre o intelectual indígena no Brasil.
Quando se discute/estuda/analisa a respeito do intelectual indígena no Brasil, é
perceptível que, devido a sua recente emergência, os debates ainda estejam muito tímidos e
iniciais e se limitem a tratar das implicações, desafios e perspectivas de acesso dos indígenas
ao ensino superior, mais especificamente sobre os projetos nacionais e institucionais de ingresso
à universidade.
Notamos no levantamento que os primeiros trabalhos têm menos de duas décadas, o que
justifica a reduzida produção sobre a temática. Ao ampliarmos as buscas para outros idiomas
como espanhol e inglês, conseguimos acessar produções da década de 1990 que debatem o tema
para além do acesso ao ensino superior ou da escolarização. São produções que refletem sobre
as implicações políticas e ideológicas da intelectualidade indígena.
49

O levantamento dessas leituras possibilitou a construção de quadros nos quais são


enumeradas produções por ano. Além disso, trazem informações adicionais que detalham a
localização dos textos e seus autores. Demonstramos, ainda, como a produção acadêmica sobre
a intelectualidade indígena está em uma etapa inicial de debate no contexto brasileiro.
No quadro a seguir, apresentamos o quantitativo de produção acadêmica que aborda a
intelectualidade indígena. Em linhas anteriores, citamos que os textos que estudam essa
intelectualidade são, embora seja significativa a densidade de seu conteúdo, inexpressivos em
números. Os trabalhos identificados e que serviram para compor o quadro das produções
existentes foram localizados, como já dissemos, em banco de dados virtuais, de acesso público
e gratuito. Assim, é possível que existam produções nas quais a intelectualidade indígena seja
analisada enquanto categoria às quais não tivemos acesso por estarem depositadas em
plataformas ou em bancos de dados com acesso limitado.

Quadro 1 - Número de publicações sobre intelectualidade indígena (1992-2017)23*


ANOS
1992
1999
2002
2005
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2017
Tipo de Produção
Total
Acadêmica
QUANTIDADE

Livros - - - - 1 1 - - - 1 1 1 1 - 6
Teses - - - - - - - - - - - 1 - - 1
Dissertações 1 - 1 1 - - - - - - - - - - 3
Artigos - 1 - 2 2 2 3 1 2 - 3 3 - 6 25
Total 1 1 1 3 3 3 3 1 2 1 4 5 1 6 35
Fonte: Portal de periódico da Capes, Google Scholar, BDTD, Scielo, e bibliotecas digitais de universidades
brasileiras (UFPA, UnB, UFAM, USP, UNESP, UNICAMP e UFRJ).
*Elaborado pelo autor

O quadro 1 nos permite, conforme o que ponderamos sobre o surgimento do intelectual


indígena, inferir que essa crescente produção acadêmica sobre a intelectualidade indígena pode
se justificar pelo interesse em analisar os novos contextos em que este tipo de intelectual se
insere e/ou do qual advém.
Constatamos ainda, com o quadro 1, que entre 1992 a 2017 apenas uma tese foi
publicada com a respectiva temática. Muito embora essa tese não dê uma maior ênfase à questão
do intelectual indígena, sua produção acadêmica inaugura timidamente o debate sobre o sujeito
intelectual indígena. No mesmo período, o respectivo quadro nos apresenta que há apenas três

23
Esse recorte temporal se justifica pelo levantamento efetuado por nós da obra mais antiga e mais recente sobre
intelectualidade indígena que conseguimos localizar. Não descartamos a possibilidade da existência de estudos
que antecedem a década de 1992.
50

dissertações que tratam do intelectual indígena como categoria de análise. Essas dissertações
são produtos finais de programas de pós-graduação de universidades não-brasileiras. Essa
constatação nos indica a carência de estudos dessa natureza no âmbito da pós-graduação de
programas de universidades nacionais.
A emergência do intelectual indígena no início do século XX tem estimulado, mesmo
que tardiamente, maior interesse sobre esse tipo de intelectual. Conforme o exposto no quadro
1, percebemos que o número de produções que investiga, analisa, debate e/ou estuda a
intelectualidade indígena vem crescendo gradativamente. Em geral, o quadro nos mostra que
essas produções acadêmicas são, predominantemente, artigos publicados em revistas24. No
entanto, não são exclusivamente dessa natureza, pois a produção de livros sobre o indígena
intelectual vem, desde 2012, conquistado espaço em publicações.
Todavia, podemos constatar que teses e dissertações sobre “intelectualidade indígena”
não têm ganhado espaço nos programas de pós-graduação. Isso não significa que haja a
ausência de estudiosos analisando o fenômeno da intelectualidade25, ou ainda que não existam
indígenas nas universidades e nos programas de pós-graduação construindo importantes
debates científicos a partir de suas próprias identidades étnicas e sobre suas demandas.
No quadro, temos produções acadêmicas sobre a intelectualidade indígena nacionais e
internacionais, por isso, foi necessário organizá-las por país de origem, para identificar em quais
países o debate acerca da intelectualidade indígena tem se mostrado mais frequente ou
estimulado. Isso nos dá um panorama sobre a discussão do tema e seus eixos de debate.
Dessa maneira, no intento de abarcar o máximo de literaturas sobre a principal categoria
de análise, ou seja, sobre intelectual(idade) indígena, elaboramos quadros com as leituras
basilares feitas e que tratam da intelectualidade indígena e seus contextos.
No quadro 2, que se refere às produções acadêmicas em formato de artigos e livros,
optamos por destacar os seguintes itens: a) ano, b) título, c) autor, d) periódico/editora, f) país
de publicação. Já no quadro 3, estão dispostas as produções científicas desenvolvidas em

24
Essas produções estão concentradas em revistas existentes na América Latina. Acreditamos que essa
concentração se deva à emergência de vozes indígenas, que têm dialogado com a universidade suas demandas,
bem como reivindicado espaços de difusão de conhecimento sem que para isso seja negada a sua origem étnica.
Dessa forma, o fenômeno da intelectualidade indígena tem conquistado o interesse de muitos estudiosos.
25
Em “Intelectuais Indígenas e a construção da universidade pluriétnica no Brasil: Povos indígenas e os novos
contornos do Programa de Educação Tutorial/Conexões de Saberes”, Freitas (2015) afirma que o Laboratório de
Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED), do Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem investigado
o processo resultante da construção da intelectualidade indígena e da elite indígena educada.
51

programas de pós-graduação – teses e dissertações –, por isso apresentam os seguintes


descritores: a) tipo, b) ano, c) título, d) autor, e) universidade/local. Optamos no quadro 2 por
não apresentar expressamente se a publicação é livro ou artigo, pois, consideramos que ao
apontar o periódico/revista, o leitor identificará que estamos nos referindo a artigos, assim
como, quando indicamos editora, estamos fazendo referência a livros.
É importante destacar que entre as obras elencadas há autores indígenas e não indígenas.
Contudo, decidimos não apontar quais são indígenas, pois, tivemos dificuldades no acesso à
informação a respeito do perfil dos autores e, mesmo quando conseguimos acessar a biografia
do autor, disponível em sítios e/ou plataformas, não tínhamos, em alguns casos, a informação
precisa sobre uma possível origem étnica.

Quadro 2 – Artigos e livros sobre intelectualidade indígena, por ano, título, autor, periódico ou
editora e local de publicação*
ANO TÍTULO AUTOR PERIÓDICO/EDITORA LOCAL
1999 Intelectuales indígenas, Hernán Ibarra Ecuador Debate Equador
neoindigenismo e
indianismo en el
Ecuador
2005 Origen y función de los Claudia Zapata Revista Cuadernos Chile
intelectuales indígenas Silva Interculturales
2005 Os intelectuais indígenas Gilberto Azanha Anais da Associação Brasil
e a proteção do Nacional de Pós-
“conhecimento Graduação e Pesquisa em
tradicional” Ciências Sociais
(ANPOCS)
2007 De peruanos e índios: la Manuel Andrés Editora da Universidad de Espanha
figura del indígena em la García Andalucia
intelectualidad y política
criollas (Perú, siglos
XVIII-XIX)
2007 Intelectuales públicos Joanne Rappaport Revista Iberoamericana EUA
indígenas en América
Latina: Una
Aproximación
Comparativa
2007 De los intelectuales en Carlos Monsiváis Revista América Latina Espanha
América Latina Hoy
2008 Los intelectuales Claudia Zapata Revista Chile
indígenas y el Silva Discursos/Prácticas
pensamiento
anticolonialista
2008 La emergência Indigena José Bengoa Fondo de Cultura Chile
em America Latina Economica
2008 Sobre intelectuales y Silvia Monroy- Revista Universitas Colômbia
activistas indigenas: dos Alvarez Humanistica
trayetorias
interculturales posibles
52

2009 Ciência da floresta: Por Gilton Mendes dos Revista de Antropologia, Brasil
uma antropologia no Santos & Carlos São Paulo,
plural, simétrica e Machado Dias Jr.
cruzada
2009 Los intelectuales Juan de Dios Programa Regional de Local não
indígenas y la formación Simón Educación Intercultural identificado
de talentos humanos para Bilingüe EIBAMAZ
um mejor y buen
gobierno
2009 Escola, pensamento Claudia Antunes Revista Espaço Ameríndio Brasil
indígena e pensamento
ocidental: reflexões para
pensar a educação
escolar indígena
2010 Quienes son los Bianca S Revista de filosofia “A Espanha
intelectuales indígenas Fernandéz parte Rei”
ecuatorianos? Aportes
para uma construción
intercultural de saberes
em America Latina
2011 Intelectualidad indígena Bastien Sepúlveda Revista Cuadernos Chile
y colonialidad del saber Interculturales
en América Latina
2011 Intelectuales indígenas Alejandra Flores Revista Inclusión Social y Chile
ecuatorianos y sistema Carlos Equidad en la Educación
educativo formal: entre Superior (ISEES)
lareproducción y la
resistência
2012 Mitos nacionalistas e Natividad Instituto de México.
identidades étnicas: los Gutiérrez ChongInvestigaciones Sociales,
intelectuales indígenas y Universidade Nacional
el estado mexicano Autonoma do Mexico –
UNAM
2013 Mentes indígenas e Alcida Rita Ramos Série Antropologia UnB Brasil
ecúmeno antropológico
2013 Claro de Luz: Pedro Instituto de Estudias Chile
descolonización e CanalesTapia; Avanzados- IDEA-
"intelectualidades Carmen Rea USACH
indígenas" en AbyaYala, Campos (Editores)
siglo XX-XXI.
2013 Estudantes indígenas no Maria Aparecida Revista PolEd- Política Brasil
Ensino Superior: o Bergamaschi e educacional
Programa de Acesso e Andreia Rosa da
Permanência Na UFRGS Silva Kurroschi
2013 La intelectualidad Norma Meneses Revista Lengua y Sociedad Peru
indígena y su rol en la Tutaya
revitalización cultural y
lingüística de sus
pueblos
2014 Antropologia no México Max Maranhão Antípoda. Revista de Colômbia
e a invenção do Piorsky Aires Antropología y
intelectual indígena Arqueología
53

2014 Intelectuais indígenas, Maria Aparecida TELLUS Brasil


interculturalidade e Bergamaschi
educação
2014 “Etnointelectualidad”: Pedro Alpha Chile
Construcción de CanalesTapia
“Sujetos Letrados” en
América Latina, 1980-
2010
2014 Indigenous Intellectuals: Gabriela Ramos, DUKE University Press Estados
knowledge, power and yannayannakakis Unidos da
colonial culture in América
Mexico and the Andes
2015 Intelectuais indígenas e a Ana Elisa de Editora E-papers Brasil
construção da Castro Freitas
universidade pluriétnica (Org)
no Brasil
2017 Escolarização e João Francisco Revista de Estudos E Brasil
intelectuais indígenas: Kleba Lisboa Pesquisas Sobre As
da formação à Américas
emancipação
2017 Intelectuais indígenas Claudia Zapata Revista de Estudos e Brasil
nas Américas: desafios e Silva, Estevão Pesquisas sobre as
perspectivas Rafael Fernandes, Américas
Emílio del Valle
Escalante
2017 Intelectuais e literaturas Luz María Lepe Revista de estudos e Brasil
indígenas no México. O Lira pesquisas sobre as
Campo Literário entre os Américas
Zapotecas e Mayas
2017 Literatura indígena e Julie Stefane Revista de estudos e Brasil
seus intelectuais no Dorrico Peres pesquisas sobre as
Brasil: da autoafirmação Américas
e da autoexpressão como
minoria a resistência e a
luta político-culturais
2017 Algunas claves del Félix Pablo Revista de estudos e Brasil
aporte de los Friggeri pesquisas sobre as
intelectuales indígenas Américas
para pensar desde
América Latina
2017 Mundos incertos sob um Nina Vicent Revista de Antropologia Brasil.
céu em queda: o da USP
pensamento indígena, a
Antropologia e a 32a
Bienal de São Paulo
Fonte: Portal de periódico da Capes, Google Scholar, BDTD, Scielo, e bibliotecas digitais de universidades
brasileiras (UFPA, UnB, UFAM, USP, UNESP, UNICAMP e UFRJ).
*Elaborado pelo autor

O quadro 2 evidencia que há um número de trabalhos que foram publicados em formato


de livros e artigos, os quais se propõem a discutir a intelectualidade indígena. Além disso,
podemos constatar em quais revistas ou editoras é mais recorrente a publicação de textos sobre
54

a intelectualidade indígena, por sua vez, isso contribui para que identifiquemos em quais regiões
há maior receptividade em se dialogar sobre esse fenômeno bem como perceber, pelos títulos,
quais perspectivas teóricas dão maior ênfase para esse debate.

Quadro 3 – Dissertações e teses sobre intelectual indígena, por ano de defesa, título, autor e
universidade/local*
DISSERTAÇÃO ANO TÍTULO AUTOR UNIVERSIDADE/LOCAL
OU TESE
Los intelectuales
indigenas y la
construcción Laura Universidade Nacional
Dissertação 1992
política de la Velasco Autônoma do México, México
comunidade étnica
transnacional
Cultural Theory
Made Critical:
Hemi Te University of Waikato, Nova
Dissertação 2002 Towards a Theory
Rere Hireme Zelândia
of the indigenous
intellectual
Intelectuales
indígenas del Alejandra Facultadad Latinoamericana de
Dissertação 2005 Ecuador y su paso Flores Ciencias Sociales, Programa de
por la escuela y la Carlos Antropología, Equador.
universidad.
Povos indígenas na
Érica
Universidade: ação
Aparecida Universidade Federal de São
Tese 2014 afirmativa e a
Kawakami Carlos, São Carlos, SP, Brasil
geopolitica do
Mattioli
conhecimento
Fonte: Portal de periódico da Capes, Google Scholar, BDTD, Scielo, e bibliotecas digitais de universidades
brasileiras (UFPA, UnB, UFAM, USP, UNESP, UNICAMP e UFRJ).
*Elaborado pelo autor

As produções acadêmicas sobre intelectualidade indígena não estão concentradas em


apenas um banco de dados, mas em várias bases digitais, que tiveram suas referências
identificadas por intermédio de cada novo texto ou produção que localizávamos. Assim, a cada
referência de uma produção foi possível rastrear outras literaturas.
Inevitavelmente, na busca pela primeira categoria, a cada nova pesquisa, conseguimos
identificar leituras outras que compõem o quadro de textos. Dessa forma, temos a convicção de
que essas produções acadêmicas localizadas não são as únicas que estudam o processo de
intelectualidade indígena, logo, podem existir outros trabalhos que, devido à dispersão das
pesquisas sobre o tema, não foram localizados.
Por sua vez, acreditamos que a dispersão das produções e, consequentemente, a
limitação em identificar textos de forma otimizada, nos quais se tenha a intelectualidade
55

indígena como escopo de análise, impõe a este construto lacunas para debates diferentes ou
complementares aos que seriam possíveis graças às leituras levantadas.
Os trabalhos dispostos nos quadros das produções acadêmicas localizadas possibilitam
inferir que as produções são em sua maioria publicadas em revistas. Diante dessa constatação,
decidimos separar essas produções por país de origem. Dessa maneira, foi possível identificar,
nos quadros 2 e 3, de produções por título, que poucos são os trabalhos nos quais se tem o
intelectual indígena brasileiro como sujeito principal de estudo, apesar do Brasil ter um maior
número de produções.

Quadro 4 – Número de produções acadêmicas sobre intelectualidade indígena, por país (1992-
2017) *

QUANTITATIVO POR PAÍS


PAÍS
(1992-2017)
Bolívia26 1
PRODUÇÕES ACADÊMICAS

Brasil 16
Chile 4
Colômbia 2
Equador 2
Espanha 3
EUA 1
México 3
Nova Zelândia 1
Peru 1
Venezuela 1
Fonte: Portal de periódico da Capes, Google Scholar, BDTD, Scielo, e bibliotecas digitais de universidades
brasileiras (UFPA, UnB, UFAM, USP, UNESP, UNICAMP e UFRJ).
*Elaborado pelo autor

Quando comparamos as informações existentes no quadro 4, percebemos que, das 35


produções acadêmicas, 16 foram publicadas no Brasil e dessas somente 7
analisam/discutem/estudam a intelectualidade indígena brasileira. Apesar de haver um reduzido
destaque do intelectual indígena brasileiro nas produções acadêmicas levantadas, esses
trabalhos são publicados em revistas e editoras do Brasil. Essa crescente publicação de trabalhos
sobre a intelectualidade indígena em revistas e editoras no Brasil nos induz a refletir sobre o
interesse em se debater essa temática.

26
A produção acadêmica à qual se faz referência é decorrente de uma publicação conjunta entre Peru e Equador
com o país mencionado.
56

Ainda que não haja muitas produções que retratem a intelectualidade indígena brasileira,
tem-se tentado estimular estudos sobre este tipo de intelectual. Além disso, o quadro 4 nos
revela em quais países o debate sobre a intelectualidade indígena tem acontecido. Como já
mencionado anteriormente, é nos países da América Latina que essa discussão tem sido mais
enfatizada e, por isso, é onde existe o maior número de publicações acerca do tema.
Essa crescente produção e debate sobre o intelectual e a intelectualidade indígena talvez
sejam fruto da insurgência do movimento indígena, da influência do debate decolonial, e do
acesso dos diversos e numerosos povos indígenas ao conhecimento ocidental, que lhes permite
transfigurar mecanismos de opressão.
Mesmo que tenhamos identificado poucos trabalhos que constroem seus escopos
analisando a intelectualidade indígena brasileira, o quadro 4 revela que, em relação a outros
países, o debate sobre o intelectual indígena tem, desde o início da década de 1990 até os dias
atuais, no Brasil, recebido maior atenção se comparado aos países nos quais localizamos leituras
sobre o tema. Significa dizer que no Brasil há certo interesse em se estudar e divulgar a
intelectualidade indígena, embora as pesquisas que tratam do tema e que foram publicadas no
país não tenham o indígena brasileiro como o intelectual principal de estudo ou como autor.

4.3 INTELECTUAIS INDÍGENAS BRASILEIROS: BREVE BIOGRAFIA

No Brasil, é possível localizar um número significativo de intelectuais indígenas que


têm construído debates a partir de sua identidade étnica. Esses intelectuais compõem um grupo
de indígenas que se submeteram a processos de escolarização e que o utilizam como
instrumento para resistir a projetos nacionais que inviabilizam sua forma de se relacionar com
a natureza e o mundo.
Os intelectuais indígenas brasileiros estão em diversas esferas e contribuem para o bem
viver de seus povos por meio de seu trabalho ou engajamento político. Em suma, ao utilizar sua
etnicidade como “carta de apresentação”, pretendem receber reconhecimento e valorização da
sociedade.
Para debater a intelectualidade das populações indígenas brasileiras, decidimos localizar
esses intelectuais, identificando sua formação, profissão, atuação e produção. A localização
57

desses sujeitos foi realizada nas plataformas digitais27. A partir desse levantamento,
conseguimos construir uma lista com os nomes de alguns dos principais intelectuais indígenas
que têm usado sua formação e atuação para dar visibilidade às populações indígenas,
construindo importantes produções, nas quais se materializa sua identidade étnica, cosmologia
e seus saberes.
Desses intelectuais, com formação e atuação diversificadas, optamos por selecionar
aqueles intelectuais indígenas com alto nível de formação superior. Assim, foram escolhidos,
entre técnicos, especialistas, mestres e doutores, os indígenas com maior titulação acadêmica,
ou seja, doutores que tiveram como atuação profissional a docência. Muito embora tenhamos
optado pela formação superior, ou melhor, a titulação como critério de definição do intelectual
indígena, analisamos produções dos intelectuais que tiveram em seu construto o fenômeno
educativo. Por sua vez, a partir desses critérios, listamos os nomes dos seguintes intelectuais
indígenas, doutores e docentes: Daniel Munduruku (Daniel Monteiro Costa), Naine Terena de
Jesus, Gersem Baniwa (Gersem José dos Santos Luciano) e Edson Kayapó (Edson Machado de
Brito).

4.3.1 Daniel Munduruku

Nascido em 1964, em Belém do Pará, Daniel Munduruku, pseudônimo adotado por


Daniel Monteiro da Costa, viveu entre os Munduruku até os sete anos, pois, para que pudesse
ir à escola, precisou morar na cidade. Foi no centro urbano que Daniel Munduruku se mostrou
como grande representante de seu povo, usando os construtos decorrentes de sua escolarização,
ou seja, suas obras (literárias ou não) como ferramenta primordial de visibilidade dos povos
indígenas do Brasil e, principalmente, dos Munduruku. Sobre sua experiência com a escola,
Daniel Munduruku relata:

Cresci, portanto, sob a batuta militar tendo que ir para a escola com o intuito
de “virar gente de verdade”, ser civilizado. Para os militares este era o
propósito de sua política. Isso significava obrigar os indígenas a irem à escola,
estudar como internos em instituições religiosas, aprender uma profissão,
deixar de falar a língua nativa. Só desse jeito alguém poderia virar brasileiro,
cidadão e deixar de ser selvagem (BAILEY; ZILBERMAN, 2010, p. 219).

27
Foram acessadas plataformas digitais diversas, que são denominadas de acordo com seu público. Assim, temos,
tanto plataformas sociais (Facebook, Twitter, Instagram e LinkedIn) quanto de marketplace (livrarias digitais,
revistas não científicas eletrônicas).
58

Daniel Munduruku mostra-nos que a escola não foi uma escolha voluntária. No entanto,
utilizou-a como instrumento de resistência.28 Atualmente, Daniel Munduruku é escritor
indígena, filósofo diplomado pela Universidade Salesiana de Lorena, Licenciado em História e
Filosofia, Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado em
Literatura pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Sua atuação como professor na
rede estadual e particular de ensino, e ainda na Pastoral do Menor de São Paulo, estimulou-o a
escrever para alcançar um público, ao qual acredita poder ensinar uma outra maneira de ver o
indígena (ALMEIDA, 2008).
Foi lecionando que Daniel Munduruku também se descobriu e se “construiu” contador
de histórias. Nesse sentido, o escritor indígena afirma em entrevista:
Eu saía contando histórias nas escolas, nas praças, nas casas dos amigos.
Tempos depois, isso fez com que eu começasse a escrever minhas próprias
histórias, sempre com o olhar voltado para as crianças e os jovens. Daí em
diante, escrevi mais de quarenta livros e quero escrever muito mais ainda
(MUNDURUKU apud NARRATTIVAS INDÍGENAS, 2016).

Daniel Munduruku (2004 citado por ALMEIDA, 2008) enfatiza que trabalha com
literatura infanto-juvenil, pois acredita ser importante que as crianças aprendam, desde cedo, a
cultura e a sabedoria dos povos indígenas para assimilar valores vitais para a continuidade
desses povos. Completa, em entrevista recente, que “a literatura é um instrumento
superinteressante de construção de lugares de fala. Tem esse componente muito positivo de
alimentar nas pessoas outros olhares, outras facetas da existência” (MUNDURUKU, 2019). E
completa:

A literatura que eu faço é comprometida, minha forma de ser militante no


movimento indígena. Eu tento usar a literatura para poder falar das nossas
culturas. A literatura é fundamental para a gente ir desconstruindo esses
estereótipos sobre os povos indígenas e ir construindo uma percepção
diferente.

Atualmente, Daniel Munduruku é diretor presidente do Instituto UKA – Casa dos


Saberes Ancestrais – e membro fundador da Academia de Letras de Lorena. Foi diretor
presidente do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI) por duas

28
Câncio, em tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Pará, 2017, destaca que a resistência se
encontra fortemente presente entre os indígenas Wai-Wai da Aldeia Mapuera, Amazônia brasileira, em relação ao
aprendizado e uso da língua. Formados num espaço profundamente intercultural, no qual as linguas wai-wai,
portuguesa e inglesa são necessárias no processo de articulação política e de convivência interétnicas na região
fronteiriça da Aldeia Mapuera (CÂNCIO, 2017).
59

vezes, além de Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República e


Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sua
obra literária agrupa mais de 50 livros para crianças, jovens e educadores, muitos deles
premiados nacional e internacionalmente. Foi premiado:

[...] na categoria Reconto da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil, em


2001, por As Serpentes que Roubaram a Noite e Outros Mitos e o prêmio para
Obras Voltadas a Preservação da Cultura Brasileira, do CNPq, em 2003.
Também recebeu o prêmio Jabuti por Coisas de Índio – Versão Infantil, em
2004, e ainda Meu Avô Apolinário foi escolhido pela Unesco e recebeu
menção honrosa em Literatura para Crianças e Jovens na Questão da
Tolerância (ALMEIDA, 2008, p. 13).

Alguns de seus premiados livros foram publicados também em língua inglesa. Devido
a sua rica fonte de histórias inéditas, vindas da cultura indígena, e seu caráter didático e
informativo, a literatura de Daniel Munduruku tem recebido atenção da mídia e do meio
literário (ALMEIDA, 2008, p. 17). Assim, não raro, encontra-se uma diversidade de artigos que
tratam da literatura de sua autoria, bem como entrevistas com o próprio autor (ALMEIDA,
2008, p. 17).
Por ser um renomado escritor e intelectual indígena, Daniel Munduruku participa de
muitos eventos literários e científicos, pois acredita ser importante que todos tenham acesso à
cultura de seu povo indígena. Por esse mesmo motivo, o escritor indígena mantém um website
e um blog nos quais publica conteúdos autorais ou de interesse indígena (ALMEIDA, 2008).
A produção autoral de Daniel Munduruku é extensa e está prioritariamente voltada para
a literatura. No quadro a seguir, estão os títulos das produções do autor.

Quadro 5 – Produção de artigos e livros de Daniel Munduruku, por ano, editora e local de
publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/ LOCAL
EDITORA
2016 Vozes Ancestrais - Dez contos indígenas Ftd São Paulo
2016 Memórias de Índio Edelbra Porto
Alegre
2016 Whatirã - a lagoa dos mortos Autêntica Belo
Horizonte
2015 Foi vovó que disse. Edelbra Porto
Alegre
2014 Vó Coruja Companhia Das São Paulo
Letrinhas
60

2014 O segredo da estrela vésper. Leya São Paulo


2013 O Olho da Águia Leya São Paulo
2012 O Caráter educativo do Movimento Indígena Editora Paulnas São Paulo
Brasileiro (1970-1990)
2012 Um dia na aldeia Melhoramentos São Paulo
2011 Como Surgiu Callis São Paulo
2011 Histórias que eu li e gosto de contar Callis São Paulo
2010 A Caveira-rolante, a Mulher-Lesma e outras Global Editora São Paulo
histórias indígenas de assustar.
2010 Mundurukando. Uka Editorial Lorena
2009 O Karaíba Editora Amarilys São Paulo
2009 Karu Taru - o pequeno pajé Edelbra Porto
Alegre
2009 O Banquete dos Deuses. Editora Global São Paulo
2008 Outras tantas histórias de origem das coisas e do Editora Global São Paulo
universo.
2008 Todas as coisas são pequenas. ARX São Paulo
2008 Nos caminhos da literatura Peirópolis São Paulo
2008 A palavra do Grande Chefe Editora Global São Paulo
2007 A primeira estrela que vejo é a estrela de meu Editora Global São Paulo
desejo
2007 O Homem que roubava horas. Editora Brinque São Paulo
Book
2007 As peripécias do Jabuti Mercuryo Jovem São Paulo
2007 Um sonho que não parecia sonho. Caramelo São Paulo
2007 O Olho bom do menino. Brinque Book São Paulo
2007 O menino e o pardal Callis Editora São Paulo
2007 El niño y el gorrión Callis São Paulo
2006 Histórias que vivi e gosto de contar Callis Editora São Paulo
2006 Caçadores de Aventuras Caramelo São Paulo
2006 O Onça Caramelo São Paulo
2006 O Sumiço da Noite Caramelo São Paulo
2006 Parece que foi ontem Global São Paulo
2005 Contos indígenas brasileiros Global São Paulo
2005 Crônicas de São Paulo - Um olhar indígena Callis São Paulo
2005 Histórias que ouvi e gosto de contar. Callis São Paulo
2005 Antologia de contos indígenas de ensinamento Moderna São Paulo
2005 Catando Piolhos, contando Histórias Brinque Book São Paulo
2005 Sobre piolhos e outros afagos Callis São Paulo
2005 Cosas de Indio - pueblos brasilenos Jacaranda Cidade do
Ediciones, México
2005 Os filhos do sangue do céu e outros mitos de origem Landy São Paulo
2004 O Sinal do Pajé Peirópolis São Paulo
2004 Você lembra, pai? Editora Global São Paulo
2004 Um estranho sonho de futuro FTD São Paulo
2004 O segredo da Chuva Ática São Paulo
2004 Sabedoria das águas. Global São Paulo
2004 Verá - O Contador de Histórias. Peirópolis São Paulo
2004 Cadernos do Inbrapi. Global São Paulo
2003 A Velha Árvore. Salesiana São Paulo
2003 Irakisu Peirópolis São Paulo
2002 O Diário de Kaxi - um curumim descobre o Brasil Salesiana São Paulo
2002 Kabá Darebu Brinque Book São Paulo
61

2002 Puratig - o Remo Sagrado Peirópolis São Paulo


2001 Meu Vô Apolinário - Um mergulho no Rio da Studio Nobel São Paulo
(minha) memória
2001 As Serpentes que roubaram a noite e outros mitos Peirópolis São Paulo
2000 Coisas de índio Callis São Paulo
2000 Tales of the Amazon Groundwood Books Toronto
1998 O Livro dos medos. Companhia das São Paulo
letrinhas
1996 Histórias de Índio Companhia das São Paulo
letrinhas
Fonte: Currículo Lattes e Wikipédia.
*Elaborado pelo autor

O quadro 5 nos permite perceber que a produção de Daniel Munduruku está voltada
para a divulgação da cultura e perspectiva do sujeito indígena sobre o mundo. Essas produções
literárias são, em muitos casos, adaptações de histórias e mitologias indígenas diversas. Apesar
de Daniel Munduruku dedicar-se a escrever histórias para o público infanto-juvenil, sua
produção escritural é bastante diversa, pois ele também possui textos científicos publicados.

Quadro 6 – Produção de capítulos de Daniel Munduruku em livros, por ano, editora e local de
publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/EDITORA LOCAL
2008 Educação Indígena: do corpo, da mente e do Editora Peirópolis São Paulo
espírito
2007 Entre a Cruz e a Espada: a presença Factash Editora São Paulo
missionária em terra indígena e o Estado Laico
Fonte: Currículo Lattes e Wikipédia.
*Elaborado pelo autor

A produção autoral de Daniel Munduruku aborda a cultura e a perspectiva indígena sob


determinadas perspectivas, seja a partir do misticismo, que envolve as tradições ancestrais das
populações indígenas, seja sob o olhar do sujeito indígena e sua análise dos ambientes nos quais
circula. As obras de Daniel Munduruku nos trazem importantes e fundamentais reflexões acerca
da cultura indígena, da relação entre conhecimentos indígenas e conhecimentos ocidentalizados
e dos impactos do contato entre indígenas e não indígenas.

4.3.2 Edson Kayapó

Filho de Kayapó com Marajoara, Edson Machado de Brito, também conhecido como
Edson Kayapó, nasceu no estado do Amapá, em 27 de novembro de 1969, à margem do rio
Amazonas, numa grande aldeia que hoje é a cidade de Macapá. A família de Edson Kayapó
migrou do Pará para o Amapá em 1960, em busca de oportunidade de emprego. Sua família foi
62

expulsa de sua terra devido à implantação da Indústria e Comércio de Minérios (ICOMI),


indústria de extração de minerais na região da Serra do Navio.
Em entrevista, Edson Kayapó conta que seus pais “sofreram na pele a exclusão social
daquela localidade, apesar de toda solidariedade dos parentes da região. Os dois não davam
conta de nos sustentar: éramos sete irmãos e ainda tinha meu tio e meu avô materno que vivia
conosco” (KAYAPÓ, apud DARA, 2009, p. s/n).
A pobreza obrigou seus pais, um mecânico e uma exímia conhecedora de plantas e
remédios naturais, a entregar, em 1980, antes de completar 11 anos de idade, o então Edson
Brito a missionários evangélicos adventistas, para que recebesse escolarização e ajuda no
internato, localizado na região de Altamira-PA (KAYAPÖ, apud DARA, 2009).

A prática pedagógica adotada naquele internato lembrava a ação jesuítica


entre os povos indígenas nos primeiros séculos da colonização, em que
“civilizar” e salvar as almas dos jovens indígenas eram os objetivos nobres e
necessários. A educação religiosa que recebi me afastou não apenas dos
parentes, mas principalmente das formas de vivência indígena que aprendi na
infância (KAYAPÓ, apud BRITO, 2012, p.12).

A prática pedagógica mencionada por Edson Kayapó foi aplicada a muitos indígenas
submetidos a processos de escolarização. Quando se lembra da educação escolar recebida no
internato, Edson Kayapó rememora que:

No internato, cumpríamos longas e pesadas jornadas de trabalho na roça


(“juquira” como chamam lá). E para fugir desta relação de semiescravidão, na
8ª série, pedi transferência para outra escola em Cachoeira de São Félix, no
Recôncavo Baiano. Lá, entre 1986 e 1987, aprendi muito, estabeleci relações
muito diferentes, verdadeiramente antropofágicas – como, aliás continuam
sendo hoje em dia aqui em São Paulo. Altamira era como uma prisão;
Cachoeira era mais livre, no entanto persistia o rigor da educação missionária
(KAYAPÖ, apud DARA, 2009, s/n).

Essa constante e intensa relação de opressão e de submissão vivenciada nas escolas-


internatos por onde Edson Kayapó passou vai marcar toda a sua trajetória de educação
secundária. Edson Kayapó enfatiza como esse tipo de relação, a que se submeteu, lhe deixou
marcas e lembra:
63

Dois anos depois pedi nova transferência, agora para Petrópolis-RJ. Outro
choque cultural: o Rio de Janeiro... Lembro quando conheci aquela cidade
grande. Lá a dinâmica de trabalho dentro da escola também era mais amena,
mas a vigilância e o controle dos nossos corpos e hábitos transformava a vida
numa paranoia. Mas, acabou o segundo grau: acabou a relação com a Igreja!
Apesar desse alívio, cheguei a quase esquecer completamente que era índio.
Completamente! A discriminação era muito grande, eu negava em muitos
momentos, o que era uma grande bobagem da minha parte – as pessoas
próximas falavam que era ridículo, estava na minha cara. Nunca me propus a
ir a psicólogos, nem sei se eles resolveriam, mas foi uma grande questão
psíquica para mim. (Idem).

Somente o ingresso no curso de História faria emergir em Edson Machado Brito uma
outra perspectiva de si mesmo. Os debates incitados nas aulas do curso de História e a sua
entrada no movimento estudantil marcariam outros tempos, em que teve a oportunidade de
repensar sua trajetória de vida e entender a violência histórica do Estado e da sociedade contra
os povos indígenas no Brasil (BRITO, 2012).
Ao finalizar o curso de História, Edson Kayapó retornou ao estado do Amapá, onde
atuou como professor no ensino básico e superior. De forma paralela, o historiador se envolveu,
no Amapá, com movimentos ambientalistas, indígenas e sindicais. Em 2008, diante de
constantes pressões dos tradicionais grupos políticos da região do Amapá, vai para São Paulo
cursar mestrado em História Social, na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Na
sequência do mestrado, Edson Kayapó ingressa no Doutorado em Educação, História, Política
e Sociedade na mesma Universidade.
Em São Paulo, Edson Kayapó se envolve no movimento indígena nacional e sua intensa
e eloquente participação em fóruns, encontros e mesas redondas resultaram no seu
reconhecimento como intelectual indígena. A partir daí, conquistou a confiança de importantes
lideranças indígenas de todo o país.
Atualmente, Edson Kayapó é professor do Instituto Federal da Bahia e leciona em
cursos técnicos e licenciaturas, além de ser coordenador do curso de Licenciatura Intercultural
Indígena. Atuou na coordenação adjunta da Ação Saberes Indígenas na Escola
(MEC/SECADI). Recebeu, em 2015, o prêmio “Medalhão Indígena”, pela Academia dos
Saberes Indígenas e ganhou pela segunda vez o prêmio do 12º Concurso FNLIJ/INBRAPI
Tamoios de Literatura, Fundação Nacional do Livro Infanto-juvenil. Possui vasta produção
bibliográfica, entre artigos e livros, nos quais debate questões indígenas. Assim, Edson Kayapó
se constitui como um intelectual indígena que coloca em debate assuntos pertinentes e de
interesse das populações indígenas.
64

Quadro 7 – Produção de artigos e livros de Edson Kayapó, por ano, título, periódico, anais ou
editora e local de publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/ANAIS/EDITORA LOCAL
2016 Das margens. Nepan Rio Branco, Acre
2015 Os Karipuna do Amapá e os Revista Ñanduty Universidade
desafios para a implantação da Federal da Grande
educação escolar indígena Dourados,
diferenciada na aldeia do Dourados-MS
Espírito Santo (Brasil)
2015 A fronteira setentrional Edunifap Universidade
brasileira: da História pós- Federal do
colonial à formação de uma Amapá, Macapá.
fronteira tardia Amapá
2014 A pluralidade étnico-cultural Mneme (Caicó. Online) Universidade
indígena no Brasil: o que a Federal do Rio
escola tem a ver com isso? Grande do Norte,
Caicó – RN
2014 Memória da mãe terra. Thydewa Ilhéus
2013 Literatura Indígena e Revista Leetra Indígena Universidade
Reencantamento dos Corações Federal de São
Carlos, São Paulo.
2013 Formação de professores: Shekinah Feira de Santana
política, saberes e práticas.
2013 A literatura e os jovens Global Rio de Janeiro
2012 Da Escola Isolada Mista da Revista História Hoje Universidade de
Vila do Espírito Santo do São Paulo(USP),
Curipi à escola diferenciada São Paulo
entre os Karipuna:
entrelaçamentos na história da
educação escolar indígena.
2011 Do lado de cá: fragmentos de Açaí Belém-PA
história do Amapá
2010 Clevelândia do Norte Escritas (Goiânia) Universidade
(Oiapoque): tensões sociais e Federal do
desterro na fronteira do Brasil Tocantins,
com a Guiana Francesa Tocantins
2009 O ensino de História como Fronteiras (Campo Grande) Universidade
lugar privilegiado para o Federal da Grande
estabelecimento de um novo Dourados,
diálogo com a cultura indígena Dourados – MS
nas escolas brasileiras
2009 Antologia indígena Secretaria de Estado da Cultura do Cuiabá
Mato Grosso
2009 A escola Karipuna da aldeia do Anais do XI Congresso iberoamericano Rio de Janeiro
Espírito Santo (AP): uma da educação latino-americana. Ed.
escola da resistência indígena Quartet
na floresta.
2007 Considerações sobre o Revista da Associação Nacional de São Paulo, SP
processo de independência no Pós-Graduandos (PUCSP)
Grão-Pará
Fonte: Currículo Lattes
*Elaborado pelo autor
65

Edson Kayapó circunscreve o debate posto em suas produções dentro do campo da


História da Educação Indígena. Este intelectual indígena se dedica à produção de pesquisas
científicas que contribuam para divulgar e construir um olhar sem estereótipos sobre as
populações indígenas as quais defende. Além das produções autorais, Edson Kayapó mostra-se
um notável intelectual que participa de inúmeros eventos e entrevistas que o ajudam a divulgar
seu pensamento intelectual indígena.

4.3.3 Gersem Baniwa

Cenário paradisíaco com riqueza de fauna e flora e belas cachoeiras de águas


negras estas são características do lugar onde nasci em 1964, no Yanquirana
Rendá (Sitio Jaquirana) [...] Lá eu vivi a minha infância, adolescência e
juventude até os 30 anos de idade (LUCIANO, 2011, p. 14).

É assim que o indígena Gersem José dos Santos Luciano, também conhecido com
Gersem Baniwa, apresenta o lugar onde nasceu, em 11 de julho de 1964, em São Gabriel da
Cachoeira, estado do Amazonas, e onde cursou até a 3º ano do primário. Em busca da
continuidade dos estudos dos filhos e fugindo da escassez de alimentos, seus pais vão para a
sede do município.

Os anos de vida na aldeia foram marcantes. Acompanhava toda a atividade do


meu pai com quem aprendi as coisas da vida baniwa, das lições morais,
espirituais e as necessidades para a vida material e sociocultural. Frequentava
todas as atividades comunitárias. Gostava de pescar, caçar, trabalhar na roça
e produzir os materiais artesanais para minha mãe, utilizadas na produção de
farinha e seus derivados (LUCIANO, 2011, p. 15).

Gersem Baniwa reconhece a importância de sua infância na aldeia, que contribuiu


profundamente para a formação de sua personalidade e identidade. Lamenta por seus filhos,
devido à intervenção missionária na localidade da aldeia, não terem a oportunidade de vivenciar
as práticas de seu povo, seus rituais (LUCIANO, 2011, p. 15).
Aos 12 anos de idade aceitou o convite para estudar em uma escola missionária
salesiana, que funcionava em regime de internato e onde pode acessar séries mais elevadas,
permanecendo na instituição por nove anos (1975-1985), tendo permissão de voltar a sua aldeia
66

somente nas férias escolares. Gersem Baniwa experimentou no internato aquilo que ele define
como “o lado cruel da vida do homem branco” (LUCIANO, 2011, p. 15).
Em 1983, Gersem Baniwa finaliza o ensino médio com 20 anos de idade e retorna à
aldeia para atuar como professor. Após dois anos lecionando, Gersem Baniwa é convidado a
compor a primeira Diretoria Executiva da Federação das Organizações do Rio Negro (FOIRN),
na qual atuou como vice-presidente. O professor ativista indígena declara que em 1992 o
ingresso na universidade aconteceu devido à necessidade de formação enquanto membro, em
alguns casos dirigente, de várias organizações e instituições. Em 1995, formou-se em Filosofia
pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Seu intenso engajamento político como ativista o levou, em 1996, a ser eleito
coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(COIAB), para um mandato de dois anos, mas permaneceu somente por um ano e meio, pois
logo em seguida foi convidado a ser dirigente da Secretaria de Educação de São Gabriel da
Cachoeira (LUCIANO, 2011, p. 19).

Além da experiência como dirigente da FOIRN e da COIAB que totalizou 12


anos da minha vida, ainda atuei ativamente na criação e consolidação da
Comissão dos Professores Indígenas da Amazônia e Roraima-COPIAR (atual
Conselho de Professores Indígenas da Amazônia- COPIAM) e da Comissão
de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (CAPOIB).
(LUCIANO, 2011, p.20).

Em 1999 foi coordenador e gerente técnico do Projeto Demonstrativo dos povos


Indígenas29 (PDPI/MMA), permanecendo à frente da organização até 2003. A experiência
adquirida no movimento político indígena estimulou Gersem Baniwa a dar continuidade aos
estudos em nível de pós-graduação. No ano seguinte, deixa o PDPI para dedicar-se ao mestrado
em Antropologia na Universidade de Brasília (UnB). Um ano após a conclusão do mestrado,
ingressa no Doutorado em Antropologia na mesma universidade. Paralelamente, entre 2004 a
2008, Gersem Baniwa atua no Comitê Assessor do Projeto Trilhas de Conhecimento
(LUCIANO, 2011, p. 20).
No início do segundo semestre de 2008, a convite do Ministério da Educação, assume a
Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena na Secretaria de Educação Continuada,

29
O PDPI é um programa do governo brasileiro no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, de apoio a projetos
demonstrativos de iniciativas das comunidades indígenas da Amazônia Legal Brasileira (LUCIANO, 2011, p.
25).
67

Alfabetização e Diversidade (2008-2012). Torna-se membro do Conselho Nacional de


Educação (2016-2019). Atualmente, é membro do comitê assessor do Fundo Brasil de Direitos
Humanos e do Centro Indígena de Estudos e Pesquisas. Além disso, é professor adjunto da
Faculdade de Educação e Diretor de Políticas Afirmativas da Universidade Federal do
Amazonas (UFAM).
Gersem Baniwa, além da extensa participação no movimento indígena brasileiro e de
estar à frente de inúmeras instituições em prol das populações indígenas, possui larga produção
acadêmica entre artigos e livros. Participa de eventos científicos como conferencista e
congressista. Sua trajetória de vida no movimento indígena o tornou um expoente intelectual
indígena.

Quadro 8 – Produção de artigos e livros de Gersem Baniwa, por ano, título, periódico ou editora
e local de publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/EDITORA LOCAL
2014 Educação para manejo do mundo: Contracapa Rio de Janeiro
entre a escola ideal e a escola real
no Alto Rio Negro.
2013 Educação indígena no país e o Retratos da Escola Brasília
direito de cidadania plena
2012 Olhares Indígenas Identidade Visual Brasília
Contemporâneos II.
2012 Cenário Contemporâneo da Textos do Brasil Brasília
Educação Escolar Indígena no
Brasil
2010 Olhares Indígenas Supernova Design Brasília
Contemporâneos
2010 Cultura e Meio Ambiente sob a Cultura e Pensamento - Brasil
Ótica dos Povos Indígenas. Juventude e Ativismo
2010 Educação Escolar Indígena: Estado Revista FAEEBA Salvador, BA
e Movimentos Sociais.
2009 Indians in the Higher Education: a Amazônida (UFAM), Amazonas, UFAM
new challenge to the Indian and
Indigenist organizations in Brazil.
2009 A conquista da cidadania indígena Revista da Faculdade de Direito Porto Alegre – RS
como direito, pluralismo jurídico e da FMP
o fantasma da tutela no Brasil
contemporâneo.
2009 To Dominate the System an Not to Poverty in Focus - Indigenising Brasília – DF
be Dominated by it. Development
2008 Depoimento sobre o Rio Negro Instituto Sócio Ambiental Brasília – DF
In: Visões do Rio Negro -
construindo uma rede
socioambiental na maior bacia de
águas pretas do mundo
2008 Da Aldeia para a Universidade Presença Pedagógica Belo Horizonte
68

2008 Dilemas socioculturais dos povos Revista do Instituto Humanitas Porto Alegre/RS
indígenas contemporâneos. Unisinos
2007 Juventude Indígena e a Escola. Salto para o Futuro SEED, Mec. ???
2007 Proposta Pedagógica: Ensino Salto para o Futuro SEED, Mec. ???
Médio e Sustentabilidade em
Terras Indígenas.
2007 Movimentos e políticas indígenas Tellus (UCDB) Campo Grande – MS
no Brasil contemporâneo
2007 Autonomias Indígenas no Brasil:Anais do X Reunião de Aracaju
debates interculturais Antropólogos Norte-Nordeste
2007 Escritos Indígenas Tellus Campo Grande:
UCDB
2006 O Índio Brasileiro: O que você MEC/SECAD MUSEU Brasília
precisa saber sobre os povos NACIONAL/UFRJ
indígenas no Brasil de Hoje.
2004 O sonho de um Parlamento Índios e Parlamento Brasília – DF
Indígena no Brasil
2004 Educação Indígena: cidadania e abceducatio: a revista da São Paulo
diversidade educação
2003 História de Resistência. História de Resistência. Manaus/AM
2003 Uma lição de dedicação e luta Porantim Brasília/DF
1996 O Drama da Educação Escolar Anais do I Simpósio dos Povos Manaus, AM
Indígena Indígenas do Rio Negro: Terra e
Cultura
Fonte: Currículo Lattes.
*Elaborado pelo autor

A produção de Gersem Baniwa é extensa e se caracteriza por abordar a relação entre


populações indígenas e educação a partir de um debate científico. A produção científica de
Gersem Baniwa pode estar diretamente relacionada a sua atuação enquanto liderança política.
Assim, diferente de outras destacadas lideranças que utilizam o texto literário como alternativa
para descrever e apresentar as populações indígenas, esse intelectual tem no texto científico
acadêmico sua principal forma de discurso.

Quadro 9 – Produção de capítulos de livros de Gersem Baniwa, por ano, título, periódico ou
editora e local de publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/EDITORA LOCAL
2012 A Gênese da Educação Escolar Signorini Produção Gráfica São Paulo
Indígena no Rio Negro - Um Processo
Não Concluído.
2012 Escola Cariamã Signorini Produção Gráfica São Paulo
2012 A conquista da cidadania indígena e o UFMG Belo Horizonte:
fantasma da tutela no Brasil
contemporâneo.
2012 Territórios Etnoeducacionais: um novo Positiva Brasília
paradigma na política educacional
brasileira.
69

2012 Os desafios da educação indígena Pallotti Porto Alegre


intercultural no Brasil: Avanços e
limites na construção de políticas
públicas.
2012 Uma aventura entre a cruz e a espada Centro Nacional de Brasília
que mudou a história: 20 anos de luta Informação Ambiental –
indígena no Rio Negro Cnia
2010 As mudanças políticas indigenistas no Editora Fundação Perseu São Paulo
Brasil Abramo
2009 O papel da universidade sob a ótica dos Editora UCDB Campo Grande - MS
povos e acadêmicos indígenas
2009 Indígenas no Ensino Superior: Novo Nexo Design Curitiba
Desafio para as Organizações
Indígenas e Indigenistas no Brasil.
2008 Diversidade Cultural, Educação e a Autêntica Belo Horizonte
questão indígena.
2008 Povos Indígenas e Contexto Fundação Carlos São Paulo
Etnodesenvolvimento no Alto Rio Chagas
Negro
2008 O Índio Brasileiro Hoje Paralelo Brasília
2008 Biografia Gersem Baniwa Xapuri Editora Formosa/GO
2006 Desafios da Escolarização Instituto SocioAmbiental São Paulo
Diferenciada
2005 Violência contra a Criança e o UNICEF Brasil Brasília
Adolescente Indígena: Truculência e
intolerância étnica
2005 Proteção e Fomento da Diversidade Editora Casa de Rui Rio de Janeiro
Cultural e os Debates Internacionais. Barbosa
2005 Um Olhar Indígena sobre a assistência Contra Capa Rio de Janeiro e
técnica e extensão rural Brasília
2004 Educação: cidadania e diversidade - a CNE/UNESCO Brasília
ótica dos povos indígenas.
2004 O Sonho de Um Parlamento Indígena INESC Brasília
no Brasil. Índios e Parlamentos.
2004 Educação: cidadania e diversidade - a Edições UNESCO Brasil Brasília
ótica dos povos indígenas.
2001 Desafios para execução de uma política PROART São Paulo
municipal de educação escolar
indígena
Fonte: Currículo Lattes.
*Elaborado pelo autor

Gersem Baniwa possui uma extensa produção autoral. Sua participação em diversas
entidades indígenas contribui para que suas produções debatam questões diversas dentro da
temática indígena. De maneira ampla, sua produção converge para os aspectos políticos,
educacionais e etnoterritoriais que envolvem as populações indígenas brasileiras. Portanto, para
construir seu pensamento, utiliza com frequência experiências e marcos que seu povo
vivenciou.
70

4.3.4 Naine Terena

Descendente Terena por parte de mãe, Naine Terena de Jesus, mesmo não tendo nascido
na Aldeia Limão Verde do Município de Aquidauana, nem no estado de Mato Grosso do Sul,
sempre teve proximidade e facilidade de estar e dialogar com seu povo. Ainda que
geograficamente distante da aldeia Terena, em seu núcleo familiar recebeu grande influência,
tanto por parte de sua mãe, Terena, quanto por parte de seu pai, que era indigenista (NEGRÃO,
2013).
Naine Terena tem graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de
Mato Grosso. Em 2004, inicia o mestrado em Artes na Universidade de Brasília (UnB). Segue
os estudos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) onde, em 2010, ingressa
no doutorado. Retorna à UFMT em 2014 para o pós-doutorado. Essa doutora Terena tem usado
sua formação para discutir o papel dos indígenas como protagonistas na educação e na
comunicação. Assim, os trabalhos de Naine Terena estão vinculados à etnomídia, pois é
defensora de uma apropriação cada vez maior por parte dos povos indígenas de todos os
instrumentos de comunicação para a construção e confecção de narrativas próprias.
Atua como pesquisadora no Laboratório de Tecnologia, Ciência e Criação da UFMT e
foi professora no Centro Universitário de Várzea Grande, Universidade Federal de Mato Grosso
e na Universidade do Estado de Mato Grosso. Em 2014 iniciou o “Projeto Territórios Criativos
Indígenas: arte e sustentabilidade”, que foi desenvolvido por meio de atividades de pesquisa e
capacitação em quatro comunidades indígenas do Mato Grosso, com o objetivo de projetar
estratégias de sustentabilidade e geração de renda geridas pelas próprias comunidades.

Para além dos trabalhos com foco em etnomídia e empreendedorismo dentro


das aldeias, Naíne luta pelo cumprimento da Lei nº 11.645, de 2008, que prevê
a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas
escolas brasileiras. Segundo ela, são poucas as instituições de ensino que tem
cumprido a lei. “Nós temos um problema porque até mesmo os professores
não passaram por uma formação específica pra dar esse tipo de conteúdo, os
materiais didáticos são fracos. O professor não sabe como colocar essa
temática dentro da sala de aula. Estamos lutando para que isso não se torne
uma disciplina optativa [...]”. (TENÓRIO, 2016).

Naine Terena defende a implementação da lei e de uma formação coerente com a oferta
desse conhecimento. O trabalho dessa indígena intelectual tem ajudado a denunciar as
atrocidades sofridas pelo povo Terena, especialmente no Mato Grosso do Sul, pressionado pelo
71

latifúndio e pelo descaso dos governos estadual e federal, que contam com o apoio da grande
mídia, a qual constantemente procura desmoralizar as causas indígenas. Essa intelectual
indígena divulga, ainda, em página virtual do Facebook e no site “Notícias Indígenas”, matérias
relevantes produzidas por diversos veículos e por ela mesma sobre indígenas. Destaca Jesus
(2015):

Além de artigos e contos, Naine é também autora de textos teatrais. Atua como
consultora e assessora de imprensa através da Oráculo Comunicação,
educação e Cultura (M.E.I). No campo da literatura foi uma das organizadoras
das duas edições da Feira do Livro indígena de MT, das Caravanas Literárias
Mekukradjá nos Estados de São Paulo, Amazonas e Mato Grosso e é membro
do Núcleo dos Escritores indígenas e Instituto Uka, entidade que visa dar
visibilidade para a cultura indígena. Dentre as atividades em assessoria de
imprensa estão o Encontro Nacional de Contadores de Histórias (2012),
Temporada de Teatro Grupo Tibanaré (2012/2013), Lançamento do Vídeo
sobre o escritor cuiabano (Membro da Academia matogrossense de Letras)
Ivens Scaff (2013), Evento Novembro Negro (2009/2010). Atualmente é
professora do curso de Comunicação Social - publicidade e propaganda e
relações públicas da Universidade de Várzea Grande (MT). Tem artigos
acadêmicos publicados e tem se dedicado a palestras sobre educação escolar
indígena e também, a Lei 11.645/08. Foi avaliadora de obras para o PNBE
Temático em 2013. Neste mesmo ano foi revisora dos cadernos do
ETECUAB-UFMT. Organizou Seminários, eventos e workshops como a
mesa redonda Teatro em MT - perspectivas (2013), o Seminário Observatório
da Educação indígena (2013) e as oficinas, palestras. Para teatro escreveu e
adaptou textos encenados pelo seu grupo, nos anos de 1998 a 2007. Entre os
textos de sua autoria estão: Meu pai é um lobisomem (infantil), a última ceia
(adulto), Pout-porri brasileiro (adulto). A contação de histórias Hararai´ti -
baseada num mito Terena. (JESUS, 2015, p. 1-4).

Naine Terena é uma intelectual crítica que atua ativamente em muitas frentes. Além de
defender as populações ameríndias em sua produção científica e cultural, está engajada
politicamente com o bem-estar dos povos indígenas. Seu ativismo ultrapassa suas inúmeras
produções literárias e científicas e se materializa no próprio discurso presente nas inúmeras
entrevistas que vem cedendo a vários meios de comunicação.

Quadro 10 – Produção de Artigos e Livros de Naine Terena, por ano, título, periódico ou editora
e local de publicação*
ANO TÍTULO PERIÓDICO/EDITORA LOCAL
Cineclube e Inclusão:
Revista de Educação, Língua Universidade Estadual de
2018 Relatos De Educadores De
e Literatura Goiás, Inhumas, Goiás.
Cáceres - MT.
Ciberprofessores Tear: Revista De Educação, Instituto Federal de Educação,
2017
indígenas: narrativas Ciência E Tecnologia Ciência e Tecnologia do Rio
72

através das Tecnologias da Grande do Sul (IFRS), Rio


Informação e da Grande do Sul
Comunicação
Espacios-tiempos de la
infancia Terena: del patio Revista Complutense Universidad Complutense de
2017
de casa a la escuela Sociedad e Infancia Madrid, Espanha.
indígena
Anais do IX Seminário
Dança e Currículo: O
2017 Internacional - As Redes Rio de Janeiro
Corpo Na Escola.
Educativas e As Tecnologias
Do Cineclube em Cáceres
Universidade Federal do
2017 às Tecnologias na Escola Cadernos de Pesquisa
Maranhão, São Luís.
Indígena Lutuma
Narrativas de Infâncias
entre os
Praticantespensantes da
Educação através do
Universidade Federal do
2017 Projeto? Cinema, Educação em Debate (UFC)
Ceará, Fortaleza.
Infâncias E Diferença:
Problematizando a
Educação, o Cotidiano da
Escola e o Currículo?
Presença dos indígenas de
Mato Grosso na internet e
na produção de mídias: Universidade Municipal de São
2015 Comunicação & Inovação
militância, Caetano do Sul, São Paulo.
sustentabilidade e
memória.
Presença indígena no
Universidade Federal do
2015 Facebook e a construção Fronteiras e Debates
Amapá, Amapá.
de narrativas.
2015 Memória da Mãe Terra. Ed. Thydêwá. Salvador, Bahia
Universidade Federal de São
2014 Sete anos. Letra Indígena
Carlos, São Paulo.
2014 Três gerações. Ed. Thydewá. Salvador, Bahia
Edições Vni / Associação
Descortinando as relações Latino-Americana de
2014 Salvador, Bahia
públicas em Mato Grosso. Relações Públicas (ALARP)
Internacional.
Os índios gordos, o Universidade Federal de São
2012 Leetra Indígena – Ufscar
facebook e a identidade. Carlos, São Paulo.
O Redescobrimento do Universidade Federal de São
2012 Leetra Indígena – Ufscar
Brasil. Carlos, São Paulo.
Capítulo: Diari visual, mi
2007 Ed. Costa & Nolan Milão
vedono, ci vediano
O audiovisual e o ensino
2007 Editoria Universitaria Cuiabá
de história.
Diários Visuais - as Coma – Coletivo do
2005 Brasília
mulheres Terena. Mestrado Em Artes
Fonte: Currículo Lattes
*Elaborado pelo autor
73

De modo similar aos demais indígenas intelectuais escolhidos, Naine Terena parte da
experiência de seu povo para elaborar seu discurso científico de luta. Sua produção intelectual
engloba a presença e a reapropriação das mídias entre as populações indígenas, as práticas
corporais como forma de resistência e questões de gênero e indígenas.
As produções dos intelectuais indígenas, que elencamos nesta dissertação, apontam para
perspectivas epistemológicas diversas, mas que pretendem, de modo geral, dar visibilidade aos
anseios de algumas das populações indígenas brasileiras. É notório que as produções destes
sujeitos intelectuais estão publicadas ou foram elaboradas como produções de alto impacto,
pois atenderam aos critérios daquilo que se classifica como “trabalho científico/acadêmico” ou
“trabalho intelectual” na academia.
Outro aspecto comum se refere à centralidade da temática abordada nessas produções.
Apesar da formação diversificada entre os intelectuais indígenas, que têm suas produções
acadêmicas analisadas nesta dissertação, os debates por eles propostos convergem para o
fenômeno educacional.
Dessa maneira, cada autor/intelectual indígena, ao tratar dos fenômenos delineados em
suas teses, parte de assuntos educacionais como temas basilares para expandir suas análises.
Essa convergência ao tema educação, talvez seja decorrente da concepção que muitos indígenas
possuem30 sobre a reapropriação de um instrumento ocidental/colonial importante – a educação
– como ferramenta para a luta contra a própria colonialidade.

30
É possível encontrar nas narrativas dos autores, quer seja em suas produções acadêmicas quer seja em
entrevistas, que a educação é uma ferramenta de luta contra a inferiorização e subalternização a que os indígenas
são colocados.
74

5 O QUE DIZEM AS TESES DOS INTELECTUAIS INDÍGENAS BRASILEIROS


SOBRE EDUCAÇÃO?

O acesso e a permanência de indígenas na educação superior têm contribuído para a


existência de uma crescente produção acadêmica de autoria indígena. Essa produção
compreende monografias, dissertações, teses, artigos, capítulos de livros, assim como livros,
que são resultantes de diferentes etapas na formação superior. Esses textos apresentam
temáticas relevantes de pesquisa e são “fruto de reflexões que os autores indígenas elaboram a
partir de suas trajetórias e experiências de vidas densas e complexas” (PALADINO, 2016, p.
95). No entanto, tais textos não têm no meio universitário ou no mercado editorial a visibilidade
necessária.
Segundo Paladino (2016), a produção acadêmica de autoria indígena, diferentemente da
produção literária e da produção de livros didáticos, é pouco estudada enquanto gênero textual.
Esta dissertação é uma das poucas que se propõem a analisar as produções autorais indígenas e
se torna ainda mais específica por associar essa produção aos fenômenos educacionais
estudados pelos autores.
Além disso, as produções acadêmicas analisadas nesta dissertação são oriundas de
cursos de doutorado de universidades brasileiras, por isso, apresenta outro diferencial, haja vista
que pesquisas desse tipo também têm sido pouco realizadas. As teses analisadas não estão
concentradas em programas de pós-graduação de uma única área, embora pertençam
predominantemente à grande área das Ciências Humanas, como os programas de Educação e
Antropologia.
Obviamente, devido à natureza dos objetos, métodos e das teorias que norteiam cada
produção, detectamos divergências no percurso delimitado pelo intelectual que a produziu, no
entanto, podemos afirmar que essas teses têm em comum o interesse expresso de seus autores
em estudar fenômenos educacionais, quer seja em suas localidades de origem étnica quer seja
de forma mais ampla, no contexto nacional.
As teses analisadas são as seguintes: “A Educação Karipuna do Amapá no contexto da
Educação Escolar diferenciada na Aldeia do Espirito Santo” de Edson Kayapó (BRITO, 2012);
“Audiovisual na Escola Terena Lutuma Dias: Educação Indígena diferenciada e as mídias” de
Naine Terena (JESUS, 2014); “A educação para o manejo e domesticação do mundo entre o
ideal e o real: os dilemas da Educação escolar indígena no Alto Rio Negro” de Gersem Baniwa
(LUCIANO, 2011); e “O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990)” de
Daniel Munduruku (MUNDURUKU, 2012). Esta última foi lida já na forma de livro.
75

Para descrever e analisar estas produções, utilizamos critérios correspondentes àqueles


definidos por Paladino (2016), que, de maneira breve, analisou produções acadêmicas de
autoria indígena, defendidas em programas de pós-graduação. Adaptamos estes critérios para
que fosse possível fazer um debate diferente daquele efetuado por Paladino.
Em nossa análise consideramos a estrutura da tese, seu conteúdo e inferência para além
do texto. Dessa forma, buscamos descrever e refletir sobre os seguintes itens: a) a forma como
o texto está estruturado; b) as motivações apontadas pelos autores para cursarem a pós-
graduação; c) as abordagens e temáticas desenvolvidas; d) as concepções expressas; e) a
identidade; f) as críticas aos estereótipos sobre as identidades indígenas; g) a memória ancestral
(cultural e individual).
Esses critérios também denominados por nós como eixos norteadores serviram para que
pudéssemos aproximar pontos de debate comuns e divergentes entre os textos. Acreditamos
que ao descrever e refletir sobre esses itens, podemos identificar a maneira como cada autor
manifesta seu pensamento, marca sua identidade indígena, e encaminha seu debate.

5.1 ESTRUTURA DAS TESES

De acordo com Paladino (2016, p. 100), os autores indígenas na introdução de suas


produções destacam seu lugar de lideranças. Assim, descrevem suas biografias e trajetórias,
demonstrando os diferentes espaços que atuam, cargos que ocuparam e militância política ou
religiosa que estiveram engajados. Nestas construções autobiográficas, Paladino diz reconhecer
um traço moderno. Assim, considera que os indígenas que realizam pós-graduação são
lideranças modernas, pois não assumem um perfil tradicional de prestígio e autoridade. As teses
analisadas nesta dissertação, de igual modo, têm nas introduções a apresentação da vida e
trajetória de seus autores.
Quanto à estrutura das produções acadêmicas de autoria indígena, Paladino (2016) nos
aponta que não inovam em sua estrutura e formato, ou seja, seguem o mesmo padrão de
qualquer outra produção acadêmica convencional. Da mesma maneira, as teses dos intelectuais
indígenas por nós analisadas não apresentam estrutura e formato divergentes das analisadas por
Paladino (2016) e apresentam a mesma estrutura canônica de qualquer outra tese.
Segundo Paladino (2016), a produção acadêmica de autoria indígena, em sua maioria,
segue o seguinte padrão:
76

a) Dedicatórias e agradecimentos: Deus está muito presente e costuma


presidir os agradecimentos. Também se mencionam os parentes mais
próximos. Os homens agradecem especialmente às mulheres (não aparece isso
tão evidente nas mulheres pós-graduandas para com os maridos).
b) Introduções: Quase todos começam descrevendo as trajetórias pessoais,
enfatizando as contingências que os levaram a estudar na universidade e as
estratégias para isso; e mostram o compromisso com alguma causa.
c) Objetivos: A leitura dos trabalhos levantados permite entender que as
questões que preocupavam os autores e que orientaram suas interrogações
estão estreitamente vinculadas às suas trajetórias, seus campos de atuação
profissional e militante, ou a processos que envolvem seus povos, nos quais
eles são atores importantes, isto é, trata-se de um esforço de compreender
questões que estão muito presentes no dia a dia dos autores.
d) Marco teórico e discussão conceitual: O marco teórico varia segundo a
área do programa de pós-graduação no qual o autor está inserido. No entanto,
nos trabalhos analisados predominam discussões baseadas em teorias próprias
das Ciências Sociais e da Antropologia em especial. Essas teorias são
utilizadas para fundamentar ou jogar luz sobre as observações realizadas e são
raros os casos que as questionam. (PALADINO, 2016, p.108-110).

Os trabalhos dos intelectuais indígenas Naine Terena, Gersem Baniwa e Edson Kayapó
apresentam a mesma estrutura apontada por Paladino (2016). Apesar da produção de Daniel
Munduruku estar em formato de livro, ela tem estrutura similar à estrutura das teses.
Acreditamos que a forma de apresentação dos trabalhos dos intelectuais indígenas no
gênero tese é mais uma imposição a este sujeito para que lhe seja reconhecida sua
intelectualidade, portanto, configurando-se como mais uma maneira de desrespeito com a
lógica (não-ocidental) desse intelectual para a construção do conhecimento. Em contrapartida,
a construção de uma produção nesse formato por um indígena permite a legitimação de sua
intelligentsia e a desconstrução do estereotipo de sujeito incapaz de um pensamento abstrato e
complexo.
Nas produções acadêmicas aqui analisadas são adotados os marcos teóricos das Ciências
Sociais e da Antropologia.
Os conceitos presentes nessas produções e que norteiam o debate são: educação
indígena, processos educacionais para e dos povos indígenas, apropriação e resistência,
interculturalidade, conhecimentos indígenas/tradicionais e territorialidade. As teses analisadas
nesta dissertação apresentam conceitos predominantemente sobre educação indígena,
escolarização para e dos indígenas, aspectos estruturais, didáticos e pedagógicos da escola
(para) indígenas, identidade indígena e subalternidade/resistência.
77

Os intelectuais indígenas abordam interessantes temáticas que possibilitam um diálogo


entre indígenas e não indígenas, assim como uma discussão sobre produção de conhecimento e
as repercussões que um olhar estereotipado ou colonizador impetra nas populações indígenas.
Contudo, antes de iniciarmos nossa análise dos pontos convergentes e divergentes nas
produções acadêmicas oriundas de programas de doutorado, é importante expor – mesmo que
de maneira sucinta – um panorama dessas produções para que o leitor possa situar-se.

5.2 PANORAMA DAS TESES ANALISADAS

Para as populações indígenas, a busca pelo acesso à pós-graduação está relacionada


diretamente às formas de lutas que tentam encampar. Essas formas de luta são resistências a
estereótipos, idealizações e a condições de subalternidade que são impostas aos sujeitos
indígenas. Os indígenas que estão na universidade têm em sua maioria bastante clareza sobre
os motivos que levaram povos indígenas inteiros a se submeterem a condições tão hostis. A
seguir, então, descrevemos o que levou cada autor realizar seu estudo.
Daniel Munduruku se coloca como um ativista da cultura indígena no Brasil.
Inevitavelmente, isso se reflete na sua produção acadêmica e literária. Sua produção reivindica
um olhar não eurocentrado sobre a cultura das diversas populações indígenas do país. Em sua
tese, defendida na Universidade do Estado de São Paulo, o escritor apresenta como motivação
central a necessidade que sente em revelar a importância do movimento indígena brasileiro para
a insurgência das populações étnicas do país.

Um dia decidi que colocaria minha formação a serviço do Movimento


Indígena, sem abandonar a minha formação acadêmica e sem abrir mão do
meu estilo literário e das minhas próprias articulações com o movimento. Foi
dessa maneira que me tornei um indígena em movimento, com o propósito de
compreender as diferentes facetas de atuação e encontrar meu lugar dentro de
um movimento político capaz de responder de forma efetiva aos diversos
estereótipos engendrados na mente da sociedade brasileira (MUNDURUKU,
2012, p. 18).

Edson Kayapó, por sua vez, busca sua religação com os povos e com uma identidade
indígena e, por isso mesmo, seus trabalhos têm nisso sua motivação. Sua produção não analisa
a população indígena da qual é originário – os Kayapó. Isso nos permite conjecturar que a sua
trajetória de vida e o seu distanciamento desse povo colocam esse intelectual indígena como
um sujeito de identidade indígena fragmentada, pois, embora seja Kayapó, desenvolve seus
78

estudos entre os Karipuna, povo com o qual desde a infância teve maior aproximação. Diante
do contato que possui com a população Karipuna do Amapá, ele debate em sua tese as
repercussões que a educação escolar indígena diferenciada causou nesse povo, tem assim como
intenção apresentar os aspectos organizacionais dessa população que foram alterados pela
educação escolar introduzida na vida desse povo na década de 1990. Sendo assim, a motivação
por nós identificada na tese decorre da defesa do autor da população Karipuna, de críticas que
estabelece às políticas do estado que desconsideram a cultura desse povo.
Gersem Baniwa aponta, logo na introdução, sua apresentação e suas motivações. Se em
um primeiro momento, a formação superior lhe serviria para conseguir articular os anseios de
seu povo com entidades nacionais, mais tarde, com a pós-graduação, num segundo momento
serviu para enfrentar as formas coloniais de subalternidade. Sua tese é um estudo em defesa da
escolarização para os povos indígenas. Pelo acesso à escola e à universidade, acreditava ser
possível o enfrentamento da subalternização e da inferiorização.

A continuidade na formação acadêmica em nível de pós-graduação foi


consequência dessa primeira experiência tanto no aspecto do gosto e da
vontade de desvendar e conhecer mais o mundo branco quanto no aspecto das
necessidades técnicas e instrumentais de empoderamento e qualificação das
funções que fui assumindo dentro do movimento indígena e indigenista do
país. Meus interesses nunca foram apenas de aprender e partilhar os meus
conhecimentos, mas também de contribuir com processos de construção de
políticas mais coerentes com os anseios indígenas, tendo participado
intensamente de diferentes momentos e espaços de discussões e experiências
de iniciativas nessa direção (LUCIANO, 2011, p.22).

Seguindo o mesmo percurso de valorização da cultura/povo indígenas e enfrentamento


de impropérios a ele aplicado, Naine Terena apresenta como motivação promover a valorização
do conhecimento indígena com vistas ao rompimento de ideias e pensamentos estereotipantes
e idealizantes do povo Terena. A intenção da autora é demonstrar como a população Terena
tem construído um mecanismo de divulgação, arquivamento e promoção de sua cultura por
meio de recursos audiovisuais, que acabam por penetrar na escola. Isso nos permite inferir que
a motivação da autora é divulgar essa população indígena descontruindo idealizações e
estereótipos.
A análise das motivações para a escrita das teses nos permite afirmar que, embora haja
anseios próprios elencados por cada autor, há um ponto em comum entre eles: a defesa das
populações indígenas, assim como a divulgação, proteção e insurgência dessas mesmas
populações.
79

As teses levantadas abordam temáticas voltadas para questões indígenas. De modo mais
particular, traçam discussões que estão relacionadas a seu próprio grupo étnico ou à perspectiva
que este possui sobre determinado fenômeno.
Paladino (2016), quando analisa as produções acadêmicas indígenas, sinaliza que
nenhum dos textos por ela levantados pesquisavam temáticas da sociedade não indígena
envolvente. Essa autora também afirma que:

Embora alguns deles abordem assuntos vinculados às políticas indigenistas,


às ações do Estado e das missões e às relações inter-étnicas com diferentes
setores da sociedade brasileira, são poucos os que tentam compreender e
explicar as lógicas, discursos e práticas desses agentes. (PALADINO, 2016,
p. 110).

Essa afirmação de Paladino (2016) é ratificada em nossa pesquisa, pois as teses


levantadas abordam temáticas indígenas sem exceção e seus autores têm um discurso que visa
dialogar com um leitor não indígena. É perceptível também nas produções selecionadas, mais
especificamente nas teses que não estão em formato de livro, que os autores partem da realidade
de seu povo para construir suas explicações.
A tese que foi publicada em formato de livro, ou seja, a obra de Daniel Munduruku, é a
única a fazer referência ao fato de que a análise por ele feita inicialmente envolvia seu povo,
mas que no livro a perspectiva dessa etnia não se faria presente.
Constatamos, como ponto de ancoragem para a exposição dos debates expressos pelos
intelectuais indígenas, a reafirmação de suas identidades indígenas. Nas teses, fica evidente a
manifestação da identidade indígena, que é usada de maneira a dar visibilidade às identidades
étnicas dos autores. Para Luciano (2006), a reafirmação da identidade indígena e a recuperação
do orgulho étnico foram possíveis graças à “consolidação do movimento indígena, a oferta de
políticas públicas específicas e a recente e crescente revalorização das culturas indígenas”
(LUCIANO, 2006, p. 29). Sendo assim, ao adotar a identidade indígena como ponto de debate,
de algum modo os autores analisados nesta dissertação procuram dar notoriedade à sua
identidade étnica particular, ou seja, mesmo nem sempre sendo de forma explícita, afirmam-se,
Terena, Kayapó, Munduruku e Baniwa.
Dessa maneira, identidade indígena é compreendida por nós como a “autoidentificação
do sujeito indígena, decorrente do laço de pertencimento que o liga ao seu grupo étnico e,
concomitantemente, o reconhecimento pelo grupo de que essa pessoa é um dos seus”
80

(WAGNER, 2018, p. 125), mas, também, a associamos à distinção de um determinado grupo


que possui sentimento de origem comum. Aliás, é esse sentimento de origem comum que
podemos identificar nas teses como predominantes na construção do diálogo posto pelos
intelectuais.
As temáticas que envolvem as pesquisas são de natureza diversa. Daniel Munduruku
aponta para a importância do movimento indígena brasileiro para a insurgência dos povos.
Edson Kayapó aborda a inserção da educação indígena entre o povo Karipuna como fator de
transformação de sua organização social. Gersem Baniwa e Naine Terena constroem seu
discurso a partir de experiências educacionais que podem colaborar para a valorização e formas
de resistência indígena.
Os textos das teses apresentam concepções diversas, ainda que sobre o mesmo
fenômeno. As concepções expressas em sua escrita doutoral, ou melhor, na tese, estão
diretamente ligadas à trajetória de vida de seus autores. Independentemente de sua escolha
temática, todas as produções levantadas por nós apresentam como traço comum a relação
educacional com seus objetos de análise e seus sujeitos.
Daniel Munduruku, por exemplo, embora debata o movimento indígena brasileiro,
propõe-se a revelar o caráter educativo circunscrito nesse movimento. Então, salienta como
dentro dos movimentos indígenas é possível se educar para lutar pelas demandas indígenas.
Por sua vez, Edson Kayapó, apesar de enfatizar as repercussões das políticas
integracionistas, mais pontualmente na educação escolar para os Karipuna do Amapá, descreve
não só a transformação da organização social, como também a apropriação desse povo por um
modelo de educação que esteja mais alinhado com os seus anseios.
Gersem Baniwa é, talvez, um dos intelectuais indígenas que mais deixa evidente em sua
tese a relação de seu estudo com o tema “educação”. O autor evidencia como a educação e a
escolarização contribuem para práticas de resistência e de enfrentamento. Pondera ainda que,
embora a educação seja uma “ferramenta de colonização dos brancos”, ela pode ser apropriada
pelas comunidades indígenas para a superação da subalternidade.
Já Naine Terena, ao dialogar sobre a inserção das mídias audiovisuais na aldeia Limão
Verde, comunidade de sua origem étnica, revela os modos de apropriação destas pelos Terena.
Apoia-se no processo educacional como fator de estimulação de uso dessas mídias. Por isso,
descreve o processo de contato com as ferramentas midiáticas e o modo como estas foram
introduzidas na sala de aula da escola em que realizou sua pesquisa de campo.
81

O exposto sobre as temáticas e a relação com Educação nos permitem inferir que as
teses, mesmo aquela publicada em forma de livro, convergem seus debates em algum momento
para a explicação de como a educação ou a escolarização podem influenciar e promover o olhar
sobre questões indígenas, seja para salvaguardar uma memória ancestral seja para valorizar a
cultura indígena, ou ainda para estimular e construir formas de revide contra impropérios ou
subalternidades infligidas às populações indígenas.

5.3 FENÔMENOS EDUCACIONAIS E O PENSAMENTO DOS INTELECTUAIS


INDÍGENAS NAS TESES.

“O que você veio fazer na sala de aula?” é o título desta dissertação por acreditarmos
que expressa com maior precisão o que as teses analisadas tentam abordar, inclusive, essa frase
foi retirada e adaptada da tese de um dos intelectuais indígenas, no entanto, identificamos que
esta mesma frase ecoa nas demais teses.
O questionamento que dá título a esta dissertação foi, em nossa perspectiva, feito
inúmeras vezes aos intelectuais indígenas que produziram as teses que analisamos. Obviamente,
as respostas dadas por esses intelectuais apresentam pontos comuns e divergentes. Por sua vez,
este questionamento sinaliza como a presença indígena na escola ou universidade ainda
incomoda.
Dessa forma, ao buscarem responder esta pergunta, seja para si mesmo ou a outros, os
indígenas intelectuais declaram em suas teses os processos pessoais, acadêmicos e profissionais
que percorreram. Inevitavelmente, na busca por responder ao leitor esta pergunta, esses
intelectuais apontam para a identidade indígena como algo que foi colocado a prova e
insistentemente estimulada a ser negada.
Nas teses, invariavelmente, percebemos que todos os intelectuais enfatizam a própria
experiência para descrever como a identidade indígena tem sido subalternizada e silenciada,
bem como, dissertam sobre como esta identidade é usada como justificativa para a manutenção
da dominação e/ou insurgência dos povos indígenas.
É evidente que essa subalternidade e silenciamento aplicados às identidades indígenas
não é um fenômeno recente. Desqualificar a identidade indígena é outra estratégia engrendrada
pela colonialidade para negar-se também a identidade Baniwa, Terena, Kayapó, Munduruku
etc. Segundo Luciano (2006) essa natureza desqualificadora e pejorativa dada à identidade
indígena incidiu sobre muitos sujeitos indígenas que negavam e reprimiam sua identidade étnica
particular.
82

Outro aspecto que consta nas teses diz respeito ao acesso à escola e aos modelos de
educação escolar indígena no país. A escola e a educação oferecida por ela, segundo as teses
analisadas dos intelectuais indígenas, demonstra que para superar a visão subalternizante
atribuída à identidade indígena os povos indígenas têm creditado à educação escolar indígena
a esperada mudança de concepção sobre seus povos. Os pensamentos expressos pelos
intelectuais indígenas em suas teses convergem para a importância da educação escolar
indígena como ferramenta de enfrentamento às investidas colonizadoras.
Devido aos debates suscitados pela importância da escola entre as populações indígenas
e como ela pode ajudar a superar as estratégias de dominação impostas, as teses incidem
também em apresentar concepções de educação escolar indígena, bem como os fenômenos
resultantes desse acesso à escolarização em diversos níveis.
Consequentemente, ao expressarem suas concepções e os fenômenos da educação
escolar indígena, os autores trazem os principais desafios e limitações identificados para que
esta aconteça a contento e seja de fato uma educação desejável pelas populações indígenas.
Mesmo com as particularidades de cada povo, as teses delineiam como principais problemas
fatores estruturais e pedagógicos.
Além disso, dissertar sobre educação escolar indígena, nas teses dos intelectuais
indígenas, resulta em estabelecer comparações sobre como ocorre a educação escolar indígena
em paralelo com a educação da tradição indígena ou ainda se mostra um caráter de
complementariedade entre ambos os tipos de educação. Por isso, de igual modo, os intelectuais
indígenas apresentam em suas teses concepções e fenômenos sobre educação da tradição
indígena.
Por conta do caráter diversificado de objetos, métodos, técnicas de análise e da
concepção discursiva, as teses apresentam peculiaridades e debatem sobre questões específicas
que estão, obviamente, correlacionadas ao debate principal de suas teses.
Em síntese, podemos afirmar que as teses analisadas nesta dissertação debatem
temáticas voltadas para a identidade indígena, o pensamento indígena sobre a educação escolar
indígena, bem como suas repercussões, concepções e fenômenos de educação escolar indígena
e de educação da tradição indígena, além de destacar os desafios e limitações da educação
escolar indígena e, de maneira adicional, sobre questões outras que concernem aos objetos por
eles analisados.
83

5.3.1 Identidade Indígena: a ênfase na própria experiência

Identidade e pertencimento étnico são conceitos dinâmicos de construção coletiva,


social e individual. De acordo com Cunha (1994, p. 121) “pode-se entender a identidade como
sendo simplesmente a percepção de uma continuidade, de um processo, de um fluxo, em suma,
uma memória”. A identidade indígena foi, graças ao movimento indígena, reconstruída como
uma qualidade e seu termo foi reapropriado.
Se antes ter uma identidade indígena significava pertencer a um grupo de “selvagens”,
“desqualificados”, “primitivos” e era motivo de vergonha, atualmente, como afirma Oliveira
(2006), a auto-afirmação da identidade indígena passou a ser uma regra de aceitação e
pertencimento, motivo de orgulho e de valorização daquilo que esse autor definiu como um
“nós tribal”. Rejeitamos, no entanto, este último termo, preferimos a ideia de identidade
indígena conforme define Daniel Munduruku (2012), isto é, como “consciência nacional pan-
indígena”.
Salientamos que ao falar de identidade indígena não estamos nem queremos reforçar a
concepção de uma identidade genérica, mas sim, como afirma Luciano (2006, p.40), “uma
identidade política simbólica que articula, visibiliza e acentua as identidades étnicas de fato, ou seja,
as que são específicas”. Nesses termos, acreditamos que a identidade indígena possibilita a
visibilidade da identidade étnica particular permitindo marcar a diferença entre um grupo
específico, com características distintas, mas que compartilham origens comuns, sem anular a
especificidade de outros.

O processo colonizador impôs aos povos indígenas o contato com inúmeros


instrumentos, instituições e mecanismos coloniais que impactaram diretamente na maneira
como esses indígenas os assimilariam e os utilizariam para a própria sobrevivência de si e de
seus grupos. Esperava-se com essa imposição colonial que os indígenas negassem ou
“esquecessem” sua origem étnica e sua identidade indígena, para que se tornassem apenas
“cidadãos brasileiros”.
O contato dos povos indígenas com outras populações, principalmente com o
colonizador, incidiu, para Munduruku (2012), na transfiguração étnica que foi, para este
intelectual indígena, responsável pela insurgência desses povos. Por isso, em sua tese Daniel
Munduruku aponta que o conceito de transfiguração étnica possibilitou maior consciência de
uma identidade indígena, pois, permitiu aos povos perceberem com maior clareza o que
estavam enfrentando. Munduruku reconhece que esse processo de transfiguração étnica foi um
84

dos principais motivos de “aniquilação” de muitos povos indígenas, mas, considera que graças
à inventividade de outras populações indígenas, que estavam em contato constante com a
sociedade nacional, “colocou-os em situação de enfrentamento, o que, às vezes, culminou no
processo de convivência, que, se não lhes tirou a identidade étnica, fez com que a tivessem que
ocultar em nome da própria sobrevivência” (MUNDURUKU, 2012, p. 39).
Ser indígena não foi, nem é uma condição fácil de suportar. Historicamente, muitos são
os vieses de interpretação do que sejam esses sujeitos. Entre as ciências que tentaram definir o
que é ser indígena ou ser índio31 temos a Antropologia, que inicialmente adotava o critério
biológico, abandonado por sua inoperância, passando a assumir o modelo cultural como
parâmetro definidor (MAHER, 1996).
Há também a definição elaborada na Convenção nº 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais em Estados Independentes e a do Estatuto
do Índio que, grosso modo, consiste em denominar indígenas àqueles que se autodeclaram e
que possuem consciência de sua identidade indígena, bem como os que possuem
reconhecimento dessa identidade por parte de seu grupo étnico.
Mesmo com os avanços das ciências, ainda hoje, no imaginário de muitas pessoas ser
indígena é sinônimo da “marca do que falta”. Estereotipadamente, o indígena, para muitos,
ainda representa um ser sem civilização, sem cultura, incapaz, selvagem, preguiçoso, traiçoeiro etc.
Para outros, de concepção romântica, o indígena é o “bom selvagem”, protetor das florestas,
símbolo da pureza, quase um ser como o das lendas e dos romances” (LUCIANO, 2006).
Daniel Munduruku afirma em sua tese que:

[...] até o final da década de 1950, o termo índio era desprezado pelos povos
indígenas brasileiros. Esse desprezo era provocado pela visão distorcida que
a sociedade brasileira tinha a respeito do “índio”. Para ela, os povos
originários eram um estorvo ao desenvolvimento do país, que ficava parado
por conta da presença indígena em seu território. (MUNDURUKU, 2012, p.
44-45).

31
Daniel Munduruku defende o termo indígena no lugar de índio. Para ele, índio é um termo pejorativo, que gera
uma imagem distorcida das populações indígenas, que generaliza uma diversidade de povos, com identidades
próprias. Em contraposição ao termo índio, “indígena quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros”.
(Entrevista de Danil Munduruku concedida à BBC News. Disponível em:
https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/04/19/dia-do-indio-e-data-folclorica-e-preconceituosa-diz-escritor-
indigena-daniel-munduruku.ghtml. Acesso em: 21/04/2019.
85

Esse discurso posto por Daniel Munduruku ainda hoje é utilizado por muitas autoridades
constituídas nacionalmente. Dessa forma, o projeto desenvolvimentista (que mata, polui e
degenera a natureza) não pode ser efetivado por conta da presença desses sujeitos que defendem
seus territórios e suas formas próprias de se relacionarem com o mundo.
Dessa forma, ser indígena, segundo Munduruku (2012), sempre foi ser um estorvo ao
desenvolvimento do país. Isso, obviamente, decorre da percepção distorcida que se tinha dessas
populações e por considerar que a presença desses povos era o motivador da estagnação do
desenvolvimento. É importante destacar que o termo “índio”, ou melhor, indígena, foi sendo
reapropriado como forma de luta e de resistência cultural. Para Munduruku, essa nova
concepção de valorização do que é ser indígena emerge com o movimento dos povos indígena.
Nesse sentido, Luciano (2006) afirma que os povos indígenas consideraram que se fazia
necessário manter, aceitar e promover a denominação genérica como uma estratégia de unir,
dar visibilidade e fortalecer a luta de todos os povos originários.
Em sua tese de doutorado, embora não aborde sua própria experiência com a sociedade
não-indígena, Munduruku coleta outras falas indígenas que ratificam como a vivência enquanto
o sujeito indígena é visto e quais os processos de negação étnica tiveram que vivenciar e como
os superaram.
Entre os relatos coletados por Daniel Munduruku, consta o depoimento de Moura
Tukano, que demonstra com sua experiência como a identidade indígena estava marginalizada,
em seu relato afirma que:

[...] um dia um superior se aproximou e perguntou: “você é índio?”. Respondi:


“sim, sou do grupo Tukano”. E me observando com firmeza e de forma
preconceituosa disse: “Olha, rapaz, entenda bem o que vou lhe falar, a partir
de hoje você não é mais índio, você é brasileiro esqueça de ser índio, eu não
quero mais ouvir a história de índio” (MUNDURUKU, 2012, p. 136).

O relato de Moura Tukano não é o único que demonstra a discriminação sofrida por
indígenas. Na tese de Daniel Munduruku podemos encontrar outras vozes indígenas
rememoradas por sujeitos humilhados por sua identidade indígena. Segundo Munduruku
(2012, p. 158), Marcos Terena, outro sujeito indígena que sofreu diante do contato com a
sociedade não-indígena, afirma que “você começa a sentir vergonha da sua origem, da sua
língua, das suas tradições e, o mais grave, até mesmo a esconder isso, diante da discriminação,
do preconceito”.
86

Muitos indígenas só constatavam e reconheciam sua identidade indígena em contato


com as sociedades não-indígenas. Por isso, como disserta Luciano (2006), por muito tempo
muitas foram as nomenclaturas utilizadas para se fazer referência ao indígena, entre elas, o
termo “cabloco” na Amazonia que foi utilizado para negar as identidades étnicas daqueles que
não queriam ou não podiam se identificar como indígenas, um tipo de identidade intermediária
ou de transição de um suposto estado de inferioridade (indígena) a um estado superior (homem
branco).
Outro intelectual indígena que sentiu na pele a discriminação devido a sua condição
identitária foi Edson Kayapó. Em sua tese, ele relata que:

No intervalo entre minha saída da Amazônia para estudar em Petrópolis e


minha entrada no curso de História, vivenciei o preconceito daqueles que me
identificavam como índio, o que me confundia, afinal fui educado para não
ser índio e aprendi que as formas de vida indígena não eram adequadas no
“mundo civilizado”. Os missionários tinham me convencido a renegar minha
condição indígena, mas agora todos percebiam em mim traços indígenas
evidentes, tanto na minha forma de expressão e comportamentos, quando nas
minhas características físicas, típicas dos povos indígenas da Amazônia.
(BRITO, 2012, p. 13).

A fala de Edson Kayapó, ao descrever o preconceito vivenciado, reforça que mesmo


com a “negação” de sua identidade indígena não foi considerado como um “cidadão brasileiro”.
Essa dificuldade enfrentada por Edson Kayapó também foi a realidade de muitos indígenas
Terena, da Aldeia Limão Verde, como consta na tese de Naine Terena. Em sua produção
acadêmica, ela destaca que a identidade indígena do seu povo foi, muitas vezes no âmbito da
sociedade não-indígena, posta à prova. De acordo com Naine Terena de Jesus (2014):

Os relatos recolhidos nas entrevistas com os professores Terena demonstram


as dificuldades encontradas por cada um ao estudar e entrar em contato mais
direto com a sociedade não-indígena, que mesmo estando tão próxima da
aldeia Limão Verde, apresentava e apresenta ainda, muitos estigmas com
relação aos indígenas [...] Numa observação particular, dou destaque ao que
considero como “invisibilidade” dos Terena diante dos não-indígenas, já que
podemos constatar que muitos dos moradores não-indígenas da cidade pouco
sabem e pouco procuram saber acerca das aldeias e dos seus moradores.[...]
Outro fator que pode influenciar nesse distanciamento pode ser relacionado
ao estado de Mato Grosso do Sul, tido como sendo o mais anti-indígena do
país, por não apresentar uma flexibilidade e facilidade de negociação quando
se trata de questões indígenas (JESUS, 2014, p. 84-86).
87

Naine Terena aponta que embora os Terena estejam muito próximos dos não-indígenas,
estes indígenas ainda percebem o quão difícil é estudar fora da aldeia, pois ainda há muito
preconceito e estereotipização dos sujeitos indígenas. Ela considera isso como fruto de uma
invisibilidade sofrida pelos indígenas, decorrente do pouco ou nenhum conhecimento dos não-
indígenas sobre os costumes, cultura de seus vizinhos Terena. Essa situação de invisibilidade
para ela é reforçada pelas ações do Estado, isto é, pela ausência delas quando se tratam de
questões indígenas.
A invisibilidade é, segundo Gonçalves (2007, p. 84-85), “um processo multidimensional
(psicológico, social, econômico, político e cultural) em curso em nossas sociedades
contemporâneas”, que interfere negativamente nas relações intersubjetivas públicas e
cotidianas, causando, frequentemente, conflitos. Já para Fernandes (1993, p. 15 apud
REZENDE, 2003, p. 25), o preconceito aplicado contra indígenas “é baseada em estereótipos,
ou seja, ideias falsas, que igualam e colocam sob um mesmo rótulo um número de situações
diversas”.
No que tange aos povos indígenas, ao se diluir as identidades indígenas em um índio
genérico e ao preconcebê-lo dentro de uma perspectiva pejorativa ou romântica, está-se reduzindo
a capacidade que estes povos tem de existir na modernidade. Existir, então, consiste em se tornar
visível, pois existir é fazer parte do mundo e assumir um valor (MACHADO, 2017).

Os depoimentos arrolados aqui demonstram que assumir uma identidade indígena tem
suas complexidades, no entanto, não assumir essa identidade como “carta de apresentação”,
também incorre em desqualificações, pois, embora o sujeito possa dominar todas as
ferramentas, saberes e mecanismos do mundo não-indígena, sua aparência fenotípica e traços
culturais quando não assumidos explicitamente, colocam o indígena como alguém que quer
“parecer” com o homem não-indígena, negando-se a si mesmo.
Esse indígena com uma identidade “deslocada” ou “transfigurada”, segundo Gersem
Baniwa, é denominado como “índio genérico”, como um sujeito “sem lugar, cuja indianidade,
inscrita no seu corpo, mas não na sua cultura, passava a ser um signo negativo e pejorativo ao
mundo dos brancos, no qual ele se inseria sempre por baixo e subalterno” (LUCIANO, 2011,
p. 246).
Por sua vez, a concepção de “índio genérico” é uma maneira de diluir a identidade
étnica, essa concepção terminológica, como descreve Luciano (2006), teve sua criação a partir
de um erro náutico. Para esse autor, essa concepção genérica do indígena incorre em
88

subalternizar e invisibilizar características particulares de ser e estar no mundo. No entanto,


aceitar esta concepção serviu para fortalecer o movimento de unicidade entre indígenas na
busca de mudanças no cenário nacional.
Nos parece que há para Gersem Baniwa, um entrelaçamento entre “índio genérico” e
“índio citadinos”, isso porque esse último, graças ao movimento indígena e ao atual sentimento
de reafirmação da identidade indígena, mesmo não estando associados a um grupo étnico
especifico, nem conseguindo identificar seu grupo de origem, se autodeclaram indígenas. Para
Chaves e Ronco (2012), com esse fenômeno surge e é vivenciada uma identidade indígena
baseada na ideia de pertencimento a uma “raça” indígena e não somente a um grupo étnico.
Gersem Baniwa nos afirma que os indígenas que transitam entre os dois mundos – ou
aqueles que embora tenham ascendência indígena e sua indianidade em evidência no corpo,
mas, que não possuem hábitos culturais como os idealizados pelos brancos – são denominados
“índios genéricos”, pois, apesar de terem origem indígena, por possuírem hábitos não-indígenas
ou características físicas, não são assim considerados. Essa denominação serve, sobretudo, para
tornar ilegítimo o discurso indígena e desqualificar o lugar de fala.
No que tange à construção da identidade indígena, para Daniel Munduruku (2012):

[...] a identidade é construída em relação de intersubjetividades organizada


como forma de concretizar e atualizar a memória social [...] É uma construção
que acontece à medida que povos diferentes vão vivendo situações novas e
percebem elementos comuns no seu modo de ser [...] não é preciso assumir
uma identidade, mas torna-la visível dentro do contexto social brasileiro.
A descoberta da identidade pan-indígena e o consequente emprego político do
termo índio acontecem no exato momento em que os líderes indígenas se
percebem – a si e aos demais – sujeitos de direitos. (MUNDURUKU, 2012,
p. 48.)

O entrelaçamento das subjetividades na construção e atualização da memória social e


coletiva se dá pelo contato entre diferentes povos à medida que estes vão vivenciando situações
que os permitam constatar semelhanças e diferenças entre seus grupos étnicos. No entanto, isso
fortalece uma identidade étnica que, como demonstra Munduruku (2012), não precisa ser
assumida, mas visibilizada. Essa visibilidade, para o intelectual Munduruku, foi permitida
89

dentro do Movimento Indígena, quando os líderes indígenas descobriram sua identidade pan-
indígena, reapropriaram-se do termo índio e se viram como sujeitos de direitos indígenas.32
De igual modo, Gersem Baniwa acredita que o contato com outras subjetividades
permitiu aos povos indígenas a reconstrução de modos próprios de conceber-se no mundo.

[...] mesmo diante de um processo colonial repressor e negador de identidades


que tentou apagar a memória ancestral coletiva dos povos indígenas, as novas
marcas diacríticas da cultura pós-contato foram sendo apropriadas e
ressignificadas, reconstruindo e reatualizando cosmologias próprias, o que
revela dinamismo indígena frente às mudanças bruscas impostas pelo
colonialismo e capacidade de constante reavaliação das estratégias de contato
(LUCIANO, 2011, p.89).

O processo colonizador mesmo com toda sua força opressora e marcas abissais pós-
contato sofreu reconstruções e ressignificações pelos indígenas. As marcas pós-contato têm
sido constantemente reconstruídas e atualizadas pelos povos indígenas e são agregadas as suas
cosmologias, possibilitando, concomitantemente à elaboração de estratégias de luta,
insurgência e ressignificação do contato.
Gersem Baniwa defende, em sua tese, ainda, que transitar entre dois mundos não
inviabiliza ao indígena possuir uma identidade indígena, pois acredita que:

As culturas e as identidades tradicionais continuarão dando sentido e base


espiritual a esta caminhada cósmica, mas, o bem-estar, o bem viver e a
felicidade dos indivíduos e grupos nos tempos pós-contado estão confiados à
possibilidade de acesso e apropriação de técnicas e tecnologias do mundo
moderno (LUCIANO, 2011, p.339).

Sendo assim, conforme Baniwa (2009), o indígena ao desejar o bem viver e o bem-estar
não estará negando sua cultura ou identidade tradicional, ou seja, sua identidade indígena,
outrossim, estará incorporando a ela maneiras alternativas e condizentes com o tempo
cronológico em que este sujeito se encontra. Dessa forma, a incorporação de aspectos da cultura

32
Graças ao movimento indígena, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988,
assegurou aos indígenas do país o direito de permanecerem com suas líguas, culturas e tradições (BRASIL, 1988).
Isto promoveu todo um debate, que gerou documentos legais, sobre uma educação escolar a ser processada às
populações indígenas com base nas suas afirmações étnicas e culturais. A partir de então, tornou-se a escola
indígena um importante instrumento contra a cultura da assimilação e da integração, como pode-se constatar na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacionalde 1996 (BRASIL, 1996)
90

da sociedade não-indígena na vida do indígena configura-se como modo de manutenção e


sobrevivência de seu povo.
Na atualidade, as populações indígenas – ao se apropriarem dessas ferramentas,
mecanismos e instituições, que lhes foram impostas e não pertencem originalmente ao mundo
indígena – elaboraram formas alternativas de sobreviver, manter-se e insurgir.
É interessante ainda constatar que em todas as teses, quando se pondera ou debate sobre
a identidade indígena, os intelectuais por nós analisados enfatizam como as instituições
ocidentais têm importante contribuição na elaboração de um despertar de consciência da
identidade indígena. O destaque, em sua maioria, é dado às instituições escolares que acreditam
que a escola e a universidade, ainda que não reconheçam e respeitem efetivamente a presença
indígena, possibilitam aos indígenas que por elas foram escolarizados desenvolver, a partir dos
conhecimentos por eles apropriados, uma estratégia de luta e resistência para a manutenção e
sobrevivência dos seus povos.
Portanto, nessa perspectiva, no que tange à apropriação das instituições escolares pelos
indígenas, Gersem Baniwa considera que

Nesse caminho sócio-histórico, a escola foi escolhida como o principal


instrumento de trabalho e de luta, por meio da qual querem garantir condições
de comunicabilidade com o mundo dominante (língua portuguesa e/ou outras
línguas), conhecer o funcionamento da sociedade dominante (para o manejo
da relação) e para apropriar-se dos instrumentos úteis da sociedade dominante,
principalmente os instrumentos de poder, dos quais, os saberes da escola,
fazem parte. (LUCIANO, 2011, p. 339).

Este pensamento também está presente na tese de Naine Terena, que disserta sobre a
estrutura social e sobre os aspectos culturais do povo terena, declarando que a escola associada
à utilização do audiovisual tem sido um espaço de “resgate” e “preservação” da memória
ancestral. Isso permite um sentimento de pertencimento e de consolidação de uma identidade
indígena.
Naine Terena (2014) observa que a escola ao utilizar o audiovisual busca a preservação
da memória do povo terena:

Identifiquei muito esse discurso entre os indígenas mais idosos e lideranças


durante os registros reunidos através desta pesquisa. Existe a aprovação por
parte dos realizadores e membros das comunidades, para a inserção dessas
tecnologias nas aldeias, “pois acreditam que são utilizadas com o intuito de
91

valorização e preservação da memória dos grupos” (caderno de campo, 2010).


(JESUS, 2014, p. 116)

Os relatos de Gersem Baniwa e Naine Terena reforçam que a escola tem sido utilizada
para a elaboração de estratégias de manutenção e sobrevivência dos povos e de suas identidades
indígenas. Entretanto, há um inquestionável paradoxo na utilização da escola como espaço de
construção de formas de lutas e contra a hegemonia.
Para Bergamaschi e Medeiros (2010), desejar a educação escolar em todos os níveis
significa dominar seus códigos para a manutenção de seus povos, por meio de um processo
intenso de diálogo com a sociedade nacional. Segundo as mesmas autoras, a escola

Possibilita o contato com conhecimentos e saberes do mundo não indígena,


tornando-o mais compreensível, e permite que, de posse desses novos
instrumentais, os povos indígenas possam lutar por seus direitos de forma mais
simétrica, apreendendo o sistema de vida ocidental, mas mantendo e afirmando
seus modos próprios de educação”. (BERGAMASCHI, MEDEIROS, 2010,
p. 60-61).

A escola entre indígenas, apesar de atualmente ser utilizada como um espaço de


reafirmação identitária, é também um espaço que pode estar a serviço da colonização. Diante
desse posicionamento, Daniel Munduruku fez uma análise do pensamento dos líderes
indígenas, em que se pode encontrar a seguinte afirmativa:

Como todos [os líderes entrevistados] tiveram passagem pela escola formal
[...] eu os via como vítimas do processo colonial e de seus processos de
violação identitária, da subalternização a que foram submetidos, da
desvalorização cultural engendradas nas suas comunidades através das
políticas indigenistas de extermínio, assimilação ou incorporação à sociedade
nacional. Ao mesmo tempo, percebia-os como “testemunhas insurgentes de
todo esse processo de sujeição e morte” (CARNEIRO, 2004, p. 153).
(MUNDURUKU, 2012, p.74).

Salientamos que para Daniel Munduruku a escola pode ser um espaço de violação do
sujeito indígena, no entanto, constata que mesmo estando submetidos à opressão ocidental
dentro desse ambiente, os indígenas por ele entrevistados mostravam-se como seres insurgentes
e desconfortáveis com a condição na qual tinham sido colocados.
92

Gersem Baniwa, em sua tese, reflete que a primeira lição que tirou de sua experiência
escolar foi que “não importa qual seja a escola, sua ideologia, sua pedagogia, sua filosofia, ela
pode sempre ser útil e aproveitável de algum modo para a luta. É evidente que se a escola for
anticolonialista, indígena, autônoma, diferenciada e intercultural, será sempre melhor”
(LUCIANO, 2011, p. 35).
Segundo Meliá (1999, p. 11), “no processo de educação escolar dos indígenas a perda
da alteridade e a dissolução das diferenças são sentidas como ameaças reais, prementes e
iniludíveis”, que estão diretamente, ou até exclusivamente, associadas com a escola, pois esta
seria uma instituição de produção de generalizações e uniformidade. Isso significa crer na
passividade dos povos indígenas diante dessa instituição, não reconhecendo a capacidade que
estes possuem de interferir e propor suas próprias maneiras de educar nesses espaços.
Na mesma direção, Baptista (2010) declara que mesmo havendo tentativas de
valorização da diversidade cultural presente nas escolas indígenas por parte das políticas
públicas da educação brasileira, é lamentável o fato de que para as sociedades tradicionais a
escola ainda insiste na transmissão de conhecimentos científicos como se estes fossem os únicos
conhecimentos válidos
Dessa forma, a educação escolar indígena vive dilemas e conflitos entre a “teoria” e a
“prática”. Por um lado, tem-se uma legislação ambiciosa e sedutora, que promete proteger e
incentivar as diversas culturas indígenas, resgatando suas línguas, promovendo seus valores e
admitindo suas diferenças e, por outro, há uma implementação precária das propostas
diferenciadas, muito distantes do idealizado pelas leis e com grande dificuldade de se afastar
do modelo nacional de educação.
Entretanto, na contramão das afirmações acima, reconhecendo a capacidade dos povos
indígenas na “assimilação e transformação” da escola, Pirrelli (2008 apud BAPTISTA, 2010)
afirma que a escola indígena é um “espaço para se pesquisar, ensinar e aprender as suas próprias
tradições, deve, também, [se] constituir [em] um lugar de acesso aos conhecimentos produzidos
pela ciência ocidental”, podendo contribuir para o “empoderamento dos povos indígenas e,
assim, favorecer a construção do diálogo com as outras culturas (PIRRELLI, 2008, apud
BAPTISTA, 2010)”.
Nessa perspectiva, fica evidente que é possível tirar proveito da escola para a
valorização da cultura, dos povos e do sujeito indígena. É inegável, no entanto, que a escola é
uma entidade que convive com contradições e paradoxos inerentes a sua própria existência. Por
isso, não raro é possível detectar nas teses aqui analisadas que apesar de existirem intelectuais
93

como Naine Terena e Gersem Baniwa ,que creditam à escola um importante papel, embora
façam algumas considerações de que esta não é a salvação das populações indígenas, outros,
como Daniel Munduruku e Edson Kayapó, fomentam em seus textos que a escola enquanto
aparelho do Estado apenas reproduz uma matriz colonial e reforça a subalternização, ainda que
existam sujeitos que, a sua maneira, superaram-na. Obviamente essa superação é resultado de
uma construção de consciência dos coletivos e dos movimentos que se irradiaram entre essas
populações.
De acordo com Edson Kayapó, em relação à construção da identidade Karipuna, “a
escola não é o espaço para formar a identidade Karipuna, pois esta formação ocorre de outro
modo, no processo de educação Karipuna, que se dá nas relações práticas cotidianas e pela
oralidade” (BRITO, 2012, p. 140-141).
Na tese de Daniel Munduruku, podemos inferir que ao atribuir ao Movimento Indígena
a responsabilidade pela tomada de consciência e reivindicação da identidade indígena, ele nega
as contribuições da escola nesse sentido. Entretanto, no decorrer da sua tese, apresenta as
contribuições dadas aos indígenas pela escola. Mais adiante, traremos os pontos de vista de
Munduruku sobre a escola, a escolarização e a educação escolar indígena.
Consideramos que em relação à identidade indígena, os autores são uníssonos ao
declarar que, por conta de sua identidade, sofreram discriminação e, em alguns casos, foram
compelidos a negá-la. Esse tipo de discriminação que muitas vezes ocorre de maneira indireta
tem sido “entendida como a forma mais perversa de discriminação. Ela geralmente se alimenta
de estereótipos arraigados e considerados legítimos e se exerce sobre o manto de práticas
administrativas ou instituições” (JACCOUD e BEGHIN 2002, p. 40 apud REZENDE, 2003,
p.57).
Sendo assim, o preconceito é uma máquina de guerra que está presente nas relações
sociais cotidianas, que reproduz a discriminação, a exclusão e a violência (BANDEIRA,
BATISTA, 2002). Para Taussig (apud BANDEIRA; BATISTA, 2002, p. 128-129) “toda a
construção da alteridade é preconceituosa. O preconceito é visto como uma forma de construção
do outro, de uma alteridade a partir da própria neutralização desse outro/alteridade”.
Nas teses constatamos também a ideia de que indígenas, diante do intenso contato
interétnico, incorporaram práticas culturais de outros povos e passaram a se manter vinculados
a estas. Para Gersem Baniwa, a opção pelo estilo de vida moderna”, que ele definiu como “bem
viver” e “bom viver” faz parte, por exemplo, de uma opção, reverberando entre os indígenas
um novo modo de se colocar no mundo. Mas estes acabam tendo sua identidade indígena
94

colocada em questionamento, isto é, os indígenas que entrelaçam seus modos tradicionais com
modos modernos são classificados como “índios genéricos”, por transitarem entre dois mundos.
Por conta disso, são desqualificados e vistos com desconfiança tanto por indígenas quanto por
não-indígenas.
Percebemos nas teses analisadas nesta dissertação a ênfase no reconhecimento, na
valorização, na insurgência e na luta em prol de uma identidade indígena, que demandou um
processo educativo próprio para o fortalecimento dos indígenas, de todos os sujeitos indígenas
que são referenciados nas produções acadêmicas.
Obviamente, as teses apresentam divergências quanto às contribuições na formação da
identidade indígena. Assim, há teses que consideram como importante o contato com entidades
e instituições não-indígenas para o fortalecimento das identidades indígenas e, em sua maioria,
eles apontam a escola como a principal instituição que corrobora a luta e a insurgência dos
povos ameríndios. Por sua vez, há também intelectuais que acreditam que a formação e o
fortalecimento da identidade indígena se dão entre os pares indígenas, gerando assim um
sentimento de fraternidade indígena33.
Contudo, os intelectuais indígenas analisados apresentam a sua própria experiência para
dar ênfase a identidade indígena e às vozes que ecoam em suas produções acadêmicas. Além
disso, destacam os impropérios enfrentados para que conseguissem dar visibilidade às
identidades que possuem, bem como nos permitem inferir que cada um, a sua maneira, elaborou
formas alternativas e próprias de enfrentamento e manutenção dos povos indígenas que
representam.
Embora não tenham consenso sobre a importância da escola para as populações
indígenas e para o fortalecimento identitário, os intelectuais indígenas creditam a ela
importantes contribuições, bem como apresentam determinadas concepções sobre educação
relacionadas aos povos indígenas. No tópico seguinte, apontamos o pensamento dos intelectuais
indígenas sobre processos educativos e suas repercussões.

5.3.2 O pensamento indígena sobre Educação Escolar e suas repercussões

Nas teses pudemos identificar que os intelectuais indígenas brasileiros elencados


possuem uma clara compreensão das muitas motivações que estimulam as populações

33
Termo identificado na tese publicada em formato de livro de Daniel Munduruku, para fazer alusão a um
sentimento de pertencimento pan-indígena.
95

indígenas a buscarem a dominação de elementos não-indígenas. Constatamos que apresentam


um discurso similar e convergente sobre a importância de dominar os códigos, que outrora
foram impostos, para a consolidação e fortalecimento da luta das populações indígenas
brasileiras.
Nesse sentido, Daniel Munduruku, quando aborda em sua tese a apropriação de
elementos ocidentais, afirma que “[...] os primeiros líderes [do Movimento Indígena]
perceberam que a apropriação de códigos impostos era de fundamental importância para afirmar
a diferença e lutar pelos interesses, não mais de um único povo, mas de todos os povos indígenas
brasileiros” (MUNDURUKU, 2012, p.45).
Do mesmo modo, Naine Terena acredita que “ao dominar as tecnologias, indígenas e
não-indígenas se colocam em pé de igualdade nos diferentes contextos sociais, seja na
educação, na política, ou nas reivindicações sociais” (JESUS, 2014, p. 125).
Outro intelectual indígena que considera a apropriação de códigos não-indígenas como
algo necessário é Gersem Baniwa, pois enfatiza que “os povos indígenas entendem que só assim
poderão retomar o manejo do mundo, missão que receberam desde os tempos míticos, mas que
em parte perderam ao longo do processo de dominação colonial” (LUCIANO, 2011, p. 41)
Segundo Daniel Munduruku, para o Movimento Indígena, a apropriação de códigos não-
indígenas serviu para criar “um comprometimento valioso para que as lideranças da primeira
hora pudessem fazer uma aliança com outros atores da sociedade civil organizada, pois estava
assentada sobre a ideia de projeto” (MUNDURUKU, 2012, p. 45).
Dessa maneira, ao se apropriarem de códigos, elementos e entidades não-indígenas,
como a escola, as populações indígenas escrevem outros modos de se relacionarem e
transitarem entre os mundos. Por sua vez, para que isso aconteça a contento, é preciso que os
povos indígenas acreditem nas entidades que oferecem serviços as suas comunidades.
Para tanto, é necessário que o Estado trate com mais seriedade e zelo questões
concernentes aos povos ameríndios, pois, de acordo com Daniel Munduruku (2012), percebe-
se um descaso na oferta de uma educação escolar de qualidade. Munduruku assevera que “a
Funai demonstrou que o Estado não tem tanta seriedade para educar nossos filhos. Em muitos
lugares, ele tem sido omisso à educação indígena, à proteção de modo geral. Temos que ter
lideres fortes que reclamem e defendam os direitos dos indígenas” (MUNDURUKU, 2012, p.
93).
Defender os direitos dos povos indígenas requerem dessas lideranças “preparo” e, em
alguns casos, alguma formação escolar. Por isso, nas teses analisadas, observamos que, com
96

exceção de Edson Kayapó, os demais intelectuais enfatizam explicitamente que o acesso à


educação escolar possibilita uma formação e, consequentemente, maior percepção dos
contextos em que seus povos estão inseridos.
Em sua tese, Naine Terena salienta que:

[...] pessoas que saíram da comunidade para aperfeiçoamento educacional,


retornam conscientes da importância dos anciãos e dispostos a manterem a
ordem social, onde o poder de ação das lideranças e o aconselhamento dos
idosos se faz presente nas decisões estratégicas que darão encaminhamento
para o futuro da comunidade ou mesmo de sua vida profissional (JESUS,
2012, p. 50).

Para esta intelectual, a conscientização e a percepção de si e da sua cultura são


conquistadas por meio do aperfeiçoamento educacional, assim como a dedicação à
escolarização permite elaborar estratégias de luta contra às formas de opressão e
subalternização.
De igual modo, a formação escolar dos povos indígenas é condição indispensável para
que sejam formadas novas lideranças indígenas nos diversos meios sociais, por isso, Daniel
Munduruku (2012, p. 148) declara que “precisamos preparar os índios para serem políticos e
profissionais de todos os níveis, a fim de que possam conduzir seus povos que foram
perseguidos, violentados, ofendidos e discriminados durante mais de quinhentos anos”.
Conforme Gersem Baniwa, quando faz referência a seu povo, o desejo dos indígenas “é,
por meio da formação escolar, construir uma relação menos assimétrica com o mundo
dominante, na medida em que eles tiverem maior domínio sobre este mundo”. (LUCIANO,
2011, p.44).
Os intelectuais indígenas apontam em suas teses que – se antes a educação escolar
oferecida aos povos indígenas servia para civilizar, integrar e tirar da primitividade essas
populações –, na atualidade, o discurso indígena atribui à escola uma outra função. O novo
papel da escola transfigura este ambiente e cria novos paradigmas e paradoxos.
Como foi dito anteriormente, a escola promove nos indígenas conflitos identitários, já
que por conta de sua origem étnica sofrem discriminação, preconceitos e recorrentes formas de
subalternização. No entanto, embora se perceba o caráter opressor da escola, o desejo por
mudança de vida faz com que muitas populações indígenas deem enorme valor à escolarização.
No que tange o acesso à escolarização, Naine Terena traz o seguinte relato:
97

[...] um depoimento de um ancião Terena de Limão Verde, falecido em 2011,


que ressaltava o orgulho de seus netos cursarem o Ensino Superior. Dizia ele
que existia um esforço da família para que todos estudassem e que no futuro
eles trouxessem benefícios não só para a família, mas também, para a
comunidade (Caderno de campo, 2011) (JESUS, 2014, p. 44.).

O excerto acima reforça o quão importante é o acesso à escola e ao que ela pode oferecer
à luta indígena. A importância da escola para os povos indígenas aparece também na tese de
Daniel Munduruku (2012), ao afirmar que:

A nova liderança indígena deve estudar bastante e entender as novas


tecnologias, conhecer o nosso mundo físico e espiritual e dominar ambos os
mundos. Assim, ele deve ser um verdadeiro líder, para poder opinar e
esclarecer o público e ter muita convicção perante órgãos nacionais e
internacionais na hora de defender as propostas dos parentes indígenas
(MUNDURUKU, 2012, p.146).

Daniel Munduruku também acredita que indígenas melhores formados têm mais
chances de representar com qualidade seus povos étnicos. Dessa forma, a
qualificação/formação escolar é uma forma de enfrentar, divulgar e promover a cultura e os
povos indígenas.
Sobre a educação escolar para os indígenas, Gersem Baniwa sinaliza que:

A forte demanda contemporânea por educação escolar por parte dos povos
indígenas do Brasil tem um sentido histórico na trajetória vivenciada por eles.
Ela é percebida como uma oportunidade e uma possibilidade agregadora para
enfrentar e resolver necessidades e problemas atuais gerados a partir do
contato, mas também como possibilidade de resolver velhos problemas

[...] Um dos objetivos da formação escolar para esses povos é criar condições
de convivência e sociabilidade nos contextos locais, regionais, nacional e
mundial, que implica conhecer outras culturas, dominar outras línguas,
dominar tecnologias modernas e dominar outros conhecimentos que os
igualem no plano da comunicação e da convivência planetária. (LUCIANO,
2011, p. 42-43).

A partir dos trechos da tese de Gersem Baniwa, percebemos que a escolarização tem
importante repercussão na vida indígena e se mostra como uma oportunidade de apropriação
de códigos não-indígenas, que colaborarão na elaboração de estratégias de manutenção,
98

valorização, socialização, reconhecimento e representação. Além disso, permitirá aos indígenas


dominar os conhecimentos étnicos e os modernos/não-indígenas.
Em seu ensaio “Cinco Ideias Equivocadas Sobre O Índio”, Freire (2016) faz inúmeras
reflexões sobre equívocos pertinentes à relação dos povos indígenas com a contemporaneidade.
Esse autor provoca-nos a pensar sobre a apropriação de práticas ocidentais por essas populações
autóctones. Considera Freire (2016) que quando se trata de povos indígenas e práticas não-
indígenas há um suposto “congelamento de culturas”, na qual permanece o imaginário de que
para ser índio é preciso estar em um determinado “nível de desenvolvimento”.
Freire (2016, p. 16) também afirma que “a cultura brasileira muda, a chinesa muda, a
americana muda, todas as culturas mudam. As culturas indígenas também mudam, e isto por si só
não é ruim, não é algo necessariamente negativo. Não é ruim que mudem, o ruim é quando a
mudança é imposta, sem deixar margem para a escolha”. Sendo assim, a adoção de práticas
consideradas não-indígenas pode ter elevada importância para a sobrevivência dos povos indígenas.

Os discursos coletados nas teses convergem ainda para o status social da escolarização
entre os indígenas. Naine Terena, por exemplo, destaca que:

[...] é possível identificar que existe a expectativa da comunidade [Terena],


deles mesmos, e de seus familiares, de que tenham uma boa atuação na escola
e que sejam os protagonistas de uma educação que capacite os mais jovens
com qualidade, mas que, ao mesmo tempo, contemple os aspectos culturais
Terena (JESUS, 2014, p. 88).

No contexto dos Terena, a educação escolar é sobretudo uma ferramenta de resistência,


pois, acreditam os indígenas que melhor qualificados academicamente, mais chances têm de
competir em espaços não-indígenas e, ao mesmo tempo, propor maneiras de valorização
cultural de seu povo. Indo ao encontro do discurso de Naine Terena, Gersem Baniwa afirma
que “os acadêmicos e profissionais indígenas bem-sucedidos servem como exemplo e ajudam
a despertar o orgulho étnico, a autoestima e o auto-reconhecimento” (LUCIANO, 2011, p.173).
Segundo Daniel Munduruku (2012, p. 99), “a perspectiva de que o próprio índio um dia
poderia comandar seu destino, que ele poderia ir se autodefinindo com autonomia, e que essa
autonomia viesse acompanhada de uma forma elaborada e própria do modo de ser” foi possível
graças às concepções sobre educação que estas populações possuem. Entretanto, essa
perspectiva parece ser constantemente negada aos povos indígenas do Brasil. Historicamente,
mesmo os órgãos destinados a atender e tratar de questões indígenas parecem considerar que
99

estas populações não possuem capacidade para gerenciar seus próprios caminhos, assim, os
mantém sob constante tutela.
Embora seja notória a ênfase dada pelos intelectuais indígenas à escolarização de seus
povos, Gersem Baniwa expressa de modo evidente as contribuições dessa instituição ao reiterar
que a “escola é percebida como instrumento para ajudar a construir o futuro e não para recuperar
o passado, embora a tradição e a identidade continuem como referências indispensáveis para
esses projetos de futuro, devendo por isso ser valorizadas e perpetuadas” (LUCIANO, 2011, p.
189). Além disso, ele ressalta que a experiência com vários povos indígenas:

[..] que apresentam demandas por escolas aponta para o fato de que a eles, em
último caso, qualquer escola serve, desde que possibilite acesso e interação
com o mundo branco. É óbvio que se a escola for bilíngue/multilíngue,
específica, diferenciada e intercultural, será melhor. Volto a repetir as duas
frases que mais ouvi de lideranças indígenas do Brasil nos últimos anos: “a
escola precisa nos ensinar falar português e outras sabedorias do homem
branco para não sermos mais enganados por eles” e “no passado, o governo
proibiu escola de nós, por isso foi fácil ele nos enganar, dominar e roubar
nossas terras e nossas sabedorias”. Essas frases muito comuns e presentes nos
discursos de lideranças indígenas revelam que para elas, a escola diferenciada
enquanto espaço duplo de acesso a conhecimentos tradicionais e modernos é
uma qualificação desejada, mas não é a centralidade da missão da escola
indígena, que ainda precisa estar focada no acesso aos instrumentos do homem
branco e a sua apropriação adequada, principalmente para aqueles povos que
ainda mantêm suas tradições e culturas ancestrais (BANIWA, 2011, p. 206).

Portanto, para Gersem Baniwa, não há entre os indígenas uma predileção por um modelo
de escola. Obviamente, se a escola for bilíngue/multilíngue, específica, diferenciada e
intercultural é melhor para o povo, entretanto, os indígenas desejam conhecer e saber utilizar
os conhecimentos do homem branco para poder construir estratégias para conseguirem interagir
e sobreviver às investidas do mundo globalizado, por isso demonstram grande interesse na
escola, pois acreditam que por meio dela será possível elaborar formas de se relacionar com o
mundo não indígena.
Não se pode negar que a instituição escolar é algo desejável entre os indígenas, todavia,
ainda nos dias de hoje, essa instituição mostra-se relutante e hostil à presença indígena e sua
cosmologia, no entanto, mesmo diante de sistemas educacionais que oprimem e inferiorizam
os sujeitos indígenas, estes reconhecem que a formação escolar em qualquer nível tem
importantes contribuições e repercute a longo prazo em maneiras alternativas de fortalecimento
dos povos indígenas e em estratégia de luta.
100

Entre as contribuições ou repercussões da escolarização aos povos indígenas podemos


elencar que, embora não tragam explicitamente os resultados desse acesso às instituições
escolares, as teses nos permitem inferir que graças à escola há uma formação de um grupo de
indígenas escolarizados ou ainda de uma “elite indígena escolarizada”, como definem alguns
estudiosos. Apesar de não constatarmos a presença explicita dessa nomenclatura, nas teses,
percebemos que se faz recorrente a menção ao processo de “intelectualidade indígena”
associado à escolarização.
Esse reconhecimento dado à escolarização para o processo de intelectualidade indígena
é notório, pois no entendimento apresentado, a escolarização tornará as populações indígenas
mais capacitadas para assumir diferentes postos na sociedade. Nesse sentido, Naine Terena, ao
entrevistar os professores para identificar os porquês da atuação docente, obteve respostas que
convergem para a importância da formação escolar como elemento necessário para que os
indígenas estejam capacitados para “assumir postos de trabalhos fora das aldeias, mantendo a
identidade indígena” (JESUS, 2014, p. 93).
Como já exposto anteriormente em Munduruku (2012, p. 146), Moura Tukano34 é
enfático ao afirmar que para lutar contra os projetos colonizadores atuais cabe ao indígena
estudar para conseguir enfrentá-los de forma menos desigual. A educação para esse líder
indígena é uma ferramenta de trânsito entre o mundo indígena e o não-indígena e permite a
apropriação de códigos ocidentais para validar suas pautas de debate.
Dessa forma, a tese de Daniel Munduruku aponta o processo de escolarização como
capaz de possibilitar maior conscientização e elaboração de formas de luta e apropriação de
códigos, o que só é possível mediante a constituição da intelectualidade nessas lideranças
indígenas.
Na tese de Edson Kayapó não há tanto interesse em se fazer referência à intelectualidade
indígena, mas, ao defender que para os indígenas “o conhecimento dos não-índios é importante,
afinal eles mantêm antigas relações comerciais e políticas com a sociedade do entorno”, este
intelectual está considerando que a escolarização resulta em uma maior compreensão do meio
em que esse indígena está inserido, percepção esta que incide em uma construção intelectual,
enfatizando que:

[...] a educação escolar indígena diferenciada é importante no sentido de que


ela pode propiciar conhecimentos ressignificados que sirvam para a defesa e

34
Moura Tukano é um sujeito de pesquisa na tese de Daniel Munduruku.
101

fortalecimento da identidade e das tradições Karipuna, propiciando ao mesmo


tempo conhecimentos que possibilitem o diálogo franco e claro com os não-
índios (BRITO, 2012, p. 141).

A afirmação retirada da tese de Edson Kayapó coloca a escolarização como recurso para
a obtenção de conhecimentos que, por meio da articulação intelectual de cada sujeito indígena,
serão ressignificados para o enfrentamento e manutenção da identidade e da cultura.
Nas teses analisadas, identificamos somente em Gersem Baniwa uma concepção
explícita sobre uma das repercussões do processo de escolarização dos indígenas: a
intelectualidade indígena. Baniwa acredita que sua trajetória pessoal resultou em um processo
de intelectualidade, por isso faz a seguinte declaração:

Com isso quero expressar minha afinidade com a ideia de intelectual orgânico
cunhada por Antônio Gramsci (1975. p. 1513), para me situar como
pesquisador e acadêmico que busca articular na organização da vida e na
organização das ideias, teoria e prática. Por intelectuais se deve entender não
só as camadas que exercem funções destacadas no cenário acadêmico, mas
toda a massa social que exerce funções organizativas em sentido lato, seja no
campo da cultura, seja no campo administrativo-político (LUCIANO, 2011,
p. 35).

Neste trecho, Gersem Baniwa se reconhece como um intelectual ao se colocar nesse


lugar de fala, o que nos permite supor que, a partir do exemplo de sua experiência de
escolarização e inclinação política, é possível construir uma intelectualidade indígena por meio
de processos formação escolar. Todavia, temos clareza de que não se deve somente a
escolarização o processo de intelectualidade indígena, no entanto, para Gersem Baniwa, “os
povos indígenas queriam a escola para que os ajudassem no empoderamento político e
intelectual para se contrapor ao processo de violência e dominação que estavam vivendo”.
(LUCIANO, 2011, p. 148)
É também na tese de Gersem Baniwa que identificamos importante crítica no que tange
à emergência e a atuação do que seria na atualidade conhecido como intelectual indígena,
conforme excerto a seguir:

Jean Paraíso Alves (2007:166) chama esse novo ator de “Intelectual


Indígena”. Para este autor, o intelectual indígena é um produto do indigenismo
de Estado na tentativa de cooptar o movimento indígena independente
mediante a formação consciente de uma nova elite. Essa intelectualidade
102

indígena teria escapado da estratégia de cooptação estatal/ocidental/burguesa


e do controle dos princípios indigenistas tutelares e não-indígenas e passaram
a construir seus projetos indianistas ou étnicos. No meu entendimento, se há
algum fundo de verdade na afirmação que a intenção do governo era cooptar
essas novas lideranças indígenas, no plano concreto isso nunca se efetivou
plenamente, a não ser em casos bem específicos e pontuais, pois no âmbito
geral, essas lideranças sempre mantiverem suas lealdades às suas
comunidades, aos seus povos e às organizações. Essa lealdade às suas
comunidades é uma das razões por que nenhum indígena até hoje alcançou
algum cargo mais elevado na estrutura do poder do Estado (a não ser cargos
eletivos no âmbito de municípios, como prefeitos e vereadores), pois, o
intelectual indígena não é considerado suficientemente confiável (nada a ver
com competência) para cargos mais importantes, por sua forte lealdade à sua
comunidade. Isso ocorre, mesmo que, no âmbito do movimento indígena e em
condições que não exige opção, essa intelectualidade indígena tenha passado
a apresentar dupla lealdade: representa a comunidade “para fora” e “importa”
formas dominantes e externos de atuação política, voltadas para a defesa de
direitos a terra, à identidade, à educação escolar, à saúde e outros (LUCIANO,
2011, p.170).

Segundo Gersem Baniwa, a formação de uma “elite intelectual indígena” surge como
estratégia de “cooptação” ao interesse do Estado, entretanto, esses sujeitos não se deixaram
seduzir pelas entidades e instituições estatais tutelares e não-indígenas e conquistaram a
elaboração de um projeto étnico. Aliás, essa lealdade as suas comunidades étnicas sempre foi,
segundo o autor, a justificativa para que nenhum indígena – mesmo formado e capacitado –
tenha conseguido conquistar importantes cargos ou funções de relevante destaque nacional.
Além disso, mostra-nos também que esses intelectuais, devido ao seu comprometimento com
seus povos, não possuem a confiança da sociedade que ainda os vê como sujeitos pouco
preparados, ademais, o intelectual indígena em sua emergência suscita o paradoxo de ter que
representar seu povo em ambientes extra aldeia e incorporar, em vários campos, formas
dominantes de ser e estar no mundo.
Diante do que foi exposto, podemos identificar que nas teses analisadas os intelectuais
indígenas apontam que a escola é uma importante ferramenta para o enfrentamento da
colonialidade, e graças a ela as populações indígenas podem elaborar estratégias de manutenção
e (re)valorização de suas culturas, sem que necessariamente precisem “apagar” suas marcas
identitárias. Afirmam ainda que o processo de escolarização, que pode estar agregado a outros
processos educativos, permite a construção de uma intelectualidade que têm maior consciência
de si e de sua comunidade.
103

Ainda como afirmamos em linhas anteriores, o processo de intelectualidade indígena,


mesmo que implicitamente, está presente nas teses analisadas, no entanto, a tese de Gersem
Baniwa suscita maiores debates sobre a emergência e a atuação do intelectual indígena.
Dessa forma, podemos compreender que as teses refletem o pensamento dos intelectuais
indígenas sobre educação e suas repercussões e que este pensamento incide em temas como
“escolarização para e pelos povos indígenas”; “as contribuições da escola para os povos
indígenas”, “a importância do acesso à escola pelos indígenas”, “/escola como mecanismo para
e de luta”. É claro que, por darem ênfase aos processos escolares e suas repercussões, as teses
dos intelectuais indígenas mencionados nesta dissertação, concomitantemente, abordam alguns
fenômenos e concepções de e em educação escolar indígena.

5.3.3 Fenômenos e concepções de Educação Escolar Indígena

No que tange à fenômenos e concepções sobre educação escolar e sobre a escola


indígena, as teses tratam de questões sobre as repercussões da escolarização, formação escolar
para indígenas, aspectos estruturais, didáticos e pedagógicos da escola indígena, bem como de
questões e conceitos de educação escolar indígena.
Nas teses, identificamos que, ao abordar a Educação Escolar Indígena, nossos
intelectuais apresentam um discurso similar e que evocam aspectos identitários. Como em
parágrafos anteriores já mencionamos sobre identidade indígena, buscamos aqui apontar
convergências sobre uma concepção de educação escolar indígena.
Em Naine Terena (2014), por exemplo, há um entendimento do que deve ser a educação
escolar indígena. Segundo a autora, sua pesquisa detectou que “[...]o pensamento dos próprios
professores indígenas acerca do que deve ser a educação escolar indígena: [ é que ] ‘a identidade
Terena dentro do contexto escolar deve ser reafirmada todo o tempo, por que só assim, torna-
se (a escola) indígena de verdade’ (depoimento da professora 4)” (JESUS, 2014, p. 81).
O depoimento da professora, que está expresso na tese de Naine Terena, mostra-nos,
mesmo que de maneira tímida, o que os docentes Terena acreditam que os aspectos étnicos de
identidade e cultura devem ser o maior foco da educação escolar indígena. Nesse sentido, de
acordo com o que analisamos na tese de Naine Terena, para os Terena a educação escolar
indígena deve ajudar o indígena transitar entre o mundo indígena e não-indígena, além de
fortalecer a todo momento a identidade indígena, a cultura e a valorização Terena.
104

Por sua vez, Daniel Munduruku (2012) apresenta os pensamentos de Álvaro Tukano e
Moura Tukano sobre o que deve ser a escola indígena e o que ela pode ensinar:

Para esses dois indígenas rionegrinos [Álvaro Tukano e Moura Tukano], a


escola teve um papel importante em suas vidas e no que iria acontecer
posteriormente. Ambos creditam à escola o “molejo” no trato com as
dificuldades políticas que surgiram. No entanto, também entendem que a
escola, tal como lhes foi apresentada pelos missionários, os desestimulou a
continuarem, especialmente no momento em que passaram a questionar o
modus operandis dos missionários que impediam seus parentes e a si mesmos
de lutarem por seus direitos (MUNDURUKU, 2012, p. 181).

Esse trecho ressalta o que já mencionamos inúmeras vezes, isto é, a importância da


escola para a luta indígena, sendo ela responsável por ensinar aos indígenas o “molejo” entre
os mundos indígena e não-indígena. Embora lancem muitas críticas ao modelo não-indígena de
escola, eles debatem que ela colaborou nas suas formações no sentido de adquirirem capacidade
de lidar com dificuldades que enfrentam na atuação política.
Edson Kayapó destaca a importância da Educação escolar indígena para os Karipuna
pesquisados, conforme está expresso em sua tese:

[...] já perceberam que a educação escolar indígena diferenciada é importante


no sentido de que ela pode propiciar conhecimentos ressignificados que
sirvam para a defesa e fortalecimento da identidade e das tradições Karipuna,
propiciando ao mesmo tempo conhecimentos que possibilitem o diálogo
franco e claro com os não-índios (BRITO, 2012, p. 141).

Constatamos que, para Edson Kayapó, a escola é um espaço que propicia conhecimentos
que podem ser utilizados para a valorização e manutenção da identidade e das tradições do
povo, bem como, permite o diálogo entre indígenas e não-indígenas.
De maneira semelhante, Gersem Baniwa, ao abordar a educação escolar indígena,
afirma que o que as populações indígenas querem é “[...] uma educação que garanta o
fortalecimento e a continuidade dos sistemas de saber próprios de cada comunidade indígena e
a necessária e desejável complementaridade de conhecimentos científicos e tecnológicos, de
acordo com a vontade e a decisão de cada povo ou comunidade” (LUCIANO, 2011, p. 75-76).
Assim, o autor pondera que a relação de complementariedade entre a educação escolar e
conhecimentos próprios de cada povo é algo desejável por cada povo, para que construam novas
105

formas de ser e estar no mundo. Então, a educação escolar indígena pode colaborar no
fortalecimento identitário e cultural, assim como, contribuir para o diálogo interétnico.
Evidenciamos, então, que as teses dos intelectuais indígenas brasileiros em educação
consideram a escola como um lugar de apropriação de conhecimentos que viabilizam uma
ressignificação e constituição dos saberes próprios, do fortalecimento étnico, da valorização da
cultura dos povos e, sobretudo, oportuniza o contato dos indígenas com outros povos, na
tentativa de elaboração de um diálogo e de uma participação menos desigual.
As teses dos intelectuais indígenas também apontam críticas à educação escolar
oferecida aos indígenas. Cada intelectual pondera sobre aspectos diversos, mas todos
manifestam insatisfação com os modelos de escola ofertados para os indígenas.
Na produção de Naine Terena, a autora propõe uma reflexão sobre como elementos de
origens comuns têm assimilação diferenciada pelo mesmo povo. Para ela, a educação escolar
indígena diferenciada, que deve contemplar a regionalidade, pode distanciar-se da utilização de
outros elementos que estão no cotidiano dessas populações. Por isso, Naine Terena considera
“ser bastante estranho se falar em uma educação diferenciada que contemple a regionalidade,
ao mesmo tempo em que tratamos de estudantes que se mantém inseridos ao contexto das
tecnologias de comunicação” (JESUS, 2014, p. 128).
Essa contradição apontada por Naine Terena, no entanto, não inviabiliza que uma escola
indígena diferenciada possa aliar o tradicional com o moderno sem que necessariamente um
seja negligenciado por conta do outro. Dessa maneira, ao dar maior ênfase a um que ao outro,
a escola indígena pode não estar oferecendo a educação que os povos indígenas desejam.
Nesse sentido, a reflexão da autora nos remete à seguinte reflexão: como elementos tão
distintos de origem ocidental têm assimilação diferenciada entre os Terena? Acredita a autora
que a ênfase na utilização do audiovisual seja devido à maior afinidade de diálogo com a
linguagem interna. Sendo assim, ela continua a afirmar que na utilização da escrita os jovens
acabam reproduzindo no seu modo de escrever sua oralidade. É por isso que ressalta a
necessidade de a “escola indígena buscar uma linguagem mais próxima do cotidiano indígena,
levando-se em consideração as formas como se comunicam em casa e com os demais membros
da comunidade e o potencial do audiovisual penetrar na comunidade escolar” (JESUS, 2014, p.
129).
No que tange à educação escolar indígena, Edson Kayapó considera que “a educação
escolar indígena diferenciada é um processo de incipiente implementação que depende da
vontade política do poder público e da adoção de medidas concretas para a sua efetiva
106

realização” (BRITO, 2012, p. 109). A crítica exposta por Edson Kayapó, em relação à
implementação da educação escolar indígena, também é complementada por sua compreensão
sobre a exacerbada atribuição redentora da escola:

[...] Certamente que não será a escola quem ensinará o indígena a ser o que
ele é; ela pode apenas colaborar, criando práticas curriculares que levem em
conta as histórias e os modos de organização social própria desses povos. A
escola não será a redentora das tradições indígenas, e é improvável que ela
abandone todos os ranços herdados da escola catequizadora e “civilizadora”
(BRITO, 2012, p. 109)

Apesar desse intelectual Kayapó acreditar que a escola indígena contribui para a
emancipação dos povos, ele não considera que ela seja capaz nem responsável por “salvar” as
tradições dos povos indígenas, pois há nessa instituição aspectos inerentes a sua origem e
constituição que estão condicionadas ao mundo moderno/ocidental.
Em um dos depoimentos coletados por Daniel Munduruku, há uma intensa crítica à
escola. Moura Tukano, em entrevista cedida à Daniel Munduruku, afirma que a escola onde
estudou só o ensinou a “dizer bom dia, por favor, dá licença, a amar uns aos outros. Mas, quando
ando na rua, não ouço bom dia nem dá licença” (MUNDURUKU, 2012, p. 145).
É obvio que não se está nesse depoimento falando especificamente da educação
indígena, mas da educação para indígenas. Além disso, esse relato permite inferir que as críticas
feitas pelos indígenas à escola são desde os primórdios do processo de escolarização dos povos
autóctones do país. Isso reforça a compreensão de que, apesar dos muitos modelos de escola
para indígenas, ainda há dificuldades em se construir um modelo de escola que seja desejável
por eles.
A educação escolar indígena defendida por Gersem Baniwa, por sua vez, é aquela que
“deve garantir uma educação de qualidade social, diferente, específica que respeite as
igualdades e as diferenças existentes em cada pessoa, em cada sociedade multicultural e
multilinguística” (LUCIANO, 2011, p. 77). Ele considera, portanto, que talvez seja por isto que
a educação escolar indígena tem sido cada vez mais desejada, reivindicada pelos povos
indígenas.
Na tese de Gersem Baniwa, também, há importantes questionamentos feitos pelo autor,
conforme trecho a seguir:
107

Mas os povos indígenas estão satisfeitos com a escola que possuem? As


demandas apresentadas e os resultados esperados estão sendo satisfatórios? É
possível consolidar essas experiências como políticas públicas de Estado? São
algumas das perguntas que precisam ser respondidas ou ao menos
aprofundadas.
É importante considerar também o papel dos professores indígenas neste
processo de mudança, porque são eles, juntamente com os pais, os principais
envolvidos nessa busca de concretizar uma escola norteada pelas pedagogias
indígenas, numa relação direta do ensino com os projetos de cada sociedade.
(LUCIANO, 2011, p. 78)

Os questionamentos suscitados por Gersem Baniwa podem ser aplicados para vários
povos e em cada um deles pode-se receber diferentes respostas. Entretanto, os responsáveis por
uma educação escolar indígena são, para este intelectual, os próprios povos indígenas, que
devem constantemente construir uma escola fundamentada em pedagogias indígenas e em seu
projeto de sociedade.
Gersem Baniwa considera que no ambiente da prática escolar se nota uma mudança
institucional e processual lenta e gradativa em prol da construção de um modelo alternativo de
escola, definido como uma escola comunitária, gerenciada pela comunidade indígena. Essa
escola, no entanto, deseja ser diferenciada, específica, intercultural e bilíngue.
Mesmo reconhecendo a importante contribuição da escola indígena para a vida de
muitos povos, o intelectual Baniwa destaca que esta instituição “não poder ser considerada a
salvação para todos os males internos e externos das comunidades indígenas, por suas próprias
limitações, uma vez que o contexto em que vivem apresenta complexidade muito maior do que
o que a escola pode fazer” (LUCIANO, 2011, p. 326).
As produções acadêmicas analisadas nesta dissertação não se limitam a debater somente
questões conceituais da educação indígena, pois, ao fazerem isso, os intelectuais
invariavelmente recorrem aos aspectos estruturais, didáticos e pedagógicos da escola indígena
no Brasil.
É evidente ainda que nas teses analisadas, quando se trata dos aspectos da escola
indígena, se suscitem questionamentos acerca do currículo escolar das instituições que são
mencionadas e/ou que foram lócus de pesquisa dos trabalhos.
Quanto à elaboração do currículo da Escola Lutuma Dias, Naine Terena disserta que o
Plano de Educação do Mato Grosso do Sul afirma que a Funai procurava “procurava seguir
currículos adotados nas escolas oficiais regionais, buscando adaptá-los à cultura indígena,
respeitando sempre o patrimônio cultural das comunidades e seu valor artístico e meios de
expressão” (JESUS, 2014, p. 54). Segundo Naine Terena, o mesmo plano menciona o artigo
108

49 da lei 6001 na qual está expresso que a “alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo
a que pertençam, e em português, salvaguardado o uso da primeira”. (JESUS, 2014, p. 54)
Nesse trecho, embora a autora ressalte que os currículos eram adaptados para as escolas
indígenas, eles respeitavam e valorizavam as práticas culturais e artísticas dos indígenas, apesar
de possuírem semelhanças com os currículos de escolas regionais não-indígenas, dos quais
eram adaptados. Entretanto, acreditamos que essas adaptações curriculares induziam a
reducionismos na educação escolar ofertada aos indígenas, e por isso essas escolas indígenas
acabam por se constituírem em extensões das escolas rurais.
Diante da concretização do currículo escolar indígena, Naine Terena considera como
necessário:

Explorar o currículo e a aplicação prática no dia a dia da Escola Indígena


Lutuma Dias para compreender como se concretiza a educação escolar nesse
espaço, é expor também, a dificuldade de se implantar um modelo de educação
escolar indígena diferenciado nas mais diferentes escolas indígenas do país.
Isso por que as dificuldades apresentadas na escola Indígena Lutuma Dias são
também constatadas em diversas outras unidades escolares existentes nas
aldeias e reservas indígenas brasileiras.[...] Um modelo de escola diferenciada
demandaria maior número de capacitações sobre as culturas específicas, uma
alteração nos materiais didáticos e uma nova estrutura de pensamento, onde o
indígena passaria a ter mais autonomia na escola e através dela, do espaço
territorial em que estão inseridos, levando, sobretudo, à legitimação das
identidades e das diferentes lutas em que estão inseridos (JESUS, 2014, p.94-
95).

Nesse sentindo, Naine Terena afirma que a elaboração e a execução do currículo escolar
da escola indígena diferenciada têm as mesmas dificuldades de implantação em diversas escolas
indígenas do país, porque o modelo de escola indígena diferenciada demandaria mais
formações, autonomia de atuação e, sobretudo, uma nova estrutura de pensamento que
permitiria a legitimação e a valorização das identidades que estão em luta.
Edson Kayapó, ao abordar o currículo escolar da escola indígena entre os Karipuna,
declara que:

No antigo modelo curricular, ‘as lideranças não se intrometiam diretamente


nas escolas’, lembra o pajé. [...] Os professores da aldeia ressaltam que o Turé
tem sido um dos temas que passam a integrar o currículo da escola da aldeia
do Espírito Santo. Durante várias décadas os Karipuna foram proibidos de se
manifestar através do ritual, no entanto, atualmente o Turé vem assumindo
status dentro da escola e da comunidade: o ritual está revigorado. Assim como
a língua patuá, o ritual do Turé vem ganhando novos significados e é mantido
como elemento unificador daquela cultura, ao mesmo tempo em que esse
109

processo atravessa o espaço da escola, expondo contradições e tensões sociais.


(BRITO, 2012, p. 134-135)

Se no passado não havia a participação efetiva dos indígenas na educação escolar que
recebiam, na atualidade, estes são bastante participativos e colaborativos, aproveitam todas as
oportunidades para estimular aprendizagens. A constatação de Edson Kayapó sobre o
protagonismo dos Karipuna sobre a educação que recebem é evidenciado na interligação que é
feita entre o currículo da escola e as tradições e rituais indígenas.
Na contramão do que acontece na escola indígena no Amapá, quando rememora sua
experiência com a escola e questionando sua formação, Álvaro Tukano, entrevistado de Daniel
Munduruku, afirma que:

[...] “o acesso à educação [em Taracuá] era muito limitado, porque nesses
lugares onde passei apenas repetia o que os missionários ditavam para educar
ou amansar os índios [...] Não estávamos educando os nossos jovens para
manter nossas tradições. Eu não estava ensinando aos meus alunos o que meu
avô queria, o que meu pai queria e o que meu povo queria”. (MUNDURUKU,
2012, p.179-180)

Muitos indígenas, assim como os intelectuais que aqui são mencionados, ressaltam que
a educação que receberam não os permitia “desenvolver-se”, pois eles não aprendiam coisas
necessárias para a sua “sobrevivência” entre os não-indígenas. Álvaro Tukano critica e enfatiza
que o tipo de educação que recebeu não era aquele que seus “ancestrais, povo e alunos
queriam”, pois, não os estava ensinando a manter as tradições de seu povo. Mesmo não
apontando explicitamente o currículo escolar, esse entendimento nos permite supor que seguia
um modelo curricular que não correspondia à realidade do povo indígena a que pertence.
Já Gersem Baniwa – ao tratar dos conteúdos desenvolvidos na educação escolar
indígena, sejam aqueles que buscam proporcionar conhecimentos que viabilizem o
protagonismo, o trânsito e a valorização indígena ou aqueles que não pertencem ao mundo
indígena – enfatiza que eles podem ser pouco interessantes: “os conteúdos politicamente
corretos, abordados na perspectiva da educação escolar diferenciada e intercultural, quando
tratados de formas isolados não satisfazem os povos indígenas em seus conteúdos e resultados”
(LUCIANO, 2011, p. 80).
Contudo, Gersem Baniwa considera que essa insatisfação com os conteúdos escolares
por parte dos jovens indígenas pode significar que há maior interesse destes em se apropriar de
conhecimentos e saberes do “mundo branco”, logo:
110

Experiências em curso sugerem que a escola indígena [...] tem nivelado por
baixo a qualidade do ensino, forjando um novo indígena que, por um lado,
pouco conhece sua realidade e cultura indígena em decorrência do processo
de distanciamento gradativo em função da escola e, por outro lado, também
pouco domina a realidade e os códigos da sociedade nacional e global. Ou
seja, em função da organização do tempo, espaço e conteúdos adotados pela
escola indígena, copiada ou espelhada no modelo de escola branca, não é
possível atender adequadamente as demandas e anseios das comunidades
indígenas. Há consenso entre educadores de que a escola atual não consegue
atender adequadamente a sua tarefa junto a sociedade nacional. Como se pode
esperar que dê conta das demandas específicas dos povos indígenas, que
demandam além dos conhecimentos modernos, os conhecimentos e valores
tradicionais? (LUCIANO, 2011, p. 178).

A precariedade da educação escolar indígena é decorrente dessa difícil tarefa de tentar


enfatizar o “bom indígena” ou o “bom cidadão”, e isso incorre na falta de qualidade em efetuar
nem uma tarefa nem outra. Dessa maneira, muitos intelectuais reconhecem que a escola
indígena atual não consegue atender as funções a que se propõe.
No que se refere à educação escolar indígena, as teses além de apresentarem concepções
sobre esta educação e debaterem os currículos propagados por elas, abordam aspectos
estruturais e funcionais dessas escolas. Por isso, é comum detectar nos textos a descrição do
espaço físico da escola, a história ou o histórico da escola entre os povos indígenas, o perfil dos
professores, a elaboração e a aquisição de materiais didáticos. Além desses aspectos, traçam
debates breves sobre os desafios e limitações na implementação e efetivação da educação
escolar indígena, os quais são tratados adiante.

5.3.4 Desafios e limitações da Educação Escolar Indígena: o olhar indígena

As produções intelectuais apresentam as tensões, os limites e os desafios da educação


escolar indígena em suas comunidades. Mesmo nos estudos dos intelectuais que não traçam
debates explícitos sobre a educação escolar, este tipo de discurso emerge como reivindicação
de uma nova postura do Estado para com os povos indígenas.
Os autores das teses apontam a ausência de autonomia dos povos indígenas para
construir seus próprios modelos de instituição escolar como um dos limitadores da efetiva
implantação da educação escolar indígena em suas comunidades. Além disso, questionam
também o modelo de escola, a formação inicial e continuada de seus professores, a ausência de
recursos e materiais didáticos. Estes são alguns dos entraves existentes para que a educação
escolar indígena ocorra de modo a satisfazer os interesses dessas populações étnicas.
111

Quanto à ausência de autonomia, Naine Terena deixa claro que o povo Terena, por meio
de suas lideranças e professores, demonstrou insatisfação com o gerenciamento da educação
escolar indígena que lhes é ofertada. Dessa forma, esta intelectual Terena manifesta que

Observando os documentos coletados, verificamos a dificuldade do


desenvolvimento da Educação Escolar Indígena no estado. Uma carta enviada
pela Direção, professores e lideranças da Escola Guarani de Amambaí, em
abril de 1993 demonstra a insatisfação dessa comunidade com a educação
escolar indígena gerenciada pelo Governo do Estado de MS.
[...]
O embate sobre como deve ser feita a Educação Indígena é demonstrada no
decorrer das cartas enviadas e nos aponta uma questão que é frequente quando
se trata de instituições de apoio ao índio, inseridos nos processos que visam à
implementação de ações em educação, saúde e política: o nível de
interferência dessas instituições nas decisões da comunidade e até mesmo o
grau de influência que elas exercem sobre as lideranças indígenas. (JESUS,
2014, p. 61-62)

Nesses termos, podemos afirmar que a constante presença indigenista e a pretensa


posição de capacidade atribuída ao não-indígena incidem em uma desconfiança para que as
populações indígenas, como a Terena, não consigam gerenciar e ter poder de decisão sobre
serviços que estão presentes em suas comunidades. Este relato encontrado na tese de Naine
Terena indica ainda a ininterrupta cooptação das entidades indigenistas sobre as comunidades.
Naine Terena também enfatiza que os Terena durante toda a história de implantação e
desenvolvimento da Educação Indígena no MS mostraram-se insatisfeitos com o nível de
interferência e influência na tomada de decisão, tanto no que se refere à educação do povo
indígena quanto a questões de saúde e política. Dessa forma, Naine Terena considera que o
insistente domínio não-indígena sobre as entidades de apoio aos povos autóctones, como a
escola, resulta em distanciamentos do que os indígenas esperam dessas instituições.
Edson Kayapó usa o depoimento do cacique Tiago Forte. Para ele, declarar que a falta
de autonomia vivenciada pela escola indígena no contexto Karipuna ocorre da:

[...] falta [de] mais empenho do Estado com a educação escolar indígena. Ele
afirma que “a educação escolar diferenciada não está acontecendo na íntegra”,
e ao mesmo tempo Tiago considera que: “Falta mais pressão das lideranças e
das Organizações indígenas junto ao governo, se nos unisse mais, seria mais
fácil conseguir os recursos que precisamos para construir escolas e cuidar da
formação dos professores” (BRITO, 2012, p. 136).
112

Edson Kayapó concorda com Tiago Forte. Para ele, a educação escolar indígena não
ocorre de maneira desejada para estes povos porque não há interesse do Estado. Também
defende que a pressão das lideranças indígenas e de suas organizações poderia provocar maior
participação do Estado para atender às demandas da população Karipuna. Essa ausência de
autonomia da escola indígena, para Edson Kayapó, é uma estratégia de dominação e de
permanência da relação tutelar.35
Por sua vez, Daniel Munduruku (2012, p.101) afirma que, por serem “vistos como uma
espécie de seres que deveriam continuar eternamente tutelados pelo Estado, logo, incapazes de
esboçar qualquer reação consequente e perspicaz”, os povos indígenas não conseguem
gerenciar e colaborar na tomada de decisões das instituições que lhes oferecem serviços ou
apoio, por isso, entendendo as implicações dessa falta de autonomia quanto ao gerenciamento
das instituições indígenas, os líderes do Movimento Indígena mostraram a insatisfação de seus
povos por meio deste mesmo movimento.
No que tange à autonomia dos povos indígenas, Gersem Baniwa opina que:

[...] não é possível um povo indígena pensar e exercitar autonomia ou


autogoverno sem uma perspectiva própria. Autonomia só ocorrerá quando um
povo tiver seu plano de vida presente e futura, articulando a tradição e a
modernidade numa totalidade societária, referenciado em um espaço
territorial sob controle interno. (LUCIANO, 2011, p. 311).

Conforme o autor, a conquista da autonomia indígena só se efetivará quando estes


tiverem elaborado sua própria perspectiva de autogoverno, a qual deverá articular tradição e
modernidade, sem, no entanto, uma prevalecer sobre a outra, mas ambas em equilíbrio.
Contudo, entendemos que há muitos esforços para que as populações indígenas permaneçam
tuteladas às entidades indigenistas e estatais, por conseguinte, mesmo com a elaboração de um
modelo próprio de autogoverno, teriam estas populações a desejada autonomia? O insistente
comportamento tutelar denunciado pelos intelectuais indígenas aponta para a continuidade de
estratégias que mantenham os povos nessa relação de dependência e isto se dá pela:

35
Em sua tese de doutorado, Weigel, ao analisar a história da escola indígena Baniwa, identifica que essa tutelagem
vai ocorrer quando da criação dos internatos para índios no Alto rio Negro, que resultou em um processo complexo
de tentativa de cristianização e nacionalização dos Baniwa. As resistências a esse projeto são descritas por Weigel
que, ao fim e ao cabo, afirma que os Baniwa, no processo de conflito e contradições da educação escolar que lhes
foi imposta, acabaram por fazer prevalecer em grande medida seus interesses étnicos ao “comprometer a escola
com outros objetivos e finalidades, esboçando um outro projeto político, voltado para a construção da identidade
coletiva e as lutas pela sobrevivência” (WEIGEL, 1998, p. 264)
113

[...] concorrência entre Movimento Indígena e o movimento indigenista


(próindígena) das ONGs [que] tem dificultado a articulação de uma agenda
indígena local, regional ou nacional, na medida em que, na concorrência, as
ONGs ainda levam vantagem, por influências que exercem junto ao governo,
à academia e à sociedade em geral (LUCIANO, 2011, p. 318).

Em outras palavras, Baniwa denuncia que infelizmente ainda não se pôde elaborar uma
agenda política indígena em virtude do movimento indígena não gozar do mesmo prestígio e
legitimidade que o movimento indigenista que, por sua vez, é quem monopoliza e influencia o
governo, a universidade e a sociedade. Na perspectiva de Verdum (2016a), embora o
movimento indigenista postule o “relativismo cultural”, ele não abandonou a meta de “incluir
os índios” na sociedade nacional. Para esse autor, há “um discurso ideológico relativista
encobrindo uma prática integracionista” (VERDUM, 2006a, p.5).
Ao debater de modo breve sobre a história do movimento indigenista, Verdum declara
que no “Brasil, o protecionismo e o assistencialismo foram seguidos de perto pelo
produtivismo, configurando a marca do sistema tutelar do indigenismo implementado sob a
batuta do Estado brasileiro” (VERDUM, 2006a, p.7). Segundo Ramos (1998, p.2), “um dos
aspectos mais persistentes na ideologia do indigenismo estatal brasileiro é a premissa de que o
Estado protege os índios contra a rapinagem da sociedade dominante”. Esse pensamento, na
verdade, mantem a posição tutelar dos indígenas e os desqualifica para gerenciarem suas
próprias pautas.
Dito de outro modo, conforme Verdum (2006b, p. 29), “o indigenismo brasileiro surge
ligado ao projeto de modernização e integração do meio rural”. No bojo dessa corrente de
pensamento e estrutura desenvolveram-se “idéias, práticas e instituições voltadas para a
incorporação econômica, política e cultural das sociedades indígenas aos projetos de
‘desenvolvimento nacional’” (VERDUM, 2006b, p. 33).
Diante de um suposto desenvolvimento nacional, as agências multilaterais
desempenharam uma função estratégica, na qual, baseados nas ideias do indigenismo e da
antropologia social, incentivaram a constituição e promoção dos governos e agências
indigenistas nacionais no campo da pesquisa e ensino, além do campo econômico, a fim de
integrá-los, modernizá-los e salvá-los da pobreza (VERDUM, 2006b).
Durante a predominância do movimento indigenista, havia (e ainda há) entre indígenas
e entidades indigenistas uma relação de mediação dos interesses indígenas, realizada por um
não-índigena para e pelo “bem do indigena”. Para essa relação de dependência, na qual o
indígena perde a voz e o “mestizo” torna-se seu porta-voz ou mediador, Rama (1985) dá o nome
114

de mediación mestiza, a qual Guerrero (1994) define como “ventriloquia”. Esse fenômeno
coloca as populações indígenas à mercê de interesses não coerentes a sua cosmovisão.
Como já mencionado, adicionado à falta de autonomia para o gerenciamento de
entidades como a escola, há também, na perspectiva de nossos intelectuais indígenas, a
precariedade na formação inicial e continuada das populações indígenas, assim como a ausência
de recursos financeiros e materiais que dificultam a existência de uma educação escolar
indígena.
No que tange a outras dificuldades enfrentadas pela escola indígena, Naine Terena
destaca que:

A constituição de uma escola diferenciada é um grande desafio para os povos


indígenas do país. Os motivos são os mais variados e passam pela questão das
políticas de educação adotas pelos estados e municípios, alocação de recursos,
diferenças socioculturais apresentadas pelos povos indígenas do Brasil e o
modelo de educação escolar aplicado nas aldeias. (JESUS, 2014, p. 81).

A síntese de problemáticas para a efetivação de uma educação escolar indígena,


expressas na afirmação de Naine Terena, reforça como a ausência de autonomia inflige também
no acesso a recursos diversos, o que é acentuado pela ausência de reconhecimento das
especificidades de cada população indígena.
A partir das concepções dos professores entrevistados por Naine Terena, os principais
entraves para a Educação Escolar Indígena são:

Falta de material relacionado à língua materna;


2. Falta de capacitação para os professores de Arte e Língua Terena;
3. Falta de emancipação política, para responder aos anseios do povo Terena;
4. A educação escolar tem que ser diferenciada. Calendário Escolar indígena
diferenciado. Falta de material didático para os alunos e para professores.
(Caderno de campo, 2010) [...] os educadores dizem ser necessário um extenso
diálogo e união entre os próprios indígenas [...] Eles propõem um trabalho
comunitário, pois o questionamento maior está embasado na ausência da
educação indígena como elemento preponderante da escola e essa inserção
deve começar a partir da participação coletiva dos próprios educadores
indígenas na elaboração de um Projeto Político Pedagógico que realmente
contemple a comunidade escolar Terena. (JESUS, 2014, p. 89-90)

Para os indígenas e professores Terena, as maiores dificuldades na realização de um


trabalho educacional coerente com o que esperam de uma escola indígena diferenciada
decorrem da ausência de um trabalho comunitário e para a comunidade, bem como da limitação
115

na participação em questões políticas do povo. No entanto, os professores entrevistados


apontam como primeiro passo para se consolidar a educação indígena diferenciada a
organização e a participação efetiva dos educadores Terena para elaborar um Projeto Político
Pedagógico que de fato seja voltado para o que o povo anseia.
A declaração de Naine Terena deixa evidente que seus entrevistados acreditam que a
carência de ações para consolidar as demandas indígenas se dá pela ausência de unidade entre
o povo Terena. Ela frisa que há nas escolas indígenas de seu estado um caráter homogeneizante,
pois não se considera as especificidades dos povos.
Essa homogeneização dos conteúdos curriculares adotados pela escola indígena incide
na falta de conhecimentos e saberes, bem como de materiais didáticos, para a adaptação à
realidade dos indígenas que estudam na Escola Lutuma Dias36:

Essa homogeneização, ao se analisar os relatos dos professores, tem deixado


de considerar a identidade e o pertencimento dos indivíduos indígenas com
relação a sua própria realidade, o que interfere também no desempenho do
professor indígena dentro da sala de aula” (JESUS, 2014, p. 91).

Nesta perspectiva, a autora considera que, embora a LDB e outras leis garantam a
educação escolar indígena, essas escolas são transformadas pelo Estado em espaços
homogeneizantes, ou seja, no qual há pouca articulação com a realidade dos diversos povos
indígenas, porque se concebe a educação indígena como algo mais generalizante, não havendo
dentro de cada localidade as adaptações necessárias para atender cada realidade.
A homogeneização nas escolas indígenas tem repercutido ainda na pouca habilidade que
os professores encontram em lecionar sobre a cultura de seu povo. Por isso, Naine Terena diz
que “para os professores, trabalhar as disciplinas específicas tem suscitado muitos debates
internos. Isso por que existe muita dificuldade em levá-las para sala de aula, devido à falta de
formação específica para os educadores que as ministram e materiais didáticos” (JESUS, 2014,
p. 99). Como já exposto em parágrafos anteriores, a formação para indígenas é importante e sua
ausência ou baixa qualidade incide em limitações para a elaboração da desejada educação
escolar indígena:

Mesmo com a definição da ementa e conteúdos utilizados nessas disciplinas,


os professores das disciplinas específicas da Escola Municipal Indígena

36
Escola objeto de pesquisa da tese de Naine Terena.
116

Lutuma Dias, apresentam algumas dificuldades em levar para a prática de sala


de aula o que é proposto pela GEMED, devido à inexistência de materiais
didáticos e metodologia que se adeque as necessidades do educador e do
aluno,[...] O que se apresenta como dificuldade para o ensino da disciplina de
Artes, envolvendo a temática universal, é a falta de preparação dos professores
para realizar a conexão com a cultura Terena, pois, nenhum tipo de
capacitação é oferecido tanto na formação superior, quanto pela Gerência de
Educação. Essa observação pode ser feita também, com relação aos livros
didáticos, que, focam a história da arte não-indígena, dificultando a inserção
da temática indígena nos conteúdos propostos.
Dessa forma, os professores registram durante a entrevista que criam seus
próprios materiais didáticos para o ensino da língua e cultura/arte Terena:
criam cadernos com anotações particulares, atividades próprias e reproduzem
para os alunos. Seguem a ementa, mas adaptam de acordo com o
desenvolvimento dos alunos, utilizam imagens como fotografias e desenhos
para que as crianças assimilem as informações. (JESUS, 2014, p. 101-102)

Diante das dificuldades que encontram para trabalhar com as disciplinas específicas, os
educadores buscam alternativas para concretizar os principais objetivos delas, garantindo
também a legitimação e a valorização do povo Terena, por meio da elaboração de materiais
didáticos e instrucionais próprios.
Para Edson Kayapó, assim como em Naine Terena, a falta de formação para docentes é
um complicador para a elaboração de uma educação escolar indígena desejada:

Os depoimentos dos professores da aldeia sinalizaram para a carência de


cursos específicos para professores, tanto de formação inicial quanto os de
formação continuada. Segundo Altiere, a licenciatura intercultural indígena
ofertada pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) não tem se
aproximado dos interesses dos povos indígenas do estado, não há diálogo da
universidade com as lideranças indígenas e, portanto, o curso não tem as
características diferenciadas que se esperava (BRITO, 2012, p. 139-140).

Na tese de Edson Kayapó, percebemos que mesmo quando são ofertados cursos aos
professores indígenas, eles não são coerentes com a realidade, especificidades e com os anseios
desses professores. Em sua produção acadêmica, Edson Kayapó dedica-se também a
demonstrar que o descaso com a elaboração de materiais didáticos impõe à educação escolar
indígena limitações para a aprendizagem, como é perceptível no excerto adiante:

Quanto à produção de material didático específico para as escolas indígenas


do estado, esperava-se que surgissem de dentro das atividades curriculares da
licenciatura intercultural indígena da UNIFAP, mas até agora isso não
aconteceu e talvez nem aconteça, devido ao distanciamento da universidade
em relação a Secretaria Estadual de Educação. (BRITO, 2012, p. 140)
117

Para Edson Kayapó, não há interesse real de se elaborar materiais didáticos específicos
para as comunidades indígenas, no entanto, nossa experiência com os povos indígenas do
Amapá, região onde estão localizados os Karipuna, demonstram que existe uma tímida
produção de materiais didáticos e proposta curricular para a educação escolar indígena do
Amapá.
Já na tese de Daniel Munduruku (2012) não aparece explicitamente as implicações
advindas da ausência de uma formação escolar para as populações indígenas, contudo, este
intelectual defende que somente uma formação escolar de qualidade pode promover aos
indígenas a conquista de espaços que ainda hoje são ocupados por não-indígenas. Além disso,
ao afirmar que se deve formar o indígena para assumir cargos em todos os níveis, ele reconhece
implicitamente que a baixa qualidade da educação escolar indígena tem dificultado a ascensão
de muitas populações indígenas.
Por sua vez, Gersem Baniwa, ao dissertar sobre a formação escolar (universitária),
afirma que:

A formação universitária de indígenas, em si mesma, não tem facilitado


aproximação desses profissionais indígenas com o movimento indígena. Os
principais argumentos das lideranças do movimento são referidos à falta de
capacidade e de experiência dos profissionais indígenas egressos das
universidades, razão pela qual ainda preferem assessores brancos. Meu
entendimento é que esta desconfiança de fato está ligada à baixa qualidade de
formação em todos os níveis escolares e universitários, que para mim está
relacionada ao modelo de escola indígena que divide o tempo e o espaço
semelhante à escola branca, sendo que esta utiliza este tempo e espaço para
trabalhar apenas os conhecimentos universais, enquanto que a escola indígena
com o mesmo tempo e espaço deveria trabalhar os conhecimentos tradicionais
e os conhecimentos universais. Esta pode ser a razão principal pela qual
muitos jovens estudantes indígenas não conseguem voltar para suas
comunidades após conclusão de seus processos formativos, por insegurança
ou mesmo pela certeza de que não poderão contribuir com suas comunidades
nem mesmo nas práticas cotidianas da vida tradicional, pois até isso perderam,
em consequência do longo tempo fora das aldeias. (LUCIANO, 2011, p.178-
179)

Nesses termos, este intelectual Baniwa permite supor que embora os jovens indígenas
tenham formação universitária, isto não significa que contribuam para o movimento indígena,
pois, em alguns casos, há uma insegurança sobre as formas de atuação que estes devam ter.
Segundo Gersem Baniwa, isso decorre da baixa qualidade na formação escolar resultante dessa
“dupla função” que a escola/universidade tenta exercer (ensinar “conteúdos indígenas” e
conteúdos não-indígenas). Por essa razão, para o autor, os universitários indígenas, devido a
118

sua formação, não acreditam que por meio dela possam contribuir em suas comunidades. Para
nós, essa “insegurança” sobre os conhecimentos recebidos na universidade representa a intensa
e internalizada ideologia que considera os sujeitos indígenas como incapazes e, por isso, devem
ser “tutelados”.
Essa ideologia internalizada não está, obviamente, presente somente entre os brancos,
mas também entre os indígenas. Dessa forma, não nos parece incoerente esse tipo de
argumentação sobre as motivações da ausência de contribuição dos universitários indígenas nos
movimentos de seus grupos étnicos. Podemos analisar ainda que essa “predileção” por
assessores não-indígenas possivelmente configura-se como uma estratégia para a legitimação
de suas ações enquanto entidade pública de causas indígenas, haja vista que os indígenas em
suas diversificadas esferas ainda sofrem com a desconfiança sobre sua capacidade intelectual e
política. Nesse sentido, de acordo com Gersem Baniwa:

Mesmo com um número significativo de profissionais indígenas habilitados,


as oportunidades e os espaços estratégicos no âmbito interno do movimento
indígena e no âmbito das políticas públicas continuam sendo ocupados por
profissionais não indígenas especialmente ligados às ONGs indigenistas, na
maioria das vezes, com apoio das próprias organizações indígenas.
(LUCIANO, 2011, p. 319).

Essa ausência de reconhecimento e de legitimidade aos indígenas escolarizados afeta os


profissionais indígenas que não assumem postos de trabalho importantes dentro de entidades e
organizações indígenas, em muitos casos com o apoio dos próprios indígenas. É interessante
destacar que o apoio de indígenas ao preenchimento de oportunidades, em entidades e
organizações indígenas por não-indígenas, seja decorrente dessa insistente depreciação do
sujeito indígena que, mesmo escolarizado e habilitado profissionalmente, tem que enfrentar a
desconfiança da sociedade e de seus pares. Ademais, entendemos também que a “aceitação”
por não-indígenas nessas entidades e organizações seja uma estratégia de manter a luta por
direitos. O não-indígena é considerado legitimador que “sistematiza” a conquista de direitos
considerados emergenciais, então, ao utilizar o indigenista como o “porta-voz”, os povos
indígenas estão elaborando um ato paradoxal de insurgência e acentuando a contradição do
próprio sistema de dominação.
As teses dos intelectuais indígenas brasileiros que foram analisadas nesta dissertação
enfatizam, em linhas gerais, como principais desafios a serem superados para a construção de
uma Educação Escolar Indígena, que seja desejável para os povos indígenas: a) a falta de
119

autonomia dada aos povos indígenas para gerenciar seus projetos e as instituições que lhes dão
apoio; b) a carência na elaboração de materiais didáticos e na formação inicial ou continuada;
c) o incipiente recurso disponibilizado para a Educação Escolar Indígena; d) a ausência de
unidade e consenso entre os próprios indígenas sobre a educação escolar que desejam; e) a
homogeneidade com que são tratados assuntos pertinentes à educação escolar indígena; f) a
insistente desvalorização e falta de reconhecimento intelectual dos indígenas pela sociedade
nacional.
Dessa forma, quando os intelectuais indígenas abordam os principais entraves para a
não efetivação da escola indígena, é recorrente fazerem aproximações entre a educação escolar
e a educação indígena propriamente dita, a qual denominaremos de “Educação da Tradição”.
Sobre esta educação, há inúmeros relatos e concepções sobre o que ela seria de fato, o que nos
leva a considerar importante abordá-la na subseção a seguir.

5.3.5 Fenômenos e concepções de Educação da Tradição Indígena

Nesta subseção utilizamos o termo “Educação da Tradição” com o intuito de diferenciá-


la da educação escolar indígena, no entanto, reconhecemos que outros termos como “Educação
Indígena” ou “Educação não-escolar” também caberiam aqui. Consideramos esse termo mais
apropriado por abordar um conjunto de conhecimentos que são adquiridos no cotidiano
indígena.
Entretanto, destacamos que no corpo deste texto essas nomenclaturas serão usadas
irrestritamente com sentidos próximos, ora porque nas teses dos intelectuais indígenas esses
termos convergem para o tipo de educação do dia a dia a que estamos fazendo referência, ora
porque os textos analisados também apresentam sua própria alternativa terminológica para o
fenômeno da educação que se realiza no cotidiano.
Nas teses analisadas, identificamos que os intelectuais, ao dialogarem sobre a
importância da educação escolar indígena, fazem referência as suas próprias concepções de
educação da tradição, estabelecendo, sempre que possível, comparações entre elas.
Constatamos que a maioria dos intelectuais indígenas brasileiros analisados aqui apresentam
alguma concepção sobre educação da tradição, além de caracterizá-la no cotidiano dos povos
mencionados nos trabalhos.
Simone Cruz ao abordar a educação indígena terena a distingue da escolarização. Para
Cruz (2009) uma das características significativas da experiência educativa indígena está na
interação entre a pessoa que aprende e a que ensina (MUÑOZ, 2003 apud CRUZ, 2009). Para
120

a autora é “importante ter presente que esta educação indígena é a própria cultura com suas
práticas, no especial processo de socialização” (CRUZ, 2009, p. 75). Cruz (2009) dá ênfase ao
fato de ser a educação indígena um processo que atravessa “instâncias interdependentes
partindo das práticas nas relações familiares, escolares e da sociedade indígena como um todo”
(CRUZ, 2009, p. 76).
No que tange à educação da tradição, Claudino (2013) disserta que as diferentes formas
de ensinar e aprender é que podem ser consideradas como “um saber a partir da tradição”. Esse
tipo de educação permite que os grupos tradicionais indígenas desenvolvam no âmbito familiar
saberes que são impossíveis de se encontrar em salas de aulas.
Durante a análise, também constatamos que, com exceção da tese de Gersem Baniwa,
os demais intelectuais apontam expressamente uma concepção sobre o que seria essa educação
(da tradição) indígena.
Na tese de Naine Terena, “a educação indígena é aquela recebida pela criança no seio
da comunidade e da família. É onde ela aprende e compreende o contexto onde vive e participa
das ações comunitárias” (2014, p.37). Ela também descreve de maneira simples a concepção de
educação familiar que é dada às crianças e aos jovens indígenas; uma educação que considera
a percepção dos espaços e das interações com os elementos que nele estão. Por isso, a linguagem
corporal também faz parte dessa educação dos sentidos.
Outra concepção sobre educação indígena é apresentada por Edson Kayapó, ao afirmar
que a “educação propriamente indígena ocorre nas relações cotidianas, em que os mais jovens
aprendem num processo participativo da comunidade, sendo que os mais velhos são espelhos e
guardiões dos saberes ancestrais que orientam as ações presentes e futuras” (BRITO, 2012, p.
22). Para Edson Kayapó, a educação indígena Karipuna é participativa, comunitária e solidária,
em que os mais jovens aprendem com os mais velhos. Sendo estes últimos os “orientadores”
das ações do presente e do passado.
É por isso que para Meliá (1979, p. 11, apud CRUZ, 2009, p. 85), ao abordar a educação
indígena, considera que esse tipo de educação possibilita o ensino e a aprendizagem da cultura
durante toda a vida, em todos os aspectos e permite a espontaneidade e liberdade. Esse tipo de
educação é possível graças a uma memória coletiva que, de acordo com Daniel Munduruku
(2012, p. 47), “é passada de geração a geração através dos fragmentos que a compõem e que
são “colados” por uma concepção de educação que passa, necessariamente, pelo aprendizado
social”. Para este intelectual Munduruku:
121

Parte do conhecimento desenvolvido pelos indígenas ao longo de sua trajetória


histórica tem a ver com a transmissão através das narrativas orais. Assim, cada
indivíduo vai formando em si uma memória num processo que conhecemos
como educação. [Por isso] A educação indígena é muito concreta, mas, ao
mesmo tempo, mágica. Ela se realiza em distintos espaços sociais que nos
lembram sempre que não pode haver distinção entre o concreto dos afazeres e
o aprendizado e a mágica da própria existência que se “concretiza” pelos
sonhos e pela busca da harmonia cotidiana. (MUNDURUKU, 2012, p. 67)

Segundo Daniel Munduruku (2012), os indígenas possuem seus próprios processo de


educação. A concepção de educação do povo está fundamentada em práticas de transmissão
oral de saberes que resgatam sua memória. Para tanto, a educação dos povos indígenas é integral
e não está fragmentada, por isso, sem dificuldade, articula-se com a vida e se aplica a todos os
espaços em que se manifesta.
A educação da tradição é experimentada por todos os membros indígenas, independente
da idade que possua, mas é na criança indígena que se vê mais explicitamente sua
materialização. No que tange à educação da tradição pela criança, Codonho (2007, apud
TASSINARI, 2007), ao elaborar suas análises sobre as crianças Galibi-Marworno, pontua que
é no contexto das atividades cotidianas que as crianças aprendem umas com outras crianças os
ensinamentos de seus grupos. A este tipo de aprendizagem a autora denomina “transmissão
horizontal de saberes”.
Daniel Munduruku (2012, p. 67) declara, em seu texto de tese, que é dada pelos
indígenas de sua etnia ênfase no cotidiano e que esta urgência no cotidiano implica em uma
“filosofia” que “se baseia na ideia do presente como uma dádiva que recebemos de nossos
ancestrais e na certeza de que somo ‘seres de passagem’, portanto desejosos de viver o momento
como ele se nos apresenta”. Isso porque o futuro é apenas uma possibilidade, mas, o presente é
uma certeza e que deve ser aproveitada.
A educação delineada no texto do intelectual Munduruku de uma educação plena, pois
é uma educação que acontece em todos os espaços e de diversas formas, logo, permite ao
educando experimentações variadas e desvinculadas de itinerários fixos e fragmentados. Esse
modo de educar-se possibilita o bem-estar do corpo e da mente, resumido da seguinte forme:

[...] o corpo é o lugar onde reverberam os saberes da mente (intelectual) e os


saberes do espirito (emocional). Educar é, portanto, preparar para o corpo
sentir, aprender e sonhar. Pode ser também para sonhar aprender e sentir. Ou
ainda, aprender, sentir e sonhar. Não importa. É um mesmo movimento. É o
122

movimento da Circularidade, do Encontro, do Sentido. (MUNDURUKU,


2012, p. 73)

Dessa maneira, a educação concebida na tese de Munduruku (2012) corresponde a um


ato cíclico que permite o alcance de uma plenitude e completude do sujeito, independente do
percurso adotado.
Apesar de Gersem Baniwa não apresentar expressamente uma concepção de educação
indígena, podemos inferir, de acordo com o discurso sobre educação escolar indígena, que esta
é viabilizada nas relações cotidianas, é complementar e serve como base para a ressignificação
das tradições em contato intercultural.
Conforme Perreli (2008), citando Ellen e Harris (1996), essa educação do dia-a-dia,
transmitida ao longo de muitas gerações, permite que os conhecimentos sejam “repetidos,
reforçados, modificados e, até mesmo, abandonados em decorrência das mudanças de
condições de sua produção e/ou aplicação e transmissão” (ELLEN, HARRIS, 1996 apud
PERRELI, 2008, p. 386).
Salientamos que as teses não assinalam somente concepções de educação (da tradição)
indígena, ela também aponta para fenômenos resultantes deste tipo de educação, tais como
modos de vida, práticas culturais específicas de cada povo e as implicações da educação de
cada povo.
No que concerne aos fenômenos da educação “do cotidiano” e a presença de recursos
tecnológicos, Naine Terena cita outras ferramentas ocidentais, ou melhor, aparelhos
eletrônicos, brinquedos industrializados e televisão, os quais têm, assim como a escola,
interferido diretamente no modo de vida do povo Terena, principalmente, entre os mais jovens.
Assim como a escola, a presença desses recursos/itens/objetos ocidentais interfere na educação
desse povo e possibilita a criação de novos arranjos culturais, tais como a supressão de
brincadeiras tradicionais coletivas ao ar-livre: “Com o envolvimento dos pais e da comunidade
com esses artefatos eletrônicos, essas crianças crescem então em meio a diversos elementos da
cultura tradicional e da cultura não-indígena” (JESUS, 2014, p. 48).
Já Edson Kayapó, quanto à educação do cotidiano, ressalta que:

[...] a coletividade e a solidariedade permanecem acima dos interesses


individuais ou de grupos dispersos. Um exemplo dessa afirmativa são as
atitudes dos professores da aldeia, que utilizam parte dos seus salários para a
promoção de ações coletivas, como a aquisição de embarcações para uso de
todos e contribuições voluntárias para a realização das festas comunitárias,
123

entre outras ações. Além disso, independente da atividade que indivíduo


exerça na aldeia, todos igualmente contribuem no trabalho braçal realizado
nos mutirões, seja na construção de casas, na limpeza dos espaços da aldeia
ou na preparação das roças familiares. (BRITO, 2012, p. 43)

Além do mais,

No processo de aprendizagem indígena, a criança aprende observando e


realizando o que observa e ouve. Por outro lado, a educação indígena é
demarcadora das fronteiras de pertencimento, e tais fronteiras não são
imaginárias, são reais, pois elas se expressam na forma de falar, na postura do
corpo e na forma de conceber/entender o mundo, a sua origem e a origem de
todas as coisas: das pessoas, dos animais, das plantas e de todas as espécies
vivas ou inanimadas. (BRITO, 2012, p. 46)

Portanto, a educação indígena permite, para Edson Kayapó, que o sujeito indígena
demarque seu lugar, seja pela forma de se expressar seja pela forma de se relacionar com o
mundo. Logo, é por meio dela que o sujeito indígena estabelece as fronteiras de seu
pertencimento étnico, que se materializa de diversas maneiras no comportamento desse sujeito.
Para Brito (2012, p. 48),

A educação indígena ocorre no sentido de ensinar a criança a ser parte da


coletividade, visando o pertencimento de povo específico, assim cada povo
indígena tem sua maneira de educar, sendo que muitos aspectos da educação
dos povos indígenas ocorrem de forma semelhante” e ela “não é uma função
exclusiva dos pais, mas sim da comunidade, e nesse sentido há sempre um
adulto por perto observando o grupo de crianças.

Além disso, há muitas outras passagens na tese de Edson Kayapó que enfatizam o
caráter colaborativo, solidário, fraterno, compartilhado da educação que se dá entre os
indígenas.
Em Daniel Munduruku, por sua vez, a educação é vista como um processo integral e
cíclico que advém de uma educação dos sentidos, sendo assim ele diz que:

Aprendemos, desde muito pequenos, que nosso corpo é sagrado. Por isso,
temos a obrigação de tratá-lo com carinho, para que ele cuide de nossas
necessidades básicas. Aprendemos que nosso corpo tem ausências que
precisam ser preenchidas com nossos sentidos. Aprender é, portanto, conhecer
as coisas que podem preencher os vazios que moram em nosso corpo. É fazer
uso dos sentidos, de todos eles. É, portanto, necessário valorizar o próprio
corpo e dar a ele condições para que possa cuidar da gente. (MUNDURUKU,
2012, p. 69)
124

Segundo Munduruku (2012), educa-se por meio do corpo, tendo clareza que os sentidos
preencherão as “ausências” da matéria (corpo), no entanto, deve-se “dar condições” para que
isso ocorra.

Se educar o corpo é fundamental para dar importância ao seu estar no mundo,


a educação da mente é indispensável para dar sentido a este estar no mundo.
Se no corpo o sentido ganha vida, é na educação da mente que o corpo o
elabora. [...] o discurso indígena se apossa de elementos aparentemente
distantes entre si, mas perfeitamente compreensíveis no contexto em que se
encontram. É a lógica da ressignificação dos símbolos que permite às gentes
indígenas passearem pelo passado utilizando instrumentos do presente, e vice-
versa também, é o momento em que a memória se atualiza e absorve
elementos novos, fazendo com que a cultura se autorressignifique e dê
respostas às novas demandas. (MUNDURUKU, 2012, p. 70, 71)

Neste excerto, o intelectual Munduruku faz uma breve dissociação entre educar o corpo
e educar a mente, contudo, as coloca em condição de complementaridade. Esses tipos de
educação possibilitam aos sujeitos indígenas certa “plenitude” sobre sua própria existência, que
neste processo ganha novos sentidos e significações.
Semelhante aos demais intelectuais, Gersem Baniwa, ao descrever os fenômenos
inerentes à educação indígena, apresenta o caráter coletivo, comunitário e colaborativo: “entre
os povos indígenas, as pessoas são muito valorizadas, na medida em que cada uma tem sua
função e sua posição social. Isso não significa que são sociedades do individualismo; pelo
contrário, as pessoas só se individualizam em função da coletividade” (LUCIANO, 2012, p.
221).
Ainda conforme Baniwa, “outra característica própria dos processos educativos
indígenas é a visão holística e orgânica que orientam tais processos. Ao contrário da pedagogia
escolar, a educação indígena não separa a teoria da prática. São duas maneiras inseparáveis de
encarar a realidade” (LUCIANO, 2011, p, 225).
Os textos se interseccionam quando debatem fenômenos e concepções de educação da
tradição indígena. Obviamente, é perceptível aproximações e distanciamentos entre os
discursos analisados, no entanto, isso não denota maior ou menor precisão sobre os temas
É evidente também que as teses apresentam particularidades discursivas inerentes à
natureza, objeto, teoria utilizada para debater os fenômenos que se propõem, em virtude disso,
125

a seguir, buscamos demonstrar de maneira breve as características mais relevantes e únicas em


cada produção acadêmica.

5.3.6 Povos Indígenas e outras questões: as peculiaridades das teses

A diversidade de objetos, métodos, concepções teóricas e modelos de análises nas teses


aqui analisadas apresentam um caráter diferenciador. Portanto, essa subseção não pretende
fazer um debate amplo ou extenso sobre as demais questões abordadas nas teses, mas se dedica
a apresentar os aspectos mais relevantes em cada tese que, como já mencionado inúmeras vezes,
são particulares.
Se há algo que diferencia a tese de Naine Terena das demais é sua ênfase na utilização
do audiovisual pelos indígenas, seja nas atividades cotidianas seja dentro da escola. A tese desta
intelectual insiste em debater como a apropriação dos eletrônicos pela comunidade não foi
acompanhada de sua utilização na escola. Para a autora, o audiovisual permite a transmissão de
valores e da cultura Terena, daí que saber utilizá-lo serve tanto para aprimorar o ensino escolar
como para elaborar formas de manutenção das tradições e pertencimento indígena.
Esta intelectual Terena declara que para a consolidação do uso do audiovisual tanto na
escola Lutuma Dias como na comunidade Terena demanda maior qualificação dos docentes e
conscientização da comunidade para que possam utilizar essas ferramentas à serviço de seu
povo.
Na tese de Edson Kayapó, é dado destaque aos modelos de educação da tradição e
educação escolar indígena Karipuna, contudo, ao debater as questões educacionais, o autor faz
inúmeras referências ao modo particular da vida indígena, enfatizando a atuação e organização
política desse povo.
Além disso, Edson Kayapó denuncia a ação de entidades governamentais, mais
explicitamente as determinadas pela Secretaria Estadual de Educação do Estado do Amapá e
da Universidade Federal desse estado, que não parecem dar a importância necessária às
reivindicações e anseios das comunidades indígenas do Amapá. Percebemos ainda que, na tese
desse intelectual, há um grande destaque à história da educação escolar indígena da região.
Daniel Munduruku, embora trate de temas sobre educação, sua produção acadêmica
dedica-se a apresentar o caráter educativo do Movimento Indígena. Em inúmeras afirmações, o
autor destaca como o movimento indígena foi uma etapa importante para a afirmação étnica e
a elaboração de uma identidade pan-indígena.
126

Assim, para dissertar sobre o Movimento Indígena, inevitavelmente, Daniel Munduruku


debate temáticas como política indígena, elaboração de uma agenda de reivindicações, ações
estratégicas indígenas, educação dos sentidos e protagonismo indígena.
Concomitante a isso, para situar o leitor, Munduruku detalha a história da constituição
e emergência do Movimento Indígena, assim como, a atuação dos primeiros líderes indígenas.
Um aspecto interessante da obra de Daniel Munduruku se refere a sua escrita, na qual demonstra
um diálogo de proximidade e irmandade com o leitor ao chama-lo de “parente”.
Já a tese de Gersem Baniwa, devido à extensão de sua obra, ao dialogar sobre as
contribuições da escolarização e da educação da tradição para a vida indígena, apresenta muitos
debates paralelos. Dessa maneira, engloba temas que foram tratados pelos demais intelectuais,
mesmo que esse não seja o objetivo principal, ele debate temas como a utilização de novas
ferramentas na luta indígena, formas de atuação política, acesso à escolarização superior e a
existência de uma produção acadêmica indígena.
Apesar de tratar de uma gama de assuntos, Gersem Baniwa enfatiza a escola como
maneira dos indígenas “manejarem” o seu mundo e o dos não-indígenas. Diante disso, é comum
constatar-se a presença da “interculturalidade” em sua tese, a qual, é outro aspecto relevante e
debatido.
As características próprias das teses permitem afirmar que os intelectuais indígenas,
embora apresentem um debate correlato e convergente sobre educação escolar e educação da
tradição indígena, têm colaborado para a elaboração de alternativas para se pensar, sob prismas
diferentes, o fenômeno educacional entre as populações indígenas do país.
É claro que teses como as dos intelectuais indígenas que analisamos nos permitem
pensar questões que ainda hoje são presentes na luta das populações autóctones. Os indígenas,
por exemplo, ainda precisam lutar contra ações do (des)governo em que estamos que, embora
demonstre despreparo para o gerenciamento do pais, tem estratégias bem definidas para a
dissolução dos povos indígenas e de seu movimento.
Em 2019, por exemplo, em apenas quatro meses de “Governo Bolsonaro”, percebeu-se
muitas ações e discursos claros para diluir e aniquilar os povos originários. Entre os discursos
e ações adotadas pelo governo podemos mencionar a) o esvaziamento das atribuições e
competências da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), colocando em risco a demarcação de
127

novas terras indígenas e a conservação do meio ambiente; dando aos ruralistas37 o direito ao
reconhecimento e demarcação dessas novas terras; b) permissão ao armamento38 que incide
também sobre o aumento de mortes no campo, principalmente, de povos indígenas; c) cessão
de processos de demarcação em andamento e reavaliação de terras indígenas já demarcadas
além de reabertura delas para a exploração mineral e do agronegócio.
A atuação do Governo, nitidamente contrária aos interesses dos povos originários, Sonia
Guajajara afirma que "Bolsonaro quer entregar a terra ao agronegócio, à mineração e à
especulação imobiliária. A gente teme ter que pagar com a própria vida, mas não vamos recuar”
(DULCE, 2019, online). Segundo Watson (2019) a presidência de Jair Bolsonaro demonstrou
ser uma administração racista, que lançou abertamente um ataque sem precedentes contra os
povos indígenas do Brasil, com o objetivo explícito de aniquilar os povos ao tentar integrá-los
assimilá-los pela força e ao saquear suas terras.
Não se pode negar a importância política e prática da luta dos povos originários para a
sua própria sobrevivência. No entanto, para o fortalecimento dessa luta, os indígenas têm
construído um pensamento que permita articular a defesa de seus ideais à expressão e
manifestação de seus saberes e epistemologias a fim de construir debates dentro de uma lógica
canonizada para demonstrar sua intelligentsia.
As teses dos intelectuais indígenas buscam, por sua vez, propor debates que contribuam
para com uma visão menos subalternizante dos saberes que os povos originários possuem. Por
isso, os debates circunscritos nas teses sobre educação dos intelectuais indígenas tentam, além
de apresentar as concepções dos indígenas sobre os fenômenos educativos, discutir questões
especificas que promovam também uma discussão sobre territorialidade, políticas públicas
voltadas aos povos indígenas, mecânicos de sobrevivência étnica, sem, no entanto, deixar de
expor as fragilidades, mazelas e contradições desses temas e fenômenos à realidade das
populações autóctones do pais.

37
“Em edição extra do Diário Oficial da União, Bolsonaro delega a tarefa de demarcar novas terras indígenas ao
Ministério da Agricultura, chefiado por Tereza Cristina (DEM), até então líder da bancada do agronegócio na
Câmara e conhecida como ‘musa do veneno’". (DULCE, 2019, online)
38
Essa ação causa controvérsia pois, segundo Dulce (2017), muitos indígenas alegam que isso vai intensificar e
dar “carta branca” para matar e agrava ainda mais as lutas contra latifundiários e povos originários.
128

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Temos a segurança de que o tema debatido nesta dissertação é de suma importância para
as discussões sobre as populações indígenas. Sem dúvida, o ingresso de indígenas na
universidade, especialmente nos programas de pós-graduação, indica um avanço dos povos
indígenas em defesa de sua cultura, de suas tradições. Ao produzir conhecimentos sobre si, os
indígenas expõem, ainda que pautados em uma lógica acadêmica comum, uma certa
singularidade de compreensão do mundo que só contribui na afirmação da diferença. No caso
particular de um país como o Brasil, tal diferença precisa ser reafirmada para que políticas
públicas não reforcem ainda mais a extinção das tradições desses povos. O reconhecimento da
diferença é um passo importante para a garantia de direitos.
Desse modo, ainda que consideremos importante e necessário estudos como este, sobre
intelectuais indígenas e sua produção, não podemos deixar de reconhecer a grande dificuldade
e o desafio que é estudar esta temática. No nosso caso, em particular, foi difícil localizar e obter
as teses para análise. Como puderam constatar, entre as teses escolhidas há uma que foi
analisada a partir da sua publicação na forma de livro.
No que tange à elaboração de um pensamento intelectual indígena, as bibliografias que
utilizamos apontam que, para a conquista do reconhecimento intelectual, muitos indígenas
tiveram que se submeter aos processos de escolarização. Isso ocorreu porque as populações
indígenas não desejam uma relação de dependência com o “homem branco”. Este mesmo
sentimento de insatisfação quanto à relação entre indígenas e não-indígenas sedimentou nos
primeiros o desejo de autogerenciar os rumos de suas vidas em diversas esferas.
Dessa forma, as populações indígenas desejando superar a relação tutelar reivindicam
autonomia para a realização de seu autogoverno. Muitos povos indígenas acreditam que essa
autonomia seria conquistada se estes sujeitos dominassem tanto o mundo dos brancos como o
seu próprio. Para tanto, o acesso à educação parece ser o caminho mais coerente e próximo que
as populações indígenas encontraram para ajudar nesta aproximação.
Sendo assim, a escola ou a universidade, quando apropriada pelos sujeitos indígenas,
transfigura-se como uma ferramenta de luta. Aliás, o acesso às instituições escolares viabiliza
o domínio dos códigos não-indígenas tão necessários na “batalha epistêmica”, assim como,
possibilita a legitimação intelectual dos discursos indígenas em defesa de seus pares e
territórios.
129

O acesso à escolarização também resultou no surgimento de um novo grupo de


indígenas escolarizados, ao qual definimos neste texto como “intelectuais indígenas”.
Compreendemos que a emergência desse intelectual não é uma particularidade somente do
Brasil.
As produções sobre intelectualidade indígena brasileira são poucas, todavia,
percebemos que, a despeito do processo de intelectualidade indígena brasileira não seja pauta
nos meios acadêmicos, essa intelectualidade começa a suscitar interesse por parte de
pesquisadores, como consta na progressiva publicação sobre o tema. Porém, isto não significa
dizer que todas as publicações feitas no Brasil sobre “intelectualidade indígena” retratam o
surgimento desse intelectual nesse país.
As produções utilizadas para o debate sobre a intelectualidade indígena apontam para a
emergência desse intelectual como resposta ao Estado e às ações coloniais. Pudemos abstrair,
segundo estes mesmos textos, que o processo de intelectualidade indígena se deu de forma
similar em muitos países da América Latina, embora, na atualidade, esse processo tenha
ganhado novas reconfigurações nos contextos em que se dá, assim como no Brasil.
De forma geral, no que tange à emergência do intelectual indígena, a instabilidade
causada aos impérios coloniais resultante do processo de globalização incidiu na eclosão de
novas vozes, entre elas, as indígenas, que passaram a reivindicar a participação em espaços que
outrora não circulavam.
Os autores dos textos sobre intelectualidade indígena que revisamos defendem certas
tipologias de intelectuais e intelectualidade. Essas tipologias, por sua vez, podem utilizar ou
não da identidade indígena/étnica como principal legitimador dos discursos e das ações em prol
de um povo indígena. Além disso, o intelectual indígena não necessariamente precisa ser
oriundo de processos escolares para assumir tal posição. Por conseguinte, admite-se que nas
leituras sobre a intelectualidade indígena estas declaram que o processo de intelectualidade
pode ser conquistado dentro de um “movimento indígena”. Sendo assim, afirmam ainda que a
escola/universidade pode formar profissionais e estudantes indígenas, mas, nem sempre um
intelectual, pois o processo de intelectualidade ocorre de outra maneira.
Quando apontamos nossas aproximações com o conceito de intelectualidade/intelectual
indígena, definimos que este conceito estaria atrelado a formação escolar pela qual os indígenas
passaram. Apesar de concordarmos com a ideia de que a intelectualidade indígena não é
somente resultado da escolarização, a consideramos em profundidade por acreditarmos que ela
130

define uma nova categoria em emergência que debate de forma crítica, a partir dos seus lugares
étnicos/indígenas, os processos coloniais que são/foram enfrentados pelos povos indígenas.
Esse grupo de indígenas escolarizados, além de reivindicar o reconhecimento de sua
identidade indígena, dos seus territórios, da sua cultura, defendem também a aceitação da
legitimidade de sua capacidade epistemológica, dos seus saberes e de sua cosmologia. Então,
ao definir-se a intelectualidade indígena como sendo adquirida por meio de um processo de
escolarização atrelado à consciência de grupo e das mazelas por ele enfrentadas, percebemos
que a ela estão ainda imbrincadas questões identitárias. Com isso, estamos apontando que a
intelectualidade ocorre por meio de um processo de complementariedade, no qual estão
entrelaçadas modernidade e tradição.
Estabelecido o conceito de intelectualidade, chegamos à definição dos intelectuais
indígenas que teriam suas teses analisadas. A partir da definição de intelectualidade,
consideramos então como intelectuais indígenas aqueles que passaram por processo de
escolarização, chegando ao maior nível de formação acadêmica – o doutorado – e que possuem
importantes debates e produções escriturais em prol de seu povo ou dos povos indígenas de um
modo geral.
Os intelectuais indígenas analisados nesta dissertação apresentam uma titulação de
formação acadêmica comum, pois, todos são doutores, possuem também uma extensa produção
em defesa dos povos indígenas, reivindicam sua identidade indígena em seus escritos e se
mostram insatisfeitos com as ações não-indígenas entre seus povos.
Na trajetória de vida dos intelectuais indígenas, pudemos identificar que todos
reivindicam e defendem suas origens étnicas. Por isso, consideramos que esses intelectuais
expressam essa identidade indígena nos seus escritos acadêmico e literário. Afinal, para a
afirmação do lugar de fala é comum que esses sujeitos evoquem essa identidade, de modo que
alcançam maior legitimidade discursiva.
Assim, reconhecemos, pautados em Rodrigues et al. (2013), que a emergência da
identidade indígena ou étnica tem razões políticas e de luta contra as subalternizações infligidas
aos grupos indígenas. Constatamos também que essa emergência foi possível graças à
organização e surgimento de populações tradicionais em defesa dos seus territórios, recursos
materiais diversos e de igualdade nas relações.
No que tange às teses analisadas, constatamos similaridades quanto à estrutura e ao
conteúdo, mesmo reconhecendo que os elementos teóricos e metodológicos divergem. As
131

produções acadêmicas apresentam aproximações temáticas que permitiram a identificação da


perspectiva indígena sobre elas.
Quanto à estrutura das teses, não há disparidades entre elas, mas, apontamos que seguem
o mesmo padrão de qualquer outra tese. Isso, para nós, restringe a apresentação e debates de
conhecimentos indígenas que ficam condicionados a uma exposição ocidental. No entanto,
entendemos que, como posto anteriormente, a universidade não está preparada para receber
estes sujeitos que têm formas alternativas de ensinar e aprender e, por isso, não conseguem
conceber outra maneira de construção e manifestação intelectual.
Outro ponto importante a destacar é que todas as produções (teses) tentam explicar a
perspectiva indígena para um sujeito não-indígena. Isso já havia sido sinalizado por Paladino
(2017), quando também desenvolveu análises de produções acadêmicas de pós-graduação. Os
motivos para essa opção discursiva seria uma tentativa de desmistificar e desestigmatizar os
saberes acerca da população indígena e o pensamento elaborado pelo intelectual indígena.
Assim, não raro, se valem de argumentos para justificar e defender as epistemologias,
as práticas culturais, os anseios e o impacto de determinada ação das populações indígenas ou
a elas aplicados. Essa opção discursiva se coloca como oportunidade para apresentar esses
povos e tentar desconstruir estereótipos sobre suas identidades.
Nessas teses, as identidades indígenas são valorizadas e colocadas como parte de uma
cultura que tem seu modo próprio e alternativo de conceber o mundo e que, em virtude disso,
refletem essa perspectiva em sua forma de interpretá-lo nos espaços que circulam.
É comum, nos textos analisados, o caráter de defesa da memória ancestral da população
da qual são originários ou do grupo a que pertencem. Dessa maneira, o discurso invariavelmente
traduz a perspectiva do povo indígena a que se faz referência ou, de maneira mais ampla e
genérica, ao sujeito indígena. Essa ação permite publicizar a cultura dessas populações e
sujeitos ou ainda irradiar para os não-indígenas a memória ancestral cultural ou/e individual
desses intelectuais indígenas.
Na produção acadêmica autoral, há traços comuns não só no plano estrutural, mas
também discursivo. Apresentam estruturalmente muitas similaridades, pois atendem a um
padrão de produção do conhecimento. De igual modo, o discurso mostra-se homogêneo, pois,
deseja-se explicar a perspectiva do indígena para não-indígenas. Entretanto, mesmo sendo um
ponto em comum, é interessante o discurso de valorização e insurgência que se apresentam
nessas teses.
132

As teses analisadas aqui respondem também à pergunta que dá nome a este trabalho: “O
que você veio fazer na escola?”, que é um questionamento correntemente feito aos intelectuais
que recebe de cada intelectual uma motivação própria e comum. Sendo assim, as teses
respondem a esta questão e apresentam as repercussões do acesso à educação escolar.
Obviamente, ao tentar responder a esse questionamento, os intelectuais em suas teses
elaboram discursos que evocam, como mencionado anteriormente, a identidade indígena a
partir de sua própria experiência humana, mas também, expressa o pensamento dos indígenas
sobre a educação escolar indígena e a educação da tradição indígena, bem como os fenômenos
inerentes a elas. Assim, mesmo apresentando convergências conceituais, estes trabalhos
acadêmicos têm particularidades condicionadas a sua natureza.
Quanto à identidade indígena, as teses expressam de modo semelhante que ser indígena
incorreu em discriminação, subalternização e questionamento de sua capacidade intelectual e
epistemológica. Essa forma de racismo teve sua maior ocorrência nos espaços educacionais em
que frequentavam os intelectuais. Porém, o racismo que foi impetrado aos indígenas serviu
como ferramenta de fortalecimento da identidade indígena, que, por sua vez, foi assumida e
utilizada como “carta de apresentação” ou legitimadora do discurso e lugar de fala.
No que se refere ao pensamento indígena em Educação Escolar Indígena e suas
repercussões, para os intelectuais a educação escolar indígena tem seus paradoxos, visto que ao
mesmo tempo em que se apresenta como um elemento da colonização, é um lugar de elaboração
de estratégias de revide e de consolidação da cultura e dos conhecimentos indígenas.
As teses analisadas expressam que os intelectuais indígenas consideram a importância
da escolarização, já que por meio dela os povos e o sujeito indígena poderão conquistar novos
espaços, assumir novas posições, dialogar com não-indígenas, participar de decisões com
entidades estatais sobre questões em prol de suas populações.
Além disso, nas teses dos intelectuais indígenas, identificamos que estes dão destaque a
formação escolar como elemento de ascensão social, pois formar-se requer a manipulação de
dois mundos distintos e próximos: mundo indígena e não-indígena. Sendo assim, encontram-se
nas teses relatos que indicam que estudar propiciará um “melhor viver” ou “bem viver” tanto
para o sujeito indígena quanto para a comunidade em que este se insere.
É importante ressaltar também que a formação escolar permite aos indígenas maior
conscientização de salvaguardar suas tradições, culturas, e conhecimentos ante ao contato
intercultural, já que proporciona a criação de estratégias para a ressignificação e entrelaçamento
entre a cultura da tradição indígena e o moderno.
133

Dessa maneira, nos estudos são encontrados depoimentos que reforçam a ideia do quão
desejada é a educação escolar entre os indígenas, inclusive, em algumas comunidades há um
crescente incentivo familiar e grupal para que os mais jovens frequentem escolas e
universidades. Afinal, sonhar com a educação escolar tornou-se possível quando os primeiros
líderes e intelectuais indígenas, oriundos dessas instituições, serviram como exemplo nacional
para o orgulho étnico.
São também uníssonos ao defenderem que a educação escolar indígena colabora para a
compreensão de seu ambiente, por essa razão, atribuem, junto com a educação da tradição, um
caráter de complementariedade. Demonstram também que a educação escolar indígena
almejada pelos povos indígenas é aquela em que haja o entrelaçamento entre os conhecimentos
não-indígenas com os indígenas, e que tenha qualidade para que possam ser efetivamente
capazes de colaborar com seus grupos étnicos.
Outro aspecto identificado nas teses diz respeito à existência de muitas dificuldades e
limitações para que a educação escolar indígena aconteça de modo a satisfazer os interesses das
populações indígenas. As teses declaram que a falta de autonomia no gerenciamento dessa
educação é um limitador por inviabilizar a apropriação da escola para a elaboração de um
projeto pedagógico específico e que seja compatível com as demandas apresentadas pelo povo
indígena.
Uma segunda dificuldade da Educação Escolar Indígena é a carência de recursos
aplicados na escola indígena, que, diante da precariedade material e estrutural, inviabiliza a
realização do trabalho docente. Soma-se a isso a precariedade de formação inicial e continuada
que impede aos indígenas desenvolverem métodos e técnicas próprias, assim como um modelo
educacional específico. Isto resulta na falta de materiais didáticos apropriados para lecionar
sobre a cultura, história e língua dos povos indígenas.
As teses dos intelectuais indígenas brasileiros, além de demonstrarem como os aspectos
externos às populações indígenas limitam a construção de uma educação escolar indígena
desejada e de qualidade, afirma que é a falta de consenso entre esses povos que dificulta a
elaboração de uma agenda de debate em torno da educação escolar oferecida aos indígenas.
Portanto, é notório que cada população espera algo da escola. Enquanto algumas populações
acreditam que a escola é um espaço de afirmação étnica e de valorização dos conhecimentos
indígenas, outras defendem que ela deve se dedicar a ensinar os conteúdos modernos/ocidentais
que permitirão o diálogo com o mundo não-indígena e que contribuirá para competir fora da
aldeia.
134

Nas teses reside essa falta de consenso entre os povos indígenas e o seguinte
questionamento: Qual seria então o modelo de educação escolar indígena mais adequado e
possível de implantar? De um lado, “os índios não querem aprender na escola coisas de índio”,
pois, defendem que isso não colabora com a uma suposta igualdade com os não-indígenas, de
outro, acreditam que a educação escolar indígena pode contribuir para com a revitalização,
manutenção, ressignificação de suas culturas e identidades. Um modelo de educação escolar
indígena desejável seria então, na perspectiva dos intelectuais, aquele que pudesse de forma
equilibrada abordar ambos conhecimentos: indígenas e não indígenas.
A educação escolar indígena enfrenta também dificuldades relativas à homogeneidade
com que são abordados e discutidos assuntos referentes aos povos indígenas, principalmente
aqueles que são pertinentes à educação escolar desses povos. Assim, as teses apontam também
como um desafio a ser superado a desvalorização e falta de reconhecimento que os intelectuais
indígenas enfrentam, pois, embora possam possuir formação em diversos níveis, ainda tem que
lidar com a desconfiança tanto do seu povo quanto com a dos não-indígenas.
Nesses termos, podemos afirmar que mesmo quando o indígena tem formação de nível
elevado, ele é visto como um sujeito de lealdade “partida”, pois, para seu povo indígena, ele
representa aquele que assimilou parte da educação e dos conceitos do colonizador e, por isso,
pode reproduzir um comportamento contra os indígenas, bem como entre os não-indígenas
representa um sujeito que tem sua capacidade intelectual e profissional questionada por ter
recebido uma educação “fraca”.
Como apontado em linhas anteriores, muitas são as dificuldades enfrentadas pelos
indígenas para conquistarem uma escolarização que lhes seja coerente e específica. Nas teses,
são traçados alguns pontos que limitam a educação escolar, no entanto, quando se trata apenas
de abordar temas de educação escolar indígena, nossos intelectuais sempre que podem fazem
referência aos processos de educação próprio ou, como definimos, tradicionais.
Quanto à educação da tradição indígena, nossos intelectuais elaboram suas concepções
e apresentam fenômenos a ela correspondente. Os relatos coletados nas teses indicam, assim,
que de forma ampla, considera-se educação da tradição aquela recebida nas práticas cotidianas,
que tem como base a tradição, que independe da escola para acontecer e, por isso, ocorre em
todos os espaços, o que, consequentemente, a torna uma educação holística e integralizante,
assim como considera e respeita o meio (mãe natureza).
135

Embora tenhamos dissertado sobre os principais aspectos convergentes entre as teses


analisadas, as produções de nossos intelectuais indígenas têm particularidades que enriquecem
o debate e suscitam novas compreensões de diversos fenômenos delineados por eles.
Conforme o que expusemos aqui, entendemos que esta dissertação é uma das primeiras
a analisar este tema relacionado à própria perspectiva do indígena enquanto intelectual. Além
disso, como não há produções acadêmicas, no formato deste texto, que estudam o processo de
intelectualidade indígena atrelado à manifestação dessa intelectualidade aos escritos
acadêmicos, em nosso caso teses, nem estudos que destaquem o pensamento intelectual do
indígena em Educação, consideramos esta dissertação original.
Sendo assim, mesmo não tendo essa pretensão, este estudo pode estar inaugurando no
Brasil um debate dentro da área dos estudos indígenas ao defender a existência da
intelectualidade indígena e apresentar possíveis classificações dessa intelectualidade. Essa
afirmativa consiste na intensa dificuldade que tivemos em localizar referenciais que nos
permitissem conjecturar ou refletir sobre a intelectualidade indígena brasileira.
Reconhecemos, porém, que há em muitos estudos de formatos diversos menção à
intelectualidade indígena, estes, no entanto, apresentam concepções restritas e/ou confusas
sobre o processo de intelectualidade dos povos indígenas.
Além disso, há também um número reduzido de trabalhos que estudem ou façam
análises sobre as produções dos intelectuais indígenas que tiveram acesso à educação superior.
Menos ainda, dissertações que tentam a partir de uma temática comum examinar aspectos
convergentes e divergentes nas produções dos intelectuais indígenas com formação em nível de
doutorado.
Então, consideramos que esta dissertação pode colaborar com outras pesquisas sobre
temas como intelectualidade indígena, produção acadêmica dos intelectuais indígenas,
pensamento indígena, além de acreditarmos que estudos como este são importantíssimos para
as populações indígenas, pois, permite refletir sobre as demandas que estes apresentam por
educação e como tem se dado, na visão de seus protagonistas, as repercussões dela à vida das
populações indígenas.
Por fim, esperamos que o debate suscitado nesta dissertação permita a compreensão da
perspectiva indígena sobre Educação Escolar Indígena e seus fenômenos educacionais,
contribuindo também para com estudos que tentem discutir o fenômeno da intelectualidade
indígena no Brasil, pois, como já tratado, existe uma limitada produção escritural sobre esse
tema. Adicionado a isto, entendemos que estudos da natureza desta dissertação aplicados a
136

outras áreas podem servir para a divulgação da memória, cultura, e da intelectualidade das
populações indígenas do país.
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