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XI Congresso Brasileiro de Sociologia


1 a 5 de Setembro de 2003, Unicamp – Campinas/SP

GT-10 – Movimentos sociais rurais em suas múltiplas dimensões

Os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural –


entre o capital social e o bloqueio institucional

Arilson Favareto
Sociólogo, Mestre em Sociologia (Unicamp) e
Doutorando em Ciência Ambiental (USP)
e-mail: arilson@uol.com.br

Diogo Demarco
Eng. Agrônomo, Mestre e Doutorando
em Educação (USP)
e-mail: djdemarco@ig.com.br
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RESUMO

Um dos traços mais marcantes na institucionalidade recente das políticas públicas para o
espaço rural brasileiro é a proliferação de um expressivo número de Conselhos Municipais de
Desenvolvimento Rural. Vários estudos têm analisado esse tipo de experiência de gestão
social tendo por base realidades específicas de determinados municípios ou estados. O
presente estudo visa contribuir para suprir uma lacuna ainda existente, a saber, a carência de
pesquisas que tenham por base um universo maior e mais diversificado de casos e que
possam, assim, captar melhor tanto regularidades como eventuais nuanças derivadas de
diferenças regionais. O artigo se apoia em uma pesquisa coletiva realizada ao longo de 2002,
abrangendo trinta e cinco municípios, de cinco estados diferentes, cada qual em uma das
grandes regiões do país. São abordados o processo de articulação e constituição dos
conselhos, as formas de funcionamento, os temas e ações privilegiadas. Destaca-se a atuação
do poder público e dos movimentos sociais, o balanço que esses agentes fazem desse tipo de
espaço e os entraves para um maior êxito dos conselhos em sua missão de promover o
desenvolvimento dos espaços rurais. Ao final, à luz dos resultados obtidos, discute-se os
alcances e limites de uma das perspectivas teóricas mais utilizadas para fundamentar e
analisar esse tipo de experiência, expressa na noção cada vez mais difundida do capital social.
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Introdução

Para se ter uma idéia da proporção (e da profusão) de conselhos existentes, dados do IBGE
(2001) apontavam a existência de aproximadamente 27 mil conselhos, abrangendo 99% dos
municípios brasileiros, numa média de 4,9 conselhos por município. E a tendência é de que
esse número tenha aumentado ainda mais desde a divulgação destes dados, já que novos
programas criados pelo novo governo federal também prevêem a criação de conselhos
municipais em suas respectivas áreas de abrangência, como por exemplo, no caso da
segurança alimentar.

A maior parte dos estudos sobre essa nova modalidade de gestão social de políticas têm
destacado aspectos contraditórios em tais experiências: de um lado, tem-se enfatizado a
precariedade da participação nesses espaços e as tentativas, muitas vezes bem sucedidas, de
submetê-los aos esquemas de poder tradicionais típicos dos pequenos municípios; por outro
lado, por mais precários que sejam, os conselhos tem criado a possibilidade da efetiva
participação de segmentos que até então não tinham canais para expressar suas opiniões e
demandas, algo de extrema importância se considerada a tradição brasileira de forte apartação
entre a gestão da coisa pública e as populações dela beneficiárias (GOHN, 2001; DAGNINO,
2002)1.

No caso dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural, ao que tudo indica, não tem
sido diferente (IPARDES, 2001; LIMA, 2001). Após vários anos de funcionamento, os
foram criados centenas de conselhos, através dos quais vem sendo canalizados recursos que
beneficiam uma importante malha de municípios brasileiros. Além dos aspectos numéricos, a
principal virtude do Pronaf e dos Conselhos foi Ter contribuído para que se criasse um lugar
institucional para as políticas destinadas à agricultura familiar2. Apesar dos avanços obtidos,
estudos como o de ABRAMOVAY (2001), têm indicado também que está ocorrendo um
crescente distanciamento entre as duas linhas básicas que compõem o programa: os
benefícios derivados do Pronaf/Infraestrutura e os benefícios disponibilizados aos

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Estudos setoriais realizados pela Fundação Seade por encomenda da Assembléia Legislativa de São Paulo
também interrogaram, entre outras questões, se havia alguma correspondência entre a existência de conselhos e
a melhoria de indicadores nas áreas de educação e saúde. A resposta obtida não foi conclusiva. Em um dos casos
notou-se uma correspondência, em outro não (ALSP, 2001).
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Para uma melhor avaliação sobre o significado do Pronaf, sua estrutura, e sua operacionalização, consultar
ABRAMOVAY & VEIGA (1999), BELIK (2000),.
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agricultores através das modalidades de crédito previstas. No mesmo trabalho, o autor indica
também dificuldades dos CMDR em reunir os agentes locais para o estabelecimento de ações
inovadoras, capazes de efetivamente impulsionar o desenvolvimento dos espaços rurais. Para
aquele autor, a missão fundamental dos conselhos deveria ser justamente a descoberta e o
alavancar dos potenciais de desenvolvimento que os mecanismos convencionais de mercado
são capazes de mobilizar, sobretudo nas regiões menos favorecidas. Segundo ele, essa missão
não estaria sendo cumprida pelos CMDR, apesar de louváveis exceções que demonstram que
as falhas existentes não são inatas a esse tipo de espaço institucional de gestão de políticas.
Sua hipótese para os limites dos conselhos ante essa sua missão é de que, na maior parte das
vezes, sua forma de criação, seus modos de funcionamento e o alcance de suas ações são
fatores que ocorrem de maneira a não estimular o preenchimento das funções básicas para os
quais foram organizados. Isso, por sua vez, se deveria a duas causas básicas: a primeira, é que
os critérios a partir dos quais são escolhidos os municípios beneficiados com os recursos do
Pronaf/Infraestrutura favorecem a burocratização dos conselhos e tendem a fazer deles pouco
mais que um instrumento pelo qual o poder local recebe recursos federais com a supervisão
de representantes da sociedade civil local; a segunda é que tanto as representações sociais
como o corpo técnico envolvidos na construção dos conselhos estão mal preparados para
enfrentar o desafio dos processos de desenvolvimento no meio rural.

No trabalho citado, Abramovay faz uma excelente análise da atuação dos CMDR, apoiado
sobretudo em uma pesquisa realizada pelo Ipardes, no Paraná, e em visitas realizadas a
conselhos de municípios do Rio Grande do Sul; análises que, no universo em questão,
corroboraram a hipótese levantada. Um primeiro objetivo do presente artigo está orientado
para testar essa mesma hipótese agora num universo mais amplo e diversificado de
municípios e com um escopo de questões mais ampliado, visando captar da gênese ao alcance
atual das ações desses conselhos. Um segundo objetivo consiste em problematizar o arranjo
institucional no qual estes conselhos estão inseridos. Um terceiro objetivo reside em, à luz
dos dados obtidos com a pesquisa, tecer comentários sobre uma das perspectivas teóricas
cada vez mais valorizadas entre aqueles que vêem nos conselhos uma forma importante de
organizar as ações de indução ao desenvolvimento rural. Trata-se da vertente que tem como
um de seus principais suportes a noção de capital social, cuja rápida disseminação tem
escondido as diferentes concepções teóricas que o uso do termo pode expressar e as
conseqüências práticas que disso decorrem.
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Os dados e informações veiculadas nas próximas páginas são resultado de uma pesquisa
coordenada pelos autores e concluída em 2002. Nela foram entrevistados quase cem
informantes-chave distribuídos por trinta e cinco municípios de cinco diferentes estados, um
em cada grande região do país (Favareto & Demarco, 2002)3.

1. Os Conselhos – da origem aos Planos Municipais de Desenvolvimento Rural

Uma das principais críticas ao alcance dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural
diz respeito à maneira pela qual eles têm origem. A exigência da constituição dos conselhos
para que um município possa acessar os recursos do Pronaf/Infraestrutura estariam na raiz de
uma série de vícios e limites que restringiriam enormemente sua eficácia. Por isso nada
melhor do que iniciar pelo processo que levou mesmo à criação dos conselhos e avançar
pelas etapas seguintes, procurando interrogar em que medida as heranças dessa “falha
original” lhes impossibilitou ou não no exercício das funções esperadas. Ainda que um pouco
maçante, a citação a cifras e percentuais nos próximos parágrafos ajuda a compreender a
proporção e os contrastes entre os fenômenos apontados.

De fato, a maioria dos Conselhos teve início posterior ao período de constituição do Pronaf –
apenas 15% dos CMDR existentes foram criados antes do Programa. E a principal motivação
foi, sem dúvida alguma, a exigência legal para possibilitar o acesso aos recursos do
programa. O curto período compreendido entre o anúncio do município como contemplado e
o prazo determinado para a constituição do CMDR, restrito a poucos meses, não permitiu que
se desenrolasse um percurso de sensibilização, informação e consulta. Também como
decorrência desse caráter verticalizado que impulsiona a criação do conselho, na grande
maioria dos casos é o Executivo Municipal quem toma a iniciativa das articulações

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Trata-se da pesquisa intitulada Políticas públicas, participação social e as instituições para o desenvolvimento
rural sustentável – uma avaliação dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural, realizada através do
Convênio Plural / IICA (SAF/MDA). Nela se envolveu uma equipe de treze pesquisadores, tendo originado,
além do relatório final, cinco relatórios específicos para os estados de Santa Catarina, Espírito Santo, Mato
Grosso do Sul, Pernambuco e Rondônia. Para mais detalhes sobre a metodologia e os instrumentos recomenda-
se consultar o relatório integral. Os autores agradecem os comentários críticos das equipes do IICA, da
Secretaria da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Rural Sustentável, para os quais as versões preliminares desta pesquisa foram apresentadas no
decorrer de 2002.
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necessárias e é um representante dessa esfera quem, como corolário, irá ocupar a
presidência do conselho em mais de dois terços das situações.

Até aí confirma-se a crítica. Porém, quando tudo levaria a crer que o conselho não teria vida e
ficaria restrito a uma existência burocrática, é surpreendente notar que acaba havendo um
expressivo envolvimento das organizações de agricultores; em dois terços dos casos através
dos sindicatos e, numa relativa surpresa, em metade dos casos através de associações ou
cooperativas. Agentes identificados como representantes das igrejas também apareceram com
frequência muito próxima às associações e cooperativas nos relatos colhidos durante a
pesquisa.

Para que esse envolvimento e a conseqüente legitimação que ele traz acontecessem,
contribuíram decisivamente três fatos: em primeiro lugar, a indicação existente no Decreto
Lei que regulamente a existência dos conselhos para que ao menos 50% de suas vagas sejam
preenchidas por agricultores; em segundo lugar, uma vivacidade dos movimentos sociais
rurais em ver nesses espaços uma efetiva possibilidade de participação e de influência sobre
verbas públicas e instrumentos de diálogo, por vezes de confronto, e de tomada de decisão;
em terceiro lugar, na falta de uma tradição de consulta e participação das populações
beneficiárias das políticas públicas nos espaços constituídos para sua gestão , o que faz com
que a mera existência desses espaços, por contraste, seja avaliada positivamente.

Os conselheiros indicados têm em média dois anos de mandato. O percentual de renovação


na composição dos CMDR é pequeno, num horizonte de tempo curto, de até dois mandatos.
Num horizonte de tempo mais dilatado, um patamar maior de renovação depende da
continuidade ou não do grupo político à frente do Executivo Municipal: quando há mudança,
o percentual de renovação é maior, quando não há, continua a ser baixo. Um dado que indica
que não ocorrem mudanças abruptas e sucessivas no CMDR, de maneira que a continuidade e
cumulatividade de sua atuação ficassem comprometidas.

Em outro dado indicativo de que o funcionamento do conselho apesar de formal é vivo, está
no fato de que 90% dos entrevistados durante a pesquisa afirmaram que o conselho no qual
atuam tem caráter deliberativo. Embora esse caráter deliberativo seja restrito à gestão local do
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Pronaf/Infraestrutura, ele é importante por denotar o reconhecimento de um status decisório
dos conselhos.

Através dessas e de outras indicações, nota-se, portanto, que não há nenhum antagonismo
entre a iniciativa “de cima pra baixo” que leva à constituição dos conselhos e a possibilidade
do efetivo envolvimento dos agentes sociais. O que há é uma contradição que vai se
formando desde esse momento entre o que se espera do conselho, e o ambiente institucional
no qual ele está inserido, algo que vai se objetivar através de normas e constrangimentos, ora
expressos em termos formais como as exigências de prazo e de procedimento do Pronaf, ora
em termos de disposições adquiridas pelos agentes como no caso da resistência dos agentes
governamentais em ver na agricultura familiar um segmento a ser privilegiado pelo
investimento público.

Isso fica mais claro quando se olha para o momento seguinte à constituição, no
funcionamento mesmo dos conselhos. É no funcionamento dos CMDR que se pode observar
também se é procedente a crítica de que as capacidades dos agentes restringem sua eficácia.

Como a pesquisa trabalhou com informantes-chave, e como a documentação disponível nos


municípios visitados não era muito rica, não foi possível traçar um perfil dos conselheiros,
exceto os presidentes e secretários. Mas foi indagado a esses conselheiros se eles haviam
passado por algum processo de capacitação relativa ao exercício dessa função. Em 50% dos
casos os conselheiros afirmaram ter tido contato com a oferta de cursos de capacitação, mas
apenas 36% passaram por essas atividades.

Em três quartos dos casos os conselhos se reúnem com periodicidade mensal. Essas reuniões
quase sempre são convocadas a partir de uma pauta de conteúdo eminentemente formal,
seguindo as orientações legais que regem o funcionamento dos CMDR. Não seria exagero
dizer, então, que a vida do conselho se resume à elaboração e à gestão do PMDR e às
deliberações a isso inerentes. Um tal dado em si não é muito revelador, já que espera-se
mesmo que o conjunto de ações do Conselho esteja orientado por um plano consistente,
capaz de articular as forças do município na promoção do desenvolvimento. O problema é
que entre uma coisa e outra acontece um abismo; isto é, elaborar e gerir um plano não tem
significado essa articulação coerente das forças vivas do território. Quando se indaga aos
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entrevistados se há alguma forma de relação com outros conselhos gestores, um terço
responde afirmativamente; porém, essa forma de relação é quase sempre restrita a um
paralelismo na representação, com algum dirigente sindical participando em mais de um
conselho, por exemplo, mas sem a existência de qualquer diálogo institucional entre estas
instâncias. Quando se indaga se há relação com outras instituições, o percentual de respostas
afirmativas é maior, de quase 60%, porém sempre são citadas as instituições que já fazem
parte do conselho, como o sindicato, uma cooperativa, o órgão de assistência técnica;
raramente uma universidade, um centro de pesquisa. Muito pouco há de inovador, algo que
indique uma ampliação do foco da atuação do CMDR para além desses limites legais-
regimentais. Por limites legais-regimentais, é bom frisar, entende-se a definição como
atribuição do CMDR, da gestão do Pronaf/Infraestrutura tendo como principal instrumento
para isso a elaboração do Plano Municipal de Desenvolvimento Rural e a fiscalização dos
investimentos feitos pelo programa nas ações que constam desse plano.

Como, então, são elaborados os planos ? Como se levantam e articulam as demandas ? Quais
as características gerais dos planos ? Em dois terços dos casos os informantes afirmaram que
o processo de elaboração do plano envolve alguma maneira de levantamento e articulação das
demandas locais. As formas pelas quais esse levantamento ocorre, entretanto, são bastante
precárias e assistemáticas. Na maior parte dos casos isso envolve consultas mais ou menos
informais às organizações ou comunidades. Em apenas dez por cento das situações foram
verificadas formas mais consistentes como a realização ou sistematização de diagnósticos. E
em apenas um caso foi citada a realização de uma Conferência Municipal, como momento de
confrontação, ponderação e definição dessas demandas locais.

A precariedade da articulação das demandas se reflete na estrutura dos planos. Em resumo,


foi possível encontrar três diferentes situações: 1) a maior parte dos casos, onde os planos se
resumem a uma justaposição de demandas do município; 2) um número pequeno de casos em
que os planos são aparentemente consistentes, mas trata-se de uma consistência meramente
aparente (são situações em que os planos podem ter sido elaborados a partir de outros planos
já existentes, por vezes cópias de outros municípios); 3) um número também pequeno em que
os planos são uma verdadeira tentativa de diagnóstico e de proposições sobre as
potencialidades e limites do município.
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Após a aprovação dos planos no âmbito local e a liberação de recursos em âmbito nacional,
o conselho continua a apoiar-se neles para sua atuação. Através das reuniões periódicas
discutem-se e encaminham-se as questões relativas à gestão da aplicação dos recursos. Os
contatos entre o CMDR e o conselho estadual ou as instâncias federais do Pronaf acontecem
regularmente, ainda que sempre restritas à gestão dos recursos do programa. Em quase dois
terços dos municípios cobertos pela pesquisa os informantes afirmaram existir iniciativas de
monitoramento dos investimentos; porém, as ações relatadas nesse quesito mais uma vez
revelam práticas assistemáticas, como o acompanhamento a distância do que vem sendo feito
com os recursos. Em apenas um quinto dos municípios observou-se a prática da avaliação do
plano, o que revela um grau de contratualidade baixo entre os agentes e instâncias envolvidas
na operacionalização do Pronaf/Infraestrutura.

Os Planos Municipais de Desenvolvimento Rural, portanto, são uma espécie de concretização


de toda a lógica que perpassa o funcionamento do Pronaf/Infraestrutura e dos conselhos como
seu principal instrumento: certamente eles ocupam um lugar destacado e as etapas previstas
para sua realização, aprovação e gestão, em geral, acontecem com relativo êxito, por outro
lado, porém, o conteúdo dos planos, a sistemática adotada para sua construção, o leque
restrito de agentes e a inexistência de ações de monitoramento e avaliação, são indicadores
mais do que suficientes de que essa efetiva atuação dos CMDR não chega e romper o caráter
burocrático-formal que rege sua existência.

Em uma palavra, se a referência para avaliar os CMDR for aquilo que está expresso como
suas atribuições e o conjunto de mecanismos institucionais a isso afinados, então pode-se
dizer que os CMDR funcionam e bem; mas se a referência for aquilo que aparece em
inúmeros discursos e estudos, destacadamente um papel de articulação das forças vivas do
território em torno de um projeto coerente de desenvolvimento rural, então é preciso dizer
que ainda há um longo caminho pela frente.

Por quais caminhos os CMDR poderiam passar a desempenhar esse papel mais ousado ? A
resposta a essa pergunta tem que ser buscada no cruzamento dessa análise da situação real de
funcionamento dos CMDR, tal como aqui brevemente esboçada, com outras duas dimensões:
a visão dos agentes e o balanço que eles fazem desse tipo de experiência, e o ambiente
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institucional em que ambos, o conselho e seus agentes, constróem suas ações. A isso são
dedicados as próximas duas partes do texto.

2. Os agentes

Como já foi dito, os agentes que influem no funcionamento dos CMDR em âmbito local são,
via-de-regra, e pela ordem de maior peso: o Executivo Municipal através de vários de seus
membros, as representações dos agricultores (destacadamente o sindicato, seguido das
associações e cooperativas, e de lideranças comunitárias), os agentes de pastorais, e só
raramente outras organizações.

Por sua maior influência, e também porque às relações entre esses dois agentes são atribuídas
muitas das tensões e conflitos nos conselhos, são destacadas aqui as opiniões dos
representantes dos agricultores e as do poder público municipal. A cada um desses grupos
de agentes foi solicitado que destacassem três aspectos positivos e três aspectos negativos na
experiência do Conselho onde eles atuavam.

Para os agricultores os três aspectos positivos destacados foram assim agrupados, pela ordem:
1) a democratização que eles possibilitam; 2) as obras e serviços viabilizados com os recursos
do Pronaf; 3) a melhoria da renda e da qualidade de vida e o desenvolvimento do município.
Vale sublinhar que à exceção da citação à democratização, nenhum dos demais aspectos
obteve mais do que 20% de citações, o que indica que esse elemento – a democracia – é, de
longe, o de maior relevo na percepção desses agentes. E é fundamental observar também que
aquilo que deveria ser a finalidade maior dos conselhos – a melhoria da qualidade de vida e o
desenvolvimento do território – só aparece em terceiro lugar nas citações.

Quando interrogados sobre os aspectos negativos, os agricultores citam, novamente pela


ordem: 1) a relação entre o conselho e o Executivo Municipal; 2) as condições de
funcionamento dos CMDR, em particular a falta de estrutura e assessoria; 3) a capacitação
dos membros, com igual percentual de citações para os limites relativos às atribuições e
competências do CMDR. Nenhum desses aspectos foi citado por mais do que 20% dos
agricultores entrevistados, o que mostra claramente que não há um consenso sobre os
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problemas, nem sequer sobre a prevalência de um determinado problema por sobre os
demais.

Para os representantes do poder público, o principal aspecto positivo destacado também foi a
democratização. Todos os demais aspectos – como o fortalecimento da agricultura familiar, a
realização de obras, ou o desenvolvimento do município – nunca excederam 15% das
citações. Os aspectos negativos, para esse mesmo grupo, são: 1) as condições de
funcionamento dos conselhos; 2) os limites do Pronaf como instrumento para a promoção do
desenvolvimento rural; 3) a capacitação dos membros. Novamente, todas as citações ficaram
num patamar baixo, desta vez inferior aos 20%, indicando também entre os representantes do
poder público municipal uma pulverização das opiniões relativas aos problemas.

Diante destas dificuldades, foi perguntado a esses agentes, quais seriam, então, as principais
dificuldades a serem superadas para tornar o trabalho dos conselhos mais consistente. A
campeã das citações em resposta a essa pergunta foi a capacitação dos agentes, seguida da
participação dos agricultores, cuja lembrança quase sempre apareceu associada à falta de
transporte para viabilizar sua presença nas reuniões, ou os problemas em deixar o dia de
trabalho para poder se envolver.

Confrontando esses elemento de avaliação dos agentes com aquilo que foi exposto no item
anterior, o que salta aos olhos é que o quadro pintado pelos agentes encontra ressonância
naquilo que os dados demonstraram sobre o funcionamento dos CMDR: um funcionamento
efetivo, embora pautado pelos limites burocrático-formais. Mas é curioso observar ainda que
há uma enorme dificuldade em pensar alternativas para além dos moldes tradicionais de ação:
reclama-se por mais formação e capacitação, mas foi possível observar que há ações de
capacitação sendo ofertadas, o problema é que ela parece não estar chegando aos conselheiros
de ponta, aqueles que ocupam os postos de maior destaque, e deve-se ainda levantar uma
forte incógnita quanto à verdadeira eficácia dessas ações tal qual vem acontecendo; reclama-
se por mais participação dos agricultores mas observou-se que vem sendo respeitada a
representação de pelo menos 50% dos mesmos e, mais que isso, que o método para a escolha
dos membros é considerado positivo pela larga maioria dos informantes. São contrastes que,
enfim, apontam para a necessidade de se repensar as alternativas tradicionais para os
problemas de eficácia restrita dos conselhos.
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Esses limites da visão dos agentes sobre o papel dos CMDR e sobre quais mecanismos
precisam ser postos em movimento para promover o desenvolvimento rural apareceu de
maneira mais nítida ainda quando foi solicitado aos mesmos – mas também aos membros das
instâncias estaduais - a indicação de algumas experiências de reconhecido êxito para serem
conhecidas mais de perto. Ao contrário do que se poderia imaginar, a maioria dos conselhos
indicados não se destacava dos demais por conduzir ações inovadoras, por promover uma
permanente articulação das forças do território, ou algo assim. Os CMDR indicados se
destacavam por cumprir melhor e de maneira mais regular os rituais formalmente
estabelecidos para o seu funcionamento, tal como: reunir-se periodicamente, respeitar os
percentuais de participação de agricultores, cumprir os prazos regimentalmente estabelecidos.

Essa visão disseminada entre os agentes materializa os horizonte imaginado por eles quanto
ao que pode ser, objetivamente, o papel dos conselhos. Trata-se de uma referência
extremamente forte e consolidada entre esses agentes e, por isso mesmo, entranhada no
conjunto de atitudes e comportamentos relacionados ao seu funcionamento.

3. Um balanço à luz da evolução das políticas para o desenvolvimento rural

O que se pode depreender da caracterização dos conselhos e desse mapeamento da visão


predominante tanto entre os gestores das políticas públicas para o desenvolvimento rural
quanto entre as organizações de agricultores, é que o CMDR deve fazer a gerência dos
recursos do Pronaf/Infraestrutura e, através dessa boa gestão, contribuir para a melhora da
infraestrutura desses municípios, auxiliando a viabilidade da agricultura familiar local. Desse
incremento da atividade agrícola deveria derivar o desenvolvimento do município e a
melhoria da qualidade de vida das populações rurais. Essa é a lógica que tem comandado o
funcionamento dos CMDR. Uma concepção onde o espaço rural e suas possibilidades se
resumem ao fortalecimento da agricultura, e onde o horizonte das intervenções é sempre
restrito aos limites do município e, marcadamente, aos limites dos agentes tradicionais da
agricultura desse município4.

4
Vários estudos têm abordado os novos sentidos da ruralidade ou suas implicações para o desenvolvimento.
Ver WANDERLEY (1999); ABRAMOVAY (2000), VEIGA et al. (2001).
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Esse viés agrícola e municipalista das ações voltadas pretensamente para o
desenvolvimento rural não é uma mera desatenção dos agentes para as demais forças sociais
do território, mas sim uma visão que perpassa a estruturação das políticas e das instituições
para o desenvolvimento rural. A maior expressão disso pode ser encontrada no próprio texto
que regulamenta a existência dos conselhos e no conjunto de dispositivos que os faz operar:
percebe-se ali, claramente, que os marcos formais institucionais de regulamentação dos
CMDR somente pede deles que façam a gestão dos recursos do Pronaf/Infraestrutura naquele
município.

Em contraste, quando se olha para textos acadêmicos, para formulações de organizações não
governamentais, para o discurso dos movimentos sociais, e mesmo para alguns documentos
de governo, há uma clara expectativa de que os conselhos funcionem como promotores do
desenvolvimento rural. Isto é, que eles consigam coordenar, ou no mínimo impulsionar ações
capazes de dinamizar aquele território, de melhorar a qualidade de vida das pessoas que ali
estão, uma tarefa bem mais ambiciosa e complexa.

Essa disjunção entre o que se espera desses órgãos colegiados de gestão social de políticas
públicas e o que lhes é demandado efetivamente fazer, ou em outros termos, a disjunção entre
as atribuições e expectativas nele depositadas e as prerrogativas e condições necessárias para
esse fim, é um fator decisivo para se resolver o problema da eficácia restrita do
funcionamento dos CMDR.

Mas seria um erro enxergar nos CMDR o espaço de resolução desse conflito. Como foi dito
antes, a tendência é se imaginar novas atividades de capacitação capazes de disseminar uma
visão de desenvolvimento que amplie o foco das iniciativas. Com isso se esquece que a raiz
desse problema perpassa todo o ambiente institucional das políticas públicas para o Brasil
Rural. O que há, na verdade, é uma disjunção mais ampla e profunda entre o Brasil rural e a
idéia de desenvolvimento, o que, no caso do CMDR e do Pronaf se objetiva em dois
elementos. Em primeiro lugar, numa total separação entre o Pronaf/Infraestrutura e as demais
linhas que compõem o programa. Em segundo lugar, num isolamento institucional do Pronaf
em relação a todo o restante das políticas que incidem sobre o mesmo espaço e sobre as
mesmas pessoas que são alvo do programa, algo cuja manifestação mais visível é o
hibridismo da estrutura do Executivo Federal, com a existência de dois ministérios para a
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agricultura e o espaço rural. É como se o viés agrícola e municipalista estabelecesse
limitações de duas ordens: uma vertical, por assim dizer, e relacionada ao que se espera dos
conselhos e o que lhes é permitido e possibilitado fazer, e uma segunda horizontal, que diz
respeito ao baixíssimo grau de coordenação das políticas que incidem sobre um mesmo
território.

O atual momento da evolução das políticas públicas para o desenvolvimento rural indica
tendências que sinalizam para uma intensificação desse tipo de conflito. Uma rápida
retrospectiva dessa evolução mostraria o seguinte: os anos setenta tiveram como principal
marca a massificação das políticas e processos sociais desencadeados com a chamada
modernização conservadora (privilégio à grande propriedade, tecnificação e mecanização das
lavouras, grande oferta de crédito); os anos oitenta, por sua vez, trouxeram uma crise desse
mesmo modelo e que se materializou nos custos sociais, ambientais, e na insustentabilidade
do padrão de financiamento anterior; os anos noventa, no rastro da crise, foram os anos da
ascensão da agricultura familiar como segmento reconhecido socialmente e alvo de políticas
específicas até então inéditas e, associado a isso, foi o período em que consolidou a idéia de
que o envolvimento dos agentes influencia positivamente a boa aplicação de recursos
públicos; já a primeira década do novo século se inicia sob a influência da chamada
abordagem territorial, numa tentativa de valorizar a escala local no estabelecimento de
dinâmicas de desenvolvimento e, além disso, de superar a dicotomia rural/urbano e a redução
do rural ao agrícola.

Essa migração das preocupações no desenho das políticas públicas se dá em sintonia com as
tendências verificadas nos países do capitalismo avançado, particularmente os europeus. É o
caso, por exemplo, das políticas de ordenamento territorial, através das quais as
possibilidades de desenvolvimento e a alocação de recursos públicos destinados a esse fim
têm passado cada vez mais pelo estabelecimento de projetos apoiados em pactos locais e que
tomam forma nos contratos territoriais. A adesão dos agentes ao pacto/contrato é um aspecto
determinante e confere a essa articulação um caráter efetivamente contratualizado tanto entre
os agentes locais como também com os agentes extra-locais, como a burocracia estatal. A
contratualização aqui não diz respeito somente ao papel de cada um, mas também ao que se
espera da ação individual e conjunta desses agentes em termos de resultado objetivo e
mensurável. Isso é a base para o planejamento, para a alocação dos recursos e,
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posteriormente, para a avaliação e o eventual redirecionamento das políticas e recursos
destinados a esse mesmo território5.
Essa nova lógica pressupõe uma profunda reforma das instituições voltadas para o
desenvolvimento rural. O desenho do Pronaf, o papel dos conselhos, e as ambigüidades
existentes quanto ao papel do segundo em relação ao primeiro, tal qual apontado nas páginas
anteriores, são justamente o resultado atual dessa evolução contraditória da concepção das
políticas e das instituições a elas vinculadas.

A título de conclusão - uma nota sobre o capital social e o bloqueio institucional

A pergunta central que orientou a realização deste estudo consistia em saber se os CMDR
têm conseguido atuar como uma instituição capaz de promover o desenvolvimento dos
espaços rurais ou se, ao contrário, sua existência não passava de um artifício criado com o
fim exclusivo de acessar os recursos de uma das linhas do Pronaf.

As respostas encontradas permitiram indicar três diferentes situações. Na primeira poderiam


ser reunidos aqueles conselhos que têm conseguido atuar na articulação das forças do
território para a promoção do desenvolvimento; são experiências que têm logrado um
verdadeiro envolvimento dos agentes locais, com ações que extrapolam os limites da
agricultura e, embora muito raramente, do município. Na segunda situação, no extremo
oposto, estão os conselhos que apresentam um funcionamento bastante sofrível, sem
conseguir cumprir sequer os requisitos burocrático-formais previstos; nesses casos a
existência dos CMDR é meramente oficial e não conta com o reconhecimento dos agentes
locais. Na terceira situação, intermediária quanto aos resultados, mas amplamente majoritária
quanto à sua frequência, reúne os conselhos que tem se pautado exclusivamente pelo
cumprimento dos requisitos burocrático-formais para o acesso aos recursos do
Pronaf/Infraestrutura; este conselhos contam com a participação dos agricultores e suas
organizações, reúnem-se periodicamente, tem planos de desenvolvimento, mas suas ações são
pouco inovadoras e pouco estimulantes para a tarefa de promover o desenvolvimento rural.

Em resposta à pergunta formulada, pode-se dizer em linhas gerais, portanto, que


predominantemente os CMDR não têm conseguido atuar como uma instituição para o

5
Sobre os contratos territoriais, consultar VEIGA et al. (2001).
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desenvolvimento rural, tal qual se esperaria. Mas, se for considerado que todo o aparato
legal-institucional que levou à criação dos CMDR se limita à gestão do Pronaf/Infraestrutura,
então será forçoso reconhecer seu êxito.

Quando se trata de identificar os problemas que estão na origem dessa situação, confirmaram-
se as análises de ABRAMOVAY (2001), para quem as causas não estão na forma de ser dos
conselhos, mas numa falha de transferência institucional que acontece quando não se dá aos
CMDR as competências e instrumentos para que eles façam mais do que a gestão do
Pronaf/Infraestrutura. Ao ampliar o leque de perguntas colocadas, o presente estudo mostrou
que essa falha tem uma raiz mais profunda e que perpassa todo o ambiente institucional no
qual são moldadas essas políticas e os mecanismos de sua gestão, e que tem entre suas
marcas principais a desvalorização da agricultura familiar como uma base fundamental da
promoção do desenvolvimento, e o viés agrícola e municipalista das políticas e das
mentalidades dos agentes. Através desses elementos, a falha institucional se revela um
verdadeiro bloqueio à afirmação de práticas e organismos de promoção do desenvolvimento
rural em novas bases.

Esses aspectos podem ser melhor visualizados na representação esquemática da Figura 1. Ao


afirmar que os problemas que limitam a eficácia dos conselhos encontram-se na junção entre
aspectos operacionais – como a forma de escolha dos municípios ou as competências dos
agentes, expressos na Segunda linha da Figura 1 – e aspectos relativos ao ambiente
institucional das políticas – como a visão dos gestores e a opacidade das instituições,
expressas na primeira linha da Figura 1 -, o que se quer destacar é que as iniciativas voltadas
para contorná-los tem que atingir justamente essa junção. Para isso, uma alternativa seria uma
forte reformulação no desenho institucional das políticas que incidem sobre o
desenvolvimento rural – como a fusão de inúmeros programas ou mesmo de ministérios (algo
desejável, por certo, mas pouco provável de se conseguir) – mas uma tentativa menos
complexa e talvez razoavelmente eficiente seria procurar proceder a mudanças contundentes
no desenho do programa, de maneira a tentar contornar ou minimizar esses constrangimentos
aqui destacados.
17
Figura 1
Representação esquemática do fluxo de condicionantes e problemas dos conselhos

Ambigüidade no lugar Fragilidade da Tradição do viés


institucional da esfera pública agrícola e
agricultura familiar: (opacidade das municipalista
política social ou trunfo instituições)
para o desenvolvimento?
?

Processo e critérios de Membros do CMDR não


escolha dos municípios é tem as competências e
incompatível com função habilidades necessárias

CMDRs são CMDRs tem um Alcance das


constituídos “no funcionamento ações do CMDR
afogadilho” predomin. formal é restrito

Distanciamento entre as CMDRs tem a função mas


linhas que compõem o não os meios para a promoção
Pronaf do desenvolvimento rural

CMDRs tem uma


eficácia parcial na sua
missão

Esfera pública Ações restritas Ações restritas Fragilidade da


mais forte e aos limites do ao fortalecimento articulação com
maior município da agricultura outros agentes
valorização da fundamentais
agric. familiar para o des. rural

Mudança limitada do Desvinculação entre a atuação dos


ambiente institucional conselhos e a melhoria de indicadores
sociais e econômicos no espaço rural
18
Entre as mudanças que poderiam compor o rol dessa segunda alternativa estão: 1) uma
diversificação do tipo de aporte do poder público federal aos municípios rurais, apoiada por
sua vez numa tipologia destes municípios organizadas de acordo com o atual estágio de
maturação da auto-reflexão dos territórios sobre suas possibilidades de desenvolvimento – em
alguns casos tratar-se-ia apenas de viabilizar recursos, por exemplo, via o
Pronaf/Infraestrutura, em outros tratar-se-ia de viabilizar a realização de bons e consistentes
diagnósticos e planos; 2) a instituição da obrigatoriedade da realização de conferências
municipais e intermunicipais para a apresentação e definição dos planos como forma de
publicizar as discussões; 3) o apoio a criação de órgãos municipais e intermunicipais
(câmaras, conselhos) capazes de articular as ações dos vários conselhos existentes evitando a
dispersão de recursos e esforços; 4) a necessária ampliação do escopo dos agentes e
programas envolvidos para além daqueles ligados à agricultura dos municípios rurais; 5) a
adoção da forma contratual para alocação dos recursos, não só com o estabelecimento dos
papéis diferenciados dos vários agentes locais e extra-locais, mas também com a definição
clara de resultados esperados e sua consideração efetiva num momento de renovação dos
financiamentos envolvidos, que por sua vez teriam que ter uma prazo mais alongado que o
atual; 6) a criação de uma cesta de indicadores (sociais, políticos, econômicos e ambientais) a
ser adotada como base para o planejamento das políticas e do tipo de apoio a ser alocado aos
municípios rurais e, também, para o monitoramento dos investimentos feitos.

Uma última palavra precisa ser dedicada a uma das perspectivas teóricas que sustentam a
idéia de que a articulação das forças vivas de um território é fundamental para seu
desenvolvimento. Como se sabe, o trabalho de PUTNAM (1998) representou um marco e
tem sido citado em vários trabalhos sobre o desenvolvimento rural. Em Putnam, a ênfase
recai nas características de confiança e reciprocidade entre agentes de um mesmo território,
segundo ele sempre construídas em cima de longos períodos de sedimentação de relações
econômicas e político-culturais entre os agentes.

Se por um lado a abordagem do capital social em Putnam tem um grande mérito ao chamar a
atenção para o fato de serem as características do tecido social um elemento importante para
a análise do sucesso das iniciativas políticas ou empreendimentos econômicos, os marcos de
sua interpretação não permite explicar como em regiões em que este elemento não está
presente certas iniciativas têm alcançado êxito. Para o caso dos CMDR, foi possível encontrar
19
nos espaços mais marcados pelas relações verticalizadas e tradicionais, como o semi-árido
nordestino, experiências bem sucedidas; ao mesmo tempo, regiões cujo tecido social mais se
aproximam daquelas dotadas de “virtude cívica”, para usar as palavras de Putnam, são lugar
de experiências sofríveis de funcionamento dos conselhos convivendo lado a lado com
experiências altamente positivas.

Uma segunda vertente teórica que também trabalha com a idéia do capital social é
representada por estudos da sociologia e economia americanas (WOOLCOCK, 1998;
OSTROM, 2002). A diferença desta perspectiva para a anterior, está no fato de que incorpora
as organizações formais e informais como parte determinante das interações sociais. Ela abre
uma vertente importante ao afirmar que as instituições são mais do que expressões da cultura
de uma sociedade. Aqui a ênfase repousa sobre o aprendizado coletivo dos agentes.
Novamente confiança e reciprocidade são palavras-chave. Toda a questão é saber como
promover arranjos capazes de levar a essa confiança e ao aprendizado forjados nas lides com
problemas coletivos. Do acúmulo dessa vivência emergem padrões de sociabilidade cuja
reciprocidade forma o capital social necessário ao suporte das ações de desenvolvimento. O
que essa vertente não responde é como e por que mecanismos pesam os elementos que estão
fora da interação, condicionando-a mesmo, como é o caso das concepções de
desenvolvimento disponíveis e a legitimidade ou não de seus portadores.

Uma terceira vertente teórica parte, por sua vez, desse dilema. Ela se distingue das vertentes
originárias da sociologia e da economia americanas por tomar em conta não somente a rede
de relações, caracterizadas em sua extensão e forma de funcionamento, mas abrange também
o volume do capital de diferentes espécies que ela permite mobilizar (BOURDIEU, 2001).
Em vez de partir das influências diretamente relativas aos agentes entre si, esta concepção
parte da distribuição desigual destas diferentes formas de capital, onde ao lado do capital
social pesam igualmente o capital econômico, o capital político, o capital cultural, o capital
simbólico. Não se trata de afirmar que o desenvolvimento é decorrência de um coquetel de
capitais, mas sim de reconhecer que estas várias dimensões pesam e que essa distribuição
desigual entre os agentes conforma o espaço de possibilidades em que eles atuam, pensam,
propõem, impõem. Aqui, a pergunta chave é saber quem são os agentes reais, ao lado dos
formalmente envolvidos, por meio de que ações eles conduzem suas estratégias, e que
recursos são mobilizados para esse fim.
20
Tais questões não puderam ser colocadas neste estudo, face as restrições de tempo para sua
realização, mas elas se mostraram, sem dúvida, muito pertinentes, e descortinam um
fundamental programa de pesquisa a ser empreendido, ampliando o foco que predomina nos
estudos voltados para este tema atualmente6.

Uma tal idéia encontra ressonância em estudos clássicos sobre o espaço rural, que destacam
justamente que o bloqueio à agricultura familiar e às formas descentralizadas de produção
são um traço marcante da história agrária do Brasil. No caso da maioria dos espaços rurais, o
caráter quase pára-institucional das atividades econômicas, somado ao privilégio que se
costuma atribuir à grande agricultura e seus agentes dificulta que haja uma integração entre as
instituições e o capital social lá expresso ou latente. Esse caráter, aliás, não é mero acaso.
Muitas vezes é a impermeabilidade das instituições ao capital social dos territórios quem
restringe o alcance o significado do dinamismo. Tal disjunção resulta, inevitavelmente, em
perdas de sinergias e em desencontros que afetam diretamente o resultado e a eficácia das
políticas públicas, como também de processos sociais não institucionalizados: em síntese,
uma permanente e reiterada separação entre o Brasil real e o Brasil das políticas e iniciativas
públicas.

Não é por outro motivo que se procurou dar ênfase nas conclusões desse artigo para a
necessidade de romper com o isolamento ao mesmo tempo simbólico e institucional que
cerca os espaços rurais e fazer deles a base para o estabelecimento de efetivos contratos entre
o conjunto de agentes locais e o conjunto de instâncias coordenadas pelo poder público. Já é
tempo de descobrir que os espaços rurais não são reminiscências do passado e que,
justamente sobre os caracteres rurais de uma imensa parte do Brasil é que se terá que
encontrar os trunfos capazes de dinamizar este vasto território e fazê-lo trilhar o caminho do
desenvolvimento.

Não basta pôr as forças vivas do território em movimento, como tem preconizado o desenho
dos grandes programas nos anos noventa, é preciso também ajudar a criar as instituições
permeáveis e elas e capazes de contratualizar objetivos de médio prazo e ações eficazes.

6
Ver, por exemplo, o estudo em curso de uma das pesquisadoras envolvidas no projeto (FAVARETO, 2002).
21
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