Você está na página 1de 204

CEAPA

DESAFIOS E POSSIBILIDADES
da RESPONSABILIZAÇÃO
em LIBERDADE

1
OLIVEIRA, Gleiber Gomes de et al (Org.). CEAPA: Desafios e Possibili-
dades da Responsabilização em Liberdade. 1. ed. Belo Horizonte: Institu-
to Elo, 2019. 203 p.

Printed in Brazil/ Impresso no Brasil

ORGANIZAÇÃO
Andreza Rafaela Abreu Gomes
Anna Carolina Marotta de Oliveira Menezes
Joyce Ana Macedo de Sousa Arruda
Mara Alves dos Santos
Marcelo Plínio Pereira Souza
Alexandre Compart
Fabiano Neves Alves Pereira
Gleiber Gomes de Oliveira

REVISORES TÉCNICOS:
Anna Carolina Marotta de Oliveira Menezes
Joyce Ana Macedo de Sousa Arruda
Mara Alves dos Santos
Marcelo Plínio Pereira Souza

REVISÃO ORTOGRÁFICA:
Marcelo Plínio Pereira Souza

ISBN: 978-85-63077-15-8

1. CEAPA 2.Minas Gerais. 3.Políticas Públicas. 4. Responsabilização.

CDD: 341.582
CDU: 347.95

Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Asso-


ciação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

OLIVEIRA, Gleiber Gomes de et al (Org.). CEAPA: Desafios e Possibili-


dades da Responsabilização em Liberdade. 1. ed. Belo Horizonte: Institu-
to Elo, 2019. 203 p. ISBN: 978-85-63077-15-8.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou


transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem citar a
fonte. Proibída a venda desta edição.

REALIZAÇÃO GOVERNO DE MINAS GERAIS

2
Ministro da Justiça e Segurança Pública
Sergio Fernando Moro

Diretor-Geral do Departamento Penitenciário Nacional


Fabiano Bordignon

Diretor de Políticas Penitenciárias


Sandro Abel Sousa Barradas

Coordenadora-Geral de Cidadania e Alternativas Penais


Susana Inês de Almeida e Silva

Governador do Estado de Minas Gerais


Romeu Zema Neto

Vice-Governador do Estado de Minas Gerais


Paulo Brant

Secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública


General Mario Lucio Alves de Araujo

Secretário Adjunto de Justiça


Gustavo Henrique Wykrota Tostes

Subsecretaria de Políticas de Prevenção à Criminalidade


Andreza Rafaela Abreu Gomes

Coordenadora de Políticas Penais


Fabiana Dias dos Santos

Diretora de Alternativas Penais


Mara Alves dos Santos

Instituto Elo - Diretoria Executiva:

Diretor Presidente
Gleiber Gomes de Oliveira

Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento Técnico


Fabiano Neves Alves Pereira

Diretor Institucional
Alexandre Guilherme de Araújo Compart

3
4
SUMÁRIO

1. Apresentação............................................................................ 005
2. Prefácio..................................................................................... 009
3. Programa CEAPA: Uma estratégia de prevenção e efetivação de uma
Política de Segurança Cidadã....................................................... 015
4. Plano de implementação de Centros Integrados de Alternati-
vas Penais no Estado de Minas Gerais: Estratégia, concepção e
perspectivas................................................................................. 033
5. Redes Sociais em Alternativas Penais: Conceitualizando e cons-
truindo a experiência do Centro Integrado de Alternativas Penais -
CIAP de Divinópolis, Minas Gerais................................................... 059
6. Convivência, vínculo e afeto: Explorando as dimensões qualita-
tivas da prestação de serviços à comunidade a partir de um relato
de experiência da CEAPA de Vespasiano........................................ 075
7. Alternativas Penais como prática de prevenção da violência: Es-
tudo de caso sobre sua aplicação em pessoas condenadas por trá-
fico de drogas em Belo Horizonte...................................................... 087
8. Ação de Responsabilização no âmbito da Lei Maria da Penha no
Programa CEAPA no Município de Contagem/ MG - Metodologia
e Transversalidade na Perspectiva Crítica de Gênero e Masculini-
dades nas intervenções dos Grupos Reflexivos............................. 109
9. Ações de Responsabilização aos Homens Autores de Violência
contra a Mulher: perfil, perspectivas e percepções do Centro Inte-
grado de Alternativas Penais de Belo Horizonte............................. 133
10. Projeto de execução de alternativa penal: Relato de experiência
interdisciplinar e intersetorial na abordagem ao uso de drogas..... 149
11. Grupos Reflexivos: Ferramenta de Acompanhamento e Res-
ponsabilização de Pessoas em Alternativa Penal por crimes rela-
cionados ao Trânsito, executados pelo Instituto Vida Segura......... 165
12. Medidas Cautelares diversas da prisão: Uma visão para além do
controle........................................................................................ 175
13. A aplicabilidade das práticas de Justiça Restaurativa no âmbito
das Alternativas Penais................................................................ 191

5
6
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

APRESENTAÇÃO

A obra aqui proposta aborda a discussão das Alternativas Pe-


nais no âmbito do Estado de Minas Gerais e é tema prioritário e extrema-
mente relevante na atualidade. Um país como o Brasil, tão marcado por
violências e criminalidades, construiu respostas nem sempre efetivas na
prevenção e responsabilização frente aos crimes e delitos cometidos.
Na concepção de Cesare Beccaria, filósofo e jurista italiano, o di-
reito do Estado de punir os delitos se baseia na necessidade de defender
a segurança pública das usurpações de particulares; e as penas serão
tanto mais justas quanto mais sagrada for a segurança e quanto maior a
liberdade que o Estado concede aos seus partícipes. Segundo Beccaria,
as penas estão relacionadas à ideia de prevenção ao crime, e o cálculo
das sanções deve levar em conta a natureza do delito, a sua gravidade e
o dano causado.
Nesse sentido, Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade
de Minas Gerais (SUPEC), parte integrante da Secretaria de Estado de
Justiça e Segurança Pública, desenvolve um conjunto de políticas, pro-
gramas e projetos que constroem novas abordagens no enfrentamento
das violências e criminalidades em diversos níveis, propondo inovações
no campo da segurança pública, incluindo uma nova perspectiva de
responsabilização em liberdade. A política de prevenção de Minas Gerais,
com estreita colaboração do Tribunal de Justiça, Ministério Público, De-
fensoria Pública e Municípios, vem se posicionando como uma referência
nacional na execução das políticas penais de inclusão social de egressos
do sistema prisional, alternativas penais, na redução da letalidade juve-
nil, na prevenção à violência contra a mulher e outras violências. Essas
ações, além de efetivar diversos dispositivos da legislação penal, pos-
suem metodologias de acompanhamento dos públicos destes programas,
com vistas a uma adequada responsabilização, prevenção à reincidência
criminal e redução de vulnerabilidades e outras violências.
É nesse campo político e técnico que Minas Gerais inseriu, desde

7
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

2003, a política de alternativas penais. O Programa Central de Acom-


panhamento de Alternativas Penais (CEAPA), ao incluir a perspectiva de
prevenção como foco do trabalho, acaba necessariamente extrapolando
a mera execução de penas, construindo, dessa forma, uma metodologia
genuína de prevenção à violência e à criminalidade. Isso vem, inclusive,
ao encontro dos postulados, princípios e diretrizes explicitados pelo De-
partamento Penitenciário Nacional, Conselho Nacional de Justiça e Pro-
grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
Da mesma forma, o Programa CEAPA/MG, pela vocação me-
todológica e pelo seu modus operandi, vem se desenvolvendo numa
perspectiva necessariamente intersetorial, articulando a aplicação de al-
ternativas penais com Sistema de Justiça Criminal e dialogando a sua
execução com as múltiplas políticas públicas e instituições do terceiro
setor, ampliando, assim, a participação da sociedade como um todo na
administração da Justiça Criminal e, dessa forma, produzindo novas es-
tratégias e possibilidades de reintegração social.
A partir dessa perspectiva, o programa CEAPA desenvol-
ve metodologias consistentes de execução da Prestação de Serviços à
Comunidade, Projetos de Execução de Alternativas Penais por tipo de
delito cometido, grupos de responsabilização de homens processados e
julgados no âmbito da lei Maria da Penha, executando ainda projetos no
campo das Medidas Cautelares diversas da prisão e práticas de Justiça
Restaurativa.
O presente livro atualiza e destaca inovações que vêm sendo
desenvolvidas na execução de Alternativas Penais em Minas Gerais, a
partir de um conjunto de artigos que explicitam experiências concretas
de execução de alternativas penais em todas as suas modalidades, bem
como alguns resultados que foram alcançados nos dezesseis municípios
onde estão implantados os Centros Integrados de Alternativas Penais.
A obra é uma amostra da qualidade da atuação do Programa
CEAPA, que, além de possuir uma eficiência no resultado esperado, apre-
senta a relação do custo estimado de cem reais por mês, por atendimen-
to a cada cumpridor, e com o índice médio anual de cumprimento de

8
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

90% nos últimos dez anos. Além disso, o programa apresentou índices
satisfatórios de não reincidência criminal, seja considerando pesquisa da
instituição CP2, contratada pelo Governo de Minas Gerais, que verificou
um índice de 80,9% de não reincidência policial das pessoas em cumpri-
mento de alternativas penais de Minas Gerais em 2011, seja consideran-
do pesquisa realizada recentemente por MIRANDA (2018) que verificou
um índice de 72,8% de não recorrência prisional de pessoas que cumpri-
ram alternativas penais pelo crime de tráfico de drogas.
Isso exposto, ressalta-se o protagonismo do Programa CEAPA não
só como uma referência em execução de alternativas penais, mas tam-
bém como uma iniciativa concreta e factível de prevenção de violências e
criminalidades no âmbito da Segurança Pública.

Andreza Rafaela Abreu Gomes


Subsecretária de Prevenção à Criminalidade

9
10
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

PREFÁCIO

S egundo o Banco de Monitoramento de Prisões, do Conselho


Nacional de Justiça (2019), o Brasil possui a terceira maior população
carcerária do mundo, 41,5% deste montante é composto por presos pro-
visórios, são pessoas que poderiam estar aguardando em liberdade seu
julgamento ou mesmo exercendo seu direito de cumprir sua reparação
criminal em liberdade. Frente ao contexto de superlotação do sistema
penitenciário brasileiro e dos números alarmante de prisões provisórias,
é fundamental pensar estratégias sólidas e eficazes para incidir na porta
de entrada do sistema prisional. Neste cenário, a consolidação das alter-
nativas penais se apresenta como um respiro. Em Minas Gerais, a partir
da execução realizada pelo Programa Central de Acompanhamento de
Alternativas Penais, esta ação vem se consolidando como uma prática
exitosa.
Ao longo de seus 17 anos de atuação, o Programa CEAPA se de-
dicou a estudar e estruturar formas de promover um espaço onde a al-
ternativa penal, de fato, fizesse sentido. O Programa tem como objetivo
consolidar e fortalecer as alternativas penais no estado de Minas Gerais,
a fim de responsabilizar as pessoas acompanhadas a partir da criação de
um espaço de fala, reflexão e respeito, sempre pautado pela liberdade.
O processo de responsabilização das pessoas acompanhadas por
este Programa se dá através de um conjunto de esforços, partindo de
uma relação que precede a chegada da pessoa para o cumprimento da
determinação judicial, a fim de trazer uma consonância entre todos os
atores envolvidos no processo. Cabe ao Sistema de Justiça a responsabi-
lidade da aplicação da alternativa penal, contudo é importante oferecer a
esse ator um leque de possibilidade de acompanhamento e respostas que
crie um ambiente de confiança entre os envolvidos. Munir os operadores
do direto de resultados é tão importante quanto dizer à rede que con-
tribui para a execução das alternativas penais que nós estamos juntos e

11
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

somos corresponsáveis na construção de encaminhamentos assertivos,


bem como de um plano de acompanhamento que favoreça a redução dos
fatores de riscos e vulnerabilidades que essas pessoas possam apresen-
tar.
Este processo requer um espaço de acolhimento e de fala que nos
retira do lugar de quem detém um saber em detrimento daquele construí-
do ao longo da trajetória das pessoas acompanhadas. Olhar para essa
pessoa como responsável por suas ações e escolhas nos permite entender
as construções que os levaram a um processo de criminalização através
do cometimento de um ato considerado desviante.
Este programa se propõe, a todo momento, construir sentido
para o cumprimento da determinação judicial, o que consiste em algo
desafiador. O não reconhecimento do ato delitivo cometido como crime
dificulta ou impede o processo reflexivo das pessoas acompanhadas. A
perspectiva do Programa é ir além da execução penal, caminhando lado a
lado com essas pessoas na construção de sentido para algo que lhes soa
distante, dissonante e por vezes meramente expiatório.
Para que possamos construir com essas pessoas espaços de es-
cuta e acolhimento é importante desenvolver a priori os profissionais que
oportunizam essa escuta e acolhida. Formações, capacitações, espaços
de discussão e acompanhamento do corpo técnico permite uma constân-
cia no [re]pensar sobre o fazer deste trabalho.
A pessoa que se apresenta não está delimitada pela ata que o
nomeia muito menos pelo Código Penal que o rotula. Os profissionais
do Programa se angustiam e se movem no sentido de provocar os atores
envolvidos na busca por uma saída mais próxima da realidade que se
apresenta a partir do discurso das pessoas acompanhadas e das leituras
de como a relação com delito se inscreve.
É constante a construção de estratégias cada vez mais próximas
do público, com recortes mais assertivos que contemplam a relação dessa
pessoa com meio em que ela está inserida, e com uma proposta crítica ao
sistema tradicional que, por vezes, se mostra ineficiente e não acessível
para o público.

12
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

A rede, no seu sentido mais literal, se coloca a fazer intercessões,


ligações, fechamentos e nós. Estas ligações são dotadas de pre-conceitos,
pre-paros e pre-disposição que, eventualmente, são pautados em rotu-
lações e estigmas esvaziados de sentido e carregados de fantasmas, o que
coloca as pessoas que cometeram um delito em uma condição preterida
àqueles que se nomeiam como pessoas corretas.
É desafio para o Programa colocar uma dúvida, uma vírgula e
promover reflexões no sentido de possibilitar uma leitura mais real da
comunidade, das pessoas, da sociedade, colocar à parte a construção de
uma pessoa idealizada, esvaziada de sentido, para pensar em pessoas ca-
pazes de fazer construções e elaborar saídas dentro daquilo que dispõem
como recurso interno para pautar suas ações.
A leitura dessas produções retrata um programa inquieto e que
inquieta com questões ligadas à execução de práticas inovadoras que
vão além da execução convencional das alternativas penais, quando se
propõe a pensar o acompanhamento dos casos de forma individualiza-
da, trazendo para o seu escopo de atuação o trabalho com as medidas
cautelares diversas da prisão, das práticas restaurativas e a execução
dos Grupos Reflexivos, a fim de construir um cenário mais favorável no
âmbito da Segurança Pública.
Ao se debruçar nesses temas, este livro se apresenta como uma
colcha de retalhos construída a várias mãos que se dedicam a promover
um ambiente humano, ético e comprometido com a redução da violên-
cia e da criminalidade, bem como promover as pessoas que passam por
este Programa um ambiente de responsabilização e manutenção da sua
liberdade. Trata-se de artigos que refletem o trabalho desenvolvido pelo
Programa no estado de Minas Gerais e trazem leituras críticas de temas
que o permeiam ou são transversais.

Mara Alves dos Santos


Diretora do Programa de Acompanhamento de Alternativas Penais

13
14
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

PROGRAMA CEAPA: UMA ESTRATÉGIA DE PREVENÇÃO E


EFETIVAÇÃO DE UMA POLÍTICA DE SEGURANÇA CIDADÃ

Andreza Rafaela Abreu Gomes1

INTRODUÇÃO

H istóricamente, no Brasil a discussão da segurança pública


se manteve distante da sociedade. A literatura especializada traz diver-
sos desafios e questões para serem discutidos em relação à segurança
cidadã e às políticas de prevenção à criminalidade. Segundo o Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), agência da Organi-
zação das Nações Unidas (ONU), a segurança cidadã consiste na proteção
do núcleo básico de direitos do cidadão, o que inclui o direito à vida, o
respeito à integridade física e material da pessoa e seu direito de ter uma
vida digna. Essa segurança objetiva reduzir os índices de criminalidade,
com ações integradas que busquem melhorar a qualidade de vida dos
cidadãos, com ações comunitárias para prevenção dos delitos, uma edu-
cação baseada em valores de convivência pacífica, que busque a coesão
social, dentre outros (PNUD, 2013, p.6).
A Política de Prevenção à Criminalidade, objeto de discussão desse
artigo, faz parte de um contexto de mudanças institucionais na área de
segurança pública em Minas Gerais, realizadas a partir de 2003, com a
criação da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS). Essa Secretaria
tinha como objetivo coordenar as instituições de segurança pública (Polí-

1 Graduada em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva, especialista em


Gestão Estratégica de Responsabilidade Social e Sustentabilidade pelo Centro
Universitário UNA, Gestora de Projetos pela Fundação Getúlio Vargas, Mediadora
de Conflitos pelo Instituto Brasileiro de Mediação de Conflitos, Alumni do Inter-
national Visitors Leadership Program e Mestre em Administração Pública pela
Faculdade João Pinheiro. Atua como Subsecretária de Prevenção à Criminali-
dade do Estado de Minas Gerais e professora da disciplina Sistema de Segurança
Pública e Controle Social no Brasil e no Mundo no curso de pós-graduação em
Criminologia, Política Criminal e Segurança Pública da Faculdade de Talentos
Humanos - FACTHUS.

15
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

cias Civil e Militar, Corpo de Bombeiros e Defensoria Pública); respon-


sabilizar-se pela execução dos sistemas de privação de liberdade (Siste-
ma Prisional e Socioeducativo), e trazer inovações para a perspectiva
tradicional de segurança pública.
Nesse cenário, surge a Política de Prevenção Social à Crimina-
lidade, que parte do entendimento de que é possível o enfrentamento a
violências e criminalidades a partir da implementação de um conjunto
integrado de ações pelo Poder Público, com a participação da sociedade
civil, objetivando a intervenção direta sobre dinâmicas sociais geradoras
de conflitos, violências e processos de criminalização.
Para viabilizar essa política, a Secretaria de Estado de Defe-
sa Social passou a implantar Unidades de Prevenção à Criminalidade
visando à execução dos seguintes programas: “Programa de Controle de
Homicídios - Fica Vivo!” e “Programa Mediação de Conflitos” nas Uni-
dades de base local (denominadas base local por terem abrangência em
determinadas localidades, e não em todo município); “Programa Central
de Acompanhamento de Alternativas Penais - CEAPA” e “Programa de
Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional - PrEsp” nas Unidades
de base municipal (denominadas base municipal por terem abrangência
em todo município) (MINAS GERAIS, 2019).
À vista disso, a Política de Prevenção à Criminalidade de Minas
Gerais se propõe a executar um modelo de segurança pública cidadã
e objetiva contribuir para a prevenção e redução de violências e crimi-
nalidades incidentes sobre determinados territórios e grupos mais vul-
neráveis a esses fenômenos e para o aumento da sensação de segurança
no Estado de Minas Gerais.
Para tanto, estipula entre seus objetivos específicos os seguintes:

- Contribuir para a compreensão, registro, análise e intervenções nos


fatores sociais relacionados a crimes e violências incidentes sobre os ter-
ritórios e público atendidos pelos programas de prevenção social à cri-
minalidade, de forma a qualificar as estratégias de enfrentamento desses
fenômenos;

16
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

- Promover e favorecer articulações intergovernamentais e multisetoriais


para o enfrentamento dos fatores sociais relacionados à incidência de
crimes e violências identificados nos territórios de atuação e nos atendi-
mentos ao público;
- Contribuir para a consolidação de uma política criminal de responsabi-
lização penal alternativa ao cárcere, mediante o efetivo monitoramento e
acompanhamento das Alternativas Penais e da qualificação da execução
penal via ações e projetos de caráter reflexivo e pedagógico, por meio da
atuação do Programa Central de Acompanhamento Alternativas Penais -
CEAPA; (MINAS GERAIS, 2019).
Para fins da Política de Prevenção à Criminalidade, entende-se como gru-
pos mais vulneráveis a violências e criminalidades o seguinte público:
- Jovens e moradores de territórios com maior concentração de crimes de
homicídios;
- Pessoas em cumprimento de penas e medidas alternativas;
- Pessoas egressas do sistema prisional e seus familiares (MINAS GERAIS,
2019).

Trata-se de um público alvo que, além das vulnerabilidades so-


ciais presentes em sua trajetória de vida, como frágil acesso a políticas
de proteção social, saúde, educação, habitação, cultura, esportes e tra-
balho, há um incremento extremamente negativo que é a vivência de pro-
cessos de criminalização, etiquetamento criminal, responsabilização pe-
nal e reprodução de ciclos e trajetórias pelo Sistema de Justiça Criminal
(polícia, judiciário, penalização, sistema prisional e sistema de medidas
socioeducativas).
Aprovadas no 8º Congresso das Nações Unidas em 1990, as Re-
gras de Tóquio, também conhecidas como Regras Mínimas das Nações
Unidas para a Elaboração de Medidas não privativas de Liberdade, sur-
gem com a necessidade de se construir alternativas frente à falência da
pena privativa de liberdade. Segundo Mirabete (2004), tal necessidade
foi gerada também pelo reconhecimento dos altos índices de reincidência
entre os indivíduos egressos dos sistemas prisionais que não obtiveram,
nesses sistemas, a oportunidade de ressocialização.

17
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Nesse sentido, em Minas Gerais, o Programa Central de Acom-


panhamento de Alternativas Penais (CEAPA) tem como o objetivo con-
tribuir para o fortalecimento e consolidação das alternativas à prisão,
pautando ações de responsabilização com liberdade. CEAPA busca criar
alternativas em um contexto de crescimento acentuado da população
carcerária, sendo responsável pela materialização, monitoramento e
acompanhamento das Alternativas Penais em Minas Gerais.
Ao longo desse artigo será realizada a revisão bibliográfica so-
bre segurança cidadã, prevenção à criminalidade, alternativas penais e
a análise do Programa CEAPA na perspectiva de uma política pública de
segurança cidadã.

SEGURANÇA CIDADÃ

“Crime”, segundo o Código Penal Brasileiro, é a infração penal a


que a lei comina pena. O crime é, então, antes de tudo, uma forma de
classificação de fatos sociais, uma qualidade dada a determinadas con-
dutas, uma resposta escolhida pelo Estado para lidar com situações que
entende inadequadas para a vida social num tempo histórico (já que os
sistemas penais sofrem mutações, e o mesmo fato pode ser e deixar de
ser crime em tempos diferentes).
O autor Claus Roxin, em sua obra “Direito Penal: Parte Geral”
(2008), parte do princípio de que o Direito penal detém a missão de prote-
ger os bens jurídicos. A definição de bens jurídicos, para o mesmo autor,
é dada em circunstâncias ou propósitos que são úteis para o indivíduo e
seu desenvolvimento livre no âmbito de um sistema social global estru-
turado com base nessa concepção dos fins ou para o funcionamento do
próprio sistema. Esta definição, ao abordar “circunstâncias e propósitos”
em vez de “interesses”, de uma maneira geral, quer expressar que esse
conceito de bem jurídico abrange tanto os estados previamente encontra-
dos pela Lei quanto os deveres de conformidade com os padrões criados.
A proteção dos bens juridicos, conforme Roxin (2008), não so-
mente é realizada através do direito penal, mas também deve ser buscada

18
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

com os instrumentos de todo o sistema legal. O direito penal é apenas a


última de todas as medidas de proteção que devem ser consideradas, ou
seja, só pode intervir quando outros meios de solução social para o pro-
blema falham - como ações civis, policiais ou regulamentos legais, técni-
cas, sanções não criminais, etc. Por esta razão, a punição é denominada
“ultima ratio de la política social” e sua missão é definida como proteção
subsidiária de direitos jurídicos.
Diante desse conceito, nas últimas décadas, prevenir a ocorrên-
cia do crime por meio da segurança pública tornou-se um desafio da
sociedade. As mudanças sociais e o contexto de maior criminalidade e vi-
olência fizeram surgir diversas teorias e conceitos em segurança pública
com o fim de contribuir para estratégias no enfrentamento do fenômeno.
A busca pelo entendimento das causas da violência e da criminalidade
também gerou visões e teorias das mais diversas, o que consolidou o en-
tendimento de que o fenômeno da violência é multicausal e seu enfrenta-
mento também deve ser da mesma forma.
Frente a essas novas visões, o conceito de segurança pública e
convivência cidadã emergiu fortemente com o abandono de conceitos
como segurança nacional e defesa interna.
Neste contexto, o PNUD, em 1994, relacionou segurança com os
conceitos de “desenvolvimento humano” e “segurança humana”. A segu-
rança conforme o PNUD relaciona-se diretamente ao respeito pela vida
e pela dignidade. O desenvolvimento humano refere-se ao aumento das
categorias e de oportunidades de escolha das pessoas; e a segurança
humana, portanto, inclui o acesso a essas categorias, como segurança
econômica, alimentar, ambiental, pessoal, comunitárias e política.
O Relatório de Desenvolvimento Humano (1994) especificou:

(...) ao se falar em segurança cidadã ou segurança pública, faz-se alusão


a uma dimensão mais ampla do que a mera sobrevivência física. A segu-
rança é uma criação cultural que, hoje em dia, implica uma forma igua-
litária (não hierárquica) de sociabilidade, um âmbito compartilhado livre-
mente por todos. Essa forma de trato civilizado representa o fundamento
para que cada pessoa possa desdobrar sua subjetividade em interação
com os demais. Está em jogo não somente a vida da pessoa individual,
mas também a sociedade. (PNUD, 1994).

19
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

A segurança pública é abordada na sua complexidade. A violên-


cia, os conflitos e outros fatores que se reforçam entre si, são elementos
viciosos que dificultam o desenvolvimento e agravam o fenômeno. Nesse
sentido, a segurança cidadã se apresenta como um “tipo de proteção
circunscrito às ameaças provenientes de atos violentos ou criminosos
e se caracteriza como um aspecto diferenciado e medular da segurança
humana” (PNUD, 2011).
Como efeito desse novo olhar que inclui a segurança cidadã como
elemento fundamental no marco da segurança pública, essas políticas
ampliam seu foco de atuação com vistas ao bem-estar social das pessoas,
respeito à vida e à proteção aos direitos humanos. Nesse sentido, o PNUD
aponta:

Em suma, a segurança cidadã é consequência de uma condição necessária,


embora não suficiente, da segurança humana, que, em última análise, é a
derradeira garantia do desenvolvimento. Por conseguinte, as intervenções
institucionais destinadas a prevenir e controlar o fenômeno do delito e a
violência (políticas de segurança cidadã) se referem às ameaças à segu-
rança provenientes da violência, em particular, da violência cotidiana que
se origina no interior da família ou da comunidade ou da qual padecem os
cidadãos como resultado de situações de risco ou de atividades de orga-
nizações criminosas envolvidas com delitos de maior vulto que podem ser
prevenidos ou enfrentados com políticas locais. (PNUD, 2007, p.5).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publi-


cou, em 2009, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infân-
cia (UNICEF) e o Escritório das Nações Unidas para os Direitos Humanos
(EACDH), o Relatório sobre a Segurança Cidadã e Direitos Humanos. O
Relatório apresentou o marco conceitual da Segurança Cidadã no contex-
to da América Latina, pois, segundo este, na América Latina se utilizam
conceitos diferentes e ampliados para tratar da proteção e garantia dos
direitos humanos (CIDH, 2009, p.7).
O Relatório descreve, ainda, que o modelo “segurança cidadã”
surgiu na América Latina em um contexto de transição de regimes au-
toritários para regimes democráticos que alteraram, então, a forma de
promoção da segurança por esses governos e apresenta essa segurança
como um bem público a ser garantido pelo Estado.
A segurança cidadã visa reduzir índices de criminalidade por meio

20
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

de estratégias e intervenções integrais que são executadas por diversos


atores estatais e sociais e que utilizam ações de prevenção, repressão
e /ou controle. Em especial, as práticas de prevenção à criminalidade
objetivam evitar a ocorrência de fatos e fenômenos violentos que firam
os direitos dos cidadãos, direitos esses considerados de forma ampliada,
como direito à vida, à integridade física e à liberdade. A segurança cidadã
e a prevenção à criminalidade são bens públicos e, portanto, dever do
Estado em promovê-los.

PREVENÇÃO SOCIAL À CRIMINALIDADE

Segundo Crawford (1998), o termo prevenção social ao crime


também pode ser referenciado pelo termo “segurança comunitária”, vis-
to que este reflete uma abordagem mais ampla da prevenção ao crime
e, portanto, sua evolução. Além disso, o termo “segurança comunitária”
sugere uma ruptura com os pressupostos tradicionais sobre a prevenção
do crime como uma estreita especialidade. Os defensores de tal distinção
terminológica argumentam que o crime está intrinsecamente relacionado
a problemas sociais mais amplos e que, portanto, raramente tem uma
simples ou única causa.
Crawford (1998) apresenta algumas classificações para prevenção
à criminalidade baseando-se principalmente em duas questões que o au-
tor apresenta:

1. Qual intervenção ou atividade é proposta?


2. Para quem ou o quê está direcionado?

O primeiro questionamento se relaciona à natureza da própria


intervenção e ao processo que se pretende alterar. E a segunda é o pú-
blico “alvo” da intervenção proposta. Nesse sentido, Crawford (1998)
cita a analogia apresentada na década de 70 por dois criminologistas
canadenses, Brantingham e Faust (1976). Os mesmos, inspirados pela
medicina e as ciências naturais, distinguiram a prevenção à criminali-

21
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

dade como primária, secundária e terciária, conforme o público-alvo ao


qual a ação se direciona. A prevenção primária é direcionada à população
em geral e pode envolver intervenções sociais e físicas (estruturais). Es-
sas intervenções visam afetar fatores que podem favorecer a ocorrência
do crime antes do início do problema. Já a prevenção secundária envolve
“públicos de risco” ou “potenciais ofensores”. Esse grupo pode ser iden-
tificado, segundo o autor, pela idade do grupo, pelo local onde residem,
pelo estilo de vida, pela situação socioeconômica ou outra característica
de risco. A prevenção terciária inclui estratégias direcionadas a ofensores
conhecidos a fim de reduzir outros crimes ou danos associados a esses.
A classificação de Brantingham e Faust (1976) acima explicitada,
para Crawford (1998), é insuficiente para tipificar a natureza da inter-
venção preventiva em si. O autor apresenta, então, a construção de alter-
nativas de intervenção, conforme o quadro a seguir:

Primária Secundária Terciária


Orientado para a Campanhas de Medidas de prevenção Iniciativas voltadas
vítima conscientização e vida para grupos de risco, para vítimas
fora do crime fatores de risco e recorrentes, apoio às
avaliação vítimas, compensação e
reparação.
Orientado para a Fomento à vigilância Direcionado para Direcionado para
comunidade ou formal e natural, grupos e locais de risco comunidades com altos
vizinhança vigilância à vizinhança e e para comunidades em níveis de crime, "Zonas
outras, desenho conflito, instalações de quentes". Prevenção
arquitetônico e lazer e mediação de como regeneração
planejamento ambiental. conflitos. urbana.
Orientado para o Programas de cidadania, Trabalho com aqueles Reabilitação,
ofensor educação e socialização, que apresentam risco confrontando o
endurecimento do alvo, de infringir, em comportamento do
aumentando o esforço, os particular jovens, os infrator, cuidados
riscos e reduzindo os desempregados etc. posteriores e
benefícios do crime. programas de desvios.
!

Conforme essa classificação do autor, uma introdução de inter-

22
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

venções orientadas para o ofensor pode envolver diferentes estratégias de


educação, socialização e reabilitação voltadas para atores que apresen-
tam risco de infringir ou mesmo com indivíduos que já cometeram atos
infracionais e/ou crimes.
A outra classificação apresentada por Crawford (1998), e que me-
lhor distingue os tipos de prevenção à criminalidade, diferencia a nature-
za dos processos de intervenção entre prevenção social e situacional.
A prevenção social do crime o considera como o resultado de um
complexo processo social, econômico, cultural, de condições e privações
de vida que está por trás das causas do comportamento do ofensor. Já a
prevenção situacional considera o crime uma questão de oportunidade
e, portanto, pode ser prevenido por meio de intervenções físicas e estru-
turais no ambiente.
O autor apresenta duas subcategorias de prevenção social à cri-
minalidade: a desenvolvimentista e a comunitária. A primeira subcatego-
ria se relaciona às intervenções voltadas para afetar possíveis fatores de
risco que favorecem o cometimento de delitos. A segunda subcategoria
se relaciona às alterações nas condições sociais que podem influenciar o
surgimento de infratores na comunidade, bem como a capacidade desta
comunidade de prevenir o crime.
Existe uma variedade considerável de teorias baseadas em ideias
sociológicas, psicológicas e mesmo fisiológicas para explicar a ausência
ou presença de fatores determinantes para os indivíduos cumprirem a lei.
Adam Crawford cita duas abordagens nesse sentido: a “teoria do controle
social” e a teoria da “participação em conformidade”. A teoria do controle
social de Hirschi (1969) apud Crawford (1998) visa explicar por que as
pessoas mais se conformam com a lei ao invés de cometerem crimes.
Segundo Hirschi (1969), o controle social exercido pela sociedade sobre
as pessoas as desencoraja de cometerem crimes e cita quatro variáveis
desse controle social: apego, compromisso, envolvimento e crenças. Ele
destaca as duas principais instituições sociais às quais os indivíduos
criam laços: a escola e a família.
Crawford (1998) também cita Gottfredson e Hirschi (1990), que

23
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

argumentaram a existência de autocontrole individual internalizado des-


de cedo nas pessoas. A ausência de autocontrole seria um indicativo de
propensão das pessoas em cometer crimes. As pessoas que apresentam
autocontrole baixo e comportamento antissocial indicam que sua socia-
lização foi defeituosa e se enquadram no grupo de risco de possíveis ofen-
sores. Novamente a família e a escola são apontadas como as principais
instituições socializadoras. Investir nessas instituições e reforçá-las seri-
am medidas de prevenção social à criminalidade.
Adam Crawford (1998) apresenta críticas a essa teoria do controle
social e argumenta que tal teoria só nos permite culpar as instituições de
socialização imediata - a escola e a família, sem examinar criticamente o
quadro social e cultural mais amplo em que as relações estão estabeleci-
das. O mesmo apresenta, também, a perspectiva de Merton (1938) como
uma premissa teórica alternativa à do controle, denominada “teoria da
tensão”.
Merton (1938) enfatiza a estrutura de oportunidade econômica
em que os indivíduos se acham tentando viver as expectativas, valores
e crenças com que a socialização inicial lhes proporcionou. A teoria da
tensão que Merton (1938) apresenta surge como resultado de um des-
compasso entre as aspirações culturalmente definidas que são ofereci-
das a todos e as limitadas oportunidades legítimas para cumpi-las. A
criminalidade decorreria da alienação e da falta de oportunidades para
determinadas pessoas.
Todas essas teorias apresentadas por Crawford apontam a pre-
venção à criminalidade inclinada a desenvolver estratégias de intervenção
junto a grupos e pessoas marginalizadas.

ALTERNATIVAS PENAIS E O PROGRAMA CEAPA - CENTRAL DE


ACOMPANHAMENTO DE ALTERNATIVAS PENAIS

O reconhecimento mundial da falência da pena privativa de


liberdade levou penalistas e organizações internacionais a procurarem
soluções alternativas para infratores que não ameacem a paz e a segu-

24
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

rança da sociedade. Nesse sentido, segundo Mirabete (2004), as penas


restritivas de liberdade seriam priorizadas aos delitos de maior gravidade
ou quando os antecedentes, a personalidade e a conduta social do in-
divíduo indicarem essa necessária medida.
Nesse sentido, orientam-se as legislações e os projetos legislativos mo-
dernos, instituindo ou reforçando certos substitutivos penais à pena pri--
vativa de liberdade: substituição por multa das penas até seis meses e
admoestação e repressão judiciais (Alemanha); trabalho em favor de uma
causa em comum (Inglaterra); prisão de fim de semana (Bélgica); inter-
dições do exercício de cargo público ou de profissão e de licença para diri-
gir veículos e exílio local (Hungria); limitação de liberdade com trabalho a
favor da comunidade (Portugal); prisão de fim de semana, substituição por
multa e penas privativas de direitos (Espanha); trabalhos correcionais sem
privação de liberdade (URSS). As propostas mais aceitas, são, portanto, a
elevação das interdições de direitos à categoria principal, a substituição da
pena privativa de liberdade de curta duração por multa e a prestação de
serviços sem privação de liberdade. (MIRABETE, 2004, p.268).

No Brasil, a Lei nº 7209/84 destacou o sistema de penas alter-


nativas permitindo ao judiciário diversas possibilidades na aplicação das
sanções. Essa inovação ocasionou mudanças de artigos do Código Penal
(CP) efetuadas pela Lei nº 9.714/98, que passou a prever novas espécies
de penas restritivas e ampliou as possibilidades de substituição da pena
privativa de liberdade de caráter geral, em vez de propor a alternatividade
apenas para certos delitos na Parte Especial do CP. Conforme previsto no
art. 3º da Lei 7.209/84, no prazo de um ano, a contar da vigência da Lei,
a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios deveriam adotar
medidas para a efetivação das penas restritivas de direitos, apresentando
ainda a possibilidade de concessão da suspensão condicional da pena
nas comarcas em que não fosse possível a execução das penas. A Lei nº
9.714/98 reafirma essa necessidade de adoção, pelos estados, de medi-
das restritivas de direitos devendo se evitar a concessão de suspensão
condicional da pena.
Algumas distinções são necessárias para a compreensão das al-
ternativas penais:

• Medidas alternativas: constitui toda e qualquer medida que vise im-


pedir a imposição de pena privativade liberdade. Não são penas e sim

25
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

soluções processuais ou institutos que visem impedir o encarceramento


ou mesmo paralisar a persecução penal, sendo, portanto, diversos das
penas alternativas.
• Penas Alternativas: constitui toda e qualquer ação sancionatória ofere-
cida pela legislação penal para evitar a aplicação de pena privativa de
liberdade. Diferente das medidas alternativas, são efetivamente penas, as
quais impedem a privação da liberdade. Compreendem a pena de multa
e as penas restritivas de direitos.
• Alternativas penais: constitui todas as opções legislativas que visem a
não aplicação de penas privativas de liberdade. Portanto, as alternativas
penais abrangem as medidas alternativas e as penas alternativas.

O Código Penal contempla algumas alternativas penais:


a) Pena pecuniária;
b) Prestação de serviço à comunidade;
c) Limitação de fim de semana;
d) Interdições temporárias de direito;
e) Prestação pecuniária em favor da vítima;
f) Prestação pecuniária inominada;
g) Perda de bens e valores.

Nessa perspectiva, o Programa Central de Acompanhamento de


Alternativas Penais (CEAPA) tem como objetivo contribuir para o forta-
lecimento e consolidação das alternativas à prisão no Estado de Minas
Gerais, pautando ações de responsabilização com liberdade. É uma ação
desenvolvida pela Subsecretaria de Políticas de Prevenção à Criminali-
dade, parte integrante da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança
Pública.
Nos municípios, o CEAPA se estrutura implantando Centros In-
tegrados de Alternativas Penais2 compostos por profissionais com for-

2 Na maioria dos municípios, o CEAPA atua na mesma estrutura do Programa


de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional em Unidades de Prevenção
denominadas Centros de Alternativas Penais e Inclusão Social de Egressos do
Sistema Prisional.

26
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

mação em Direito, Psicologia e Serviço Social, que trabalham de forma


interdisciplinar. A atuação do Programa se dá numa perspectiva inter-
setorial, que ocorre em colaboração com o Poder Judiciário, Ministério
Público e Defensoria Pública, contando sempre com a parceria das Pre-
feituras Municipais, Terceiro Setor e Sociedade Civil.
O CEAPA busca criar alternativas em um contexto de crescimen-
to acentuado da população carcerária, sendo responsável pela materia-
lização, monitoramento e acompanhamento das Alternativas Penais. As
modalidades de Alternativas Penais acompanhadas pelo Programa são:

I - Prestação de Serviços à Comunidade;


II - Projetos Temáticos de Execução de Alternativas Penais por tipo de
delito cometido;
III - Ações de Responsabilização de homens processados e julgados no
âmbito da Lei Maria da Penha;
IV - Projetos de acompanhamento de Medidas Cautelares.
V - Projetos e práticas restaurativas.

O Programa, segundo MINAS GERAIS (2019), tem como objetivos


específicos:

• Aumentar a confiabilidade dos atores do Sistema de Justiça Criminal


para aplicação das Alternativas Penais nos tipos penais cabíveis.
• Constituir rede de instituições parceiras corresponsáveis pela efetiva
execução das Alternativas Penais.
• Elevar os índices de cumprimento das alternativas penais
• Qualificar e ampliar as possibilidades de cumprimento da prestação de
serviços à comunidade, como forma de promover a participação social e
o protagonismo do cumpridor na comunidade.
• Desenvolver abordagens especializadas para determinados tipos penais.
• Promover e consolidar projetos e práticas de Justiça Restaurativa.
• Ampliar as possibilidades de intervenção em conflitos e violências via
medidas cautelares.

27
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

A “segurança cidadã”, abordada nesse artigo, se refere à proteção


de pessoas e grupos sociais com uma intervenção integral, o que, segun-
do o CIDH, resultaria em ações de prevenção e controle de diferentes
naturezas e que contariam com a participação do Estado e da sociedade
civil (CIDH, 2009). Portanto, explicita a comissão:
(...) o conceito de segurança deve colocar maior ênfase no desenvolvimento
de trabalhos de prevenção e controle dos fatores que geram violência e a
insegurança, ao invés de tarefas meramente repressivas ou reativas per-
ante fatos consumados. (CIDH, 2009, p.7-8).

O Programa CEAPA, enquanto política pública de prevenção à


criminalidade, se localiza em um cenário marcado por acentuados pro-
cessos de criminalização e violências. A indução e o apoio do Estado para
a constituição de coletivos capazes de desencadear discussões em tor-
no dos problemas de violência e criminalidade são fundamentais. Dessa
forma, o Programa também se propõe a identificar os fatores de risco
prioritários percebidos nos acompanhamentos dos indivíduos atendidos
nas Centrais de Alternativas Penais, bem como mobilizar as redes de
proteção social municipais e locais, compostas pelos equipamentos pú-
blicos, órgãos de segurança, lideranças comunitárias e outros que pos-
sam contribuir nas reduções de vulnerabilidades, no acesso aos direitos
e garantias fundamentais e no fomento a fatores de proteção.

CONCLUSÃO

O conceito de segurança cidadã, conforme visto no início do ar-


tigo, está estritamente ligado a valores mais ampliados como promoção
de segurança e desenvolvimento humano, proteção e acesso a direitos,
redução de fatores de risco, fomento a fatores de proteção e promoção de
cidadania, com o fim de intervir em trajetórias e alterar contextos violen-
tos.
O Programa CEAPA se propõe, por meio da responsabilização em
liberdade e do acompanhamento dos cumpridores, a promover inter-
venções efetivas que causem mudanças de trajetória e contribuam para

28
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

um reposicionamento dos indivíduos que eventualmente tenham pratica-


do delitos.
O Programa, inserido em uma política de prevenção à criminali-
dade, é necessariamente uma política de segurança pública que, partin-
do da percepção de fenômenos multicausais (fatores de risco) geradores
de conflitos e violências, buscará, a partir de soluções plurais (fatores de
proteção), a desconstrução dos processos de criminalização.
Esta perspectiva significa uma nova abordagem da política de
segurança pública historicamente desenvolvida no Brasil, uma vez que
amplia o seu foco de atuação, obrigando-se a dialogar com outros sa-
beres, questionar o seu objeto, ampliar as possibilidades de respostas ao
fenômeno da criminalidade. Por isso, essas estratégias de prevenção são
o “calcanhar-de-aquiles” de uma política de segurança pública, porque
fomenta “de dentro” do Sistema de Segurança pública políticas que abor-
dam de forma diferenciada a criminalidade.
A Política Estadual de Prevenção à Criminalidade tem o desafio de
construir articulação entre instituições e desenvolver programas de pre-
venção a serem implantados em regiões do Estado de Minas Gerais onde
a qualidade de vida está ameaçada pelos conflitos gerados pela violência
urbana de forma a contribuir com a efetiva diminuição dos índices de
criminalidade e, consequentemente, o aumento da segurança pública e
da qualidade de vida da população de Minas Gerais.
Dentre esses programas, o CEAPA contribui efetivamente e re-
presenta uma nova concepção sobre a atuação da política de segurança
pública do Estado de Minas Gerais, pautada no conceito de “segurança
cidadã”. O Programa considera o crime como o resultado de um complexo
processo social, econômico, cultural, de condições e privações de vida
que está por trás das causas do comportamento do ofensor.
Historicamente, o modelo hegemônico das políticas de segurança
pública desconsidera a existência de fatores de risco e foca suas inter-
venções na repressão ao indivíduo etiquetado como “criminoso” “delin-
quente” e “marginal”. Ignoram-se as condições sociais, econômicas e
políticas e responsabiliza-se, exclusivamente, o indivíduo pela existência

29
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

do fenômeno da criminalidade. A pena privativa de liberdade é reflexo


desse modelo.
Na formulação das novas propostas de políticas públicas de se-
gurança e nos debates em torno dos fatores determinantes da crimina-
lidade e das estratégias de prevenção, a comunidade vem ocupando um
lugar de destaque. Atualmente, a ideia de que os cidadãos têm um papel
importante a desempenhar na manutenção da segurança de suas comu-
nidades é foco central dos modelos de prevenção à criminalidade. Estas
propostas defendem que os cidadãos compartilham, com outros atores
das agências públicas na esfera da defesa social, a responsabilidade pela
segurança pública, sendo, assim, coprodutores da mesma.
Enquanto o modelo tradicional de segurança pública, como objeto
de ações exclusivamente repressivas, se esgota na atuação de agências
policiais, do sistema penal e do sistema de justiça formal, as medidas
de caráter preventivo devem levar em consideração a atuação de uma
multiplicidade de atores, entidades e instituições, em especial, aquelas
de caráter local. Políticas dessa natureza visam diminuir a ocorrência de
crimes e violência, e não exclusivamente apresentar respostas rápidas a
eles.
O que ocorre, no entanto, é que a atuação de múltiplos atores
não se dá de modo espontâneo. O Estado tem papel indutor importante
na constituição de grupos, redes ou associações locais para a gestão dos
problemas de segurança pública.
Ressalta-se, por fim, que o Programa Ceapa desenvolve estraté-
gias de segurança cidadã e prevenção à criminalidade eficazes, pois são
realizadas em um nível ampliado considerando os diversos fatores (de
risco e proteção) vivenciados pelos indivíduos, bem como intervindo de
forma a fomentar novas perspectivas, novas escolhas e novas trajetórias
que contribuam para o não acometimento de novos crimes.

30
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/
id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf

CAPEZ. Fernando. Curso de direito penal, volume 1: parte geral 9arts. 1º


a 1210) / Fernando Capez. - 11. Ed. E atual. - São Paulo: Saraiva, 2007.

CRAWFORD, Adam. Crime Prevention and Community Safety. New York:


Longman, 1998.

CRAWFORD, Adam. The Local Governance of Crime: Appeals to Commu-


nity and Partnerships. Oxford: Clarendon Press, 1997.

FARRINGTON, David P. Developmental criminology and risk-focused pre-


vention. In MAGUIRE et al. The Oxford handbook of Criminology. 3rd. ed.
NY; Oxford U. P, 2002.

Guia para Prevenção à Criminalidade e Violências. 2005. Ministério da


Justiça. Disponível em: file:///C:/Users/CELSO/Downloads/guiapre-
ven__o2005.pdf

GODINHO, Letícia. Depois do 13° tiro. Segurança cidadã, democracia e


os impasses do Policiamento comunitário no Brasil. Tese (Pós-graduação)
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.

Lei Delegada 56 - Resolução 5210 de 12 de Dezembro de 2002.

MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais.


Portfólio da Política Estadual de Prevenção à Criminalidade de Minas
Gerais. Documento interno da Secretaria. Belo Horizonte, 2019.

31
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

MINAS GERAIS. Governo do Estado. Plano Estadual de Segurança Públi-


ca. Belo Horizonte, 2016.

MIRABETTE. Julio Fabbrini, Manual de Direito Penal / Julio Fabbrini


Mirabete. - 21. Ed. - São Paulo: Atlas, 2004.

PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO


(PNUD). Rumo a uma política integral de segurança e convivência cidadã
na América Latina. Marco conceitual de interpretação-ação. Brasília,
2007.

PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO


(PNUD). Informe Regional de Desarollo Humano 2013-2014. Seguridade
Ciudadana com Rostro Humano: Diagnóstico y Propuestas para América
Latina. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. NY, Esta-
dos Unidos, 2013.

PREVENÇÃO SOCIAL À CRIMINALIDADE. A experiência de Minas Gerais.


Fabiana de Lima Leite (organização et al). Belo Horizonte. Produção a
partir do Convênio SENASP MJ/251/2007. 2009.

SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Para Ampliar o


Cânone Democrático. In: Boaventura de Sousa Santos. (Org.). Democra-
tizar a Democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. 2. ed. Traducción de la 2ª


edición alemana y notas por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y
Garcia Conlledo y Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas Ediciones,
2008.

ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de di-


reito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-
nais, 2004.

32
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

PLANO DE IMPLEMENTAÇÃO DE CENTROS INTEGRADOS DE


ALTERNATIVAS PENAIS NO ESTADO DE MINAS GERAIS:
ESTRATÉGIA, CONCEPÇÃO E PERSPECTIVAS

Lucas Pereira de Miranda1


Mara Alves dos Santos2

1. INTRODUÇÃO

1.1. O PROGRAMA CENTRAL DE ACOMPANHAMENTO DE ALTERNA-


TIVAS PENAIS DE MINAS GERAIS

O Programa CEAPA/MG é um dos programas que compõe a


Política Estadual de Prevenção à Criminalidade de Minas Gerais, no âm-
bito da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública. Tem como
objetivo contribuir para o fortalecimento e consolidação das alternativas
penais no Estado de Minas Gerais, pautando ações de responsabilização
com liberdade. Foi implantado em 2002 e possui atualmente dezesseis
Centros Integrados de Alternativas Penais (Centros)3 nos municípios de
Belo Horizonte, Betim, Contagem, Ibirité, Ribeirão das Neves, Santa Lu-
zia, Vespasiano, Araguari, Divinópolis, Governador Valadares, Ipatinga,
Juiz de Fora, Montes Claros, Sete Lagoas, Uberaba e Uberlândia.
Alternativas Penais são “mecanismos de intervenção em conflitos e violên-
cias, diversos do encarceramento (...) orientados para a restauração das
relações e promoção da cultura de paz, a partir da responsabilização com
dignidade, autonomia e liberdade. (Leite. 2015, p.39)

1 Advogado. Atua como Coordenador Estadual do Programa Justiça Presente /


MG do Conselho Nacional de Justiça e do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento. Foi Superintendente de Políticas Penais de Prevenção à Cri-
minalidade, parte integrante da Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade
(Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública/ Governo do Estado de
Minas Gerais).
2 Psicóloga. Atua como Diretora de Alternativas Penais, parte integrante da Sub-
secretaria de Prevenção à Criminalidade (Secretaria de Estado de Justiça e Segu-
rança Pública / Governo do Estado de Minas Gerais).
3 Denominação para os equipamentos por meio dos quais são implementados os
Serviços Públicos de acompanhamento de Alternativas Penais em Minas Gerais.

33
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Neste momento, apresenta-se de forma sucinta, alguns marcos


importantes no processo de desenvolvimento do Programa CEAPA e da
política estadual de alternativas penais. Inicialmente, a partir da ex-
periência dos primeiros Centros, o Programa CEAPA/MG desenvolveu
metodologia de trabalho que envolveu fortemente as redes sociais dos
municípios, focando no desenvolvimento e qualificação da Prestação de
Serviços à Comunidade como forma de promover a participação social e
o protagonismo da pessoa em alternativa penal na comunidade.
Inspirado pela experiência do Juizado Especial Criminal4 de Belo
Horizonte e outras práticas desenvolvidas nos demais Estados brasile-
iros, o Programa CEAPA passou a formular e desenvolver Projetos de
Execução de Alternativas Penais Temáticos5, seja por meio de parcerias
ou processos de contração junto a Universidades e Organizações não
Governamentais (ONGs)6, seja pela execução diretas das equipes dos
Centros. Vários projetos foram desenvolvidos a partir de abordagens com
intervenções grupais de caráter reflexivo e educativo, nos delitos e con-
textos sociais relacionados ao uso de drogas, violência doméstica, meio
ambiente, trânsito e porte ilegal de armas7.
O Programa CEAPA então fortaleceu intervenções no campo das
penas e medidas alternativas. O advento, na legislação brasileira, de no-
vos institutos processuais penais e a qualificação das discussões em tor-

4 As primeiras experiências foram em parceira com o Instituto Albam e a Terra


da Sobriedade.
5 Ou Projetos Temáticos. Tratam-se de metodologias que se utilizam de grupos
reflexivos como forme de cumprimento de alternativa penal aplicada pelo Poder
Judiciário.
6 Destacamos aqui algumas entidades que foram fundamentais no desenvolvi-
mento de metodologias nesse campo: Albam, Centro de Recuperação da De-
pendência Química (CREDEQ), Núcleo Cultural de Vivência e Convivência Hu-
mana (EKÇA), Centro de Educação Integral (CEI), Terceira Margem, Associação
Brasileira Comunitária para a Prevenção do Abuso de Drogas (Abraço), NHtrans
(Projeto de Extensão da Faculdade Newton Paiva), Reviver Comunidade Terapêu-
tica, Associação de Acolhimento aos Dependentes Químicos e Familiares (ADQF),
Associação Brasileira dos Amigos do Noivo (ABAN), Casa Viva, Movimento In-
tegrado de Saúde Comunitária (MISC), Missão Sal da Terra, NEXUS, Instituto
Mineiro de Psicodrama (IMPSI), SOS Mulher de Uberlândia, Centro de Ensino
Técnico (CENTEC), entre outras.
7 Projeto desenvolvido pela equipe do Centro de Montes Claros em parceria com
diversos atores do município.

34
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

no do tema levaram à redefinição do escopo dessa política pública, que


passou a ser nomeada de política de alternativas penais. Isso também al-
terou o escopo de execução dos Centros de Alternativas Penais em Minas
Gerais.

A política de alternativas penais é caracterizada por um conjunto de pla-


nos, ações governamentais, programas e projetos no campo do sistema
de justiça criminal que visam enfrentar os problemas do encarceramento,
bem como do controle punitivo. A Política de alternativas penais abrange:I
- penas restritivas de direitos; II - transação penal e suspensão condicional
do processo; III - suspensão condicional da pena privativa de liberdade; IV
- conciliação, mediação e técnicas de justiça restaurativa; V - medidas cau-
telares diversas da prisão; e VI - medidas protetivas de urgência. (LEITE,
2015, p.21)

Com o advento da lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha, os casos


de violência doméstica contra mulher deixaram de ser julgados no âmbi-
to do Juizado Especial Criminal e passaram para a competência de Varas
Especializadas8. Nesse processo alguns Centros construíram fluxos com
essas Varas e desenvolveram ações de responsabilização de homens em
situação de violência doméstica, enquanto medida protetiva de urgência
ou como condição da suspensão condicional da pena (SURSIS).

As medidas Protetivas são institutos jurídicos previstos na Lei Maria da


Penha que podem ser aplicadas a qualquer momento de um processo
civil ou criminal, e que visam (a) garantir a integridade física e os direitos
da mulher e de seus familiares, contemplando o atendimento psicológi-
co, jurídico e social, assim como (b) medidas que obrigam o agressor, en-
tre elas medidas de prevenção e educação. (PASINATO, 2010, p. 220).
(Essas medidas integram o escopo da política de alternativas penais.)

No ano de 2014, o Programa CEAPA desenvolveu um Projeto


Piloto de Justiça Restaurativa em Belo horizonte9, em parceria com o
Ministério da Justiça/Departamento Penitenciário Nacional e Juizado
Especial Criminal. As contratações e capacitações da equipe técnica,
da rede parceira, assim como o processo de construção do plano de tra
balho de forma articulada entre JECRIM, Ministério Público, Defensoria

8 Em diversas comarcas estes casos ainda são distribuídos para varas criminais
com outras competências.
9 A partir das experiências no setor psicossocial do Juizado Especial Criminal,
que continua realizando praticas restaurativas no âmbito da lei 9.099/95.

35
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Pública e outros diversos atores, ampliou horizontes para execução de


práticas restaurativas possibilitando respostas mais qualificadas para a
resolução dos conflitos que chegavam ao Sistema de Justiça Criminal.

A Justiça Restaurativa pode ser conceituada como um procedimento em


que as partes envolvidas em um conflito e, quando apropriado, outras pes-
soas e comunidades afetadas pelo ocorrido, são os atores centrais no de-
bate acerca de soluções para reparação dos danos sofridos, traumas e
perdas; promovendo responsabilização e reconstrução das relações sociais
(Pinto, 2005, p.20).

Alguns resultados alcançados demonstraram que o foco no con-


flito em detrimento da resolução processual, no momento das audiências
preliminares, pode produzir intervenções não punitivas mais interes-
santes do que a mera transação penal. Além disso, a retomada do pro-
tagonismo pelas partes no âmbito dos conflitos judicializados na esfera
penal pode ter maior “probabilidade de ocorrer na medida em que as
partes forem (a) suficientemente orientadas e apoiadas em relação a suas
garantias jurídicas individuais e dos possíveis destinos do processo pe-
nal e seu limite, (b) voluntariamente se posicionarem por um meio mais
participativo de decisão, que considere às necessidades de todos os en-
volvidos, (c) apoiados por profissionais sensibilizados pelo conflito e suas
amplitudes, e que dessa forma extrapolarem a formação exclusivamente
jurídica; (d) eventualmente apoiados por familiares, comunidades e ou-
tros atores da rede de proteção social; (e) em um ambiente onde possam
compreender os atores envolvidos e ser compreendidos” (Miranda, 2015,
p.33).
Em 2015, outro passo importante foi implementado, o Centro de
Belo Horizonte instaurou um fluxo junto a Diretoria de Atendimento ao
Flagranteado (órgão da Subsecretaria de Administração Prisional - SUA-
PI/SEDS), por meio do qual os Juízes responsáveis pelas Audiências de
Custódia, após receberem determinados casos, comprometiam-se com
o encaminhamento de seus autores para a participação em Projetos de
Execução de Alternativas Penais, a partir da avaliação da equipe técnica
do Programa CEAPA. Nos anos seguintes foram construídos fluxos em
outros municípios junto ao Sistema de Justiça local para encaminha-

36
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

mento de pessoas via medidas cautelares.

2. A PERSPECTIVA DOS CENTROS INTEGRADOS DE ALTERNATIVAS


PENAIS (CIAPS)

Os Centros Integrados de Alternativas Penais (CIAPs) é uma


variação terminológica da perspectiva de Gestão proposta pelo Departa-
mento Penitenciário Nacional10 (DEPEN/Ministério da Justiça), que visa
reforçar os serviços de fiscalização e acompanhamento de alternativas
penais, incluindo a adoção de diversas metodologias substitutivas da
prisão em todas as fases do processo penal (Leite, 2015, p.18).
Contudo, as pesquisas e as evidências empíricas demonstram que
a simples oferta de alternativas penais ao Sistema de Justiça Criminal
tende apenas a reforçar o controle punitivo para públicos não alcançados
pela privação de liberdade. Nesse sentido, o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD) e o Departamento Penitenciário Nacio-
nal (DEPEN), recomendam, enquanto modelo de gestão em alternativas
penais, os seguintes postulados: (1) Intervenção penal mínima, desen-
carceradora e restaurativa; (2) dignidade, liberdade e protagonismo em
alternativas penais; (3) ação integrada entre entes federativos, sistema de
justiça e comunidade para desencarceramento. (Leite, 2015).
A partir desses postulados, é necessário analisar as possibili-
dades de aplicação de alternativas penais numa perspectiva crítica, para
pensarmos as intervenções possíveis no âmbito de atuação dos CIAPs.
Podemos pensar em quatro momentos de aplicação de alternativas pe-
nais no Sistema de Justiça:

1) Alternativas penais enquanto novos modelos de punição substitu-


tivas da prisão (as penas alternativas). A substituição da pena privativa
de liberdade em sentença definitiva por penas restritivas de direito (ou pela
suspensão condicional da pena) deverá ser estimulada nos casos legal-

10 Denominado pelo MJ de Centrais, e não Centros. Adaptamos a terminologia a


já aplicada no Estado de Minas Gerais.

37
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

mente cabíveis, pela sua capacidade de produzir efeitos mais positivos no


campo da responsabilização.

2) Alternativas Penais enquanto mecanismos horizontais e autocom-


positivos que incentivam soluções participativas e ajustadas à rea-
lidade das partes envolvidas. As práticas de composição civil de danos
precisam ser incentivadas como forma de resolução dos conflitos penais, e
quanto mais representativos no âmbito da Justiça Penal melhor11. Contudo,
é um desafio adaptar essas práticas na legislação penal brasileira. A conci-
liação é a forma mais usada atualmente de composição, especialmente no
âmbito da lei dos Juizados Especiais Criminais (9.099/95). Entende-se
pela necessidade de investimento nesse campo das metodologias de Me-
diação de Conflitos e Justiça Restaurativa que, por terem maior poten-
cial de promover protagonismo das partes e de envolver outros atores,
possibilitam uma visão mais abrangente do conflito e, dessa forma,
criam novas possibilidades de restaurar as relações sociais e o dano.

3) Alternativas Penais enquanto medidas que substituem o processo pe-


nal (as medidas alternativas). Aplicável no âmbito dos crimes de menor
e médio potencial ofensivo, por meio dos institutos da transação penal
e substituição condicional do processo. Esses institutos possibilitam re-
duzir o tempo de resposta do Sistema de Justiça frente a determinados
conflitos penais, promovendo abordagens mais ajustadas. Contudo, para
uma aplicação adequada do ponto de vista das garantias jurídicas e da
política de alternativas penais, é preciso considerar os seguintes pontos:
(1) a tentativa anterior de composição civil de danos e, apenas diante
dessa impossibilidade, nos casos (2) onde houver suficientes indícios de

11 Segundo Leite (2015, p 19) “as práticas de mediação de conflitos ou justiça


restaurativa desenvolvidas fora do sistema penal, não serão consideradas dentro
do escopo desta política em função do seu caráter extrapenal, mas indicam que
os conflitos sociais podem e devem se resolver fora de qualquer instância crim-
inal, em soluções estabelecidas entre os envolvidos. Portanto, programas com
esta natureza devem ser fomentados por instâncias de governo, pelo sistema de
justiça não punitivo ou organizações da sociedade civil para fazer conter o con-
trole penal”.

38
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

autoria que consubstanciem a oferta de uma denúncia, (3) não re-


conhecido dentro dos critérios que amparam a utilização do
princípio da insignificância (crimes de bagatela); (4) garantido o di-
reito de assistência jurídica do acusado e a sua (5) voluntariedade
frente a proposta de acordo apresentada pelo Ministério Público.

4) Alternativas Penais enquanto medidas substitutivas da prisão preventiva


que podem ser aplicadas ao longo de um processo penal para garantir a regu-
larinstruçãodoprocesso(medidascautelares)eaintegridadedasvítimasnos
conflitos amparados pela Lei Maria da Penha (medidas protetivas de
urgência). O que indica a necessidade de aplicação de medidas cautelares ou
protetivas nesses casos é a existência fundamentada de risco para o processo
ou para as vítimas, e a oferta de alternativas penais nesse campo precisa propor
outras possibilidades de minimização desse risco diversas da prisão, da moni-
toração eletrônica ou do recolhimento domiciliar. Diante disso, propõe a criação
de projetos nesse campo, de forma a dar suporte ao processo de implemen-
tação das audiências de custódia pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Re-
solução 796/2015).

3. O ESCOPO DE ATUAÇÃO DO PROGRAMA CEAPA/MG NA PER-


SPECTIVA DOS CIAPS

Diante da abrangência da Política de Alternativas Penais optou-se


pela ampliação do escopo das alternativas penais sem descaracterizar a
lógica de atuação construída no Programa CEAPA/MG, pautada no aco-
lhimento, acompanhamento técnico e no fortalecimento do protagonismo
das pessoas em alternativas penais; apostando sempre na interdiscipli-
naridade e intersetorialidade.
Dessa forma, as modalidades de acompanhamento de Alterna-
tivas Penais acompanhadas pelo Programa CEAPA, na perspectiva dos
CIAPs em Minas Gerais são:

I - Prestação de Serviços à Comunidade;

39
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

II - Projetos de Execução de Alternativas Penais por tipo de delito co-


metido;
III - Ações de responsanbilização de homens processados e julgados no
âmbito da Lei Maria da Penha;
IV - Projetos no âmbito das Medidas Cautelares;
V - Projetos e práticas de Justiça Restaurativa.

Estas modalidades de alternativas penais acompanhadas têm,


como elementos essenciais, pelo menos um dos seguintes: (A) parti-
cipação da comunidade na execução e direcionamento do cumprimen-
to, (B) reparação de danos; e (C) estímulo a ampliação do repertório de
respostas das pessoas em alternativas penais, buscando ampliar os me-
canismos de proteção social e de prevenção à criminalidade.

4. O PLANEJAMENTO DO PROGRAMA CEAPA PARA ARTICULAÇÃO


DOS CIAPS E FORTALECIMENTO DA POLÍTICA DE ALTERNATIVAS
PENAIS NO ESTADO DE MINAS GERAIS.

4.1. AMPLIAR AS POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO NO ÂMBI-


TO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE (PSC) E FOR-
TALECER O SUPORTE AS ENTIDADES PARCEIRAS

A PSC é a modalidade de pena alternativa mais encaminhada pelo


Sistema de Justiça Criminal ao Programa CEAPA. Essa medida tem como
fatores positivos para as pessoas em alternativa penal: (a) possibilidade
de cumprimento da medida em entidade mais próxima de sua residência
ou outra região de preferência, onde se sinta mais seguro, (b) partici-
pação em ambiente de trabalho comunitário, (c) favorecimento de novas
interações sociais e (d) aprendizado de novas habilidades. O Programa
CEAPA busca garantir que essa inserção da pessoa em alternativa penal
em entidade da rede ocorra de forma adequada, e que venha a produzir
efeitos positivos, tais como aumento da autoestima, novas perspectivas
e projetos de vida, aumento de oportunidades sociais, culturais e profis-

40
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

sionais, criação de laços de solidariedade, maior sensibilidade com as


questões sociais que envolvem aquela instituição e perpassam a sua co-
munidade, redução de estigmas e preconceitos.
Importante salientar que a PSC tem grande potencial de gerar
benefícios, tanto diretamente para a entidade que acolhe a pessoa em al-
ternativa penal, como para a própria comunidade do entorno. Na medida
em que recebe a colaboração regular do serviço comunitário, a entidade
é valorizada como agente de responsabilidade social, inclusive, atuan-
do na inclusão social e comunitária da pessoa em alternativa penal na
própria comunidade. É comum que após o cumprimento da pena essas
pessoas retornem como voluntários para aquela entidade. A PSC é alta-
mente recomendada enquanto pena restritiva de direitos.
Esse duplo e mútuo benefício (entidade e pessoa em alternativa
penal) é condição necessária para que a PSC se desenvolva de maneira
respeitosa e efetiva. O suporte falho (ou a falta de) por parte do Estado
no acompanhamento das pessoas em alternativa penal e das entidades
parceiras pode gerar a intensificação de conflitos ou o descumprimento
da medida. Para evitar que tais efeitos negativos ocorram, é fundamental
que o Poder Executivo garanta a manutenção de corpo técnico capacitado
e com composição compatível à demanda em cada município, garantindo
dessa forma, a integral execução do método de trabalho pelas equipes
dos Centros.
A estratégia definida para qualificação dessa medida, considera
as seguintes premissas:

A) Necessidade de aumentar a sinergia da Rede de Alternativas Penais,


o que passa por ampliar as atividades de articulação da rede (com foco
na concepção dessa política) e discussão de casos (especialmente com o
Sistema de Justiça Criminal e Rede de PSC);
B) Necessidade de ajustar o tamanho da Rede de Alternativas Penais
dentro de um limite máximo, no qual o Programa CEAPA possa garantir
apoio e suporte adequados;
C) Qualificar o processo de inserção das pessoas em alternativa penal

41
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

nessa rede e o seu acompanhamento técnico periódico;


Quanto ao último ponto (C), vem sendo desenvolvidas ações que
ampliam as estratégias de intervenção via PSC12. Propõe-se uma gama
de intervenções que tornar-se-iam possibilidades de cumprimento com-
plementares à PSC. Todas as pessoas em alternativas penais passam por
atendimentos mensais de acompanhamento junto as equipes dos CIAPs,
quando podem compartilhar relatos de experiência, a fim de compor uma
avaliação técnica, que se soma aos contatos junto aos responsáveis pelo
cumprimento nessas entidades.
Para além disso, são desenvolvidos Grupos de Inicialização, mo-
dalidade de intervenção que visa “fornecer informações e orientações
jurídicas a respeito dos direitos e deveres envolvidos, e da adequada e
necessária relação do público com as instituições para o cumprimento”
(GOVERNO DE MINAS GERAIS, 2014, p. 66). Em alguns casos avalia-se
a necessidade de intervenções mais cuidadosas no processo de inserção
da pessoa em alternativa penal na PSC, que pode demandar atendimen-
tos individuais para melhor avaliação. Além disso, em Belo Horizonte, de
forma inovadora, utiliza-se de grupos introdutórios nos casos de tráfico
de drogas, que duram de dois a três meses e visam trabalhar temas que
perpassam o delito cometido, fomentando reflexão e reposicionamento a
partir dos debates entre os participantes e trocas de experiência, e ainda
funcionam como um espaço de preparação para o início da PSC.
Em outros casos, vem se avaliando que outros tipos de inter-
venção são possíveis, que denominaremos aqui, de forma genérica,
de grupos de acompanhamento. Esta modalidade de intervenção visa
construir espaços para propiciar ambientes de reflexão e troca de experiên-
cias a partir da participação no Programa e nas Instituições. Também no mu-
nicípio de Belo Horizonte vem sendo desenvolvidos grupos de caráter mais o-
perativos, que visam substituir parcialmente a Prestação de Serviços à

12 Contudo, precisarão ser validades pelo Sistema de Justiça Criminal local,


porque exigem uma interpretação mais ampla sobre as possibilidades para PSC,
e do ponto de vista prático, uma flexibilização na carga horária mensal para de-
terminadas intervenções, que precisaram ser reconhecidas do ponto de vista da
execução penal.

42
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Comunidade, discutindo de forma ampla sobre temas como comunicação


não-violenta e formas de resolução de conflitos. Outras experiências já
desenvolvidas envolveram pessoas em cumprimento em escolas no mu-
nicípio de Contagem ou grupos com pessoas que cumpriam alternativa
penal por porte ilegal de armas em Montes Claros. Estas experiências
também contribuem para uma avaliação ainda mais assertiva sobre a
interação das pessoas em Alternativas Penais nas entidades.
Após a conclusão do cumprimento da PSC as pessoas em alterna-
tivas penais passam por um atendimento final ou grupo de finalização,
ações que visam produzir uma avaliação final sobre as experiências vi-
venciadas durante o cumprimento no Programa, e motivando as pes-
soas em alternativa penal para projetos de vida / expectativas de futuro
(GOVERNO DE MINAS GERAIS, 2014, p. 108).

4.2. AMPLIAR A OFERTA DE PROJETOS DE EXECUÇÃO DE


ALTERNATIVAS PENAIS (PEAPS)

Os PEAPs, mais conhecidos como Projetos Temáticos, são formas


de cumprimento que ocorrem por meio de oficinas temáticas. São es-
tratégias específicas de prevenção a determinados contextos e comporta-
mentos de risco. Os PEAPs introduzem os participantes em um espaço (a)
onde devem circular informações, orientações e conhecimento, (b) com
abordagens que sejam amplas e transversais sobre os fatores individuais,
sociais, culturais e comunitários que envolvem aquela temática, (c) fa-
vorecendo a participação e a troca de experiências e conhecimentos entre
as pessoas envolvidas nos grupos reflexivos, (d) que contribua para que
os participantes ampliem seu repertório de respostas frente a contextos
de risco, (e) estimulando a adoção de atitudes e comportamentos mais
adequados e saudáveis para as pessoas em alternativa penal e na inte-
ração destes com a sociedade.
Apesar de terem um caráter obrigatório, não operam na lógica
da Justiça Terapêutica porque o objetivo não é funcionar como um tra-
tamento, nem podendo ser um espaço de imposição de mudança, julga-

43
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

mento, convencimento. Não se trata também de aulas ou cursos, em que


o professor (ativo) ensina e os alunos aprendem (passivos), numa espé-
cie de transmissão de saber. Os principais efeitos que se espera dessa
intervenção ocorrem na medida em que o grupo passa por um processo
de elaboração que dependerá dos insights que os participantes produ-
zirem a partir das próprias experiências confrontadas com os conteúdos e
conhecimentos compartilhados e pelos conflitos e realidades apresenta-
das pelo restante do grupo. (AFONSO, 2007, p. 14).
A estratégia que vem sendo desenvolvida pelo programa foi tornar
essa prática uma regra metodológica para todos os CIAPs, de modo a
qualificar a execução dos PEAPs e ampliar a oferta dessa alternativa pe-
nal ao Sistema de Justiça Criminal. Para tanto, as equipes contam com
espaços de capacitação continuada e supervisores metodológicos. Essas
ações são desenvolvidas em todos os Municípios como possibilidades nas
transações penais e suspensões condicionais do processo. Abaixo apre-
sentamos um rol exemplificativo:

A) Projeto de Execução de Alternativas Penais sobre Drogas: Para pes-


soas em alternativa penal usuárias de drogas.
B) Projetos de Execução de Alternativas Penais sobre Trânsito: Para pes-
soas em alternativa penal envolvidas em delitos de trânsito.
C) Projeto de Execução de Alternativas Penais sobre Meio Ambiente: Para
pessoas em alternativa penal envolvidas em delitos ambientais.
D) Projeto de Execução de Alternativas Penais sobre múltiplas violências:
Para pessoas em alternativa penal que respondem por delitos que indica-
vam contexto de ameaça, vias de fato, violência física e outras formas de
comunicação violenta.

Nos municípios em que a demanda do Sistema de Justiça Cri-


minal é mais intensa, busca-se articulação de parcerias nos municípios,
privilegiando-se entidades que apresentem saber especializado e tenham
propostas de trabalho convergentes com a da Política de Alternativas Pe-
nais. Para além colaboração intensa do Sistema de Justiça na execução

44
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

desses projetos, muitas vezes através do direcionamento de penas pe-


cuniárias, um conjunto de outras entidades vem contribuindo com esse
trabalho, agregando saber e qualidade, tais como: Instituto Vida Segu-
ra, Instituto ALBAM, Terceira Margem, Centro de Recuperação da De-
pendência Química (CREDEQ), SOS Mulher de Uberlândia e Instituto
ABAN de Juiz de Fora, entre outras. Também é necessário citar o apoio
das Prefeituras Municipais que, desenvolvem esse trabalho em parceria
por meio das equipes de Secretarias Municipais sobre Drogas, Secreta-
rias Municipais sobre Trânsito, equipes de CAPS-ADs, guardas munici-
pais, entre outros. Também vem sendo possível a participação contínua
de universidades. Por fim, o Programa CEAPA conta com o apoio perma-
nente da Subsecretaria Estadual de Políticas sobre Drogas, por meio do
Centro de Referência Estadual de álcool e drogas (CREAD).
Atualmente essa prática acontece em todos os municípios onde o
Programa CEAPA está implantado.

4.3. DESENVOLVER, EM TODOS OS MUNICÍPIOS, AÇÕES DE


RESPONSABILIZAÇÃO DE HOMENS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA NO ÂMBITO DA LEI MARIA DA PENHA

Atualmente o Programa CEAPA desenvolve Grupos de Respon-


sabilização e Educação para homens encaminhados pelas Varas Cri-
minais da Lei Maria da Penha. Estes grupos contribuem para maior
responsabilização e reflexão desses sujeitos em relação à violência, fa-
vorecendo mudanças de atitude e comportamento, bem como uma impli-
cação desses homens com relação aos modos variados com que a violên-
cia é exercida (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral). O Projeto
também estimula, com tais reflexões, maneiras menos rígidas e violentas
de resolução de conflitos interpessoais.
Tais ações ocorrem nos municípios de Belo Horizonte, Betim,
Contatem, Ibirité, Ribeirão das Neves, Santa Luzia, Vespasiano, Ara-
guari, Governador Valadares, Montes Claros e Uberlândia. Nos demais
municípios estas práticas estão em processo de articulação.

45
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

4.4. DAR SUPORTE AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA DESENVOLVIDAS


PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS POR MEIO DE PRO-
JETOS DE MEDIDAS CAUTELARES

O levantamento do World Prison Brief, que utiliza dados do DE-


PEN e do CNJ sobre as prisões no Brasil, destacou o grave problema do
uso abusivo da prisão provisória. Entre as 719.998 pessoas presas no
Brasil, em fevereiro de 2019, 33,8% se tratam de presos provisórios.
Diante da utilização excessiva da prisão provisória / preventiva
no Brasil, uma das principais estratégias para a solução e/ou redução
do problema foi a edição da lei 12.403/11, que alterou as regras da apli-
cação da prisão preventiva, bem como criou novos mecanismos caute-
lares de proteção do processo para além da fiança e da prisão. Contudo,
não bastou o avanço normativo, haja vista que ainda existem poucos
mecanismos de acompanhamento e fiscalização das medidas cautelares.
A ausência de um serviço especializado capaz de garantir operaciona-
lidade e sustentabilidade ao cumprimento das medidas cautelares tem
reduzido o alcance e impacto da Lei 12.403/11, uma vez que limita as
possibilidades de substituição da prisão preventiva a um leque restrito de
medidas cautelares, a saber: fiança, monitoração eletrônica, prisão do-
miciliar e a proibição de ausentar-se da comarca. São todas intervenções
de caráter fiscalizatório ou meramente pecuniário, insuficientes para as
intervenções sobre os fatores de riscos e vulnerabilidades sociais que po-
dem estar contribuindo para os processos de criminalização do público
atendido.
Dessa forma, buscou-se construir uma metodologia capaz de in-
tervir positivamente nesse cenário, de modo a desenvolver e aplicar me-
todologias voltadas para o acompanhamento individualizado do público,
tanto via atendimentos individuais, como via oferta de grupos reflexivos
e pedagógicos, visando o desenvolvimento de intervenções capazes de in-
cidir sobre fatores ou contextos de risco criminal, social e de não acesso
a direitos (uso abusivo de álcool/drogas, contextos de violência familiar
ou comunitária, problemas de restrição a circulação, comprometimentos

46
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

em relação à saúde, pobreza, pessoas em situação de rua, falta de as-


sistência jurídica, demandas de benefícios sociais disponíveis, mas não
acessados, etc.), possibilidades que, além de proporcionar o aumento dos
fatores de proteção do público atendido, poderão dar sustentação a ma-
nutenção da liberdade.
A operacionalidade da proposta ocorre por meio do inciso I do art.
319 do Código de Processo Penal Brasileiro (comparecimento periódico
no prazo e nas condições apresentadas no projeto), a partir da apresen-
tação por parte dos Gestores dos CIAPs de projetos específicos para esse
campo aos Juízes responsáveis pela Audiência de Custódia.
Acolhido o caso na CIAP, são realizados atendimentos periódicos
(quantos forem necessários) junto a pessoa em alternativa penal para
levantar a partir dos relatos deste os fatores de riscos criminais e/ou
sociais que possam pôr em risco a liberdade preventiva. Sempre que é
necessário, as equipes do CIAP fazem discussões desses casos junto a
rede de proteção social e o Sistema de Justiça.
Após esse levantamento, são construídas intervenções que visam
promover uma ampliação de fatores de proteção social e fortalecimento
do repertório de respostas dessa pessoa em alternativa penal diante dos
riscos levantados. Caso a pessoa em alternativa penal se sinta confortável
nessa avaliação podem participar familiares ou outras pessoas indicadas
pelo mesmo. As possibilidades de intervenção seriam as seguintes:
Obs.: Quaisquer das intervenções abaixo são feitas com a anuência da
pessoa em alternativa penal. Caso ele não aceite, o acompanhamento se
manterá no formato de atendimentos individuais semanais pelo prazo
máximo de três a seis meses.

1 - Encaminhamentos para a rede de proteção social: quando determi-


nado encaminhamento para rede de proteção social e garantia de direitos
possa intervir em fatores de vulnerabilidade social que prejudiquem a
liberdade da pessoa em alternativa penal13. Exs.: encaminhamento para

13 Qualquer encaminhamento para rede de proteção social ou garantia de direi-

47
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

assistência social (abrigos para pessoas em situação de rua ou afastados


do lar, encaminhamentos para benefícios sociais, alimentação, retirada e
de documentos); encaminhamentos para rede de saúde (uso abusivo de ál-
cool e outras drogas, casos de sofrimento mental que não estejam em
tratamento).
Tempo: quando ele for encaminhado, será feito um relatório para o Juiz com-
petente. O acompanhamento do caso se encerrará a qualquer tempo, na medi-
da em que a equipe técnica avaliar que o caso está aderido ao serviço. Caso a
adesão não ocorra e o risco ainda exista, ele precisará passar por uma reava-
liação.

2 - Intervenções grupais de caráter reflexivo e educativo: nos casos em


que se avaliar pela necessidade de ampliar o repertório de respostas da pessoa
em alternativa penal frente a determinado contexto social, cultural ou de risco,
recomendamos: (1) grupos reflexivos para homens em situação de violência
doméstica contra a mulher; (2) grupos reflexivos para pessoas em situação de
violência; e (3) grupos reflexivos sobre risco criminal para casos de tráfico pri-
vilegiado.
Tempo: Quando ele for encaminhado será feito um relatório para o Juiz com-
petente, e o atendimento periódico deixará de ser semanal e passará a ser feito
por periodicidade a ser avaliada.

3 - Participação em círculos de construção de paz: Recomenda-se o uso des-


sa prática restaurativa, quando do acompanhamento da pessoa em alternativa
penal, surgir demanda de reestabelecimento de vínculos comunitários e ger-
enciamento de conflitos. Pode promover um maior suporte comunitário diante
dos riscos e contextos vivenciados pela pessoa em alternativa penal ou “com-
preender algum aspecto de um conflito ou situação difícil” (Pranis, 2010, p.29).
Tempo: Quando for definido por este tipo de intervenção, os atendi-
mentos individuais serão feitos conforme a metodologia dos Círculos de
Construção de Paz.
tos deverá ser feito a qualquer tempo, conforme demanda, mas apenas será uma
forma de cumprimento de cautelar na medida em que tenha relação com o risco
social ou criminal que prejudique a liberdade.

48
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Os círculos de construção de paz estão sendo usados em variados contextos.


Dentro dos bairros eles oferecem apoio aqueles que sofreram em virtude de
um crime – e ajudam a estabelecer sentenças daqueles que o cometeram. (...)
no âmbito da assistência social, desenvolvem sistemas de apoio mais orgâni-
cos, capazes de ajudar pessoas que estão lutando para reconstruir suas vi-
das. (...) no círculo as pessoas se aproximam das vidas uma das outras a-
través da partilha de histórias significativas para elas. (PRANIS, 2010, p. 16)

Quadro esquemático

Existem fluxos construídos para atendimento de medidas cau-


telares em Belo Horizonte, Contagem, Ribeirão das Neves, Governador
Valadares, Uberaba e Uberlândia. Existe articulação em curso nos mu-
nicípios de Juiz de Fora, Montes Claros e Vespasiano. Tais municípios
foram escolhidos considerando que neles existem audiência de custódia
sendo realizadas pelo Poder Judiciário local.

4.5. DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA


OU QUE SE UTILIZE DE PRÁTICAS RESTAURATIVAS

A partir da experiência com o Projeto Básico de Implantação de


Justiça Restaurativa em Belo Horizonte, finalizado em março de 2015,
a equipe técnica de referência, que atuou nas ações e atendimentos em
justiça restaurativa junto ao JECRIM/BH, foi absorvida na estrutura do
Centro de Alternativas Penais de Belo Horizonte, e, desde então, vem
identificando possibilidades de aplicação das práticas restaurativas no
âmbito dos casos atendidos pelo Programa CEAPA.
Desde 2018, o Programa CEAPA conta ainda com um profissional

49
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

responsável pela Supervisão Metodológica em prática de Justiça Restau-


rativa, que coordena espaços de formação gradual de toda a equipe técni-
ca do Estado de Minas Gerais, demais Supervisores e Gestores Sociais.
Dessa forma, o Programa CEAPA conta com um corpo técnico
formado e capacitado, de maneira gradual, buscando, junto ao Sistema
de Justiça Criminal, desenvolver projetos específicos de Justiça Restau-
rativa enquanto modalidade substitutiva ao cumprimento de transação
penal, substituição condicional do processo, ou mesmo no âmbito das
medidas cautelares.

5. PERSPECTIVAS PARA ARTICULAÇÃO

Considerando a sua natureza, os objetivos da Política de Alter-


nativas Penais não podem ser atingidos por meio de ações e projetos
isolados, mas exigem necessariamente um processo de articulação que
envolva atores do Sistema de Justiça Criminal, da Rede de Proteção So-
cial, Terceiro Setor e pessoas em Alternativas Penais no Estado de Minas
Gerais. Essa rede de alternativas penais vem sendo fundamental para a
materialização dessa política, porém se trata de uma rede ainda pouco
sinérgica e com conexões isoladas, seja no nível de cada Município, seja
no nível do Estado. O maior desafio para o processo de planejamento
é gerar visibilidade para pauta, reforçar as conexões dessa rede e sua
sinergia.
Tais avanços requerem uma profunda discussão sobre a con-
cepção dessa política com os atores envolvidos no processo de aplicação
das alternativas penais (Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defen-
soria Pública), tanto no âmbito político e institucional, quanto no nível
pessoal, envolvendo aqueles atores diretamente responsáveis pela apli-
cação da pena no caso concreto. Paralelamente, é fundamental a par-
ticipação das múltiplas instituições envolvidas no processo de execução
das alternativas penais, que também estão articuladas em outras redes
(educação, saúde, assistência, enfrentamento a violência doméstica, so-
bre drogas, associações de bairro, instituições filantrópicas, meio ambi-

50
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

ente, etc.).
Abaixo, apresentamos quadro esquemático exemplificativo de ar-
ticulações possíveis:

ARTICULAÇÕES EXTERNAS

• Articulações junto ao Ministério da Justiça, em especial com a Coorde-


nação Geral de Monitoração Eletrônica e Alternativas Penais para troca
de experiências e acompanhamento dos debates da política nacional;
• Articulações junto a organismos internacionais e outros Ministérios
para articular e debater sobre pautas trasnsversais a política de alterna-
tivas penais.
• Participação em eventos sobre alternativas penais;
• Troca de experiências com outros estados que desenvolvem práticas em
alternativas penais.

ARTICULAÇÕES MAIS AMPLAS DE NÍVEL ESTADUAL

• Articulação na perspectiva da intrasetorialidade, junto às demais ações


realizadas na Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública, e,
em especial, os demais programas da política estadual de prevenção à
criminalidade.
• Articulação com as demais secretarias do governo estadual para
construção de ações de cooperação e interlocução.
• Participação em comitês estaduais e reuniões de âmbito estadual com
temáticas transversais às da política de alternativas penais e de pre-
venção à criminalidade.
• Articulação com o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (em especial, o
Programa Novos Rumos) para construção de ações conjuntas e fluxos de
trabalho no âmbito das alternativas penais.
• Articulação com a Defensoria Pública de Minas Gerais.
• Articulação com o Ministério Público de Minas Gerais.
• Realização de congressos, seminários e outros eventos estaduais sobre

51
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

alternativas penais.
• Criação de grupos de trabalho que envolvam o sistema de justiça,
outras entidades governamentais, terceiro setor e sociedade civil organi-
zada para debater sobre pautas ou agendas em alternativas penais.

ARTICULAÇÕES MUNICIPAIS

• Construção de fluxos de trabalho junto ao Sistema de Justiça local e


pactuação de fluxos menos burocratizados de monitoramento.
• Reuniões com Juízes, Promotores e Defensores locais para apresentar
os resultados do Programa CEAPA e debater sobre os resultados das
ações conjuntas.
• Articulação com as Secretarias Municipais para abertura de fluxos de
encaminhamento da PSC, Proteção Social e construção de Projetos no
campo das alternativas Penais.
• Articulação com as entidades dos municípios para articulação de par-
cerias, visitas de monitoramento e discussões de caso.
• Discussão de casos específicos com juízes, Promotores e Defensores de
forma a qualificar a individualização da alternativa penal. Encontros de
Rede com as entidades parceiras.
• Encontros de rede com aplicadores de alternativas penais (Concili-
adores, Juízes, Promotores e outros servidores).
• Participação em espaços da rede dos municípios.
• Criações de comissões locais sobre alternativas penais.

ARTICULAÇÕES MAIS AMPLAS DE NÍVEL ESTADUAL

• Construção de fluxos de trabalho junto ao Sistema de Justiça local e


pactuação de fluxos menos burocratizados de monitoramento.
• Reuniões com Juízes, Promotores e Defensores locais para apresentar
os resultados do Programa CEAPA e debater sobre os resultados das
ações conjuntas.
• Articulação com as Secretarias Municipais para abertura de fluxos de

52
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

encaminhamento da PSC, Proteção Social e construção de Projetos no


campo das alternativas Penais.
• Articulação com as entidades dos municípios para articulação de par-
cerias, visitas de monitoramento e discussões de caso.
• Discussão de casos específicos com juízes, Promotores e Defensores de
forma a qualificar a individualização da alternativa penal. Encontros de
Rede com as entidades parceiras.
• Encontros de rede com aplicadores de alternativas penais (Concili-
adores, Juizes, Promotores e outros servidores).
• Participação em espaços da rede dos municípios.
• Criações de comissões locais sobre alternativas penais.

As Alternativas Penais precisam se articular com essas pautas e


redes transversais de forma que se alimentem mutuamente, fortalecendo
o aparato social do Estado e da Sociedade Civil Organizada, de forma
que isso implique necessariamente a redução do controle penal formal
e informal, e não a sua ampliação. Dizendo de outra forma, quando a
política de Alternativas Penais incentiva maior participação da comuni-
dade no Sistema de Justiça Criminal, isso precisa se traduzir em novas
respostas ao fenômeno do crime e da violência, diversas da lógica mera-
mente punitiva, e não na ampliação do controle penal por intermédio da
comunidade.
Para consolidação das propostas previstas nesse plano, vem sen-
do indispensável construir fluxos menos burocratizados junto ao Sistema
de Justiça Criminal na execução das Alternativas Penais, promovendo
uma interação mais focada na discussão de casos, na publicização con-
tínua dos resultados alcançados, no acompanhamento do público e na
troca contínua de saberes, de forma a qualificar a individualização da
pena, bem como a execução das mesmas, desconstruindo a associação
entre alternativas penais e banalização de penas.
Portanto, este Plano propõe de um lado (a) agendas mais amplas
de monitoramento da Política Estadual de Alternativas Penais, envolven-
do atores do Governo, do Sistema de Justiça e da Sociedade Civil; e, de

53
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

outro lado, (b) agendas locais nos Municípios onde os CIAPs estão im-
plantados para construção de fluxos de trabalho, de monitoramento das
alternativas penais e, em especial, de discussões de caso onde poderão
ser construídas saídas para além dos limites técnicos e institucionais das
CIAPs.

CONCLUSÃO

Este documento teve como objetivo explicitar os processos de im-


plantação de Centros Integrados de Alternativas Penais, publicizando os
princípios, conceitos e procedimentos que norteiam o desenvolvimento
do Programa CEAPA, enquanto ação estratégica do Governo de Minas
Gerais para fomento de uma Política Estadual de Alternativas Penais.
Buscou-se demonstrar a vocação do Programa CEAPA em Minas
Gerais para privilegiar abordagens mais focadas na interação entre equi-
pes técnicas, público atendido e rede social, numa perspectiva voltada
para a implementação de ações com maior potencial de produção de
efeitos comunitários e laços de solidariedade, em detrimento de uma pri-
orização do controle punitivo.
A concepção e perspectivas adotadas estão alinhadas com as di-
retrizes e o modelo de gestão propostos pela Coordenação Geral de Alter-
nativas Penais/DEPEN/MJ e com as pesquisas e debates no âmbito da
Política Nacional. Espera-se que as discussões que surgirem da leitura
dessa experiência prática possam contribuir para incluir definitivamente
as alternativas penais na agenda de segurança pública. Dessa forma,
não se trata de concorrer com a prisão, mas de se fazer valer outra lógica
diversa da cultura do encarceramento.

54
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REFERÊNCIAS

Afonso, Lucia (org) Oficinas em dinâmica de Grupo: um método de inter-


venção psicossocial. Edições do Campo Social. Belo Horizonte, 2001

BRASIL, Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional.


Coordenação Geral do Programa de Fomento às Penas e Medidas Alterna-
tivas - CGPMA. ANAIS VII CONEPA - Congresso Nacional de alternativas
penais. 2011. 1ª edição.

BRASIL, Ministério da Justiça. Manual de Monitoramento de Penas e


Medidas Alternativas. Departamento Penitenciário Nacional. Central Na-
cional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas.
Brasília. 2002.

BRASIL, Ministério da Justiça. 10 anos de política nacional de penas e


medidas alternativas. Comissão Nacional de Apoio às Penas e Medidas
Alternativas. Coordenação-Geral do Programa de Fomento às Penas e
Medidas Alternativas. Brasília, 2010.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria de assuntos estratégicos.


IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A aplicação de Penas e
Medidas Alternativas. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro, 2015. Dis-
ponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_con-
tent&view=article&id=24862.

CHRISTIE, Nils. Elementos para uma geografia penal. Revista de Sociolo-


gia Política. Curitiba, 13, p. 51-57, nov. 1999.

GOVERNO DE MINAS GERAIS. Manual das Centrais de Alternativas Pe-


nais. Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade. Núcleo de
Alternativas Penais. Belo Horizonte, 2014.

55
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

INSTITUTE FOR CRIMINAL POLICY RESEARCH. Prison studies. Fonte:


ICPS: http://www.prisonstudies.org/country/brazil. Acessado em 05 de
abril de 2019.

ILANUD. Levantamento Nacional sobre Execução de Penas e Medidas


Alternativas - Relatório final de pesquisa. Relatório da Coordenação
Geral de Penas e Medidas Alternativas do Ministério da Justiça, Instituto
Latino Americano das Nações Unidas para o desenvolvimento - Ilanud/
Brasil. 2006. Disponível em http://www.mj.gov.br/services. Acesso em
julho de 2009.

INSTITUTO SOU DA PAZ e ASSOCIAÇÃO PELA REFORMA PRISIONAL


(2014). Monitorando a aplicação da Lei de cautelares e o uso da prisão
provisória nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo.

LEITE, Fabiana de Lima (2015). Manual de Gestão para as Alternativas


Penais. Brasília, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e
Departamento Penitenciário Nacional.

MIRANDA, Lucas Pereira (2015). Novas perspectivas para a política de


alternativas penais: A possibilidade de mudança na trajetória entre o
crime e o castigo na aposta pelo protagonismo das partes. In Considere
a Alternativa: A experiência de implantação de práticas restaurativas no
Juizado Especial Criminal de Belo Horizonte. Miranda, Lucas Pereira;
LARA, Raquel Guimarães; LARA, Caio Augusto Souza (Org.) Belo Hori-
zonte. Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública, 2015.

PASINATO, Wânia (2010). Lei Maria da Penha: Novas abordagens sobre


velhas propostas. Onde avançamos? Civitas. Porto Alegre. Volume 10. Nº
02. P, 216 a 232.

PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Bra-


sil? In Justiça Restaurativa. SLAKMON, Catherie; DE VITTO, Renato

56
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Campos Pinto; GOMES PINTO, Renato Sócrates (Org). Brasília. Ministério


da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. 2005
PRANIS, Kay. Processos circulares. São Paulo: Palas Athenas, 2010.

WUNDERLICH, Alexandre. A Vítima no processo penal (impressões sobre


o fracasso da lei 9.099). In Novos Diálogos sobre os Juizados Especiais
Criminais. WUNDERLICH, Alexandre; Carvalho, Salo de (Org.). Rio de
Janeiro. Editora Lumen- Juris, 2005.

57
58
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REDES SOCIAIS EM ALTERNATIVAS PENAIS: CONCEITUALIZANDO


E CONSTRUINDO A EXPERIÊNCIA DO CENTRO INTEGRADO DE
ALTERNATIVAS PENAIS - CIAP DE DIVINÓPOLIS, MINAS GERAIS

Aline Fernanda Santos


Júlia Amaral Freitas
Lorena Rodrigues de Sousa
Lucas Germano
Rúbia Evangelista da Silva

1. INTRODUÇÃO

O conceito de rede vem sendo amplamente discutido por di-


versas áreas do saber, e cada uma cria o conceito que melhor define esse
agrupamento ou teia. Para Pereira; Santos; Inocente (2011, p. 56), “a
palavra rede, ao longo dos tempos, vem ganhando novas interpretações e
significados, principalmente no campo das ciências sociais” que é a área
abordada na escrita deste artigo.
Por isso, o presente artigo inicia discutindo um conceito amplo
de rede, mas busca em seguida discuti-lo na seara das Alternativas Pe-
nais para seguir explicando o que é essa Rede, como se constitui e qual
seu papel social. Para tanto se vale da experiência de implantação dessa
Rede no CIAP Divinópolis/MG e, por fim, consideram-se os desafios na
manutenção dessa rede e inserção significativa e representativa.

2. DO CONCEITO DE REDE

Em Antropologia, a rede social é compreendida como uma estru-


tura social surgida através das relações criadas por indivíduos, organi-
zações ou instituições (MARQUES, 1999 apud MIGUELLETTO, 2001).
Miguelletto (2001) expande essa interpretação e afirma que o conceito

59
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

de redes, atualmente, demonstra que numa sociedade complexa como a


nossa há diversos espaços para que o contato e a troca dentro da rede
aconteçam.
As redes, entendidas como um grupo, se movimentarão de modo
a conscientizar os seus integrantes “quanto aos seus papéis, centran-
do-se no rompimento de estereótipos e modificação de vínculos internos e
externos. Cada [integrante] ao se expressar é porta-voz de uma dimensão
ou especificidade do campo grupal” (AFONSO, 2000, p. 20). Igualmente,
toda rede se construirá a fim de cumprir um objetivo, seja o objetivo em
questão explícito (abertamente escrito ou falado) ou implícito - construí-
do espontaneamente pelas trocas e pelas relações presentes nos contatos
com os integrantes da rede.
A construção e a manutenção das redes trazem consigo relações
de poder, nas quais instituições e indivíduos possuem maior ou menor
capacidade para se movimentar dentro da rede e realizar, ou não, as
transformações no interior desta. Por isso, faz-se necessário um caráter
democrático participativo na manutenção das redes. É preciso que a rede
seja percebida como uma construção coletiva. Portanto, podem ser en-
tendidas como “sistemas organizacionais capazes de agrupar pessoas e
instituições, democraticamente e de forma participativa, com a finalidade
de atingir objetivos comuns” (NEVES, 2009 apud PEREIRA; SANTOS;
INOCENTE, 2011, p. 57).

2.1. EM BUSCA DE UM CONCEITO DE REDE DE ALTERNATIVAS PE-


NAIS

Tendo em vista a dificuldade de encontrar um conceito de Re-


des de Alternativas Penais e a escassez de bibliografia, acredita-se que é
necessário construir um conceito de Redes Sociais que seja aplicável às
Alternativas Penais. Salienta-se que, no Manual das Centrais de Alter-
nativas Penais, a definição de Redes de Alternativa Penais é constitutiva,
isto é, explica do que é constituída a Rede, mas não a conceitua, como
visto na seguinte citação:

60
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

A Rede de Alternativas Penais, além das instituições do Sistema de Justiça


Criminal, abrange o conjunto de equipamentos públicos e instituições sociais
cadastradas nas Centrais para acolhimento e acompanhamento dos usuári-
os do Programa no cumprimento de Pena ou Medida Alternativa. [Da pessoa
em cumprimento de Alternativas Penais] (MINAS GERAIS, 2014, p. 31).

Para além de sua constituição, acredita-se que a Rede de Alterna-


tivas Penais deve ser pensada como uma rede que propicia o apoio entre
pessoas, grupos e instituições, de modo a representar o melhor caminho
para a construção de alternativas penais e sociais a fim de promover o
bem-estar dos atores envolvidos, de tal forma que “quando buscarmos
relações que possam promover laços de cooperação, teremos de ava-
liar onde vamos ativar nossas ligações e onde vamos desativá-las” (UDE,
2003, p. 136).
Nesse sentido, ao construir um conceito de Rede de Alternativas
Penais, é necessário que o próprio objetivo das Alternativas Penais seja
levado em conta. Um conceito de Rede de Alternativas Penais que preze
pela responsabilização da Pessoa em Alternativa Penal, por sua liber-
dade, sua autonomia e consciência, e pelas as intervenções psicossociais
nessa rede. Mais ainda, é preciso compreender que a CEAPA não apenas
acessará essa rede com que se correlaciona, mas, para além disso, será
um dos atores que a compõem.
Sendo assim, urge ao Programa Central de Alternativas Penais a
construção desse conceito.

3. REDE DE ALTERNATIVAS PENAIS

Chama-se de Rede de Alternativas Penais o conjunto de institu-


ições envolvidas no processo de acolhimento das pessoas para o cumpri-
mento da alternativa penal, bem como, àquelas que favorecem a inclusão
em demandas de proteção social, como saúde, educação, renda e tra-
balho, moradia, programas e projetos, entre outros.
Em relação à sua composição, Guedes; Moisés; Lemos (2004)
destacam que a rede deve ser composta por instituições públicas, do
terceiro setor e privadas, sendo vedada a Prestação de Serviços à Comu-

61
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

nidade em instituições que tenham fins lucrativos.

3.1. A REDE DE ENCAMINHAMENTO PARA O CUMPRIMENTO

Entende-se como Rede de Prestação de Serviços à Comunidade


(PSC) aquela que recebe as pessoas com determinação judicial para cum-
primento de pena ou medida alternativa na modalidade de restrição de
direitos, que estabelece o cumprimento de prestação de serviço à comu-
nidade e, com isso, tem papel fundamental nas alternativas penais.
Corresponsavelmente, cabe também à Rede de PSC o monitora-
mento e fiscalização das atividades realizadas pelo cumpridor a fim de
validar as horas e informações dispostas no instrumental comprobatório
Folha de Ponto.
As parcerias realizadas com as instituições dependem da livre
aderência de cada uma, e somente figurará na Rede de PSC a instituição
que firmar parceria com o programa. De acordo com a metodologia da
Central de Acompanhamento de Alternativas Penais (CEAPA),

A rede deve ser constantemente trabalhada, escutada e sensibilizada para


questões que envolvem a política de Execução Penal para que possa en-
tender seu papel social junto ao indivíduo que tem uma determinação judi-
cial a cumprir (SEDS, s.d. p. 15).

A Rede de PSC, com o discurso alinhado com as diretrizes para


execução das Alternativas Penais, proporciona um cumprimento que fa-
vorece o processo reflexivo da pessoa em alternativa penal, o que poten-
cializa o estabelecimento de vínculos, através da realização de atividades
que contribuem tanto para instituição quanto para si mesmo.

3.2. REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL

Entende-se como Rede de Proteção Social aquela que oferta, a-


través de serviços e políticas públicas, serviços gratuitos de assistência
social da saúde, da educação, da renda e trabalho, da moradia, pro-
gramas e projetos, entre outros.

62
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Diferentemente da Rede de PSC, a Rede de Proteção Social inde-


pende da existência de parceria com o programa CEAPA tendo em vista
seu caráter institucional e serviços que já estão previamente disponíveis
para os cidadãos. O encaminhamento para a Rede de Proteção Social é
uma construção com o cumpridor, visto que não tem o caráter de obri-
gatoriedade. Rutter (1987 apud JULIANO; YUNES, 2014, p. 139) aponta
que “a característica essencial dos processos de proteção é provocar uma
modificação da resposta que seria esperada do indivíduo aos processos
de risco”.
Estar em contato com a Rede de Proteção Social caracteriza apo-
io ao indivíduo, que, com o acolhimento e orientações adequadas, pode
aumentar seu repertório de respostas, favorecendo sua inclusão social e
diminuindo sua vulnerabilidade social.

4. O PAPEL DA REDE DE ALTERNATIVAS PENAIS: DIVERSIDADE,


CAPILARIZAÇÃO, DISCURSOS E ALINHAMENTO

O Departamento Penitenciário Nacional publicou, em 2017, o


Manual de Gestão para as Alternativas Penais, documento no qual são
descritos os princípios para as Alternativas Penais, figurando entre eles:
PRINCÍPIO N° 29 - INTERATIVIDADE OU PARTICIPAÇÃO SOCIAL:
O princípio da interatividade preza pela garantia da participação social
não somente na fase da execução das penas ou medidas, por meio do
acolhimento das pessoas para o cumprimento em instituições da sociedade
civil e inclusão em programas assistenciais e comunitárias, mas, também
de forma estruturante, desde a concepção da política penal alternativa, o
acompanhamento de sua implementação e avaliação, como mecanismo de
controle social. Esta participação deve ser garantida em instâncias como
conselhos, comitês, comissões, grupos de trabalhos e outras estruturas.
(BRASIL, 2017, p. 50, grifo nosso).

A necessidade de formação de uma Rede de Alternativas Penais se


fundamenta nesse princípio, uma vez que nenhuma organização é com-
pleta o suficiente para atender a todas as suas demandas.
Para Araújo (2019), a configuração da participação social nas al-
ternativas penais pode ser avaliada sob dois olhares, de um lado a so-
ciedade civil exercita um controle ou fiscalização sobre o cumprimento

63
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

da PSC e, por outro lado, representa a participação popular na execução


dessa política pública.
O olhar de controle se dá diante do monitoramento dos horários/
tempo de cumprimento e a fiscalização desses propriamente dita. Mas,
para além do monitoramento, nos importa ressaltar o viés dessa partic-
ipação, sendo a rede um espaço onde o público ressignifica a determi-
nação judicial, pode vir a restabelecer vínculos, (re)ativa sentimentos de
pertencimento e tem favorecido os seus acessos a direitos, sendo este o
papel fundamental da rede: a promoção social do público.
A Rede de Alternativas Penais deve ser mais diversa possível,
porém há parcerias desejáveis para figurarem na lista, são elas: insti-
tuições da rede de saúde, da assistência social, da política habitacional,
da assistência jurídica, da educação, de trabalho e renda e de benefícios
eventuais. Essa rede tem como objetivo fornecer um amplo leque de pos-
sibilidades ao cumpridor que, a partir da escuta da sua demanda, identi-
ficadas sua(s) vulnerabilidade(s) e/ou risco(s) criminal(is), pode constru-
ir um encaminhamento mais assertivo para instituição onde possa ter
acesso a direitos, construir e/ou (r)estabelecer vínculos.
Para além da necessidade de diversidade por ocasião das minú-
cias do caso e encaminhamento, essa heterogeneidade favorece as arti-
culações entre os atores locais.
A CEAPA de Minas Gerais é um programa da Política de Prevenção
à Criminalidade do Governo do Estado de Minas Gerais, que atende 16
municípios do estado, por meio dos Centros Integrados de Alternati-
vas Penais, localizados, preferencialmente, nos bairros centrais de seus
respectivos municípios. No entanto, visando atender a demanda por capi-
larização, a rede que esses Centros constituem, deve estar bem distribuí-
das por todo o município.
A Lei de Execução Penal, nº 7.210/1984, em seu artigo 1491, traz

1 “Art. 149. Caberá ao Juiz da execução:


I - designar a entidade ou programa comunitário ou estatal, devidamente creden-
ciado ou convencionado, junto ao qual o condenado deverá trabalhar gratuita-
mente, de acordo com as suas aptidões; II - determinar a intimação do conde-
nado, cientificando-o da entidade, dias e horário em que deverá cumprir a pena;

64
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

diversos ditames a serem observados quando do encaminhamento para


cumprimento da PSC. Entre eles não figura a busca de entidade próxima
à residência do cumpridor.
Entretanto, o Manual de Gestão para as Alternativas Penais pre-
coniza, taxativamente:

- Instituição onde será realizada a prestação: a equipe da Central deverá


considerar a distância entre a moradia da pessoa e a instituição, uma vez
que o custo com o transporte pode dificultar o cumprimento. Porém, há pes-
soas que optam por cumprir em instituição próximo ao trabalho, ou ainda
há casos em que, por questões de segurança, seja mais adequado que o
cumprimento se dê em bairro distinto da moradia. (BRASIL, 2017, p. 278,
grifo nosso).

Portanto, o Manual traz o elemento de busca de local próximo à


casa como fator a ser observado quando do encaminhamento. Acredi-
ta-se que busca evitar maior vulnerabilização pelo cumprimento da PSC.
Conforme já delineado, as alternativas penais somente se desen-
volvem em rede. Nesse sentindo, preconiza o Modelo Lógico para a Im-
plantação de Centros Integrados de Alternativa Penais:

Entendemos que o fato de as alternativas penais estarem situadas em um


cenário hegemonicamente punitivista, exigem que os programas e projetos
nesse campo mantenham um posicionamento político mais forte, para que
as estratégias de enfrentamento da cultura do encarceramento não sejam
cooptadas para formação de um sistema ainda mais punitivo. (MIRANDA;
SANTOS; SOUZA; circa 2017, p. 2).

Com a finalidade de trabalhar essa operacionalidade, é objeto da


intervenção do Programa CEAPA/MG o alinhamento do discurso com as
instituições. Tal deve ser no campo principiológico (BRASIL, 2016, p. 27)
e com referência aos postulados da Política Nacional de Penas e Medidas
Alternativas2 (Ibidem, p. 27-32).

III - alterar a forma de execução, a fim de ajustá-la às modificações ocorridas na


jornada de trabalho. § 1º o trabalho terá a duração de 8 (oito) horas semanais e
será realizado aos sábados, domingos e feriados, ou em dias úteis, de modo a não
prejudicar a jornada normal de trabalho, nos horários estabelecidos pelo Juiz. §
2º A execução terá início a partir da data do primeiro comparecimento” (BRASIL,
1984. Lei 7.210/84).
2 “O primeiro se fundamenta na mínima intervenção penal para o desencarce-
ramento e orienta a concepção de uma medida ou pena dentro do escopo das
alternativas penais; o segundo se refere à liberdade e protagonismo das pessoas
no contexto das alternativas penais e por fim, o terceiro se refere à gestão política
das alternativas penais” (BRASIL, 2016, p. 17, grifo do autor).

65
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

A Rede de Alternativas Penais deve ser mobilizada, formada, ca-


pacitada e articulada enquanto agente e protagonistas em ações de segu-
rança pública e de prevenção à criminalidade.

5. A CONSTRUÇÃO DA REDE DE ALTERNATIVAS PENAIS NA CIAP


DE DIVINÓPOLIS

Passa-se a discorrer em diante acerca da experiência de


construção da Rede de Alternativas Penais em Divinópolis/ MG, quando,
em março de 2018, foi implantado o Centro Integrado de Alternativas
Penais nessa Comarca.
Vale ressaltar que nessa Comarca havia um Setor Técnico de
Execução Penal, dentro do Poder Judiciário, ligado às Varas de Execução
Penal, Criminais e ao Juizado Especial Criminal, que monitorava as al-
ternativas penais e, por esse motivo, tinham um catálogo de rede para
realização dos encaminhamentos das pessoas em cumprimento de deter-
minação de Prestação de Serviço à Comunidade.

5.1. A ARTICULAÇÃO INICIAL

A experiência da construção da Rede de Alternativas Penais em


Divinópolis/MG se deu tendo como ponto de partida o referido catálogo
de rede parceira do Setor Técnico de Execução Penal.
A partir do catálogo disponibilizado, contendo 107 (cento e sete)
instituições, optamos em filtrar as entidades que, de fato, poderiam ser
parceiras da CEAPA, com base em alguns critérios pré-estabelecidos
(como dias e horários de funcionamento, localização, diversidade, de-
mandas de trabalho e proximidade/capilarização e alinhamento com as
diretrizes para execução das Alternativas Penais), e organizar um pro-
cesso de agendamento através de contato telefônico e posterior visita a
essas entidades.
Devido à especificidade da implantação da Comarca, foi necessário
pontuar as diferenças com o trabalho que havia sido executado pelo

66
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Setor Técnico Penal, bem como apresentar substancialmente a proposta


de Grupos Reflexivos3 e os instrumentais da CEAPA. Por fim, se desejado
por aquela Instituição, era formalizada a parceria com aquelas que dese-
jassem receber cumpridores para PSC.
Os profissionais do Centro Integrado de Alternativas Penais vi-
sitaram 71 (setenta e uma) instituições e firmaram parcerias com 52
(cinquenta e duas) para recebimento de PSC.
Registra-se que a Rede de PSC acima descrita compreende 3
instituições de Saúde, 17 de Educação, 10 de Assistência Social, 5 de
Cultura e Esporte, 2 de Segurança, 2 instituições religiosas e 13 do Ter-
ceiro Setor.

5.2. AS VISITAS

Em momento anterior às visitas, foi realizado contato prévio, por


meio de telefone, com o responsável pela instituição, no qual foi anuncia-
da a chegada do Programa ao município e revelado o interesse em tê-la
como parceira.
Nesse contato, algumas instituições demarcaram não ter inter-
esse em tal parceria. As principais justificativas se referiam a experiên-
cias anteriores avaliadas como negativas e ausência de recebimento do
recurso oriundo das penas pecuniárias. Cabe esclarecer acerca desse
último, uma vez que na Comarca, como em todo País, houve reade-
quação da distribuição desse recurso, por meio da Resolução do CNJ nº
154/2012.4
Naquelas que aceitaram a visita, enquanto aguardávamos o
responsável, geralmente na recepção ou entrada da entidade, observáva-

3 “Modalidade de intervenção grupal realizada no Programa no sentido do acom-


panhamento dos usuários durante o processo de cumprimento da PMA [pena/
medida alternativa]. Tem por objetivo propiciar ambiente de reflexão e troca de
experiências a partir da participação no Programa e nas instituições” (MINAS
GERAIS, 2014, p. 74).
4 “Define a política institucional do Poder Judiciário na utilização dos recursos
oriundos da aplicação da pena de prestação pecuniária” (BRASIL, 2012, p. 2).

67
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

mos inicialmente a região onde a instituição se encontrava, se havia ou-


tros serviços
Compreendemos as visitas como fundamentais não só para
a formalização da parceria, mas também para melhor apropriação
desses espaços onde realmente acontece o cumprimento da PSC. Assim, co-
nhecendo a instituição pessoalmente, acreditamos ter mais elementos e
informações para contribuir na hora da construção do encaminhamento
junto ao cumpridor.
No diálogo sobre o Programa em si e a proposta de acompanha-
mento, observamos que algumas instituições eram bastante favoráveis
à metodologia, bem como à dinâmica de acompanhamento mais pró-
ximo proposta pela CEAPA, o que as instituições consideram de suma
importância para o efetivo cumprimento da PSC e para o processo de
responsabilização do cumpridor. Para além, as instituições relataram que
essa maior proximidade minimizaria situações avaliadas como negativas
em um cenário de monitoramento.
Vale ressaltar, também, as restrições apresentadas pelas insti-
tuições no tocante ao recebimento de cumpridores. A maioria das insti-
tuições na área da educação restringiu o recebimento de cumpridores
envolvidos em crimes de drogas, seja por uso ou comércio, alegando
que estes cumpridores poderiam ser uma influência negativa para seus
alunos. Porém, de um modo geral, avaliamos que a rede que construímos
é aberta, receptiva, não-restritiva e que pontua muito mais experiências
positivas do que negativas.

5.3. A CONSTRUÇÃO DO CATÁLOGO DE IMPRESSÕES

Após as visitas, e outras reuniões de equipe, percebeu-se que


havia muitas informações importantes das instituições para além das
registradas nos nossos instrumentais de captação de parceria, e avaliou-
se que, se não fossem registradas naquele momento, poderiam se perder
devido ao grande número de visitas e de instituições. Decidiu-se, então,
pela criação de um catálogo que foi denominado “Catálogo de Impressões

68
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

de Visitas à Rede”, no qual registraram-se todas as percepções e im-


pressões que foram colhidas durante cada visita realizada.
Anotou-se, por exemplo, o grau de receptividade da instituição;
espaço físico; acolhimento; experiências anteriores das instituições com
as Alternativas Penais; e o alinhamento de discurso para com as Alterna-
tivas Penais. Para além disso, foi debatido se o alinhamento era pessoal
ou institucional, avaliando que o desalinhamento pessoal não interferiria
na parceria institucional caso a instituição, em si, estivesse alinhada às
ideias das Alternativas Penais. Porém, esse desalinhamento foi objeto de
registro para futuras intervenções.
É importante salientar que a rede parceira vai muito além de um
espaço apenas para recebimento de cumpridores. Percebeu-se, durante
as visitas, que em algumas instituições a própria comunidade não acessa
esses espaços e que, o cumprimento de PSC em determinada instituição,
pode favorecer a apropriação desse espaço pela pessoa em Alternativa
Penal, criando um sentimento de pertencimento.

5.3.1. A CONSTRUÇÃO DO CATÁLOGO DE REDE

Em posse do Catálogo de Impressões de Visitas à Rede, em re-


uniões de equipe, construiu-se o Catálogo de Rede de Instituições das
Alternativas Penais no município de Divinópolis/MG. Esse é composto
por 52 (cinquenta e duas) entidades dos mais variados setores, como
instituições filantrópicas, da educação, saúde, assistência social, entre
outros. Neste catálogo, registrou-se o nome do responsável, os contatos
institucionais, linhas de acesso, e as demandas e restrições para o rece-
bimento de cumpridores.
Cabe destacar que esse catálogo não está fechado de forma de-
finitiva e que deve ter os dados sempre atualizados, visto que as institu-
ições passam por constantes mudanças que podem interferir tanto nas
relações estabelecidas com as instituições quanto no acompanhamento
do cumprimento da PSC. Há instituições que podem deixar de ser parcei-
ras e há, ainda, as instituições que podem se tornar novas parceiras.

69
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

5.3.2. O GEORREFERENCIAMENTO DAS INSTITUIÇÕES PARCEIRAS

Para além do Catálogo de Impressões de Visitas à Rede e o Catálo-


go de Rede, avaliou-se a necessidade do mapeamento da rede parceira da
cidade. Esse foi construído pensando na diversidade de regiões e bairros,
pois entendeu-se que, em um dado momento, o cumprimento da PSC se
tornaria inviável para alguns cumpridores dada a distância da residência
e/ou local de trabalho para as instituições. Este mapeamento foi essen-
cial para fornecer visibilidade geográfica da rede construída e demonstrar
seu alcance como uma rede capilarizada.
A título de ilustração, Divinópolis é uma cidade de médio porte
localizada no Centro-Oeste mineiro, com aproximadamente 235 mil ha-
bitantes, que se estende por 716 km², sendo 192 km² de área urbana. A
unidade está situada no bairro Centro da cidade e ter uma rede capilar-
izada diz da necessidade da extensão dessa rede por grande parte da área
urbana do município.
Para auxiliar no georreferenciamento, lançou-se mão de um apli-
cativo do Google chamado My Maps, no qual há um mapa do município
de Divinópolis e nele foi inserida cada instituição através da sua loca-
lização. Assim, é possível visualizar o mapa contendo toda a rede, bem
como identificar as regiões onde há poucas ou nenhuma instituição e,
a partir disso, diagnosticar, juntamente com as demandas surgidas nos
atendimentos, a necessidade e consequentemente as estratégias para
buscar novas parcerias.

5.4. A REDE DE PROTEÇÃO

Para além das instituições parceiras para o encaminhamento de


PSC, as visitas também tinham como objetivo a construção de uma Rede
de Proteção Social, na qual se estabelecesse referências dentro da rede
municipal para o encaminhamento dos cumpridores que apresentam de-
mandas, vulnerabilidades sociais e risco criminal a fim de trazer com-
plementaridade ao trabalho de acompanhamento realizado pela equipe

70
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

técnica da CEAPA.
Dentre as 52 (cinquenta e duas) instituições parceiras para re-
cebimento de PSC, temos 45 (quarenta e cinco) que também podem ser
referenciadas como Rede de Proteção, como os CRAS (Centro de Referên-
cia de Assistência Pessoal), CREAS (Centro de Referência Especializado
de Assistência Social), serviços de saúde e outros serviços de proteção
disponíveis no município.
Entendemos ser fundamental a atuação em parceria com a rede
de proteção, uma vez que o trabalho do Programa é pontual durante
o tempo em que a pessoa em alternativa penal está em cumprimento
de uma pena/medida, diferentemente da rede de proteção do município
que é possível ser acessada a todo momento pelo cidadão. Assim, não
podemos perder de vista que somos e devemos ser potencializadores dos
acessos aos direitos e à cidadania.
O ambiente da instituição é o lugar mais legítimo para que as pessoas
desenvolvam o sentimento de pertencimento. Estar nestes espaços colabo-
rando e/ou sendo beneficiada com a inclusão em programas educacionais,
de saúde, laborativos ou socioassistenciais, representa um dos mais im-
portantes elementos de ressignificação e restabelecimento de vínculos. Di-
versas vezes são identificados que estes locais, antes invisíveis ao público,
tornam-se representativos na construção de novas trajetórias. (ARAÚJO,
2019).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pondera-se que o conceito de rede sociais é amplo e se refere a


diversos campos de atuação e estudo, por esse mesmo motivo tem dis-
cussão extensa e é possível conceituá-lo satisfatoriamente, por outro lado
ainda é necessário se debruçar na conceituação da Rede de Alternativas
Penais. Considera-se, ainda, que essa rede de Alterativas Penais pode
ser compreendida a partir de duas dimensões, uma que toca a rede para
recebimento de PSC e outra referente à rede de proteção social, sendo
que essa última compõe e perpassa pela primeira. Essa rede, diversa,
capilarizada e alinhada com o discurso das Alternativas Penais tem como
papel fundamental a promoção social do público atendido.
Em relação à experiência de efetivação de parcerias na Comar-

71
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

ca de Divinópolis/MG, construção de catálogo de impressões de visita e


posterior catálogo de rede, percebeu-se que os desafios são: relatos de
preconceitos e rotulação do público, desconhecimento do protagonismo
da instituição na ação de segurança pública e prevenção à criminalidade,
problemas identificados e já objetos da metodologia do Programa.
Avalia-se, portanto, que é grande o desafio ao programa da
construção desse conceito, mas sobretudo que ele contemple diretrizes
para que o programa CEAPA se insira mais profundamente e realmente
de forma entrelaçada à sua rede, ou seja, que o lugar que ocupe seja o
de estar em rede, não de apenas possuir ou acessar sua rede parceira.

72
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REFERÊNCIAS

AFONSO, M. L. Oficinas em dinâmica de grupo: um método de inter-


venção psicossocial. [S.l.: s.n.], 2000.

ARAÚJO, A. M. D. de. Potencialidade da rede parceira no campo das


Alternativas Penais. Justificando. 2019. Disponível em: <http://bit.
ly/2NOntD1>. Acesso em: 20 de fev. 2019.

______. Alternativas Penais: entre a efetividade e a invisibilização. Justi-


ficando. Disponível em: <http://bit.ly/2tUs0dE>. Acesso em: 20 de fev.
2019.

BRASIL. Conselho Nacional da Justiça. Resolução n. 154, de 13 de julho


de 2012. Diário da Justiça [do] Conselho Nacional de Justiça. Brasília,
DF, n. 124, p. 2-3, 16 jul. 2012.

BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Manual de Gestão para


as Alternativas Penais. Brasília, DF, 2017.

BRASIL. Ministério da Justiça, et al. Postulados, princípios e diretrizes


para a Política de Alternativas Penais. Brasília, DF, 2016.

GUEDES, C. J.; LEMOS, C. E. R; MOYSES, I. C. A Prestação de Serviço


à Comunidade sob a Ótica das Instituições Recebedoras de Mão-de-obra
Gratuita. Revista Depoimentos FDV, v. 8, p. 151- 172, jan/dez 2004.

JULIANO, M. C. C.; YUNES, M. A. M. Reflexões sobre rede de apoio social


como mecanismo de proteção e promoção de resiliência. Ambient. Soc.,
São Paulo, v. 17, n. 3, p. 135-154, set. 2014.

MIGUELETTO, D. C. R. Organizações em rede. 2001. Dissertação de Mestrado


em Administração Pública - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2001.

73
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Defesa Social. Metodologia Pro-


grama CEAPA/MG: Central de Acompanhamento às Penas e Medidas
Alternativas de Minas Gerais. Disponível em: <http://bit.ly/2UrGNZg>.
Acesso em: 20 de fev. 2019.

______. Secretaria de Estado de Defesa Social. Manual das Centrais de


Alternativas Penais. Belo Horizonte: Instituto Elo, 2014.

______. Secretaria de Estado de Segurança Pública de Minas Gerais.


Política de Prevenção à Criminalidade. [S. l.], 2017.

MIRANDA, L. P. de; SANTOS, M. A. dos; SOUZA, T. A. de. Modelo Lógico


para Implantação de Centros Integrados de Alternativas Penais. [S. l.]:
circa 2017. Disponível em: <http://bit.ly/2EMsJD3>. Acesso em: 20 de
fev. 2019.

PEREIRA, J. R. O.; SANTOS, M. J. dos; INOCENTE, N. J. As redes, seus


desafios de implementação e o desenvolvimento sustentado. Latin Ameri-
can Journal of Business Management, v. 2, n. 2, jul./dez. 2008.

UDE, W. Redes Sociais. In: CARVALHO, A.; et al. Políticas Públicas. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 127-140.

74
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

CONVIVÊNCIA, VÍNCULO E AFETO: EXPLORANDO AS DIMENSÕES


QUALITATIVAS DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE A
PARTIR DE UM RELATO DE EXPERIÊNCIA DA CEAPA DE
VESPASIANO

Cristiane Duarte Merlo


Vanessa Barbosa Guimarães

A ATUAÇÃO DA CEAPA NOS MUNICÍPIOS

O Programa Central de Acompanhamento de Alternativas Pe-


nais (CEAPA), desenvolvido pela Subsecretaria de Prevenção à Criminali-
dade, da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública, tem como
objetivo contribuir para o fortalecimento e consolidação das alternativas
à prisão no Estado de Minas Gerais, pautando ações de responsabili-
zação com liberdade (MINAS GERAIS, 2009).
No município de Vespasiano, a CEAPA se estrutura no Centro
Integrado de Alternativas Penais, implantado em 2014, atua de forma in-
tersetorial com o Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Públi-
ca e, em parceria com órgãos do Estado, Prefeitura e instituições do Ter-
ceiro Setor.
A partir de articulações com o Poder Judiciário, por meio das Se-
cretarias da Vara de Execuções Penais, Varas Criminais e Juizado Es-
pecial, estabelece-se um fluxo de encaminhamento do público para a
CEAPA, que passa a ser responsável por acompanhar as medidas al-
ternativas e as penas restritivas de direito1, cujas modalidades são:

1 No ordenamento jurídico brasileiro, as penas alternativas estão previstas prin-


cipalmente no Código Penal e são substitutivas às de prisão, destacando-se dois
marcos regulatórios: a Lei 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais
Cíveis e Criminais, deixando a cargo destes, a conciliação, o julgamento e a ex-
ecução das infrações penais de menor potencial ofensivo, contravenções penais e
crimes com pena máxima não superior a dois anos, observando-se os institutos
da transação penal e da composição dos danos civis; e a Lei 9.714/98, que altera
dispositivos do Código Penal, em vigor desde 1940, introduzindo novas espécies

75
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Prestação de Serviços à Comunidade, Projetos Temáticos de Execução


de Alternativas Penais (grupos reflexivos), ações de responsabilização de
homens processados no âmbito da Lei Maria da Penha e acompanha-
mento de Medidas Cautelares.
Para além do acompanhamento da determinação judicial, a
CEAPA também busca atuar nas vulnerabilidades sociais e no risco cri-
minal, observados pela equipe técnica e/ou relatados em atendimento
pela pessoa em cumprimento de alternativa penal. Por meio de ações
que buscam promover a cidadania e o exercício da emancipação, a
CEAPA realiza articulações, intervenções e constrói encaminhamentos
para a rede de proteção social, visando o acesso aos direitos fundamen-
tais, a minimização dos riscos de reentrada no sistema de justiça, con-
siderando a autonomia do sujeito e a ressignificação de suas vivências no
cumprimento da alternativa penal.
A CEAPA também é responsável por realizar visitas de captação
de novas parcerias, bem como visitas de monitoramento para acompa-
nhamento e suporte às instituições parceiras que recebem a pessoa em
cumprimento de alternativa penal. Sendo assim, nos fluxos estabelecidos
pela CEAPA com a instituição, os contatos estabelecidos são periódicos,
desde o encaminhamento inicial, até o acompanhamento de possíveis
intercorrências surgidas ao longo do cumprimento que demandem arti-
culações e intervenções de ambas as partes.

A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE: RESPONSABILI-


ZAÇÃO COM LIBERDADE

A Prestação de Serviços à Comunidade como forma de sanção


penal surge, no final do século XIX, como uma alternativa à pena priva-
tiva de liberdade, limitada aos casos de reconhecida necessidade, como

de penas restritivas de direitos, dentre elas a prestação pecuniária e a prestação


de serviços à comunidade[1], ampliando sua abrangência considerando, dentre
outros, requisitos objetivos como a pena privativa de liberdade não ser superior
a quatro anos e o crime não ter sido cometido com violência ou grave ameaça.

76
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

destaca Oliveira (1988), tendo-se como justificativas a superlotação dos


presídios, a redução dos custos de sua manutenção e o favorecimento da
ressocialização do indivíduo, evitando o contato carcerário e a decorrente
estigmatização.
Como uma das modalidades de cumprimento das alternativas pe-
nais, a prestação de serviços à comunidade considera a adequação das
leis aos direitos fundamentais do cidadão, já que esta forma de pena
prevê, como afirma Guarezi (2004):

[...] um caráter compensatório, no qual o prestador busca reparar o “dano”


que cometeu, através do trabalho gratuito; o caráter preventivo, visto que
faz com que o indivíduo reflita sobre sua pena, não reincidindo. E por fim, o
caráter educativo, em que o indivíduo se vê como pessoa digna de respeito,
descobrindo o seu valor junto à sociedade. (GUAREZI, 2004, p. 42).

A Prestação de Serviços à Comunidade, como uma das alterna-


tivas penais dispostas, consiste em tarefas gratuitas, sem prejuízo das
atividades laborais e que devem considerar a disponibilidade e as habi-
lidades da pessoa em cumprimento da alternativa penal, prestadas à co-
munidade ou a entidades públicas, sem fins lucrativos, que estabeleçam
parceria com a CEAPA.

MARCELO2 E SEU PERCURSO: DA CEAPA PARA A INSTITUIÇÃO

A parceria entre a instituição, uma escola do município de Ves-


pasiano e a CEAPA iniciou-se em 2015. Nota-se que a instituição sempre
demonstrou sensibilidade em sua participação na execução da prestação
de serviços, demonstrando, conforme destaca Bitencourt (1993), a im-
portância do apoio da própria comunidade para que esta seja uma inicia-
tiva de sucesso.
Encaminhado pelo Juizado Especial Criminal de Vespasiano,
Marcelo comparece à CEAPA em maio/2019. Foi realizado com ele o
atendimento inicial previsto na metodologia do Programa para obtenção

2 O nome expresso neste texto é fictício, criado para descrever o relato de ex-
periência sem expor sua real identidade.

77
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

de informações e análises mínimas da pessoa em cumprimento de alter-


nativa penal, de modo a favorecer um encaminhamento mais assertivo,
levando-se em consideração suas características, habilidades, experiên-
cias, restrições, dentre outros.
Marcelo, à época, estava com 25 anos, se autodeclarou pardo
e relatou que não havia concluído o último ano do ensino médio, pois
começou a trabalhar e ficou muito cansado. Era solteiro, não tinha filhos
e morava com a mãe e um irmão mais velho, não nos fornecendo mais
informações sobre o vínculo com sua filiação natural. Trabalhava formal-
mente no comércio no período da manhã, estando disponível no restante
do tempo. Não apresentou projetos de vida e dizia que vivia um dia de
cada vez.
O Poder Judiciário determinou que cumprisse trinta e duas horas
de prestação de serviços à comunidade pela prática do delito de pichar
ou grafitar, previsto no Art. 65, da Lei 9605/98 de Crimes Ambientais.
Marcelo relatou que era a segunda vez que respondia pelo mesmo delito.
Da outra vez, de cujo ano não se lembrava, pichou o muro de um lote
vago, sendo abordado pela Guarda Municipal de outro município. Teve
que cumprir uma alternativa penal pintando o muro e participando de
uma “aula” no museu.
Dessa vez, pichou a porta de um shopping fazendo questão de
dizer que não era pichação e sim “grapixo”. Ao ser solicitado que ele ex-
plicasse a diferença de um para o outro (uma forma de arte urbana que
mistura as técnicas do grafite e da pichação, como forma de expressão
e contestação), sorriu e se sentiu mais à vontade, demonstrando maior
abertura no atendimento.
Até então, denotava certa contrariedade por estar na CEAPA no-
vamente, uma vez que já havia sido atendido na CEAPA de Belo Horizon-
te. Acreditava que cumpriria a prestação de serviços à comunidade da
mesma forma. Apesar disso, e mesmo demonstrando ser mais retraído e
de poucas palavras, postou-se tranquilo, cordial e disponível durante o
atendimento.
Marcelo não destacou nenhuma habilidade, bem como não apre-

78
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

sentou restrições em relação às atividades, ou problemas de circulação


no território; apenas solicitou que fosse encaminhado para alguma
instituição localizada em dois bairros sugeridos por ele, para facilitar seu
deslocamento logo após o trabalho, mencionando a escola municipal
onde cursou o ensino fundamental.
Alguns dias depois, seu encaminhamento foi autorizado pela dire-
tora da escola. Marcelo compareceu no dia seguinte à CEAPA e participou
do Grupo de Inicialização, que consiste em ação metodológica que visa
informar, orientar e preparar a pessoa em cumprimento da alternativa
penal para o início do cumprimento da prestação de serviços, recebendo
então o encaminhamento que deveria ser apresentado na instituição e a
folha de ponto, documento de comprovação mensal das horas cumpri-
das.
No mês seguinte, retornou trazendo a folha de ponto com algu-
mas horas cumpridas, relatando de forma tímida que a diretora havia
pedido para ele “escrever umas letras e fazer uns desenhos” no muro da
escola. A princípio, menciona certa dificuldade já que dizia não saber de-
senhar, mas que estava conseguindo fazer as atividades propostas e que
tinha sido bem acolhido pela instituição.
Nesse intervalo, a diretora da escola menciona, em contato rea-
lizado pela CEAPA por telefone, que Marcelo estava indo muito bem, que
estava escrevendo o nome da escola no muro e, com o apoio de outros
funcionários da escola, estava sendo orientado quanto aos desenhos a
serem feitos. Compartilhou que Marcelo havia sido elogiado também pela
diretora de outra escola, a qual gostaria que a dela estivesse tão “alegre”
quanto aquela.
Marcelo finaliza o cumprimento da prestação de serviços à co-
munidade cerca de dois meses depois. Observa-se que as palavras ainda
lhe faltam, mas é possível notar a mudança na sua postura. Disse que
a diretora era “brava demais” porque colocava os alunos para “catarem
chiclete no chão” e ele ri, agradecido, por ela não ter sido diretora à época
em que estudava lá. Recebe então retornos positivos da instituição, diz
que gostou de cumprir lá, que as pessoas eram muito “gente boa” e que

79
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

voltaria lá outras vezes para terminar a atividade iniciada (estava aguar-


dando comprarem uma tinta verde), independente do término do cumpri-
mento da prestação de serviços. Menciona que, desta vez, a prestação de
serviços fez mais sentido do que “visitar museu”. Ainda neste atendimen-
to, Marcelo mostra algumas fotos tiradas de seu trabalho realizado na
instituição, demonstrando a satisfação em participar de uma atividade
útil e construtiva, que é resultado de sua atuação.

CONVIVÊNCIA, VÍNCULO, AFETO E AMIZADE: O SABER DA


EXPERIÊNCIA

Em visita de monitoramento realizada na instituição onde Marce-


lo cumpriu a alternativa penal, em agosto/2019, fomos recebidos pela
diretora da escola, que trouxe relatos enriquecedores envolvendo toda a
comunidade escolar.
No que toca ao acolhimento e acompanhamento de Marcelo na
instituição afirmou que “neste percurso [...], ultrapassou a relação de
cumpridor para se tornar um voluntário e amigo da escola”, o que nos
leva a refletir sobre a experiência e o saber de experiência, nos dizeres
de Jorge Larrosa Bondía: “A experiência é o que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o
que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo,
quase nada nos acontece [...]” (BRASIL, 2017, p. 55).
Como ressaltado anteriormente, a CEAPA visa atuar em uma
lógica de trabalho que compreende a responsabilização com liberdade e
aposta no potencial qualitativo de acolhimento do indivíduo através da es-
cuta e da elaboração de possíveis encaminhamentos, que possam surgir
durante o atendimento e, que apontam, em muitos casos, para estigmas
sociais que ultrapassam o lugar social no qual a pessoa em alternativa
penal é colocada. Tal posicionamento adotado pela CEAPA contrapõe, em
alguma medida, a dimensão de vínculo presente no imaginário do público
atendido, no que tange à relação estabelecida junto ao Poder Judiciário,
que é atravessada por relações que envolvem autoridade.

80
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Considerando tais lugares na esfera institucional, cabe pensar


nas dimensões afetivas nas quais o sujeito é inserido no contato com as
esferas públicas, bem como o efeito gerador de um estigma em relação ao
próprio serviço ofertado. Nesse sentido é preciso considerar a construção
de uma lógica alternativa, não somente no que diz respeito à prisão, mas
também no trato com o público atendido. Este tipo de relação é possível
de acordo com Freire (1980), mencionado por Brandão (1998):
Para Maturana, todas as organizações sociais se constroem sobre certas
emoções fundamentais. É possível construir uma relação baseada no amor
e na amizade, tendo como pano de fundo a linguagem dialógica (Freire,
1980) e como objetivo a alteridade e o bem comum. Do mesmo modo, tam-
bém é possível a construção de relações baseadas na autossuficiência de
si mesmo, na rejeição do diferente, na linguagem despótica e solipsista,
cujo fim é a exclusão do outro e a desumanização de si, pela formação de
organizações hierarquizadas e fundadas em uma relação onde o outro,
impossível de ser eternamente apagado da vida, apareça apenas como me-
diação pragmática ou quimérica da realidade. (FREIRE apud BRANDÃO,
1998, p. 118).

Ao mencionar o afeto, propõe-se dizer de encontros, a partir de


uma condição de igualdade, que afetam e mobilizam pessoas provocando
transformações que podem criar, sustentar ou fortalecer vínculos sociais
e comunitários, à medida em que possibilita ao sujeito se inserir e ser
percebido de outra maneira no espaço, contribuindo para o aumento da
sua potência de agir. Conforme referenciado acima, tal ato parte de outra
concepção de sujeito que, consequentemente, gera outras possibilidades
de construção. Em se tratando da experiência descrita, vale mencionar o
comentário da diretora da escola ao retratar a postura do cumpridor em
sua chegada à instituição e sua mudança ao longo do processo de cum-
primento da prestação de serviços à comunidade:
Para a instituição escolar, receber esses prestadores também se torna
uma oportunidade de aprendizagem e crescimento, de mudança de pre-
conceitos e de estereótipos. No caso de Marcelo, foi isso que aconteceu.
Vindo com um estereótipo de garoto problema, passou a ser um cola-
borador voluntário. Além de pintar o muro, ele também ajudou a escola na
organização e decoração da festa junina e em qualquer outro trabalho que
fosse solicitado a fazer [...] Marcelo propôs voltar para realizar os trabalhos
como voluntário o que realmente aconteceu semanas depois. O cumpridor
terminava seu trabalho, mas o grafiteiro apenas iniciava sua vocação. (Re-
lato de experiência realizado em agosto/2019).

Através da convivência houve uma alteração no olhar sobre a

81
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

instituição, um envolvimento com a prática no que tange ao desenvolvi-


mento das atividades, incluindo seu potencial criativo e prático, uma vez
que Marcelo propôs e construiu com a escola uma maneira mais eficaz
de realizar as tarefas propostas, bem como em seu vínculo com a co-
munidade escolar. A esta vinculação afetiva podemos chamar ainda de
amizade, que, de acordo com Aristóteles, mencionado por Brandão (1998),
inclui pelo menos três requisitos, percebidos no relato e no envolvimento
de Marcelo:

[...] a). É preciso que haja uma aproximação entre as pessoas; b) que isso
gere um conhecimento mútuo entre elas e c) que cada um deseje o bem do
outro. Aristóteles sabe que a aproximação entre os indivíduos nem sempre
ocorre visando o bem comum. As pessoas se aproximam uma das outras
sobretudo pela necessidade, ou quando se julga que um pode servir de
utilidade ao outro, ou porque o outro lhe parece agradável, mas a amizade
só se instala realmente quando a finalidade que se coloca é o bem de si e
do outro, a virtude. (BRANDÃO, 1998, p. 113).

Independente do termo mais adequado para a relação estabelecida é


interessante perceber os atravessamentos e o alcance subjetivo da ex-
periência que, por si só, é relevante. Analisando os pontos menciona-
dos por Brandão (1998), como a aproximação, a troca de conhecimento
mútuo entre os envolvidos e o apreço pelo bem comum é possível obser-
var, em alguma medida, a sua consonância com o relato de experiência
da diretora da escola e com a realidade percebida pela equipe no acom-
panhamento do caso. Mesmo não contemplando fidedignamente todos
os pontos, é possível refletir sobre o alcance e a dimensão da prestação
de serviços à comunidade em vias subjetivas, no que se refere à aproxi-
mação dos envolvidos - no caso tem-se o delito, a escuta psicossocial e a
mediação da equipe através do vínculo institucional.
Já no segundo ponto, tem-se a troca de saberes, a partir de ele-
mentos como a expertise de Marcelo ao sugerir materiais e equipamentos
mais adequados para a execução da atividade demandada, bem como ao
convidar a direção da escola para que também participasse do processo:
No primeiro dia de pintura, recebeu da direção da escola uma brocha e a
tinta para pintar o muro chapiscado da lateral interna da quadra. O tra-
balho foi difícil e complicado devido aos recursos materiais, e Marcelo
reclamou, alegando que seu serviço não ficaria satisfatório. No dia seguinte, ele

82
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

tomou a iniciativa e providenciou um borrifador de plantas para pintar o


muro. A pintura ficou com um aspecto melhor, já que com o novo instrumen-
to de trabalho ele conseguiu cobrir com facilidade os chapiscos no muro.
[...] Marcelo foi chamado para conversar sobre o grafite no muro, e este
informou que não sabia realizar desenhos, que fazia “grapixo” [...] Alguns
dias antes de iniciar a escrita do nome da escola, o porteiro orientou o outro
cumpridor a pintar o muro e a fachada da entrada da escola de branco.
À tarde, a coordenadora, orientou Marcelo sobre como fazer os desenhos,
onde colocar as letras e distribuir no espaço os desenhos que ela havia
retirado da internet. Os primeiros traços foram realizados com giz de cera,
depois com spray cinza (por ser mais fácil de apagar no caso de errar).
Aos poucos Marcelo foi transformando o muro, e os desenhos feitos por ele
deram um novo aspecto, alegre e colorido, para a entrada da escola. [...] A
diretora da escola também aprendeu, não só a manipular o spray e a usar
o borrifador de plantas para pintar, mas principalmente, que oferecer ao
outro uma oportunidade é também criar uma nova oportunidade para si,
para a equipe e para todos da escola. (Relato de experiência realizado em
agosto/2019).

Com relação ao terceiro ponto, não se pode dimensionar a pro-


porção do afeto e da amizade estabelecida para a via do bem comum, mas
o relato da direção de que Marcelo compareceu à escola em um dia em
que estava “sem fazer nada em casa” pode dizer da capacidade de afetar
e ser afetado, traduzida ao deixar marcas no outro e ter marcas do outro
em si, além da noção de pertencimento claramente estabelecida com o
espaço. Ainda se tratando do terceiro ponto, durante a visita de monito-
ramento realizada, a diretora mencionou a fala de uma funcionária, que
aponta a sua percepção de mudança de comportamento de Marcelo com-
parando sua postura na escola e como morador daquele território: “ele
mal abre a boca, e aqui vejo ele conversando e rindo”, contrapondo a sua
chegada na instituição em que a diretora disse que “ele demonstrava-se
irritadiço e mal-humorado”, diferente da postura dos demais cumpri-
dores que estavam “com olhares envergonhados ou postura indolente”.

Nos encontros que expandem e fortalecem as pessoas, estabelecem-se


‘paixões alegres’, que ampliam a potência de agir, fortalecendo a vonta-
de de estar com os outros, de compartilhar e de se afirmar como pessoa.
(BRASIL, 2017, p.22).

Além disso, pode-se dizer que a postura de transparência e aco-


lhimento adotada pela direção da escola, ao mencionar que “ele é apre-
sentado aos funcionários da equipe pedagógica, da secretaria, da cantina,
da limpeza e da portaria”, favorece a abertura e a corresponsabilização

83
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

de toda a comunidade escolar, no que se refere ao acompanhamento e


ao trato com as pessoas em cumprimento de alternativa penal, o que se
constitui fator significativo em todo esse processo, cuja análise propuse-
mos aqui.

CONCLUSÃO

A análise do relato de experiência ressalta a proposta de acom-


panhamento da CEAPA, que pretende ir além do preenchimento da fo-
lha de ponto da pessoa em cumprimento da alternativa penal e da dis-
tribuição de tarefas, para propiciar o fortalecimento da convivência e dos
vínculos sociais e comunitários, bem como a possibilidade de contribuir
com um espaço de acesso do próprio indivíduo, cabendo a seguinte re-
flexão: quais dimensões qualitativas o acompanhamento da CEAPA é ca-
paz de proporcionar?
Acreditar, como afirma Brandão (1998), que “só é possível a hu-
manidade com a aceitação do outro como legítimo outro”, ainda que pela
via das alternativas penais, constroi um horizonte infinito de possibili-
dades.
A prestação de serviços à comunidade, desde que compreendi-
da em seu caráter preventivo e pedagógico, pode contribuir para o for-
talecimento do vínculo de filiação de natureza eletiva, que se refere à
socialização que o indivíduo estabelece com outras pessoas, grupos e
instituições (BRASIL, 2017, p.32), colaborando para seu sentimento de
pertencimento a um lugar e reconhecimento social, sobretudo, por parte
da comunidade em que se está inserido. Como afirma Sposati (2012),
“convivência é forma, vínculo é resultado”.

84
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cézar Roberto. Falência da Pena de Prisão: causas e al-


ternativas. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 670, Ed. Saraiva, 1993.
p. 241-253

BRANDÃO, I.R. Amor e amizade nos jardins da Psicologia Comu-


nitária: uma contribuição da filosofia política ao trabalho psicológico. In
BRANDÃO, I.R; BOMFIN, Z.A.C. Os jardins da Psicologia comunitária:
escritos sobre a trajetória de um modelo teórico-vivencial. Ceará: Pró-Re-
itoria de Extensão da UFC/ABRAPSO-Ceará, 1999, p.111-120.

BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juiza-


dos Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências.

BRASIL. Lei nº 9.714, de 25 de novembro de 1998. Altera dispositivos do


Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Concepção de convivên-


cia e fortalecimento de vínculos - Brasília, DF: MDS, Secretaria Nacional
de Assistência Social, 2017.

DAMÁSIO, E. de Jesus. Penas Alternativas: anotações à lei 9.714, de 25


de novembro de 1998. São Paulo: Saraiva, 1999.

GUAREZI, Cláudia. Prestação de serviços à comunidade: uma medida


cidadã (Trabalho de Conclusão de Curso) - UFSC. Florianópolis, 2004.

MINAS GERAIS. Prevenção à Criminalidade: a experiência em Minas


Gerais. Belo Horizonte: SENASP, 2009.

OLIVEIRA, Juarez de. Código Penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva. 1988.

85
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

SPOSATI, Aldaiza. Proteção Social na América Latina em Contexto da


Globalização. Brasil: Permalink, 2011. http://www.capemisasocial.org.
br/capemisasocial/ blog/ Lists/Postagens/Post.aspx?ID=33. Acessado
em10/10/2012.

86
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

ALTERNATIVAS PENAIS COMO PRÁTICA DE PREVENÇÃO DA


VIOLÊNCIA: ESTUDO DE CASO SOBRE SUA APLICAÇÃO EM
PESSOAS CONDENADAS POR TRÁFICO DE DROGAS EM BELO
HORIZONTE

Lucas Pereira de Miranda1 2 3

INTRODUÇÃO

O Centro de Estudos Penitenciários apurou que, entre os anos


de 2000 e de 2016, ocorreu um aumento de 20% da população prisional
no mundo e que existem atualmente cerca de 10,35 milhões de pessoas
institucionalizadas em unidades penitenciárias. Entre os países relacio-
nados, o Brasil se apresenta como a terceira maior população prisio-
nal, com cerca de 672.722 pessoas reclusas (INSTITUTE FOR CRIMINAL
POLICY RESEARCH, 2018). Dados e pesquisas consultados demonstram
que esse fenômeno acarreta não só o aumento dos gastos públicos rela-
cionados à ampliação e manutenção do Sistema Prisional, mas também
implica elevação dos índices de superlotação das unidades penitenciárias
e prejuízo para a saúde das pessoas privadas de liberdade4.

1Advogado. Atua como Coordenador Estadual do Programa Justiça Presente /


MG do Conselho Nacional de Justiça e do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento. Foi Superintendente de Políticas Penais de Prevenção à Crim-
inalidade, parte integrante da Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade (Sec-
retaria de Estado de Justiça e Segurança Pública/ Governo do Estado de Minas
Gerais).
2 Este trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Ulysses de Barros Panisset, professor
adjunto do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Me-
dicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
3 Este trabalho é uma síntese da dissertação de mestrado apresentada ao Pro-
grama de Pós-Graduação em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência, da
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Promoção da Saúde e
Prevenção da Violência.
4 As inspeções do Conselho Nacional de Justiça nos estabelecimentos prisionais
brasileiros registraram ambientes precários e insalubres, caracterizados por um
ambiente favorável à proliferação de “epidemias e ao desenvolvimento de patolo-
gias e psicopatologias [...] com prevalência consideravelmente elevada de casos de
agravos transmissíveis, além dos não transmissíveis” (SOARES FILHO e BUENO,
2016, p.2000).

87
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Para reverter esse quadro de hiperencarceramento (MATHIESEN,


2003, p.81), o Escritório sobre Drogas e Crimes das Nações Unidas
(UNODC, 2010) aconselha aos Estados uma série de medidas; entre
elas a inclusão na legislação penal de uma variedade de alternativas
penais diversas da prisão, recomendando a aplicação dessa medida,
mais especificamente para pequenos traficantes de drogas ilícitas. Tal
recomendação poderia contribuir para uma política mais ampla voltada
para o desencarceramento, visto que a repressão ao tráfico de drogas foi
um dos fatores centrais para a intensificação do encarceramento a partir
da década de 80 (KARAM, 2015) e, também, porque representa cerca de
28% do motivo pelo qual as pessoas encarceradas estão presas no Brasil
(BRASIL, 2014, p. 69).
Contudo, a legislação brasileira e os operadores do Sistema de
Justiça Criminal Brasileiro tendem a manter uma posição conservado-
ra sobre o tema. Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
identificou que Juízes e representantes do Ministério Público apresentam
resistências à substituição da pena privativa de liberdade por alternati-
vas penais, porque entendem que o tráfico de drogas deveria ser punido
com severidade, já que as drogas consideradas ilícitas seriam uma porta
de entrada para a criminalidade e que substituir a prisão dessa forma
levaria a uma sensação geral de impunidade. Esta posição é reforçada
pelo argumento de que existem problemas estruturais na fiscalização de
alternativas penais e resistência das entidades sociais em receber pes-
soas condenadas por tráfico de drogas para cumprimento de prestação
de serviços à comunidade (IPEA, 2015, p.87).
Diante desses argumentos, vislumbrou-se a necessidade de ex-
plorar e conhecer melhor a aplicação concreta das alternativas penais
para os casos de tráfico de drogas. Para tanto, foi escolhida a cidade de
Belo Horizonte como local de estudo, justamente pela existência de es-
trutura para o acompanhamento de alternativas penais, denominado de
Programa Central de Acompanhamento de Alternativas Penais (CEAPA),
ação do Governo do Estado de Minas Gerais que tem “como objetivo con-
tribuir para o fortalecimento e consolidação das alternativas à prisão no

88
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Estado de Minas Gerais, pautando ações de responsabilização com liber-


dade” (MINAS GERAIS, 2017, p.50). Esta circunstância permitiu ava-
liar uma prática que fosse minimamente estruturada e com condições
de materializar a substituição da prisão para os casos estudados nessa
pesquisa.
Dado isso, foi realizado um levantamento específico sobre o perfil
socioeconômico das pessoas que se inscreveram nesse Programa para
cumprir as alternativas penais no período de janeiro de 2014 a dezembro
de 2016, bem como a condição de cumprimento de tais casos, consi-
derando três categorias: (a) casos que cumpriram integralmente ou que
estão em cumprimento regular; (b) casos que não cumpriram a alterna-
tiva penal; (c) outras situações que impedem o início ou a continuidade
do cumprimento da alternativa penal, como cometimento de outro crime,
resistência das instituições, outros problemas relacionados. Essa análise
teve como objetivo verificar uma efetividade no processo de cumprimento
das Alternativas Penais propriamente ditas. Além disso, foi levantado o
índice de recorrência dessas pessoas no Sistema Prisional, correlaciona-
ndo a sua ocorrência com as variáveis socioeconômicas levantadas.
Por fim, foram escutados os profissionais que acompanham dire-
tamente as pessoas em Alternativas Penais durante a execução da me-
dida. Levantar percepções desses atores foi uma aposta no sentido de
colher elementos mais concretos sobre a interação que passa a surgir
entre o sujeito rotulado como criminoso e estas entidades. Essa parte da
pesquisa procurou aferir uma avaliação desses profissionais sobre a par-
ticipação de pessoas condenadas por tráfico de drogas, vantagens e pro-
blemas acarretados no processo de cumprimento, a prestação de serviços
à comunidade como prática de promoção de saúde e suas propostas para
melhor implementação das Alternativas Penais para esses casos. Para
tanto, utilizou-se de entrevistas semiestruturadas. Estes resultados es-
tão localizados no tópico “Pesquisas Qualitativas”.
Como aprofundaremos mais à frente, a Política de Alternativas
Penais se propõe a romper com as lógicas retributivas e de ressocia-
lização atribuídas à pena privativa de liberdade, porém, para que se

89
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

constitua como uma via capaz de prevenir conflitos e violências por meio
do fortalecimento de vínculos entre cumpridores e a sociedade, precisará
compreender melhor as consequências reais da aplicação das modali-
dades de alternativas penais, sob o risco de vender uma perspectiva ide-
alizada que não se reproduz nas interações reais e na prática cotidiana.
Há que se considerar, ainda, que é de fundamental importância
estudar as estratégias relacionadas ao desencarceramento em virtude
dos impactos para saúde causados pela superlotação prisional, levan-
do em conta, também, a abordagem proposta pela Organização Mundial
da Saúde de recomendar a todos os setores que considerem, em seus
processos de tomada de decisão, possíveis implicações “nos sistemas
de saúde, nos determinantes da saúde e no bem-estar das populações”
(WHO, 2014, p. 9).

MÉTODO

1. INFORMAÇÕES GERAIS

Trata-se de pesquisa qualitativa e exploratória, do tipo estudo de


caso, que propõe a associação de procedimentos metodológicos. A popu-
lação de estudo se constitui por pessoas condenadas pelo crime de tráfico
de drogas e obrigadas a cumprir sanções alternativas à prisão, na moda-
lidade de prestação de serviços à comunidade e/ou Projetos Temáticos,
no município de Belo Horizonte.
Este projeto se insere no âmbito do Projeto de Pesquisa “O Sujeito
e sua relação com a lei” de nº CAAE 32630914.7.0000.5149. As infor-
mações quantitativas apresentadas nessa pesquisa foram gentilmente
cedidas pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública, que
também autorizou o acesso às informações e suas fontes e aprovou a
realização da pesquisa. Todos os participantes foram avisados sobre os
objetivos da pesquisa e da garantia de sigilo quanto às informações re-
latadas. Aqueles que concordaram em participar assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido.

90
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

2. DESENHO DA PESQUISA

2.1. PARTE QUANTITATIVA

Como ponto de partida, buscou-se conhecer as informações so-


cioeconômicas de uma dada população condenada pelo Poder Judiciário
por crime de tráfico de drogas e inscrita para iniciar o cumprimento da
medida judicial no Programa CEAPA, e, em seguida, verificou-se a ocor-
rência dos seguintes desfechos: (1) do cumprimento da alternativa e (2)
recorrência no Sistema Prisional.
A população amostrada são os cumpridores de Alternativas Pe-
nais inscritos no Programa CEAPA entre janeiro de 2014 e dezembro
de 2016. A escolha desse período considerou como primeiro elemento o
fato de que apenas a partir de 2014 existiam informações disponíveis do
Programa CEAPA para análise dos casos de tráfico de drogas, bem como
porque é recomendável a existência de um lapso de tempo mínimo para
verificar a incidência dos desfechos estudados.
As informações levantadas eram oriundas de momentos dife-
rentes: as informações socioeconômicas foram retiradas de banco de da-
dos que registra as informações do momento da inscrição das pessoas
em alternativa penal na CEAPA, o que ocorreu em tempos diferentes para
cada pessoa da amostra (entre janeiro de 2014 e dezembro de 2016). A
informação de cumprimento foi uma análise feita em abril/2018.
Para verificar a recorrência de cada indivíduo da amostra no Siste-
ma Penitenciário, buscou-se individualmente no Sistema de Informações
Penitenciárias (INFOPEN) o evento 2 “entrada no sistema prisional” em
data posterior ao evento 1 “inscrição no Programa CEAPA para dar início
ao cumprimento da alternativa penal”. Insta destacar que o conceito de
recorrência no Sistema de Informações Penitenciárias é um novo rein-
gresso a uma unidade penitenciária, o que pode ocorrer nos casos de Al-
ternativas Penais por tráfico de drogas quando (SAPORI, SANTOS E WAN
DER MAAS, 2017, p.2): (a) há um descumprimento da medida e uma
conversão da alternativa penal em prisão; (b) quando a pessoa em alter-

91
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

nativa penal é condenada pela prática de um novo crime, com aplicação


de pena privativa de liberdade, ou, (c) quando é acusada pela prática de
um novo crime, e a autoridade judicial define pela prisão preventiva da
mesma.

2.2. PESQUISA QUALITATIVA

A etapa final desta pesquisa buscou levantar a percepção dos


profissionais que acompanham diretamente as pessoas em Alternativas
Penais durante a execução da medida. A expectativa era de colher ele-
mentos mais concretos sobre a interação que passa a surgir entre o cum-
pridor e estas entidades.
Em função disso, utilizou-se de informantes-chave e critérios de
seleção. Entrevistas semiestruturadas com informantes-chave consistem
em uma possibilidade de pesquisa para o levantamento de problemas
percebidos por atores sociais que se relacionam diretamente com o tema
pesquisado e é um dos recursos possíveis, dentro do método de Esti-
mativa Rápida, que busca obter informações em um curto período de
tempo e com baixo custo (CAMPOS, FARIA E SANTOS 2010). Diante do
arranjo institucional complexo observado no fluxo de aplicação de Alter-
nativas Penais5, entendeu-se necessário trabalhar com alguns critérios
de seleção, quais sejam: (1) profissionais inseridos em entidades que par-
ticipem do fluxo de acompanhamento de pessoas em cumprimento de
Alternativas Penais pelo crime de tráfico de drogas; (2) dentro dessas en-
tidades, foram entrevistados apenas profissionais que fossem referência
no acompanhamento destas pessoas; e, (3) para seleção das entidades,
considerou-se a necessidade de incluir entidades diversificadas no seu

5 Segundo consta no portfólio da Política de Prevenção à Criminalidade, em Belo


Horizonte são encaminhadas ao Programa CEAPA cerca de 10.000 alternativas
penais por ano, sendo que quase 40% dessas medidas estão concentradas no
município de Belo Horizonte (Governo de Minas Gerais, 2017). É preciso formar
uma rede de entidades parceiras suficientemente distribuídas pelo município e
com horários de funcionamento variados, tendo em vista que a PSC precisa con-
templar moradores de todas as regiões do município e se ajustar à disponibili-
dade das pessoas em alternativas penais, considerando seus horários de trabalho
e estudo (BRASIL, 2016, p. 21 e 22).

92
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

objeto de trabalho, mas que atuem diretamente no fluxo de execução de


Alternativas Penais.
Os critérios acima apontados foram delimitados em virtude do
interesse de levantar elementos sobre uma prática mais concreta com
os casos de tráfico de drogas, evitando que estereótipos ou preconceitos
acabassem ficando em um primeiro plano em relação às experiências
reais dos profissionais.
Para a realização dessas entrevistas, o pesquisador fez contato
telefônico com seus responsáveis, marcando uma visita nessas entidades
para dialogar com os profissionais que acompanhavam diretamente as
Alternativas Penais, facilitavam os grupos reflexivos dos Projetos Temáti-
cos e/ou supervisionavam diretamente a prestação de serviços à comu-
nidade. O uso de entrevistas semiestruturadas considerou a qualidade e
experiência dos entrevistados e com respostas não “condicionadas a uma
padronização de alternativas” (MANZINI, sem ano, p.2). As entrevistas
semiestruturadas acabaram por produzir entrevistas mais dialogais, que
favoreceram a captação da riqueza informacional dos entrevistados.
Essas entrevistas ocorreram entre os meses de abril e junho de
2018, e foram gravadas por meio de Smartphone, com uso do aplicativo
Recorder, com duração de 10 a 30 minutos cada uma, e posteriormente
transcritas pelo próprio pesquisador. Preliminarmente, as entrevistas
foram transcritas integralmente, sem edições ou correções gramaticais.
Os participantes foram designados por letras (P) e números (de 1 a 15).
Após a transcrição das entrevistas, estas foram escutadas e lidas por
vezes repetidas, possibilitando sua sistematização e categorização.

RESULTADOS QUANTITATIVOS

A amostra dessa pesquisa abrangeu todas as pessoas inscritas no


Programa CEAPA para cumprir Alternativas Penais por crimes de tráfico
de drogas em Belo Horizonte entre 2014 e 2016, pela qual constou-se o
registro de 682 indivíduos. Os achados dessa pesquisa confirmam que o
perfil do público, de modo geral, é predominantemente masculino, negro,
jovens de 18 a 30 anos, solteiros, com uma situação profissional infor-

93
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

mal ou precária, com baixa escolaridade e uma renda que não supera 02
salários mínimos.

Tabela I - Variáveis socioeconômicas

Variáveis Socioeconômicas
Sexo 90% - homens
10% - mulheres
Cor/Raça 65% - negros
15.81% - brancos
18,64 – outras cores
Faixa etária 45,10% jovens – 18 a 24
26,40% jovens adultos - 25 a 29
21% adultos – 30 a 34
Situação 45,28 – Bicos, autônomos sem previdência
profissional ou empregados sem CT
34% empregados com CT e autônomos
com previdência
18% desempregados
Renda 51,7% - Recebem de 1 a 2 SM
7% - Recebem menos de 1 SM
27,13% - Não possuem renda
4,85% recebem renda superior a 2 SM
Estado Civil 64% - solteiros
26% - união estável
8% casados

Fonte: Elaboração própria.

A primeira consideração importante a ser feita é que o perfil aqui


apresentado não é uma amostra válida para inferirmos “quem são os
traficantes de drogas”, mas apenas aqueles que foram selecionados pelo
Sistema de Justiça Criminal e para os quais houve aplicação de Alter-
nativas Penais. Zaccone (2007) afirma que a atuação policial no Brasil
está mais voltada para o “varejo” do tráfico de drogas, o que leva a uma
atuação penal para pessoas com uma participação secundária: “aviões”,
“vapores” e “mulas”. Dessa forma, ao focar nesse tipo de repressão, aca-
ba existindo a tendência de o Sistema Penal alcançar majoritariamente a
população mais pobre (BATISTA, 1997), restando sem resposta6 diversas
condutas legalmente consideradas como tráfico de drogas não identifica-
das no próprio varejo, mas, especialmente, a participação daqueles não
identificados com o estereótipo de traficantes: pessoas de classe média,
ricos, políticos e empresários.

6 O que na literatura criminológica é denominado de “cifras ocultas” do Sistema


Penal.

94
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Quanto à análise do evento cumprimento / descumprimento


das Alternativas Penais, verificou-se que, na maioria dos casos, ocorre
o cumprimento da alternativa penal (60,80%)7, mas há também uma
grande incidência de casos de descumprimento (24,12)8. Fatores exter-
nos que interferiram no cumprimento das Alternativas Penais também
foram significativos, em especial baixas feitas pelo Poder Judiciário por
motivos não conhecidos nos registros da CEAPA (15,07%)9.

Ilustração I - Gráfico de comparação de grupos por situação de cum-


primento

Adesão  ao  cumprimento   descumprimento   Outros  fatores  

80,00%  

60,00%  
60,80%  
40,00%  

20,00%  
24,12%  
15,07%  
0,00%  

Fonte: Elaboração própria.

Uma outra forma de analisar os resultados seria desconsiderar


este último grupo e analisar apenas a relação entre os casos que ade-

7 Neste grupo se inserem aqueles em cumprimento regular ativo (194), aqueles


que cumpriram integralmente (149 pessoas) a alternativa penal e aqueles que
foram contemplados com o indulto natalino e tiveram suas penas baixadas pelo
Poder Judiciário (20).
8 O grupo que representa os casos da amostra que não aderiram ao cumprimento
da alternativa são aqueles que foram devolvidos ao Poder Judiciário por descum-
primento da alternativa penal (128 pessoas); aqueles que tiveram a alternativa
penal convertida em prisão ou relataram prisão provisória / preventiva (18); e que
a pena foi prescrita pelo decurso do tempo (1).
9 Por fim, o último grupo indica os casos que ocorreram circunstâncias que im-
pedem avaliar a adesão do cumprimento da alternativa penal porque extrapolam
a execução propriamente dita dessas medidas. São os casos: baixados pelo Poder
Judiciário por motivos desconhecidos pela CEAPA (43 pessoas), que faleceram ao
longo do cumprimento (3); que tiveram seu processo transferido para outra co-
marca (33); a pena foi substituída por outra alternativa penal não acompanhada
pela CEAPA (6), como uma pena pecuniária ou uma limitação de final de semana;
e o caso está suspenso e aguarda decurso de um determinado tempo para ser
reencaminhado para cumprimento (5).

95
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

riram e as pessoas classificadas como aquelas que descumpriram a al-


ternativa penal. Nesse caso, observa-se que 72% dos casos aderiram ao
cumprimento da alternativa penal.

Ilustração II - Adesão X Descumprimento

Fonte: Elaboração própria.

Ao analisar os resultados acima descritos é preciso considerar


que várias condições de cumprimento podem sofrer mudanças no de-
curso do tempo. Casos em cumprimento regular podem, por exemplo,
se colocar em situação de descumprimento por uma defasagem frente
ao cumprimento da prestação de serviços à comunidade ou, então, um
caso em que se informou descumprimento pode ser reencaminhado pelo
Juiz e passar a cumprir regularmente. Insta destacar que, antes dessa
“fotografia”, algumas mudanças, desde a inscrição dos casos na CEAPA,
também podem ter ocorrido.
Outro achado dessa pesquisa se refere ao levantamento da recor-
rência prisional. Dentro da amostra válida, identificou-se que 72,78%
das pessoas em Alternativas Penais por crimes de tráfico ilícito de drogas
não retornam ao Sistema Penitenciário, enquanto 27,21% incorreram em

96
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

algum tipo de nova recorrência prisional.

Tabela II - Recorrência no Sistema Penitenciário

Fonte: Elaboração própria.

Apesar de se ter constatado taxas inferiores à maioria das pesqui-


sas de reincidência de pessoas presas citadas ao longo deste trabalho,
não é possível comparar os resultados encontrados por diferenças me-
todológicas nos critérios de definição da reincidência, pelas diferenças de
tempo de análise e pela especificidade da amostra (pessoas que cumprem
por tráfico de drogas). Contudo, tais resultados podem inferir que, no
mínimo, os resultados não demonstram menor efetividade se relaciona-
dos com a pena privativa de liberdade, o que corrobora a pesquisa rea-
lizada por Killias e Villetaz (2008), nem que as pessoas envolvidas com o
tráfico de drogas sejam criminosas contumazes, pelo contrário, os acha-
dos reforçam a ideia de que é possível apostar na mudança de trajetória
das pessoas através de alternativas penais.

PESQUISA QUALITATIVA

Participaram da pesquisa quinze profissionais de doze diferentes


entidades: Programa Central de Acompanhamento de Alternativas Penais
(CEAPA); Setor de Fiscalização de Penas Substitutivas (SEFIPS); Terceira
Margem; Centro de Recuperação e Tratamento de Dependência Química
(CREDEQ); Escola Estadual São Pedro e São Paulo; Associação de Mães
Chefes de Família de Minas Gerais (ASSMIG); Associação de Moradores
da Vila Acaba Mundo; Lar Tereza de Jesus; Centro de Integração e Aten-
dimento ao Menor (CIAME); Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro
de Abreu (COMUPRA); Associação Mineira de Educação Continuada

97
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

(ASMEC) e Creche Sementes do Amanhã.


Essas entrevistas ocorreram na sede das entidades envolvidas,
possibilitando ao pesquisador uma compreensão mais vívida do campo
onde as práticas estudadas eram desenvolvidas. Apenas uma das entre-
vistas não transcorreu de forma presencial, no caso do SEFIPS, por ser
entidade já conhecida pelo próprio pesquisador.
Os profissionais que vivenciam o acompanhamento de Alternati-
vas Penais avaliaram que tais medidas são aplicáveis para pessoas julga-
das pelo crime de tráfico de drogas, sendo factível a sua materialização.
Segundo eles, ainda, a participação dos mesmos em espaço comunitário
permite uma responsabilização com liberdade, já que atuam como “vo-
luntários”, desempenhando, a partir de suas habilidades, atividades que
contribuem sobremaneira no desenvolvimento dessas entidades. Os rela-
tos desses profissionais nos permitem questionar afirmações no sentido
de que os casos condenados por tráfico de drogas, de antemão, “não pos-
suem o perfil” para o cumprimento dessas medidas.

Cada vez mais, a gente tem que procurar alternativas ao desencarcera-


mento. E, no caso de tráfico, esses tráficos menores, né? De pessoas que
também estão vulneráveis, e que muitas das vezes também são usuárias
e, por isso, traficam, eu entendo que pode ser uma via bem-sucedida, e
nós temos exemplos que podemos estar ilustrando. (P13)

Teve um caso também em comum, que ele chegou querendo colocar or-
dem, a mãe foi pedir a gente para gente assinar, queria que a gente só
assinasse e mandasse, porque são pessoas com poder executivo bom,
da classe alta, então nós não aceitamos. Por ele ser classe alta, média
ou alta, nós não vamos fazer isso, ele pediu pessoas influentes para vir
atrás da gente, pra gente poder aceitar, e nós não aceitamos. Aí o que que
aconteceu, passamos a trabalhar com esse rapaz aos sábados, nos nos-
sos eventos. Aí ele começou a vir, vestiu a nossa camisa, viu que não era
isso, todos os sábados. Chegou a brigar mesmo, jogar o papel. Quando
ele começou mesmo, viu que não tinha recurso, que nós não aceitávamos
dinheiro, propina [...] Assim que nós esclarecemos, ele viu que não aceit-
aríamos, disse que só poderia nos sábados. Aí ele foi, viu a forma como
tratávamos o povo, a forma da gente ser querido por tanta gente, de an-
gariar fundos para instituição, ele passou a procurar doações, viu que lá
na comunidade dele tinham pessoas que jogavam fora. Foi uma experiên-
cia tão boa, tão gratificante. (P9)

Eles sempre nos auxiliam, seja nos serviços gerais, numa horta que nós
temos [...] a gente procura ver a especificação que cada um. (P11)

A partir do momento que a pessoa é bem acolhida, ela já muda a forma de


lidar com a gente [...] nós temos mais é que agradecer essa parceria. (P8)

98
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Olha, para nós é muito bom. Por sermos uma instituição filantrópica, sem
fins lucrativos, que não tem ajuda governamental, que vive da ajuda de
pessoas socialmente responsáveis, de empresas, da sociedade civil, é
uma forma que a gente tem de tapar os buracos que ficam nas institu-
ições, porque a gente não tem condição de contratar essas pessoas. É
uma pessoa que vem para ajudar. (P10)

Apesar disso, estes profissionais também indicam que uma par-


cela dos casos de tráfico de drogas apresenta pontos dificultadores e
eventualmente barreiras relacionadas a (1) fatores socioeconômicos ou
(2) à manutenção do envolvimento em contextos de criminalidade e/ou
violência comunitária. Também apontam a (3) resistência de muitas ou-
tras entidades, menos dispostas a trabalhar com casos rotulados en-
quanto “traficantes”. Por fim, a (4) carga horária extensa também parece
ser um desafio, pela exigência de uma disciplina e um senso de auto
responsabilização por parte da pessoa em Alternativas Penais. Cumpre
ressaltar que alguns profissionais ressalvam que esses fatores também
ocorrem nos outros diversos casos em Alternativas Penais, mas aparen-
temente se verificam com mais recorrência nos casos de tráfico de drogas.

E existe também, eu vejo um outro dificultador aí: é a própria entidade.


Hoje, o que as entidades mais temem é o tráfico. Porque hoje toda família
brasileira, se ela não tem uma pessoa com problema de droga, conhece
alguém. (P15)

“Eu tenho conhecimento do que estou trabalhando, [...] então eu não tenho
dificuldade de trabalhar. Agora, uma diretora que não conhece nada dis-
so, ela tem medo, por isso que não dá certo a CEAPA escolher uma escola
e mandar para lá. Você não pode trabalhar com aquilo que não conhece.”
(P6)

Quando se trata de pessoas especificamente do tráfico, é um pouco mais


difícil aqui [...] a gente toma muito cuidado. Fui conversando com ele, e
ficou perguntando se tinha boca de fumo aqui, quem são as pessoas que
estavam aqui. Fui saber de onde ele era, ele era de outro lugar [...] A gente
tem muito medo nesses casos [...] Ele podia ser um risco para ele mesmo.
(P10)

Então, a gente encaminha ele para um espaço, e aí ele tem um retorno


de: “nossa, ali eu não posso ir, porque eu tenho um problema de rixa, né?
Tem uma questão de ameaça naquele território”. Então, alguns apresen-
tam num primeiro momento, e outros no decorrer do cumprimento, que o
próprio cumprimento pode ser ali um risco. A gente tem outros casos tam-
bém que são pessoas que já tem uma vinculação maior no território, e aí é
uma vinculação não no sentido de uma proteção social, mas de força, de
poder que eles estabelecem. (P1)

99
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Veio aqui e tentou colocar ordem, aqu com a gente. A gente não conse-
guiu ajudar esse rapaz. Ele foi para lá e, por ser da comunidade, a gente
conhece. Ele foi lá para cumprir, veio pra cá, mas ele não saiu do tráfico.
Então ele continua no tráfico, e ele tenta seguir a regra dele. Tanto é que
a gente encaminhou ele de volta [para CEAPA]. (P8)

Entre as propostas de melhoria na implantação da política, a pri-


meira recomendação foi no sentido da necessidade de trabalho contin-
uado de articulação de rede, capacitação de profissionais, ampliando os
esforços de comunicação entre as diversas entidades envolvidas, promo-
vendo troca de experiências e recursos entre todos os profissionais en-
volvidos nos diversos espaços de execução de Alternativas Penais. As ex-
celentes experiências relatadas pelos profissionais entrevistados podem
ser multiplicadas. Nesse sentido, o Poder Executivo, que é responsável
pelo Programa CEAPA, possui papel decisivo na criação desses canais de
comunicação e controle social.
Relacionado à execução, a gente precisa de mais espaço de formação,
principalmente para poder lidar com esses contextos que são relacionados
com o envolvimento criminal. [...] A gente [CEAPA] também precisa de ter
disponibilidade, uma disponibilidade maior, para construção desse tra-
balho com a rede parceira. Atualmente, eu sinto um pouco de falta disso
também. (P1)

As entidades precisam trabalhar mais em rede, se encontrar mais. Eu sei


que a gente fica muito no fazer. A gente atua demais e elabora de menos.
Temos que ter mais encontros de rede. A minha dificuldade você pode
estar ajudando nela. O meu conhecimento. O meu entendimento pode ser
esclarecido nesse contato. A rede tem que se conhecer. (P13)

A CEAPA pode ajudar a gente muito, num primeiro momento falando para
eles virem para o local preparados. Deveriam saber exatamente onde
manda. [...] Falar para gente das características da pessoa, eu quase não
pergunto o que a pessoa fez, mas no caso do tráfico a gente gostaria de
saber. [...] Pelo risco que eles trazem, pelo risco que eles correm. (P9)

Outra proposta também formulada por parte dos profissionais re-


laciona-se a ampliar as perspectivas de atuação relacionadas à Prestação
de Serviços à Comunidade, que deveria ganhar novos sentidos e possibi-
lidades de intervenção, incluindo (1) ações que visem o incremento da
escolaridade e/ou profissionalização, favorecendo o acesso ao merca-
do de trabalho, (2) a frequência em serviços de acompanhamento, como
CEAPA e SEFIPS, e/ou espaços de tratamento ou outras formas de in-
clusão comunitária; (3) e intervenções outras construídas com o próprio
cumpridor, podendo incluir práticas de fortalecimento de vínculos fami-

100
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

liares ou sociais. Além de ser uma prática de saúde, conforme as in-


formações levantadas nessa pesquisa, isso também parece contribuir
para reduzir riscos de recorrência prisional, na medida que favorece a
construção de outros projetos de vida. A possibilidade de execução de
Projetos Temáticos como parte da pena já acena para um contexto fa-
vorável para a construção desses novos sentidos.
Outra coisa também, cursos profissionalizantes para essas pessoas como
forma de cumprimento também. Dar oportunidade para profissionalização,
visto que esse público tem dificuldade na escolarização, profissionalização,
uma aposta na inclusão. (P3)

Se tivesse a possibilidade de um profissional da saúde, profissional por


exemplo da CEAPA, profissional da Justiça, vários atores envolvidos na
necessidade do indivíduo, profissional do trabalho, e, dentro disso, cada
um, na sua especificidade, conseguisse fazer oficinas de quatro horas [...]
Fechando todas as necessidades básicas, fechando com uma que acho
fundamental: Projeto de vida. (P15)
Para tanto, propostas como a oferta de passagens para o aces-
so a essas oportunidades e flexibilização da carga horária mensal se
constituiriam como fatores facilitadores e que aumentariam a efetividade
das alternativas penais como práticas de prevenção à violência, também
aumentando as taxas de cumprimento integral dessas medidas.
Outra dificuldade que vai acontecer no grupo de drogas é a questão
do desemprego, o acesso desse cumpridor para vir aqui. Ele não tem
dinheiro para comprar passagem. [...] um desafio é o local que a gente vai
encaminhar para poder atendê-los. [...] porque, se é para encaminhar para
prestação de serviços à comunidade, a gente tenta referenciar na base
territorial10. O grupo é diferente, os locais do grupo são fora do acesso da
base territorial. (P2)

É você conseguir trabalhar o cumprimento da medida, junto com a inclusão


que ele já tem. Por exemplo, o trabalho, a escola, né? Você não atrapalhar
mais a vida dele. A medida vir adequadamente, o cumprimento arranjar
uma forma dele cumprir mais próxima da casa, os horários, e a habilidade
dele. [..] As pessoas que cumprem por tráfico, ela tem um número maior de
horas a cumprir, pode chegar a dois anos. (P3)

Cumpre ressaltar que, apesar de todos os desafios e limitações, a


prestação de serviços à comunidade foi considerada pela ampla maioria
dos profissionais uma prática de promoção de saúde, por diversas expli-

10 Refere-se à Unidade de Prevenção à Criminalidade (UPC) de base territorial, que


são unidades públicas de abrangência territorial, localizados em territórios que
registram maior concentração de homicídios nos municípios. Onde são executados
os Programa Mediação de Conflitos e Programa de Controle de Homicídios – Fica
Vivo!. Essas UPC são implantadas em ambos, assim como a CEAPA, também fazem
parte da Política de Prevenção à Criminalidade de Minas Gerais.

101
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

cações que podem ser organizadas nas seguintes dimensões: (A) as enti-
dades, por realizarem atividades destinadas à assistência, acabam sendo
locais favoráveis para construção de relações comunitárias de cuidado
mútuo, convivência, valorização da vida e bem-estar; (B) as pessoas em
Alternativas Penais localizam parte dessas entidade como pontos de tra-
tamento, assistência e mudança de trajetória.

Com certeza. Toda prática de promoção de saúde tem a ver com prevenção,
ponto de tratamento, ponto de orientação, ponto de acolhimento [...] É muito
difícil eu perceber e de outros colegas dizerem que a pessoa não disse que
ela sai daqui sem alguma coisa ter acontecido de mudança, em especial
na questão da saída. Muitos dizem que diminuíram, ou até pararam o con-
sumo de drogas. (P5)

Com certeza. Ainda mais aqui, esse espaço tem uma característica muito
importante. O próprio espaço mexe com as pessoas. Eu acho o maior barato
que eles de vez em quando passam na padaria antes de vir pra cá e trazem
um lanche gostoso. Por quê? Porque está se sentindo da casa. (P12)

Teve um outro também que foi um ano que ele ficou com a gente, ele não
tinha como agradecer de tão feliz que ele ficou [...] Ele estava separado,
voltou para a esposa. Além de estar mexendo com o tráfico, ele era usuário,
acabou caçando tratamento.(P7)

Eles mesmo já falaram para gente que lá fora eles foram discriminados e
aqui dentro não teve discriminação nenhuma. Aí já também quando vão
despedir, falam que isso não é vida pra gente, a vida é o que aprendi aqui.
Aí um rapaz falou que foi uma mudança muito boa, foi a nossa faculdade.
(P8)

Eu sempre pergunto, já escutei: Tô tão acostumado a fazer o mal, fazer o


bem é até bom. (P9)

Os resultados apresentados pelos profissionais permitem


fazer uma contraposição entre os vários agravantes de saúde observados
no Sistema Prisional e as possibilidades de promoção de saúde e auto-
cuidado comunitário observados na prestação de serviços à comunidade.
Nesse sentido, recomenda-se que, sempre que possível, se privilegie a
aplicação de Alternativas Penais.

Um usuário, por exemplo, foi que ele teve uma oportunidade de fazer uma
entrevista quando o SINE foi à CEAPA para fazer uma triagem com os
profissionais lá. E de lá ele saiu empregado. E ele nos deu esse retorno.
Então, quando que ele teria oportunidade de acessar o SINE com tamanha
facilidade, de um público que é marginalizado (...) O SINE foi à CEAPA, e
ele foi encaminhado, (...) de uma execução penal ela saiu empregada. (P5)

102
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alternativas Penais podem ser medidas viáveis e adequadas para


pessoas condenadas por tráfico de drogas, sendo possível ajustar o cum-
primento na maior parte dos casos. Quando bem aplicadas, podem ser
uma prática de promoção de saúde e prevenção da violência, na medida
em que se desenvolve em ambientes de cuidado mútuo, convivência, va-
lorização da vida e bem-estar, vínculos que, por vezes, se mantêm após o
final do cumprimento da medida judicial.
Diante das informações e resultados apontados ao longo da
pesquisa, todas as possibilidades de qualificar a implementação dessa
política passam por um trabalho continuado de articulação de rede, ca-
pacitação de profissionais, ampliação dos esforços de comunicação entre
as diversas entidades envolvidas, promovendo troca de experiências e
recursos entre todos os profissionais envolvidos nos diversos espaços de
execução de Alternativas Penais. As excelentes experiências relatadas pe-
los profissionais entrevistados podem ser multiplicadas. Nesse sentido,
o Poder Executivo estadual, que é responsável pelo Programa CEAPA,
possui papel decisivo na criação desses canais de comunicação e controle
social.

103
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa, Portugal. Edições 70,


2008.

BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: Violência, Justiça, Segurança Públi-


ca e Direitos Humanos no Brasil de hoje. Edição. Rio de Janeiro: Revan,
1990

BRASIL, Ministério da Justiça. Levantamento de informações peni-


tenciárias Infopen. Brasília: Departamento Penitenciário Nacional. 2014.
Disponível em http://www.justica.gov.br/news/mj-divulgara-novo-re-
latorio-do-infopen-nesta-terca-feir a/relatorio-depen-versao-web.pdf
.Acessado em 18/11/2017

BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Assuntos Estratégicos.


Ipea, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A Aplicação de Penas e
Medidas Alternativas. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro, 2015. Dis-
ponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_con-
tent&view=article&id=2486 Acesso em 18/11/2017.

CAMPOS, Francisco Carlos Cardoso; FARIA, Horácio Pereira; SANTOS,


Max André. Planejamento e avaliação das ações em saúde. Núcleo de
Educação em Saúde Pública. Faculdade de Medicina. Universidade
Federal de Minas Gerais. 2ª Edição. Belo Horizonte, 2010.

GOVERNO DO ESTADO MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Justiça


e Segurança Pública. Portfólio da Política de Prevenção à Criminalidade.
Belo Horizonte: Subsecretaria de Políticas de Prevenção à Criminalidade,
2019. Disponível em: http://www.seguranca.mg.gov.br/images/2019/
Abril/Portfolio%20Preveno%20Social%20a%20Criminalidade%202019.
pdf.

104
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

ILANUD, Brasil. Levantamento nacional sobre a execução de penas al-


ternativas: Relatório final de pesquisa. 2006. Disponível em: http://
www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/politicas-2/alternati-
vas-penais-anexos/penasalternativasilanudcompleto.pdf. Acesso em:
25/04/2018.

INSTITUTE FOR CRIMINAL POLICY RESEARCH. Prison studies. Fonte:


ICPS: http://www.prisonstudies.org/country/brazil. Acessado em 18 de
março de 2018.

KARAM, Maria Lúcia. Drogas: Legalizar para respeitar os direitos hu-


manos. 2015. Disponível em http://www.leapbrasil.com.br/site/wp-con-
tent/uploads/2017/04/119 _Drogas-legalizar-para-respeitar-os-direit-
os-humanos-UFBA.pdf. Acesso em 14/02/2018.

KILLIAS, Martin; VILLETAZ, Patrice. The effects of custodial vs non-cus-


todial sanctions on reoffending: lessons from a systematic review. Psico
thema, v. 20, n. 1, p. 29-34, february, 2008.

KRUG, Etienne G.; DAHLBERG, Linda L.; MERCY, James A.; ZWI, Aan-
thony B., e LOZANO, Rafael. Relatório mundial sobre violência e saúde.
Genebra: Organização Mundial da Saúde. 2002.

LEMGRUBER, Julita. Controle da criminalidade: mitos e fatos. São Pau-


lo: Revista ThinkTank, 2001. Disponível em https://www.ucamcesec.
com.br/wp-content/uploads/2011/06/Controle-da-criminalidade_mi-
tos-e-fatos.pdf. Acesso em 03/12/2017.

MANZINI, Eduardo José. Entrevista semi-estruturada: análise de objetivos


e de roteiros. Departamento de Educação Especial. Programa de Pós-Grad-
uação em Educação. UNESP. Marília, 2004. Disponível em: https://www.
marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/EduardoManzini/Manzi-
ni_2004_entrevista_semi-estruturada.pdf. Acessado em 20/05/2018.

105
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI - abolição, um sonho


impossível? VERVE - Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (Nú-
cleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Gradua-
dos em Ciências Sociais da PUC-SP). São Paulo, n.4, p.80-111,2003.
Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view-
File/4964/3512. Acessado em: 02/12/2017.

MELO, Elza Machado; SILVA, Jandira Maciel; AKERMAN, Marco; BE-


LISÁRIO, Soraya Almeida (Orgs). Promoção de Saúde: Autonomia e Mu-
dança. Coleção Promoção de Saúde e Prevenção da Violência; v. 1. Belo
Horizonte: Folium, 2016.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa social: teoria, método e cria-


tividade. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

SAPORI, Luis Flávio; SANTOS, Roberta Fernandes; MAAS, Lucas Wan


Der. Fatores Sociais Determinantes da Reincidência Criminal no Brasil:
O Caso de Minas Gerais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32,
n. 94, p. 01, 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/
v32n94/0102-6909-rbcsoc-3294092017.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2018.

SOARES FILHO, Marden Marques; BUENO, Paula Michele Martins


Gomes. Demografia, vulnerabilidades e direito à saúde da população pri-
sional brasileira. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 7, p. 1999-2010, jul.
2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art-
text&pid=S1413-81232016000701999&lng=pt&tlng=pt>. Acesso em: 16
mar. 2018.

UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Handbook on strat-


egies to reduce overcrowding in prisons. Criminal justice handbook se-
ries. United Nations. 2013.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Health in all policies. Helsinki State-
ment Framework for Country Action. The 8th Global Conference on

106
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Health Promotion, Helsinki, Finland, 10-14 June 2013. Disponível em


http://www.ngos4healthpromotion.net/wordpressa4hp/wp-content/
uploads/2016/11/hels inki.pdf. Acesso em 20/01/2018.

WORLD HEALTH ORGANIZATIONS. Constitution of WHO: principles.


Disponível em: http://www.who.int/about/mission/en/. Acessado em
01/06/2018.

ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: Quem são os traficantes de dro-


gas. 3ª ed.Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011.

107
108
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

AÇÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO NO ÂMBITO DA LEI MARIA DA


PENHA NO PROGRAMA CEAPA NO MUNICÍPIO DE CONTAGEM/ MG
- METODOLOGIA E TRANSVERSALIDADE NA PERSPECTIVA
CRÍTICA DE GÊNERO E MASCULINIDADES NAS INTERVENÇÕES
DOS GRUPOS REFLEXIVOS

Camilla Gabrielle Vieira

INTRODUÇÃO

C om o advento da Lei Maria da Penha, pioneira em colocar


no seu escopo o trabalho com homens autores de violência contra mu-
lher e intrafamiliar no contexto brasileiro, houve favorecimento de ações
reflexivas e de responsabilização em perspectiva relacional: a tratativa
do fenômeno da violência não tem eficácia se abordada somente para
mulher vítima, mas sim pelo envolvimento de todos os atores sociais en-
volvidos em perspectiva sistêmica: vítima, ofensor e comunidade. Leite
e Lopes (2013) fazem considerações acerca da necessidade de romper a
lógica dualista de composição do Direito Penal, judicializadora dos confli-
tos, que confere soluções majoritariamente punitivas em práxis engessa-
das que, entretanto, possui potencial para que, de maneiras inventivas,
se possa construir outras formas de intervenção eficazes, aliadas à Lei.
Diante disto, o objetivo deste artigo é discorrer brevemente sobre
as ações de responsabilização para homens autores de violência domés-
tica no âmbito da Lei Maria da Penha, executadas pelo Programa Cen-
tral de Acompanhamento de Alternativas Penais (CEAPA) no Estado de
Minas Gerais, a partir de diretrizes contidas no Manual de Gestão Para
Alternativas Penais, produto de consultoria nacional especializada em
parceria entre Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e Programa

109
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e articular com a


perspectiva crítica de gênero e a construção social da masculinidade he-
gemônica enquanto elemento transversal a se pensar nas práticas de
intervenção nos Grupos Reflexivos de determinação judicial.

LEI MARIA DA PENHA E ALTERNATIVAS PENAIS

O DEPEN, na publicação do Manual de Gestão Para Alternati-


vas Penais (2017, p.172), fornece as orientações para a atuação com os
homens autores de violências contra as mulheres. As ações se amparam
nas medidas protetivas de urgência e medidas cautelares diversas da
prisão, de determinação judicial, em perspectiva sistêmica e articulação
com a rede de proteção social, executadas pelos Centros Integrados de
Alternativas Penais, nas modalidades de acompanhamento individual e
grupal, sendo este materializado na execução dos Grupos Reflexivos com
os homens autores de violência contra as mulheres, visando a respon-
sabilização e a ruptura do ciclo de violência. Ter o abrigamento de tais
medidas no escopo das alternativas penais permite que exista constan-
te esforço para alinhamento metodológico que contribui para consolidar
práticas que visem o fim da violência contra mulheres no Brasil.
Para alinhar as intervenções e diretrizes de forma a embasar as
ações de responsabilização no contexto da Lei Maria da Penha, a Secre-
taria Nacional De Políticas Para Mulheres (2008) produz o documento
que constitui parâmetros conceituais e metodológicos que orientam tais
ações a serem financiadas pelo Departamento Penitenciário Nacional,
responsável pela execução penal no Brasil:
Por meio da realização de atividades educativas e pedagógicas que te-
nham por base uma perspectiva feminista de gênero, o Serviço de Respon-
sabilização e Educação deverá contribuir para a conscientização dos agres-
sores sobre a violência de gênero como uma violação dos direitos humanos
das mulheres e para a responsabilização desses pela violência cometida.
Juntamente com demais atividades preventivas - tais como realização de
campanhas nacionais e locais, formação de professores e inclusão das
questões de gênero e raça nos currículos escolares - o serviço poderá con-
tribuir para a desconstrução de estereótipos de gênero; a transformação
da masculinidade hegemônica; e a construção de novas masculinidades.
O Serviço de Responsabilização e Educação do Agressor constitui parte da

110
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e deverá atuar de


forma articulada om os demais serviços da rede (Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, Casa-Abrigo, Centro de Referência
da Mulher, Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, Defenso-
rias/Núcleos Especializados da Mulher, Centros de Referência Especializa-
dos de Assistência Social, serviços de saúde), no sentido de contribuir para
a prevenção e o combate à violência contra as mulheres. (SECRETARIA DE
POLÍTICAS PARA MULHERES, 2008, apud DEPEN, 2017, p.175).

Como parâmetro metodológico de orientação e sistematização


para ações de responsabilização para homens autores de violência, o DE-
PEN considera como medidas:

I) as previstas expressamente na Lei Maria da Penha:


a. “Medidas protetivas que obrigam o agressor” (art. 22)
b. “Centros de Educação e Reabilitação para os Agressores” (art. 35, V)
c. “Comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e
reeducação” (art.45, parágrafo único)
II) Metodologias alternativas que são desenvolvidas em contexto judiciário
ou comunitário e podem ser agregadas às ações de responsabilização:
a. Grupos Reflexivos
b. Justiça restaurativa. (DEPEN, 2017, p.175).

Diante do complexo contexto que envolve a violência doméstica,


se insere, como resposta judicial específica ao conflito relacionado à vi-
olência de gênero, a Lei Maria da Penha, que, em 2019, com 13 anos de
vigência, opera com alguns entraves: precariedade em investimentos nas
políticas públicas, o Sistema de Justiça como ambiente patriarcal e ma-
chista institucionalizado em filosofia e práxis, junto à resposta punitivis-
ta a este fenômeno. Tal estrutura propicia respostas pouco efetivas para
o conflito, considerando que, por tratar de relações que poderão ser man-
tidas pela vinculação familiar, há insuficiência na tratativa dos atores
sociais, de forma a romper o ciclo de violência, tendo em vista que endu-
recer a pena com cunho punitivo para o agressor não age em perspectiva
de responsabilização e mudança, algo que, atrelado ao investimento em
programas de prevenção e educação, possibilitaria deslocamentos de sig-
nificados, de maneira a modificar a estrutura social em relação ao modo
de percepção ao fenômeno da violência de gênero (DEPEN, 2014, p. 179-
180).
Quanto à efetividade na diminuição de casos de violência de gêne-

111
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

ro, pesquisas revelam que a vigência da lei, com caráter majoritariamente


punitivo penal, não significou queda nos feminicídios. O aumento gradu-
al dos casos nas pesquisas pode advir da percepção e denúncia dos casos
de violência doméstica, propiciados pelo favorecimento da discussão so-
cial da temática e amparo jurídico com a promulgação da lei.

Estudo realizado pelo Ipea (GARCIA, 2013) revela que a lei não significou a
diminuição dos homicídios contra as mulheres, se comparados os períodos
antes e depois da vigência da lei. No período entre 2001/2006 a taxa de
mortalidade foi de 5,28 por 100 mil mulheres e entre 2007/2011, de 5,22.
Entre 2001 a 2011 ocorreram aproximadamente 50 mil homicídios de mul-
heres no país, sendo que em pelo menos 1/3 dos casos o local de ocorrên-
cia foi o domicílio, o que evidencia se tratar de violência doméstica e fami-
liar contra a mulher. O estudo também revela que a proporção de mulheres
assassinadas por parceiro é 6,6 vezes maior do que o homicídio de homens
por suas parceiras. Se analisarmos os dados fazendo um recorte temporal
maior, os resultados tornam-se ainda mais alarmantes. Segundo o “Mapa
da Violência 2015 - Homicídios de mulheres no Brasil” (Secretaria Especial
de Políticas para as Mulheres, 2015), o número de mulheres assassinadas
passou de 1.353 em 1980 para 4.762 em 2013, o que representa um au-
mento de 252%. (DEPEN, 2017, p.176).

Houve avanços no sentido de criar mecanismos de proteção


à mulher considerando que, historicamente, a legislação brasileira é
construída de forma a favorecer os homens autores de violências contra
as mulheres, refletindo o caráter cultural que propicia manutenção de
opressões estruturais patriarcais e machistas. Anteriormente, a legis-
lação penal possuía leitura que:

Trazia em seu corpo atenuantes aos crimes praticados no contexto fami-


liar como a legítima defesa da honra nos crimes de adultério; tipos penais
discriminatórios como os crimes de sedução e rapto consensual; extinção
de punibilidade com o casamento da vítima com o seu ofensor nos crimes
sexuais, dentre outros. (DEPEN, 2017, p.177).

Tal leitura explicita a percepção do local de naturalização da ob-


jetificação das mulheres nas relações sociais, enquanto sujeitos que jus-
tificam por sua existência dentro do gênero feminino passarem por situ-
ações de violação.
Para se enfrentar a violência de gênero no âmbito das relações
sociais por intermédio do Sistema de Justiça, é necessário pensar em
questionar e reconstruir a estrutura social, que mantém o status quo de

112
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

privilégios naturalizados aos homens, vitimiza e retira o poder das mu-


lheres no processo. As respostas construídas penalmente, estritamente
pelo viés punitivo, com poucos precedentes para reparar o dano e trans-
formar a percepção das relações de gênero, acriticamente não propiciam
responsabilização e mudança efetiva por não passar pelo plano simbóli-
co da consciência. Vera Andrade (apud DEPEN, 2017, p.180) diz que a
“dimensão simbólica da violência precisa ser afirmada como elemento
central para a construção de respostas, levando a outros campos de in-
terlocução”. Quanto à interlocução de pensar relações de gênero e cri-
minologia, o Departamento Penitenciário Nacional articula institucional-
mente as análises entre estrutura social, crime e feminismo:

Mantendo-se estas relações simbólicas, corre-se o risco de reificar as es-


feras funcionais e o gênero, de esquecer a relatividade cultural das institu-
ições e do gênero e a sua dependência da construção social. A consequên-
cia de uma tal reificação seria o fato de que as instituições, assim como
são e funcionam, seriam consideradas como naturais e necessárias, e os
dois gêneros, com as suas diferentes qualidades, viriam a ser conside-
rados como biologicamente determinados [...] não é mais possível exa-
minar a questão criminal sem que se tenha presente, de modo adequado,
as variáveis do gênero. A criminologia crítica e a feminista não podem ser
duas coisas diversas; devem, necessariamente, constituir uma única. (DE-
PEN, 2017, p.180).

Diante disso, o desafio é pensar interseccionalmente nos fatores


que levam à violência, a conceber como social o fenômeno da violência
de gênero, presentemente tratado como de âmbito individual e privado,
estando o Estado a agir com coibição através do Sistema de Justiça,
determinando penas como retribuição e não propiciadoras de mecanis-
mos bem estruturados para atuar na reflexão dos autores de violência
doméstica, para intervir e romper os ciclos de violência de gênero intrafa-
miliar.
É preciso analisar culturalmente a sociedade, como Geertz (1973,
p.7) diz de “determinar sua base social e sua importância. [...] é uma
multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas so-
brepostas e amarradas umas às outras, que são simultaneamente es-
tranhas, irregulares e inexplícitas”, ou seja, para se pensar em gênero e
intervir na violência relacionada, é preciso compreender a complexidade

113
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

das estruturas sociais e sua pluralidade de práticas que favorecem tais


situações.
Na ação com os homens neste âmbito, o caminho é introduzir
estranhamentos na reprodução de comportamentos sociais patriarcais,
institucionalizados na estrutura da sociedade, calcados na histórica
opressão e subjugação ao feminino, que invisibilizam as assimetrias de
acesso a direitos às mulheres, como o de viver em segurança e dignidade
dentro de suas relações íntimas.

SERVIÇOS DE RESPONSABILIZAÇÃO PARA HOMENS

A promulgação da Lei Maria da Penha em 2006 é resultado do


ambiente propiciado pelas lutas dos movimentos feministas que eclodi-
ram na década de 1970, em contestação às tratativas do local da mulher
na sociedade, visando emancipação e fim das opressões que as vulnera-
bilizam. Colateralmente passa a se abordar a violência contra a mulher
através de efervescentes debates em produções acadêmicas e literárias,
conferências mundiais e construção de políticas públicas, principal-
mente nas décadas seguintes à reabertura democrática do Brasil, nos
anos 1980, que propiciou momento de pensamento em rede no contexto
social, englobando saúde, educação e segurança, no viés cidadão.
A Lei Maria da Penha, com seus limites e desafios, além das medi-
das protetivas obrigatórias nos casos de violência doméstica - tipificadas
no Art. 7, I-V, como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral -, no
sentido de preservação da vida e dignidade da mulher, prevê tratamento
aos homens, de forma a romper o ciclo de violência doméstica. Na lei,
dispõe o Art. 35, V, sobre a criação e promoção da União, Distrito Fede-
ral, Estados e Municípios de “centros de educação e de reabilitação para
os agressores” e Art.45, em parágrafo único, quanto à Execução Penal,
em que “nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá
determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de
recuperação e reeducação” (BRASIL, 2016). Porém, a lei não traz provi-
mentos de como deve se estruturar a metodologia de atuação dentro das

114
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

orientações que atendam aos pontos norteadores.


Neste contexto, a Secretaria Nacional de Políticas para as Mu-
lheres (apud DEPEN, 2017, p.188) faz considerações acerca dos cen-
tros de atendimento e das ações de responsabilização dos agressores na
publicação “Diretrizes para Implantação dos Serviços de Responsabili-
zação e Educação dos Agressores”:

A concepção de um ‘centro’ traz no seu bojo a ideia de um espaço de ‘aten-


dimento’ ao agressor, semelhante aos Centros de Referência da Mulher e
aos Centros de Referência de Assistência Social. Todavia, o objetivo pre-
cípuo do serviço de responsabilização e educação do agressor é o acom-
panhamento das penas e decisões proferidas pelo juízo competente no que
tange ao agressor. Portanto, o serviço tem um caráter obrigatório e ped-
agógico e não um caráter assistencial ou de ‘tratamento’. (SECRETARIA
NACIONAL DE POLÍTICAS PARA MULHERES apud DEPEN, 2017, p.188).

Nesta perspectiva, as ações de responsabilização no âmbito da Lei


Maria da Penha são embasadas no acompanhamento das medidas e de-
cisões judiciais amparadas na lei. As atividades advindas não têm caráter
assistencial, terapêutico ou de tratamento. Considera a complexidade
cultural dotada de significados estruturais calcados nas assimetrias de
gênero e sexualidade, incidindo em fatores que podem estar relacionados
a episódios de violência doméstica, como desemprego e consumo de dro-
gas.
Entretanto, tais fatores não justificam a causa da violência, não
devendo psicologizar fatores que se transversalizam socialmente. Mauss
(1979, apud Pacheco, 2013, p.41) explicita como falsa a dicotomia entre
“eu individual” e “eu social”, que propicia a expressão dos sentimentos
como fator apenas psicológico, porém ambos devem se associar para que
exista visão integral do sujeito e o compreenda também em abordagem
social para análise e intervenção sociológica. Assim, não deve se prover
explicações para o fenômeno da violência como pressuposição de doença
mental ou transtorno de personalidade do agressor (DEPEN, 2017,
p.203-204).
Diante disto, as Alternativas Penais nas ações de responsabili-
zação dos homens autores de violência:

115
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

(...)devem orientar-se para a desconstrução de valores sexistas e machis-


tas e para questões culturais e sociais. Assim, estes serviços devem con-
tribuir para a conscientização dos agressores sobre a violência de gênero
como uma violação dos direitos humanos das mulheres e para a respon-
sabilização pela violência cometida. Ademais, devem atuar de forma arti-
culada com os demais serviços da Rede de Proteção à Mulher no sentido
de contribuir para a prevenção e o enfrentamento à violência contra as
mulheres. (DEPEN, 2017, p.203-204).

PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS PARA O DESENVOLVIMENTO


DAS AÇÕES DE RESPONSABILIZAÇÃO COM HOMENS AUTORES DE
VIOLÊNCIAS CONTRA AS MULHERES VIA ALTERNATIVAS PENAIS

Na estruturação dos Grupos Reflexivos, o Manual de Gestão Para


Alternativas Penais do DEPEN (2017, p.194) propõe ações pautadas na
Justiça Restaurativa, considerando que a autocomposição da resolução
dos conflitos propicia maior implicação e adesão no processo pelas par-
tes envolvidas, compreendendo ofensor e vítima, implicando também a
comunidade, parte essencial da mudança cultural no sentido de menor
judicialização dos conflitos e maior adesão às alternativas de resolução
de conflitos, de maneira mais assertiva.
Considera, também, que a obrigatoriedade judicial da partici-
pação em ações de responsabilização não exclui a possibilidade de ade-
rir a práticas comunitárias restaurativas a partir do viés sistêmico de
compreensão do fenômeno da violência: multifatorialidade nos conflitos
e necessidade de os atores sociais envolvidos centralizarem o processo
de modo a propiciar a desconstrução dos ciclos de violência, ressaltando
que a mulher, participando de tais construções, não minimiza ou rela-
tiviza o acontecido de violação, mas vai à contramão, referenciado em
perspectiva crítica de gênero que permite contestar e romper com as vi-
olências estabelecidas.
Referente à atuação neste serviço, a SPM (apud DEPEN, 2017,
p.188) orienta que as ações devem ser conduzidas e facilitadas em gru-
pos, em caráter educativo e pedagógico. Anterior à promulgação da Lei
Maria da Penha, marco no enfrentamento da violência doméstica, insti-
tuída legalmente e legitimadora política, enquanto esfera de regulação da

116
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

sociedade no âmbito privado e público, a participação em grupos reflexi-


vos em casos de homens agressores no contexto de violência intrafamiliar
já acontecia nos casos de medida alternativa e pena restritiva de direito
(DEPEN, 2017, p.188).
Metodologicamente, as orientações do DEPEN (2017, p. 212-219)
ao acompanhamento de homens autores de violência na modalidade de
Grupos Reflexivos são: iniciativa de execução da comunidade e/ou do
Governo com equipe qualificada na temática da violência de gênero que
passe por supervisão e formações continuadas, participação compulsória
dos encaminhados pelo judiciário como medidas protetivas de urgência,
medidas cautelares diversas da prisão ou pena restritiva de direito, en-
contros que aconteçam fora do ambiente judicial, pesquisa e avaliação
continuada da metodologia de trabalho e efetividade junto ao público,
qualitativa e quantitativamente.
Em relação ao modelo teórico conceitual da execução dos grupos,
a orientação é de que sejam abordados os quesitos a seguir, com conhe-
cimentos e construções desenvolvidas em capacitações e estudos conti-
nuados das equipes:

a)Perspectiva de gênero, prevenção à violência contra a mulher, masculi-


nidades e violências;
b)Responsabilização: o trabalho com homens autores de violência deve
pautar a capacidade de mudança e responsabilização frente aos conflitos
e violências, marcando a autonomia do homem quanto à sua escolha a
partir de amplas possibilidades de agir frente ao conflito com uma mulher;
c)Autonomia e empoderamento da mulher: deve-se abordar, tanto nos gru-
pos com homens, quanto nos grupos com as mulheres, a autonomia, a
liberdade, a dignidade e a integridade da mulher, bem como a afirmação
e o respeito aos seus direitos e decisões;
d)Integração à Rede de enfrentamento à violência contra a mulher;
e)Integração à Rede de inclusão social: Vulnerabilidades sociais devem fo-
mentar o encaminhamento para outros serviços e políticas de proteção so-
cial, em conformidade com demandas específicas (álcool, drogas, questões
relacionadas à saúde mental, etc), sem que sirvam para justificar a violên-
cia contra a mulher ou interromper a participação do homem no grupo de
responsabilização, considerando que são problemas autônomos e inde-
pendentes;
f)Enfoque sobre as dimensões centrais para o uso da violência pelos
homens: abordagens que permitam entender a complexidade do fenômeno
da violência exercida pelos homens a partir de fatores múltiplos sociocul-
turais, relacionais e pessoais (cognitivos, emocionais e de comportamento).
(DEPEN, 2017, p. 215).

117
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Em conformidade com as diretrizes nacionais do DEPEN (2017),


a orientação para a execução dos grupos reflexivos com homens autores
de violências contra as mulheres tem como parâmetro de intervenção a
realização de 16 a 20 encontros, um por semana, com duração de duas
horas cada um. O número de participantes deve compreender, no míni-
mo, 8 pessoas e, máximo, 20, para propiciar que o método seja assertivo
e funcione adequadamente. Os horários devem compreender a rotina de
trabalho das pessoas em cumprimento de alternativa penal, contando
com horários alternativos no período noturno e nos finais de semana. O
acompanhamento não se restringe à participação grupal, se necessário,
estende-se por atendimentos individuais com a equipe das CIAP’s
(DEPEN, 2017, p. 216).
Ainda de acordo com as diretrizes nacionais, os grupos podem
acontecer nas modalidades aberto, fechado e misto. Nos grupos abertos,
os encontros acontecem continuamente e acolhem novos participantes
frequentemente. Nesta modalidade existem homens começando e fina-
lizando a participação, propiciando que haja confluências entre homens
que já aderiram à metodologia e compreenderam os propósitos reflexi-
vos grupais, de forma a acolher os novos participantes, que podem estar
resistentes à situação. Como grupo fechado, que inicia e finda com os
mesmos participantes, favorecendo a formação de identidade grupal, o
desafio com todos iniciando simultaneamente é que haja tendência de
se formarem acordos de resistência à participação entre os homens, di-
ficultando o alcance do intuito metodológico de desconstruir ideias, fa-
vorecer “responsabilização, ressignificação e quebra de resistências”. Nos
grupos mistos, há o acolhimento de novos participantes com período de-
terminado de limite prévio (DEPEN, 2017, p. 216).
Na condução dos Grupos Reflexivos, os facilitadores - termino-
logia que ressalta posição menos hierárquica, não impositiva e centra-
lizadora de ações da pessoa que conduz o grupo como verdade absolu-
ta - têm como função essencial fazer o diálogo circular para promover
reflexão. Considerando que os Grupos negam os formatos de palestra,
formação, aula, terapia, assistência ou punição, o facilitador não deve se

118
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

posicionar em distância institucionalizada de poder, como terapeuta ou


professor, pelo caráter metodológico de cumprimento obrigatório, assis-
tencial e com intuito de fazer terapia, embora a provocação de reflexões
possa ter caráter terapêutico.
Como orientação para equipe recomenda-se que contem com dois
profissionais preferencialmente da área das Ciências Humanas - Psico-
logia, Serviço Social e Direito: uma mulher e um homem, para propiciar
a interação dos facilitadores e desconstruções sobre representações de
gênero. Quanto à formação dos facilitadores, é orientado que aconteçam
capacitações continuadas, orientações metodológicas, encontros para es-
tudo de caso com a equipe da instituição e rede socioassistencial e jurídi-
ca, com regularidade, no mínimo, quinzenal (DEPEN, 2017, p. 217-218).
Em relação à execução da determinação judicial, o DEPEN (2017) con-
sidera que podem acontecer incidentes que interfiram no cumprimento
regular da medida, resultando em cumprimento irregular, passível de in-
tervenções no sentido de suspensão do cumprimento e descumprimento
(p. 218-2019), descrita detalhadamente na Parte V, D, VIII, no Manual de
Gestão de Alternativas Penais (p.287-289). Se comunicado o descumpri-
mento, o homem deve procurar regularizar situação junto a Juizado ou
Vara (p.219).
Com o cumprimento integral da determinação no Grupo Reflexivo,
o último encontro deve ser dedicado aos participantes fazerem avaliação
e favorecer o final do cumprimento, promovendo “rito de desligamento”
(p.219). O retorno do homem ao grupo por demanda espontânea, após
se findar ou descumprir a participação dos encontros, deve ser avaliado
caso a caso pelos facilitadores (DEPEN, 2017, p. 219).
Ao finalizar as intervenções no contexto das Alternativas Penais,
é necessário que existam avaliações quanto à efetividade da intervenção.
É orientado que se promovam encontros voluntários com os homens que
participaram do grupo: encontros trimestrais por um ano ou semestrais
por 2 anos. A instituição que executa a determinação judicial deve fo-
mentar pesquisas externas e autônomas, de caráter qualitativo e quan-
titativo para avaliar as experiências de atuação, propiciando ajustes e

119
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

renovações nas práticas (DEPEN, 2017, p. 219).


No que tange à execução dos Grupos Reflexivos pelo Programa
Central de Acompanhamento de Alternativas Penais no Estado de Minas
Gerais, existem especificidades em cada município que diferem das di-
retrizes nacionais do DEPEN. Neste sentido, o recorte apresentado neste
artigo é da unidade da CEAPA localizada no município de Contagem,
Minas Gerais.
O município de Contagem, segundo dados do Centro Integrado
de Informações de Defesa Social (CINDS)/Sistema Integrado de Defesa
Social (SEDS-MG), em pesquisa realizada nos anos de 2015 a 2017, ocu-
pou o terceiro lugar no quantitativo de mulheres vítimas de violência
doméstica e familiar, representando 8% dos casos registrados em Minas
Gerais, que foram tipificados a partir das formas de violências exercidas e
classificadas por frequência da ocorrência, sendo elas: a violência física,
psicológica, patrimonial, moral e sexual, respectivamente. Quanto aos
feminicídios neste período, foram registrados 91 casos.
Diante disto, através dos movimentos políticos e comunitários
de mulheres em busca de tratativas ao fenômeno da violência doméstica
a partir de respostas jurídicas, o Poder Judiciário de Minas Gerais cria
a Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e Inquéritos
Policiais de Contagem, em junho de 2019, proporcionando nesta unidade
jurisdicional especificidade e celeridade nos processos relacionados às
violências contra a mulher, que anteriormente eram tratados nas Varas
Criminais da Comarca de Contagem, sem recorte específico.
Com relação ao trabalho desenvolvido pela CEAPA de Contagem,
até o ano de 2018, os encaminhamentos eram realizados a partir das
Varas Criminais para cumprimento da determinação judicial de prestação
de serviços à comunidade. A datar do ano de 2018, se inicia o acompa-
nhamento dos casos de medidas protetivas de urgência e medidas caute-
lares diversas da prisão encaminhados pelo Núcleo de Defesa da Mulher
Contagem (NUDEM) para intervenção metodológica do Programa CEAPA,
a partir dos acompanhamentos individuais e/ou grupais, favorecendo a
reflexão e a responsabilização dos homens autores de violências contra

120
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

as mulheres.
Cabe destacar que a inauguração da Vara de Violência Domésti-
ca e Familiar contra a Mulher fomentou o número de casos encami-
nhados para o Programa, fortalecendo as ações de responsabilização
para homens autores de violências contra as mulheres, principalmente,
através da execução dos Grupos Reflexivos.
A construção metodológica do Programa CEAPA para a intervenção
com homens autores de violências contra as mulheres no município de
Contagem apresenta algumas divergências das diretrizes Nacionais do
DEPEN: a orientação do Programa é para que os grupos reflexivos sejam
executados no formato de 10 a 12 encontros, na modalidade fechada,
com frequência de um encontro por semana, com duração de duas horas
cada um. O número de participantes não deve exceder 20 pessoas.
A execução dos grupos é feita por analistas e estagiários do Pro-
grama, contando com atores da comunidade em alguns encontros, como
analistas do Programa Mediação de Conflitos, Polícia Militar e pessoas
com estudos e engajamento pertinentes à área.
A perspectiva de acompanhamento da CEAPA pressupõe a trans-
versalidade de gênero nas violências exercidas e sofridas no âmbito
doméstico e familiar, bem como desconstruções e estranhamentos das
masculinidades hegemônicas que naturalizam pensamentos e ações se-
xistas e violentas. No que tange ao acompanhamento grupal através da
execução dos Grupos Reflexivos, compreendendo a interação dos homens
que compartilham da mesma situação de conflito com a lei e a relação
com a violência de gênero, as representações grupais sobre vivências in-
dividuais e coletivas se explicitam, oportunizando questionar, estranhar
e desnaturalizar elementos instituídos nas formas de ser homem, em
práticas cotidianas que são danosas no âmbito intrapessoal e interpes-
soal.
Em pauta colocam-se temáticas centrais como violências, seus
ciclos e tipificações, de forma a explicitar as etapas que sustentam a
pluralidade de violências exercidas e sofridas dentro das relações; fe-
minicídio; elementos caros às relações interpessoais como empatia e co-

121
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

municação, inserindo elementos da Comunicação Não-Violenta (CNV) e


comunicação assertiva; abordagem da saúde do homem, a compreender
a necessidade de cuidado integral como ser humano, incluindo a saúde
mental, que é frequentemente desatendida por eles; masculinidades
hegemônicas danosas e seus efeitos nefastos, de forma que não seja
restringido a conhecimento expositivo, propiciadores de racionalização
de discursos violentos, mas sim reflexões que possam ser apropriadas e
ampliarem repertórios de respostas pacíficas.

TRANSVERSALIDADE DAS MASCULINIDADES E PERSPECTIVA


CRÍTICA DE GÊNERO NAS AÇÕES DE RESPONSABILIZAÇÃO COM
HOMENS AUTORES DE VIOLÊNCIAS CONTRA AS MULHERES NO
ÂMBITO DA LEI MARIA DA PENHA

A partir das possibilidades de intervenção com homens autores


de violências contra as mulheres, tem-se como orientador a perspectiva
crítica de gênero, adotando recorte específico do público das ações de
responsabilização: os homens e suas construções performáticas de gênero
como sujeitos masculinos, de maneira relacional e histórica. Isto favorece
a contextualização e desvelamento das ocultações e naturalizações man-
tenedoras dos conteúdos simbólicos, representações e práticas, calcados
nas estruturas sociais, que incidem nas ações individuais que reforçam
as relações desiguais de poder entre homens e mulheres; no entanto, é
importante não as tomar como determinantes.
A construção do conceito hegemônico de masculinidade é históri-
ca. A sexualidade, segundo Foucault (apud Silva, 2000), é termo surgido
no século XIX, de pertença às sociedades modernas e pós-modernas. No
período anterior ao século XVIII, as sociedades concebiam o ser humano
como parte de tradições e estruturas. Nisto, as pessoas se localizavam e
vivenciavam suas diferenças de acordo com a posição que ocupavam na
“grande cadeia do ser” (HALL, 2005, p.25), entre servos, nobreza e clero,
não possuindo concepção inclusive de vivência infantil.
Portanto, sem terminologias que abarcassem o fenômeno da se-

122
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

xualidade, a concepção dominante era de one-sex-model ou monismo


sexual, quando as diferenças sexuais consistiam em regras com cunho
de especulação biológica: “pensamento anatômico [...] a mulher era en-
tendida como sendo um homem invertido. O útero era o escroto feminino,
os ovários eram os testículos, a vulva um prepúcio e a vagina era um
pênis” (LAQUEUR, 1989, apud SILVA, 2000). Diante disto, a superiori-
dade era detida pelo homem, possuidor do falo, sendo a mulher inferior
por ser “concebida como um homem invertido [...] um sujeito “menos
desenvolvido” na escala da perfeição metafísica” (SILVA, 2000).
Com a passagem do século XVIII para o século XIX, juntamente
com o advento da Revolução Industrial e por demanda das bases mate-
riais de produção, o ser humano passa a ser concebido como sujeito in-
dividual. As diferenças sexuais passam a se basear no two-sex-model ou
modelo binarista de gênero, quando as diferenças que eram baseadas em
relação biológica passam a ser de cunho político e ideológico, justificando
e marcando o que se atribui ao feminino e ao masculino pelas “exigências
da sociedade burguesa, capitalista, individualista, nacionalista, imperi-
alista e colonialista” na Europa (COSTA, 1995 apud SILVA, 2000).
Com isto, a mulher passa de “homem invertido” para “inverso
do homem” ou “forma complementar (do homem)”, institucionalizando
a esfera pública para o masculino e privada para o feminino: o homem
pertencia ao mundo do trabalho, das relações sociais, da política e econo-
mia, detentor de força física, virilidade e prazer erótico, enquanto a mu-
lher fazia parte estritamente do âmbito familiar e doméstico - o que não
significava mais privilégio social - e corpo atribuído como frágil, pouco
passível de prazer sexual.
Assim, ao feminino justificava a esfera privada pela criação de
mecanismos sociais, certamente ocultados, para manter nascimento e
cuidado de crianças, que seriam futuras trabalhadoras nas fábricas, con-
siderando que anteriormente não havia uma atribuição formal de papéis
nas sociedades pré-capitalistas de infância e maternidade, a mortalidade
infantil era alta. Por demanda de mercado, passa a se reconhecer e re-
forçar ao feminino o exercício da maternidade, cria-se a falácia do instin-

123
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

to materno que, simultaneamente, mantinha mão de obra viva para pro-


dução e as mulheres em situação desigual de poder na cadeia produtiva
em relação aos homens.
Com a virada do século XIX, o “culto à masculinidade” (SILVA,
2000) se institui como repercussão dos marcadores de diferença sexual
do viés biológico para o social, político e econômico nas desigualdades
sociais:

(...) primeiro veio a reprodução das desigualdades sociais e políticas entre


homens e mulheres, justificada pela norma natural do sexo. Em seguida,
o que era efeito tornou-se causa. A diferença dos sexos passou a fundar a
diferença de gêneros masculino e feminino que, de fato, historicamente a
antecedera. O sexo autonomizou-se e ganhou o estatuto de fato originário.
Revolucionários, burgueses, filósofos, moralistas, socialistas, sufragistas e
feministas, todos estavam de acordo em especificar as qualidades morais,
intelectuais e sociais dos humanos, partindo-se da diferença sexual entre
homens e mulheres.” (LAQUEUR, 1991 apud COSTA, in SILVA, 2000).

Neste padrão de desigualdades sociais, Silva (2000) diz da ima-


gem do homem homossexual como “homem invertido”, que seria passível
de cura, por ser considerada uma patologia. Foucault (1986, apud Silva
2000) cita que a tratativa de inferioridade sexual se dá menos pela for-
ma de relação sexual e mais de certa forma de inversão do masculino e
feminino. Evidencia-se, assim, que atribuir a um homem características
consideradas femininas, como fragilidade e apetecimento por atividades
majoritariamente exercidas por mulheres, são tomadas como decadên-
cia. Em reação a isso, a construção da masculinidade hegemônica se
dá por criar normas difundidas no imaginário social que se distanciem
e repudiem, na vivência dos homens, elementos que se associem ao ser
mulher, compreendendo como analogia à inferioridade e perda de poder
da superioridade masculina.
Connell e Messerschmidt (2013) dizem da masculinidade hege-
mônica como um “padrão de práticas” executadas, expectativas e identi-
dade, em um conceito que surgiu nos anos 1980 para pensar as relações
de dominação de homens sobre as mulheres. Essa masculinidade hege-
mônica é normativa em criar parâmetros da “forma mais honrada de ser
homem [...] exige que todos os outros homens se posicionem em relação

124
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

a ela” para que seja legitimada. Não são todos os homens que a adotam,
porém mantêm traços que “hibridizam” para se adaptar às necessidades
do contexto histórico e que continuem a receber favorecimentos do pa-
triarcado, que são naturalizados pela cultura e instituições que exercem
persuasão para que os sujeitos se mantenham complacentes a este pa-
drão sexista.
É importante ressaltar que não existe apenas um modo de mas-
culinidade, que é o hegemônico. Masculinidades são configurações de
práticas plurais realizadas pelos atores sociais que podem se diferir nas
relações particulares de gênero na sociedade, portanto, não estáticas,
passíveis de mudança e de se constituir contra hegemonicamente em
padrões menos danosos na relação da interação cultural com os sujeitos
homens de si para si e de si para os outros.
Nisto, a vivência se passa por campos de naturalizações e con-
testações que repercutem nas formas de se relacionarem, por exemplo,
com violência em relações afetivossexuais, assédios às mulheres ou a
homens que possuam elementos atrelados ao feminino em discursos e
práticas homofóbicas. Estatisticamente, na pesquisa de Schraiber et al
(2012, p.795-797) com homens em serviços de atenção primária à saúde,
relata que 52,1% dos homens da amostra perpetraram violência contra
parceiras íntimas (psicológica, física e/ou sexual), prevalecendo violência
psicológica e física em conjunto, em seguida unicamente psicológica, e
63,9% dos homens pesquisados declaram ter sofrido violência.
Correlacionando os dados, a sobreposição entre violência perpe-
trada e sofrida por homens é de 14,2% dos casos. Tais dados podem não
refletir a completude da complexidade da realidade por se tratar de uma
hipótese e não abarcar a totalidade das formas de ser homem, porém
evidencia a necessidade de construir outras respostas para lidar com as
situações de desigualdade e violências nas relações de gênero vivenciadas
no cotidiano. Engendrada desde a infância, a masculinidade perpassa a
vivência dos meninos enquanto crescem nas instituições: família, escola,
igreja, mídia e outros (CONNELL e MESSERSCHMIDT, 2013).
A teoria e a prática dos Grupos Reflexivos se deparam todo o tempo

125
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

com a construção e exercício das masculinidades a partir de um modelo


hegemônico danoso que gera sofrimentos para o homem e seu entorno.
Nesta ação de colocar em voga o exercício das masculinidades atrela-
das à perpetração da violência intrafamiliar, durante o acompanhamento
grupal dos homens em cumprimento de Alternativa Penal, é preciso estar
atento aos modos de construir as reflexões, abarcando a perspectiva de
intervenção centralizada nas relações de gênero. Tais ações com homens
em grupos de responsabilização no âmbito da violência doméstica, con-
forme Veloso e Natividade (2013) explicitam, visam promover:

(...) reflexões acerca das masculinidades e feminilidades, tais como o pro-


cesso de socialização e sociabilidade, bem como as representações soci-
ais que sustentam as bases simbólicas e materiais da violência baseada
no gênero. Além disso, permite compreender as relações de gênero nas
relações conjugais e familiares ainda enraizadas nas desigualdades de
poder e em desiguais condições de empoderamento subjetivo das partes.
(VELOSO e NATIVIDADE, 2013, p.59).

Nos espaços dos Grupos Reflexivos da CEAPA, é observável como


operam as vivências das masculinidades nos discursos dos homens, que
evidenciam significados sociais marcados por ideários sexistas, machis-
tas, patriarcais e homofóbicos que subjugam e naturalizam as assimetri-
as de poder nas relações com o feminino e que tomam para si o direito de
controle sobre a vida de outro que não a própria. Nestes encontros, são
frequentes dizeres de não reconhecimento de violências além da violência
física e relativização dos impactos da violência psicológica e patrimonial.
De fato, muito acontece dentro de um grupo e, para citar alguns exem-
plos, poderíamos fazer alusão ao intenso sistema de troca de valores, con-
cepções de mundo e afetos entre os participantes. O principal trabalho que
os participantes de um grupo fazem diz respeito à produção de signifi-
cados sobre diversos tópicos que correm na interação. Estes tópicos são,
principalmente, sobre seus relacionamentos (narrativas pessoais) e acon-
tecimentos diversos (recontagem de eventos) que são construídos discur-
sivamente pelos participantes do grupo por meio de avaliações sobre si
mesmos, sobre os outros e sobre o mundo (julgamentos positivos e/ou ne-
gativos; apreciações e afetos) e, muitas vezes, acrescidas com estratégias
de humor (provocações, comentários irônicos, piadas). (VELOSO e NATIVI-
DADE, 2013, p.52).

Os Grupos Reflexivos têm grande potencial por seguir o caminho


da orientação reflexiva, através do trabalho com a dimensão simbólica no
discurso dos homens sobre as práticas desiguais de poder relacionadas

126
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

ao gênero e ações violentas que, a partir das interlocuções entre o social


e o particular, englobam fatores como comunicação verbal e não verbal,
trabalho e empregabilidade, sexualidade, divisão de tarefas domésticas e
cuidado com os filhos. Diante disso, propicia introduzir estranhamentos
e desnaturalizações do “que se sabe sobre si, o que se escuta sobre si e
deixar-se em suspensões para novas reorganizações, para uma prática
de questionamentos em que a interrogação não versa somente sobre o
outro, mas sobre si na relação com outros” (CUNHA e RÖWER, 2014,
p.34).
Sendo assim, as intervenções com os homens autores de violên-
cias contra as mulheres são pautadas na perspectiva crítica e transversal
das relações de gênero e nas masculinidades, compreendendo que os
homens precisam refletir, se responsabilizarem pelo acontecido, estra-
nharem/desnaturalizarem comportamentos danosos e fazerem mu-
danças em seus repertórios de respostas violentas para respostas pacífi-
cas e assertivas, propiciando rompimento do ciclo de violências, constru-
indo alternativas possíveis de vivenciarem as masculinidades de formas
saudáveis, que reverberam na amplitude de relações, extrapolando o âm-
bito familiar, mantendo as medidas de determinação judicial ou reesta-
belecendo vínculos positivos com a ofendida.

CONCLUSÃO

A promulgação da Lei Maria da Penha, no ano de 2006, é um


marco bastante significativo enquanto instrumento jurídico que respalda
a proteção das mulheres em situação de violência doméstica e familiar
no Brasil. É necessário reconhecê-la como um grande avanço que po-
tencializa movimentos de transformação para desnaturalizar e romper o
ciclo de violência, responsabilizar os autores e a estranhar a cultura que
se calcou no sexismo, com o desenvolvimento de ações pautadas em uma
perspectiva sistêmica, envolvendo vítima, ofensor e comunidade.
Com o provimento de ações de responsabilização no âmbito da
Lei Maria da Penha para autores de violências contra as mulheres am-

127
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

paradas através da aplicação das alternativas penais e em conformidade


com as diretrizes metodológicas do DEPEN, abre-se espaço para atuar no
acompanhamento das medidas protetivas de urgência e medidas caute-
lares diversas da prisão a partir de um conjunto de intervenções propos-
tas pelo Programa CEAPA via atendimentos individuais e/ou grupais.
Tais ações são materializadas, também, por meio da execução dos
Grupos Reflexivos pelo Programa CEAPA, que consiste na única tratativa
aos autores de violência no município de Contagem. Nas ações grupais é
perceptível a potencialidade em favorecer a reflexão e responsabilização
dos homens, a partir da indissociabilidade da perspectiva de gênero
e masculinidades como fatores de análise social e intervenção nessas
práticas. Tal viés permite que se evidencie desigualdades de poder e assi-
metrias nas relações, que, no trabalho reflexivo com os homens, convoca
à responsabilização e quebra dos ciclos de violência.
Com a promulgação da Lei Maria da Penha, surgem os desafios
de enfrentamento à violência de gênero no âmbito das relações sociais
por intermédio do Sistema de Justiça, que majoritariamente tem um viés
retributivo e punitivo, favorecido pelas estruturas sociais conservador-
as e sexistas, dificultando a responsabilização reflexiva e transformado-
ra dos atores sociais envolvidos no processo. Diante disto, é necessário
questionar e reconstruir a estrutura social, mantenedora de desigual-
dades de gênero, e promover dialógicos com o Sistema de Justiça e com
a comunidade. Contestar a ideia de uma resposta à situação apenas com
a intervenção penal estritamente punitiva, abrindo caminhos para Al-
ternativas Penais e ações de iniciativa comunitária, permite mudanças
significativas através da responsabilização e reflexão dos homens autores
de violência.
Referente às metodologias de intervenção, construir alinhamentos
normatizadores e de ação, bem como favorecer estudos internos, por par-
te do Programa CEAPA, de atores externos pela comunidade acadêmica,
permitem contínuo aperfeiçoamento em teoria e prática. É preciso ampli-
ar a conexão com a rede, envolvendo ações educativas contra violência de
gênero com a perspectiva de prevenção e fortalecimento enquanto apoio

128
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

à denúncia, amparo à vítima e tratativas que envolvam o homem no pro-


cesso para constante progresso na efetividade das intervenções frente a
este fenômeno.
A expectativa é de que, envolvendo todos os atores sociais do
fenômeno da violência de gênero - vítima, ofensor e comunidade - en-
quanto cidadãos, instituições e Sistema de Justiça, se manifeste o po-
tencial transformador das relações nos pequenos grupos, nos quais os
sujeitos em interação trocam vivências, construções e desconstruções,
ampliando repertórios de respostas em seus microcontextos. Dito isso,
mudanças culturais macroestruturais estáveis são favorecidas a partir
do entendimento sistêmico do fenômeno da violência, que repercute nas
relações.

129
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REFERÊNCIAS

BRASIL, Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006, (Lei Maria da Penha).

CENTRO INTEGRADO DE INFORMAÇÕES DE DEFESA SOCIAL. Diag-


nóstico de Violência Doméstica e familiar nas Regiões Integradas de Se-
gurança Pública de Minas Gerais- Registros Tentados e Consumados.
2018.

CONNELL, Robert W.; MESSERSCHMIDT, James W. Masculinidade he-


gemônica: repensando o conceito. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 21,
n. 1, p. 241-282, abril de 2013.

DA CUNHA, Jorge Luiz; RÖWER, Joana Elisa. Ensinar o que não se sabe:
estranhar e desnaturalizar em relatos (auto) biográficos. Educação, v. 39,
n. 1, p. 27-37, 2014.

DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Manual de Gestão para


as Alternativas Penais. 2017.

HALL; Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. 10. edição:


DP&A, 2005. p. 34-36.

PACHECO, Ana Cláudia Lemos. Mulher negra: afetividade e solidão.


EDUFBA, 2013.

SCHRAIBER, Lilia Blima et al. Homens, masculinidade e violência: estu-


do em serviços de atenção primária à saúde. Rev. bras. epidemiol., São
Paulo, v. 15, n. 4, p. 790-803, 2012 .

SILVA, Sergio Gomes da. Masculinidade na história: a construção cultur-


al da diferença entre os sexos. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 20, n. 3,
p. 8-15, 2000 .

130
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

VELOSO, Flávia Gotelip Correia; NATIVIDADE, Cláudia. Metodologias de


abordagem dos homens autores de violência contra as mulheres. Aten-
dimento a homens autores de violência doméstica: desafios à política
pública, p. 45-64, 2013.

131
132
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

AÇÕES DE RESPONSABILIZAÇÃO AOS HOMENS AUTORES DE


VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: PERFIL, PERSPECTIVAS E
PERCEPÇÕES DO CENTRO INTEGRADO DE ALTERNATIVAS PENAIS
DE BELO HORIZONTE

Cristiene Vieira Fernandes


Rosilene Nepomuceno da Silva
Tatiana Pires Maia

INTRODUÇÃO

A promulgação da Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria


da Penha, no Brasil traz mudanças nos mecanismos para coibir e preve-
nir as mais diversas formas de violência contra as mulheres e se mostra
como uma das respostas à série de tratados internacionais que o país
é signatário, dentre eles a Conferência dos Direitos Humanos de Viena
(1993), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência Contra a Mulher (1994) e a Conferência Mundial das Mulheres
(1995). A violência contra a mulher é uma violência baseada na diferença
de gênero e ocorre, principalmente, no domínio conjugal e familiar.
Um dos resultados da luta dos movimentos feministas contra
formas de violência infligidas às mulheres é a progressiva visibilidade
e desnaturalização que essa violência foi adquirindo durante os anos.
Retirada do âmbito privado, a violência contra a mulher é cada vez mais
considerada um problema social e de saúde pública.
Um dos efeitos da visibilidade da violência doméstica contra a
mulher foi a promulgação da Lei 11340/06 conhecida como Lei Maria
da Penha pela luta e divulgação que a farmacêutica bioquímica Maria da
Penha Fernandes sustentou após ter sofrido várias violências de gênero.
Em resposta à prerrogativa indicada no art. 35, V da lei 11340/061, o

1 Artigo nº 35, inciso V da Lei 11.340/2006. A possibilidade de a União, o Distrito


Federal, os Estados e os Municípios criarem e promoverem Centros de Educação
e Reabilitação dos Agressores.

133
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Estado de Minas Gerais desenvolve no Centro Integrado de Alternativas Penais


de Belo Horizonte (CIAPBH) ações de responsabilização de homens autores de
violência contra a mulher através, primordialmente, de Grupos Reflexivos.
Por meio da realização de atividades educativas e pedagógicas que tenha
por base uma perspectiva feminista de gênero, o Serviço de Responsabi-
lização e Educação deverá contribuir para a conscientização dos agres-
sores sobre a violência de gênero como uma violação dos direitos humanos
das mulheres e para a responsabilização desses pela violência cometida.
Juntamente com demais atividades preventivas - tais como realização de
campanhas nacionais e locais, formação de professores e inclusão das
questões de gênero e raça nos currículos escolares - o serviço poderá con-
tribuir para a desconstrução de estereótipos de gênero; a transformação
da masculinidade hegemônica; e a construção de novas masculinidades.
O Serviço de Responsabilização e Educação do Agressor constitui parte da
Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e deverá atuar de
forma articulada com os demais serviços da rede (Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, Casa Abrigo, Centro de Referência
da Mulher, Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, Defenso-
rias/Núcleos Especializados da Mulher, Centros de Referência Especial-
izados de Assistência Social, serviços de saúde), no sentido de contribuir
para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres. (Manual de
Gestão das Alternativas Penais, 2017)

Deste modo, os homens autores de violência doméstica e familiar


contra as mulheres (HAV), ao serem acompanhados no CIAP, são en-
caminhados para Grupos Reflexivos sobre Violência de Gênero com o
enfoque na educação, reabilitação e responsabilização com o objetivo de
redução da reincidência da violência contra a mulher. O interesse em
escutar esses homens vem do reconhecimento de que o acompanhamen-
to apenas da vítima não se mostra inteiramente eficiente, pois, mesmo
que o laço conjugal seja desfeito, o que se nota é que os homens com
comportamentos agressivos podem repetir os episódios em novos rela-
cionamentos. Observa-se que o encarceramento como única ferramenta
de responsabilização é ineficaz para interrupção dos ciclos de violência
doméstica, pois:
(...) acaba por possibilitar uma efetiva desconstrução de suas concepções
de gênero e sua real responsabilização pelos danos decorrentes da violên-
cia contra a mulher. A bem da verdade, a eventual prisão preventiva do
agressor, seja decorrente da conversão da prisão em flagrante ou pelo des-
cumprimento das Medidas Protetivas decretadas em favor da vítima, para
além do caráter simbólico da lei, não atinge suas finalidades de evitar a
ocorrência de novas agressões contra a vítima ou até mesmo outras mul-
heres. No contexto histórico em que a violência contra a mulher está inseri-
da, somente com o trabalho educativo de maior profundidade, pautado no
real enfrentamento do problema e de suas soluções é que se conseguirá
resultado prático que vai além da mera punição estatal. (Nelson Humberto
Madeira da Silveira, 2018).

134
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Em razão do grupo ter como um de seus objetivos a prevenção a


violências, viu-se a necessidade de trabalhar algumas variáveis que po-
dem levar ao acirramento das violências contra a mulher, quais sejam: o
lugar dos homens na sociedade atual; os gatilhos de agressão; as dificul-
dades de lidar com as relações de afeto; e as construções da masculini-
dade tóxica ou hegemônicas; entre outras.

1. VIOLÊNCIA, GÊNERO E OS AVANÇOS DA LEI MARIA DA PENHA:


CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E JURÍDICA

Os números da violência contra a mulher no Brasil são alarman-


tes. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil está
entre os dez países com maior número de homicídios de mulheres. O
IBGE, no ano de 2010, publicou 108.491 registros de violência contra a
mulher na Central de Atendimento à Mulher, sendo que 58,8% dos aten-
dimentos são de violência física.
A Organização Mundial de Saúde (2002) conceitua violência como
o uso intencional da força física ou do poder real ou ameaça contra si
próprio, contra outra pessoa, contra um grupo ou uma comunidade,
resultando ou que tenha grande possibilidade de resultar em lesão,
morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.
Para pensarmos sobre a violência contra as mulheres é impor-
tante também falarmos sobre o conceito de gênero como uma forma de
entender, visualizar e referir-se à organização social da relação entre
os sexos. Scott (1989) coloca em questão várias concepções do termo
gênero e traz a complexidade desta categoria de análise. Assim, o con-
ceito de gênero é constitutivo das relações sociais e traz neste conceito
as concepções de diferença entre os sexos e uma forma de ressignificar
as relações de poder. As teorias sobre gênero descrevem a história das
mulheres na sociedade, Scott diz que o termo gênero é sinônimo do termo
mulher e que, muitas vezes, esse termo (mulher) foi sendo substituído
pela palavra gênero, ainda em uma tentativa de apagar o lugar da mulher
na história, logo, nos faz um alerta para que as discussões sobre gênero

135
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

não excluam a mulher desse debate.


Assim, a violência como forma de subjugar o outro pelo uso da
força, quando interage com o termo gênero, produz o entendimento da
dominação dos homens e subjugação das mulheres, trazendo a morte,
sofrimentos e danos físicos, sexuais, psicológicos. A saída de uma relação
violenta, para as mulheres, na grande maioria das vezes é obscura por di-
versos motivos: dependência econômica dos homens, baixa autoestima,
receio dos estigmas de ser divorciada, receio de cuidar dos filhos sozinha
e medo de sofrer represálias. Diante disso, o atendimento dos homens
autores de violência é mais uma via de atenção às mulheres no sentido
de o tratamento destes homens visar a prevenção de novos episódios de
violência.

1.1. CONTEXTO JURÍDICO ANTERIOR E POSTERIOR À LEI


11.340/2006

1.1.1. ANTES DA LEI 11.340/2006

Antes da Lei 11.340/2006, o tratamento à violência de gênero era


algo restrito às normas penais comuns. Em 2004, pela Lei 10.886, foi
inserido no art. 129 do Código Penal o parágrafo 9º, o qual previu pena
de detenção de seis meses a 1 (um) ano para lesões corporais praticadas
no âmbito doméstico e familiar. Esse tipo de lesão corporal qualificada
era aplicado para qualquer tipo de vítima, independente do seu gênero,
podendo, inclusive, ser utilizada para homens (Dias, 2015, p. 81). Devi-
do ao fato de a pena máxima cominada ser inferior a dois anos, cabia a
aplicação dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais
Criminais (Lei 9.099/95), tais como a transação penal, suspensão condi-
cional do processo e o pagamento de prestação pecuniária enquanto es-
pécie de condição para cumprimento desses institutos.
Tal panorama se mostrava sem eficácia na prática e era incapaz
de gerar na mulher vítima de violência coragem suficiente para a denún-
cia, pois o Direito não possuía instrumentos que garantiam a sua inte-

136
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

gridade física e psíquica para denunciar o que se passava com ela.

1.1.2. PÓS LEI 11.340/2006

Com o advento da Lei 11.340/2006, mudou-se o paradigma


jurídico para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher
(Dias, 2015, p. 79). Diante da possibilidade da concessão de medidas
protetivas de urgência sem oitiva do suposto agressor, vislumbra-se ter a
palavra da vítima, pelo menos inicialmente, com mais credibilidade que
a dele. Contudo, no processo penal instaurado para apuração do delito
de violência contra mulher, a palavra dessa, para gerar condenação, deve
ser corroborada por outros elementos de prova; se isolada nos autos, é
impositiva a absolvição por insuficiência probatória em decorrência do
princípio in dubio pro reo.
A Lei 11.340/2006 não tipifica condutas como crime, mas concei-
tua diversas formas de violência contra a mulher em seu artigo 7º: psi-
cológica, moral, física, patrimonial e sexual. A principal inovação da Lei
Maria da Penha no que diz respeito ao seu aspecto jurídico foi a previsão
de concessão de medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor
(art. 22) e que se destinam à vítima (art. 23). O juiz poderá adotar no caso
concreto as medidas que julgar mais adequadas e necessárias para aque-
la determinada situação de violência e poderá revê-las ao longo do tempo
(art. 19, parágrafo 3º). Além das Medidas Protetivas de Urgência, houve
previsão de decretação de prisão preventiva do autor de violência contra
a mulher para assegurar o processo (art. 20) e para garantir eficácia das
medidas protetivas de urgência no art. 42 (Dias, 2015, p.85).
Ao ser preso em flagrante, o suposto agressor poderá ou não ser
preso preventivamente pelo juiz, a depender da presença dos requisitos
do art. 312 do Código de Processo Penal. Como a Lei 12403/2011 (Nova
Lei de Cautelares) colocou a prisão como exceção, deixou à disposição
nove medidas cautelares não prisionais (art. 319 do Código de Processo
Penal) que, muitas vezes, reproduzem as medidas protetivas (Dias, p.
86, 2015). Cabe aqui diferenciar as medidas protetivas das cautelares,

137
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

pois ambas, na prática, podem utilizar dos mesmos procedimentos para


coibir a violência contra as mulheres, tais como proibição de contato com
a vítima e o próprio grupo reflexivo. O que diferencia uma da outra é que
a protetiva é requerida pela vítima para sua proteção, portanto resguarda
a vítima, enquanto a cautelar é determinada para que a ação penal que
julgará o caso seja bem-sucedida, ou seja, resguarda o processo. A Me-
dida Protetiva pode ser aplicada sem a oitiva do acusado, tendo em vista
o caráter emergencial da proteção de que necessita a vítima de violência
doméstica na maioria das vezes.
A proibição de aplicação da prestação pecuniária de qualquer or-
dem nos casos de violência doméstica contra a mulher prescrita no art.
17 da Lei Maria da Penha revela a intenção do legislador de não quanti-
ficar economicamente esse tipo de violência. Neste mesmo sentido, o le-
gislador também proibiu a aplicação da Lei 9.099/95 (Juizados Espe-
ciais) nos casos de violência contra a mulher no art. 41 da Lei Maria da
Penha. E garantiu que o Estado pode dar prosseguimento à ação, por
meio do Ministério Público, sem que a vítima faça a representação da
denúncia. Tal fato se dá pelo entendimento da situação de vulnerabili-
dade da vítima que muitas das vezes a impede de representar contra o
agressor, razão pela qual o Estado deve se incumbir da persecução penal
sem depender da vítima para responsabilizá-lo.
Em relação à aplicação das penas restritivas de direito (espécie de
penas alternativas) a Lei Maria da Penha introduziu o art. 152, parágrafo
único na Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal), prevendo o compareci-
mento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação,
os quais são uma espécie de pena restritiva de direito.
Vemos que as modificações no aparato penal foram marcadas por
avanços no sentido de garantias legais para mulheres. Mas todas estas
ações ainda não se traduzem por uma diminuição efetiva do número
diário de feminicídios no país, demonstrando que as mudanças históri-
cas e culturais precisam acompanhar a letra da lei.

138
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

2. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DO PERFIL DOS HOMENS ATENDIDOS NO


CIAPBH

Para caracterizar os HAV atendidos no CIAPBH, recortamos um


perfil2 em uma amostra total de 250 homens, essa amostra foi retirada
da Planilha de Inscrição onde são registrados todos os primeiros aten-
dimentos realizados pelo Programa. Nesse caso, o critério para o recorte
foi de ser homem e autor de violência intrafamiliar ou doméstica contra
mulher.
A partir desse recorte, observou-se que o público alvo dessa
pesquisa está, primordialmente, na faixa etária de 30 a 50 anos, são
pardos, solteiros, baixa escolaridade, têm alguma fonte de renda, seja
no mercado de trabalho formal ou não, e a maior parte dos atendidos faz
uso de substâncias psicoativas, principalmente o álcool, conforme de-
monstrado nos gráficos que se seguem.
Estes parâmetros auxiliam a formatação dos grupos, como, por
exemplo, a temática de uso de álcool, que aparece no gráfico 1.

Gráfico 1 - Quantidade total versus Uso de Substâncias Psicoativas

Fonte: Planilha de Inscrição CEAPA/BH

2 Fonte dos dados: informações retiradas da Planilha de Inscrição das pessoas


em alternativas penais da CEAPA BH entre os meses de setembro/2016 e fe-
vereiro/2017, ressalva-se que o total da amostra utilizada para o perfil foi de 250
homens.

139
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Durante os encontros no Grupo Reflexivo, os HAV justificam, no


primeiro momento, o uso de drogas como fator motivador e mantenedor
das violações contra as mulheres. Mas estas justificativas são colocadas
em xeque com as reflexões realizadas no Grupo que ajudam a desvelar
que, mesmo sem o uso de substâncias psicoativas, os homens agridem
as mulheres.
Importante registrar que, no gráfico 2, verificamos o fato de que
muitos homens têm uma fonte de renda, e isto corrobora os dados de que
o fator financeiro não está ausente nos episódios de violência. Duran-
te os encontros, nos Grupos Reflexivos executados pela CEAPA, perce-
be-se que os HAV, em suas falas, reconhecem que um dos elementos da
construção das masculinidades é ser provedor com seu trabalho fora do
âmbito privado.

Disso decorre que, em muitas situações, os homens permanecem na


condição de chefia da família, administrando os bens e monopolizando
o poder econômico da comunidade familiar, o que pode ser considerado
moeda de troca ou vantagem na imposição de sua vontade e manutenção
de relação desigual de poder. (Lima, 2018).

Gráfico 2 - Quantidade total versus atividade remunerada.

Fonte: Planilha de Inscrição CEAPA/BH

No gráfico 3, percebe-se o grande número de HAV que se con-


sideram solteiros. Por sua vez, ao serem questionados sobre a história
dos relacionamentos, dizem viver com companheiras, muitas vezes ca-
racterizando união estável. O não reconhecimento de que estão em um
relacionamento traz elementos para o desrespeito com os membros da

140
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

coabitação, uma vez que não criam sentido de convivência sob o mesmo
teto e dever de compartilhar aspectos importantes da vida.

Gráfico 3 - Quantidade total versus Estado Civil

Fonte: Planilha de Inscrição CEAPA/BH


No Gráfico 4, percebe-se que a faixa etária dos HAV se concentra
entre 30 e 50 anos e, durante o Grupo, observa-se que os relacionamen-
tos que ocasionaram a aplicação dos dispositivos legais não são os pri-
meiros desses homens.

Gráfico 4 - Quantidade total versus Idade

Fonte: Planilha de Inscrição CEAPA/BH

141
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

No gráfico 5, vê-se que a questão racial está de acordo com os


índices brasileiros que registram a maior parte da população como preta
e parda.
Gráfico 5 - Quantidade total versus Cor/Raça

Fonte: Planilha de Inscrição CEAPA/BH


No gráfico 6, nota-se que os índices mostram a baixa escolaridade,
a maioria dos homens deste estudo não finalizou as séries obrigatórias de
escolarização, conforme a LDB (Lei de Diretrizes e Bases) brasileira, se-
guida por uma escolaridade mais avançada, que se dá a partir do ensino
médio completo, o que pode demonstrar que a questão da violência não
se restringe à falta de escolarização.
Gráfico 6 - Quantidade total versus Escolaridade

Fonte: Planilha de Inscrição CEAPA/BH

142
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Estudos revelam que a Violência contra a mulher não está restrita


a inserção ou não no mercado formal de trabalho, diferenças étnicas ou
graus de escolaridade, mas o que percebemos a partir desse perfil é que
os homens criminalizados por atos de violência doméstica e de gênero em
Belo Horizonte seguem características da seletividade penal brasileira.

3. MÉTODO DE TRABALHO E A PERCEPÇÃO DOS PROFISSIONAIS


NA EXECUÇÃO DOS GRUPOS REFLEXIVOS CIAP BH

No Brasil, poucas instituições faziam o atendimento dos homens


agressores antes da promulgação da Lei Maria da Penha, dentre elas o
Instituto NOOS, no Rio de Janeiro; a ONG Pró-mulher, em São Paulo;
e o Instituto ALBAM, em Belo Horizonte. Atualmente, há um crescen-
te número de experiências de atendimento dos homens espalhadas pelo
Brasil, mas ainda incipiente frente ao problema da violência de gênero.
Nosso objetivo agora é explanar sobre o atendimento dos homens autores
de violência doméstica e familiar (HAV) que acontece em forma de grupos
reflexivos dentro da CEAPA de Belo Horizonte.
Os grupos proporcionam um lugar de reflexão para os homens
que têm sobre eles a obrigação legal de cumprir uma Medida de Proteção
de Urgência, uma Cautelar ou o SURSIS. À frente dos grupos sempre
estão dois Analistas Sociais nas formações de Psicologia, Serviço Social
ou Direito que estão inseridos nos trabalhos de acompanhamento das
Alternativas Penais dentro da CEAPA, com a intenção de conduzir as dis-
cussões. O grupo tem a duração de 10 (dez) reuniões de 2 (duas) horas
cada encontro.
Para que os HAV possam se sentir à vontade para falar sobre a vi-
olência contra as mulheres e refletirem sobre as causas e consequências
de seus atos, são adotadas nos encontros a “associação livre coletivizada”
e a utilização de dinâmicas que facilitam a produção da linguagem. Os
encontros são orientados no sentido de propiciar que o grupo considere
as particularidades dos HAV, trabalhando as questões das várias formas
de violência a partir daquilo que insurge das falas desses homens e de

143
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

um reconhecimento de que muitas vezes respondem às masculinidades.


A construção das masculinidades é entendida aqui como uma
construção coletiva de como os homens devem agir consigo, com o outro e
com a sociedade, assim, usando como referência OLIVEIRA e CALÇADE,
muito cedo se aprende que a pena por não seguir o código estrito da
masculinidade hegemônica é ser visto como “menos homem”, associado à
feminilidade, e, desse modo, vulnerável à violência e ao bullying dos
pares, principalmente nas fases da infância e adolescência.
Nos primeiros encontros, são abordados os motivos que levaram
os HAV ao grupo e os esclarecimentos sobre questões legais. Há, também,
a construção conjunta das Regras de Convivência Grupal, com o objetivo
de estimular a participação de todo o grupo nos processos reflexivos e
instigá-los a ponderarem sobre o que motiva as reações agressivas, am-
pliando o escopo de resposta não violenta e tentando identificar pontos
de repetição.
Dessa forma, procura-se resgatar as falas sobre a família, expri-
mindo o convívio com os filhos, com os pais e irmãos. Alguns homens
participam do grupo devido a agressões realizadas contra outras mu-
lheres do grupo familiar, como as mães e irmãs. E, muitas vezes, é pos-
sível verificar algo da violência de gênero que perpassa a infância destes
e o modo como foram construídas as relações com a família de origem.
Neste momento dos Grupos, nota-se a presença de uma fala de vitimi-
zação dos homens em relação ao processo legal em que estão inseri-
dos e, também, um sentimento de “traição”, pois não esperavam que as
mulheres pudessem revelar a situação de violência da relação amorosa.
Há uma diferença entre as queixas vindas dos homens que es-
tão nos Grupos Reflexivos devido a uma Medida Protetiva de Urgência e
aqueles que estão respondendo a uma Medida Cautelar. Em uma análise
preliminar pode-se verificar que há uma distância do ato violento em
relação ao início do cumprimento da Medida Protetiva de Urgência, pois
os homens nem sempre foram apreendidos em flagrante e se queixam
pelo fato de não ter sido dada a eles oportunidade de apresentar suas
versões sobre o fato, afinal nem todos passaram por oitivas. Já com as

144
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Medidas Cautelares, os homens são levados a procurar a CEAPA após a


concessão do alvará de soltura e, nestes casos, não há presença de que-
ixas sobre não terem sido escutados, mesmo porque passaram pelas au-
diências de custódias. Nestes casos os homens revelam outras queixas,
muitas vezes voltadas ao tratamento violento recebido nos equipamentos
de Segurança Pública, como delegacias, prisões preventivas e presídios.
Sendo assim, percebe-se que o processo de responsabilização so-
bre os atos de violência é influenciado pelo tempo decorrido entre o ato
em si e o início do cumprimento das Medidas, ou seja, quanto mais o
início do cumprimento se distancia do ato violento, mais elementos de
resistência são apresentados por esses homens.
Por volta da metade dos encontros, nota-se que os participantes al-
cançam questionamentos sobre o papel destinado às mulheres nas
relações conjugais, familiares e sociais mais amplas. Logo, é possível
trabalhar os pontos que levam à “des-objetalização” da mulher. Muitos
homens expõem que os conflitos se iniciam com a recusa das mulheres
de assumirem, exclusivamente, o papel de cuidadoras do lar, dos filhos e
do próprio marido.
As mudanças de perspectiva se dão quando os participantes do
grupo começam a se escutar e a estranhar este comportamento machis-
ta, derivado da construção das masculinidades, reconhecendo que as
limitações de demonstração de afetividade impostas por representações
sociais do que é ser homem têm consequências negativas tanto para
família, mulheres e para eles próprios. Neste momento dos Grupos tam-
bém são trabalhadas formas de comunicação não violenta. Os homens
são convidados a falar sobre a forma como a masculinidade hegemônica
é forjada no cotidiano de suas vidas e, ao longo dos encontros, desapare-
cem as queixas sobre o comportamento das mulheres e sobre a sensação
de injustiça relatadas por eles no início dos encontros.
Nos últimos encontros, os HAV já conseguem analisar as cenas de
agressões, identificando os gatilhos que levam aos conflitos e refletindo
sobre como interromper as repetições nas relações amorosas. Os HAV
falam sobre os processos de construções das masculinidades que influ-

145
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

enciam nos comportamentos agressivos.


O trajeto que leva o menino da posição masculina à masculinidade - resul-
tado de um longo percurso que se constrói em um espaço político e social,
através de diversos rituais e provas de iniciação - é extremamente com-
plexo, e o fantasma de não alcançar é uma presença constante. Por esta
razão, é frágil e constantemente ameaçada: tem que se “forçar”, de alguma
forma, seu desenvolvimento, sob pena de que ela não se manifeste. Não é
por acaso que tantos tabus, proibições e expedientes são necessários para
salvaguardar a masculinidade do perigo de contaminação pela feminili-
dade. (Ceccarelli, 2011).

Nos encontros torna-se claro que a construção das masculini-


dades é uma realidade para os homens e, quanto mais se radicaliza a
ideia de afastamento da feminilidade, maior a chance da produção de
comportamentos agressivos para garantir esta separação.

CONCLUSÃO

O atendimento dos homens autores de violência doméstica e fa-


miliar contra as mulheres traz diversos desafios, mas a execução dos
Grupos Reflexivos mostra o quanto é importante para a prevenção da
violência contra as mulheres inaugurar espaços para a fala dos homens.
Numa relação violenta, é necessário trabalhar os diversos envolvidos,
dando suporte para que os indivíduos saiam do ciclo que representa a
violência doméstica e familiar contra a mulher. Privilegiar um ou outro
é prenúncio do fracasso ao lidar com este fenômeno que, antes de tudo,
é cultural, enviesado nos valores patriarcais, machistas e sexistas da
nossa sociedade. Formas de punição que silenciam os homens têm pou-
co ou nenhum impacto na interrupção das agressões. É imprescindível
que o atendimento aos homens seja uma parte das políticas públicas que
trabalha no sentido de coibir e prevenir a violência contra a mulher, e
não um lugar de competição pelos financiamentos voltados à construção
de uma rede de proteção a essas mulheres. O Estado deve ser capaz de
investir para transformar essa realidade para todas as partes do conflito,
sejam autores ou vítimas desse tipo de violência.

146
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REFERÊNCIAS

Dias, Maria Berenice. Lei Maria da Penha: a efetividade da Lei 11.340/2006


de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 4ª edição,
rev., atual ampl. -São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. Dis-
ponível em: http://www.tjmg.jus.br/portal/acoes-e-programas/audien-
cia-de-custodia/. Acesso em 09 de abril de 2017.

Ceccarelli, Paulo Roberto. (1998). A Construção da Masculinidade. In


Percurso, São Paulo, Vol. 19, p. 49-56. Disponível em: http://ceccarelli.
psc.br/pt?/page_id=272. Acessado em: 28/03/2017.

Borges, Bruna Angélica. Sousa, Luana S. (2015). A Aplicação da Lei


11.340/06 (Lei Maria da Penha) de combate à violência contra mulher:
percepções a partir de gestores de uma cidade do Brasil. Revista Inte-
gración Académica en Psicología. Volume 3, nº 9, México.

Lima, Daniel C., Büchele, Fátima. (2011). Revisão crítica sobre o aten-
dimento a homens autores de violência doméstica e familiar contra as
mulheres. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Vol. 21 no 2. Rio de Janeiro.

Scott, Joan. (1989) Gênero: uma categoria útil para análise histórica.
Nova York, Columbia University Press.

Minayo, Maria Cecília S., Souza, Edinilsa R. (1998) Violência e Saúde


como um campo interdisciplinar e de ação coletiva. História, Ciências,
Saúde Vol. IV (3). Rio de Janeiro.

BRASIL. Lei 11.340 de 07 de agosto (2006). Cria mecanismos para coibir


a violência doméstica e familiar contra a mulher.

BRASIL. Diário de Justiça do Estado de Sergipe. Lagarto/SE 13/12/2018.


Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/221904773/djse-
13-12-2018-pg-1404?ref=serp

147
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

BRASIL. Manual de Gestão para as Alternativas Penais, LEITE, Fabiana


de Lima, 2017, Brasília. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/
dirpp/cgap/modelo-de-gestao/.pdf

LIMA, Renan. Possibilidade de enfrentamento à Violência contra a mul-


her, 2018,
https://jorgejorginholindo.jusbrasil.com.br/artigos/656042540/possi-
bilidades-de-enfrentamento-a-violencia-contra-a-mulher?ref=topic_feed

OLIVEIRA, Tony e CALÇADE, Paula. (2019) Revista Nova Escola. Edição


322. Como o conceito tradicional de masculinidades afeta os meninos?
São Paulo.

148
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

PROJETO DE EXECUÇÃO DE ALTERNATIVA PENAL: RELATO DE


EXPERIÊNCIA INTERDISCIPLINAR E INTERSETORIAL NA
ABORDAGEM AO USO DE DROGAS

Beatriz Guedes Mattozo


Karolina Adrienne Silva Oliveira
Pâmela Dias Villela Alves

INTRODUÇÃO

O surgimento das alternativas à prisão ocorreu a partir de


uma crítica ao encarceramento como modelo predominante, ao aumento
expressivo da população carcerária do país, bem como ao sistema pe-
nal enquanto um dispositivo de controle social que utiliza determinados
critérios pautados na seletividade penal. São definidos certos públicos ou
grupos específicos a serem inseridos no sistema prisional, intensifican-
do e encobrindo violências estruturais relacionadas a fatores culturais e
ideológicos.

O Mapa do Encarceramento confirma mais uma vez o perfil da população


carcerária brasileira, formada principalmente por jovens até 29 anos, ne-
gros e do sexo masculino. Importa também destacar que cerca de 18% das
pessoas foram detidas por crimes cuja lei prevê pena de até quatro anos,
o que indica o direito a uma pena substitutiva à prisão. Outro estudo rel-
evante, consolidado pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM)/
Datasus, do Ministério da Saúde, revela que 77% dos jovens assassinados
no Brasil em 2012 eram negros (pretos e pardos). (LEITE, 2015, p.10).

O Programa Central de Acompanhamento de Alternativas Penais


(CEAPA) é um importante espaço para o acompanhamento de pessoas
em cumprimento de alternativas penais (AP), que busca vencer diversos
desafios para contribuir efetivamente na reversão desse modelo penal
hegemônico. Sua atuação é pautada em uma perspectiva de acesso a di-
reitos, “centrando-se nos pilares constitucionais de dignidade e liberdade

149
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

humanas” (Leite, 2015, p. 16).


Dentre suas atividades metodológicas, segundo o Manual do Pro-
grama, estão previstos os denominados Projetos de Execução de Alterna-
tivas Penais (PEAP), “estratégias específicas de prevenção a determinados
contextos e comportamentos de risco que podem levar a processos de
violência e/ou criminalização” (Governo de Minas Gerais, 2014, p.34).
São grupos temáticos por tipo de delito cometido que devem provocar
a troca de experiências, crenças, sentimentos e ideias entre os partici-
pantes, sobre as situações experimentadas e vivenciadas, estimulando a
autocrítica e a ampliação do repertório de respostas no enfrentamento de
determinadas situações.
A partir de parceria entre psicóloga voluntária e o Programa CEA-
PA em Juiz de Fora, município do interior de Minas Gerais, construiu-se
a experiência que aqui se apresenta, tendo como objetivos repensar a
forma como os projetos já vinham sendo executados, visando mudanças
que pudessem qualificar as intervenções oferecidas no PEAP sobre dro-
gas e a aproximação de diferentes pontos da rede de apoio. Tal inicia-
tiva encontra-se alinhada ao objetivo geral do referido programa que
visa “contribuir para o fortalecimento e consolidação de uma política de
responsabilização alternativa ao cárcere no Estado de Minas Gerais”
(Política de Prevenção à Criminalidade, 2018), o que certamente se efeti-
va com a formação de redes de cuidado e a atuação de diversos setores
da sociedade.
Este trabalho foi voltado especificamente para o público em cum-
primento de AP por crime relacionado à lei de drogas (11.343/06). Pau-
tado nos postulados, princípios e diretrizes formulados pelo Ministério
da Justiça para a política de alternativas penais, o Programa CEAPA,
objetivando uma ampliação no rol de AP, construiu localmente junto ao
Poder Judiciário e ao Ministério Público condições para esse cumprimen-
to que se adequassem às demandas mais recorrentes apresentadas pelo
público atendido, sendo uma delas o uso de drogas. Os termos de au-
diência foram elaborados com possibilidades que favorecessem o atendi-
mento destas demandas identificadas, bem como a contribuição de todos

150
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

os atores envolvidos no planejamento e na elaboração das propostas de


ações de prevenção social à criminalidade a serem executadas: a pessoa
em cumprimento de AP, a equipe interdisciplinar do Programa, o Poder
Judiciário e a rede de proteção social.
Tal construção permite ao público atendido um acolhimento hu-
manizado, individual e que leve em consideração as especificidades de
cada situação, tendo a equipe do programa, juntamente ao sujeito, au-
tonomia para definir a opção que melhor possa se adequar à sua dinâmi-
ca pessoal, social e/ou criminal para o cumprimento da AP.

DA ARTICULAÇÃO E PLANEJAMENTO DO PROJETO

Este trabalho foi planejado e realizado de forma interdisciplinar e


intersetorial, havendo contribuição das diferentes áreas que compõem a
equipe de analistas sociais do Programa CEAPA (psicologia, serviço social
e direito), sendo ampliado no âmbito externo através de parceria com
psicóloga voluntária e da Rede de Proteção Social - CAPS AD.
A interdisciplinaridade de que se fala propõe o entendimento de
que os sujeitos devem ser vistos a partir de uma perspectiva integral
e não fragmentada, utilizando-se das diversas áreas do conhecimento
para que o trabalho alcance os indivíduos em suas complexidades. Na
experiência aqui citada isto se dá pelas trocas durante os planejamentos
das intervenções e na execução das mesmas.

A perspectiva de atuações inter e intrassetoriais no campo das políticas de


saúde tende a se expandir, uma vez que não é mais possível retroceder na
discussão que envolve a ampla causalidade do processo saúde-doença. A
partir de uma abordagem intersetorial que vise à melhoria das condições
de vida, a saúde se torna um objetivo a ser alcançado por todas as políti-
cas públicas que têm como diretriz a promoção da qualidade de vida das
populações, ampliando o entendimento do termo saúde (Azevedo, 2012,
p.1349 -1350).

A contribuição de diferentes setores na atuação de questões im-


portantes da sociedade combinou, na experiência aqui citada, a atuação
dos setores da justiça, da segurança pública e da saúde, o que se entende
por intersetorialidade. Junqueira (1998) citado por Azevedo (2012) lem-

151
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

bra-nos que: “os problemas de saúde são parte dessa complexa questão,
de causalidade múltipla, que afeta as populações, necessitando da arti-
culação de saberes e experiências para seus enfrentamentos”. É também
importante lembrar que toda a proposta foi baseada no compartilhamen-
to não só de saberes dos profissionais, nos planejamentos e execuções,
mas também nas trocas de experiências possibilitadas pelos própri-
os participantes - um exemplo do encontro entre os saberes técnicos e
acadêmicos com os saberes acumulados pela vivência e conhecimento
singular de cada sujeito.

É necessário destacar que a aposta em intervenções baseadas no com-


partilhamento de saberes possibilita novos enfoques sobre os contextos de
violência e criminalidade apresentados ou sugeridos pelos atendidos, per-
mitindo também um olhar sobre o contexto social destas pessoas. (Governo
de Minas Gerais, 2014, p. 20).

Anteriormente ao início dos grupos, foi realizado espaço de for-


mação da equipe de analistas do Programa CEAPA, contando com
a contribuição de equipe multiprofissional do CAPS AD III de Juiz de
Fora sobre sua atuação no acompanhamento aos usuários de álcool e
outras drogas. Esta ação se fez necessária tendo em vista a importância do
alinhamento conceitual e da definição do modelo de cuidado nas ações
intersetoriais.
Já em um segundo momento, no planejamento e execução dos
grupos reflexivos, houve a atuação da psicologia através da presença de
profissional que também atua no CAPS AD e das analistas do Programa
CEAPA, com objetivo de contribuir nas intervenções que pudessem im-
pactar na realidade social dos sujeitos participantes e que pudessem “re-
duzir a incidência de violências e criminalidade por seus usuários, seja
como autores ou vítimas” (Política de prevenção social à criminalidade,
2018).
Seu trabalho como profissional da Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS) do município, em um CAPS AD III, agrega ao projeto saberes im-
portantes como alguns dos princípios norteadores das políticas públi-
cas de saúde: a integralidade, autonomia e redução de danos (RD). Por
detrás de suas ações, fizeram-se também presentes os pressupostos da

152
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Psicologia Comunitária e da perspectiva da Saúde Coletiva/Saúde Men-


tal. A primeira tem como premissa uma psicologia que possa construir
oportunidades de diálogo em que os sujeitos falem de suas percepções
a partir do contexto social em que estão inseridos, para que assim seja
possível promover discussões, disseminar informações e produzir novos
significados, tal como ilustra Campos (1996), no trecho a seguir:

Neste sentido, o estudo das estruturas discursivas e da retórica tem se


revelado também importante. (...) A ideia é que, em situações de interação,
principalmente quando culturas diferentes se encontram, interpretações
diferentes da mesma realidade podem estar em jogo. Se o conhecimento é
construído na atividade, e se os grupos humanos, por sua própria experiên-
cia em atividades diferentes, produzem interpretações divergentes acerca
da mesma realidade, estas diferenças certamente estarão expressas em
seu discurso (p.137).

Já a RD, proposta que embasa o trabalho em Saúde Mental, surge


a partir da década de 80 no Brasil com a epidemia de HIV e o uso de
drogas injetáveis, integrando hoje também a Política de Atenção Integral
a Usuários de Álcool e Outras Drogas (Brasil, 2005). Trata-se de uma
forma de cuidado em que a pessoa em necessidade decorrente do uso
de álcool e outras drogas não tem como objetivo único a abstinência,
mas também a redução dos danos físicos, sociais, econômicos além da
promoção de protagonismo e qualidade de vida, bem como respeito aos
direitos humanos.
Nas palavras de Lindner e Siqueira (2016), a RD traria à tona
uma nova perspectiva em relação ao cuidado de pessoas em uso abusivo
de substâncias psicoativas: “pensava-se, de forma pioneira, a drogadici-
dade pelo foco da saúde e das ciências sociais, entendendo-a como um
fenômeno humano que deve ser tratado além do estigma no qual estava
enquadrada”.
A garantia da autonomia, no contexto da saúde, é prevista na Lei
8.080 do Ministério da Saúde (Brasil, 1990) e, a partir dela, considera-se
importante escutar os sujeitos respeitando o seu direito à tomada de
decisões sobre si mesmos, seus corpos e as formas de cuidado sobre si,
como reforça o trecho a seguir de Almeida (2010):

153
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Uma pessoa autônoma é um indivíduo capaz de deliberar sobre seus ob-


jetivos pessoais e de agir em direção a esta deliberação, considerando os
valores morais do contexto no qual está inserido. Um indivíduo autônomo
age livremente de acordo com um plano próprio, de forma análoga à que
um governo independente administra seu território e estabelece suas políti-
cas. Respeitar a autonomia é valorizar a consideração sobre as opiniões
e escolhas, evitando, da mesma forma, a obstrução das ações do sujeito
autônomo, a menos que sejam claramente prejudiciais a outros (p. 383).

A partir do exposto até aqui, entende-se que as intervenções


planejadas em conjunto consideraram os três postulados da Política de
Alternativa Penal: intervenção penal mínima, desencarceradora e restau-
rativa; dignidade, liberdade e protagonismo das pessoas em alternativas
penais; ação integrada entre entes federativos, sistema de justiça e co-
munidade para o desencarceramento. Entendendo o espaço do grupo
como uma alternativa penal de “intervenção em conflitos e violências,
(...) orientados para a restauração das relações e promoção da cultura da
paz, a partir da responsabilização com dignidade, autonomia e liberdade”
(Leite, 2015, p.27).

RELATANDO A EXPERIÊNCIA

A intervenção estruturou-se a partir de seis encontros realizados


na sede do Centro Integrado de Alternativas Penais de Juiz de Fora, com
grupos de aproximadamente vinte pessoas, utilização de metodologias
ativas de participação e suporte de facilitadoras. Os grupos tinham como
perfil a idade de 20 a 29 anos e eram formados, em sua totalidade, por
homens.
Os temas trabalhados foram respectivamente: “Que droga é essa?
Desconstruindo conceitos e oferecendo informações”; “Mídia e sociedade:
como expõe a questão de drogas”; “Questões sociais, desigualdades e
privilégios”; “Situando-se na história”; “Saúde mental”; “Encerramento/
avaliação”.
Logo, foram realizados doze encontros no segundo semestre de
2018, sob coordenação de uma equipe interdisciplinar/intersetorial,
composta pela psicóloga do CAPS AD e pela assistente social do Pro-

154
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

grama.
O planejamento de cada encontro já considerava que poderia ha-
ver alterações de acordo com as demandas apresentadas pelo grupo ao
longo do tempo, tendo em vista a já citada abordagem que considera o
contexto específico e a história de vida de cada sujeito participante. Por-
tanto, através de linguagem acessível e escuta qualificada, avaliaram-se
as demandas dos participantes e estabeleceu-se um contrato entre todos
os presentes. Tal contrato grupal, construído coletivamente, definia as
regras do grupo e convivência como respeito e sigilo com a fala de cada
participante, objetivos dos encontros, uso de celular, uso do tempo e
tolerância de atraso para chegada aos encontros.
Além disso, conforme orientação do Manual das Centrais de Al-
ternativas Penais, elaborado pelo programa CEAPA em Minas Gerais, a
profissional parceira ficou responsável pela coordenação dos encontros,
apresentando o conhecimento específico e aprofundado no âmbito da
temática sobre drogas. Já a analista social do referido programa acom-
panhou o grupo trazendo os conteúdos relacionados à política de alter-
nativas penais, vulnerabilidade criminal, fatores de risco e de proteção.
Juntas, elas puderam construir com os participantes um acordo para o
funcionamento do espaço coletivo e os temas abordados durante a re-
alização dos encontros, promovendo um espaço de participação para a
prevenção social.
A dinâmica do trabalho considerou a importância das peculiari-
dades do contexto brasileiro, assim como a realidade dos participantes e
seus territórios, possibilitando reflexão acerca das políticas públicas atu-
ais, dentre elas a política de saúde e a política de guerra às drogas. Esta
última trouxe muitas provocações para o grupo por estar na contramão
do cuidado em liberdade, ser pautada no proibicionismo, na crimina-
lização do uso e nas formas de repressão às quais a sociedade e alguns
grupos específicos estão submetidos. Discutiu-se também as diferentes
formas com que a sociedade tratou do tema ao longo do tempo e também
ao redor do mundo.
Os primeiros momentos com o grupo tinham como objetivo

155
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

conhecer as principais percepções acerca do que seriam drogas, as ca-


racterísticas, comportamentos e perfil dos usuários de drogas, além do
modo como compreendiam a proposta do programa e as expectativas em
relação ao espaço do grupo.
O uso de recursos audiovisuais e dinâmicas específicas permitiu
discussões acerca das políticas de drogas no Brasil, promoção de co-
nhecimento sobre o SUS e da rede de saúde local, reforçando a ideia do
entendimento do uso de drogas como uma situação de saúde e educação,
não só atrelado à criminalidade.
Os eixos temáticos de cada encontro traziam informações epide-
miológicas e relativas às ações das substâncias psicoativas no sistema
nervoso; discussões acerca dos estigmas associados aos usuários de dro-
gas; debates sobre as políticas de drogas no país e no mundo; perspec-
tiva histórica traçando acontecimentos históricos da sociedade; justiça e
saúde (destacando-se a constituição do SUS, direitos humanos, a política
de saúde mental e atenção básica); rede de atenção à saúde; e a questão
social (inerente à forma de organização da sociedade capitalista).
Houve aproximação do conceito de saúde para além da ideia de
ausência de doença e que considera diversos fatores no processo de adoe-
cimento, também chamados de determinantes sociais de saúde, que têm
sua importância citada no trecho a seguir:

A criação da Comissão Nacional dos Determinantes Sociais da Saúde se


inscreveu neste processo de desenvolvimento da Reforma Sanitária Inte-
grada por dezesseis expressivas lideranças de nossa vida social, cultural,
científica e empresarial, sua contribuição diversificada é uma expressão do
reconhecimento de que a saúde é um bem público construído com a partic-
ipação solidária de todos os setores da sociedade brasileira. (Carvalho e
Buss, 2009, p.161).

A violência policial, tema que perpassou os relatos, foi uma das


oportunidades de abordar os direitos fundamentais e orientar os par-
ticipantes quanto a ações que promovam seus direitos e suas respon-
sabilidades, dentre elas a distribuição de uma cartilha orientadora sobre
como agir mediante abordagem policial, reforçando sempre a existência
de espaço na rede de proteção para acolher e intervir mediante ações

156
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

violadoras.
Dessa forma, observa-se, como aponta Forti (2009), que, em vez
de ampliar políticas de proteção, o Estado focaliza os problemas soci-
ais de modo individualizante e os submete aos aparatos de segurança,
a partir da compreensão equivocada da questão social como sinônimo
de questão criminal, inserindo-a no escopo de atuação das políticas de
repressão. Como efeito tem-se a não construção de estratégias efetivas/
estruturantes de intervenção no componente social e, em consequência,
um crescimento do Estado Penal que considera a defesa dos direitos hu-
manos como “tolerância à bandidagem”, sendo assim, um Estado que se
apropria cada vez mais do aparato repressivo e coercitivo para a classe
subalterna.

Recicla-se a noção de “classes perigosas” - não mais laboriosas -, sujeitas


à repressão e extinção. A tendência de naturalizar a questão social é acom-
panhada da transformação de suas manifestações em objeto de programas
assistenciais focalizados de “combate à pobreza” ou em expressões da
violência dos pobres, cuja resposta é a segurança e a repressão oficiais.
Evoca o passado, quando era concebida como caso de polícia, ao invés de
ser objeto de uma ação sistemática do Estado no atendimento às necessi-
dades básicas da classe operária e outros segmentos trabalhadores. Na
atualidade, as propostas imediatas para enfrentar a questão social no país
atualizam a articulação assistência focalizada/repressão, com o reforço
do braço coercitivo do Estado em detrimento da construção do consenso
necessário ao regime democrático. (IAMAMOTO, 2001, p. 17).

O PEAP favoreceu o compartilhamento de experiências, a par-


tir de troca de informações acerca de direitos, da questão social, das
políticas públicas e do acesso à saúde, passando por discussões sobre
redução de danos, políticas de drogas, raça, gênero e seletividade penal.
A discussão sobre direitos se fez necessária, pois, embora já se tenha
avançado muito após a Constituição Federal de 1988 no que se refere à
construção de arcabouço legal que respalde a garantia de direitos, pouco
se avançou na efetivação destes. A atual política econômica, caracteriza-
da como uma política pautada na lógica mercantil que expropria e invia-
biliza direitos, vem gerando uma ampliação das necessidades sociais ao
não possibilitar um acesso universal aos direitos já previstos legalmente.
Assim, entende-se essa experiência como uma forma de repensar as tra-
jetórias dos participantes, o modo como se percebem sujeitos de direitos

157
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

(ou não), se afetam e se posicionam frente a ela. Trata-se de uma inter-


venção possível que considera a temática de uso de drogas como questão
complexa e que não comporta respostas simples ou reducionistas como
solução.
Através da metodologia utilizada, mobilizando o conhecimento de
todos os participantes nas atividades propostas, foi perceptível uma par-
ticipação ativa do público atendido, os quais puderam falar de suas re-
alidades e percepções. A equipe preocupou-se em construir intervenções
que não reproduzissem ações estigmatizantes ou preconceituosas. As
analistas do Programa CEAPA notaram uma maior implicação/respon-
sabilização e boa adesão dos participantes nestes encontros, que cul-
minaram em um índice elevado de cumprimento integral da alternativa
penal.
Durante os momentos de avaliação do grupo, os participantes destaca-
ram os seguintes efeitos/impactos positivos da metodologia utilizada e
das intervenções realizadas pelas facilitadoras: a possibilidade de fala/
de diálogo (participação e protagonismo); o acesso a informações até en-
tão desconhecidas (principalmente no que se refere à política de saúde,
justiça e drogas) e a possibilidade de novas reflexões sobre suas próprias
trajetórias, comportamentos e escolhas.
Também apontaram o grupo como um espaço para realização de
novas amizades (fortalecimento de vínculos sociais), de acolhimento, sin-
tonia, interação mútua (pertencimento, identidade e empatia), troca de
estratégias para minimizar os fatores e/ou situações de risco (autonomia
e redução de danos), aprendizados para além da questão das drogas e a
compreensão diante de opiniões diferentes (respeito e responsabilização).
Por fim, destacaram maior interesse e aprendizado no encontro “Mídia e
sociedade: como expõe a questão de drogas”, devido à exibição do vídeo
“Crack repensar”.
Já como pontos negativos da ação, pontuaram o território onde
está localizado o Centro Integrado de Alternativas Penais (local de risco)
e sua estrutura física, como a falta de acessibilidade, excesso de escadas
e pouca ventilação. Por fim, sugeriram o fornecimento de lanche durante

158
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

os encontros e a possibilidade de escolher o horário do grupo, entre ma-


nhã, tarde e noite.
Para minimizar o incômodo relatado pelo grupo com a estrutura
do equipamento público, foi possível a construção coletiva de uma con-
fraternização final com lanche colaborativo em uma quadra de futebol
que havia nos fundos da casa onde funciona o programa CEAPA. Duran-
te a atividade, observou-se que o ambiente mais descontraído favoreceu
o surgimento/compartilhamento de questões prejudiciais/de risco sobre
o uso de drogas. A partir dessas falas, a analista do programa conseguiu
retomar alguns temas trabalhados e fez intervenções com diálogos bem
horizontais, assim como ao longo dos encontros, nos quais demandas
específicas e singulares que foram surgindo, relacionadas ou não ao pro-
grama, foram escutadas, trabalhadas e encaminhadas para a rede de
proteção. A metodologia participativa na execução dos grupos foi consi-
derada essencial para a adesão/vínculo dos usuários ao acompanha-
mento proposto pela CEAPA.
A oportunização da fala e o contato direto com os participantes
permitiram uma aproximação de suas realidades e reais demandas,
mostrando-nos as dissonâncias entre lei e realidade, teoria e prática e, a
todo momento, colocando a equipe em posição de revisão da ação profis-
sional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A guisa de avaliação percebe-se que os grupos atingiram, de for-


ma mais evidente, o objetivo de provocar a troca de experiências e de
ampliar o repertório de respostas no enfrentamento a determinadas situ-
ações ou riscos.
Destaca-se o respeito aos oito princípios referentes ao postula-
do da dignidade, liberdade e protagonismo das pessoas em alternativas
penais, apresentados por Leite (2015): (1) preservação da dignidade e
liberdade (com a individualização e participação ativa dos sujeitos nas
construções de respostas); (2) respeito às trajetórias individuais e reco-

159
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

nhecimento das potencialidades (promovendo sentidos emancipatórios);


(3) respeito à equidade e promoção das diversidades (garantia dos dire-
itos humanos); (4) descriminalização da pobreza e da população negra
(buscando romper com a lógica estatal de, em vez de ampliar as políti-
cas públicas, focalizar os problemas sociais de modo individualizante,
os submetendo aos aparatos de segurança, tratando a questão social de
modo repressor, criminalizador); (5) respeito às diversidades de gênero;
(6) promoção da equidade, proteção social e necessidades reais (sujeitos
ativos e capazes, escuta qualificada das reais necessidades e demandas
do sujeito para acesso aos direitos fundamentais); (7) autonomia, con-
sensualidade e voluntariedade e, por fim, (8) responsabilização (o cum-
primento da AP se traduziu na viabilidade e sentido para o sujeito).
Portanto, a criação do espaço de fala possibilitou que os partici-
pantes trouxessem relatos de suas histórias, crenças, opiniões e reflexões
importantes. Assim, através das intervenções baseadas no compartilha-
mento de saberes, foram possíveis construções mútuas de possibilidades
de respostas, considerando sempre o saber que cada um tem a compar-
tilhar e seu contexto social. Dentre as temáticas dos encontros ressal-
tam-se a questão das violências vivenciadas, como, por exemplo, a poli-
cial, questões relacionadas a gênero e papel social, além da forma como
a sociedade entende o consumo de drogas, possibilitando, dessa forma,
novos enfoques sobre os contextos de violência e/ou criminalidade
Um dos maiores ganhos da integração e parceria deve-se à im-
portância de se pensar no princípio da integralidade dos sujeitos e de que
há uma grande complexidade na atenção que não deve ficar a cargo de
um setor, mas sim de uma rede de suporte viva e atuante. Neste sentido,
é importante que os pontos de atenção sejam espaços de acolhimento,
escuta e promotores de autonomia, evitando qualquer tipo de preconceito
que possa gerar obstáculos para o acesso e cuidado dos sujeitos, princi-
palmente nos casos em que há uso de drogas envolvido. Como expõem
Linder e Siqueira, 2016, no seguinte trecho:

160
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Além disso, o contexto do uso de drogas (qualidade, quantidade, uso se-


guro, tipo de uso e de droga) precisa ser mais bem conhecido para que
se estabeleçam estratégias direcionadas. Num ambiente de insegurança
e preconceito, fica difícil a promoção de qualquer ação de saúde, visto que
a sobrevivência acaba sendo bem mais importante do que qualquer outra
coisa. (p.68).

Por fim, observa-se que o PEAP se caracteriza como um espaço


reflexivo possível para propor/formular estratégias que permitam arti-
cular a vida social desses sujeitos com o mundo público dos direitos e da
cidadania, estabelecendo uma constante ampliação do fazer profissional,
através do trabalho interdisciplinar e intersetorial, qualificando, assim, o
acompanhamento da pessoa em cumprimento de alternativa penal, com-
preendendo as suas especificidades e potencialidades.

161
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REFERÊNCIAS

Almeida E.H. R., (2010). Dignidade, autonomia do paciente e doença


mental. Revista Bioética 2010; 18 (2): 381 - 95.

Azevedo,E., Pelicioni, M.C.F., e Westphal, M.F.(2012). Práticas interseto-


riais nas políticas públicas de promoção de saúde. Physis Revista de
Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 22 [ 4 ]: 1333-1356.

Brasil (1990). Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e re-


cuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços corre-
spondentes e dá outras providências. Lei 8.080 Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm> Acesso em 22/03/2019.

Brasil (1995). Lei dos Juizados Especiais. Lei nº 9.099. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm> Acesso em 28
de Jan. de 2019.

Brasil (2005). Ministério da Saúde. Política do Ministério da Saúde


para a Atenção Integral dos Usuários de Álcool e outras Drogas. Dis-
ponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2005/
prt1028_01_07_2005.html> Acesso em 26 de Dez. de 2018.

Campos, R.H.F. (1996). Psicologia Comunitária, cultura e consciência.


In.: Psicologia Social Comunitária: Da solidariedade à autonomia. Vozes,
ed. 20.

Carvalho, A.I. e Buss, P.M. (2009). Determinantes sociais na saúde, na


doença e na intervenção. In.: Políticas e sistema de saúde no Brasil.

Crack repensar (2015). Direção: Felipe Crepker Vieira e Rubens Passaro,


Produção: Simone Alvim.

162
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

FORTI, V. Ética, Crime e Loucura: Reflexões sobre a Dimensão Ética no


Trabalho Profissional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

Governo de Minas Gerais (2014). Manual das Centrais de Alternativas


Penais. Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade. Núcleo de
Alternativas Penais. Belo Horizonte.

IAMAMOTO, M. V. A questão social no Capitalismo. Revista Temporalis,


ano 2, n. 3. Brasília: ABEPSS, Grafline, 2001.

Leite, F. de L. (2015). Postulados, Princípios e Diretrizes para a Política de


Alternativas Penais. Brasília, Programa das Nações Unidas para o Desen-
volvimento e Departamento Penitenciário Nacional.

Lindner e Siqueira (2016). Redução de Danos: Como foi? O que é pos-


sível? O que é preciso? In.: Entre pedras e fissuras: a construção da
atenção psicossocial de usuários de drogas no Brasil. HUCITEC.

Política de prevenção à criminalidade (2019). Portfólio Disponível em:


http://www.seguranca.mg.gov.br/images/2019/Abril/Portfolio%20Pre-
veno%20Social%20a%20Criminalidade%202019.pdf

163
164
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

GRUPOS REFLEXIVOS: FERRAMENTA DE ACOMPANHAMENTO E


RESPONSABILIZAÇÃO DE PESSOAS EM ALTERNATIVA PENAL POR
CRIMES RELACIONADOS AO TRÂNSITO, EXECUTADOS PELO
INSTITUTO VIDA SEGURA

Instituto Vida Segura

INTRODUÇÃO

D e acordo com o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões


no Trânsito - Penatrans 2018, os acidentes de trânsito são reconhecidos
pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um grave problema de
saúde pública e uma das principais causas de mortes e lesões em todo
o mundo, gerando elevado custo para os serviços de saúde e para as
economias dos países. Nesta acepção evidencia-se o desencadeamento de
diversos traumas para a sociedade, além de acarretar perda precoce de
vidas.
Conforme estatísticas oficiais do SIM - Sistema de Informações
sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, em 2017, o número de pes-
soas mortas no trânsito brasileiro foi 34.236, ou seja, uma pessoa a cada
15 minutos, além das mais de 300 mil sequelas permanentes.
Diante dos impactos decorrentes das infrações de trânsito para a
sociedade, o Código de Trânsito Brasileiro - CTB, em seu capítulo XIX vai
tratar dos Crimes de Trânsito. No rol dos Crimes em espécie da Seção II
vamos encontrar aqueles crimes chamados de “menor potencial ofensivo”,
dentre eles a prática de lesão corporal culposa; a condução de veículo
automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência
de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência
(Lei Seca); a violação da suspensão ou proibição de se obter permissão
ou a habilitação para dirigir veículo automotor; a participação de cor-
rida, disputa ou competição automobilística em via pública (Racha); a

165
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

direção sem habilitação gerando perigo de dano; a permissão, confiança


ou entrega de veículo automotor a pessoa não habilitada; o trafegar com
a velocidade incompatível com a segurança, em lugares determinados,
gerando perigo de dano.
A esses crimes geralmente não são aplicadas as penas restritivas
de liberdade, que consistem na constrição do direito de ir e vir, recolhen-
do o condenado em estabelecimento prisional, mas sim as Alternativas
Penais que oferecem respostas diversas ao encarceramento, dentre elas:
a Prestação de Serviços à Comunidade, a Prestação Pecuniária e a Partic-
ipação no Projeto de Execução Penal, que consiste em Grupos Reflexivos
com a temática relacionada ao crime ocorrido.
Neste contexto, o presente artigo apresenta uma breve explanação
sobre a situação do trânsito brasileiro e o trabalho do CENTEC/IVS no
acompanhamento de pessoas em cumprimento de Grupos Reflexivo de
trânsito, como ferramenta de reflexão e responsabilização.

1. O TRÂNSITO NO BRASIL

A Segurança Viária envolve a responsabilidade quanto à mobili-


dade das pessoas e veículos na via, bem como a complexa dinâmica de
compartilhamento de espaço, até o estabelecimento de normas de circu-
lação com o objetivo de proteger os usuários e evitar reflexos negativos
em todo o aparato estatal (PENATRANS,2018).
Essa segurança pode ser colocada em risco quando os usuários
do sistema viário descumprem as regras normativas estabelecidas no
Código de trânsito Brasileiro - CTB. Essas ações são classificadas como
atitudes de imprudência, que consiste em um ato inseguro de violação
das regras de trânsito; de imperícia, que é a falta de habilidade e/ou
treinamento do condutor; e de negligência, que é a indiferença do con-
dutor a condições adversas. Neste contexto e de acordo com estatísticas,
“90% dos acidentes de trânsito são causados por erro humano” (OBSER-
VATÓRIO, 2019).

166
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

O Brasil ocupa o 4º lugar entre os países com mais mortes no trânsito no


continente americano. Segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF), entre
as principais causas dos acidentes fatais ocorridos em 2016 em território
brasileiro estão a falta de atenção (30,8% dos óbitos); velocidade incom-
patível com a da via (21,9%); ingestão de álcool (15,6% ); desobediência à
sinalização (10%); ultrapassagens indevidas (9,3%); e o sono (6,7%). Todas
elas têm algo em comum: o erro humano. (OBSERVATORIO, 2019).

Assim sendo, o descumprimento de regras pode ocasionar situ-


ações de infrações ou crimes de trânsito. As infrações são condutas con-
sideradas indevidas geralmente por colocarem em risco a segurança de
todos os usuários do sistema viário. O CTB estabelece quais são essas
condutas e, para cada uma delas, define as penalidades administrativas
correspondentes.
Segundo dados apresentados pela Seguradora Líder, responsável
pelo seguro DPVAT, em material1 publicado em Setembro de 2019, foram
mais de 485 mil indenizados por mortes no trânsito em todo o Brasil em
10 anos. O sexo masculino corresponde a 82% das vítimas fatais, em
2018, em todo o Brasil. Quando observamos o tipo de vítima, os homens
são os mais representativos, com 94%. Para as mortes de passageiros,
não há distinção, enquanto para os pedestres o sexo feminino é minoria,
com 23%.
Observa-se que aproximadamente 39% das vítimas fatais es-
tavam com idades entre 18 e 34 anos - parte integrante da população
economicamente ativa (SEGURADORA LIDER, 2019). Tal dado é obser-
vado também nos grupos executados pelo IVS, nos quais a maior parte
dos participantes que estão respondendo por dirigir sem habilitação, e/
ou direção perigosa, é composta por jovens dentro dessa faixa etária.
Apesar dos dados apresentados, “as taxas de mortalidade em
relação ao tamanho da população mundial estabilizaram nos últimos
anos” (OMS, 2019). Analistas atribuem os resultados positivos em grande
parte às legislações mais severas relacionadas aos principais riscos no
trânsito, como a velocidade, o consumo de álcool, a direção perigosa e

1 https://www.seguradoralider.com.br/Documents/boletim-estatistico/Relato-
rio%20Especial%20SNT-20-09.pdf

167
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

a ausência de cintos de segurança, capacetes de motociclistas ou cadei-


rinhas para crianças (OBSERVATORIO, 2019).
O Código de Trânsito, Lei 9.503/97, embora com muitos assun-
tos a serem regulamentados e outros a serem adaptados e modificados,
assevera de forma muito clara que a vida deve ser protegida e ainda lavra
aquilo que já se sabe que é dever do Estado em tantas outras áreas da
vida em sociedade, mas agora penetra a esfera do trânsito dizendo: “Art.
1º § 2º: O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever
dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a
estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medi-
das destinadas a assegurar esse direito.”
Esse é um trabalho de constante construção, dando a devida im-
portância às políticas públicas de educação para o trânsito e à gestão nos
ambientes em que ele acontece, a fim de reduzir casos de morte e danos
em nossas cidades e rodovias.
É nesse contexto, com uma perspectiva de parceiro de uma Políti-
ca de Prevenção à Criminalidade, que surge o Projeto Vida Segura, com-
prometido a executar um trabalho pautado na reflexão e responsabili-
zação, com o intuito de prevenir a reincidência dos crimes no trânsito e
contribuir para um trânsito mais seguro.

2. PROJETO VIDA SEGURA

O Projeto Vida Segura, entre 2008 e 2018, foi executado pelo


CENTEC - Centro de Ensino Técnico de Trânsito em parceria com a
SUPEC-MG/Programa CEAPA. A partir de 2018, o referido Projeto pas-
sou a ser executado pelo Instituto Vida Segura - IVS, que nasceu da
necessidade de ampliar o seu alcance. Seus fundadores são gestores e
especialistas evolvidos na formação profissional e educação para o trân-
sito há mais de duas décadas.
O Instituto acolhe Pessoas em Cumprimento de Alternativa Penal
encaminhadas pelo Programa CEAPA, realizando o acompanhamento e
monitoramento de forma conjunta. Na comarca de Belo Horizonte, os

168
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

casos atendidos chegam para cumprimento por meio da aplicação de


uma Transação Penal, do Juizado Especial Criminal e Varas de Prec-
atórias, que responde por delitos de trânsio, tais como: a violação da sus-
pensão ou proibição de se obter permissão ou a habilitação para dirigir
veículo automotor; a participação de corrida, disputa ou competição au-
tomobilística em via pública (Racha); a direção sem habilitação gerando
perigo de dano; a permissão, confiança ou entrega de veículo automotor
a pessoa não habilitada; o trafegar com a velocidade incompatível com
a segurança, em lugares determinados, gerando perigo de dano, dentre
outros; e por aplicação da Suspensão Condicional do Processo da 1ª Vara
Criminal, 12ª Vara Criminal e Vara de Precatórias, que encaminham os
casos que respondem por condução de veículo automotor com capaci-
dade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra
substância psicoativa que determine dependência - Lei Seca.

Implantada em 2008 e sendo aperfeiçoada desde então, a Lei n°11.705,


conhecida como “Lei Seca”, estabelece a tolerância zero para o consumo
de álcool associado à direção, sendo o Brasil um dos 25 países do mundo
com essa imposição. Há certa dificuldade em avaliar o efeito da Lei Seca
em âmbito nacional , visto que muitos outros fatores podem influenciar na
variação dos números de acidentes e mortes, tornando difícil isolar o efeito
do álcool. (OBSERVATORIO, 2018).

O Projeto de Execução Penal de Trânsito - Vida Segura, bus-


ca contribuir para o cumprimento da Alternativa Penal aplicada pelo
Poder Judiciário aos autores de crimes de trânsito, que consiste na par-
ticipação em um Grupo Reflexivo com a finalidade de conscientização e
responsabilização do cumpridor sobre o ato cometido por ele.
Esses grupos têm o objetivo de promover aos participantes uma
reflexão sobre possíveis mudanças de comportamento e valores relacio-
nados ao cumprimento de regras no trânsito, da cooperação, do respeito
ao ambiente público, da segurança e, acima de tudo, da responsabili-
dade pela própria vida e dos demais usuários do sistema de viário. Além
disso, o Projeto Vida Segura visa a transformação do condutor infrator
em um Multiplicador de Ações de Segurança no Trânsito, objetivando a
prevenção da criminalidade e de condutas violentas neste ambiente.

169
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

3. METODOLOGIA DE TRABALHO DOS GRUPOS REFLEXIVOS DE


TRÂNSITO

Os grupos reflexivos de trânsito desenvolvidos pelo Instituto Vida


Segura são formados por até 25 integrantes e realizados em 8 encontros.
Estes encontros apresentam duração de 2 horas semanais, em datas
previamente determinadas, totalizando 16 horas de cumprimento da Al-
ternativa Penal. São espaços em que se utilizam recursos didáticos e
lúdicos, com temas que visam auxiliar a ampliação do repertório de res-
postas, em especial no trânsito, além da troca de experiências e vivências
por meio da fala livre, que geram estímulos para desenvolver a autocrítica
e a adoção de novos comportamentos, promovendo a redução de danos e
a menor exposição a riscos criminais.
Não se trata também de aulas ou cursos, em que o professor (ativo) ensi-
na, e os alunos aprendem (passivos), numa espécie de transmissão de
saber. Os principais efeitos que se espera dessas intervenções ocorrem
na medida em que o grupo passa por um processo de elaboração que de-
penderá dos insights que os participantes produzirem a partir das próprias
experiências confrontadas com os conteúdos e conhecimentos comparti-
lhados e pelos conflitos e realidades apresentadas pelo restante do grupo.
(AFONSO, 2007).

Busca-se introduzir os participantes em um espaço onde devem


circular informações, orientações e conhecimento, com abordagens am-
plas e transversais sobre os fatores individuais, sociais, culturais e co-
munitários que envolvem a temática.
Os grupos no IVS são conduzidos por facilitadores com formação
acadêmica em Psicologia e/ou Serviço Social, com ampla experiência na
temática trânsito e em grupos de suporte e vivências, sendo responsáveis
diretos pela percepção das demandas coletivas e individuais presentes
em cada grupo. Ressalva-se, ainda, que o acompanhamento sistêmico
do projeto, a interlocução com o programa CEAPA, supervisões, estudos
de caso, dentre outras necessidades burocráticas são executadas pela
diretoria e coordenação pedagógica. Durante o cumprimento, os partici-
pantes são acompanhados e monitorados pela equipe da CEAPA para que
haja o máximo de adesão ao cumprimento da alternativa penal.

170
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

As atividades e temas abordados nos encontros estão de acordo


com a problemática exposta e seguem um planejamento baseado em uma
cartilha com conteúdo norteador para as reflexões, desenvolvida espe-
cialmente para o Projeto Vida Segura.
Os temas são desenvolvidos por meio de rodas de conversa, filmes,
dinâmicas, dramatização, campanhas publicitárias, textos reflexivos, es-
tudos de caso, troca de experiências anteriormente adquiridas, vivên-
cias e informações, visando estimular o envolvimento e a participação
dos cumpridores nos grupos e consequentemente favorecer mudança de
conduta e comportamento no trânsito, indispensáveis para um trânsito
mais seguro, organizado e humano, além de buscar contribuir para a não
reincidência criminal.
Os principais temas trabalhados nos grupos de trânsito são: a
apresentação por parte dos integrantes das histórias que os levaram ao
grupo (opcional), na qual o objetivo é capturar nas diversas falas ele-
mentos que possam ser trabalhados nos próximos encontros; construção
conjunta das regras de convivência grupal; leis de trânsito, dentre elas
a Lei Seca; comportamentos e atitudes dos condutores que podem nos
colocar em situações de risco ou de proteção; educação no trânsito; se-
gurança e direção defensiva; cidadania; comunicação não violenta; uso
absusivo de álcool e outras substancias psicoativas; realização de cam-
panhas educativas no trânsito e discussões sobre demais temas trans-
versais.
Para cada encontro, são propostos ao grupo temas para dis-
cussão, porém as atividades ou a ordem das mesmas podem sofrer al-
terações no decorrer dos encontros, a partir da percepção do perfil do
público presente. Frisamos também que, por se tratar do cumprimento
de uma determinação judicial, por meio da qual muitos chegam com
um sentimento de injustiça, sem uma reflexão sobre o ato, o projeto tem
como um de seus objetivos trabalhar a prevenção para que novos crimes
não aconteçam na vida desse sujeito, por meio da responsabilização e
reflexão sobre o ato cometido.
Diante da problemática apresentada, o Projeto Vida Segura, por

171
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

meio de uma busca de intervenções efetivas com as Pessoas em Cum-


primento de Alternativa Penal por crimes de trânsito, busca assim con-
tribuir para a diminuição da violação das regras e violência no trânsito,
promovendo o sentido educativo da pena e oferecendo oportunidades
para que o participante repense atos e condutas inadequadas, que po-
dem trazer prejuízos não só materiais e judiciais, mas de risco à própria
vida e à vida do outro, visando assim a compreensão da aplicação de uma
medida judicial de forma a contribuir para prevenção.
O hábito de consumir álcool e outras drogas psicoativas, asso-
ciado à direção veicular ainda está muito presente na nossa cultura,
fato observado na execução do Projeto Vida Segura, em que o índice de
infratores que respondem à Alternativa Penal em cumprimento ao Art.
306 (CTB) - Conduzir sob a influência de álcool ou de outra substância
psicoativas - se destaca em relação aos outros crimes de trânsito que
geram alternativa penal ou suspensão condicional do processo.
Ao longo de 11 anos do Projeto, observamos que, de forma
geral, os participantes demonstram comprometimento com o cumprimen-
to da medida percebido no decorrer do processo. Inicialmente, a maioria
se apresenta nos grupos trazendo um discurso de injustiça e de uma
responsabilização pouco presente. Ao serem recebidos em um formato de
roda de conversa, têm a sua integração facilitada e demonstram maior
abertura para a participação e cumprimento. Por volta do terceiro en-
contro já é possível observar algumas mudanças de condutas a partir de
relatos dos participantes, revelando uma integração grupal e o início de
um processo de responsabilização sobre o fato que o trouxe ao grupo.

CONCLUSÃO

Acreditamos que o trabalho desenvolvido nos Grupos Reflexivos


de Trânsito, por meio da informação, educação, conscientização, sen-
sibilização para o pensar coletivo e das reflexões sobre condutas neste
cenário, promove ações multiplicadoras de segurança no trânsito visan-
do a prevenção e a diminuição da criminalidade.

172
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

De acordo com os registros colhidos pelo CENTEC\IVS dos 11


anos em que o projeto é executado, foram atendidos aproximadamente
5.000 participantes em mais de 200 Grupos. Apenas em 2018, foram
atendidos 801 casos, distribuídos em 36 grupos. Destes participantes, 70
eram do sexo feminino e 731 do sexo masculino, informações que com-
provam os dados apresentados neste artigo referente ao material produ-
zido pela Seguradora Líder.
Assim, possuir dados confiavéis, é de extrema relevância para que
o Brasil possa compreender de uma maneira definitiva que a segurança
no trânsito é uma questão prioritária para que possam ser indentificados
os fatores de riscos e proteção e, desta forma, desenvolver estratégias
mais eficazes.

173
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REFERÊNCIAS

AFONSO, Maria Lucia M. Oficinas em Dinâmica de Grupo: Um Metodo de


Intervenção Psicossocial. Casa do Psicologo. 2007.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.

BRASIL, Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de


Trânsito Brasileiro. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, 24 set. 1997- CTB.

LEITE, F.L: Manual de Gestão para as Alternativas Penais. Documento


resultado do produto “Proposta de modelo de gestão” no âmbito de Con-
sultoria Nacional Especializada para Formulação de Modelo de Gestão
para as Alternativas Penais, sob supervisão de Talles Andrade de Souza,
BRASILIA, 2017.

MINAS GERAIS. Política de Prevenção à Criminalidade. Marco lógico do


Programa CEAPA, Minas Gerais, 2015.

MINISTERIO DAS CIDADES. Plano Nacional de Redução de Mortes e


Lesões no Trânsito Pnatrans: União pela vida. BRASIL,2018.

PNATRANS. Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito.


BRASIL, 2018. http://www.onsv.org.br/estudos-e-pesquisas/ - acesso
em 27-09-2019

174
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO: UMA VISÃO PARA


ALÉM DO CONTROLE

Joyce Ana Macedo de Sousa Arruda1

INTRODUÇÃO

O tema proposto neste trabalho busca apresentar uma meto-


dologia de acompanhamento das Pessoas em Alternativa Penal encamin-
hadas pelo Poder Judiciário por meio de medidas cautelares diversas da
prisão.
Com a promulgação da Lei Federal 11.403/2011 - Lei das Caute-
lares - que alterou o Código de Processo Penal, as regras para decretação
das prisões cautelares foram modificadas ampliando o rol de medidas
cautelares diversas da prisão que podem ser aplicadas. Tais alterações
impulsionaram a realização das audiências de custódia, momento em
que o juiz decidirá sobre a prisão em flagrante, cabendo a ele determi-
nar seu relaxamento, sua conversão em prisão preventiva ou conceder a
liberdade provisória, observando a necessidade ou não de aplicação de
medidas cautelares diversas da prisão.
A implementação das audiências de custódia está prevista em
pactos e tratados internacionais, nos quais o Brasil é signatário e se
apresenta como um dos instrumentos potencializadores de ações que
visam reduzir o uso indiscriminado das prisões provisórias e, consequen-
temente, impactar na superlotação das unidades prisionais - cerne da
crise no sistema penitenciário (BRASIL, 2011).
Em âmbito nacional, através da publicação da resolução 213, de
15 de dezembro de 2015, do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe
sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo

1 Graduada em Psicologia pela UFMG, atua como Gerente na Diretoria de Alter-


nativas Penais, parte integrante da Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade
(Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais).

175
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

de 24 horas, regulamentou-se a implantação dos projetos de audiência


de custódia que, além de garantir a rápida apresentação do preso em
flagrante, contempla o acompanhamento da pessoa em alternativa penal
através da estruturação das Centrais Integradas de Alternativas Penais
Em Minas Gerais, a materialização desse projeto se deu através da pu-
blicação da resolução 796, de 25 de junho de 2015.
A proposta deste trabalho é contemplar a dimensão do acompa-
nhamento da pessoa em medida cautelar diversa da prisão através da
perspectiva metodológica do Programa Central de Acompanhamento de
Alternativas Penais - CEAPA a partir de um conjunto de intervenções
pautadas em uma metodologia de acompanhamento individualizado das
pessoas em alternativas penais.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

No Brasil, segundo o Conselho Nacional de Justiça (2019), pouco


mais de 40% da população carcerária é composta por presos provisórios,
ou seja, do total de 751.708 pessoas privadas de liberdade, 306.8042
estão provisoriamente institucionalizadas, reclusas em estabelecimentos
penitenciários. Considerando o cenário em Minas Gerais, o que se veri-
fica é que este número acompanha a tendência nacional com uma por-
centagem de presos provisórios de 38,09%3.
Considerando este contingente desproporcional de pessoas pre-
sas provisoriamente, é incontestável o quanto é alarmante o uso abusivo
pessoas aguardem presas pelo julgamento. É nesse cenário que a Lei das

2 Tendo em vista a dificuldade na obtenção de dados seguros a respeito das pes-


soas privadas de liberdade no país e a falta de um método ideal de sistematização
destas informações, o Conselho Nacional de Justiça cria, em 2011, o Painel Ban-
co Nacional de Monitoramento de Prisões – BNMP 2.0, ferramenta desenvolvida
e implantada a fim de consolidar os dados da população carcerária, favorecendo
a formulação de políticas judiciárias que atenda à demanda histórica de pensar
a crise do sistema penitenciário. Os dados apresentados foram extraídos desta
ferramenta. Acesso em 11 de março de 2019. Banco Nacional de Monitoramen-
to de prisões – BNMP 2.0. Disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/
arquivo/2018/08/987409aa856db291197e81ed314499fb.pdf. Acesso em 11 de
março de 2019.
3 Ibidem

176
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Cautelares busca trazer efetividade ao cumprimento do princípio da pre-


sunção de inocência, previsto na Constituição Federal, quando intenta
priorizar que medidas privativas de liberdade não sejam deferidas sem o
devido processo legal e que seja fundamentada, também, a aplicação de
medidas cautelares diversas da prisão – devendo primar pela liberdade
não condicionada ou, mesmo, quando da aplicação de cautelares, que
elas estejam relacionadas à finalidade a qual se destina.
A Lei das Cautelares trouxe contribuições significativas para con-
ter o encarceramento em massa quando alterou as regras da decretação
das prisões cautelares e ampliou para a possibilidade de aplicação de
medidas cautelares diversas da prisão. A regra anterior possibilitava ao
Juiz, após prisão em flagrante, convertê-la em prisão preventiva ou de-
cretar a liberdade provisória, com ou sem fiança.
As medidas cautelares diversas da prisão aplicáveis estão previs-
tas no artigo 319 da Lei de Cautelares e podem ser decretadas isoladas
ou cumulativamente, visando os critérios de necessidade, adequação e
proporcionalidade - em conformidade com os critérios para sua decre-
tação previstos no artigo 282 desta mesma lei - cabendo, a qualquer
tempo, sua decretação, revogação ou substituição.
São medidas cautelares diversas da prisão previstas no Código
de Processo Penal: a) comparecimento periódico em juízo; b) proibição de
acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias
relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante
desses locais para evitar o risco de novas infrações; c) proibição de man-
ter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacio-
nadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
d) proibição de ausentar-se da Comarca; e) recolhimento domiciliar no
período noturno e nos dias de folga; f) suspensão do exercício de função
pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando
houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
g) internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados
com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser in-
imputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver ris-

177
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

co de reiteração; h) fiança; i) monitoração eletrônica (BRASIL, 2011).


Do ponto de vista prático e de política criminal, a lei trouxe al-
gumas inovações embora as medidas cautelares diversas da prisão já
estivessem previstas em momentos diferentes do processo - como o caso
das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha e
outras medidas aplicadas na suspensão condicional do processo. Essas
mudanças ocasionadas pela Lei das Cautelares trouxeram uma leitura
que busca efetivar o princípio da presunção de inocência quando instau-
ra a taxatividade trazida pelo artigo 319 e limita o Juiz acerca da possi-
bilidade de aplicação das medidas cautelares diversas da prisão àquelas
expressamente previstas em lei. Em certa medida, a Lei das Cautelares
se instaura enquanto instrumento de garantia do indivíduo frente ao Es-
tado quando busca impactar, embora de forma tímida, na redução do uso
da prisão provisória, tomando a liberdade como regra.
Um dos dispositivos alterados pela nova Lei prevê que medidas
cautelares sejam aplicadas em qualquer fase do processo, desvinculando
sua aplicação restritamente nos casos de prisão em flagrante. No entan-
to, enquanto estratégia para a redução do emprego excessivo da prisão
provisória, a edição da Lei 11.403/2011 impulsionou a implantação das
audiências de custódia a fim de garantir a rápida apresentação da pessoa
presa em flagrante.
Embora a Lei das Cautelares tenha sido promulgada em 2011, foi
somente em 2015 que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais publicou
a resolução que regulamentou o projeto de Audiência de Custódia no
estado, visando efetivar o que já estava previsto na legislação: a obriga-
toriedade da apresentação da pessoa presa em flagrante no prazo de 24
horas. O juiz de direito, em audiência de custódia, avalia a legalidade
da prisão e decide pelo seu relaxamento, pela manutenção da prisão em
flagrante - convertendo-a em prisão preventiva - ou pela concessão da
liberdade provisória, com ou sem a imposição de medida cautelar. Vale
ressaltar novamente que, para a decretação de uma medida cautelar,
seja ela de prisão ou diversa da prisão, os requisitos de adequação e ne-
cessidade da medida devem estar relacionados ao caso concreto.

178
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Além de efetivar a garantia da rápida apresentação do preso em


flagrante, o projeto Audiência de Custódia também contempla a estru-
turação dos Centros Integrados de Alternativas Penais com o intuito de
acolher as pessoas encaminhadas pelo Poder Judiciário para acompa-
nhamento das medidas cautelares aplicadas após audiência de custódia.
Em Minas Gerais, O Programa Central de Acompanhamento de Alternati-
vas Penais - CEAPA - oferece ao Sistema de Justiça, nos municípios onde
o Programa está implantado e que realizam audiências de custódia, um
serviço especializado capaz de garantir a operacionalidade e sustentabili-
dade no cumprimento das medidas cautelares diversas da prisão através
de um conjunto de intervenções pautadas em uma metodologia que visa
o acompanhamento individualizado das pessoas em alternativa penal.
O programa CEAPA é um dos programas que compõem a Política
Estadual de Prevenção à Criminalidade, ação desenvolvida pela Secre-
taria de Estado de Justiça e Segurança Pública, e que tem como objetivo
contribuir para o fortalecimento e consolidação das alternativas à prisão
no Estado, pautando ações de responsabilização com liberdade. O Pro-
grama atua desde 2002 e, atualmente, desenvolve suas ações em 16 mu-
nicípios: Araguari, Belo Horizonte, Betim, Contagem, Divinópolis, Gover-
nador Valadares, Ibirité, Ipatinga, Juiz de Fora, Montes Claros, Ribeirão
das Neves, Santa Luzia, Sete Lagoas, Uberaba, Uberlândia e Vespasiano
(MINAS GERAIS. 2018, p. 50).
Atualmente, os munícipios onde o Programa está implantado
e que realizam audiência de custódia são: Belo Horizonte, Contagem,
Governador Valadares, Ibirité, Juiz de Fora, Montes Claros, Ribeirão das
Neves, Sete Lagoas, Uberaba, Uberlândia e Vespasiano4. A proposta do
Programa CEAPA é acompanhar as pessoas encaminhadas pelo Poder
Judiciário a partir de um conjunto de intervenções capazes de incidir so-

4 Cabe destacar que o Programa possui fluxo de encaminhamento pactuado jun-


to ao Poder Judiciário para acompanhamento – pós - audiência de custódia - das
pessoas em cumprimento de medidas cautelares diversas da prisão apenas nos
municípios de: Belo Horizonte, Contagem, Governador Valadares, Ribeirão das
Neves e Uberlândia. No entanto, vale destacar o investimento do Programa e os
esforços de articulação junto ao Poder Judiciário para a [re]pactuação do fluxo
nos municípios de Ibirité, Montes Claros, Sete Lagoas, Uberaba e Vespasiano.

179
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

bre contextos de risco criminal e vulnerabilidade social a fim de favorecer


o aumento dos fatores de proteção das Pessoas em Alternativas Penais e,
sobretudo, contribuir para a manutenção da liberdade.
A previsão legal trazida na Lei das Cautelares, no artigo 319, inci-
so I - comparecimento obrigatório em juízo - é o que possibilita a atuação
do Programa e operacionaliza a proposta de acompanhamento. Apesar do
viés fiscalizatório presente no monitoramento do cumprimento da medida
cautelar, o foco de atuação do Programa via cautelares está, sobretudo,
pautado na intervenção em conflitos e violências através do levantamento
de riscos e vulnerabilidades que envolvem os casos encaminhados e na
construção participativa de possibilidades de intervenção e mecanismos
de proteção social e garantias de diretos.
Dito isso, a intervenção do Programa pressupõe algumas condi-
cionalidades: (1) ser uma intervenção substitutiva da prisão preventiva,
da monitoração eletrônica e da prisão domiciliar, e não deve ser cumula-
tiva ou reforçar o controle punitivo para aqueles delitos em que, natural-
mente, a liberdade provisória se daria sem a aplicação de cautelares; (2)
precisa existir um risco social ou criminal concreto, cujas intervenções
para esses contextos não ocorram na perspectiva de controle punitivo; (3)
o tempo da intervenção não pode se confundir com o tempo do proces-
so e, por isso, o período máximo de acompanhamento é limitado a seis
meses (GOVERNO DE MINAS GERAIS, 2014, p. 14).
Quaisquer das intervenções propostas são construídas de for-
ma participativa e em concordância com a Pessoa em Alternativa Penal,
pautadas em conformidade com os Postulados e Princípios previstos no
Manual de Gestão para Alternativas Penais, tais como a intervenção pe-
nal mínima, desencarceradora e restaurativa, a dignidade, liberdade e
protagonismo em alternativas penais e a ação integrada entre os entes
federativos, sistema de justiça e comunidade para o desencarceramento
(LEITE, 2016, p. 31).

180
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

DA PERSPECTIVA METODOLÓGICA

O objetivo geral do Programa CEAPA5 no acompanhamento das


Pessoas em Alternativas Penais encaminhadas pelo Poder Judiciário por
meio de medidas cautelares diversas da prisão é contribuir para o desen-
carceramento de pessoas em situação de prisão provisória. De forma es-
pecífica, as ações do Programa estão voltadas para: a) o acompanhamento
das pessoas em cumprimento de medidas cautelares diversas da prisão
que apresentam risco de envolvimento criminal; b) identificação do com-
portamento de risco criminal e vulnerabilidade social; c) construção de
intervenções de acompanhamento individual; desenvolvimento de ações
grupais de acompanhamento; d) articulação, junto à rede de proteção,
para acompanhamento do público visando a redução de fatores de risco
e vulnerabilidades.
A proposta de acompanhamento do Programa, além de garantir
um serviço especializado capaz de assegurar a operacionalidade e sus-
tentabilidade no cumprimento das medidas cautelares diversas da prisão,
visa, através de um conjunto de intervenções pautadas em uma meto-
dologia de acompanhamento individualizado das pessoas em alternativa
penal, romper com perspectiva do controle punitivo e com a concepção
restrita da lógica do monitoramento e fiscalização.
Considerando a metodologia de trabalho do CEAPA, duas são as
variáveis a serem consideradas na proposta de atendimentos via caute-
lares, dentro de uma perspectiva de atuação, a saber: a voluntariedade e
a obrigatoriedade. É importante ressaltar que essas duas dimensões con-
ceituais oscilam entre o campo do acompanhamento da pessoa em alter-
nativa penal e do monitoramento da Medida Cautelar diversa da prisão
imposta.6

5 O objetivo geral e os objetivos específicos do Projeto de Medidas Cautelares


em Alternativas Penais foram extraídos do documento Práticas em Alternativas
Penais, elaborado em abril de 2018 pela Subsecretaria de Prevenção à Crimina-
lidade.
6 Apenas a título de compreensão, nomeia-se como monitoramento aquilo que diz
respeito à obrigatoriedade do comparecimento da pessoa ao Programa durante o
cumprimento da medida cautelar, enquanto aquilo que toca à voluntariedade se

181
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Pensando nesse recorte do Programa, que propõe um conjunto


de intervenções a partir da identificação de fatores de riscos e vulnera-
bilidades, é possível dizer que através da obrigatoriedade se constrói a
voluntariedade. É neste ponto que se encontra a importância do acolhi-
mento, já que este atua de forma a favorecer a vinculação do público ao
Programa.
O acolhimento é um espaço de escuta que se dá ao longo de todo
o acompanhamento, não se esgotando em um atendimento inicial e que
possui como objetivo o levantamento das vulnerabilidades sociais e riscos
criminais. Com isso, busca-se construir intervenções que favoreçam a
ampliação de fatores de proteção social e fortalecimento do repertório de
respostas da Pessoa em Alternativa Penal diante dos riscos apresenta-
dos.
Acolher é estar junto, oportunizar o lugar de fala e estar dis-
ponível para uma escuta que favoreça a construção do vínculo que atu-
ará diretamente na qualidade do acompanhamento a ser realizado. É o
acolhimento que faz circular a palavra e que possibilita uma construção
participativa das intervenções a partir da avaliação de riscos e vulnerabi-
lidades e que, portanto, deverá estar condicionada ao discurso da pessoa
que se apresenta, em detrimento da perspectiva unilateral de quem es-
cuta. Neste sentido, a prática de acolher prevê o deslocamento do foco de
atenção daquele que conduz o atendimento, transferindo-o da priorização
do saber técnico para o olhar sobre o sujeito e o seu sofrimento (GOMES,
2009, apud NEUMANN e ZORDAN, 2011 p. 499). Ainda de acordo com as
autoras citadas acima:

A estratégia do acolhimento é permeada por três tipos de processos: de


subjetivação, que opera no sentido de permitir ao usuário a apropriação,
significação e reconstrução de sua história de vida; de responsabilização,
que se relaciona com o compartilhamento, entre profissional e usuário, do
poder de resolução do problema; e de organização do serviço, que se volta
para o planejamento institucional de acordo com a real necessidade e de-
manda. (GOMES, 2009, apud NEUMANN e ZORDAN, 2011 p. 498)

daria pelo acompanhamento dos casos que favorece intervenções de construção


participativa. Transitar por essas duas dimensões possibilita um olhar que busca
ultrapassar o controle punitivo.

182
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

O acolhimento se constitui enquanto recurso que permite qualifi-


car as intervenções do Programa e favorecer a vinculação com o público.
É importante ressaltar que não se trata de uma terapia, tendo em vista
que a orientação metodológica do CEAPA é a de que os casos com de-
manda de acompanhamento psicológico sejam referenciados na rede de
proteção social do município.
Contudo, o acolhimento pode ter uma função terapêutica quando,
em atendimento, viabiliza-se um espaço no qual os embaraços podem ser
compreendidos, respeitados e, sobretudo, ressignificados. Isso vai ao en-
contro do que Leite (2016, p. 35) aponta como aspecto relevante da fun-
cionalidade do acolhimento enquanto atitude que favorece a ressignifi-
cação de violências, conflitos e processos de criminalização vividos, bem
como possibilita o entendimento e intervenções nas vulnerabilidades so-
ciais e riscos criminais.
Considerando as variantes da obrigatoriedade e da voluntarie-
dade, uma estratégia de atuação do Programa que favorece o trânsito
entre estas duas dimensões e qualifica o acompanhamento da Pessoa
em Alternativa Penal é a definição de alguns critérios para finalização do
acompanhamento à medida que forem avaliados: (1) a superação (mini-
mização) das vulnerabilidades; (2) o esgotamento das intervenções; (3) a
não identificação de risco e/ou vulnerabilidades; e (4) a não adesão da
pessoa às propostas de acompanhamento construídas/indisponibilidade
para construção das intervenções. Este último critério pode ser citado
como exemplo de limitação de uma proposta que se dá pela via da obri-
gatoriedade quando a voluntariedade não é construída em atendimento.
Embora a proposta de acompanhamento vise favorecer o trânsito
entre a obrigatoriedade e a voluntariedade, deve-se resguardar o caráter
obrigatório no cumprimento da medida cautelar via comparecimento
periódico, priorizando a identificação de risco, e destacando o mérito e
a funcionalidade do acolhimento como instrumento que oportuniza em
cada atendimento o espaço de escuta como forma de impulsionar inter-
venções de construção participativa.

183
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

DAS POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO7

A proposta do Programa CEAPA é construir intervenções capazes


de incidir sobre contextos de risco criminal, vulnerabilidade social e de
não acesso a direitos, tais como: a) problemas de restrição à circulação;
b) contextos de violência familiar ou comunitária; c) abrigamentos nos
casos de determinação de afastamento do lar ou quando a situação de
rua fragiliza o sujeito frente às condições impostas pela Medida Cautelar;
d) uso abusivo de álcool e outras drogas; dentre outros.
Portanto, prezando pela qualidade no acompanhamento, algumas
possibilidades de intervenções instrumentalizam as ações do Programa
de modo a favorecer a minimização dos fatores de risco e a potencializar
os fatores de proteção, quais sejam:
Atendimentos individuais: ações que favorecem o levantamento
de riscos e vulnerabilidades e impulsionam a possibilidade de ressignifi-
cação de violências, conflitos e processos de criminalização vividos a fim
de minimizar danos.
Intervenções grupais de caráter reflexivo: ações que favorecem
a ampliação do repertório de respostas da Pessoa em Alternativa Penal
frente a determinado contexto de risco. Metodologicamente o Programa
não delimita as intervenções grupais a partir de determinadas orien-
tações teóricas, no entanto o espaço de grupo propicia a inserção dos
participantes em um ambiente no qual: (a) circulam informações, orien-
tações e conhecimento, (b) com abordagens amplas e transversais sobre
os fatores individuais, sociais, culturais e comunitários que contemplem
aquela temática, (c) favoreça a participação e a troca de experiências e
conhecimentos, (d) contribua para que os participantes ampliem seu re-
pertório de respostas frente a contextos de risco, estimulando a resolução
de conflitos de forma não violenta (GOVERNO DE MINAS GERAIS, 2014,
p. 12).

7 Todas as possibilidades apresentadas neste tópico constam descritas deta-


lhadamente no Plano de Implementação dos Centros Integrados de Alternativas
Penais no Estado de Minas Gerais: Estratégia, concepções e perspectivas.

184
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Participação em Práticas Restaurativas: ação que favorece o rees-


tabelecimento e/ou fortalecimento de vínculos familiares/comunitários
e o gerenciamento de conflitos quando no acompanhamento da Pessoa
em Alternativa Penal surgir este tipo de demanda. A partir da oferta de
um lugar de fala, espera-se que esta possibilidade de intervenção opor-
tunize a aproximação das pessoas envolvidas através da partilha de
histórias significativas para elas, o que pode promover um maior suporte
comunitário diante dos riscos e contextos vivenciados pela pessoa acom-
panhada ou compreender algum aspecto de um conflito ou situação difí-
cil (PRANIS, 2010, p.29).
Encaminhamentos para a Rede de Proteção Social: ações
que favorecem a intervenção em fatores de vulnerabilidade social que
prejudicam a liberdade da Pessoa em Alternativa Penal. Realiza-se o en-
caminhamento para a rede de proteção social como forma de acesso a
garantias e direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando em consideração os aspectos apresentados, cabe ressal-


tar o cuidado para que o trabalho executado pela CEAPAvia acompan-
hamento de medidas cautelares diversas da prisão não seja mais um
mecanismo de resposta pautado no discurso retributivo que muitas vezes
norteia o trabalho dos operadores do Direito e que alimenta o imaginário
social punitivista. É preciso promover intervenções que impactem dire-
tamente na redução das prisões provisórias e que contribuam para a
diminuição do encarceramento em massa, diminuindo as prisões ilegais
e pautando ações de responsabilização em liberdade, trabalho este que o
programa se propõe a realizar.
Embora as medidas cautelares diversas da prisão sejam uma al-
ternativa penal, sua aplicação excessiva e cumulada com outras medi-
das remonta a concepção do controle punitivo, sobretudo a aplicação
demasiada de medidas que reforçam um viés punitivista, tais como a
monitoração eletrônica e a prisão domiciliar. Sendo assim, a aplicação de

185
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

medidas cautelares diversas da prisão deve obedecer aos critérios da ne-


cessidade, adequação e proporcionalidade como forma de garantir a indi-
vidualização dos casos e o cumprimento da medida de acordo com o fim
a que ela se destina. Contudo, há de se ter um cuidado para que o uso da
medida cautelar não se configure enquanto mecanismo de expansão do
controle penal, o que pode ser observado quando concedida a liberdade
provisória mediante aplicação de cautelares nos casos que a liberação se
daria sem condicionalidades.
Do ponto de vista prático e operacional do Programa CEAPA,
destaca-se a necessidade de fortalecer as ações que potencializam o
acompanhamento deste público atendido. Do ponto de vista técnico, é
importante garantir a capacitação metodológica continuada da equipe
técnica, bem como estabelecer espaços para discussão de casos - entre
membros da própria equipe técnica e a rede de proteção social de cada
município - e construção de fluxo e distribuição das atividades que irão
otimizar o trabalho.
O trabalho realizado pelo Programa CEAPA visa atender aos pos-
tulados e princípios pautados no modelo nacional de gestão em alterna-
tivas penais, estabelecendo articulações diretas com a rede de proteção
social e com o Poder Judiciário, de forma a garantir a ação integrada
entre entes federativos, sistema de justiça e comunidade para desencar-
ceramento.
É fundamental, portanto, entender a rede de Alternativas Penais
como um dos atores que materializam a Política de Prevenção à Crimi-
nalidade. Sendo assim, torna-se de grande relevância a participação de
diversas instituições comprometidas com o processo de execução desta
Política, dando-se visibilidade para a pauta das alternativas penais e for-
talecendo as articulações de rede.
De forma geral, o artigo busca apresentar o trabalho do Programa
CEAPA via acompanhamento de medidas cautelares diversas de prisão
como um mecanismo potencializador das ações de enfrentamento à crise
no sistema prisional brasileiro e, além de apontar a insustentabilidade
do modelo atual, resgata a crítica sobre a cultura do encarceramento em

186
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

massa que, longe de atender ao discurso “ressocializador” da institucio-


nalização, vem servindo ao discurso punitivista que nega aos sujeitos a
presunção de inocência e viola o princípio da dignidade da pessoa huma-
na.

187
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REFERÊNCIAS

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Painel Banco Nacional de Moni-


toramento de Prisões - BNMP 2.0. Disponível em http://www.cnj.jus.br/
sistema-carcerario-e-execucao-penal/cadastro-nacional-de-presos-bn-
mp-2-0. Acesso em 11 de março de 2019.

BRASIL. Lei nº 12.403 de 04 de maio de 2011. Disponível em http://


www.planalto.gov.br/cCivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12403.htm.
Acesso em 15 de janeiro de 2019.

BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional.


Manual de Gestão para Alternativas Penais: Medidas Cautelares Diver-
sas da Prisão. Procedimentos, Fluxos e Rotinas para Aplicação e Acom-
panhamento. Brasília, 2016

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 213 de 15 de


dezembro de 2015. Disponível em http://www.cnj.jus.br/busca-atos-ad-
m?documento=3059. Acesso em 7 de março de 2019.

GOVERNO DE MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Justiça e Segu-


rança Pública. Superintendência de Prevenção à Criminalidade. Plano
para implementação de Centros Integrados de Alternativas Penais no Es-
tado de Minas Gerais: Estratégia, Concepção e Perspectivas. Belo Hori-
zonte, 2014.

GOVERNO DE MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Justiça e Segu-


rança Pública. Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade. Portfólio da
Política de Prevenção à Criminalidade. Belo Horizonte, 2018.

GOVERNO DE MINAS GERAIS. Secretaria de Justiça e Segurança Pública. Sub-


secretaria de Prevenção à Criminalidade. Programa Central de Acompanhamen-
to de Alternativas Penais. Práticas em Alternativas Penais. Belo Horizonte, 2018.

188
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Resolução 796 de


25 de junho de 2015. Disponível em http://www8.tjmg.jus.br/institucio-
nal/at/pdf/re07962015.pdf. Acesso em 19 de janeiro de 2019.

NEUMANN, A. P & ZORDAN, E. P. A Implantação do Acolhimento na


Abordagem Sistêmica em uma Clínica - Escola: Possibilidades e Desafios.
Revista de Psicologia da IMED, vol.3, n.1, p. 496- 505. 2011.

PRANIS, Kay. Processos circulares. São Paulo: Palas Athenas, 2010.

RIBEIRO, Ludmila; PRADO, Sara; MAIA, Yolanda. Audiências de Custódia


em Belo Horizonte: um panorama. Belo Horizonte, 2017.

189
190
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

A APLICABILIDADE DAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA


NO ÂMBITO DAS ALTERNATIVAS PENAIS

Maíra Rinco de Faria Miranda Aquino1

1. INTRODUÇÃO

A justiça penal tradicional, baseada em uma visão punitivista


que prima por lógicas institucionais cristalizadas e que não considera -
ou considera pouco - o que as partes envolvidas têm a dizer sobre o seu
conflito ou sua condição, vem se mostrando incapaz de dar respostas
suficientes para aqueles que a acessam. Para contrapor essa lógica, a
Justiça Restaurativa se apresenta como modelo que oferece protagonis-
mo aos envolvidos e lhes dá o devido lugar no que tange às construções
de saídas para a sua própria demanda.
Ao se pensar na execução de práticas de Justiça Restaurativa, sa-
be-se que existem variadas possibilidades de empregar as inúmeras fer-
ramentas que essa vertente traz, considerando a mudança paradigmática
que a define e a criatividade precípua a esse entendimento de justiça, o
que faz com que diversos setores aprimorem a qualidade do seu serviço,
complementando-o a partir da introdução dessa nova metodologia.
Atualmente, esse modelo de Justiça está inserido em modelos nacionais
e internacionais ligados ao campo jurídico, com igual presença na área
da educação, no sistema socioeducativo e nas relações comunitárias de
forma geral.
Dessa forma, pretende-se sustentar neste artigo que a invenção
exigida pelas práticas de Justiça Restaurativa dialoga de forma conver-
gente à lógica do trabalho com Alternativas Penais, já que em ambas se
estabelece construção conjunta com a pessoa a partir da sua singulari-
dade e do respeito ao seu lugar de fala.

1 Supervisora Metodológica do programa CEAPA, graduada em Psicologia.

191
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Este artigo almeja, portanto, discorrer sobre a compatibilidade


entre as práticas de Justiça Restaurativa e as Alternativas Penais, ao se
pensar na aplicação dessas práticas no programa CEAPA2 e na intro-
dução cada vez mais favorável da Justiça Restaurativa dentro das frentes
metodológicas já consolidadas e desenvolvidas no programa.

2. JUSTIÇA RESTAURATIVA E A POLÍTICA DE PREVENÇÃO SOCIAL


À CRIMINALIDADE DE MINAS GERAIS

A Justiça Restaurativa encontra incentivo claro na Resolução


2012/12 da Organização das Nações Unidas (ONU), que dispõe sobre os
princípios básicos para utilização de programas desse modelo de justiça
em matéria criminal. Em 2015, através da resolução 225/2016 do Con-
selho Nacional de Justiça (CNJ), que considerou as recomendações da
ONU, os Tribunais de Justiça foram chamados a implementar projetos
que propagassem essas práticas dentro do sistema. Atualmente, os de-
fensores dessas práticas batalham por seu reconhecimento legislativo.
Nesse contexto, o Departamento Penitenciário Nacional, por meio
da Coordenadoria Geral de Penas Alternativas, financiou projeto do Go-
verno de Minas Gerais de implantação de práticas restaurativas no
Juizado Especial Criminal de Belo Horizonte. Tal projeto visava a imple-
mentação e avaliação de práticas restaurativas nos casos que aportavam
as audiências de conciliação, especificamente aqueles em que as partes
possuíam algum vínculo familiar, comunitário, entre outros.
No acompanhamento dos quase cem casos atendidos no projeto,
foi possível perceber as possibilidades - e impossibilidades - da aplicação
das diversas metodologias de Justiça Restaurativa junto ao Poder Judi-
ciário, bem como os desafios que permeiam esse diálogo. O estabeleci-
mento de uma nova prática com tamanho caráter emancipatório pode

2 O programa CEAPA – Central de Acompanhamento de Alternativas Penais –


compõe a Política de Prevenção à Criminalidade de Minas Gerais, por meio de
parceria estabelecida entre a Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade (SU-
PEC), inserida na Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública do Estado
de Minas Gerais, e a OSCIP Instituto Elo.

192
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

causar estranhamento naqueles atores acostumados com os procedi-


mentos bem contornados e delimitados pelo aparato de leis e concepções
rígidas, aplicáveis em todos os casos, que não estimulam a abertura para
considerar individualidades.
A partir dessa experiência3 e de seus diversos ensinamentos, o
universo das práticas de Justiça Restaurativa se inseriu como uma nova
proposta de trabalho na esfera do programa CEAPA e permitiu, por meio
do contato com a realidade, possibilitado pelas vivências no projeto, que
o programa ajustasse tais práticas dentro dos terrenos mais férteis para
o seu desempenho.
A lógica de acompanhamento do público com base na qual o
CEAPA opera, acontece por meio de construção particularizada para
cada pessoa atendida, dinâmica que está consolidada nos Postulados,
Princípios e Diretrizes que norteiam nacionalmente o trabalho com as
Alternativas Penais, a partir do Propósito da Individuação:

Para que as alternativas penais possibilitem a resolutividade quanto à vi-


olação de direitos, reparação de danos e/ou restauração das relações, as
medidas ou penas devem ser tratadas de forma particular e as respostas
construídas a partir da participação ativa das pessoas envolvidas. Senti-
do inverso tem demonstrado as pesquisas apresentadas neste documento,
quanto às penas restritivas de direito, que como as penas de prisão tendem
a ser aplicadas de forma pouco cuidadosa, sem que qualquer sentido seja
atribuído pelas partes. É preciso afastar as receitas prontas, que longe
de possibilitar a efetividade dos objetivos aqui apresentados, reforçam o
caráter de marginalização, exclusão, neutralização e opressão das pes-
soas trazidas ao sistema penal. (DEPEN, 2016, pág. 28).

Dessa forma, a inventividade é aspecto fundamental para o tra-


balho com esse público, pois, ao se apresentarem para cumprimento de
alternativa penal, as pessoas trazem consigo aspectos socais e relacio-
nais que também são objeto de trabalho da equipe técnica. Para além do
monitoramento do cumprimento da determinação judicial, o programa
deve oferecer escuta para as vulnerabilidades sociais e riscos criminais
que compõem a trajetória daquelas pessoas e acompanhá-las conside-

3 A experiência do projeto foi relatada no livro “Considere a Alternativa – A ex-


periência de implantação de práticas restaurativas no Juizado Especial Criminal
de Belo Horizonte”.

193
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

ndo todas as suas demandas.


Importa salientar que o Judiciário pode ser um grande aliado no
desenvolvimento dessas práticas. Na relação de parceria sólida que e-
xiste há anos com o programa CEAPA, o Sistema de Justiça já encaminha
casos para acompanhamento da equipe técnica nas diversas modali-
dades de alternativas penais. Na atual composição dos Centros Integra-
dos de Alternativas Penais que estão presentes em dezesseis municípios
do Estado, observa-se que certos atores do Judiciário conferem às equi-
pes a autonomia desejável para o desenvolvimento dos casos. Mas ocorre
que, apesar de haver uma base comum para as parcerias estabelecidas
com os operadores do Direito de cada município, em algumas realidades
existe maior abertura para a construção individual, o que aponta para
uma provável receptividade no que diz respeito ao entendimento das
vivências nas práticas de Justiça Restaurativa como modalidade de cum-
primento de Alternativa Penal, com efeito preventivo.
Destaca-se que, em 2017, foram divulgados documentos construí-
dos na consultoria do PNUD em parceria com o DEPEN4, cuja finalidade
era estabelecer um Modelo de Gestão para a Política de Alternativas Pe-
nais, e, dentre as produções, há um material específico sobre as práticas
de Justiça Restaurativa que direciona o trabalho para todo o território
nacional e incentiva a adoção dessas práticas.
Contudo, não é prudente estabelecer apenas essa conexão entre
Alternativas Penais e práticas de Justiça Restaurativa, pois, conforme
já mencionado, a relação com o Sistema de Justiça é permeada de en-
tendimentos particulares que impactam diretamente no desenvolvimento
dessas metodologias, uma vez que o operador do Direito - a partir de sua
visão particularizada - pode fomentar a execução dessas práticas, im-
possibilitar a sua execução, ou desenvolver as práticas, porém em uma
abordagem contaminada pelo controle penal.
Portanto, o grande desafio no trabalho de confluência entre
Justiça Restaurativa e o Sistema Jurídico é o cuidado de garantir que as

4 Parceria entre o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)/Ministério da


Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

194
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

práticas sejam realizadas sem a distorção de seus princípios e técnicas


pela lógica penal, já que “o caminho a ser seguido deve abranger a con-
fiança na capacidade das pessoas e a desconfiança no paternalismo das
instituições” (Achutti, 2012, pág. 249).
Dessa maneira, através de novo incentivo federal celebrado entre
SEJUSP/MJ - DEPEN5, as práticas de Justiça Restaurativa vêm sendo
novamente fomentadas no âmbito das Alternativas Penais, a partir do
acréscimo no quantitativo das equipes - o que oportuniza mais tempo
para o investimento em cada caso atendido - bem como pela entrada de
Supervisão Metodológica específica para promover capacitações perma-
nentes dos profissionais e suporte assíduo no desenvolvimento desses
procedimentos.

3. PRÁTICAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA E AS METODOLOGIAS


DO PROGRAMA CEAPA

O Programa CEAPA tradicionalmente possui como público alvo


pessoas que receberam penas ou medidas alternativas à prisão e, dessa
forma, com uma situação, em termo de processo penal, resolvida medi-
ante um acordo ou uma condenação. Isso aponta duas dificuldades para
trabalhar abordagens restaurativas: (1) O Programa não atende às víti-
mas; (2) o processo já foi resolvido pela via tradicional e, dessa feita, não
caberia pensar numa abordagem restaurativa.
Contudo, precisa-se ressaltar que a Justiça Restaurativa é com-
posta por distintas metodologias, dentre elas os Círculos, as Conferên-
cias de grupos familiares e a Mediação Vítima-Ofensor, que podem ser
utilizadas de acordo com a complexidade do caso e escolha do facilitador.
Conforme nos sugere a orientação nacional do DEPEN/MJ, o Círculo
parece ser a metodologia que mais dialoga com o universo das Alternati-
vas Penais.

5 Convênio Federal celebrado entre a Secretaria de Estado de Justiça e Segu-


rança Pública de Minas Gerais, através da SUPEC, e o Ministério da Justiça,
através do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) para implantação de
Centros Integrados de Alternativas Penais no Estado de Minas Gerais.

195
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

Howard Zher (2012) defende que, nas diversas práticas de Justiça


Restaurativa, existem diferentes graus de efetividade e que a abordagem
que possibilita o diálogo entre vítima e ofensor não é a única maneira de
intervir e de se alcançar a restauratividade das relações. Procedimentos
que envolvam aspectos que tocam a reparação das vítimas, ou que invis-
tam na responsabilização dos ofensores, ou que agreguem a comunidade
dos envolvidos como parte ativa do processo, também possuem potencial
restaurativo em suas interseções, conforme demonstrado na tipologia
abaixo.

!
Figura 1: Tipologia das Práticas Restaurativas6

A consciência de que existem diferentes níveis de restauração e


tipos de práticas que atravessam esses níveis expostos acima abre uma
janela de oportunidades de execução de Círculos dentro da proposta
metodológica do programa CEAPA.

6 Tipologia encontrada no Manual de Gestão para Alternativas Penais: Práticas


de Justiça Restaurativa (DEPEN/MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2016), citando BI-
ANCHINI, 2012, pg. 96 apud MCCOLD, Paul, e WACHTEL (2003).

196
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

É importante destacar, portanto, que os Círculos podem ser


restaurativos quando há conflito entre as partes e necessidade de
reparação de danos e restauração de vínculos; ou podem ser Círculos de
Construção de Paz, vertente das práticas restaurativas que visa esta-
belecer conexões saudáveis entre pessoas a partir dos infinitos temas
que lhes toca.
O Círculo, Segundo Kay Pranis (2011):

(...) é um processo de diálogo que trabalha intencionalmente na criação de


um espaço seguro para discutir problemas muito difíceis ou dolorosos, a
fim de melhorar os relacionamentos e resolver diferenças. A intenção do
círculo é encontrar soluções que sirvam para cada membro participante. O
processo está baseado na suposição de que cada participante do círculo
tem igual valor e dignidade, dando então voz igual a todos os participantes.
Cada participante tem dons a oferecer na busca para encontrar uma boa
solução para o problema (pág. 11).

Trata-se de metodologia que possui rituais próprios7 e parte de


um roteiro cuidadosamente inventado para aquele encontro e para aque-
les participantes. Tal prática valoriza a horizontalidade em todos os as-
pectos, já que os facilitadores são parte do processo na mesma condição
que os demais participantes, e a exposição de todos cria um ambiente de
troca exclusivo e especial. Por se tratar de uma metodologia complexa
e inovadora que exige um investimento até a sua plena compreensão,
sugere-se a leitura de outros materiais da referida autora como fonte de
aprofundamento da teoria e da prática em Círculos.
No acompanhamento do público do programa CEAPA, a equipe
técnica atua em atendimentos individuais e grupais a partir do que é
determinado pelo judiciário e também pelo que é construído pelo profis-
sional como aposta de intervenção. Em todos esses cenários é possível
vislumbrar a entrada das práticas de Justiça Restaurativa como elemen-
to agregador e qualificador do acompanhamento do público das Alterna-
tivas Penais. Em vista disso, é indispensável detalhar os pontos de afini-
dade entre as abordagens do programa e tais práticas.

7 Para mais detalhes, ver o Guia do Facilitador disponível em http://justica21.


web1119.kinghost.net/arquivos/guiapraticakaypranis2011.pdf.

197
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

No trabalho junto ao público, a equipe realiza Projetos de


Execução de Alternativas Penais (PEAP) que consistem em grupos refle-
xivos de 04 a 12 encontros compostos por temas relacionados à violência
de gênero, violência intrafamiliar, uso e abuso de álcool e outras drogas,
trânsito, jogos de azar, dentre outros, nos quais se desenvolve a moda-
lidade de atendimento grupal a partir de dinâmicas e rodas de conversa
que visam responsabilização e reflexão.
Para a realização desses atendimentos, os profissionais incluem
nos encontros conteúdos que busquem promover a vinculação entre as
pessoas presentes e também entre o público e os facilitadores, a partir de
pontos em comum e troca de experiências, pois, quando um contrapõe a
lógica do outro, ele faz com que esse outro vacile de sua posição inicial e,
assim, dê brecha a outras considerações. O elo construído entre os par-
ticipantes do grupo e desses com os facilitadores é fator bastante valori-
zado na condução desses atendimentos, pois é só a partir de uma relação
transparente e de um ambiente seguro que as pessoas se sentirão à von-
tade para dizer dos seus reais posicionamentos, sem mascarar a reali-
dade por receio da repreensão, punição ou, no mínimo, não compreensão
da sua verdade. É a partir de um cenário edificado na autenticidade que
as intervenções terão maior alcance, e as práticas de Justiça Restaura-
tiva podem ser elemento chave para estabelecer essa intrigante conexão,
pois o elo produzido pelo Círculo provoca a manifestação absoluta dessa
genuinidade.
Outro atendimento grupal desenvolvido pela equipe se refere aos
grupos relacionados à alternativa penal de Prestação de Serviços à Co-
munidade (PSC). O primeiro grupo que a pessoa em alternativa penal
participa é o Grupo de Inicialização: nesses encontros, o público é ori-
entado sobre a lógica da execução da PSC através de um atendimento
grupal que possui, para além do aspecto orientador, caráter reflexivo so-
bre o cumprimento da atividade em determinada instituição.
Durante o percurso da PSC, a equipe pode lançar mão de mais
uma abordagem grupal, o Grupo de Acompanhamento, que não possui
padrão ou direcionamento rígido, se configurando como um grupo fle-

198
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

xível, aberto à criatividade do profissional que o conduz, estruturado a


partir de sua leitura sobre a necessidade dessa intervenção junto ao pú-
blico.
Ainda no âmbito da PSC, existe o Grupo de Finalização, que tem o
objetivo de concluir a trajetória do sujeito dentro do programa; momento
em que o público pode avaliar os diversos espaços e procedimentos pelos
quais transitou e consiste em uma oportunidade para a equipe finalizar
o processo de acompanhamento. Assim como nos PEAP’s, nos grupos de
PSC a inclusão das práticas circulares eleva o nível da intervenção, por
promover o salto de um atendimento procedimental para uma atenção
específica para aquelas pessoas, com ganhos significativos na vinculação
com aqueles que passam considerado tempo ligados ao programa.
No esforço de sustentar um acompanhamento que extrapola para
além do aspecto jurídico, a CEAPA - Central de Acompanhamento de
Alternativas Penais - constitui parceria com a rede8 de cada município,
buscando a união de saberes e processos que se costurem e trabalhem
com uma visão holística sobre a pessoa atendida, que por vezes é público
coincidente desses equipamentos. Nesse diálogo estreito e permanente
com a rede parceira também podem existir pontos que carecem de cuida-
do, tendo em vista a manutenção da relação. Tem-se, portanto, mais
um campo de aplicação das práticas de Justiça Restaurativa que podem
ser utilizadas junto à rede na discussão de casos com múltiplos atores,
na construção de encaminhamentos, na resolução de possíveis conflitos
entre cumpridor e instituição ou mesmo no que diz respeito à relação de
parceria entre o programa e determinada entidade.
É importante salientar, ainda, que os Círculos Restaurativos -
cabíveis nos casos em que a vítima e o ofensor se encontram para
resolução de um conflito no qual o ofensor se reconhece como tal e deseja

8 Até porque pode haver interferência de múltiplas situações de contexto e pela


interferência de outros atores externos ao programa. Muitas vezes, o aumento do
índice de recorrência poderia indicar o sucesso do programa em atingir um públi-
co em contextos de maior vulnerabilidade criminal, como o do tráfico de drogas e
das medidas cautelares (por exemplo).

199
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

reparar o dano à vítima, e a vítima é inserida como ponto central e pro-


tagonista capaz de dizer do que precisa e como precisa - também são uma
possibilidade de atuação dentro da CEAPA.
Ainda que o público que acessa o programa tenha recorte bastan-
te específico - pessoas em cumprimento de alternativas penais encami-
nhadas pelo Poder Judiciário - o programa, em seu caráter essencial de
prevenção à criminalidade, abre espaço para o atendimento das vítimas,
respeitando o princípio restaurativo da voluntariedade e garantindo que
o procedimento atenderá a reparação de danos que a vítima deseja. Nessa
mesma lógica, toma-se o atendimento aos familiares como possibilidade,
já que na metodologia do Círculo Restaurativo a presença dos familiares
é fundamental para ocuparem o lugar de apoiadores que dão suporte na
construção do vínculo e na sustentação dos possíveis acordos.
É orientação comum para todos os casos que tocam as práti-
cas de Justiça Restaurativa que a equipe dialogue com a Supervisão
Metodológica e com o Gestor Social para discutirem o caso e pensarem
conjuntamente na pertinência dessa prática, especialmente quando há
viabilidade de se facilitar um Círculo Restaurativo.
Não se pretende, de forma alguma, delimitar ou enrijecer as i-
númeras possibilidades de Círculos existentes no campo fértil que o pro-
grama dispõe, e a recomendação para a utilização das práticas restau-
rativas se inicia exatamente na inventividade dos profissionais, que são
estimulados a criar Círculos cada vez mais singulares e cheios de sentido.
Além disso, é importante ressaltar o aspecto mais amplo dessa
aplicabilidade, conforme destacado no Manual de Gestão para Alternati-
vas Penais que trata das práticas de Justiça Restaurativa.

Em um primeiro nível, quando inserimos a perspectiva restaurativa à


política de alternativas penais, consideramos a necessidade de que to-
das as modalidades de alternativas penais agreguem em sua abordagem
um enfoque restaurativo e avance também para a constituição de pro-
gramas específicos de práticas totalmente restaurativas. (MINISTÉRIO
DA JUSTIÇA, 2016, pág. 11).

Isto posto, entende-se que a aplicação de tais procedimentos


dentro do conjunto de metodologias do programa se inicia desde o pri-

200
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

meiro contato com a pessoa em alternativa penal, a partir de um enfoque


restaurativo no acolhimento inicial, que deve buscar apurar o olhar para
as necessidades da pessoa e verificar, a partir de escuta, se há alguma
demanda para a realização de práticas de Justiça Restaurativa. Sendo
assim, é evidente que essa abordagem encontra ambiente rico quando se
associa ao programa, pois corrobora a lógica defendida e trabalhada pela
CEAPA e joga luz ao aspecto que mais se objetiva desenvolver no acom-
panhamento dos casos: uma perspectiva individualizada.
Por fim, cabe ressaltar que, para o desenvolvimento pleno da
Justiça Restaurativa no Brasil, exige-se um esforço predominantemente
intersetorial, com a participação de múltiplos setores da sociedade e, des-
sa forma, compreende-se que o Programa CEAPA precisa se posicionar
como um ator que impulsiona tais processos no estado de Minas Gerais.

CONCLUSÃO

A Justiça Restaurativa encontra pontos de contato com as Alter-


nativas Penais justamente na individuação dos processos e na escuta dos
envolvidos como protagonistas capazes de construir novas possiblidades
para si mesmos.
Não era o propósito - e nem seria possível - apresentar aqui um
roteiro de prática pronto, finalizado e intolerante. Buscou-se, neste arti-
go, demonstrar o caráter inacabado dessas práticas, que só serão com-
pletas com a contribuição e o tom de cada facilitador e de cada história. O
intuito central deste trabalho era destacar as metodologias já executadas
dentro do programa que merecem atenção para que se consume de fato
essas práticas no âmbito das Alternativas Penais. Pretendeu-se com este
artigo, ainda, inquietar os leitores para conhecer intimamente o univer-
so da Justiça Restaurativa e estimular a produção das mais diversas
criações cabíveis.
A execução de tais práticas ainda se efetiva de maneira tímida
ao se considerar toda a sua potencialidade, mas os profissionais, após
conhecerem esse terreno de forma ampla, já estão colocando essas pos-

201
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

sibilidades em prática, com retornos bastante positivos do público e dos


facilitadores, por vivenciarem uma abordagem inédita e distinta daquela
que estavam habituados a participar ou a facilitar.
A consolidação da lógica da Justiça Restaurativa em esfera penal
depende de uma transformação paradigmática, que desafia as estruturas
do Poder Judiciário por se colocar em um lugar que não é previamente
construído e não obedece à perspectiva protocolar. Entretanto, a insu-
ficiência do sistema criminal e a falta de repertórios que atendam às
demandas que aportam ao Judiciário de certa forma estremecem essa
estrutura, e a fenda que surge desse abalo deve ser apropriada por pro-
cedimentos que coloquem os envolvidos no foco, descentralizando as
tomadas de decisão das instituições jurídicas ao estimular uma visão de
justiça que pode - e deve - ser construída por todos.
Para fins de compreensão desse novo olhar para as pessoas, a
vivência do Círculo se mostrou ponto vital para a assimilação das práti-
cas de Justiça Restaurativa. Só a partir da experiência excêntrica e origi-
nal que essas práticas oferecem que é possível compreender e sentir quão
poderosa e eficiente essa oportunidade é.
Ao prestigiar a liberdade do indivíduo, o programa CEAPA busca
se refinar para atender à complexidade de uma atuação que preza pela
destituição de um lugar verticalizado e rígido ao se amparar em um lu-
gar que permite o vazio, por percebê-lo como algo que de fato oportuni-
za múltiplas produções. O trabalho com Alternativas Penais, nesse pro-
grama, é pautado pela tela em branco, na qual se desenha a trajetória do
acompanhamento a partir da importante contribuição de diversas mãos.

202
CEAPA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO EM LIBERDADE

REFERÊNCIAS

ACHUTTI, Daniel. Justiça Restaurativa e abolicionismo penal: con-


tribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil.
Tese (doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais,
Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2012.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n° 225, de 31 de maio


de 2016. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/atos_normati-
vos/resolucao/resolucao_225_31052016_02062016161414.pdf>. Aces-
so em 09 jan 2019.

DEPEN - DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL E PNUD -


PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO DAS NAÇÕES UNIDAS. Manual
de Gestão para Alternativas Penais: Práticas de Justiça Restaurativa.
LEITE, Fabiana de Lima. Brasília: Ministério da Justiça, Departamento
Penitenciário Nacional, 2016.

DEPEN - DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL E PNUD - PRO-


GRAMA DE DESENVOLVIMENTO DAS NAÇÕES UNIDAS. Postulados,
princípios e diretrizes para a Política de Alternativas Penais. LEITE, Fabi-
ana de Lima. Brasília: Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário
Nacional, 2016, pág. 28.

PRANIS, Kay. Círculos de justiça restaurativa e de construção da paz:


guia do facilitador. Porto Alegre. Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, 2011.

ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. São Paulo: Palas Athena, 2012.

203
204

Você também pode gostar